CARTA AO LEITOR Esta é a primeira edição da revista Digesto Econômico de 2008, ano que promete muita luta e empenho para todos os brasileiros. Nem bem o ano começou e o governo anunciou medidas para aumentar o peso da carga fiscal, supostamente para compensar a perda da CPMF, subindo as alíquotas do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) e da CSLL (Contribuição sobre o Lucro Líquido). Em 2007, batemos um novo recorde de arrecadação de impostos, que chegou a 36% do Produto Interno Bruto. Isso significa que, para cada R$ 100, R$ 36 foram parar nos cofres do governo. E pelo andar da carruagem e o cerco do fisco, um novo recorde deverá ser alcançado este ano - e gostaríamos de ver a mesma eficiência nas despesas e eliminação dos encargos burocráticos. A carga tributária excessivamente pesada, sem o respectivo retorno em forma de serviços e benefícios, atrasa o desenvolvimento do País, que não tem aproveitado o bom momento da economia mundial para crescer, a exemplo de países como China, Rússia, Índia e mesmo a Argentina. Em seu artigo, o tributarista Ives Gandra Martins aborda exatamente este assunto, mostrando como o Leão vem fazendo o País eternizar o seu estigma de ser, sempre, "o país do futuro", e nunca o do presente. E poderemos pagar caro por isso, pois os tempos de bonança parecem chegar ao fim. Os EUA dão sinais de que caminham para a recessão, e o mundo pode ir junto. A análise da recessão americana é tema do artigo do economista Roberto Fendt. Na matéria de capa abordamos os 10 anos das privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso. O setor de telecomunicações é um exemplo claro de que, quando há regras claras e respeito aos contratos, a iniciativa privada responde com eficiência e bons serviços. Hoje, brasileiros de qualquer lugar do País têm acesso a um telefone, fixo ou celular, a custos acessíveis, o que era impensável quando o serviço estava nas mãos do Estado. Entre outros destaques da edição, o sociólogo e diplomata Paulo Roberto de Almeida colaborou com dois importantes artigos, um mostrando como a atual estratégia de política externa do governo Lula é moldada pelas diretrizes do Foro de São Paulo (movimento que pretende difundir o socialismo em toda a América Latina), e outro analisando a herança que Portugal nos deixou, refletida na atual situação do Brasil. Contando com a colaboração de especialistas do mais alto gabarito, e ao abordar temas relevantes ao destino do País, raramente discutidos na mídia ou mesmo no meio acadêmico, a revista Digesto Econômico tem cumprido o objetivo para o qual foi criada pela Associação Comercial de São Paulo há mais de 60 anos – o de representar um canal de comunicação com a classe empresarial e política, o mundo acadêmico e todos aqueles que se dedicam aos estudos dos problemas brasileiros. Boa leitura!
Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo
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ÍNDICE Reprodução
Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Alencar Burti Superintendente Institucional Marcel Domingos Solimeo
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A locomotiva das privatizações Patrícia Büll
ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira
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A herança portuguesa e a obra brasileira Paulo Roberto de Almeida
Editores Domingos Zamagna e Carlos Ossamu Editor de Fotografia Alex Ribeiro Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico Evana Clicia Lisbôa Sutilo Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Lino Fernandes Arte Céllus Jair Soarez Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122
Reprodução/Pintura de Nicolas Louis Albert Delerive
Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Laborgraf REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.br
Capa impressa em papel ecoeficiente Lumimax fosco 150g/m² e o miolo no papel ecoeficiente Starmax fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP.
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CAPA Arte: Liliane Dornelas Fotografia: Marcos Muzi/Fator Z
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Molly Riley/Reuters
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A história da história do Brasil Renato Pompeu
Delicadeza letal Olavo de Carvalho
Justin Sullivan/AFP
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Uma republiqueta fiscal Ives Gandra da Silva Martins
Greenspan e a recessão americana Roberto Fendt
Imprensa brasileira faz 200 anos Heci Regina Candiani Dida Sampaio/AE
Dida Sampaio/AE
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O Brasil como ator regional Paulo Roberto de Almeida
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De Bali para o mundo... nada, por enquanto José Goldemberg
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10 ANOS A locomotiva das privatizações Mesmo com eventuais manifestações pela reestatização, o sucesso das privatizações 'atropela' o pedido de volta ao passado Patrícia Büll
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o momento em que o governo do Estado de São Paulo anuncia a licitação para a privatização do que resta da Companhia Energética de São Paulo (Cesp) e do trecho Oeste do Rodoanel Mário Covas, enfrenta o velho e conhecido bordão "diga não à privatização", o mercado se prepara para comemorar, em 2008, uma década de desestatização do setor de telecomunicações no Brasil. Em julho de 1998, o Sistema Telebrás saiu das mãos do governo federal para ser explorado pela iniciativa privada. Foram 12 leilões consecutivos na então Bolsa de Valores do Rio de Janeiro para a venda do controle das três holdings de telefonia fixa, uma de longa distância e oito de telefonia celular, configurando a maior operação de privatização de um bloco de controle já realizada no mundo. Com a operação, o governo arrecadou um total de R$ 22 bilhões. Apesar do ágio de 63% sobre o preço mínimo estipulado, até hoje há questionamentos sobre esses valores. Esses questionamentos se juntam ao coro dos descontentes com a venda de outras 19 empresas dos setores petroquímicos, financeiro, de informática e mineração, como a Companhia Vale do Rio Doce, hoje só Vale, então a maior, mais importante e lucrativa estatal brasileira. Passados mais de dez anos desde o início dessas operações, as empresas que agora controlam as exestatais ainda enfrentam brigas na justiça e vez ou outra, grupos de ex-funcionários e de políticos extremados realizam manifes-
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tações, passeatas e até plebiscito – como o que ocorreu em setembro do ano passado envolvendo a Vale, que tem cerca de 150 processos na Justiça questionando a mudança de lado – pedindo a reestatização. Nacionalismo à parte, não há como negar os avanços que essas privatizações trouxeram. Quem não se lembra dos intermináveis planos de expansão para ter acesso a uma linha telefônica residencial, que chegavam a durar até 24 meses? Ou do perigo das viagens pelas rodovias de mão dupla, que ainda perduram em mais de 90% das rodovias do País? Hoje, esses enredos parecem muito antigos. Afinal, de um telefone público é possível solicitar uma linha telefônica e em poucos dias, ter o serviço disponível em casa. Trafegar em quatro faixas, principalmente nas rodovias estaduais, também é muito mais seguro e prazeroso. Por outro lado, a falta de concorrência na telefonia fixa, com um quase monopólio privado, deixa a população refém de serviços de qualidade às vezes duvidosos, de preços abusivos e de cobranças sem sentido. Isso sem falar dos inúmeros – e caros – pedágios distribuídos ao longo das estradas. De carona no recente processo de concessão do segundo lote de rodovias federais para a iniciativa privada, feito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – historicamente defensor ferrenho do controle do Estado – e do anúncio, feito pelo governador José Serra (PSDB), da abertura de licitação para a venda da Companhia Energética de São Paulo (CESP), ainda no primeiro semestre deste ano e do leilão para a Concessão do Trecho Oeste do Rodoanel, a Digesto Econômico ouviu especialistas sobre o processo de privatização no Brasil. Avanços, retrocessos, acertos e equívocos desse tema tão batido, mas que ainda divide opiniões. Dívida pública, investimento e eficiência Alavancar investimentos, aumentar a eficiência das empresas e aliviar o crescimento da dívida pública eram os objetivos primordiais das privatizações brasileiras, que de 1990 a 2002 arrecadaram mais de R$ 105 bilhões, sendo R$ 87,2 bilhões em receitas e R$ 18 bilhões em dívidas transferidas ao setor privado. "Visto que as receitas obtidas com a venda das empresas estatais foram utilizadas quase que exclusivamente para cobrir a dívida pública, pode-se dizer que a privatização foi muito bem sucedida", analisa Armando Castelar, economista do Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para ele, o setor de telecomunicações é um
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A população tem hoje acesso fácil à telefonia, fixa ou móvel.
bom exemplo desse sucesso, que viveu uma explosão gigantesca de oferta de serviços no período pós-privatizações. Para se ter uma idéia, em 1998 o País contava com 8,4 milhões de telefones, entre fixos e celulares. Em 2006, dado mais atual da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), esse número saltou para 138,7 milhões. Números impressionantes que, para Castelar, se repetem nas rodovias concedidas, que têm um desempenho muito melhor do que as não privatizadas, tanto em termos de queda do número de acidentes, quanto na qualidade das pistas e melhora da sinalização. Para ele, mesmo as estatais lucrativas, como a Companhia Vale do Rio Doce, tiveram melhoras gigantescas tanto em termos de eficiência quanto de lucratividade no período pós-privatização. "A Vale virou outra empresa: além de mais eficiente, teve uma possibilidade de expansão que nunca teria se permanecesse como estatal. Tanto que é hoje, a segunda maior empresa do Brasil e a maior companhia privada da América Latina", exemplifica Castelar. Essa opinião é compartilhada pelo advogado Renato Parreira Stetner, sócio do Castro, Barros, Sobral, Gomes Advogados. "É verdade que a Vale dava lucro, mas muito menos do que hoje. Atualmente ela contribui muito mais com o governo federal como pagadora de impostos do que contribuía como geradora de dividendos quando o governo era o acionista controlador", afirma Stetner. Defensor da participação privada em qualquer setor público, mesmo naqueles que consi-
dera de atuação tipicamente governamental, como saúde e educação "onde poderia agir através de parceria público-privada e de forma pontual", Stetner afirma que as privatizações poderiam avançar para áreas como portos, rodovias e até aeroportos, que ainda permanecem totalmente sob controle estatal. "A privatização não surgiu de uma decisão ideológica, mas da constatação de que alguns serviços públicos precisavam ser melhorados – ou mesmo implantados – em uma situação que o Estado não tinha dinheiro para atender. E, isso continua valendo. Basta avaliar a situação em que se encontram os setores que não foram privatizados". Como exemplo, o advogado cita as rodovias. "onde não houve concessão, estão em estado lamentável, não comportam tráfego, são mal cuidadas e sinalizadas, exatamente o oposto do que ocorre nas concedidas." Para comparar em termos de melhora de infra-estrutura, as 38 concessionárias de rodovias em operação no Brasil investiram de 1996 a 2006, R$ 11,9 bilhões nos 10 mil quilômetros que administram, de acordo com a Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR). Já o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, prevê investimentos de R$ 25,3 bilhões para o período de 2008 a 2010 para mais de 42 mil quilômetros de rodovias, divididos em recuperação, adequação e construção. Desenvolvimento dos arredores Para James Wright, coordenador do Profuturo, programa da Fundação Instituto de Administração (FIA) e professor da Universidade de São Paulo (USP), além do ganho de eficiência, as privatizações levam desenvolvimento para as cidades no entorno. Como exemplo ele cita as cidades onde as praças de pedágios estão localizadas. "Possuir uma malha viária de qualidade atrai interesse do setor produtivo,
que instala fábricas ou subsidiárias nessas cidades, geram mais empregos e tributos para a cidade, com benefícios diretos e acesso crescente a repasses de tributos estaduais e federais. Além de estimularem a própria economia local, demandando produtos e serviços para atender o próprio negócio. Isso tudo cria um ciclo virtuoso de desenvolvimento da região.", explica Wright. Se os especialistas são unânimes em apontar os benefícios da privatização, o mesmo ocorre quando falam da importância das agências reguladoras. "Mas elas precisam ser autônomas e ter eficiência técnica para cumprir o papel que lhes cabe", afirma James Wright, da FIA, complementando que elas devem trabalhar para garantir um mercado equilibrado, onde empresas, governo e consumidores sejam atendidos de maneira igual. Há quem diga, inclusive que, se um desses três personagens estiver mais feliz do que os outros, a agência não está cumprindo seu papel. Verdade ou não, muitas delas têm até hoje seu papel questionado, como foi o caso da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) durante a crise aérea. Na opinião do advogado Renato Parreira Stetner, sócio do Castro, Barros, Sobral, Gomes Advogados, que assessorou empresas durante o processo de privatização dos setores de telefonia, de energia e de rodovias, a atuação das agências ainda precisa melhorar muito. "Mas a situação hoje é muito melhor do que era antes das agências existirem", garante o advogado. Segundo Stetner, as agências são fenômeno positivo, mas não têm a capacidade de fiscalização necessária, por exemplo. "Há dois fatores que impedem uma atuação mais eficaz das agências: um é referente à própria estrutura das agências, com problemas decorrentes da arquitetura legal delas. O outro, e talvez mais grave, é que elas precisam de mais dinheiro para investir na própria estrutura", afirma.
Paulo Pinto/AE
Pedágio na Rodovia dos Bandeirantes: usuário paga R$ 0,127 por quilômetro, enquanto que na Fernão Dias será de R$ 0,01.
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Em dez anos tudo mudou
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mercado está comemorando dez anos de privatização da telefonia brasileira. Sob o domínio estatal, uma linha de telefone fixo chegou a custar o equivalente a US$ 10 mil e levava até dois anos para ser instalada. Dez anos depois, não há como negar o salto de qualidade do setor: as linhas de telefone fixo demoram menos de um mês para ser instaladas e o número de telefones fixos pulou de 17,5 milhões para 40 milhões no final de 2007. Quando o Sistema Telebrás saiu das mãos do Estado para as da iniciativa privada por R$ 22 bilhões, com ágio de 63% sobre o preço mínimo estipulado, o maior desafio era criar um mecanismo que gerasse competição na telefonia fixa e viabilizasse a sua universalização. Apesar dos avanços registrados em uma década de concessão, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), criada para regular o setor, afirmou na prestação de contas referente ao ano de 2007, que essas metas não foram alcançadas, principalmente no que se refere à questão da competição na telefonia fixa, e reconheceu que a agência pouco fez para exigir o cumprimento das mesmas. Ainda hoje, as três empresas que adquiriram a divisão da Telebrás – Telemar (agora Oi), Telefônica e Brasil Telecom (BrT) – respondem por mais de 90% dos acessos fixos em suas respectivas regiões. Nem as chamadas empresas espelhos, que teoricamente deveriam concorrer com essas, conseguiram alcançar esse objetivo. E, na opinião de Armando Castelar, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), há poucas chances desse cenário mudar. Segundo ele, a rivalidade entre as empresas na telefonia fixa é muito baixa e pela própria legislação, elas não podem "invadir" a região umas das outras. É essa falta de competitividade, na opinião de Luiz Fernando Moncau, advogado do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que torna o telefone fixo inacessível para boa parte da população, apesar da expansão da rede nesses dez anos. "Se por um lado a me-
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ta de universalização foi cumprida, porque hoje a rede de telefonia alcançou todas as regiões do País, por outro, o preço da assinatura mensal afasta boa parte da população do serviço fixo, que acaba migrando para a telefonia móvel, principalmente para o celular pré-pago, muito mais caro do que o serviço fixo, mas que o usuário não tem obrigatoriedade de pagamento", explica Moncau. Segundo a Anatel, o preço da assinatura fixa subiu de R$ 13 em 1998 para R$ 40 atualmente, uma alta de 207%, muito acima da inflação medida pelo Índice de Preço ao Consumidor Amplo (IPCA) do período, que foi de cerca de 83%. O resultado é que o Brasil encerrou 2007 com 40 milhões de telefones fixos, um salto de 135% quando do início das privatizações, mas muito abaixo dos 121 milhões de celulares, cuja adição líquida no ano passado foi de 21 milhões de novas linhas, o que coloca o Brasil como o 5º maior consumidor do serviço móvel no mundo. "Por conta dos preços cobrados na telefonia fixa, foram os celulares que se tornaram universais", diz o advogado do Idec. Monalisa Lins/e-SIM
Moncau: o preço da assinatura mensal afasta boa parte da população do serviço fixo, que acaba migrando para a telefonia móvel pré-paga.
Eduardo Knapp/Folha Imagem
O Brasil encerrou 2007 com 40 milhões de telefones fixos e 121 milhões de celulares. O País é o quinto maior consumidor de telefonia móvel do mundo.
Supertele nacional A questão da falta de concorrência entre as empresas de telefonia fixa é um tema recorrente entre os especialistas. Apesar disso, na visão de Castelar, do Ipea, uma possível fusão entre Oi e Brasil Telecom para criar uma "supertele nacional", como foi divulgado recentemente, mudará pouco esse cenário. Opinião semelhante tem Eduardo Tude, presidente da Teleco, para quem a fusão poderá criar uma grande empresa em telefonia fixa, mas não na móvel, pois a participação de ambas ainda é muito pequena nesse segmento. "Hoje, não dá para ver a competição desses dois segmentos isoladamente, pois elas estão se misturando por conta da convergência", afirma Tude. Ele explica que a partir da convergência, serviços como voz, dados e imagens, até então providos por redes diferentes, passam a ser oferecidos pela mesma rede. "Daí a dificuldade de se falar em aumento de competitividade entre as empresas, mesmo em se tratando de uma grande empresa de capital nacional, pois com a convergência, a telefonia móvel poderá oferecer os mesmos serviços que a fixa." Na opinião de Tude, o benefício maior poderia se concretizar na telefonia móvel, que atualmente conta com três grandes grupos que disputam entre si (Vivo, Tim e Claro) e a partir da fusão entre Oi e BrT, passaria a contar
com um quarto grande competidor. "De qualquer forma, a fusão poderia ser benéfica para manter uma empresa de capital nacional. Caso contrário, tanto a Oi quanto a Brasil Telecom possivelmente serão vendidas para grupos estrangeiros, pois sozinhas serão engolidas por aqueles que dão as cartas nesse jogo", diz. Luiz Fernando Moncau, advogado do Idec, diz que até agora as empresas não mostraram quais benefícios essa fusão – a aquisição da BrT pela Oi – trará para o consumidor. "Nós sabemos que o interesse privado é manter suas reservas e ganhos monetários. Mas o quê o consumidor ganha?", questiona. Segundo os analistas, usar como argumento para a criação de uma "superempresa de telefonia nacional" a defesa de um setor da indústria nacional, é dar um passo atrás aos avanços que o processo de desestatização trouxe para o País. Mesmo assim, se as conversações entre Oi e Brasil Telecom prosperarem, a fusão dependerá de mudanças da legislação, que hoje proíbe a troca de controle acionário entre as empresas de telecomunicações. Essa proibição foi estabelecida pelo Plano Geral de Outorgas, um detalhamento da Lei Geral de Telecomunicações, que norteou a abertura do mercado à iniciativa privada. Depois disso, ainda terá que passar pelo crivo da Anatel e do Cade - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. (P.B.)
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Rodovias aceleram processo
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Governo do Estado de São Paulo acaba de anunciar a licitação para a concessão do Trecho Oeste do Rodoanel Mário Covas para os próximos 30 anos. O anúncio vem na seqüência da licitação realizada pelo governo federal, em outubro do ano passado, para a concessão de sete trechos de rodovias federais. Ambos ocorrem após um período longo, sem mudanças de direção na administração das rodovias brasileiras, fato que frustrou aqueles que esperavam que o ritmo de concessões fosse o mesmo verificado a partir de 1995, quando 10 mil quilômetros de rodovias passaram para as mãos da iniciativa privada, cerca de 5% da malha pavimentada brasileira. "O volume de concessões durante o primeiro mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso nos deu a esperança de que haveria uma aceleração. Isso não aconteceu. No primeiro mandato do presidente Lula, houve uma completa interrupção de privatizações na malha federal. E, na estadual, os avanços foram muito pequenos, inclusive em Estados como Minas Gerais e São Paulo, que por serem governados pelo mesmo PSDB de Fernando Henrique, não causaria surpresa se dessem continuidade ao processo de privatização. Mas não foi o que ocorreu", afirma Paulo Resende, doutor em Logística e coordenador do Núcleo de Logística da Fundação Dom Cabral. A surpresa, segundo Resende, ficou por conta do governo federal no ano passado, que se antecipou aos governos estaduais – principalmente o do Estado de São Paulo – e concedeu sete trechos de rodovias, adotando como regra básica de concorrência o menor valor de pedágio a ser cobrado do usuário. Já a licitação anunciada pelo governo paulista é de concessão onerosa, ou seja, prevê que a concessionária vencedora – que também será a que cobrar o menor valor de pedágio – pague R$ 2 bilhões ao Estado nos dois primeiros anos de contrato. Diferentemente da primeira concessão estadual, quando foi priorizado o maior retorno possível para que as rodovias passassem das mãos do Estado para as da iniciativa privada, a atual parece ser uma respos-
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ta aos críticos do primeiro modelo, já que a comparação inevitável com as concessões federais mostrou que é possível, sim, oferecer serviços de qualidade ao usuário, sem cobrar demais nos pedágios. Comparativamente, o pedágio das rodovias federais será muito mais barato para o usuário do que nas paulistas. Na rodovia Fernão Dias (São Paulo a Belo Horizonte) por exemplo, a taxa será de R$ 0,01 por quilômetro rodado. Já em estradas estaduais concedidas anteriormente, como a Bandeirantes, cobra-se R$ 0,127/km e na Imigrantes, R$ 0,264/km. Resposta ou não aos críticos, o diretor de infra-estrutura e logística da Trevisan Consultoria, Olivier Girard, aponta três diferentes processos de concessão de rodovias no Brasil. O primeiro, aplicado nas rodovias estaduais de São Paulo teve como objetivo obter o maior preço possível pelas rodovias. O segundo, realizado no ano passado pelo governo federal, priorizou o menor valor do pedágio; e finalmente o terceiro, anunciado pelo governo de São Paulo para a concessão do Trecho Oeste do Rodoanel, pode ser considerado um "híbrido" dos dois anterioDivulgação
Paulo Resende: no primeiro mandato do presidente Lula, houve completa interrupção de privatizações na malha federal.
Divulgação
res: cobrança de R$ 2 bilhões para a exploração, sem leilão, mas leva a concessão quem oferecer o menor valor de pedágio. "No primeiro caso, o concessionário que ganhasse teria que dar o preço mais alto no leilão e também arcar com as despesas de melhorias e manutenção necessárias. Inevitavelmente, esses custos foram repassados para o consumidor. É por isso que os pedágios mais caros estão localizados no Estado de São Paulo. O dinheiro da concessão acabou entrando no tesouro estadual em detrimento do usuário", afirma Girard. O diretor da Trevisan Consultoria reconhece os ganhos que o usuário teve com as concessões, principalmente na questão de segurança. Na Via Dutra, por exemplo, uma das primeiras rodovias repassadas à administração privada, o número de mortos em acidentes diminuiu de 560 por ano, quando administrada pelo poder público, para cerca de 250 após a concessão, de acordo com o relatório anual de 2006 da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR). "Por outro lado, ficou claro que o custo que ele está pagando poderia ser menor, como ficou comprovado pelas recentes concessões federais", afirma Girard. Foram essas diferenças, na opinião do diretor de infra-estrutura e logística da Trevisan Consultoria, que ocasionaram críticas severas ao modelo de concessão do governo do Estado de São Paulo e fizeram com que a Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp), ligada à Secretaria Estadual de Transportes, realizasse mudanças na estrutura para a Concessão do Trecho Oeste do Rodoanel Mário Covas. "A vantagem desse modelo, além do usuário pagar menos pelo pedágio, é que os R$ 2 bilhões que a concessionária vencedora terá que pagar nos dois primeiros anos serão obrigatoriamente destinados à construção do Trecho Sul", diz Girard. Mal necessário Uma pesquisa realizada por Paulo Resende, coordenador do Núcleo de Logística da Fundação Dom Cabral, sobre o nível de satisfação em relação às estradas pedagiadas, apontou que o usuário vê a cobrança como um "mal necessário", pois a utilização de estradas ruins aumenta os custos operacionais. A pesquisa foi feita em 2007 com executivos de 149 empresas, representando nove setores econômicos, do agropecuário (22%) ao de máquinas e equipamentos (6%). "A pesquisa mostra que a insatisfação com o pagamento de pedágio vem diminuindo, mas isso não significa que a satisfação aumentou. Na verdade, o usuário cada vez mais vê o pe-
As rodovias estaduais foram privatizadas levando-se em conta o maior valor pago.
dágio como um mal necessário, já que a utilização de rodovias em mau estado acarreta aumento nos custos operacionais das empresas", explica Resende. Segundo a pesquisa, 52% dos entrevistados apontaram gastos adicionais acima de 16% (alguns chegando a 40%), com combustíveis e reposição de peças quando usam estradas em mau estado de conservação. Cerca de 50% dos entrevistados concordam plenamente que os custos operacionais são menores nas estradas pedagiadas. A pesquisa apontou ainda, que a maioria dos executivos (mais de 70%), não acredita no poder público como único elemento a solucionar os problemas das rodovias brasileiras. Entre os motivos, eles apontam dinheiro insuficiente, questões políticas que atrapalham os cronogramas de obras e falta de recursos para manutenção das rodovias. Opinião semelhante tem o diretor de infra-estrutura e logística da Trevisan Consultoria, Olivier Girard, que acredita que a iniciativa privada pode arcar melhor com os custos de manutenção das estradas. "Embora o governo tenha a Cide (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico), criada para assegurar um volume mínimo de recursos para investimento em infra-estrutura de transportes, os recursos acabam se desviando no percurso. Isso faz com que a manutenção das estradas estejam em péssimo estado. Então, ou ela é feita pela iniciativa privada, ou não terá a manutenção ideal", diz. (P.B.)
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Ferrovias avançam em marcha lenta
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nze anos de concessão e investimentos de R$ 15,3 bilhões (entre 1997 e 2007) foram suficientes para redesenhar o mapa da malha ferroviária brasileira, mas não para colocar o setor totalmente nos trilhos. Aquisição e recuperação de locomotivas e vagões, introdução de novas tecnologias, capacitação de pessoas e aumento da participação desse modal no transporte de carga brasileiro foram algumas das conquistas. Mas a falta de concorrência no setor e o alto custo dos fretes, pouco abaixo dos cobrados no transporte rodoviário, são alguns dos entraves que, dizem os especialistas, nem a privatização conseguiu resolver. Para Olivier Girard, diretor de infra-estrutura e logística da Trevisan Consultoria, de um modo geral a mudança de mãos dos 28 mil quilômetros da malha ferroviária brasileira da extinta Rede Ferroviária Federal S.A (RFFSA) para a iniciativa privada trouxe resultados positivos. Um exemplo é o aumento da participação da ferrovia como matriz de transporte de cargas, que segundo a Agência Nacional de Transporte Ferroviário (ANTF) saltou de 19% em 1999 para 26% em 2006. "Para o usuário empresarial também foi benéfico, pois passou a contar com um serviço que até então não tinha, pois tanto a estrutura quanto os equipamentos estavam totalmente sucateados", diz Girard. "O problema é que assistimos atualmente a uma concentração muito grande do serviço, com mais de 90% de toda a carga transportada nas mãos de três empresas: ALL, Vale e CSN, que atuam em áreas geográficas diferentes e se tornaram monopolistas dentro de suas áreas", complementa o consultor. Essa mistura de concentração e monopólio, segundo Girard, acaba gerando um custo ferroviário muito mais alto do que poderia ser. De acordo com o diretor-executivo da ANTF, Rodrigo Vilaça, as tarifas praticadas pelas concessionárias respeitam o limite máximo fixado pelo governo federal. Ele diz ainda, que um estudo do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Administração da Universida-
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de Federal do Rio de Janeiro (Coppead/UFRJ) estima que o preço praticado pelas ferrovias para o transporte de cargas chega a ser até seis vezes mais barato do que o das rodovias. "Vale destacar também que o setor de transporte ferroviário é regulado pelo Poder Público, que regulamenta e fiscaliza as malhas ferroviárias concedidas. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que o setor de transporte rodoviário é formado por grandes empresas, mas também por um grande número de motoristas autônomos, que conta apenas com um caminhão e, por isso, acabam por definir a tarifa mais conveniente", diz Vilaça. Dependência Para Paulo Resende, doutor em Logística e coordenador do Núcleo de Logística da Fundação Dom Cabral, a malha ferroviária brasileira, mesmo depois de privatizada, é muito dependente do minério de ferro. "Isso significa que quaisquer investimentos em ativos ferroviários serão direcionados para o transporte de minério de ferro, o que cria um ciclo vicioso que prejudica, por exemplo, o transporte de produtos agrícolas, também muito importante para o País", afirma Resende. Para desfazer esse nó, ele diz que o governo federal deveria agir para expandir a malha ferroviária em direção às fronteiras agrícolas, o que ajudaria a diminuir a dependência do minério de ferro. "Eu acho que o governo federal, através do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), deveria tomar imediatamente a decisão de assumir a expansão das ferrovias em direção às fronteiras agrícolas ou de abrir novas concessões ferroviárias. A ação é essencial para quebrarmos esse marasmo brasileiro em termos de ferrovias ligadas ao minério de ferro", diz Resende. Progressos Monopólio e concentração à parte, não há como negar os avanços alcançados desde o iní-
cio da desestatização em 1997. De acordo com levantamento da ANTF, referente ao ano de 2006, quando a iniciativa privada assumiu as operações da RFFSA, as ferrovias contavam com 43.796 vagões disponíveis para operações, dos quais 42% estavam sucateados. Das 1.144 locomotivas em atividade, 30% apresentavam péssimo estado de conservação. Dez anos depois, as concessionárias praticamente dobraram a frota em operação, hoje com 81.642 vagões e 2.227 locomotivas. A produção ferroviária nacional também teve um salto significativo, com aumento de cerca de 70%, passando de 137,2 bilhões de TKU (tonelada por quilômetro útil transportada) em 1997, para 232,3 bilhões de TKU em 2006. Entretanto, segundo Rodrigo Vilaça, diretor-executivo da ANTF, há o risco dessa expansão ser interrompida, pois ela depende da eliminação de gargalos atrelados à falta de investimentos do governo federal em infra-estrutura. De acordo com Vilaça, em dez anos de operação, a arrecadação em tributos federais, estaduais e municipais do setor atingiu R$ 3,7 bilhões, além dos R$ 2,6 bilhões pagos pelas empresas quando da concessão e arrendamento. "Entretanto, os recursos empenhados pelo governo federal nas malhas concedidas à iniciativa privada somaram pouco mais de R$ 649
milhões no mesmo período, cerca de 10% de tudo que as concessionárias pagaram entre impostos e o próprio valor da concessão", compara Vilaça. As concessionárias acham que essa contrapartida é pequena. E, apesar de a malha ferroviária ter sido privatizada sob a alegação de que a União não possuía recursos suficientes para investir no setor, as empresas reivindicam a ampliação de repasses públicos, sob o risco de não conseguirem cumprir as metas estipuladas, por exemplo, a expansão da malha para 55 mil quilômetros, que continua nos mesmos 28 mil quilômetros da época da desestatização. De acordo com o executivo da ANTF, a contrapartida pública é necessária para solucionar gargalos, como passagens em nível críticas (cruzamento de uma ou mais linhas com uma rodovia); invasão de faixa de domínio (construções irregulares ao longo das ferrovias) e o compartilhamento dos trens de carga e passageiros nas metrópoles, que reduzem a velocidade média de 35 Km/h para 5 Km/h, comprometendo o desempenho das ferrovias. "O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) é a vitrine maior para que esses gargalos sejam enfim eliminados e as metas estipuladas pelas partes envolvidas, concretizadas", diz Vilaça. (P.B.)
A Companhia Vale do Rio Doce (Vale) arrematou em leilão, realizado na Bovespa, a concessão de um trecho da Ferrovia Norte-Sul.
Agliberto Lima/AE
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Energia: falta marco regulatório
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ais de US$ 29 bilhões oriundos da venda de empresas estatais do setor elétrico e 12 anos desde o início das privatizações não foram suficientes para resolver o problema de falta de energia no Brasil. Bastou o País acelerar o crescimento em 2007, impondo uma velocidade de expansão um pouco acima da média registrada nos últimos anos, aliado a um fator climático desfavorável, com escassez de chuva em regiões que concentram as hidrelétricas, para que a ameaça de um novo "apagão" voltasse para a pauta de discussões. O tema ganha destaque pouco antes de o governador José Serra (SP) privatizar o que resta da Companhia Energética de São Paulo (Cesp) sob domínio estatal, e poucos anos depois do programa de racionamento ter sido imposto aos brasileiros. Para os críticos, como o presidente do Sindicato dos Eletricitários do Estado de São Paulo, Antônio Carlos dos Reis, o anúncio do governador paulista é inoportuno, pois a discussão deveria ser sobre "como resolver a iminente crise de energia e não o valor das ações da Cesp". Já aqueles que são favoráveis ao processo de privatização, como o advogado Renato Parreira Stetner, sócio do Castro, Barros, Sobral, Gomes Advogados, o "problema do apagão no setor elétrico vem ocorrendo porque apenas as empresas ligadas à distribuição de energia passaram para a iniciativa privada, e não as geradoras, que continuam sendo estatais e não possuem os investimentos necessários para eliminar gargalos". Aumento de eficiência e da produtividade são alguns dos exemplos citados para destacar os benefícios da desestatização, e no setor elétrico não é diferente. "Além disso, livra o Estado de aplicar recursos na gestão e na expansão do setor elétrico, focando o gasto público em áreas sociais onde há demandas crescentes", afirma Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira da Infra-estrutura e Indústria de Base (Abdib).
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Ele reconhece, entretanto, que só a privatização não significa, imediatamente, a ampliação da quantidade de energia disponível no País, como de fato não ocorreu, haja visto o racionamento de 2001. "Essa ampliação só ocorrerá com políticas públicas orientadas para tal objetivo, por meio de leilões de concessão de novas usinas de geração de energia tanto para empresas públicas quanto privadas", diz Godoy. Para Armando Castelar, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a privatização pode ajudar no aumento da oferta de energia se vier com mudanças no aparato regulatório, ainda um grande inibidor de investimentos no setor. "Existe muito dinheiro privado querendo entrar no setor de energia elétrica, mas isso depende principalmente de se criar um ambiente regulatório que dê segurança ao investidor. E, na minha opinião, esse ambiente ainda não existe", afirma. A mesma opinião é compartilhada pelo advogado Stetner, que afirma haver uma séLeonardo Rodrigues/e-SIM
Renato Stetner: nenhuma empresa privada pode viver com o risco que a questão da concessão ambiental gera no Brasil.
André Dusek/AE
Apenas as empresas distribuidoras de energia foram para a iniciativa privada, as geradoras continuam sendo empresas estatais.
rie de indefinições que rondam o setor de energia, como as licenças ambientais para a implantação de novas unidades de geração de eletricidade. "Talvez hoje, o Estado nem consiga atrair muito capital privado para a geração, pois nenhuma empresa privada pode viver com o risco que a questão da concessão ambiental gera no Brasil. O empresário inicia um procedimento e não sabe quanto
tempo vai demorar para conseguir a licença, e nem mesmo se poderá fazer a implantação da usina. Essa falta de clareza dificulta a participação das empresas privadas nesse setor", observa o advogado. Na sua opinião, "uma vez que esses problemas forem resolvidos, não haverá razão para que não ocorra uma privatização mais abrangente em energia", afirma Stetner. (P.B.)
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A herança p e a obra bras
Reprodução/Pintura de Nicolas Louis Albert Delerive
um balanço e uma avaliação de dois séculos
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ortuguesa ileira: 1. O que, exatamente, deve ser comemorado?
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m janeiro de 2008, Brasil e Portugal começaram a "festejar" – se o verbo se aplica – os 200 anos da vinda da família real para o Brasil. Alguns se atêm ao ato da "fuga", outros celebram a "genial estratégia" do Príncipe Regente, o único a ter enganado Napoleão, nas palavras do próprio, como já fomos lembrados. Apreciações positivas e negativas são inevitáveis, em ambos os lados do Atlântico, uma vez que a controvérsia sobre decisões de tanta gravidade faz parte da trama da história, e não apenas entre historiadores. O fato determinado é que a partida (por certo precipitada), em novembro de 1807, e a chegada à Bahia, em janeiro de 1808, imediatamente seguida do famoso Alvará Régio de abertura dos portos, se impunham como necessidades absolutas, à falta, cada uma, de melhores alternativas. Este ensaio não pretende retomar as circunstâncias da "fuga" ou, então, do "traslado" da corte, já suficientemente cobertas na bibliografia consagrada – na qual se sobressai o clássico de Oliveira Lima, D. João VI no Brasil (várias edições, a mais atual pela Topbooks), o mais recente e "leve", mas bem pesquisado, de Laurentino Gomes, 1808 (Planeta) e o recentíssimo, "binacional", A Abertura dos Portos, organizado por Luís Valente de Oliveira e Rubens Ricupero (Senac-SP) – e objeto de artigos de divulgação geral em muitos meios de comunicação nas semanas que passaram e nos meses que ainda estão por vir. A intenção seria a de oferecer uma espécie de balanço sobre o quê, exatamente, Portugal nos legou, como resultado dos 300 anos anteriores de colonização e da sua marca deixada nos anos de Reino Unido, e também sobre o quê o Brasil, nos seus 186 anos de independência, foi capaz de realizar enquanto nação em construção.
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Divulgação O que temos a "comemorar", neste ano tividade – tanto a obra dos historiadores, de 2008, seriam os duzentos de adminiscomo os objetivos de decisores atuais são o tração do Brasil a partir do próprio país, fruto de suas preferências pessoais, ainda ainda que não efetivamente, no começo, que moldados pelo peso da tradição e das a serviço da nação e, sim, a serviço da faevidências acumuladas em gerações e pemília real portuguesa que, junto com a la pressão dos interesses sociais que se excorte, controlava o que poderia ser chapressam através das instituições de modo mado de "governo" (ou seja, um decisor constante – tentarei ser o mais objetivo central, com alguns ministérios setoriais possível no julgamento do legado portue vários conselheiros da corte em volta guês e da obra acumulada pelas elites nado primeiro). Essa transposição da admicionais que nos conduziram nos últimos nistração "central" dos negócios do País, duzentos anos. da metrópole para a colônia – que logo Ao fazê-lo, quero, mais uma vez, deixar deixou de ter tal estatuto, em 1816, para claro que não considero Portugal ou os Paulo Roberto passar a ser "reino unido" – implicou nuportugueses responsáveis pelo país que de Almeida ma série de conseqüências administratisomos hoje, e nisso retomo o que já disse no Doutor em vas, institucionais, econômicas e de intrabalho acima referido: "um país indusCiências Sociais fra-estrutura (aqui, inclusive, a "infra-estrialmente desenvolvido, mas socialmenpela Universidade trutura" social ou educacional), que tote iníquo; economicamente avançado, de Bruxelas, das contribuíram para fazer do Brasil o mas socialmente atrasado; cientificamendiplomata de que ele é hoje. Nossa tarefa é, então, dete realizado, mas tecnologicamente mal carreira desde terminar o que ocorreu, e o que poderia dotado. Não se devem aos portugueses 1977 e professor ter ocorrido, com base nas condições que nossos comportamentos atávicos e nossos no mestrado em tínhamos no momento dessa mudança. fracassos de modernização. Eles não poDireito no Centro Comemorações também são "rememodem responder pelo que fizemos desde Universitário de rações"... 1822. Nós mesmos somos responsáveis Brasília. Muitas coisas mudaram, efetivamenpelo muito que conseguimos fazer neste site: te, nos últimos dois séculos, e para meperíodo, em termos de construção da nawww.pralmeida.org lhor, num país onde tudo precisava ser ção, assim como devemos ser considerafeito (sem entrar aqui em considerações dos culpados pelo quadro lamentável no politicamente incorretas sobre a populaplano social ou educacional que ainda ção autóctone). É preciso desde logo deicontemplamos hoje." xar registrado que nossas deficiências atuais – visíveis na injustiça social, na ini2. Uma pequena digressão histórica qüidade com que são tratados os mais sobre convergência e divergência humildes, nas notórias carências educaeconômica cionais e de infra-estrutura, na corrupção latente e na baixa qualidade geral de nossas instituições públicas – não podem Outra observação, de caráter metodológico, se impõe, num ser debitadas de modo algum a Portugal ou ao domínio portrabalho que pretende fazer "um balanço e uma avaliação" dos tuguês, embora as estruturas da história sejam muito lentas a últimos duzentos anos: na ausência de critérios absolutos – e se formar e ainda mais lentas a se desfazerem. O que somos houniformes, ao longo do tempo – para julgar o que representa, je devemos, em parte, a Portugal, e muito mais ao que fomos exatamente, o "progresso", o quê, nesse progresso (ou atraso) capazes (ou não) de realizar no período independente. Tendo pode ser imputado ao passado, e o quê deve ser considerado já discutido alguns aspectos do "então" e "agora" em trabalhos como obra contemporânea, algum tipo de comparação com recentes – como em "O que Portugal nos legou?; um balanço de outros países em situação similar aparece como inevitável. Um 1808-1822 e as perspectivas do presente", Espaço Acadêmico país só aparece como mais rico ou mais pobre quando compa(ano 7, nº 80, janeiro 2008; disponível no link: http://www.esrado aos demais, uma vez que tudo é relativo, não apenas na pacoacademico.com.br/080/80pra.htm), no qual foram exafísica, mas também (talvez, sobretudo) nas questões humanas minadas a situação econômica do Brasil em 1808 e as mudane sociais. Crescimento econômico – e, portanto, prosperidade ças ocorridas a partir de 1822 –, minha intenção seria fixar-me, social – é o critério básico pelo qual medir o desempenho reagora, em alguns aspectos seletivos do legado português, allativo de um país em relação a outro e, nisto, uma perspectiva guns já abordados no trabalho em questão. histórico-econômica pode ser útil. Datas históricas, aniversários centenários servem para isso Tomo como exemplo uma simulação que figura na introdumesmo: revisitar o passado e tentar retirar dele alguns ensinação ao livro-texto de Robert Barro e Xavier Sala-i-Martin, Ecomentos para o presente, como forma de construir um futuro nomic Growth (2ª ed.; Cambridge, Mass.; The MIT Press, 2003). melhor. Ainda que balanços do passado e projetos do presente Utilizando-se de dólares constantes de 1996, eles "retroprojecarreguem inevitavelmente uma carga insofismável de subjetam" a renda per capita nos EUA em 1870, estimada em US$
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Tanto o Brasil quanto o Japão partiram de patamares muito baixos no século 19. Mas o país asiático, por ter investido em educação, conseguiu alçar-se à condição de país avançado (...) Reprodução
3.340, e constatam o valor em 2000, equivalente a US$ 33.330. Tal é o resultado de uma taxa de crescimento anual acumulada de 1,8% do PIB, o que parece bastante modesto em relação aos valores com que nos acostumamos neste início de século 21, mas ainda assim bastante razoável para os que lidam com a história econômica e sabem como a humanidade progrediu lentamente ao longo dos séculos, de fato nos milhares de anos que precederam a primeira (1770-1830, grosso modo) e a segunda revolução industrial (a partir de 1870, aproximadamente). Com base nesses resultados efetivos, os dois economistas simulam, então, trajetórias diferentes de crescimento, uma "otimista", apenas 1% acima da efetivamente realizada, outra "pessimista", exatamente 1% abaixo. Quais os resultados? Se os EUA, nos 130 anos que vão do final da Guerra Civil até o final do século 20, tivessem crescido 2,8% ao ano, em lugar de "apenas" 1,8%, eles teriam, em 2000, uma renda per capita de US$ 127.000, algo não alcançado por qualquer outro país da atualidade (mas que poderia, plausivelmente, ter sido realizado pelos EUA, caso tivessem crescido apenas um "pouco" mais do que o fizeram). Ao contrário, se os EUA tivessem sido "infelizes" (ou incompetentes na gestão da economia), ao ponto de acumular uma taxa de crescimento anual de apenas 0,8% ao longo desses 130 anos, teriam chega-
do em 2000 com apenas US$ 9.450, ou seja, o equivalente do México atual. É importante observar que 0,8% ao ano foi a taxa efetivamente registrada ao longo do período por países como a Índia, o Paquistão e as Filipinas, que não foram espetacularmente bem sucedidos no curso do século 20. No sentido inverso, o Japão (com 2,95% ao ano) e Taiwan (com 2,75%) se aproximam bastante da taxa de 2,8% que poderia ter levado os EUA ao máximo da renda per capita, demonstrando, assim, que a riqueza potencial 38 vezes acima dos "meros" 10 vezes acima da renda realizada não apenas era possível, como foi efetivamente alcançada por outros países. No ritmo atual, os EUA só chegariam àquela renda de US$ 127.000 em 2.074, mas ela provavelmente será alcançada bem antes por algum outro país (não necessariamente os sultanatos petrolíferos, mas alguma outra economia de alta produtividade do trabalho), isto se não considerarmos que a renda do habitante do sul de Manhattan, em NY, já se encontra perto desse patamar atualmente. O que isso tem a ver com o Brasil, ou com Portugal, nossa origem? Tudo. O Brasil foi um país que, junto com o Japão, mais cresceu no decorrer dos primeiros 80 anos do século 20, tendo, contudo, sido "penalizado" por suas altas taxas de crescimento demográfico na comparação com o país asiático. Em outros termos: no que se refere ao PIB, em si, o Brasil foi capaz até de
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crescer mais do que o Japão entre 1900 e 1980, mas pelo fato de o Japão ter realizado sua "transição demográfica" mais cedo, seus resultados finais, isto é, a renda per capita, foram mais favoráveis do que os do Brasil. Não apenas isso, obviamente, mas, como indicam os dois autores, growth matters, isto é, crescimento é importante, sobretudo no longo prazo, ou em termos constantes, mesmo se a taxas modestas como as exibidas pelos EUA. Tanto o Brasil quanto o Japão partiram de patamares muito baixos no século 19. Mas o país asiático, por ter investido em educação, conseguiu alçar-se à condição de país avançado no decorrer do século 20, o que o Brasil ainda não fez e não parece ter condições de realizar no horizonte previsível (a despeito mesmo de sua industrialização "acabada", ou completa). O fator chave é educação, e não apenas indústria ou equipamentos pesados, como parecem crer alguns economistas desenvolvimentistas. Uma comparação com a Coréia do Sul pode ser pertinente para ilustrar este ponto. Em 1960, quando o pequeno país asiático era muito menos industrializado do que o Brasil, sua renda per capita, em paridade de poder de compra, era de apenas US$ 1.700, ao passo que Brasil ostentava uma renda per capita de US$ 2.700 (a mediana, no mundo, era, então, de US$ 3.390). Pois bem, em 2000, ano de referência na obra de Barro e Sala-i-Martin, a Coréia do Sul já tinha alcançado US$ 18.000 (mais de dez vezes acima), enquanto o Brasil exibia modestos
US$ 7.000, para uma mediana global de US$ 8.490 (2,5 vezes superior ao valor de 1960). O Brasil, teoricamente pelo menos, poderia ter alcançado níveis similares (ou semelhantes) de renda per capita, aos da Coréia do Sul ou de Taiwan, se tivesse conseguido manter taxas de crescimento razoáveis – não necessariamente as da época do "milagre", nos anos eufóricos da ditadura militar, em torno de 5 ou 7% ao ano, mas pelo menos em torno de 3,5 a 4% ao ano, o que seria suficiente para nos colocar naquele patamar – o que nada nos diz, entretanto, sobre os aspectos sociais, ou distributivos, de uma renda entre US$ 18 e 20 mil. O mais provável é que, à falta de investimentos sólidos em educação, o volume de riqueza total alcançado – seríamos, provavelmente, a quinta ou a sexta economia mundial, com base numa industrialização pesada como aquela conduzida nos anos militares, uma espécie de stalinismo para os ricos – não estaria bem distribuído entre a população, gerando, portanto, um grande PIB, mas dotado de fundamentos frágeis, com pouca inovação e desenvolvimento autônomos. O progresso diferenciado tem a ver, obviamente, com uma série complexa de fatores estruturais e conjunturais. Mas muitas das políticas (macroeconômicas e setoriais) envolvidas em cada um dos países, Brasil e Coréia do Sul, seriam incompreensíveis, em sua dimensão própria, se não se leva em conta o que verdadeiramente diferencia um do outro (assim como no
Entre 1900 e 1980, o Brasil cresceu mais que o Japão, mas pelo fato deste último ter realizado sua "transição demográfica" mais cedo, seus resultados finais foram mais favoráveis.
Toshiyuki Aizawa/Reuters
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caso do Japão): a qualidade da educação. Este é, de fato, o elejulgar o seu semelhante como diferente, inferior ou não, mas mento crucial e efetivamente determinante do progresso soem todo caso potencialmente ameaçador de sua própria segucial, o responsável essencial pela produtividade e inovação na rança. O principal fator de diferenciação encontra-se no fenóeconomia. Nesse aspecto, o legado português foi propriamentipo, por ele ser imediatamente visível. Obviamente, resultam te catastrófico, mas, lá se vão 200 anos, e nós não precisaríamos daí as políticas de separação, de apartheid e de dominação de ter esperado tanto (ainda hoje) para descobrir isso. uma comunidade por outra. A melhor garantia de que isto não Feita esta digressão de história econômica sobre o que nos ocorra encontra-se, também obviamente, na completa ausênsepara, infelizmente, de países avançados – falta de crescimencia de fatores de diferenciação, o que só pode ser conseguido to, sem dúvida, em especial nas últimas duas décadas, mas através da miscigenação racial, que supõe, ipso facto, a diminuitambém investimentos e estímulos errados ao longo do tempo ção das distâncias cultural e psicológica, também. – seria útil voltar às razões de por que não crescemos tanto Mesmo quando essa mistura racial adquire características quanto poderíamos, ou por que nossa transformação estrutuassimétricas, isto é, quando é o resultado da dominação – como ral foi tão incompleta e deficiente, a ponto de sermos mais pasão todas as situações derivadas dos fenômenos históricos da recidos com os demais países da região, do colonização e da escravidão –, ainda assim que com outros países que conseguiram "saltrata-se de fator essencialmente positivo para tar a barreira" do crescimento endógeno e a formação de um povo aberto e acolhedor sustentável (ou sustentado, para não parecer das diferenças raciais, culturais e religiosas. O primeiro, e "politicamente correto"). Em outras palaNem sempre essas coisas andam juntas, comelhor, legado da vras, seria preciso ver quais aqueles fatores mo a própria história de Portugal nos confirhistóricos que nos foram legados na origem ma. O país se fez na luta de reconquista contra formação de nossa formação enquanto nação, para os mouros, quando a guerra contra o infiel era portuguesa do nosso avaliar o que poderíamos, ou deveríamos, literal: os homens eram simplesmente elimipovo está, ter feito, na perspectiva da história, para ter nados ou convertidos em escravos e as mujustamente, no fato logrado, atualmente, resultados bem melholheres e crianças submetidas aos novos sede ser um povo res do que os que são efetivamente exibidos nhores da terra. Portugal se lançou, logo depela sociedade e pela economia. pois, à conquista de novas terras e esses emaberto à Gostaria, em primeiro lugar, de registrar preendimentos guerreiros supunham altas miscigenação, o que os elementos que me parecem positivos no doses de violência pura contra os nativos e a nos distingue e nos legado português, para depois me concenexploração sexual do seu componente femiqualifica no plano trar nos fatores que julgo responsáveis pelo nino. mundial como nosso atraso, sempre tendo em conta o fato Assim ocorreu durante o processo de colode termos assumido a responsabilidade efenização do Brasil (e de outros povos), mas o nenhum outro povo, tiva pelos nossos negócios desde setembro resultado, inegavelmente, foi um povo de provavelmente. de 1822, ou pelo menos desde 1831, segundo mestiços (e indiferente ao fato de sê-lo, isto alguns, quando um governo verdadeiratambém é importante). A classe dominante mente "brasileiro" assume as rédeas da nano Império era, provavelmente, mais mestiça ção. Trata-se de uma livre digressão, isto é, do que jamais o foi na seqüência histórica do não apoiada em notas bibliográficas ou remissões documensistema político brasileiro, com um gradual retorno a um patais, mas ainda assim amparada em muitas leituras históricas e drão mais mestiço em tempos recentes. Devemos essa plastieconômicas ao longo das últimas décadas. cidade, originalmente, aos portugueses, que por razões próprias à formação histórica do povo, souberam conviver e acei3. A boa herança de Portugal e o que fizemos dela tar todos os tipos de misturas possíveis, em quatro ou cinco continentes. Ela foi por certo "aperfeiçoada" – as aspas se deO primeiro, e melhor, legado da formação portuguesa do vem ao seu caráter involuntário – pelo próprio povo brasileiro, nosso povo está, justamente, no fato de ser um povo aberto à que parece desprovido de maiores sentimentos racistas tammiscigenação, o que nos distingue e nos qualifica no plano bém em função de sua conformação básica. Quando digo "pamundial como nenhum outro povo, provavelmente. Por mais rece", isto se deve a que o racismo tende a se manifestar em váque isto seja um processo involuntário – que não nos torna nem rios casos de "desconforto" – presumido ou real – a partir de melhores, nem mais "astutos" do que qualquer outro povo –, uma situação de alteridade, e esta passou inclusive a ser maior trata-se, sem dúvida alguma, de uma condição eminentemencom as grandes levas de imigração européia, entre o final do te positiva no plano das relações humanas (para os que valoséculo 19 e meados do 20. O pensamento "científico" dominanrizam esse tipo de "mistura", obviamente). te nessa época aceitava a determinação racial das "hierarquias" A humanidade viveu, nos últimos dez mil anos, processos humanas e, portanto, um forte componente racista, valorizanterríveis de lutas tribais, conflitos étnicos, disputas territoriais do a eugenia e a purificação racial, no sentido "loiro dolicocée enfrentamentos raciais e religiosos, todos com base na velha falo", obviamente. Mas, essa situação tende a se diluir, novae terrível intolerância em relação à alteridade. O principal fator mente, com a grande mistura observada desde então. desses enfrentamentos se encontra, precisamente, no ato de Um outro componente menos nobre dos comportamentos
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Oleg Popov/Reuters
O sentimento anti-judeu foi catastrófico para o desenvolvimento de Portugal enquanto economia e sociedade.
sociais portugueses foi o sentimento anti-judeu – antes mesmo que o anti-semitismo estivesse "formalizado" no plano político – mas isto se deve inteiramente ao integrismo de certas correntes católicas que, desde a Idade Média, passaram a ver nos judeus o bode expiatório de tantas misérias naturais que assolavam sociedades pouco equipadas para enfrentar calamidades de diversos tipos. O fundo religioso da perseguição aos judeus – exacerbada por essa instituição central da contra-Reforma que foi a Inquisição – não foi apenas intolerável no âmbito dos valores cristãos; ele também foi catastrófico para o desenvolvimento de Portugal enquanto economia e sociedade. A perseguição aos judeus antecede ao descobrimento e colonização do Brasil e, aqui como em Portugal, teve efeitos deletérios em ambas as nações, fazendo a fortuna de outras, que souberam acolhê-los com grande tolerância religiosa e social (como a Holanda, por exemplo). Traços do anti-semitismo português – mas não apenas dele, pois o fenômeno se desenvolve extraordinariamente na Europa do século 19 e do início do 20 – tiveram prolongamentos no Brasil até uma data recente, o que novamente só pode ter atuado em nosso completo desfavor, inclusive no plano puramente mental ou da psicologia "popular" (o que explica, obviamente, certos racismos ordinários ainda hoje manifestados nesse plano). Outro tipo de racismo ao inverso tende a se desenvolver
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atualmente, mas ele não deve nada à herança portuguesa, e sim se trata de uma importação equivocada de idéias mal concebidas nos EUA sobre um suposto componente afro-americano do seu povo. A cultura do afro-brasileirismo, se levada às últimas conseqüências, só pode desembocar no apartheid mental e, depois, na separação racial de alguns elementos do povo brasileiro, seduzidos por essa defesa equivocada de programas de "ação afirmativa". Acredito, porém, que a maioria do povo brasileiro, que na verdade é composta de mestiços, saberá recusar esse programa de segregação racial e de divisão da sociedade em categorias que não existem naturalmente. Uma outra boa herança de Portugal, no plano institucional, é a sua diplomacia, base do competente serviço exterior formado diligentemente pelos líderes no Império e desenvolvido sob a República, que conserva alto grau de profissionalismo e qualidade técnica. Como posso estar praticando elogio em causa própria, dispenso-me de sublinhar seus traços positivos, agregando apenas que, como outras instituições do Estado, ela também pode ter exacerbado traços corporativos que poderiam atuar no sentido de uma indesejável introversão. Considero, por outro lado, a herança da língua portuguesa como um elemento neutro, embora a língua sempre traduza uma cultura e seja um instrumento de saber e, portanto, de poder. No caso de Portugal, a despeito de seu expan-
sionismo precoce – que redundou em interessantes intertintivo de Portugal é a extrema centralização estatal, a falta tocâmbios lingüísticos nos vários continentes onde o gênio tal de independência dos corpos sociais, a ausência de uma "reaventureiro esteve promovendo o comércio e a conversão à volução burguesa", ou de uma "fronda aristocrática" – no senfé cristã –, a baixa qualificação educacional do povo portutido barringtoniano de ambos os processos – que pudessem guês por certo impediu uma influência maior dos povos lucriar instituições de mercado e de representação política, indesófonos nos terrenos da ciência e da cultura universal. A dispendentes e autônomas da vontade do rei. seminação, hoje, pode ser dada pelo lado da música e do esComo ensinam estudos de sociologia histórica – entre eles o porte, assim como pela crescente diáspora de emigrados clássico de Barrington Moore Jr., Social Origins of Dictatorship econômicos. Ainda assim, se trata de uma base precária que and Democracy –, a existência de instituições estatais exacerbase reforçará paulatinamente em bases regionais, a partir da das e muito centralizadas é extremamente negativa, tanto no expansão de empresas brasileiras na América do Sul. O esplano político, como no econômico, pois tende a gerar um corforço diplomático para estimular a união dos luso-parlanpo político e judiciário resistente às mudanças, além de mais tes, na Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa, pode sujeito a desvios e corrupção, como também estimula comporter efeitos positivos, mas alguns dos seus tamentos rentistas, patrimonialistas e extratiintegrantes também pertencem a outras vistas em economia, o que obviamente é péscomunidades lingüísticas de modo simulsimo para uma economia pujante e inovadotâneo. Acrescento que considero inúteis ra. Na ausência de fatores que consigam rePortugal esforços para unificar ortograficamente os distribuir ou "atomizar" o excesso de foi, antes de diversos "dialetos" lusitanos: cada língua é centralismo estatal – e que, nas experiências o resultado de seu desenvolvimento natuhistóricas da Inglaterra, da França e dos EUA, tudo, um Estado ral e deve ser deixada inteiramente livre foram conseguidas através de revoluções precoce, para desenvolver de todas as formas posviolentas ou guerras civis – o mais provável formado pela síveis. Acredito que os recursos devem ser que ocorra é que o Estado tenda a absorver férrea vontade mais bem empregados na qualificação da determinados corpos sociais e cooptá-los pade um chefe população nas línguas veiculares de cora o seu programa de "modernização pelo almércio, cultura e produção científica: já tito", como ocorreu nos casos da Alemanha, do guerreiro que, vemos o grego, o latim, talvez o francês; Japão e da Itália fascistas, ou então que esse para sua agora é o inglês, so be it... processo resulte em "revoluções por baixo" legitimidade, Em todo caso, não considero que o Porque redundam em outros tipos de autoritarisfoi pedir o tuguês foi o responsável pela "união" do mo, como foi o comunismo. reconhecimento povo ou o elemento motor da unidade naPortugal, na verdade, esteve bem mais cional, na formação da nação. A língua gepróximo do despotismo do príncipe, do papal. ral, na colônia, estava mais próxima do tuque de qualquer tipo de revolução burguepi-guarani, ao que parece, e não foi a línsa. No máximo passou por um despotismo gua, mas sim a força das armas, que presermuito pouco esclarecido, na pessoa de vou a unidade nacional nos primeiros Pombal, extremamente centralizador e tempos. A língua e os vice-reinados não mercantilista (isto é, fazendo a junção do caimpediram a divisão da América hispânica, da mesma forpitalismo comercial com a centralização operada pelo Estama como o Brasil poderia ter sido separado em unidades do), o que foi nefasto para o seu próprio desenvolvimento distintas, desde as invasões estrangeiras – francesa e holaneconômico (sem mencionar a expulsão dos jesuítas, que, por desa, notadamente – e os impulsos separatistas ou federamais "fundamentalistas" que fossem na defesa da carolice listas existentes em diversas épocas. O peso da espada e a religiosa, eram os únicos a prover educação para as camadas férrea vontade da casa dominante portuguesa preservaram mais humildes da população). a unidade do País, quando ele era constituído, realmente, de Na revolução constitucionalista, os impulsos modernizaum arquipélago de economias distintas, que jamais se codores foram muito débeis e, sobretudo, incapazes de rever a municavam entre si, salvo nuns poucos intercâmbios. estrutura mercantilista na qual se baseava o Estado. Em todo caso, a tentativa de "recolonização" do Brasil, operada pelas 4. Vamos agora à parte menos positiva da herança cortes de Lisboa – embora fosse impossível na prática – conportuguesa tribuiu para o movimento da independência e, a rigor, o Estado brasileiro já não teria mais nada a ver, doravante, com o Portugal foi, antes de tudo, um Estado precoce, formado peEstado português. Isto seria esquecer, contudo, que o Estala férrea vontade de um chefe guerreiro que, para sua legitido "português" aqui ficou, com todos os seus nobres, enomidade, foi pedir o reconhecimento papal. Estas duas instituibrecidos e outros candidatos a um emprego, ou melhor, a ções sinalizam o que pode haver de menos positivo no legado subsídios estatais. português ao Brasil. Por certo, Estado e religião foram partes Na verdade, o "aparelhamento" do Estado brasileiro tinha constitutivas de qualquer Estado moderno e, como tais, eram começado na sua própria constituição. A fuga da família real inevitáveis, por extensão, na formação do Brasil. O que é disnão se restringiu, como se sabe, a meia dúzia de ministros e al-
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gumas dezenas de funcionários do Estado. Foram alguns milhares de "dependentes" do Estado que precisavam ser agraciados com os favores da corte. Apenas a título de comparação mencione-se que em 1800, ao transferir a capital da Filadélfia para Washington, o presidente John Adams trouxe consigo cerca de 1.000 funcionários governamentais. Com D. João, vieram entre 10 e 15 mil funcionários portugueses, segundo as crônicas históricas (Laurentino Gomes, 1808, p. 188). Era preciso dar "emprego" a toda essa gente; mas muitos deles não trabalhavam, consoante seu estatuto de "nobres" (aos quais não se permitia o exercício de alguma atividade "manual"). Em Portugal, para sermos precisos, não eram muitos os nobres, mas o coração generoso de D. João se encarregaria de criar muitos mais, ao aqui chegar, pela prática de enobrecer aqueles que tinham cedido suas casas, contribuído financeiramente para a manutenção da corte, participado na constituição do Banco do Brasil e outros favores mais. Como escreveu o historiador Oliveira Lima: "Os indivíduos enobrecidos, agraciados com hábitos ou comendas, entendiam não lhes quadrar mais comerciar, sim viver das suas rendas, ou melhor ainda, dos empregos do Estado. Avolumar-se-ia desta forma o número dos funcionários públicos, com o rancor dos burocratas do reino, que tinham acompanhado a família real ou chegavam seduzidos por essas colocações em que as fraudes multiplicavam os ganhos lícitos, muito pouco remunerados" (in D. João VI no Brasil, p. 57). E não eram poucos, os candidatos a um emprego público: além da família real, 276 fidalgos e dignitários régios recebiam verba anual de custeio e representação, paga em moedas de ouro e prata, retiradas do erário real; havia ainda 2000 funcionários reais, 700 padres, 500 advogados, 200 praticantes da medicina, entre 4 e 5 mil militares, todos vivendo em torno da Coroa. Um dos padres recebia 250 mil réis (14 mil reais de hoje), só para confessar a rainha (Fonte: Luiz Felipe Alencastro, "Vida privada e ordem privada no império" in História da Vida Privada no Brasil, vol. 2, p. 12). Pode-se dizer que o costume continua e, embora Portugal atual não tenha mais nada a ver com isso, esse tipo de comportamento se coloca inteiramente na linha da tradição lusitana das prebendas estatais. O mesmo processo continua nos dias de hoje... O outro lado da equação formadora de Portugal foi, como vimos, a Igreja que, aliás, vivia do Estado, como não podemos esquecer. Os padres eram "funcionários públicos", ainda que as riquezas da própria Igreja fossem privadas (mas contempladas com todos os tipos de favores fiscais, como, aliás, ainda hoje, a única diferença sendo o fim do monopólio católico). O lado fiscal, ou rentista, da corporação religiosa no Brasil talvez não tenha sido o único aspecto negativo para o desenvolvimento brasileiro, ainda que o regime do padroado tenha durado até a República e que o Estado "laico", criado com esta, nunca tenha se libertado, na verdade, do peso da Igreja e da religião católica (de resto, parte de nossas tradições culturais, o que pode ser parcialmente aceitável no plano dos costumes e dos ritos comemorativos). O mais nefasto, para ser cruel no plano das mentalidades, foi, precisamente, o engessamento das mentes e de todo o processo de educação "científica" da população – se tal hi-
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Entre os impostos em vigor em 1808, havia a taxa sobre engenhos de açúcar e destilações, variável por província.
pótese fosse possível – em face de uma Igreja especialmente reacionária e obscurantista. Como sabem todos os historiadores, Espanha e Portugal foram dois bastiões da contra-Reforma na Europa, o que poderia não significar muito fora das querelas religiosas – pois outros países capitalistas da Europa também tiveram suas disputas de influência – se isto não se traduzisse em formidáveis obstáculos ao livre debate intelectual, ao avanço das ciências e ao desenvolvimento do espírito crítico, essencial em instituições de ensino superior (mas o Brasil não as tinha, obviamente). O obscurantismo da Igreja não foi apenas negativo no plano da educação; ele continua nefasto até hoje, posto que a "economia política" da Igreja – ainda mais a dos grupelhos "sociais" que pululam em seu seio, mais ou menos identificados com a "teologia da libertação" – detesta o lucro e a especulação e se bate, irracionalmente, por um
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5. Duzentos anos de derrama fiscal e de espoliação dos contribuintes
distributivismo inconseqüente, como se a sociedade fosse uma cornucópia generosa da qual jorrasse abundantemente, e sem custos, o leite e o mel para todos os "deserdados" (que são, obviamente, todos os assalariados e os não-capitalistas). Junto com seus atuais "colegas" da "teologia da prosperidade" – aqueles que arrancam o dízimo dos ingênuos, sob promessa de melhorar suas vidas, mas que constroem fabulosos impérios de comunicações – a Igreja católica, na sua versão anti-reformista e praticamente integrista, constituiu uma das mais poderosas forças do atraso mental e também material do Brasil independente. Pode até ser que a responsabilidade pela continuidade dessa influência nefasta no plano das mentalidades e dos comportamentos econômicos seja inteiramente dos brasileiros, a partir de certo momento, mas, como no caso do Estado de favor e dos subsídios aos amigos da corte, a responsabilidade inicial pelas fundações está com Portugal.
O aspecto mais negativo do ponto de vista do desenvolvimento capitalista do Brasil está, provavelmente, na existência do "Estado extrator", que impede a aplicação da poupança privada na atividade produtiva, ao carrear recursos para o próprio Estado (ou melhor, para os que vivem do Estado, posto que, hipoteticamente, o Estado poderia ser um "modernizador pelo alto", como nos casos da Alemanha e do Japão). A primeira evidência dessa condição se dá na política fiscal e mais exatamente no sistema tributário. O sistema tinha sido inaugurado ainda antes da chegada da família real, como ficou claro na derrama das "minas gerais" e no movimento de que participou nosso herói (mítico) da independência: Tiradentes. Em todo caso, o que existia, no momento da chegada da família real, em termos de impostos, taxas e contribuições? Esta era a "coleção" em vigor em 1808: (A) Tributos de incidência local: selos, foros de patentes, taxas do sal; (B) Tributos de incidência geral: subsídio real sobre carnes e couros, taxa suntuária sobre lojas e armazéns; taxa sobre engenhos; sisa de 10% sobre os imóveis; meia sisa sobre os escravos urbanos; (C) Impostos sobre o comércio exterior, nos dois sentidos (a principal fonte de receita). Em 1821, quando D. João VI parte de volta a Portugal, a estrutura tributária do Reino Unido compreendia, além das taxas gerais (selos, foros de patentes, direitos de chancelaria, taxas de correio, sobre o sal, as sesmarias, ancoragens etc., ou impostos locais cobrados de particulares), os seguintes direitos e impostos [entre colchetes, seu possível equivalente atual]: 1º) subsídio real ou nacional (carne verde, couros crus ou curtidos, aguardente de cana e lãs grosseiras) [uma espécie de ICMS, ou de sales tax, sobre o consumo]; 2º) subsídio literário (para custeio dos mestres-escola, percebido sobre cada rês abatida, sobre aguardente destilada e sobre carne seca) [como se uma CPMF fosse cobrada para financiar a educação, sendo duvidoso que o dinheiro arrecadado chegasse ao seu destino, como o seu moderno equivalente para a "saúde"]; 3º) imposto em benefício do Banco do Brasil (12$800 sobre cada negociante, livreiro, boticário, loja de jóias e artigos de cobre, tabaco) [uma contribuição específica para dar dinheiro ao "banco do rei"]; 4º) taxa suntuária (também para o Banco do Brasil, sobre cada carruagem de quatro e de duas rodas, navios de três mastros, lojas de mercadorias e armazéns, 5% da compra de navios) [um verdadeiro imposto sobre o investimento, como ainda hoje se aplica]; 5º) taxa sobre engenhos de açúcar e destilações (variável por província) [uma CIDE à disposição dos presidentes de província]; 6º) décima predial urbana (casas ou quaisquer imóveis) [o IPTU é mais velho do que se pensa, aliás é medieval, nem sempre na faixa de 10% do valor patrimonial]; 7º) sisa (imposto de 10% sobre o valor da venda de imóveis ur-
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6. E o ambiente de negócios, como ele tem se desenvolvido? Ao chegar à Bahia, em janeiro de 1808, D. João, príncipe regente, não apenas decreta a abertura dos portos (absolutamente necessária), mas também aprovou os estatutos da primeira companhia de seguros, a "Comércio Marítimo"; mandou abrir uma fábrica de vidro e uma fábrica de pólvora; autorizou o governador da Bahia a estabelecer a cultura e a moagem de trigo; mandou abrir estradas, sim estradas (de fato, pouco mais que picadas...). O que surpreende no modelo ibérico de administração, preservado em grande medida até os nossos dias, é que tudo tenha de ser autorizado ou ordenado pelo príncipe, mediante um decreto, um Alvará Régio, um instrumento qualquer da autoridade política. O que, por outro lado, faz a eficiência do modelo
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anglo-saxão de organização social e econômica é que tudo o que não estiver expressamente proibido em alguma lei aprovada por um parlamento ou conselho, está ipso facto autorizado e aberto à iniciativa privada, exatamente o contrário do que ocorria no mundo português e ainda ocorre entre nós. De fato, a julgar pelo PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, continuamos cingidos pela autoridade política, circunscritos ao que ela possa determinar, autorizar, permitir, se dignar a nos deixar trabalhar. A mania que temos de tornar toda e qualquer atividade dependente das boas graças da administração é propriamente irracional, sobretudo quando sabemos que o processo burocrático de autorizações e permissões está eivado de descaminhos corruptores. Em outra vertente, mas no mesmo terreno, pode-se examinar como evoluiu o "ambiente de negócios". Ao chegar ao Rio de Janeiro, em março de 1808, D. João, por alvará de 1º de abril, revogou o alvará de D. Maria I, de 1785, que tinha proibido todas as indústrias de tecidos no Brasil, exceto as de pano grosso, para os sacos e escravos. Vinhos, azeites, tecidos e todos os demais produtos úteis tinham, até então, de ser comprados de Portugal, a despeito do fato de possuir a colônia plenas condições de fabricá-los quase todos. Agora, os principais problemas que se colocam aos candidatos a empreendedores é o número absurdo de requisitos legais, exigências burocráticas e autorizações variadas para quem decide iniciar um negócio. Basta consultar o Doing Business anual do Banco Mundial para constatar que o Brasil continua a figurar nos últimos lugares do ambiente de negócios. No plano da indústria, o que ocorria, duzentos anos Sebastião Nogueira/O Popular/AE
banos) [talvez os cartórios também aceitassem sub-avaliações, como ainda hoje se faz, tudo pago em dinheiro vivo, mas sem IOF, naquele tempo, por algum defeito de imaginação]; 8º) meia sisa (imposto de 5% sobre a renda de cada escravo que fosse negro ladino, isto é, que já soubesse um ofício) [os encargos laborais, sem direitos trabalhistas, sempre foram elevados no Brasil, mas cresceram muito mais, desde então]; 9º) novos direitos (taxa de 10% sobre os vencimentos dos funcionários da Fazenda e da Justiça) [certos partidos não inventaram nada em matéria de dízimo...]. E agora, em matéria de impostos, taxas e contribuições, o que temos hoje? Existem, atualmente, 76 tributos federais, 12 estaduais, 15 municipais, além de 5 outros "latentes", isto é, que podem vir a ser implementados (entre eles o das "grandes fortunas"), num total de 109 impostos, taxas e contribuições, sem contar pedágios e cobranças por serviços específicos. O atual quadro de terror tributário nada deve ao antigo Estado português: este apenas inventou algumas modalidades de extração, mas elas foram sumamente desenvolvidas desde então. Nesse ponto, o Estado brasileiro é altamente funcional: ele conseguiu criar uma das mais poderosas máquinas de extração de recursos que existe no mundo, pois sem ser eficiente para ampliar sua base de tributação, ela consegue dilapidar o universo de contribuintes até que estes, desesperados, se refugiem na elisão, na evasão e em diversas formas de fraude fiscal. Mas, a mera incidência quantitativa dos impostos constitui apenas uma parte do terror tributário: deve-se ainda considerar a burocracia do sistema declaratório, que consome dias e dias e vários contabilistas, apenas para cumprir as obrigações e provar ao Estado que os assim tosquiados são honestos cidadãos e plenos cumpridores dos seus deveres de contribuintes. O Brasil é campeão na quantidade de horas gastas para que uma empresa pague todos os impostos e tributos. De acordo com análise da PriceWaterhouseCoopers, com base nos dados reunidos pelo Banco Mundial, são necessárias 2.600 horas (352 dias) para que uma empresa cumpra todas as obrigações fiscais, o que deixa o Brasil em último lugar entre 178 países. Ainda que brasileira, pode-se considerar esse tipo de burocracia como mais uma herança do Estado português.
atrás? Entre 1810 e 1811, novas medidas buscaram estimular a indústria local: isenção de direitos sobre fios e tecidos de algodão, seda ou lã, fabricados no Brasil; foram criados arsenais e fundições, no Rio de Janeiro, uma indústria de lapidação de diamantes e um laboratório químico. Eram empresas estatais, com a eficiência que se conhece nesse tipo de empreendimento. E o que temos hoje, como pregação industrial? O presidente de um dos principais órgãos de planejamento estatal acredita que novamente enfrentamos a mesma "dependência" da grande empresa agro-exportadora à base de cana-de-açúcar, como existia no século 16. E o que ele propõe para reduzir a suposta "nova dependência"? Segundo ele, "o Brasil precisa constituir uma empresa pública de agroenergia" e operar uma "centralização do comércio da energia renovável no País" ("Antídoto ao novo dependentismo", Valor Econômico, 01.11.2007). Trata-se, certamente, da receita mais segura para inviabilizar completamente uma indústria pujante do etanol e do biodiesel no Brasil, só se justificando como uma forma de cobrar um "pedágio" dos verdadeiros criadores de riqueza no Brasil, que são os empreendedores privados. 7. Como evoluímos em termos de respeito aos direitos de propriedade e ao patrimônio? Como ensinam os economistas da escola institucionalista (Douglass North e outros), o respeito aos direitos de propriedade e aos contratos – duas das mais importantes instituições da vida econômica – estão entre os elementos mais relevantes
Hoje temos contingentes organizados de "sem-terra" e "sem-teto" profissionais, alimentados por cestas básicas fornecidas pelo próprio Estado.
do progresso econômico. Nesse terreno, o legado da instalação da família real no Brasil não é dos mais edificantes. Quando a comitiva que acompanhava o príncipe regente chegou ao Rio de Janeiro, um grave problema habitacional colocou-se: onde acomodar tantos nobres? Criou-se, então, um sistema das "aposentadorias": as casas mais apresentáveis e espaçosas eram requisitadas em nome do Príncipe, e os locais escolhidos eram logo pintados com as iniciais "PR", de Príncipe Regente. Mas, o povo carioca logo as interpretou à sua maneira, dizendo que representavam, na verdade, um "Ponha-se na Rua". Hipólito da Costa escreveu em seu Correio Braziliense que o sistema das aposentadorias era um "regulamento medieval", um "ataque direto ao sagrado direito de propriedade", que "poderia tornar o novo governo no Brasil odioso para o seu povo". Nem tão medieval assim, uma vez que ele continua existindo em nossos dias. O que temos hoje, em matéria de desapropriações forçadas, é um fenômeno diferente, mas não menos preocupante em termos de legalidade e respeito aos direitos de propriedade: são contingentes organizados (em número relativamente desconhecido) de "sem-terra" e de "sem-teto" profissionais que, alimentados por cestas básicas fornecidas pelo próprio Estado e arregimentados de forma quase militar por organizações igualmente sustentadas pelo dinheiro estatal, se dedicam a invadir propriedades rurais e urbanas em nome da "justiça social". Eles o fazem invocando "direitos", que sempre são os seus direitos particulares, não os direitos da coletividade. De fato, a Constituição brasileira de 1988 contém 76 vezes a palavra "direito", muito poucas vezes a palavra "obrigação", raríssimas vezes a palavra produtividade e quase nenhuma o conceito de eficiência. Mas, talvez esses ataques ao direito da propriedade, e aos cofres públicos – pois é deles que sairão os recursos para garantir tantos direitos a terras e moradias – não sejam os mais lesivos ao erário. Passados duzentos anos de desapropriações estatais para acomodar os poderosos do momento, o que temos hoje em matéria de "acomodação" dos nobres servidores do Estado? A transcrição de uma matéria da Folha de São Paulo, de 22.10.2007, nos informa que: "Judiciário vai gastar R$ 1,2 bi para construir três tribunais". Subtítulos esclarecedores: "Procuradoria investiga suspeita de desperdício de dinheiro e superfaturamento"; "Presidente do Tribunal Regional Federal de Brasília terá um gabinete 4 vezes maior que o da presidência". Vale a pena transcrever alguns pontos da matéria: "O Judiciário vai gastar R$ 1,2 bilhão na construção de três suntuosas sedes de tribunais com suspeitas de desperdício de dinheiro público, direcionamento de licitações e superfaturamento. Os custos estimados pelos tribunais poderão aumentar até o final das obras. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, decide nesta semana quem tocará uma obra de R$ 489,8 milhões com área total de construção maior do que a do Superior Tribunal de Justiça. Nas novas instalações, o presidente do tribunal e seus assessores ocuparão um gabinete quatro vezes maior do que o do presidente. O Ministério Público Federal pediu a suspensão das obras e a anulação da licitação para a construção da nova
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muito mais ricos do que nós. No início do século 19, a divergência econômica entre os países ainda não tinha alcançado os patamares que ela ostentaria um século depois. Segundo os dados comparativos coletados em bases homogêneas pelo economista-historiador Angus Maddison (The World Economy: a Millenial Perspective), a distância entre o Brasil e países como México ou Japão não era significativa; assim como era relativamente pequeno o diferencial de renda em relação à maior parte dos países, com exceção dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, então a economia mais avançada em termos de renda em função do seu pioneirismo na revolução industrial, sendo o país americano o seu êmulo direto nesse processo. A Tabela 1 dá uma idéia dos valores em dólares constantes (atualizados para 1990, segundo os cálculos de Angus Maddison) e sua proporção em relação ao Brasil. Veja tabela 1. Como foi a nossa evolução desde então? A mesma tabela pode ser construída com valores mais atuais. Veja Tabela 2. A distância só fez aumentar, evidenciando o nosso baixo dinamismo econômico no longo período decorrido desde então. Aqui, os mesmos resultados em visão diacrônica (Tabela 3). Muito desse baixo dinamismo econômico pode ser explicado por nossa pequena abertura internacional. Uma comparação de nosso coeficiente de abertura externa revela a reduzida participação do comércio exterior na formação do PIB, quando é pelas transações externas que se realizam as incorporações de capitais e tecnologias modernizadoras. No período recente, em particular, nosso crescimento tem sido pífio em relação à média mundial e, sobretudo, em relação aos emergentes dinâmicos da Ásia oriental. Considere-se, por exemplo, o PIB per capita da Coréia do Sul que, em 1960, representava 50% do valor do PIB per capita do Brasil. Atualmente, o país asiático nos superou por uma razão de três. Na média, o crescimento dos países emergentes nos últimos dez anos tem sido três vezes superior ao do Brasil, que cresce mais ou menos a metade do PIB mundial. Nesse ritmo, nossa renda per capita vai dobrar apenas em três gerações (75 anos), ao passo que a da China dobra a cada 17 anos. 9. E o que a nossa Constituição tem a ver com tudo isso?
8. Como foi o nosso desenvolvimento econômico comparado com outros países?
Bem, aqui já não estamos falando de nenhum legado português, e sim de problemas e deficiências "made in Brazil". O fato é que, desde a promulgação da Constituição de 1988, a carga fiscal promovida pelo Estado predador aumentou inapelavelmente a cada ano, passando de um quarto do PIB a mais de um terço (e crescendo continuamente). Em comparação mundial, nos situamos atualmente no nível dos países da OCDE – que dispõem de uma renda per capita seis vezes superior à nossa –, o que representa cerca de dez pontos percentuais acima da média dos paises emergentes e vinte pontos acima dos mais dinâmicos. A lista de problemas brasileiros é muito extensa, mas ela poderia ser resumida da seguinte forma:
Como se situava o Brasil no confronto econômico com outros países? Éramos pobres, mas os demais países não eram
1. Constituição detalhista, intrusiva, concedendo muitos "direitos" e demandando muito poucas obrigações;
sede do Tribunal Superior Eleitoral, estimada em R$ 336,7 milhões."
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2. Estado extenso, também intrusivo, perdulário, gastador, "burrocrático" e gigantesco;
cursos para os dois primeiros ciclos de ensino, concedendo-se a tão solicitada autonomia universitária, igualmente em termos de orçamentos. No plano da seguridade social, impõe-se, 3. Regulação microeconômica hostil aos negócios e ao trabaantes de mais nada corrigir o festival de privilégios ainda exislho, dando pouco espaço às relações autoreguladas e diretatentes, ou seja, reduzir os benefícios abusivos do setor público; mente contratuais; depois, seria necessário ampliar os prazos e as idades mínimas, modular as contribuições em função de uma relação estrita en4. Monopólios em excesso, cartéis e restrições de mercado, tre pagamentos e benefícios, com garantias mínimas, suprimir pouca competição e muitas barreiras a novos ofertantes de os regimes especiais e diminuir os desincentivos derivados bens e serviços; dos direitos garantidos. Quanto à reforma trabalhista (e sindical), o ideal seria a fle5. Reduzida abertura externa, seja para comércio, investixibilização da legislação (mais contratualismo e negociações mentos ou fluxos de capitais, diretas entre as partes), a eliminação criando ineficiências, altos custos e Reprodução da Justiça do Trabalho (por ser, na preços, ausência de competição e verdade, uma instância estimuladode inovação; ra de conflitos, substituindo-se a ela o regime arbitral) e operar de vez a 6. Sistemas legal e judicial atrasaextinção da Contribuição Sindical, dos, permitindo manobras procesque cria sindicatos de papel. Finalsuais que retardam a solução das mente, quanto à governança públidisputas e aumentam os custos de ca, o que se pretende seria uma redutransação. ção radical do governo (que seria mantido sob dieta estrita), a retomaUma agenda das reformas absoda das privatizações, o reforço das lutamente necessárias para garanagências reguladoras e o fim da estatir um processo sustentado de cresbilidade do funcionalismo público. cimento econômico, não detalhaExiste alguma chance de sucesso da no presente ensaio por razões num programa desse tipo? Duvidode espaço, compreenderia ações so. O Brasil está provavelmente connos seguintes campos: político, tridenado ao baixo crescimento, à prebutário, educacional, previdenciáservação de uma estrutura social inírio, trabalhista e no da governança qua e ao baixo dinamismo nos propública. A reforma política deveria cessos de inovação e modernização. A revista Digesto começar pela Constituição (opeEsse tipo de desempenho não é inéEconômico nº 441 rando uma limpeza em regra); ela dito em termos históricos: antes de publicou o artigo continuaria pela redução das legisnós, a Grã-Bretanha e a Argentina "Pequeno manual laturas nos três níveis (a represenconstituíram as duas evidências prático da tação parlamentar é excessiva, mais remarcáveis de uma longa dedecadência com enormes gastos, injustificácadência e de empobrecimento con(recomendável em veis); passaria pela reforma eleitotínuo. Talvez o Brasil seguirá o mescaráter preventivo...) ral ( com a introdução do sistema mo caminho pelos próximos 20 anos distrital misto) e atingiria a estruou mais. [Remeto, nesse particular, tura partidária (diminuindo o aos meus ensaios: "Pequeno manual "mercado" político que hoje impeprático da decadência (recomendára no Congresso). vel em caráter preventivo...)", in Digesto Econômico (ano 62, A tributária choca-se com o problema da federação, mas nº 441, janeiro-fevereiro 2007, p. 38-47; disponível nos links deveria ser uma reforma completa, macro e micro; ela comehttp://www.dcomercio.com.br/especiais/digesto/digesçaria por uma simplificação tributária geral e caminharia no to_03/05.htm e http://www.dcomercio.com.br/espesentido da redução progressiva dos tributos; teria continuiciais/digesto/digesto_03/05a.htm); "Colapso!: prevendo a dade na abertura econômica, com redução dos impostos aldecadência econômica brasileira", in Espaço Acadêmico (ano fandegários, e passaria também pela liberalização do comérV, nº 60, maio 2006; link: http://www.espacoacademicio e dos investimentos estrangeiros; concederia, por fim, inco.com.br/060/60almeida.htm)]. centivos à inovação (reforço da propriedade intelectual). Não é certo, mas é provável que isso ocorra, em vista da nosA reforma educacional deveria concentrar-se no ensino bása incapacidade de empreender as reformas que são necessásico, prevendo capacitação de professores, a introdução de um rias para corrigir as deficiências atuais do nosso sistema (que, regime meritocrático de avaliação e de remuneração. Em qualrepita-se, não têm mais nada a ver com o legado português). A quer hipótese, se deveria conceder prioridade absoluta de reresponsabilidade está com cada um de nós…
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A história da história do Brasil
Reprodução/Pintura de Jean Baptiste Debret
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Newton Santos/Hype
Renato Pompeu Jornalista e escritor, autor do romance-ensaio O mundo como obra de arte criada pelo Brasil, Editora Casa Amarela.
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stá fazendo 200 anos que a família real portuguesa se mudou para o Brasil, fugindo das tropas de Napoleão, e que os portos da então colônia, até então reservados apenas a navios da Metrópole, foram abertos a embarcações de todas as "nações amigas" (leia-se, particularmente, a Inglaterra). Apesar da importância da data, livrarias de São Paulo, consultadas, registraram o lançamento desde o ano passado de apenas três obras sobre o assunto. O curioso é que esses livros foram publicados originalmente em intervalos de cem em cem anos: o primeiro, A vinda da família real portuguesa para o Brasil, do tenente irlandês Thomas O’Neil, que acompanhou a viagem, foi editado originalmente em inglês em 1810 e foi agora traduzido pela primeira vez para o português em edição da José Olympio Editora. É, dos três, o menos importante, por ter sido escrito em linguagem patrioteira (do ponto de vista britânico) e distorcer sempre os fatos para apresentar sempre os britânicos como heróis, os franceses como canalhas, e os portugueses (que incluem os brasileiros) como meros coadjuvantes. O segundo, e o mais importante, é de 1908: D. João VI no Brasil, do historiador-sociólogo Oliveira Lima, que em um século, apesar de ser um marco na historiografia brasileira, teve apenas quatro edições, a última pela Topbooks. O problema é que esse grande livro, de mais de 800 páginas, é escrito numa linguagem por demais erudita, dificultando a sua leitura e entendimento até para o público mais culto de hoje. O terceiro, o de leitura mais prazerosa e ao mesmo tempo mais informativa, pois contém informações praticamente inéditas para o grande público, é de 2007: 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, editado pela Planeta, fruto de dez anos de exaustivas pesquisas pelo autor, o conceituado jornalista Laurentino Gomes, que trabalhou na revista Veja e atualmente é diretor de um grupo de revistas segmentadas (isto é, não de interesse geral e sim dirigidas a públicos específicos) da Editora Abril. O livro é escrito com o característico tom ao mesmo tempo sedutor e sério do melhor jornalismo. Com pouco mais de 400 páginas, o mais vendido entre os três, o livro de Gomes apresenta momentos de excelência e, como toda obra de fôlego, alguns problemas. Suas contribuições maiores são, de um lado, a confir-
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mação da tese de Oliveira Lima de que 1808 foi um ano crucial, e o mais importante, para a construção da unidade brasileira, especialmente se comparada à fragmentação da América Espanhola em repúblicas pequenas em relação ao gigantesco Brasil; foi a presença aqui da Coroa portuguesa que centralizou o que era um conjunto centrífugo de capitanias independentes e isoladas umas das outras, com tendências separatistas no Norte, mais ligado a Lisboa do que ao Rio; no Nordeste, mais independente tanto em relação a Lisboa como ao Rio; e no Sul, onde sempre vigorou o chamado patriotismo gaúcho. De outro lado, Gomes divulga informações pouco conhecidas até mesmo de historiadores profissionais. Em primeiro lugar, ele esclarece que o desvio de uma parte da frota portuguesa, escoltada por navios britânicos, para Salvador e não para o Rio, como era o plano inicial, justamente os barcos que transportavam os membros da família real, não foi provocado, como sempre se propagou e ainda se propaga, por tempestades que obrigaram à mudança de rota, e sim por uma decisão deliberada de Dom João VI, preocupado em apaziguar as hostilidades das capitanias do Nordeste em relação às autoridades do Rio de Janeiro. Afinal, fazia poucas décadas que Salvador, mais próxima do açúcar da Zona da Mata, havia deixado de ser a capital da colônia, em favor do Rio de Janeiro, mais próximo das minas de ouro e diamantes, e seus habitantes, particularmente as classes altas, guardavam ressentimentos semelhantes aos que guardaram, com uma intensidade maior no passado recente do que agora, os cariocas em relação a Brasília. Isso mostra que, desde o início, ainda antes de desembarcar no Brasil, Dom João VI estava preocupado com a unidade política brasileira, que sabia estar ameaçada por separatismos. Por essa e outras razões é que podemos dizer que 1808 foi o ano crucial para a unidade nacional brasileira, e assim o ano mais importante para a história do País como um todo. Em segundo lugar, de posse de uma documentação pouco conhecida mesmo dos especialistas em história, Gomes demonstra que a abertura dos portos esteve longe de ser produto da intervenção do visconde de Cairu em Salvador; ela já estava decidida desde antes da partida da família real de Lisboa. Isso tanto por pressão dos ingleses como pela visão, por parte da Coroa portuguesa, de que não seria possível a um Portugal ocupado
pelos franceses manter o monopólio do comércio internacional brasileiro. Se tem esses méritos principais, o livro de Gomes tem também alguns problemas, um deles a começar do título, pois a "rainha louca", dona Maria I, não teve a menor influência nos acontecimentos, já que estava mentalmente incapacitada e oficialmente interditada para exercer qualquer tipo de poder. Também, se se pode imaginar que a informação a respeito de uma "corte corrupta" seja absolutamente correta, ela não está devidamente documentada na obra de Gomes: apenas se mencionam os casos de dois ou três cortesãos portugueses que foram proibidos de retornar a Portugal em 1821, acusados de desvios de verbas públicas para enriquecimento pessoal. De resto, o que Gomes cita são casos de particulares brasileiros, e não da corte portuguesa, que faziam "doações" a Dom João VI, em troca de títulos nobiliárquicos. Profusamente embelezado por coloridas ilustrações da época, o livro de Gomes apresenta as qualidades e os problemas característicos de sua estrutura. Ao invés de uma reconstrução histórica sobre as diferentes fases da presença da Coroa portuguesa no Brasil, o que Gomes elaborou foi uma
série de capítulos quase que independentes entre si, como se fossem reportagens jornalísticas, tendo por objeto aspectos específicos, e não uma visão geral da história, reservada para capítulos igualmente específicos sobre os resultados para o País da vinda da família real. Assim, há capítulos sobre Portugal às vésperas da invasão francesa, sobre a viagem, sobre os interesses ingleses, sobre a arquitetura e as condições de vida em Salvador, sobre o Rio, sobre Dom João VI, sobre dona Carlota Joaquina (de quem Gomes confirma as conspirações contra o marido, mas diz que suas tão alardeadas traições conjugais não encontram respaldo na documentação existente), etc., etc. Cada capítulo, internamente, tem uma ordem cronológica, que vai dos começos ao fim do período de que trata o livro, mas o livro como um todo não tem uma ordem cronológica, a não ser de um modo muito difuso, e assim o que temos é uma reconstrução muito viva de aspectos parciais da vida cotidiana daqueles tempos, mas não uma reconstrução verdadeiramente histórica como uma totalidade, a não ser, como foi dito, nos capítulos específicos sobre os legados mais permanentes da presença da família real portuguesa no Brasil.
Pintura anônima retrata o embarque da família real para o Brasil. No centro, em destaque, Dom João VI. Reprodução
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Por exemplo, no capítulo, ou melhor, nos capítulos sobre Dom João VI, ficamos sabendo que ele não recebeu educação como governante, pois não era o príncipe-herdeiro, título que cabia a seu irmão mais velho, Dom José, que este sim recebeu educação para governar, mas faleceu antes de assumir. Isso é parte da explicação para as famosas hesitações e a conhecida abulia de Dom João VI, que além disso era realmente medroso: tinha medo de trovoadas e de ser mordido por caranguejos se entrasse nas águas do mar. Tinha hábitos pouco higiênicos: raramente tomava banho e nem mesmo trocava de roupa, mesmo que seus trajes necessitassem de remendos ou de lavagem. Depois de alguns anos e da geração dos filhos, deixou de ter relações sexuais com dona Carlota Joaquina, e até viviam não só em quartos como em prédios separados; teve um rápido caso com uma dama da corte, mas pedia a criados homens que o masturbassem, de tão pobre que era sua vida amorosa. Também urinava e defecava em público, em vasos sanitários portáteis, que o acompanhavam em seus passeios ao ar livre pelas ruas cariocas. Aliás, a sujeira é um personagem constante no livro de Gomes. Em Salvador e no Rio, para não falar das cidades menos importantes da colônia, e mesmo já em Lisboa, não havia serviço de limpeza pública, nem rede de esgotos, de modo que cada família tinha de se livrar por conta própria do lixo e dos dejetos orgânicos humanos (estes levados em geral para o mar). O resultado, segundo a unanimidade dos viajantes estrangeiros, era uma sujeira geral e pouco saudável nas ruas das cidades luso-brasileiras, com as conseqüentes endemias e epidemias de várias doenças. Entretanto, sabendo-se que, por exemplo, em Londres, a rede de esgotos só foi instalada na segunda metade do século 19, ficamos sem maiores termos de comparação entre as sujeiras luso-brasileiras e a eventual limpeza nos grandes centros do mundo, particularmente os europeus. Gomes, porém, contrasta a limpeza em termos de higiene pessoal dos brasileiros, mesmo as pessoas comuns, comparados aos cortesãos portugueses, podendo-se presumir que já naquela época o banho era uma característica nacional. Na alimentação da época, Gomes menciona a presença constante do feijão e do toucinho, da couve e da laranja e banana como sobremesas, mas, estranhamente, não cita o arroz, fazendo-nos imaginar que este é uma presença mais recente na culinária brasileira, ou talvez não fosse tão característico do Rio quanto de outros lugares; afinal, até hoje a famosa feijoada à carioca é desacompanhada de arroz. Praticamente todos os viajantes estrangeiros citados por Gomes exaltam as paisagens e as riquezas naturais do Brasil e chamam a atenção para a mentalidade tacanha dos seus habitantes. Essa mentalidade atrasada era explicável: só havia escolas primárias na colônia, as de grau mais elevado eram proibidas pelas autoridades portuguesas, assim como era proibido ter gráficas que produzissem livros e jornais, cuja importação era severamente controlada. Isso para que não se divulgassem idéias libertárias e democratizantes. Foi só com a vinda da família real portuguesa que se autorizaram as primeiras gráficas e as primeiras faculdades. O primeiro jornal impresso no Brasil, a Gazeta do Rio de Janeiro,
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era um diário oficial, lançado em 1808; pouco antes tinha sido lançado em Londres o Correio Braziliense (veja matéria na página 40), do empreendedor gaúcho Hipólito José da Costa, que se apresentava como independente e crítico em relação às autoridades, mas na verdade era subsidiado pela corte portuguesa para que amenizasse suas críticas. O lançamento da imprensa e a inauguração do ensino superior, como uma escola de medicina na Bahia, não foram as únicas contribuições de Dom João VI. Talvez sua contribuição principal tenha sido a abertura de estradas entre as capitanias, estradas antes proibidas pelas autoridades coloniais para evitar o contrabando de mercadorias que deveriam ser principalmente levadas a Portugal, desencorajando o comércio interno brasileiro. Com a corte portuguesa no País, tornou-se possível viajar-se por terra do Sul para o Amapá, e do Nordeste para o Rio. Mas, acima de tudo, ao invés de relacionar-se como antes diretamente com Lisboa, cada capitania tinha agora de relacionar-se com uma autoridade central no próprio Brasil, no caso no Rio de Janeiro. Esse é o segredo da unidade nacional, pois a língua, a religião e os costumes comuns não bastavam para assegurar a unidade política e territorial, como mostra a fragmentação, que perdura até hoje, da América Espanhola – e até mesmo da América Inglesa (afinal, o Canadá até hoje é separado dos Estados Unidos, como o são também Belize, a Guiana e várias ilhas do Caribe, que antes foram, como os EUA, colônias britânicas). Dom João VI também autorizou a instalação de firmas industriais e de navegação, inclusive a vapor; isso em prejuízo de Portugal, que antes exportava produtos portugueses e reexportava produtos ingleses e de outros países para o Brasil, e agora perdia mercado não só para os ingleses, como também para os produtores brasileiros. Outra contribuição de Dom João VI referiu-se às ciências, como a instalação do Jardim Botânico do Rio e a autorização para a vinda de cientistas estrangeiros. Além de dar informações novas, sobre as decisões cruciais do paradoxalmente indeciso Dom João VI, de alterar o rumo da frota real, desembarcando em Salvador, e de abrir os portos brasileiros ao comércio internacional, Laurentino Gomes desfruta de um triunfo pessoal, ao fim de seu livro, triunfo talvez não muito importante em si mesmo, mas altamente significativo como profundidade de pesquisa. Como jornalista que há mais de duas décadas lida diariamente com o computador, com muito mais intensidade do que o fazem os historiadores profissionais, Gomes nos proporciona uma pequena jóia. Depois do capítulo de encerramento, há um capítulo adicional sobre essa pequena façanha. Ao longo do livro, Gomes utilizou profusamente as mais de 180 cartas que o bibliotecário português radicado no Brasil, Luiz Marrocos, enviou a seu pai e a uma irmã em Portugal. Cruzando os dados pessoais de Marrocos com os dados que constam no imenso arquivo genealógico na Internet mantido pelos mórmons americanos em Salt Lake City, Gomes descobriu não só que Marrocos teve com a futura esposa uma filha antes do casamento, como descobriu que essa filha foi entregue para um orfanato. Esse detalhe íntimo da vida de um obscuro funcionário da corte portuguesa, ignorado pela sua própria família, Gomes veio a descobrir dois séculos depois, numa de-
monstração das virtualidades das pesquisas pela Internet, um exemplo para futuros pesquisadores. Mas o livro de Gomes, apesar de escrito um século depois, não supera e nem torna dispensável a leitura do livro de Oliveira Lima, apresentado como um dos maiores, senão o maior, entre os historiadores brasileiros por ninguém menos do que o sociólogo Gilberto Freyre e o historiador Evaldo Cabral de Mello, ambos aliás pernambucanos, como o autor de D. João VI no Brasil. O problema é que, para os leitores cultos de hoje, a linguagem de Oliveira Lima é algo complicada, cheia de frases longas e retorcidas e de palavras inusitadas. Além disso, o livro só pode ser apreciado em sua inteireza por leitores tão eruditos quanto ao autor, pois está cheio de referências não explicadas: não se fica sabendo, por exemplo, quem é o "príncipe da Paz" tantas vezes citado, nem onde fica a localidade chamada de "Russilhão". Para o leitor de hoje, teria sido necessário que a editora tivesse providenciado notas explicativas sobre essas obscuridades. Teria sido importante também apresentar quem foi Oliveira Lima, sobre quem a edição não traz maiores informações. Manoel de Oliveira Lima, filho de um comerciante português, nasceu no Recife em 1867. Aos seis anos, mudou-se com a fa-
mília para Portugal, onde estudou o primário, o secundário e o superior, formando-se em Letras em 1887. Retorna ao Brasil e ao Recife em 1890, e se casa com uma professora de inglês e francês, com a qual não teve filhos. Apesar de republicano, desde a juventude sempre teve grande admiração pela família real portuguesa, em especial por Dom João VI. Entrando no serviço diplomático brasileiro, parte para a Alemanha em 1892, como secretário de Legação em Berlim. Publica livros sobre a história de Pernambuco e a literatura colonial brasileira, torna-se articulista de jornais como o Jornal do Recife, Jornal do Commercio do Rio e O Estado de S. Paulo. Em 1896, se transfere para Washington, ainda como secretário da Legação. Apesar de seu brilhantismo intelectual e de seu talento diplomático, sua admiração pela família real portuguesa lhe gera problemas, pois, na época, no regime republicano recém-fundado, havia muito temor em relação à possível restauração da monarquia no Brasil. Tem um primeiro desentendimento com seu superior em Washington, Assis Brasil, e é transferido para Londres, em 1900; na capital britânica, publica livros sobre os Estados Unidos, o reconhecimento da independência do Brasil e o período imperial brasileiro. Torna-se em Londres amigo do famoso intelectual abolicionista, também pernambucano, Joaquim Nabuco, autor
Coroação de D. Pedro I: D. João VI parte para Portugal em abril de 1821. No ano seguinte, o Brasil seria independente. Reprodução/Gravura de Jean Baptiste Debret
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Popularidade dos personagens históricos: D. Pedro II e D. Pedro I ornavam as notas de 100 e 200 cruzeiros...
de Um estadista do Império, mas o temperamento crítico de Oliveira Lima o leva a romper com Nabuco, acostumado a ser sempre elogiado. Oliveira Lima fica em seguida dois anos como embaixador no Japão, país sobre o qual também escreve um livro. Em 1903,
Carlota Joaquina: casada com D. João VI, levou fama de infiel, feia, maquiavélica.
Reprodução/Gravura de Jean Baptiste Debret
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foi indicado membro da Academia Brasileira de Letras. Já estava pesquisando e escrevendo a obra sobre Dom João VI, motivo pelo qual pediu a sua transferência de volta a Londres, para ficar perto dos arquivos em Lisboa, na capital britânica, em Paris e Viena. Sua simpatia em relação à monarquia portuguesa, entretanto, novamente lhe funciona como obstáculo, e o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, não atende o seu pedido e o transfere para a Venezuela, onde fica até 1906. Finalmente, em 1908, servindo em Bruxelas, ali publica, em dois volumes, a sua obra máxima, justamente D. João VI no Brasil. Serviu ainda em Estocolmo e, quando começou a Primeira Guerra Mundial, estava em Londres, de onde então partiu para os Estados Unidos, onde morreu em 1928, tendo legado sua biblioteca de 58 mil livros para a Universidade de Washington. Em seu túmulo na capital americana está escrito: "Aqui jaz um amigo dos livros". No livro sobre Dom João VI, Oliveira Lima se comportou como um historiador do tipo antiquário, isto é, aquele que procura realmente as fontes originais e nelas se baseia de preferência em relação às chamadas fontes secundárias. Assim, sua grande base é a correspondência, tanto a pessoal como a oficial, de Dom João VI. Oliveira Lima restaura toda a importância do monarca português e do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves, para a história do País. Com essa documentação, Oliveira Lima se contrapõe à imagem corrente de Dom João VI como um tipo bonachão e indeciso, levado pela opinião dos outros. Ao contrário, como confirma o livro de Laurentino Gomes, Oliveira Lima mostra como a atuação de Dom João VI, ao impor a autoridade da corte no Rio a todas as regiões do Brasil, foi fundamental para a manutenção da unidade nacional brasileira. Aqui cumpre esclarecer que, no começo do século 19, não havia propriamente um patriotismo brasileiro. Cada cidadão se sentia, de imediato, ligado à capitania em que nascera, fosse a da Bahia, fosse a do Rio Grande do Sul, e não se declarava "brasileiro" e sim "baiano" ou "gaúcho"; o termo "brasileiro" era reservado aos portugueses que vinham ao Brasil e recebiam essa adjetivação quando voltavam a Portugal; originalmente, significava "negociante de pau-brasil" e, depois, "negociante no Brasil". Em segundo lugar, o cidadão de cada capitania se julgava "português". Afinal, até Dom João VI, a própria Coroa portuguesa impedia que as capitanias brasileiras se comunicassem umas
... enquanto que D. João VI estava nas notas de 500 cruzeiros, só perdendo para Pedro Álvares Cabral - nota de mil cruzeiros.
com as outras; foi o monarca, famoso por carregar nos bolsos pedaços desossados de frango, para comê-los quando quisesse, que reuniu todas as capitanias numa Pátria única. Diz Oliveira Lima: "Dom João VI não foi um guerreiro, nem, felizmente para ele, um mártir. Contentou-se em ser, como acabo de dizê-lo, sagaz e bom em um grau elevado e na medida da natureza humana. Não nos diz o clássico latino que se encontram mais freqüentemente deuses que homens?" Por essa razão, talvez, Dom João VI foi mais popular, entre a multidão carioca, do que Dom Pedro I e Dom Pedro II, que afinal acabaram destronados. Por essa razão, igualmente, durante a vigência do cruzeiro, dos anos 1940 aos anos 1970, enquanto Dom Pedro II ilustrava a nota de cem cruzeiros e Dom Pedro I a de duzentos, Dom João VI ornava a de quinhentos cruzeiros, só perdendo para Pedro Álvares Cabral, homenageado pela nota de maior valor, a de mil cruzeiros, enquanto a maior nota reservada a um republicano era a de vinte cruzeiros, ornamentada pelo marechal Deodoro da Fonseca. Essa iconografia das notas do antigo cruzeiro com toda certeza representa mais fielmente a importância de Dom João VI na história brasileira do que sua imagem popularesca e bonachona. Mas aqui temos de assinalar que, apesar de sempre ter sido considerada importante pelos intelectuais de sua terra natal, Pernambuco, a obra de Oliveira Lima permanece, em termos do grande público nacional, um tanto obscurecida. Seu livro sofreu a mesma desconsideração que o próprio Dom João VI. Afinal, Oliveira Lima passa por cima das características estritamente pessoais de Dom João VI, como seu desmazelo, seus pedaços de frango no bolso, para situá-lo mais próximo do que realmente o monarca foi: apresenta-o como governante honesto, que se esforçou – e o conseguiu – para transformar o Brasil num Estadonação unificado, ou, como dizia, num "império". Nesse sentido, Dom João VI pode ser considerado como o fundador do Brasil Nação e, assim, como indicavam as notas do cruzeiro, o governante mais importante e de papel mais crucial que o Brasil já teve. Pena é que a leitura do livro de Oliveira Lima seja tão difícil, por causa de sua linguagem retorcida, e das referências pouco claras a pessoas, locais e situações hoje nada familiares mesmo ao público mais culto. Em suma, o livro de O’Neil é de leitura mais fácil, mas praticamente inútil do ponto de vista da informação correta, só va-
lendo, na verdade, pela introdução da historiadora Lília Moritz Schwarcz; o livro de Laurentino Gomes é de leitura amena e contém as informações principais; o livro de Oliveira Lima, pouco estudado até nas universidades do País, é mais profundo e abrangente, mas é de leitura pesada.
D. João VI: monarca ficou famoso por carregar pedaços de frango nos bolsos.
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leira faz 200 anos
Primeiro número do Correio Braziliense, redigido e impresso em Londres. Ao lado, Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça.
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rês jornais hostis devem ser mais temidos do que mil baionetas. A frase, atribuída a Napoleão, reflete a ameaça que a liberdade de expressão representa para os poderosos. Mas foi justamente Napoleão o responsável, ainda que indireta e involuntariamente, pelo nascimento dos dois primeiros jornais brasileiros. Dois jornais que, não por acaso, não lhe eram muito simpáticos. Foi a decisão de Napoleão de invadir Portugal que precipitou os acontecimentos para que o Brasil recebesse sua primeira impressora. Até então, o País era apenas uma colônia onde as letras impressas eram expressamente proibidas e onde as tentativas clandestinas de publicação de panfletos ou textos informati-
vos haviam sido reprimidas com a apreensão dos equipamentos (1). A primeira impressora chegou ao País como parte da "bagagem" de Dom João VI e da família real, em 1808. Era uma máquina novíssima, recém-adquirida pela Imprensa Régia portuguesa, órgão que se estabeleceu no País como responsável pelas publicações e também pela censura. Em 1808, o Brasil ganhava sua impressora, mas qualquer texto impresso no País a partir de então teria que passar pela única impressora de todo o território colonial e, obviamente, só passava por ali material que fosse favorável ao poder do monarca. Assim, o primeiro jornal brasileiro não pôde ser impresso naquela máquina.
Heci Regina Candiani Jornalista, especialista em Teoria da Comunicação e Jornalismo Impresso e mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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Impressora do século 19, similar à que foi trazida pela família real quando de sua fuga para o Brasil. Era uma máquina nova, recémadquirida pela Imprensa Régia, órgão responsável pelas publicações e também pela censura à liberdade de expressão.
Um visionário Do outro lado do Atlântico, um jovem aristocrata brasileiro enxergava na chegada da família real ao Brasil a oportunidade de começar a discutir os rumos políticos, econômicos e sociais do País, e em 1° de junho de 1808 publicou o primeiro número do jornal pioneiro a circular no Brasil: o Correio Braziliense (2). Redigido e impresso em Londres por Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça (17641823), o jornal chegava ao Brasil nos navios ingleses e, depois, de outras nacionalidades, que passaram a ter permanência garantida nas águas brasileiras quando D. João abriu os portos às nações amigas. Hipólito da Costa desafiou a censura que existia no Brasil e, como estava fora do País, onde a impressão era livre, teve a oportunidade de, já a partir do primeiro número, expressar-se com liberdade. Ele foi, em certa medida, um visionário que acreditava que as informações enviadas de Londres poderiam influenciar os rumos políticos da nação e tinha talento para escrever de forma direta, objetiva. Todas essas características o transformaram em patrono da imprensa brasileira e no responsável
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pelo nascimento do jornalismo brasileiro, que agora comemora seus 200 anos. A estréia do Brasil no jornalismo teria sido um fiasco oficialesco se não fosse pela ousadia de Hipólito. Graças a ele, entretanto, a primeira publicação do Brasil tinha um caráter combativo. Oriundo de uma família rica e de prestígio do Rio Grande do Sul, Hipólito José da Costa obteve o título de bacharel em leis e doutor em filosofia pela Universidade de Coimbra e se tornou um jovem funcionário promissor nos quadros do governo português. Em 1798, integrou uma missão portuguesa aos Estados Unidos; em 1800 conseguiu um emprego na Imprensa Régia em Lisboa; em 1802 foi enviado em missão a Londres. Tudo estaria bem se Hipólito não fosse obcecado pela observação e pelos relatos de suas experiências, duas características fundamentais a um bom jornalista. Nos EUA, escreveu um diário detalhado de tudo o que viu e expressou sua admiração pela cultura política dos norte-americanos. Entre Portugal e Inglaterra, envolveu-se com a maçonaria. Durante suas viagens, Hipólito criou para si mesmo uma certeza: o desenvolvimento das nações por onde passou estava diretamente ligado à
um grande benfeitor para o Brasil. As ações do monarca, insistia o jornalista, não eram voltadas para os interesses do Brasil e de seu povo, mas para seus próprios interesses e nem tudo era tão promissor quanto parecia. A tão aclamada decisão de abrir os portos às nações amigas é um exemplo da visão crítica do jornalista. De acordo com o redator do Correio Braziliense, a abertura era inevitável para a sede do reino. Simplesmente o Brasil – que abrigava a família real e as decisões do governo – não podia mais depender da passagem das mercadorias pelos portos portugueses que, por sinal, estavam ameaçados pela invasão napoleônica. O jornal também trazia extensos artigos sobre o projeto que Hipólito vislumbrava para o Brasil e que incluía o liberalismo econômico, a não-intervenção estatal, a extinção dos monopólios, a transparência nas contas públicas e a gradual substituição da mão-deobra escrava pelo trabalho livre de imigrantes europeus, até que os escravos pudessem ser todos libertados. Hipólito defendia a liberdade em todos os sentidos e os historiadores apontam que ele esteve diretamente envolvido em movimentos revolucionários na América espanhola, tendo atuado até mesmo como intermediário entre Simon Bolívar e soldados ingleses. Seus projetos para o Brasil, entretanto, eram mais conservadores e, como um admirador profundo do sistema inglês, não queria ver seu país transformado em uma República. Ele defendia uma monarquia constitucional para o Brasil, nos moldes do governo inglês, e acreditava que a transformação poderia ser gradual. Reprodução
liberdade política e religiosa. Mas defender essas idéias em Portugal, onde o poder monárquico de viés absolutista e a Igreja Católica ditavam as regras, não era seguro. Tanto que Hipólito da Costa foi perseguido e preso pela Inquisição em Portugal e, em 1805, conseguiu fugir para Londres. Sua formação intelectual, sua trajetória política e suas viagens foram importantes para criar nele uma forte convicção de que o Brasil precisava de um projeto liberal de desenvolvimento, baseado nos preceitos econômicos do liberalismo inglês. Em 1808, quando Dom João VI chegou ao Brasil, Hipólito percebeu que era a oportunidade de divulgar esse projeto e realizou o principal empreendimento de sua vida, o Correio Braziliense, que foi o primeiro jornal brasileiro livre e também o primeiro a circular no País, com a impressão paga em Londres de seu próprio bolso. Financeira e ideologicamente, Hipólito teve a ajuda de amigos maçons e poderosos, como o filho do rei George III, Augusto Frederico, o duque de Sussex. A participação no movimento maçônico influenciou suas idéias e garantiu a ele muitos contatos com pessoas que o ajudaram na criação e consolidação do jornal. Hipólito não apenas se identificava com o projeto da maçonaria, como com a corrente liberal econômica inglesa, especialmente com as idéias de Adam Smith, e ia além: considerava Brasil e Portugal extremamente atrasados em relação às nações que conhecera, julgava a aristocracia dos dois países muito ignorante, indignava-se com o fato de a Inquisição ainda ditar regras religiosas para a população e denunciava a ação da censura régia. Além disso, acreditava que o Brasil tinha possibilidades de crescer com a instalação de fábricas, universidades e escolas, a exemplo do que acontecia em outras colônias da América do Sul, de colonização espanhola. Todas essas idéias passaram a ser articuladas em seus artigos no jornal, que era dividido nas seções de Política, Comércio (economia), Artes, Miscelânea, Literatura e Ciência. Era em Miscelânea que Hipólito afiava sua verve, criticando algumas ações da monarquia e, principalmente, a insistência da aristocracia brasileira em endeusar D. João VI como
Em1455, o alemão Johannes Gutemberg inventou uma impressora com tipos móveis de metal. Mas foi somente em 1650 que o primeiro jornal diário surgiu em Leipzig, Alemanha, chamado Einkommende Zeitung.
Sucesso de público Mesmo sendo impresso fora do País, a importância do Correio Braziliense é gigantesca para o período. O jornal era publicado em forma de livro – como vários títulos da época –, trazia periodicamente ao País informações não apenas da Inglaterra, mas de outras partes do mundo, além de trechos de livros traduzidos, artigos opinativos redigidos por Hipólito, informações comerciais como o preço dos produtos no mercado externo e críticas ao governo e seus funcionários. Cada número somava, assim, cerca de 100 páginas de informação e tinha
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Em 10 de setembro de 1808 foi lançada a Gazeta do Rio de Janeiro, que até 1820 foi a única publicação autorizada a circular no Brasil. O jornal adulava e enaltecia D. João VI e as melhorias que ele empreendeu no País.
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uma tiragem aproximada de 200 exemplares, o número de assinantes da publicação. Quando chegava aos leitores, o jornal, entretanto, passava por muitas mãos. O público só não era maior porque saber ler e escrever, no Brasil da época, era raro mesmo entre a aristocracia. O que não impedia que o jornal fosse lido em voz alta em reuniões da sociedade, em cafés, em espaços públicos onde os brasileiros mais abastados – e certamente preocupados com os rumos da economia e da política colonial – estivessem reunidos. Além disso, o Correio era escrito num estilo claro, conciso, de leitura fácil. Tudo isso fez do Correio um sucesso de público e garantiu ao jornal vida longa para sua época: 14 anos. O Correio Braziliense só deixou
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de circular em 1822, quando o Brasil se tornou uma nação independente e Hipólito considerou que o País tinha condições de produzir e imprimir livremente seus próprios jornais, com a divulgação de suas próprias idéias. (Posteriormente, na década de 1960, o título da publicação foi retomado por Assis Chateaubriand, importante empreendedor da imprensa brasileira, para um de seus jornais, publicado em Brasília até os dias de hoje.) O discurso objetivo do Correio Braziliense de Hipólito da Costa contrastava com os textos da Gazeta do Rio de Janeiro, publicação que poderia ser sua única concorrente no Brasil, porque era o único jornal impresso no Brasil. Entre 10 de setembro de 1808 e 1820, a Gazeta foi a única publicação autorizada a circular no Brasil. O jornal foi o principal exemplo de como os recursos públicos podiam ser usados, à época, em defesa de interesses e negócios particulares. A Gazeta saía da impressora que pertencia à Imprensa Régia, sua redação funcionava nas dependências da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, mas o empreendimento era privado. Seus proprietários, os oficiais da secretaria, empregavam como redatores membros da Igreja que, por sua vez, também eram funcionários da mesma repartição. Com tal dependência em relação ao poder, o jornal adulava e enaltecia D. João VI e as melhorias que ele empreendeu no País. Seu conteúdo era o de uma folha oficial, dedicada a divulgar fatos relativos ao rei, além de traduções de artigos publicados na imprensa européia. A Gazeta, entretanto, foi pioneira na contratação de religiosos e jovens vindos da aristocracia para a função de jornalistas e foi o jornal que efetivamente instituiu a função no País. Antes dela, apenas um cidadão brasileiro exercia a função de jornalista, Hipólito da Costa, que também era o dono de seu próprio jornal. Depois dela, o jornalismo passou a ser uma atividade aberta. À época, quem era alfabetizado tinha emprego quase garantido em quadros administrativos do governo, como professores em instituições laicas ou como redatores dos primeiros jornais livres impressos no Brasil, que surgem apenas a partir de 1821. Foi só nesta data que a impressão se tornou uma atividade efetivamente livre no País e o jornalismo passou a ser exercido por outros empreendedores, como Evaristo da Veiga (1799-1837) e José da Silva Lisboa (1756-1835), no Rio de Janeiro, e Frei Caneca (1779-1825), com uma missão: a de educar. Os jornalistas passaram, então, a seguir a trilha traçada por Hipólito da Costa: escreviam para as elites, que podiam influenciar politicamente as
decisões de governo, para os quadros administrativos do império, e para uma nascente classe média formada por professores, pequenos proprietários e comerciantes. A partir de 1821, como mostra Antonio Cândido (1971), em função das mudanças estruturais pelas quais passava a sociedade brasileira e da intensa difusão dos ideais da Ilustração – os gêneros públicos de literatura (a oratória, o ensaio político-social e o jornalismo) ganharam destaque, em detrimento da prosa e da poesia. O jornalismo que se desenvolve então produz um movimento de compensação ideológica (CÂNDIDO, 1971, p. 227) em que, mesmo nos periódicos livres, há uma gratidão em relação ao rei por trazer tantos avanços para o Brasil e alguns problemas da administração acabam por ser encobertos. Cada vez que a Gazeta – e depois de 1821 outros jornais – enaltecia D. João, Hipólito denunciava os interesses administrativos que estavam por trás das medidas. O jornalista defendia uma posição política antigovernista e questionava o poder soberano de Portugal sobre o Brasil. Isabel Lustosa (2000) enfatiza que o Correio teve o papel de ensinar as elites a refletir e discutir sobre seus interesses e os problemas do País. Por meio do jornal, a aristocracia entrou em contato com as idéias que refletiam e correspondiam a seus objetivos. Com esse conteúdo bombástico, não demorou muito para o jornal se tornar um alvo da censura imposta pela Imprensa Régia. A publicação, que no início era tolerada, se tornou proibida e perseguida. Muitas foram as tentativas de emissários de D. João VI de banir a publicação. Como mostram Sergio Goes de Paula e Patrícia Souza Lima no artigo Os Paradoxos da Liberdade (2002), o governo monárquico tentou de tudo: reprimir a publicação, proibir a Alfândega de liberar seu desembarque nos portos brasileiros, perseguir Hipólito e "comprar" o jornalista.
Este último episódio, que passou para a história da imprensa brasileira como o "suborno" de Hipólito da Costa é um dos mais obscuros da existência do Correio. O jornalista foi acusado de "vender sua pena", de aceitar dinheiro para não falar mal do monarca, de abrir mão de seus ideais. Mas, aparentemente, a questão, embora grave, não fez de Hipólito um "vira casaca". Após um longo período de negociação com pessoas ligadas ao governo de D. João VI, representantes de Hipólito da Costa firmaram um acordo, que fazia da monarquia uma das financiadoras do Correio Braziliense. Por meio do acordo, a Intendência de Polícia da Corte do Rio de Janeiro passou a pagar a Hipólito anualmente o equivalente a 200 assinaturas do jornal. O dinheiro foi necessário para que o jornalista mantivesse a circulação do jornal e Hipólito efetivamente abrandou o tom contra a figura do monarca depois do acordo, que aconteceu em 1811. Em sua defesa, os historiadores afirmam que, mesmo na Europa, na época, o jornalismo não era uma atividade comercial e não gozava de independência política e nem financeira. Além disso, mesmo sem atacar diretamente D. João VI, Hipólito não deixou de criticar o que considerava prejudicial para o País em seu governo e muitas das críticas que publicava serviam ao próprio governo para fiscalizar o que acontecia entre seus funcionários. Mas a verdade é que o primeiro jornalista brasileiro, embora tenha sido acusado de "vender a pena" ao monarca, não praticou nada muito diferente do que a imprensa realiza ainda nos dias de hoje. Afinal, a publicidade governamental ainda é uma das principais fontes de receitas de muitas publicações brasileiras. Ao inaugurar o jornalismo brasileiro, portanto, Hipólito da Costa colocou a imprensa brasileira diante de uma de suas principais questões éticas, que é atual ainda hoje: a questão da autonomia e da neutralidade em relação ao poder político.
NOTAS (1) A principal apreensão foi a da tipografia do português Antônio Isidoro da Fonseca, instalada no Rio de Janeiro em 1747. Naquele ano, um decreto português determinou a apreensão do equipamento, que foi remetido a Lisboa. (2)Em A Imprensa do Brasil em Minas Gerais (Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 2000), Djalma Alves de Azevedo argumenta que o primeiro jornal brasileiro – por ser impresso em uma tipografia com todas as peças produzidas no
Brasil, em Ouro Preto – é o Compilador Mineiro, publicação iniciada em 1823, que circulava duas vezes por semana. Ainda assim, não restam dúvidas de que a atividade jornalística, entendida como a publicação periódica de informações sobre assuntos de interesse do País, foi inaugurada no Brasil pelo Correio Braziliense de Hipólito da Costa, em 1808. Já a Gazeta do Rio de Janeiro foi pioneira em empregar cidadãos na função de redatores.
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. "Campo intelectual e projeto criador". In: POUILLON, Jean (Org.). Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1968. BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão, seguido de A influência do jornalismo e Os Jogos Olímpicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1971. LUSTOSA, Isabel. Insultos Impressos: a guerra dos jornalistas na Independência (1821-1823). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. PAULA, Sérgio Goes de; LIMA, Patrícia Souza. "Os Paradoxos da Liberdade". In: COSTA, Hipólito da. Correio Braziliense ou Armazém Literário. Vol. XXX. Tomo 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília, DF: Correio Braziliense, 2002.
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O Brasil como ator regional Estratégias de política externa e impacto na
Divulgação
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Paulo Roberto de Almeida
Introdução:
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas, diplomata de carreira desde 1977 e professor no mestrado em Direito no Centro Universitário de Brasília. site: www.pralmeida.org
presente ensaio, de caráter analítico-descritivo, pretende oferecer uma exposição das grandes linhas da diplomacia brasileira na atual presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (20032006 e 2007-2010), combinando a apresentação das suas principais iniciativas no plano internacional com a discussão dos fatores que podem determinar o potencial de atuação do Brasil, nos planos regional e mundial, bem como suas limita-
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O
e emergente global:
Beto Barata/AE
nova ordem internacional
ções, nas atuais circunstâncias. O Brasil é um ator de certa relevância em ambos os planos, possuindo obviamente maiores faculdades de "intervenção" no cenário geográfico sulamericano. Mas também exerce alguma liderança em alguns tópicos da agenda multilateral – é o caso das negociações comerciais multilaterais, por exemplo – e tem sido visto, ultimamente, como um ator importante na evolução futura da economia mundial, como um dos chamados Brics, juntamente com Rússia, Índia e China. O trabalho enfocará, em primeiro lugar, o contexto mais geral no qual se exerce a nova diplomacia brasileira, enfati-
zando alguns pontos de ruptura ou de continuidade em relação à anterior política externa; depois, seguirá os motivos e interesses que guiam o Brasil na tentativa de moldar uma nova política externa; em seguida, discutirá quais estratégias de política externa derivam da postura do Brasil e onde se situa, exatamente, o seu foco; finalmente, examinará o que tudo isto significa para a ordem internacional atual e futura. Não se pretendeu repassar a literatura acadêmica acumulada a respeito da diplomacia do presidente Lula, mas as referências feitas a outros trabalhos do autor permitirão consultar uma bibliografia mais ampla.
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Lula Marques/Folha Imagem
1. O Brasil e a ordem mundial: mudanças e continuidades na política externa Da mesma forma (mas talvez não no mesmo ritmo ou intensidade) como o mundo passa por novas configurações políticas e econômicas desde o final da Guerra Fria e do término do desafio socialista ao capitalismo, com a conformação de uma ordem mundial de mercados abertos e globais e a emergência progressiva de novos atores, o Brasil vem experimentando, igualmente, mudanças sensíveis em seu papel regional e enquanto ator global. Essas mudanças na posição relativa do Brasil na região e no mundo têm ocorrido tanto por imposição dos dados objetivos da realidade externa – regional e global – que afetam de modos diversos o gigante da América do Sul, quanto em função de decisões adotadas por suas lideranças políticas, com destaque para as iniciativas de política externa do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais conhecido como Lula, que concluiu seu primeiro mandato (2003-2006) e iniciou, em janeiro de 2007, um segundo período na presidência do Brasil (até 2010). As mudanças estruturais e sistêmicas que marcaram o Brasil desde o início dos anos 1990 precisam ser vistas, em primeiro lugar, na perspectiva do médio prazo, sobretudo a partir do grande esforço em prol da abertura e da estabilização macroeconômica iniciado na presidência Fernando Collor (19901992), com destaque, na seqüência, para o Plano Real, adotado sob a liderança do ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, na administração Itamar Franco (1992-1994). Bemsucedido, o Plano Real foi consolidado durante as duas presidências de FHC (1995-1998 e 1999-2002), a despeito de crises financeiras que afetaram o Brasil em várias oportunidades, levando à negociação de acordos preventivos com o FMI (1998, 2001 e 2002). Tratou-se de um processo complexo de mudanças regulatórias e institucionais, que exerceu seu impacto mais significativo nos dados propriamente internos da realidade macroeconômica brasileira, mas que também apresentou elementos relevantes na política externa, sobretudo no que se refere à integração regional, com o Mercosul, e às negociações em torno do projeto dos Estados Unidos de criação de uma "área de livre comércio das Américas". A estabilização também permitiu uma nova projeção internacional do Brasil, graças ao grande trânsito obtido por FHC junto às mais diversas lideranças mundiais (em especial, os dirigentes do G-7). Independentemente, porém, do maior ou menor peso assumido pelo Brasil nos novos esquemas de poder e influência regionais e globais que emergiram a partir da última década do século 20, cabe reconhecer que, por sua massa econômica própria, por sua projeção diplomática, pela atração regular de investimentos diretos estrangeiros e por outros fatores intrínsecos e extrínsecos, o Brasil já detinha, antes do intenso processo de mudanças estruturais na economia mundial das últimas duas décadas, certo peso na região e no mundo, pelo menos como grande fornecedor de commodities minerais e agrícolas. Em segundo lugar, as mudanças políticas e econômicas ocorridas no Brasil desde os anos 1990 também precisam ser consideradas no contexto criado com a eleição do antigo líder
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A estabilização econômica no governo FHC permitiu nova projeção internacional do Brasil
operário e dirigente sindical, Lula, feito presidente do Partido dos Trabalhadores (desde a criação deste em 1980) e candidato em todas as eleições presidenciais desde a redemocratização do País (em 1989, 1994, 1998 e, finalmente de modo vitorioso, em 2002). A despeito de algumas apostas dos operadores de mercado de que a eleição de Lula poderia representar grandes mudanças na política econômica – o que causou grande deterioração na percepção de risco do Brasil durante a campanha de 2002, com elevação acentuada dos juros, da inflação e da paridade cambial e com queda no valor dos títulos da dívida externa brasileira negociados nos mercados financeiros –, o que se observou, de fato, foi, ademais da preservação dos acordos com o FMI (1998, 2001 e 2002), uma grande continuidade na área econômica, com a manutenção do núcleo essencial dos mecanismos implementados durante o Plano Real e nos seus ajustes: responsabilidade fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante. Em contrapartida, ocorreram grandes mudanças na política externa, como será evidenciado no seguimento deste texto. As lideranças políticas brasileiras sempre tiveram consciência da posição de destaque assumida naturalmente pelo Brasil no imediato entorno regional – América do Sul – mas também tiveram a pretensão, em algumas fases, de colocar o Brasil em posição de maior importância no plano internacional, seja no plano econômico-comercial, seja no âmbito político-estratégico. Assim ocorreu, por exemplo, desde a conferência da paz de Versalhes (1919) e a criação da Liga das Nações, quando as lideranças políticas brasileiras manifestaram o desejo de ver o Brasil colocado na posição de ator relevante no Conselho daquela organização, objetivo finalmente frustrado pela escolha da Alemanha para exercer esse papel, o que provocou a retirada do Brasil da Liga (1926). Da mesma forma, ao final da Segunda Guerra Mundial, a partir
Eugênio Novaes/Folha Imagem
dos arranjos de Ialta e Dumbarton Oaks (1945), o Brasil esperava assumir uma das cadeiras permanentes no novo Conselho de Segurança da ONU, meta igualmente frustrada, tanto pela oposição de alguns atores de peso (Reino Unido e União Soviética, por exemplo), como pela carência de capacidade militar ou financeira do Brasil. Essa aspiração a uma posição de relevo no chamado inner circle da oligarquia política mundial é recorrente entre as lideranças políticas e militares do Brasil. Durante a fase de alto crescimento econômico (1969-1979) registrada no período do regime militar (1964-1985), as lideranças esperavam consolidar a posição do Brasil enquanto nova potência econômica, eventualmente também nuclear, como forma de fazê-lo ingressar no pelotão de frente da economia e da política mundiais. Esse desejo foi várias vezes frustrado pelas recorrentes crises econômicas enfrentadas pelo País no último terço do século 20 – crises do petróleo em 1973 e 1979, da dívida externa em 1982, descontrole inflacionário nos anos seguintes, culminando com as crises financeiras dos anos 1990 –, colocando o Brasil como pretendente desprovido de reais condições para o exercício de algum tipo de liderança e confirmando-o na condição de eterno "país do futuro", segundo a designação feita pelo escritor austríaco Stefan Zweig, em 1941. A despeito dos recuos relativos observados no processo de crescimento econômico e das dificuldades financeiras enfrentadas desde os anos 1980, o presidente da redemocratização, José Sarney (1985-1990), não deixou de apresentar a candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança, quando o tema da reforma da Carta da ONU foi novamente colocado na agenda. Naquela ocasião (1989), o Brasil não se apresentou como possível candidato regional, sabedor das dificuldades que isto lhe causaria no âmbito continental (sobretudo com a Argentina), e fez questão de antecipar que sua candidatura poderia ser assumida com a dispensa do direito de veto. Mais importante do que essa pretensão, porém, foi o fato de o presidente Sarney ter também tomado a iniciativa de engajar decisivamente o Brasil no processo de integração regional, o que teve início por acordos setoriais e protocolos bilaterais com a Argentina (programa de integração e cooperação econômica, em 1986, e um tratado bilateral de integração em 1988, já prevendo um mercado comum em dez anos), culminando com a formação quadrilateral do Mercado Comum do Sul, Mercosul, em 1991, agregando Paraguai e Uruguai aos dois grandes da América do Sul. O presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) deu passos decisivos no sentido de redirecionar a política externa brasileira na via da não-proliferação nuclear regional e do triplo abandono do programa nuclear militar, do excessivo protecionismo comercial e da antiga postura ligeiramente "terceiro-mundista" adotada pela diplomacia profissional, aproximando um pouco mais o Brasil da filosofia econômica dos países da OCDE. Segundo consta, o presidente Collor – impedido por motivos de corrupção com menos de dois anos do início do mandato – dizia preferir ver o Brasil assumir o lugar de "último dos países desenvolvidos", a vê-lo como o "primeiro dos países subdesenvolvidos", o que já conformou uma significativa mudança de visão para os padrões tradi-
Mesmo com a crise financeira, José Sarney (acima) não deixou de apresentar a candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Abaixo, Fernando Collor, que aproximou o País da filosofia econômica dos países da OCDE.
Ricardo Chaves/AE
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cionais e relativamente conservadores da diplomacia profissional, que sempre se bateu por manter o status do Brasil enquanto "país em desenvolvimento" (com todas as implicações em termos do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio – GATT, Sistema Geral de Preferências – SGP e outros regimes comerciais preferenciais). No período seguinte (presidente Itamar Franco, 1992-1994), a diplomacia brasileira também começa a operar uma pequena, mas importante, mudança conceitual, no sentido de abandonar a velha adesão à dimensão geográfica da "América Latina" em troca de nova e acrescida ênfase ao conceito de América do Sul, o que foi confirmado pelas repetidas tentativas de obter acordos de associação ou de liberalização comercial entre o Mercosul e todos os vizinhos sul-americanos, reagindo ao projeto americano da Alca, mediante a proposta de uma Alcsa, uma área de livre comércio sul-americana. Esta também foi uma importante fase de reformas econômicas, com o início do processo de privatizações, diminuindo em parte o enorme peso do Estado brasileiro na economia do País. Os dois mandatos sucessivos de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002) são relevantes em vista de um processo notável de reformas econômicas – com importantes emendas constitucionais que abriram a economia brasileira à globalização –, mas também de uma maior presença do Brasil no cenário mundial, em grande medida graças à facilidade de trânsito de FHC nos meios internacionais. O presidente também confirmou a desnuclearização completa do Brasil ao fazê-lo aderir ao TNP, o tratado de não-proliferação de 1968, considerado durante três décadas por diplomatas e militares como iníquo e discriminatório. Apoiando-se quase que exclusivamente nos diplomatas profissionais, ele conduziu de forma objetiva as difíceis questões derivadas das assimetrias remanescentes no Mercosul – o que obstaculizou sua consolidação enquanto união aduaneira –, os problemas criados com os desequilíbrios financeiros externos – agravados a partir das crises asiáticas e parcialmente aliviados mediante acordos com o FMI – e as negociações hemisféricas em torno Dida Sampaio/AE
do projeto americano da Alca, não muito bem-vista por diversos setores industriais do Brasil, mas que não sofreu maiores restrições em seu governo. FHC não chegou a freqüentar as reuniões do G-7 – nessa fase ampliado à Rússia pós-soviética – mas manteve contato muito estreito com vários líderes social-democratas do grupo, a exemplo de Bill Clinton e Tony Blair. Essa aproximação traduziu-se numa espécie de parceria informal entre FHC e o presidente americano, inclinado a ver o Brasil assumir um papel mais importante nos conflitos regionais – o caso da Colômbia e sua luta contra a narcoguerrilha sempre foi colocado em evidência –, com alguma relutância do próprio FHC, consciente dos limites impostos à capacidade de projeção externa do Brasil, em função de fatores objetivos. FHC tampouco insistiu na candidatura brasileira a um lugar permanente no CSNU, atento às objeções de princípio que seriam levantadas pela vizinha Argentina, cujas relações com o Brasil no plano bilateral e no âmbito do Mercosul ele sempre considerou estratégicas demais para colocá-las em perigo. As mudanças mais significativas na postura externa do Brasil e em algumas linhas de sua política externa ocorreram, obviamente, ao longo do primeiro mandato do presidente Lula (2003-2006), com novas ênfases e alianças preferenciais, uma nítida mudança no discurso e na forma de se fazer diplomacia, talvez mais do que em sua substância, com algumas correções de estilo e também de prioridades ao início do seu segundo mandato (2007). Ainda que a maior parte da agenda diplomática tenha apresentado mais elementos de continuidade do que de ruptura com a política anterior, alguns elementos inovadores devem ser destacados como identificadores das novas ênfases e prioridades. Ademais da forte ênfase no multilateralismo político, tradicional na diplomacia brasileira – mas agora com uma evidente inclinação "anti-hegemonista", isto é, contra o unilateralismo americano –, a preferência recai nitidamente na diplomacia Sul-Sul e no grande empenho em ver reforçado e ampliado o Mercosul, como a base de uma integração política e de consolidação de Sergio Dutti/AE
2003 Na Líbia, em dezembro, o presidente Lula encontrou-se com o líder Muammar Kadafi e ganhou uma espada de empresários.
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2004 Lula se protege do sol, durante uma visita, em maio, ao Palácio de Verão dos Imperadores, em Pequim.
um espaço econômico unificado na América do Sul. Junto com a intensa busca de uma cadeira permanente no CSNU e a eleição de alguns parceiros privilegiados como "aliados estratégicos" – nominalmente a África do Sul, a Índia e a China, com a eventual inclusão da Rússia, para alguns temas –, a volta ao "Terceiro Mundo" e a reafirmada vocação integracionista no âmbito sul-americano constituem, claramente, os grandes eixos da diplomacia de Lula. Ainda que a retórica sobre a liderança brasileira no continente tenha amainado bastante ao longo do primeiro mandato, essa pretensão foi de certo modo afirmada, mesmo que indiretamente, em seu início. O presidente Lula chegou a falar em "diplomacia da generosidade", a partir do tamanho e do poder industrial do Brasil, recomendando, aliás, aos importadores nacionais que comprassem mais dos países vizinhos, mesmo que a preços relativamente desvantajosos no plano dos negócios, como forma de equilibrar os fluxos de comércio e contribuir para a prosperidade comum na região. Promessas feitas quanto a financiamentos diretos aos países vizinhos, por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), não chegaram, contudo, a se materializar, a não ser sob a forma de operações vinculadas a vendas de bens e serviços (obras de engenharia) de empresas brasileiras em atividade nesses países. O ativismo diplomático na América do Sul, tendo a ampliação do Mercosul e a constituição de uma coordenação política como pano de fundo das diversas iniciativas empreendidas nessa região, pode, paradoxalmente, ter resultado em reações contrárias à ampliação da influência brasileira. Mesmo no Mercosul, as preocupações com o "peso excessivo" do Brasil podem ter influído na decisão dos países menores de apoiar o "ingresso político" da Venezuela no esquema integracionista do Cone Sul. Num sentido amplo, as autoridades diplomáticas e políticas brasileiras tinham a propor aos parceiros regionais e a outros países em desenvolvimento exteriores à região uma coalizão do Sul para "mudar as relações de força no mundo" (ou o "eixo da política mundial"), bem como para viabilizar a
criação de uma "nova geografia comercial", feita bem mais de intercâmbio no sentido Sul-Sul do que de uma suposta "dependência" do comércio "desigual" com o Norte. O que, de fato, os países cortejados pelo Brasil perceberam foi, de um lado, a busca prioritária de uma cadeira permanente no CSNU e, de outro, o desejo de imprimir sobre a América do Sul a marca dos interesses econômicos brasileiros, ou seja, dois objetivos nacionais apresentados como sendo a expressão de uma nova ordem multilateral contemplando o interesse de todos. Em ambos os aspectos, os resultados foram bastante modestos, para não dizer frustrantes, a despeito dos grandes investimentos diplomáticos realizados. Como explicação para esse descompasso entre os objetivos pretendidos e as realizações realmente alcançadas, alguns observadores aventaram a hipótese, não de falhas operacionais da agência diplomática brasileira – o Itamaraty –, mas de equívocos de concepção que se situam na própria origem da "nova diplomacia" brasileira. Esta recolhe vários elementos da "diplomacia partidária" do Partido dos Trabalhadores – formulados quando ainda na oposição – que não são necessariamente consensuais entre os parceiros designados como alvo das prioridades brasileiras. Os procedimentos utilizados, aliás, tinham mais a ver com a concepção do partido dominante na coalizão governamental do que com as concepções tradicionais do Itamaraty. Em resumo, as mudanças efetivamente ocorridas foram bem menos significativas ou importantes do que a agenda sugerida de "inserção soberana" na economia mundial, com a conseqüente redefinição da ordem econômica e política internacional. Isto se deve, provavelmente, ao peso do Brasil nos fluxos relevantes de bens, serviços, tecnologia e capitais, bem como no provimento de ajuda técnica e cooperação em escala mundial, seja relativamente modesto e parcimonioso em relação ao seu papel mais vocal e bastante visível nos principais foros negociadores internacionais. Assim, a despeito de um incremento significativo do comércio exterior brasileiro no decorrer do primeiro mandato do presidente
Celso Júnior/AE
Dida Sampaio/AE
2004 Com a medalha Gal. Eloy Alfaro, o presidente Lula participa de sessão solene do Congresso Nacional do Equador, em agosto.
2004 Em dezembro, o presidente participa da 3ª Reunião de Presidentes da América do Sul, em Cuzco, no Peru. Na foto, Lula usa roupas da região andina.
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Lula, com a ampliação de parceiros – sobretudo na dimensão Sul-Sul – e continuidade na diversificação da pauta, a participação do Brasil nos fluxos globais de comércio permanece modesta (em torno de 1%), dada a contínua elevação de seus níveis, a taxas que representam o dobro, em média, do crescimento do PIB mundial. Em qualquer hipótese, em função de uma modesta colheita de resultados, a implementação prática da diplomacia regional e da orientação Sul-Sul, reafirmadas ao início do segundo mandato, parece estar encaminhando-se para um maior grau de pragmatismo, do que foi o caso no primeiro período. 2. Quais motivos e interesses guiam o Brasil na tentativa de moldar uma nova política externa? As novas prioridades da política externa brasileira foram razoavelmente explicitadas em diversas ocasiões, desde o discurso inaugural do presidente Lula, em janeiro de 2003, passando por pronunciamentos em encontros quando de visitas oficiais ao Brasil e de suas próprias viagens ao exterior, por uma intensa agenda de contatos diplomáticos mantidos em encontros regionais e multilaterais, bem como pela reafirmação dessas mesmas prioridades quando da reinauguração presidencial. Em 1º de janeiro de 2007, por exemplo, Lula afirmou que o Brasil tinha mudado para melhor "na estabilidade monetária; na robustez fiscal; na qualidade da sua dívida; no acesso a novos mercados e a novas tecnologias; e na redução da vulnerabilidade externa". De fato, neste discurso mais recente, a situação externa do Brasil tinha conhecido considerável melhora. Ele reafirmou a "clara opção (do Brasil) pelo multilateralismo", as "excelentes relações políticas, econômicas e comerciais (mantidas) com as grandes potências mundiais", ao mesmo tempo em que confirmou a prioridade dada aos "laços com o Sul do mundo", em especial com a África, descrita como "um dos berços da civilização brasileira". O "entorno sul-americano" foi novamente enfatizado como o "centro" da sua política
externa, ao dizer que o Brasil "associa seu destino econômico, político e social ao do continente, ao Mercosul e à Comunidade Sul-Americana de Nações" (esta última transformada em Unasul, União das Nações Sul-Americanas quando de reunião na Venezuela, em abril de 2007). Essas são, portanto, as prioridades de política externa do Brasil, adotadas em função de uma visão do mundo que combina tanto as prioridades tradicionais do establishment diplomático profissional – uma vez que o ministro das relações exteriores continua a ser um diplomata de carreira –, quanto a perspectiva própria à esquerda, em geral, e ao Partido dos Trabalhadores, em particular. De fato, mais do que em qualquer outra área de atividade executiva governamental – e certamente não na política econômica, que continua a se pautar pelos padrões conservadores da administração anterior, para grande desconforto dos militantes do partido – é na política externa que as escolhas do governo Lula mais se parecem com as antigas opções políticas do PT, aliás seguidas fielmente em várias de suas vertentes (em especial na diplomacia Sul-Sul e nas alianças "estratégicas" com alguns grandes atores não-hegemônicos). Essas prioridades vêm sendo perseguidas mediante uma variedade de meios tradicionais – próprios à diplomacia profissional do Itamaraty, reputado pela excelência dos seus quadros –, por meio de uma especialmente ativa diplomacia presidencial – ainda que esta não seja designada por este conceito, com vistas a não identificá-la como uma continuidade do antigo estilo diplomático do presidente FHC – e através de uma modalidade de atuação relativamente inédita para os padrões da política externa brasileira, que poderia ser descrita como "diplomacia partidária", feita de alianças privilegiadas com os aliados progressistas e esquerdistas do período oposicionista anterior, quais sejam, os partidos de orientação socialista e marxista (agrupados, em grande medida, no Foro de São Paulo ) e os movimentos sociais, cuja agenda política e foco de atuação estão obviamente mais próximos daqueles do Fórum Social Mundial do que os do Fórum Eco-
Joedson Alves/AE
Celso Júnior/AE
2005
2005
O presidente Lula veste o Pano Kempe, do povo Dubar, em recepção na embaixada brasileira em Accra, em Gana, África, em abril.
Em fevereiro, Lula é presenteado com um colar de boa sorte dos povos indígenas da Guiana, ao desembarcar em Georgetown.
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nômico Mundial, de Davos. Esses objetivos representam uma combinação de fatores vinculados a políticas domésticas e setoriais (como, por exemplo, a necessidade de vincular-se a uma agenda progressista ou social, para compensar a adesão pouco confortável a uma política econômica conservadora), mas também retomam antigas tradições da diplomacia brasileira, como a chamada "política externa independente", formulada e implementada nos governos progressistas que antecederam ao regime militar iniciado em 1964. Essa última agenda pode ser apresentada como uma afirmação de posições autônomas (em relação aos Estados Unidos, obviamente) nos campos da política e da economia internacional, em matéria de segurança e de estabilidade estratégica, com ênfase nos temas do desenvolvimento econômico e de "espaços nacionais" de políticas setoriais, ademais da prioridade concedida à integração regional latino-americana (atualmente sul-americana). A afirmação autônoma do Brasil no mundo deve se dar, sobretudo, através do reforço dos foros e modalidades próprias ao sistema multilateral, através do qual o Brasil, dotado de reduzida capacidade de projeção externa (em termos militares ou financeiros) poderia exercer maior influência nos processos globais. Cabe destacar, quanto aos princípios diretores que sustentam a atual diplomacia brasileira, que a política externa, no governo Lula, é chamada a desempenhar um papel auxiliar no processo brasileiro de desenvolvimento. Não existe, a rigor, nenhuma novidade conceitual ou operacional nesse tipo de "instrumentalização" da diplomacia brasileira: de modo geral, essa visão política, quanto à sua funcionalidade para o desenvolvimento do País, acompanha, no plano histórico, as grandes preocupações brasileiras desde a tomada de consciência do atraso relativo do Brasil em relação às principais potências desenvolvidas, em torno dos anos 1930 (na seqüência, portanto, da grande crise que afetou bastante o País). Mais de um autor já se referiu, no passado, a essa orientação geral como representando uma "diplomacia do desenvolvimento". O que pode haver de novidade no governo do presidente Lula é que
essa mesma "ideologia" da política externa é inserida, pelo menos teoricamente, no quadro de um "projeto nacional", que deveria ainda ser marcado pela integração soberana na economia mundial e pela mudança nas "relações de força" do mundo. Essa postura vem sendo expressa em reiteradas declarações a respeito do "reforço do multilateralismo" – em oposição ao que seria o unilateralismo da atual potência hegemônica –, bem como quanto a uma "mudança na geografia comercial mundial". Esta última idéia evidencia o desejo manifesto da atual administração de lutar por uma união dos países em desenvolvimento de molde a habilitá-los a negociar, em melhores condições políticas, uma alteração no padrão de trocas prevalecente entre o Norte e o Sul, considerado desigual, notadamente no que se refere ao protecionismo agrícola, aos subsídios à produção e às subvenções às exportações nessa área. Em função dessas idéias, o Brasil lançou-se em diversas iniciativas diplomáticas que engajaram tanto o corpo profissional como o próprio presidente da República, convertido num dos principais articuladores do novo ativismo brasileiro. A ofensiva foi conduzida desde o primeiro dia da nova administração, quando, aproveitando a presença em Brasília, para a posse de Lula, dos ministros das relações exteriores da Índia e da África do Sul, o Brasil propôs a criação do G3, ou IBAS. O mesmo ativismo manifestou-se, por exemplo, na constituição do G-20, quando da reunião ministerial da OMC em Cancún (setembro de 2003), apontado como um instrumento essencial para alcançar aqueles objetivos de "mudança na relação de forças" e de criação de uma "nova geografia comercial internacional". Todas as modalidades de ação diplomática – nos planos bilateral, regional, multilateral, bem como propostas de foros e grupos mais flexíveis de ação, tanto no plano governamental, da sociedade civil e de contatos políticos com partidos e organizações não-governamentais – estão sendo mobilizadas e desenvolvidas, com vistas a reforçar a capacidade do Brasil de influenciar políticas nos níveis regional e global. Aquelas áreas que possuem uma interface direta com a sociedade civil – como
Ricardo Stuckert/PR
Beto Barata/AE
2007
2007 O presidente Lula chega de helicóptero ao Hotel Belvedere para participar do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, em janeiro.
Acompanhado da rainha Sonja, Lula participa em setembro de jantar oferecido pelo rei Harold no Palácio Real, em Oslo, na Noruega.
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Lula Mraques/Folha Imagem
No governo Lula, a assessoria presidencial foi reservada para um antigo secretário de relações internacionais, na pessoa do professor Marco Aurélio Gracia.
a questão do meio ambiente e a luta contra a Aids, por exemplo – servem de terreno de manobra ao que já foi descrito como uma "diplomacia engajada" e especialmente ativa. Os atores que participam da formulação e da implementação da política externa brasileira atual são vários, situados em planos diversos e com discursos por vezes não coordenados, o que pode dar a impressão de fragmentação do processo decisório, que de fato surge da convergência de vetores distintos, em contraste com a relativa unidade organizacional e conceitual encontrada em administrações anteriores. Tradicionalmente, a diplomacia ficava resguardada na própria sede das relações exteriores, isto é, o Itamaraty, que também fornecia os conselheiros presidenciais e os assessores internacionais de outras agências públicas. No governo Lula, ademais do histórico anterior de posições em política internacional do PT, a assessoria presidencial foi reservada para um antigo secretário de relações internacio-
nais, na pessoa do professor Marco Aurélio Garcia. Sindicatos e movimentos sociais também se mobilizaram em torno de seus temas prediletos, seja em apoio ou em oposição a determinadas questões da agenda internacional, com destaque para as negociações comerciais hemisféricas da Alca e a chamada "diplomacia Sul-Sul". Três exemplos podem ilustrar a composição ampliada dos novos "insumos" em matéria de política externa. Antes da posse do governo Lula, foi organizada enorme campanha anti-Alca, da qual participaram vários movimentos da base social, política e sindical de apoio ao PT, tendo o partido mantido formalmente uma posição neutra por razões puramente eleitorais. Tratou-se de uma mobilização ideológica, no sentido de que as negociações em torno de um acordo da Alca não estavam terminadas e sequer tinham sido definidos seus contornos comerciais mais importantes. Mas essa oposição maciça forçou, de certo modo, sua rejeição no plano diplomático. No caso da diplomacia "ao Sul", ela se traduziu, na prática, pela escolha seletiva de parceiros "estratégicos" situados nessa vertente, componente ainda reforçado pelo elemento político-partidário da opção preferencial por líderes políticos de orientação esquerdista ou progressista, com manifestações de apoios pré ou pós-eleitorais – em campanhas presidenciais em vários países sulamericanos – que destoam da tradicional postura discreta da diplomacia brasileira em matéria de política interna de outros países. Ainda na mesma vertente, a postura protagônica que o Brasil pretende assumir no contexto dos países em desenvolvimento pode diluir posições mais ofensivas que o País poderia adotar no âmbito de negociações comerciais multilaterais – de que são exemplos contradições dentro do próprio G-20 entre o Brasil, de um lado, e a China e a Índia, de outro, ou entre este grupo e o G-33, de países dependentes de importações agrícolas – ou no quadro de um possível diálogo com o G-7/8 e com os países da OCDE. Finalmente, um terceiro exemplo da influência de atores "externos" na atual diplomacia também evidencia a existên-
Adaberto Roque/AFP
2008 Em janeiro, o presidente Lula vai a Cuba e visita o amigo Fidel Castro, que recentemente renunciou à presidência após 49 anos no poder.
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João wainer/Folha Imagem
cia de prioridades conflitantes no campo da política externa oficial: a solidariedade entre partidos e movimentos de esquerda se revela problemática no caso da Colômbia, uma vez que um dos grupos guerrilheiros que alimentam a cruel guerra civil no país vizinho, as Farc, é membro, como o PT, do Foro de São Paulo, o que pode ter levado a uma postura complacente do governo brasileiro na concessão de asilo político a representante daquele grupo no Brasil, acusado de ações criminosas comprovadas pelo governo da Colômbia. O Brasil é, reconhecidamente, vítima da narcoguerrilha colombiana, seja pelo contrabando de armas, seja pela passagem de drogas (que abastecem crescentemente o consumo nas metrópoles brasileiras), seja ainda pela lavagem de dinheiro e outras operações do crime organizado. Esses diversos atores participando da formulação ou da implementação da política externa podem, portanto, determinar uma rota político-diplomática relativamente inédita para os padrões tradicionais do Itamaraty, da mesma forma como alguns dos novos "aliados estratégicos" podem influenciar ou mesmo determinar a posição do Brasil em foros multilaterais de interesse setorial: seria o caso, por exemplo, de direitos humanos – em relação à China ou a Cuba, entre outros – ou de temas ambientais ou ecológicos, com o envolvimento de grupos de pressão que encontram eco em diversos setores do governo. O mesmo pode ser dito de movimentos "camponeses" que – sem mencionar as violações do direito interno, sob a forma de invasões de propriedades – se colocam abertamente contra o agronegócio e o comércio liberalizado nessa área, fragilizando a posição negociadora do Brasil na tentativa de conciliar demandas opostas numa mesma agenda. Como a política externa se tornou relevante tanto no plano interno – na medida em que ela permitiu atender a aspirações de partidos e de movimentos de esquerda – como no externo, em função do novo ativismo diplomático, sobretudo em direção ao Sul, ela despertou, naturalmente, um debate interno como jamais se viu no campo das relações internacionais do Brasil. Os meios de comunicação, a comunidade acadêmica – geralmente alinhada à esquerda – e os empresários e líderes patronais dos setores industrial e agrícola se mobilizaram em torno das principais opções de política externa do governo Lula. Pela primeira vez em muitos anos, a diplomacia brasileira parece ter perdido a unanimidade favorável no seio da sociedade de que ela desfrutou em outros períodos, em grande medida em função das posições políticas já referidas, que derivam de antigas orientações políticas do PT. Ressalte-se, de fato, que um dos poucos elementos da agenda governamental que recolhe o apoio indiscutível do principal partido governamental é a política externa, todos os demais sendo objeto de algum tipo de questionamento interno. No quadro mais amplo da opinião pública bem informada, o debate se dá sobretudo no campo da política comercial – negociações multilaterais, integração regional e acordos preferenciais com países em desenvolvimento – e nos temas da cooperação com os vizinhos sul-americanos, em virtude da instabilidade política e das opções ideológicas em alguns deles.
Acima, gerrilheiros colombianos das Farc, que assim como o PT, são membros do Foro de São Paulo. Abaixo, reunião do Conselho de Segurança da ONU, em que o Brasil deseja uma cadeira permanente.
David Karp/AP/AE
3. Quais estratégias de política externa derivam da postura do Brasil e onde se situa o seu foco? De forma geral, pode-se dizer que, com a nova administração Lula, todos os instrumentos e modalidades de política externa – multilateralismo, relações bilaterais e mecanismos informais de cooperação – foram mobilizados para promover as novas prioridades diplomáticas. Os foros multilaterais são naturalmente privilegiados para o tratamento dos temas globais, em especial em comércio, meio ambiente, cooperação técnica e financeira para o desenvolvimento, direitos humanos e desarmamento. No campo da integração regional, há uma combinação de ferramentas bilaterais – sobretudo com a Argentina – e de esforços de coordenação plurilateral para a criação de condições favoráveis ao avanço da integração física na América do Sul: energia, transportes, comunicações de modo geral.
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Uma das principais prioridades da diplomacia de Lula – de fato a mais importante – foi a conquista de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, objetivo em função do qual uma variedade de estratégias e instrumentos foram utilizados pela diplomacia profissional e pelo próprio presidente da República. O tema foi inscrito em todas as conversações bilaterais, aparecendo em praticamente todas as declarações bilaterais quando o Brasil lograva a obtenção do apoio em questão, em alguns casos, tendo como contrapartida o cancelamento de antigas dívidas bilaterais – caso de vários países africanos e de alguns latino-americanos – ou o aumento e a extensão da cooperação para o desenvolvimento para quase todos os interlocutores de menor desenvolvimento relativo. Esse objetivo foi, provavelmente, o elemento subjacente à decisão brasileira de liderar a missão de estabilização da ONU no Haiti, com o engajamento de recursos importantes nos planos militar, diplomático e financeiro. Ele também foi decisivo para a liquidação dos débitos contributivos do Brasil em praticamente todas as agências multilaterais. Ele também
sua causa já está em grande medida ganha em vista dos apoios já conquistados um pouco em todos os cenários. A conquista de uma cadeira permanente no CSNU, mesmo sem direito de veto, é vista pelo establishment diplomático e militar do Brasil como um símbolo relevante do status do País como grande ator internacional. Ainda que o tema esteja sendo debatido em termos regionais, o Brasil não necessariamente considera a sua candidatura como emanando de qualquer mandato a ser conferido pela região geográfica de origem, tendendo a ver sua aspiração como um reconhecimento de seu importante papel em prol da construção da paz e do desenvolvimento em bases verdadeiramente universais. Existe um virtual consenso entre as elites, e um apoio "virtual" em praticamente todas as camadas da sociedade – ainda que o tema, e sobretudo os custos e as contrapartidas que dele derivam, não tenha sido extensamente debatido fora da elite –, sobre a legitimidade desse pleito, situação que não se reproduz em relação a um possível ingresso do Brasil na OCDE. O acesso à organização de Paris é visto como uma "graduação" indesejada do País ao "clube dos ricos", o que poderia Evelson de Freitas/AE dificultar o diálogo e a coordenação de posições com os vizinhos e os demais países em desenvolvimento, sem mencionar os efeitos práticos em termos de tratamento preferencial no plano multilateral – SGP e outras facilidades comerciais – e de novas obrigações a serem assumidas no tratamento de temas globais O governo Lula vê a assunção do Brasil a círculos mais elevados de responsabilidade internacional – o que poderia se materializar num G-8 ampliado a G-13, por exemplo – como o reconhecimento de sua importância própria no contexto da economia e da política mundiais, mas provavelmente prefere que essa elevação de status se dê em conjunto com outros atores globais que ele mesmo considera relevantes: seria o caso da Índia, da China e possivelmente da África do Sul, países com os quais a diploO Exército brasileiro lidera a Força de Paz da ONU no Haiti, com o engajamento macia brasileira considera haver maior aproxide recursos importantes nos planos militar, diplomático e financeiro. mação de conceitos quanto às novas regras de uma governança global, livre do unilateralismo e das manifestações mais arrogantes da política de grande potência. O Brasil não acredita que se possa esensejou um debate de alto nível com os demais candidatos detabelecer nenhum "concerto de superpotências", preferindo clarados, resultando daí a formação do G-4 – com a Alemanha, enfatizar o reforço das instituições multilaterais e dos foros rea Índia e o Japão – para o estabelecimento de uma posição cogionais como o caminho ideal para afirmar o primado do dimum nos debates em torno da reforma da Carta de São Franreito internacional e da cooperação num sistema mais democisco e da ampliação do CSNU. O Brasil conseguiu o apoio decrático do que o atualmente existente. clarado de pelo menos dois membros permanentes – a França A despeito de seu firme engajamento na não-proliferação e o Reino Unido –, o apoio ambíguo de um terceiro – a Rússia – nuclear, nos instrumentos de controle de armas de destruição e a não-oposição aberta dos EUA. Uma estratégia de aproxiem massa de todos os tipos, e nos regimes restritos de controle mação e de "conquista" da China foi tentada por diferentes de materiais e equipamentos sensíveis (uso dual), o Brasil não meios – com o seu reconhecimento formal enquanto "econoconsidera aceitáveis os esquemas que perpetuam os sistemas mia de mercado" –, mas o Brasil provavelmente esperava que o discriminatórios atualmente existentes, a exemplo do próprio país asiático fosse mais positivo na agenda da ampliação. TNP. O desarmamento convencional não é enfatizado pela sua A despeito da oposição aberta da Argentina, na região, e do diplomacia e pelo establishment militar, mas o Brasil é um dos pequeno entusiasmo dos EUA por uma ampliação "exagerapaíses de menor gasto militar per capita, na região ou no munda", o Brasil considera que os esforços não foram em vão e que
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Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
O principal foco de atuação política, econômica e estratégica do Brasil está centrado na América do Sul. Na foto, o presidente Lula participa, juntamente com os ministros Celso Amorim (esq.) e Guido Mantega (dir.), de reunião do Mercosul.
do, e vem de fato atuando como um elemento de pacificação e de estabilização política no âmbito regional, com aspirações a desempenhar o mesmo papel em cenário mais amplo. O Brasil foi o articulador e vem sendo o principal animador da Zona de Paz e de Cooperação no Atlântico Sul, e por isso mesmo não favorece a idéia de ser constituído qualquer esquema defensivo – modelado num esquema similar ao da OTAN – no âmbito dessa região geográfico-marítima. O principal foco de atuação política, econômica e estratégica do Brasil está obviamente centrado na América do Sul, conceito que vem sendo enfatizado pela diplomacia brasileira desde o início dos anos 1990, em substituição à noção politicamente vaga e geograficamente difusa de América Latina. As iniciativas adotadas pela diplomacia brasileira na região – a exemplo da Alcsa, proposta quando do lançamento da Alca, ou de uma rede de acordos comerciais entre o Mercosul e os países sul-americanos, como também da Comunidade SulAmericana de Nações, agora convertida em Unasul – vêm sendo, contudo, complicadas, seja pelo quadro de instabilidade política vivida em vários países da região andina e caribenha, seja em virtude do grande poder de atração exercida pelos EUA, sobretudo no terreno financeiro, comercial e de investimentos, áreas nas quais o Brasil apresenta menores condições competitivas do que o gigante do norte. Os próprios desacordos entre os países da região quanto às suas prioridades respectivas e a desconfiança histórica em relação ao peso específico do Brasil vêm dificultando o exercício do que muitos observadores consideram ser a "liderança natural" do Brasil numa região ainda pouco integrada fisicamente – os obstáculos geográficos são respeitáveis – e com grandes disparidades econômicas e sociais – as chamadas "assimetrias". A noção de "liderança regional" foi sempre afastada pela diplomacia tradicional do Brasil, pelo reconhecimento dos problemas que uma afirmação desse tipo causaria na região, mas ela foi por um mo-
mento "flertada" pela atual diplomacia, com base inclusive em demandas feitas por alguns dos países menores (talvez desejosos de uma cooperação econômica mais importante, obviamente em bases não-recíprocas). A despeito da magnitude do seu PIB e do avanço de sua indústria, o Brasil dispõe, contudo, de condições insuficientes para prover ajuda, nos mesmos moldes dos países do CAD-OCDE (Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ainda assim, ele assumiu, voluntariamente, um papel de "corretor de assimetrias" e vem impulsionando esquemas de reconversão produtiva e de capacitação econômica e infra-estrutural em favor dos países menores, aceitando, por exemplo, ser o principal provedor – à razão de 70% – num fundo de financiamento compensatório no âmbito do Mercosul. Mesmo adotando princípios de política econômica bem mais cautelosos – e ortodoxos – do que a maioria dos países da América do Sul (à exceção, possivelmente, do Chile), ele participa de discussões e negociações em torno de esquemas de financiamento ao desenvolvimento com base em recursos públicos, como poderia ser a eventual criação de um Banco do Sul, em moldes similares aos do Banco Inter-americano de Desenvolvimento (BID) ou da Corporación Andina de Fomento (CAF), da qual o Brasil tornou-se membro em 1996. Algumas diferenças de opinião se manifestaram entre o Brasil e alguns países da região, sobretudo a respeito da cooperação energética e o peso relativo dos combustíveis fósseis e das energias renováveis – o Brasil é um grande produtor de etanol a partir da cana-de-açúcar e já desenvolveu esquemas de cooperação tecnológica com os EUA para estimular o seu uso em âmbito internacional –, o que não o impede de continuar a buscar os entendimentos possíveis para a plena integração física do continente. A integração energética se revela mais complicada do que o previsto inicialmente, uma vez que ela contempla países fornecedores – Venezuela e Bolívia, notadamente, mas também o Peru e o Equador – e países consumidores – Bra-
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Fábio Motta/AE
O Brasil está interessado em promover o uso intensivo de combustíveis verdes em escala global, mobilizando sobretudo os países africanos, a partir de financiamento dos países desenvolvidos e da tecnologia brasileira. Na foto, usina Santa Cruz (RJ).
sil, Argentina e Chile –, com interesses não necessariamente conflitantes, mas talvez não exatamente coincidentes. O Brasil vem experimentando dificuldades para o cumprimento dos tratados de cooperação e dos acordos de exploração de gás firmados com a Bolívia nos anos 1990, que na verdade foram modificados unilateralmente pelo país andino a partir de 2004 (aprovação da lei de renacionalização dos hidrocarbonetos), culminando com o decreto de nacionalização de 1º de maio de 2006 e a ulterior expropriação dos ativos da Petrobras naquele país. Diante de tal situação de insegurança jurídica, deve, ademais, analisar com cuidado a proposta venezuelana de um enorme gasoduto unindo seus imensos campos de gás aos consumidores brasileiros e argentinos. Suas iniciativas nessa área transcendem inclusive o cenário regional e o âmbito meramente comercial, uma vez que o Brasil está interessado em promover o uso intensivo de combustíveis verdes em escala global, mobilizando sobretudo os países africanos, a partir de financiamento dos países desenvolvidos e da tecnologia brasileira, amplamente competitiva nessa área. Essa "liderança não consentida" na região sul-americana – não assumida plenamente, mas ainda assim real, em termos de mercados, de investimentos brasileiros crescentes e de projetos de obras transfronteiriças de infra-estrutura –, não implica que o Brasil pretenda falar em nome dos demais países, inclusive porque estes não permitiriam que isto ocorresse, por uma série de razões históricas e geopolíticas. Não apenas a Argentina reluta fundamentalmente em reconhecer no Brasil um protagonismo de qualquer espécie, mas mesmo os pequenos desconfiam do ânimo "solidarista" do Brasil, preferindo compensar sua "massa atômica" mediante arranjos de diluição de poder. O Mercosul, por exemplo, não possui nenhum mecanismo decisório que seja ponderado em função do peso relativo dos seus membros, cabendo a todos os membros um po-
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der igualitário de veto sobre toda e qualquer decisão ou resolução. O Parlamento do bloco, da mesma forma, foi constituído com base numa representação igualitária, não proporcional. Cabe ressaltar, em qualquer hipótese, que a diplomacia regional do segundo mandato do presidente Lula vem sendo conduzida por meio de procedimentos mais cautelosos, e bem mais realistas, do que tinha sido o caso no primeiro período. Com efeito, o entusiasmo com a causa da integração e as iniciativas políticas adotadas de maneira relativamente impetuosa na fase inicial logo se chocaram com realidades políticas distintas, em cada cenário sub-regional, e com fatores internos e externos de instabilidade política ou de "desalinhamento" em relação ao Brasil. O projeto mais ambicioso do Brasil, que era lograr a ampliação do Mercosul, como base tanto do exercício da liderança regional como da "resistência continental" à Alca, não conseguiu superar as mesmas dificuldades que já tinham paralisado o bloco desde a crise de 1999: diferenças de competitividade entre os membros e estruturas industriais não integradas e pouco complementares continuam a impedir o pleno funcionamento da união aduaneira a partir de uma tarifa externa comum uniformemente aplicada por todos. A Alca foi barrada, no encontro presidencial de Mar del Plata (novembro de 2005), mas apenas para ressurgir sob a forma de uma rede de acordos bilaterais comandados pelos EUA. Em 2006, o Mercosul foi ampliado à Venezuela, mas sua adesão foi uma decisão de ordem essencialmente política, cabendo ainda serem de fato observados os prazos previstos no protocolo de convergência para sua plena incorporação ao regime aduaneiro comum e a todo o acervo de normas internas. Na verdade, o Mercosul não possui, a exemplo da antiga Comunidade Econômica Européia, um acquis communautaire que sirva de base à construção progressiva de um mercado comum: as diferenças não são apenas institucionais, mas também de ordem política.
Paulo Pampolin/Hype
No plano bilateral, por exemplo, o Brasil teve de acomodar reclamações argentinas, aceitando diversas restrições unilaterais ao livre comércio, antes de consolidar o novo regime de exceções num protocolo de salvaguardas, eufemisticamente chamado de "Mecanismo de Adaptação Competitiva". No plano da integração sul-americana, o "fardo da liderança" nem chegou a ser exercido, uma vez que a Comunidade Sul-Americana de Nações permaneceu um projeto ainda a caminho de implementação: quando de sua constituição, por exemplo, em encontro regional realizado no Peru (dezembro de 2004), nenhum dos três outros presidentes do Mercosul compareceu à cerimônia. Não é seguro que, sob seu novo nome de Unasul – proposto pelo presidente da Venezuela Hugo Chávez – e contando com um secretariado em Quito, a nova entidade consiga superar as diferenças de visões e de objetivos que alimentam cada um dos líderes da região. 4. O que tudo isto significa para a ordem internacional ? O Brasil ocupa uma posição singular, não necessariamente única, mas específica, a seu modo, no sistema de relações internacionais contemporâneas. Trata-se certamente de um paíscontinente que, em análises exploratórias, já pôde ser enquadrado na categoria de "países-baleia" – ou monster-countries, como uma vez referido por George Kennan, junto com outros gigantes, como os EUA, a Rússia e a China – ou ainda "países-âncora", como parece preferir a sociologia política germânica. Esse tipo de caracterização política é certamente ambígua, uma vez que a dimensão primária dos dados populacionais ou da extensão do território nem sempre corresponde a uma importância proporcional no plano da política internacional ou da economia mundial, como ocorreu durante certo período do século 20 com a China, ou no seu final com a Rússia. Junto com esses grandes atores, emergentes ou já enquadrados na categoria de grandes potências, o Brasil está presumivelmente destinado a desempenhar um futuro papel de relevo nos cenários evolutivos da governança global, mais provavelmente pelo lado da economia do que na vertente estratégico-militar, haja vista ser grande produtor de commodities – primeiro fornecedor mundial de uma longa lista de produtos primários, geralmente de base agrícola – e dotado de imensas reservas de recursos naturais e produtos da biodiversidade. O Brasil foi, durante muito tempo, aliás, em seus três ou quatro primeiros séculos como nação, basicamente um ofertante eficiente de "produtos de sobremesa" – açúcar, café, cacau e alguns poucos outros –, complementando atualmente essa linha de matérias-primas com uma vasta gama de muitos outros insumos de origem primária, além de alguns bens manufaturados de baixa intensidade tecnológica. Hoje, ele continua a ser um fornecedor competitivo de commodities, mas também comparece na linha de frente de algumas tecnologias de ponta, como a aeronáutica civil (Embraer). Futuramente, e pela primeira vez em sua história econômica, o Brasil se tornará um fornecedor relevante de energias renováveis – etanol à base de cana-de-açúcar e biocombustíveis em geral –, não apenas pelo lado do produto em si, mas igualmente na sua dimensão tecnológica e científica.
O baixo crescimento econômico deve persistir, por conta da alta carga tributária. Na foto, Impostômetro da ACSP.
O Brasil foi aparentemente penalizado, em sua história econômica passada, pela ausência de fontes abundantes de energia – carvão ou petróleo, na primeira e na segunda revolução industrial –, o que, junto com a baixa qualificação educacional da população, atrasou seu processo de industrialização e de inserção na moderna economia industrial. Hoje plenamente industrializado, mas ainda arrastando uma pesada carga de atraso educacional e baixa produção tecnológica – a despeito de uma notável ascensão na produção científica de tipo universitário –, o Brasil se prepara para assumir um papel de maior relevo econômico no âmbito da globalização. As baixas taxas de crescimento econômico registradas nas últimas duas décadas – depois de um notável desempenho na agregação de valor ao PIB, junto com o Japão, durante os primeiros oitenta anos do século 20 – devem persistir no futuro previsível, em razão da elevada carga fiscal do Brasil, comparativamente aos demais emergentes: os gastos públicos representam cerca de 38% do PIB, similar à média da OCDE, em face da média de
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Ricardo Padue/AFG
Desigualdade social: o Brasil ainda manterá, durante uma ou duas gerações, um perfil iníquo na distribuição de renda, com um alto coeficiente de Gini comparativamente à média mundial, mas a tendência parece ser a de uma redução lenta (...)
28% dos países emergentes e de uma taxa ainda mais reduzida para os mais dinâmicos dentre eles (17 e 18% para China e Chile, por exemplo). Com efeito, o exercício conduzido em torno dos Brics pelos dois economistas do Goldman Sachs confirma que o Brasil é o país de menor dinamismo relativo nesse conjunto, conseguindo ultrapassar a França e a Alemanha apenas depois de 2030. Mas, ainda que ele venha a manter a taxa média, bastante moderada, de 3,5% de crescimento do PIB no horizonte 2050, isto bastaria para enquadrá-lo no novo G-6 da economia mundial prevista nesse estudo. Do conjunto dos Brics, aliás, o Brasil é o país que apresenta as melhores estruturas de mercado, fruto de um capitalismo que foi se desenvolvendo de modo relativamente "ortodoxo" ao longo do século 20 (em face dos diversos experimentos socialistas dos outros três). A despeito das disfunções geradas por um Estado intrusivo e por uma pesada carga tributária – em grande medida responsáveis pelos altos custos de transação e pela elevada informalidade geral – o Brasil moderno possui instituições de governança estatal ou corporativa relativamente desenvolvidas e funcionais para fins de inserção nos circuitos da economia globalizada. Se o País conduzir um novo pacto social – o pacto anterior, gerado pela Constituição de 1988, sobrecarregou as despesas públicas, justamente –, no sentido de diminuir o peso da tributação e da regulação excessivas, podem estar surgindo as condições para que o Brasil ingresse num círculo virtuoso de crescimento sustentado (ainda que a taxas relativamente mais modestas do que as dos demais emergentes), com preservação da estabilidade macroeconômica, uma situação certamente inédita para os padrões inflacionários conhecidos ao longo do século 20. O Brasil ainda manterá, durante uma ou duas gerações, um perfil iníquo na distribuição de renda, com um alto coeficiente de Gini comparativamente à média mundial, mas a tendência pa-
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rece ser a de uma redução lenta, mas segura, com base na manutenção da estabilidade macroeconômica, investimentos educacionais e transferências governamentais. No plano da sua presença internacional, o Brasil, junto com alguns outros grandes atores, como a Indonésia e a República da África do Sul, não parece ser "satelitizável", como pode ter ocorrido com alguns outros países emergentes da periferia. Ainda que seja uma orientação difusa em certos meios da elite, o establishment diplomático-militar e as lideranças empresariais do Brasil parecem propensos a impulsionar uma inserção soberana no sistema de poder econômico e político mundial, não sendo assim de esperar que o Brasil venha simplesmente a aderir a qualquer esquema restrito de poder internacional liderado por um ou outro dos grandes atores da atualidade. A clara noção da independência política nacional e de uma expressão econômica própria no contexto global parecem ser sentimentos comumente partilhados pelas diferentes elites que se sucederam no comando político do Brasil ao longo do período moderno. Ainda que, em algumas épocas, algumas delas alimentassem ilusões de uma "relação especial" com os EUA – o grande aliado objetivo do período da Guerra Fria –, não parece subsistir nenhuma vocação atual a inserir o Brasil no "grande Ocidente liberal" – qualquer que seja a definição deste último –, ou num sistema internacional dominado exclusivamente pelos EUA. A orientação geral das elites brasileiras é a de buscar alianças diversas, de caráter mais pragmático do que ideológico, e desenvolver o potencial do País segundo uma combinação de elementos políticos, inclusive diplomáticos, e de fatores econômicos – com base em evidentes vantagens comparativas, de cunho "ricardiano" –, de modo a permitir a plena afirmação soberana do Brasil no cenário internacional. Obviamente, uma evolução positiva em direção à desejada inserção soberana e à
assunção de uma maior presença econômica mundial depeneconomia. Mesmo após 20 anos, os esforços para implementar de de que seja bem-sucedida uma série de reformas internas reformas vitais nas instituições brasileiras estarão ainda em para permitir maior aceleração no crescimento econômico e curso. Apesar de que a situação tenderá a apresentar alguma consolidar o processo de transformações estruturais, que remelhoria, o assim chamado "custo-Brasil", um problema de tirará, definitivamente, o País da categoria de "país em desengovernança, continuará a dificultar os esforços para modernivolvimento" para a de "plenamente desenvolvido". zar inteiramente sua economia. O sistema tributário complexo Esse itinerário otimista não pode ainda ser garantido. Cenáe pesado do Brasil, guerras fiscais entre os Estados e limites à rios prospectivos desenhados pela antiga Secretaria de Assuninfra-estrutura interna de transportes persistirão. Tirando tos Estratégicos da Presidência da República no final dos anos vantagem da fome na Ásia e de seus vínculos reforçados com a 1990 permitiram traçar três evoluções possíveis para o Brasil no Europa, o Brasil conseguirá compensar suas debilidades eshorizonte 2020. Segundo um cenário exploratório mais otimistruturais graças a seu robusto setor do agribusiness. A grande ta, "em 2020, o Brasil é uma potência econômica sólida e moderdívida e sua vulnerabilidade à inflação também continuarão a na, mas ainda apresenta níveis de desequilíbrio social". Tem-se ser matérias de preocupação." a aceleração do crescimento econômico, mas "registram-se ainEm resumo, o Brasil continuará a avançar, mas aparenteda graves problemas sociais e regionais, por mente não num ritmo que o coloque no peloforça da persistência da má distribuição de rentão de frente da economia mundial no futuro da e da concentração espacial da economia". imediato, considerando-se, é claro, que neNum cenário intermediário, em contrapartida, nhum grande problema econômico ou social O País o Brasil de 2020 "apresenta-se como uma socievenha perturbar o cenário prospectivo relaticontinuará a dade mais justa. O papel do Estado concentravamente otimista traçado no estudo da Goldavançar, mas se na redução da pobreza absoluta e do hiato man Sachs. Em qualquer hipótese, sua presenaparentemente entre ricos e pobres, (mas) a participação do ça nesse G-6 apresenta implicações sobretudo País no comércio exterior permanece em meeconômicas, não derivando para conseqüênnão num ritmo nos de 1%." Num outro cenário exploratório, cias no plano estratégico ou militar, que o esque o coloque mais pessimista, em 2020, "o Brasil enfrenta critudo não pretende abordar. É previsível, asno pelotão de ses de instabilidade política e econômica, cujo sim, que o Brasil continuará exibindo traços frente da prolongamento leva ao agravamento dos prorelativamente similares aos que sua diplomaeconomia blemas sociais. O quadro de instabilidade é, em cia cautelosa e ao mesmo tempo participativa larga medida, decorrente da não concretização tem demonstrado no período recente, ou seja: mundial no das reformas estruturais. A vulnerabilidade do uma posição protagônica nos foros comerfuturo imediato. País é agravada diante da prevalência de um ciais, uma menor presença nos meios financeicenário internacional de fragmentação, com reros ou tecnológicos, mas a continuidade de seu crudescimento do protecionismo. O Brasil perativo engajamento nos organismos multilatede espaços no mercado mundial, fechando-se rais. As alianças ao Sul, em especial aquelas no em si mesmo, sem possibilidade de contar com âmbito regional sul-americano, continuarão a fatores externos capazes de impulsionar o cresser bastante enfatizadas em sua política extercimento econômico". na, ao mesmo tempo em que o diálogo com as Esse cenário mais pessimista foi refletido em estudo do "Naprincipais potências econômicas, políticas e militares contitional Intelligence Council", entidade filiada à CIA, que traçou nuará a se intensificar, não sendo de se excluir um ingresso a no quadro de um "Projeto 2020", perspectivas para o Brasil e a médio prazo na OCDE e num G-8 ampliado. América Latina, nas quais tenta visualizar algumas linhas tenO cenário preferencial de atuação continuará a ser o da denciais da evolução brasileira e regional. Segundo esse estuAmérica do Sul e possivelmente o dos países africanos mais do, "o Brasil vai provavelmente falhar em sua tentativa de lipróximos, mas a qualidade da interação diplomática com os derança na América do Sul, devido tanto ao ceticismo de seus parceiros desenvolvidos também deve presumivelmente ser vizinhos, quanto à sua ênfase freqüentemente determinante incrementada. Os grandes países europeus com forte presença em seus próprios interesses. Ele vai continuar, entretanto, a ser corporativa e cultural no Brasil, a exemplo da Alemanha, cona voz dominante no continente e o mercado principal para seus tinuarão a ter papel de destaque nessa teia complexa de relaparceiros do Mercosul. O Brasil ainda não terá conseguido a cionamentos econômicos, financeiros e tecnológicos. O Brasil sua cadeira permanente no Conselho de Segurança, mas coniniciou, em 2007, um diálogo de alto nível com a União Eurotinuará a se considerar um ator global. A despeito de que o depéia, o que deve ter prolongamentos no âmbito do Mercosul e sempenho econômico brasileiro não será espetacular, as dida América do Sul, compensando a presença sempre impormensões de sua economia ao lado de sua vibrante democracia tante dos EUA na região. continuarão a desempenhar um papel estabilizador na região. Em conclusão, pode-se dizer que a emergência do Brasil enEsquemas comerciais com a Europa, os Estados Unidos e granquanto grande ator regional e global depende bem mais da des economias em desenvolvimento, principalmente China e continuidade de seu processo interno de reformas econômicas Índia, ajudarão a manter o crescimento de suas exportações o e políticas do que, na verdade, de sua capacidade de projeção suficiente para compensar a falta geral de dinamismo de sua externa, que parece garantida.
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UMA REPUBLIQUETA
O
Luiz Prado/LUZ
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e
Superior de Guerra-ESG, Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária - CEU.
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Monalisa Lins/AE
Ives Gandra da Silva Martins
Banco Mundial, em recente relatório, declarou que o País cresceu, em 2007, menos que a média dos países emergentes e continuará crescendo menos, no ano de 2008. Os números são decepcionantes para o governo Lula. Enquanto a média dos países emergentes foi de um crescimento de 7,4% do PIB, em 2007, e será de 7,1%, em 2008, o PIB brasileiro apresentou um crescimento de 4,8%, em 2007, e deverá crescer apenas 4,5%, em 2008. Nada obstante o presidente Lula esgrimir com dados estatísticos que lhe são contrários, como se fossem favoráveis, o Brasil, em seu governo, cresceu, nos primeiros cinco anos, menos que a América Latina e o Caribe. É de se lembrar que, nos períodos de crise recessiva mundial (1997-2002), o Brasil de Fernando Henrique elevou o seu PIB, no ano de 2002, em 2,7%, enquanto a América Latina e o Caribe tiveram um crescimento negativo de 0,5%. A partir da era Lula, a América Latina e o Caribe sempre estiveram a frente do Brasil, inclusive no ano de 2007, lembrando-se que a Argentina, com toda a crise decorrente do calote financeiro de alguns anos atrás, cresceu 7,8%, em 2007, e crescerá 5,7%, em 2008. Em outras palavras, o governo Lula, por força do céu de brigadeiro da economia mundial, apresenta números absolutos melhores que seu antecessor e piores em números ponderados e comparativos. Cresceu, proporcionalmente em relação à economia mundial, menos do que o governo anterior, e só apresenta dados positivos ainda, porque copiou, rigorosamente, o modelo econômico de Fernando Henrique, no que diz respeito à política monetária. Todo o drama brasileiro reside no fato de que o governo não tem projeto, sua política assistencialista e eleitoreira custa-lhe pouco (menos de 1,5% do orçamento federal), a política econômica reproduz o governo an-
terior e o inchaço da máquina administrativa atrasa o desenvolvimento brasileiro. Em outras palavras, seu governo ostenta boas realizações (política monetária) e realizações originais (inchaço da máquina), sendo que as boas realizações não são originais (cópia do governo FHC) e as originais não são boas (o aparelhamento do Estado com sindicalistas e não concursados, o que torna a administração ineficiente e atravanca o progresso nacional). Para sustentar esta incrível, esclerosada e adiposa máquina, que cresce na exata proporção das acomodações políticas para manter a instável e pouco confiável base aliada – constantemente levada às barras dos tribunais, por conduta incompatível com a moralidade pública –, o presidente Lula tem elevado, ano após ano, o peso dos tributos sobre a sociedade brasileira, que gera desenvolvimento e empregos, nada obstante todos os esforços da Administração Pública para atrapalhá-la neste desiderato. Estou convencido de que o Brasil só não cresce no mesmo nível – detectado pelo Banco Mundial – da Índia (9,0% em 2007 e 8,4% para 2008), China (11,3% em 2007 e 10,8% para 2008), Rússia (7,5% em 2007 e 6,5% para 2008),
FISCAL
Sérgio Lima/Folha Imagem
porque o governo obstaculiza o crescimento. A retirada de recursos da sociedade através de tributos objetiva, primordialmente, assegurar o alargamento da máquina governamental, o festival de desperdícios em festas, cartões de crédito, empreguismo oficial e benesses "pro domo sua", sem na utilização de recursos – não para a saúde ou para investimentos em infraestrutura no Brasil – mas para doações em benefício do governo cubano do ditador e homicida Fidel Castro, que nos idos de 50 assassinou, sem julgamento, nos famosos "paredons", milhares de seus irmãos de pátria. Desta forma, o contribuinte brasileiro é obrigado a pagar mais do que os contribuintes russos, chineses e indianos e de todos os países da América Latina e do Caribe. A política tributária no Brasil, portanto, é iníqua. Compreende-se, pois, o esforço hercúleo da administração pública – hoje até com uma força tarefa encarregada de desestruturar o terceiro setor – para liquidar com aquelas entidades tornadas imunes pela Constituição, pois fazem elas o que o governo deveria fazer com os nossos tributos e não faz.
Assim é que instituições hospitalares como as Santas Casas de Misericórdia – que a Constituição pôs a salvo de tributos e que fazem mais pela saúde do que o governo brasileiro – estão sendo vítimas de perseguições tributárias, em face da necessidade pantagruelesca do Estado de retirar cada vez mais tributos do povo brasileiro. São melhores do que os hospitais públicos, assim como atendem mais à população do que o governo. Na visão apequenada dos áulicos governamentais, todavia, é melhor pisotear a Constituição e exigir impostos e contribuições destas entidades – reduzindo, pois, o serviços a serem prestados à sociedade – do que permitir que o terceiro setor continue fazendo bem o que o governo faz mal com os nossos tributos. O mesmo ocorre com as faculdades e universidades federais e com o ensino público – de boa qualidade, no passado – e que se encontra deteriorado, nada obstante o esforço que reconheço no ministro Fernando Haddad, um dos poucos que se salvam, no emaranhado de aliados não confiáveis e de ocasião do presidente Lula. No que diz respeito aos direitos do contribuinte, jamais foi ele tão maculado quanto na administração Lula. O direito de "ampla defesa", constitucionalmente assegurado (art. 5º, inciso LV), ano após ano torna-se menos "amplo", ao ponto de ter o Secretário da Receita Previdenciária e Tributária – pessoa inteligente, culta e de fino trato – mudado a composição dos Conselhos do Contribuinte, objetivando torná-lo um órgão homologatório de suas decisões. Autorizou, por outro lado,
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a Procuradoria da Fazenda Nacional a propor projeto de lei em que o Judiciário é excluído da execução fiscal, podendo a própria PGFN leiloar os bens, independentemente de autorização judicial, amesquinhando o direito do contribuinte, que, se recorrer ao Judiciário e sair vitorioso oito ou dez anos depois, receberá sem correção o produto arrecadado nos leilões judiciais, sempre em valor inferior ao de mercado. Passou-se, agora, a enviar o nome dos presumidos devedores ao Fisco à Serasa, intentando cortar seu crédito junto ao sistema financeiro e nas casas comerciais, reeditando-se, assim, procedimento da Ditadura Vargas (sanções de devedor remisso) que foi fulminado pelo STF. Seu único objetivo é, de resto, desestimular a discussão judicial e obrigar o contribuinte a pagar o que deve e, principalmente, o que não deve. Monta, ainda, operações cinematográficas, com a ajuda da polícia federal e do Ministério Público, contra os contribuintes, que são presos e têm sua imagem denegrida "sem sequer ter havido lavratura de autos de infração". Há inúmeras outras medidas cerceadoras do direito, que podem ser apontadas. Paralelamente, cresce, preocupantemente, o nível da arrecadação federal. Bate recordes, mês após mês, para sustentar o inútil dinossauro estatal. Com o nível de arrecadação que possui, à evidência, não precisaria o governo da CPMF, pois só em 2007 arrecadou além de suas próprias previsões, mais do que
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o valor arrecadado pela referida contribuição (uma vez e meia). Por esta razão, Brasília não tem qualquer interesse na reforma tributária, pois, se a fizesse, correria o risco de perder sua participação no bolo fiscal, hoje em 60%. Como Estados e Municípios desejam elevar sua participação, hoje de 40%, na arrecadação tributária, se vier um projeto de reforma tributária só haverá um perdedor: o contribuinte brasileiro, que a deseja para redução e não para aumento da carga. Valem pouco as promessas do presidente da república, que, como dizia Roberto Campos, "apenas comprometem quem as recebe e não quem as faz" . Tanto é assim que, apesar de ter prometido não aumentar o nível impositivo, nem ofertar novos pacotes, ao negociar com a oposição a aprovação da DRU, maculou sua credibilidade, lançando um pacote e elevando a CSLL e o IOF, poucos dias depois. Com ameaças de cortes nas despesas do Judiciário, espera o governo compelir o STF a encontrar solução jurídica para manter os aumentos do início do ano. O certo é que a palavra oficial não é confiável, a política tributária não existe – há apenas um fantástico e, muitas vezes, ilegal esforço de
arrecadar mais, sem qualquer compromisso com o desenvolvimento nacional ou a justiça fiscal –, o País cresce pouco em comparação com seus concorrentes diretos entre os emergentes (Rússia, China e Índia), e quase nada se fez para a infra-estrutura. Já se vê o risco de apagão e aumento de mortes nas rodovias federais e outras deficiências da falta de investimentos públicos, nos últimos cinco anos. Nesta republiqueta fiscal em que vivemos, em que os tributos são fundamentalmente destinados às sustentar uma máquina esclero-
Um personagem sempre em evidência: os leões que ilustram este artigo foram publicados no jornal Diário do Comércio
sada, assim como os amigos de Cuba, da Bolívia e o futuro Banco de Chávez, a "sorte" do presidente Lula, com o sucesso da economia mundial em seu mandato, no qual o Brasil progrediu por força do "efeito maré", pode vir a mudar, se realmente o desenvolvimento mundial decrescer em 2008. Para o bem do Brasil, gostaria que seu estilo de governo mudasse, o que é pedir muito. Torço apenas para que, pelo menos, sua "sorte" continue.
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Molly Riley/Reuters
Bonecos de Hillary Clinton e Barack Obama no Museu de Cera Madame Tussauds de Washington DC.
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Delicadeza letal
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o momento em que escrevo este artigo, o Partido Republicano hesita entre o pastor batista Mike Huckabee e o veterano de guerra John McCain. Os democratas ainda não se decidiram entre Barack Obama e Hillary Clinton. O quadro eleitoral americano divide-se, portanto, entre três enigmas e uma certeza temível. Ninguém tem a menor idéia do que se pode esperar dos três primeiros caso eleitos, mas a quarta tem todo o curriculum vitae necessário para completar o trabalho de desmantelamento da Presidência americana, inaugurado com brilhante sucesso por seu marido com a ajuda de espiões chineses, de lobistas ladrões, da srta. Monica Lewinsky, dos narcotraficantes das Farc, que tanto lucraram com o famoso Plano Colômbia e, last not least, de uma infinidade de agentes de inteligência colocados na CIA para servir à família Clinton em vez do Estado americano. A maior vantagem em favor de Hillary Clinton é que, como diria Paulo Francis, todo mundo já viu esse filme e sabe quem morre no fim. Num momento de tantas incertezas, isso pode gerar alguns votos. Huckabee apresenta-se como um "social conservative", mas ao mesmo tempo apóia as pesquisas com células-tronco, colocando seus eleitores na maior incerteza. O que ele tem a seu favor é que nada se espera dele de tão catastrófico quanto de qualquer dos outros três. Se ele conseguir provar que é inócuo, terá ainda alguma chance contra McCain. O que se passa na cabeça de John McCain, nem ele próprio sabe. Ele já provou que é capaz de mudar de idéia subitamente e estrangular no ato quem não goste da novidade. Os con-
Divulgação
servadores dizem que ele é o mais democrata dos republicanos, que é impossível distinguilo nitidamente do senador Ted Kennedy, que ele mal consegue refrear um orgasmo cada vez que vê um aumento de impostos; mas na esquerda há quem jure que ele está à direita de George W. Bush, que ele é o falcão dos falcões, que a primeira coisa que ele vai fazer na presidência é sair logo bombardeando o Irã e desencadeando a terceira (ou quarta) guerra mundial. Talvez tudo isso seja verdade, mas, certamente, nada disso é bom. Dos quatro candidatos, ele ainda é o que mais tem condições de ser eleito, mas é certo que muitos de seus eleitores votarão nele tremendo de medo, seguros de que o fizeram só para evitar que um dos partidos, dominando a Presidência junto com o Senado, a Câmara e a maioria dos votos na Suprema Côrte, se torne onipotente (os americanos odeiam isso por instinto). Quanto ao senador Obama, ele é decerto menos interessante do que os motivos que muitos americanos têm para votar nele. Se alguém é insistentemente acusado de um defeito ao ponto de se tornar complexado por isso, com muita probabilidade acabará caindo no defeito oposto. Aplicado com astúcia, o truque é quase infalível. Acuse um sujeito de sovina e ele se tornará um desperdiçador compulsivo. Acuse-o de machista e ele se deixará dominar pela esposa. Embora o racismo nos EUA tenha sido um fenômeno muito limitado geograficamente, o país inteiro foi tão acusado de racista que os americanos em geral acabaram sacrificando sua dignidade ante a moda grotesca do politicamente correto. E agora muitos deles se sentem obrigados a votar em Barack Hussein Obama só para mostrar que são bonzinhos. O
Olavo de Carvalho Jornalista, escritor e professor de Filosofia
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Jim Young/Reuters
Quanto ao senador Obama, ele é decerto menos interessante do que os motivos que muitos americanos têm para votar nele.
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senador fala bonito, mas até agora ninguém conseguiu descobrir nos seus discursos algo que se assemelhasse mesmo de longe a um assunto. Na mais substantiva das hipóteses aparece ali alguma promessa de campanha igualzinha às de sua concorrente Hillary Clinton, senão às dos candidatos republicanos. Tal como McCain, ele promete entregar a cabeça de Osama Bin Laden, só faltando, é claro, encontrá-la. Tal como a sra. Clinton, ele promete assistência médica de graça para todo mundo (não só para os pobres, os incapazes e os velhos), sem que jamais lhe ocorra a idéia de explicar de quem vai tomar o dinheiro para fazer isso, nem muito menos como vai tapar o rombo da previdência, que já se calcula em trilhões. O senador especializou-se mesmo foi em exortações adolescentes do tipo "Vamos mudar o mundo", porque sabe que ninguém espera que ele faça alguma coisa na Presidência, apenas que esteja lá como um símbolo. Símbolo do quê? Os latinos diziam que nomen est omen, "o nome é profecia". Barack Hussein significa "abençoado descendente do Profeta" e há provas concludentes de que seu portador está mentindo quando diz que nunca foi muçulmano (Daniel Pipes tirou isso a limpo em http://www.danielpipes.org/article/5286 e http://www.danielpipes.org/ar-
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ticle/5354). É mais ou menos como se em plena guerra do Vietnã os EUA elegessem presidente um sujeito chamado John Paul Ho Chi Minh, educado em Hanói, filho de um membro do Partido, mas que jurasse nunca ter sido comunista e ficasse ofendidíssimo se alguém duvidasse dele. A candidatura Obama é uma provocação calculada: serve de termômetro para avaliar quão profundamente o hábito adquirido da autocensura politicamente correta já infundiu na mente dos americanos a disposição de deixar-se levar ao forno só para não fazer uma descortesia com o cozinheiro. Um detalhe significativo ilustra isso às mil maravilhas: quando o senador ouve o hino nacional, ele não põe a mão direita no coração, como manda o protocolo, mas segura literalmente a bolsa escrotal com as duas mãos e todo mundo se sente inibido de dizer que isso é um insulto. Teste semelhante já foi feito no tempo de Bill Clinton. O presidente se permitia transformar a Casa Branca num bordel, mentia descaradamente e acusava de conspiração direitista quem quer que achasse ruim uma coisa ou outra. O ar de indignação na cara dos democratas quando defendiam a honra do sem-vergonha era tocante. Tanto naquele caso quanto agora, a mais cínica proibição de perceber o óbvio é imposta em nome da
Jim Young/Reuters
moralidade, instilando na opinião pública o hábito da inversão revolucionária (ver em h t t p :/ / w w w. o la v o d e c a r va l h o . o rg/ s e m ana/071029dc.html). Tudo isso parece muito extravagante, mas é uma obra de engenharia psicológica de alta precisão. O panorama desta eleição é, sob todos os aspectos, miserável. Mitt Romney mostrou ter fibra de estadista justamente no discurso em que abdicou da sua candidatura. Ele disse que a presente eleição gira em torno de temas maiores, não de rotinas administrativas. Nunca os EUA tiveram de decidir sobre questões tão graves, dispondo de cérebros tão levianos para arcar com essa responsabilidade. A desproporção entre os problemas e os personagens é tragicômica, mas o lado comédia vai passar e a tragédia vai ficar. As culpas da presente situação repartem-se igualmente entre os democratas, que sobrepuseram suas ambições políticas à segurança dos EUA, e George W. Bush, que se recusou a enxergar isso e preferiu embarcar o país numa ilusória união nacional contra o inimigo externo. A união não durou três semanas. Qualquer observador inteligente podia prever isso, mas Bush apostou tudo na cartada do patriotismo, sem querer enxergar que o de seus adversários era totalmente fingido. Na tradição americana, os funcionários públicos, principalmente de alto escalão, sempre tiveram orgulho de servir ao Estado, independentemente de saber qual partido estava no poder. Desde a era Clinton, o Partido Democrata rompeu com essa tradição, espalhando na rede burocrática militantes que servem a ele, não ao Estado, ao povo ou à nação. Todos já vimos isso acontecer em algum país, não é
mesmo? E todos sabemos como termina. Desde o 11 de setembro, os planos de guerra de George W. Bush foram boicotados desde dentro pelos "clintonistas" do Departamento de Estado e da CIA, que assim produziram as situações insustentáveis, cuja culpa era em seguida imputada ao presidente. A história é contada em detalhes no livro de Kenneth R. Timmerman, Shadow Warriors, The Untold Story of Traitors, Saboteurs, And The Party of Surrender (Crown Forum, New York, 2007), e quem não a conhece não entenderá jamais o que se passa hoje em dia nos EUA. Recusar-se a enxergar o mal é tão vergonhoso quanto produzilo. George W. Bush carrega nas costas a responsabilidade de haver fugido ao combate interno mediante o subterfúgio de uma guerra no além-mar. Quando ele foi eleito pela primeira vez, os republicanos tinham todas as condições para permanecer no poder por vinte anos e levar às últimas conseqüências as grandes transformações iniciadas na era Reagan. A timidez (ou o rabo preso) de George W. Bush pôs tudo a perder. "Par délicatesse j'ai perdu ma vie" (Por delicadeza, perdi minha vida), dizia Rimbaud. Mas a profecia, infelizmente, não se aplica só à pessoa do atual presidente americano. É todo um povo que arrisca se desgraçar para não cometer a impolidez de declarar os nomes dos seus inimigos.
John McCain já provou que é capaz de mudar de idéia subitamente e estrangular no ato quem não goste da novidade.
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Justin Sullivan/Getty Images/AFP
Greenspan e a recessão americana
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Bel Pedrosa
Roberto Fendt Economista e vice-presidente do Instituto Liberal
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omo avaliar a probabilidade e a extensão de uma recessão nos Estados Unidos este ano? No início de 2007, e depois em várias ocasiões ao longo do ano, o maestro Alan Greenspan – chairman do Federal Reserve Board (Fed), o banco central dos Estados Unidos, entre 11 de agosto de 1987 e 31 de janeiro de 2006 – alertou repetidamente para a possibilidade de uma recessão nos EUA. A afirmação de Greenspan no início de 2007 de que havia uma chance em três de que a economia americana estaria em recessão nesta época do ano compreensivelmente sacudiu os mercados financeiros. É claro que nada assegurava que o maestro estaria certo; não temos evidência concreta de que os
Mandel Ngan/AFP
EUA já estão em recessão, embora já tenhamos tido o sinal do Conference Board da possibilidade de uma contração econômica a caminho. O argumento de Greenspan era o seguinte: em 2007, completavam-se seis anos de expansão continuada da economia americana. Uma expansão tão longa excedia a média das fases de expansão anteriores. E, como costuma ocorrer, à medida que amadurece uma fase do ciclo econômico, diversos desequilíbrios vão ocorrendo em setores específicos da economia, acabando por levar a uma reversão no ciclo econômico. Um claro indicador disso seria o fato de que as margens de lucro nos EUA pararam de crescer no início do ano passado, um claro e seguro indicador do fim de uma longa fase de expansão. E a experiência americana a esse respeito indica que, no passado, a economia mudou de uma fase de expansão para uma fase de contração cerca de um ano depois do pico da margem de lucro média na economia. Daí a previsão de Greenspan, no início do ano passado, do fim da fase de expansão ainda em 2007 ou no princípio de 2008. Certo ou errado, Greenspan apoiava-se na evidência disponível para as fases do ciclo econômico nos EUA. A média histórica das fases de expansão é de cinco a seis anos, embora a expansão anterior à atual tenha durado dez anos. Dados esses fatos, o que poderia levar a economia americana a uma contração econômica? Cada ciclo econômico tem suas peculiaridades, mas os determinantes de suas fases são mais ou menos sempre os mesmos: crédito, investimentos e lucros. Tanto nas fases de expansão como de contração, esses fatores interagem e se auto-reforçam. E se é verdade que a expansão do crédito é que financia e inicia o processo de expansão, o que determina a continuidade da fase de expansão são os investimentos e os lucros, e as expectativas de lucros futuros. Na atual fase do ciclo econômico, o acesso fácil ao financiamento imobiliário iniciou a expansão. Proprietários de residências sentiram-se mais ricos à medida que os preços das casas subiam de forma contínua, estimulando a oferta de novas unidades. O persistente aumento dos preços criou uma expectativa de lucros cada vez maior para os construtores e encorajou as instituições financeiras a ampliarem os empréstimos.
Todos queriam emprestar a tomadores com patrimônios líquidos cada vez maiores. Esse processo leva, é óbvio, à assunção de riscos crescentes por tomadores de empréstimos e instituições financeiras. Como ensinou Ludwig von Mises na década de 1930, todos os ciclos revertem, às vezes porque as condições de crédito se tornam mais apertadas, às vezes porque já não casam investimento e demanda. Em ambos os casos, gera-se uma oferta excessiva que resulta em maus empréstimos e maus investimentos. Ao que tudo indica, o atual ciclo econômico nos EUA tem um pouco dos dois e as perdas foram se acumulando ao longo do ano que passou. Perderam os construtores e famílias; as instituições financeiras estão acumulando perdas recordes, associadas a um aumento agudo na inadimplência dos mutuários. A maioria dos analistas e autoridades considerou os problemas dos mercados imobiliário e de hipotecas dos EUA, durante boa parte do ano passado, de pouca importância, por considerá-los concentrados no mercado de hipotecas
No início de 2007, Alan Greenspan afirmou que havia uma chance em três de a economia americana entrar em recessão.
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Stan Honda/AFP
Só quando os riscos desses empréstimos se espalharam por todo o mercado financeiro, interno e fora dos EUA, eles deixaram de ser ignorados.
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subprime. Só quando os riscos desses empréstimos se espalharam por todo o mercado financeiro, interno e fora dos EUA, eles deixaram de ser ignorados. Quanto aos compradores de imóveis, com a elevação das taxas de juros no final de 2006, perceberam que o valor presente de suas dívidas era maior que o valor dos imóveis que haviam comprado, decidiram parar de pagar e entregar os imóveis. Essa decisão é correta do ponto de vista econômico, mas fatal do ponto de vista do mercado. A pressão de venda dos imóveis recebidos pelas instituições financeiras provocou uma queda nos preços dessas residências de 25%, somente em 2007. Provavelmente já estamos sentindo os efeitos da segunda onda da perda de patrimônio das famílias americanas com a depreciação de seu principal ativo, sua própria casa. Não se trata, repita-se, de um problema pequeno. Nos últimos sete anos o valor das hipotecas das famílias americanas aumentou 5 trilhões de
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dólares – um aumento equivalente ao ocorrido nos 50 anos anteriores. É claro que a decidida redução das taxas de juros pelo Fed permitirá a muitas famílias refinanciar suas hipotecas a uma taxa de juros menor que as que haviam contratado. Contudo, alguns argumentam que a solução veio tarde, já que o Fed somente reduziu de forma expressiva as taxas de juros quando o problema já tinha se tornado explosivo e ameaçava contaminar todo o mercado. Não ajudou em nada o fato de que, diferentemente de outras crises, a dos tomadores de crédito subprime estar espalhados por todos os EUA. Também piorou o problema o fato de que novos instrumentos financeiros foram criados e utilizados para usar as hipotecas subprime para alavancar novos empréstimos – nos EUA e no exterior. O que concluir dos eventos até agora? A primeira conclusão é que uma reversão do ciclo econômico, do final da fase de expansão para uma fase de contração, decorrerá dos efeitos negativos dos preços reais dos ativos (residências e hipotecas) e do impacto da depreciação desses ativos sobre a percepção do valor do patrimônio das famílias, afetando sua liquidez e confiança na economia – como de fato vem ocorrendo. A segunda conclusão é que estamos assistindo a uma forma nova de reversão do ciclo econômico. No passado, geralmente a reversão do ciclo para uma fase de contração se dava pela acumulação excessiva de estoques de produtos, decorrentes de erros de percepção e planejamento das empresas no mercado – provocando o mesmo fenômeno apontado anteriormente, com a redução das margens de lucro e eventual queda nos preços dos produtos. O que está ocorrendo agora tem origem não na acumulação de estoques de bens, mas no estoque de residências e na brusca e significativa queda nos preços dos imóveis. Como as residências constituem a maior parcela do patrimônio dos americanos, a contração econômica, em última instância, está decorrendo da correção do valor dos imóveis. A terceira conclusão é que provavelmente a mudança do ambiente de regulamentação dos mercados financeiros nos EUA tenha contribuído – junto com a globalização financeira, que levou o problema a várias partes do mundo, da Austrália à Europa –
No passado, expansões do crédito eventualmente produziam inflação de preços de produtos e acabavam por mudar a direção do ciclo econômico, de expansão para contração.
Fred GreavesFG/GAC
para uma maior atividade financeira das famílias e das empresas. Talvez tenha sido isso que tenha potencializado o que poderia ter requerido uma pequena queda de preços para a correção do desequilíbrio. Finalmente, não há que deixar de reconhecer o papel central do crédito nos ciclos econômicos. No passado, expansões do crédito eventualmente produziam inflação de preços de produtos e acabavam por mudar a direção do ciclo econômico, de expansão para contração. Já havíamos, contudo, observado subidas de preços de ativos nos dois últimos ciclos econômicos americanos. Primeiro, nos preços dos ativos na década de oitenta; depois, nos preços das ações, na década de noventa. Agora, a inflação ocorreu nos preços dos imóveis. A grande questão é saber o que virá pela frente. No passado, quando a liquidez estreitava pelo aperto no crédito, os preços que haviam subido eventualmente eram corrigidos pela correspondente queda
nesses preços. Como os preços que desalinharam foram os das residências, a maior parte da correção deverá se dar nesses preços. Contudo, no mercado de imóveis, a oferta de novas unidades é pequena em relação ao estoque já existente. Trocando em miúdos, as pessoas terão que aceitar a perda de valor inflado de seus imóveis, para que o mercado se ajuste. Isso levará tempo, já que ninguém aceita passivamente perdas de grande ordem de magnitude. Além disso, se o crédito está ficando mais apertado, a liquidez bancária está aumentando pelos repetidos estímulos, tanto da política monetária, como agora da política fiscal. Moral de toda a história: ainda vai passar muita água debaixo da ponte, antes que os mercados se ajustem e tudo volte à normalidade nos EUA. Greenspan, um economista "austríaco" por formação, pode ter errado a data, mas pode vir a acertar no diagnóstico.
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De Bali para o mundo...
É
difícil avaliar acontecimentos históricos antes que o tempo torne clara a sua importância ou insignificância. Esta observação vale para a Conferência realizada em Bali no começo de dezembro para discutir ações que precisam ser tomadas em relação às mudanças climáticas pelas quais somos responsáveis. Os 192 países que são signatários da Convenção do Clima adotada no Rio de Janeiro em 1992 se reúnem todos os anos, mas se esperava que a reunião de 2007 em Bali fosse particularmente importante porque o Protocolo de Kyoto (que resultou da Convenção do Clima e deu "dentes" a ela) tem apenas mais 4 anos de validade. Em 1997, em Kyoto, os signatários da Convenção do Clima decidiram que os países industrializados cortariam suas emissões em 5,2% (abaixo do nível de 1990) até o ano 2012. Os países em desenvolvimento foram isentos de fazer reduções, sob o argumento de que fazê-lo prejudicaria suas possibilidades de crescimento econômico e desenvolvimento. Com o Protocolo de Kyoto foi criado o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, que permite que países industrializados (países ricos) contabilizem reduções em países em desenvolvimento (países pobres), no lugar de fazê-lo dentro do próprio país. A lógica deste procedimento é a seguinte: 1) Custa mais caro reduzir emissões nos países ricos do que nos países pobres; é portanto mais interessante fazer reduções nestes países do ponto de vista econômico. 2) Se a redução for feita num país pobre, vai levar recursos e também tecnologia do país rico a ele, contribuindo para o desenvolvimento sustentável. Se o MDL fosse baseado apenas no primeiro item, ele não teria sido adotado, porque muitas organizações não governamentais se opuseram ao uso de um argumento de lógica econômica para reduzir as emissões. Foi lembrado
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que seria até imoral fazer reduções nos países pobres, porque isto livraria os países ricos de fazerem o que era sua obrigação de reduzir suas emissões. Em outras palavras, que o MDL não seria mais do que um "zero-sum game", em que os países pobres reduziriam emissões para que os países ricos continuassem a emitir. Foi por esta razão que o MDL foi cercado por várias restrições, para garantir que não fosse apenas um método de aliviar as responsabilidades dos países industriais. Uma delas é a de que o MDL não pode ser o único instrumento usado pelos países ricos e de que as reduções de emissões fossem adicionais às que ocorreriam na ausência da atividade envolvida. Energia Nuclear foi excluída por não se enquadrar como desenvolvimento sustentável, bem como redução do desmatamento (desmatamento "evitado"), por razões pouco claras sobretudo de natureza técnica, porque quantificar a redução das emissões, bem como garantir que sejam permanentes, não é trivial. Reflorestamento foi
A
LF
ER
nada, por enquanto
aceito, mas as exigências feitas sobre este projeto fizeram com que poucos projetos prosperassem. Ao longo dos anos, desde 1997, o MDL se firmou, mas os projetos são todos pequenos e a burocracia criada em torno deles tornou-se muito grande. Uma análise da situação atual do MDL mostra que foram aprovados e estão em execução cerca de 2.300 projetos: 30% na China, 29% Índia e 10% no Brasil. A quantidade total de emissões que será evitada até 2012 é de 800 milhões de toneladas de CO2 (ou 126 milhões de toneladas de carbono anuais), o que não é muito, considerando que são emitidas por ano mais de 6 bilhões de toneladas de carbono. Na Conferência do clima em Montréal, há 3 anos, decidiu-se incluir projetos estruturais maiores, que reduzissem as emissões, como sistemas de transporte coletivo, mas poucos deles se materializaram. O "desmatamento evitado" foi discutido, mas os representantes brasileiros se opuseram a incluí-lo no MDL, usando o argumento das ONG´s em Kyoto, de que isto permitiria que os países ricos continuassem a emitir.
Com essa " bagagem" de problemas não resolvidos, o que se esperava é que Bali desse novo alento às negociações para resolver o problema e - que é fundamental atrair os Estados Unidos a aceitar o Protocolo de Kyoto ou algo equivalente, bem como fazer com que os países em desenvolvimento aceitassem também reduções em suas emissões (ou reduzissem o desmatamento, que contribui cerca de 20% para as emissões globais). Os Estados Unidos se recusaram a aderir ao Protocolo de Kyoto e não aceitaram reduções mandatórias, argumentando que isto arruinaria sua economia, o que a China usou como argumento para também não fazê-lo, apesar de ter se tornado o maior emissor mundial em 2007. Na visão da China, aceitar reduções mandatórias prejudicaria seu desenvolvimento. Ambos estão errados e as decisões deste tipo refletem no fundo os interesses das empresas de petróleo, carvão e gás, cujos produtos – os combustíveis fósseis – são os principais responsáveis pelo aquecimento global. Aliás, o mesmo argumento foi usado nos Estados Unidos em meados da década de 70, quando foi adotada naquele país a " Lei do ar limpo", destinada a reduzir a poluição local regional (que é ainda hoje o grande problema ambiental da região metropolitana de São Paulo). O argumento é o de que reduzir a poluição custaria muito caro e desviaria recursos que poderiam ser usados para aumentar a produção. A verdade é que o povo americano não suportava mais a poluição urbana, que prejudica a saúde, e que valia a pena pagar o preço. Na prática, o que ocorreu é que as indústrias aprenderam rapidamente como evitar a poluição a custo muito mais baixo do que se pensava e uma nova indústria surgiu, que é a dos equipamentos de combate à poluição. Não há a menor dúvida que os Estados Unidos poderiam repetir esta "performance" com a poluição global, isto é, as emissões de gases de "efeito estufa", como aliás os europeus estão fazendo sem prejudicar seu crescimento econômico. Da mesma forma, a China (e os outros países em desenvolvimento) poderia continuar crescendo
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Paulo Pampolin/Hype
José Goldemberg Professor da Universidade de São Paulo
economicamente se utilizasse tecnologias mais modernas e menos poluentes, renunciando às tecnologias velhas e poluentes que os países industrializados exportam para eles . Exemplo gritante deste fato é mencionar que as usinas termoelétricas do Japão, que usam carvão, têm uma eficiência média de 40%, enquanto as da China apenas 30%. Outro exemplo de sucesso é verificar a rapidez com que telefones celulares se espalharam pelo mundo todo, tornando obsoleta a telefonia fixa, que exige muito mais infra-estrutura que a telefonia móvel . Tendo em vista estes fatos, esperava-se que em Bali se chegasse a um acordo que permitisse estender o Protocolo de Kyoto além de 2012 e que todos os países (inclusive os Estados Unidos) aceitassem limitações obrigatórias em suas emissões e um calendário para cumpri-las. O que ocorreu foi um acordo costurado na última hora, para evitar o fracasso completo da Conferência, que estabeleceu que um novo esforço – e provavelmente um novo Protocolo – seja adotado em tempo de substituir o Protocolo de Kyoto em 2012 que inclua: - Compromissos ou ações "mensuráveis, reportáveis e verificáveis" de reduzir as emissões por todos os países
industrializados (incluindo os Estados Unidos); - Ações "apropriadas", definidas voluntariamente pelos países em desenvolvimento, para reduzir as emissões de uma forma "mensurável, reportável e verificável", suportadas por tecnologia e financiamento. Distingue-se algum progresso nestas resoluções em relação ao conceito antigo de "responsabilidades comuns, mas diferenciadas," entre países industrializados e em desenvolvimento, que tem sido usado e abusado para justificar a inação dos países em desenvolvimento do qual o Brasil é um dos mais ferrenhos advogados, apesar dele beneficiar prioritariamente não o Brasil, mas a China. Finalmente, em Bali, decidiu-se iniciar negociações sérias para reduzir as emissões do desmatamento e degradação das florestas, incluindo "políticas e incentivos financeiros" também, para a conservação das florestas ("desmatamento evitado"). Foi fixado um calendário para as negociações, que possa ser apreciado pelos países membros da Convenção do Clima em 2009. Não é muito, mas é melhor do que um fracasso completo em Bali, que só foi evitado por milagre. Jim Young/Reuters
A quantidade total de emissões que será evitada até 2012 é de 800 milhões de toneladas de CO2, ou 126 milhões de toneladas de carbono anuais, o que não é muito, considerando que são emitidas por ano mais de 6 bilhões de toneladas de carbono.
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