Digesto Econômico nº 449

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Marketing - ACSP

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O novo capitalismo brasileiros e os velhos problemas de sempre Rafael Hupsel/Luz

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m meados de agosto, tivemos o grande prazer em receber na sede da Associação Comercial de São Paulo (ACSP) a visita do ex-ministro Luiz Fernando Furlan, que ocupou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior de 2003 a 2007, período em que as exportações brasileiras cresceram de US$ 60 bilhões para mais de US$ 160 bilhões, um desempenho superior ao da Índia (US$ 145 bilhões), mas inferior ao da China (US$ 1,218 trilhão) e ao da Rússia (US$ 355 bilhões). Sua visita foi exclusivamente para conceder uma entrevista para a revista Digesto Econômico. Empresário e líder ativo da classe empresarial brasileira, Furlan tem acompanhado as grandes negociações internacionais e exercido importante papel na defesa do livre comércio e no fortalecimento do Mercosul. Sem dúvida, o bom desempenho das empresas brasileiras no mercado internacional teve muito da contribuição do ex-ministro. Furlan mencionou conversa que teve com o presidente Lula logo após assumir o ministério. De modo enfático, ele disse ao presidente que o Brasil não poderia continuar sendo apenas filial de multinacionais, cujo centro de decisões está longe daqui. Na hora de um aperto, quando surgisse algum problema maior, essas grandes empresas precisam tomar decisões corporativas, que não levam em conta os interesses brasileiros. Ele insistiu com o presidente que ele precisava terminar o seu mandato com pelo menos uma dúzia de multinacionais brasileiras, empresas sólidas e internacionalmente competitivas, para começarmos a ser um país protagonista. Esse objetivo foi não apenas alcançado, como superado. A internacionalização de empresas brasileiras é o principal tema desta edição, que além da entrevista com o ex-ministro Furlan, também traz um relatório da consultoria KPMG, que revela que 885 empresas brasileiras investem em 52 países. As 20 maiores têm mais de US$ 56 bilhões em ativos no exterior e empregam 77 mil pessoas. O capitalismo brasileiro parece ter entrado em uma nova fase, com a forte participação de empresas brasileiras investindo ou trabalhando no exterior. Mas como alerta o economista Marcel Solimeo em seu artigo, para o Brasil continuar crescendo e ser respeitado no cenário internacional, é preciso respeitar o direito de propriedade, manter a estabilidade das regras e o respeito aos contratos, fatos que o Brasil parece longe de atender. Um país que pretende se inserir de forma ampla no mercado internacional não pode criar incertezas quanto ao marco jurídico e, principalmente, transmitir a impressão, como ocorre muitas vezes em declarações de algumas autoridades, de que os direitos dos que investiram não serão respeitados e que as regras podem ser mudadas ao sabor dos interesses dos governantes de plantão. Boa leitura!

Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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ÍNDICE Paulo Pampolin/Hype

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De portas abertas para o mercado internacional

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Alencar Burti

16 Sebastião Moreira/AE

Superintendente institucional Marcel Domingos Solimeo

Contradições do capitalismo brasileiro Marcel Domingos Solimeo

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Multinacionais brasileiras Relatório elaborado pela consultoria KPMG

ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo

Alfer

Diretor de Redação Moisés Rabinovici

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Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira

A Regulação e o Setor de Infra-Estrutura Adriano Pires

Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel

Marcos Peron/Folha Imagem

Editor de Arte José Coelho

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Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo

A bolha Macunaíma Mario César Flores

Infográficos Alfer Jair Soares Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Lene Gráfica REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.

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CAPA Foto: Paulo Pampolin/Hype. Arte: Alfer. Abê

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DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2008


Denis Balibouse/Reuters

Luiz Fernando Menezes/Folha Imagem

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A crise de petróleo Henrique Rattner

Eduardo Knapp/Folha Imagem

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OMC: a vida continua Roberto Fendt

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O fracasso da economia ideológica Ives Gandra da Silva Martins

Alfer

Abê

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No Recôncavo, os charutos 'made in Brazil' Euler Paixão Euler Paixão

Paulo Pampolin/Hype

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Os minérios, os índios e a ONU Denis Rosenfield

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Liderança, preponderância e cerco Oliveiros S. Ferreira

Males da Lei Rouanet Pedro Sette Câmara

Reprodução

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História das Coisas: Consumo Consciente e Cidadania Helio Mattar e Jorge Maranhão

72 Daniel Aguilar/Reuters

Três desafios à liberdade Václav Klaus

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Arquivo pessoal

Assembléia da ONU em setembro de 2005. Ao lado do presidente Lula, o ministro Celso Amorim. Na fileira de trás, os ministros Patrus Ananias, Luiz Fernando Furlan e Luiz Dulci, secretário-geral da Presidência da República.

De portas abertas para o mercado internacional Em meados de agosto, o ex-ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior Luiz Fernando Furlan visitou a sede da ACSP e concedeu uma entrevista exclusiva para a revista Digesto EconômicoNo período em que esteve à frente do ministério, de 2003 a 2007, as exportações brasileiras cresceram de US$ 60 bilhões para mais de US$ 160 bilhões. Não foi por acaso. Ele conta que, quando assumiu o cargo, o poder aquisitivo da população havia encolhido 25% desde 1999. Em conversa com o presidente Lula e com o ministro Antônio Palocci, Furlan explicou que o único modo de reativar a economia a curto prazo era a exportação. O presidente concordou. Foi assim que o governo resolveu reformar a Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). Em outra conversa com o presidente, Furlan argumentou que o Brasil não poderia continuar sendo apenas filial de multinacionais. Se o Brasil quisesse entrar no primeiro mundo, deveria ter empresas de primeiro mundo. Acompanhe a seguir a entrevista.

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Paulo Pampolin/Hype

O presidente boliviano certamente fez bobagem: mesmo já eleito, continuou e continua como se fosse candidato. Mas, na visão de Lula, se o Brasil tiver de brigar, que seja com alguém de seu tamanho.

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Dida Sampaio/AE 01/06/2003

O presidente Lula com o presidente francês Jacques Chirac (dir.), George W. Bush (atrás) e outras autoridades.

Digesto: Ministro, nos últimos anos temos visto uma grande modificação no capitalismo brasileiro. O País já conta com algumas multinacionais e vem se tornando competitivo no exterior. Qual a avaliação que o senhor faz dessa evolução? Furlan - Nos dois primeiros anos de meu mandato nunca pedi audiência ao presidente. Quando havia algum assunto a ser tratado com presidentes de multinacionais ele despachava com assessores ou com ministros da área. Mas um dia, numa viagem, comentei com o presidente: o senhor conhece algum país desenvolvido que não tenha multinacionais? E ele respondeu que, de fato, isso não existe. Esse foi o início de longo diálogo em que pude então ponderar que nenhum país entra no primeiro mundo sem ter empresas de primeiro mundo. O Brasil não poderia continuar sendo apenas filial de multinacionais, cujo centro de decisões está longe daqui. Porque na hora do aperto, quando surge algum problema maior e essas grandes empresas (alemãs, japonesas, americanas etc) precisam tomar decisões, elas tomam decisões corporativas, não levam em conta os interesses brasileiros. Há grupos multinacionais que apresentam balanço sem queda, quando seus concorrentes do primeiro mundo apresentam perdas, graças às filiais que têm no Brasil, na Argentina etc. Insisti então com o presidente que precisávamos terminar o seu mandato com pelo menos uma dúzia de multinacionais brasileiras, empresas sólidas e internacionalmente competitivas, para começarmos a ser um país protagonista. Para isso, muito contribuiu uma viagem à Espanha (junho de 2003), quando o presidente tomou conhecimento de várias empresas espanholas privatizadas que se tornaram multina-

Kevin Lamarque/Reuters 10/12/2002

cionais e grandes investidoras em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. Aquela viagem serviu para contrariar alguns dogmas típicos do sindicalismo brasileiro, que achava que investir no exterior era tirar empregos de brasileiros e prejudicar o trabalhador nacional. A partir daí o presidente começou a ser um incentivador das empresas, inclusive de empresas estatais. Há poucos dias recebi informações dando conta de que existem 48 empresas brasileiras em diversos estágios de internacionalização. Há países em que empreiteiras brasileiras dominam completamente o mercado. Somente a título de exemplo, recordo que a Embrapa, que atingiu excelente nível tecnológico, sem fins lucrativos, foi incentivada pelo presidente Lula a fazer parcerias em diversas partes do mundo. Deveríamos recordar o caso bem recente da Ambev, ou o da Gerdau para a qual mais da metade de seu lucro é originado fora do Brasil. A agenda brasileira que era em muitos casos apenas defensiva, está mudando para um estatuto de démandeur. Digesto: Muito da cultura sindical brasileira, oriunda dos anos 30, chegou ao poder. Como é que ela afeta a administração da economia? Furlan - A máquina estatal é eclética, tem gente de todo tipo. Mas, para mim, o que é relevante é o pensamento do comandante. Um comandante que, como é sabido, veio do berço sindical. Lula, porém, processa as informações de modo muito rápido e surpreendentemente incorpora coisas novas com muita naturalidade. Quem poderia imaginar, por exemplo, há cinco anos, que Lula viria a ser protagonista da rodada de Doha? Quem acompanhou as reuniões do G-7, ou as iniciativas para a implantação da Alca, há de se lembrar das manifestações de hostilidade de diversos setores dos sindicatos, partidos e de muitos grupos da população. Aos poucos o presidente Lula foi se dando conta de que vários aspectos da globalização poderiam ser trabalhados em favor do Brasil.

Kimimasa Mayama/Reuters 14/02/03

Furlan e comitiva na reunião da OMC em Tóquio.

Lula, o 'caixeiro viajante', e Furlan vendem o produto Brasil ao mundo 8

DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2008

O presidente americano George W. Bush recebe Lula na Casa Branca.


Digesto: Por que as empresas brasileiras têm investido mais no exterior nos últimos anos? É para ganhar escala para competir no mercado internacional, por causa da retração do mercado interno ocorrido no período de 2003 até 2005, ou é pelas maiores facilidades propiciadas pela globalização e a grande liquidez internacional? Furlan - Eu diria que, em primeiro lugar, foi pela necessidade. Quando Lula assumiu e me escolheu para ministro, eu dispunha de informações de que havia uma perda acumulada de poder aquisitivo da população laboriosa de 25%. Problemas que se acumularam desde 1999 fizeram com que a massa disponível de renda encolhesse 25%. O que eu propus naquela época para o presidente Lula e o ministro Palocci foi que o único modo de reativar a economia a curto prazo era a exportação. O presidente concordou. Foi assim que reformamos a Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). Essa agência era dirigida pela Dorotéia Werneck, pessoa muito competente, tinha sido ministra. Mas a Apex era praticamente um órgão catequético, voltado para o interior do Brasil. Propus ao presidente que a Apex se voltasse para fora do Brasil. Eu acompanhei muitas reuniões internacionais promovidas pelo Itamaraty e sempre constatei que eram reuniões pouco profissionais, às vezes extremamente confusas e mal preparadas. O que fizemos foi profissionalizar a Apex. A Apex não precisa fazer o que podia ser bem-feito pelo Sebrae, pelas federações etc. Comparando com as armas do Exército, a Apex tinha de ser a cavalaria: identificar os alvos e ser agressiva. No final de 2002, as empresas estavam com grande capacidade ociosa. Foi quando investimos maciçamente em missões internacionais, rodadas de negócios para vender a capacidade ociosa das empresas. Fizemos tudo profissionalmente e o resultado foi o entrosamento das empresas, apoiadas pelo governo, com o surgimento de amplas oportunidades de bons negócios, em constante processo de melhoria. O presidente

Antonio Milena/ABr 24/03/2004

percebeu que esse era um campo que gerava temas positivos para o governo, acabando com a proverbial choradeira empresarial. Esse modelo foi estendido para reuniões de investimentos, com dados estatísticos confiáveis sobre o país, identificação de nichos e propostas factíveis a curto, médio e longo prazo. Fizemos 126 viagens internacionais para promoções desse tipo, muitas delas com o presidente, que tem sido um verdadeiro 'caixeiro viajante' do Brasil. Devo acrescentar: conheci todos os presidentes das últimas décadas e Lula é o único que não tem nenhum complexo ou preconceito; ele é capaz de pegar o telefone e falar com Bush ou com quem quer que seja, de igual para igual, para promover uma empresa brasileira, seja ela estatal, seja ela privada. Isso no passado era algo considerado impuro... Achávamos natural que o presidente da França ligasse para cá para vender helicópteros, ou que o presidente americano quisesse reforçar a venda do sistema Sivam... mas achávamos errado que o nosso presidente fizesse 'lobby', por exemplo, para uma empresa brasileira vender um sistema de votação para governo estrangeiro. Na Líbia, vi o presidente Lula convencer o presidente Kadhafi sobre a qualidade dos automóveis de empresas nacionais. Lula sempre soube que era um bom negociador, desde os tempos de sindicalista; acabou se dando conta de que a capacidade de negociador é muito próxima da capacitação para vendedor.

Lula, porém, processa as informações de modo muito rápido e surpreendentemente incorpora coisas novas com muita naturalidade. Quem poderia imaginar, por exemplo, há cinco anos, que Lula viria a ser protagonista da rodada de Doha?

Digesto: No caso da Líbia, Lula foi um bom negociador. Mas no caso da Bolívia, terá sido igualmente um bom negociador? Afinal o governo da Bolívia invadiu propriedades brasileiras, colocando em risco o fornecimento de algo vital para nossa economia. Furlan - Nesse caso o Evo Morales tinha razão. O que ele pediu foi a antecipação da revisão do preço do gás. A visão do presidente é diferente da nossa. É a primeira vez que temos um presidente que vem da base, sem vínculos com a aristocracia européia. O presidente bo-

Furlan e o ministro paraguaio Ernst Bergen fecham acordo comercial.

Presidente Lula brinda com o ministro chinês Li Zhaoxing.

AFP 02/03/2005

Lula e o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, em visita à Ambev. Washington Alves/Reuters 16/12/2004

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liviano certamente fez alguma bobagem: mesmo já eleito, continuou e continua como se fosse candidato. Mas, na visão de Lula, se o Brasil tiver de brigar, que seja com alguém de seu tamanho. Lula deve olhar Morales como um irmão mais novo, que precisa de orientação; segura suas pontas até que consiga acertar o passo. Mas não nos iludamos. Ao mesmo tempo Lula chamou o presidente da Petrobras e mandou que fossem feitos os estudos e tomadas as providências para que o Brasil se torne o menos dependente possível do gás boliviano. Publicamente, Lula contemporizou, procurou pacificar o governo vizinho; mas foi suficientemente realista para medir as conseqüências e começar a agilizar o que é necessário para o nosso futuro em termos de independência energética, para não ficarmos na mão do fornecedor. Felizmente, logo em seguida se descobriu gás em nosso litoral, embora o seu aproveitamento requeira ainda muito tempo. Digesto: E os episódios do Brasil na última reunião da rodada de Doha? O Brasil não foi solidário com o Mercosul. Furlan - Eu cansei de ver o oposto acontecer, e exemplifico com um fato ocorrido em 2004. Participei de uma reunião de presidentes do Mercosul; um pequeno país que não tinha mandado o presidente à reunião não quis assinar um acordo que estava praticamente finalizado com a União Européia. A UE havia pedido uma cota de 75 mil carros por ano livres de impostos, e eles nos fariam uma série de concessões para compensar, um pacotão excelente. De 65 mil acertamos baixar a cota para 38 mil carros. Mas a Argentina, através do ministro da Economia Roberto Lavagna, fincou o pé: 25 mil carros e nada mais. Liguei para o ministro e propus que o Brasil ficasse com os 13 mil carros a mais (para o nosso mercado isso era mais que aceitável), mas o ministro foi irredutível, 25 mil carros e nada mais. Perdemos a efetivação de um bom negócio com a UE, sabendo que daí a 3 meses iria mudar a presidência da UE e seria criada uma nova comissão negociadora. Depois entraram mais países para a UE (de 15 países passaram para 27, vários deles com produto agrícola relevante). Vai ser muito difícil retomar acordos com a UE. Se o Brasil não fosse do Mercosul, teria assinado ótimo acordo com os europeus. Entretanto, com a criação do G-20, graças ao esforço do ministro Celso Amorim, o Brasil sentou-se na mesa, ainda que pequena, das negociações. E dois dos países do G-20 (Brasil e Índia) passaram a fazer parte dos cinco negociadores da OMC. Hoje, o Brasil é menos dependente das finalizações da rodada de Doha do que há al-

gum tempo. As conquistas do agro-negócio brasileiro nos últimos 5 anos nos fazem ficar otimistas. Digesto: Quais as barreiras que os investidores estrangeiros apontam no Brasil? Furlan - Há dois temas principais. Primeiro: chegou-se a dizer que, o que o Brasil oferecia em matéria de redução de tarifas era cortar na água. A nossa tarifa consolidada na OMC é 35%. A média da nossa tarifa aplicada para exportação é 12%. Na prática, nada mudaria se baixarmos a tarifa externa para 18%; mas para 80% dos produtos você corta na água, isto é, não corta substância. Outro tema: os serviços. O Brasil foi sempre muito restritivo, historicamente, para abrir o nosso mercado para serviços. Minha tese era de que o Brasil precisava rever a sua estratégia na área de serviços, seja porque a negociação, uma vez consolidada, é prevista para entrar em vigor integralmente muitos anos depois; seja porque o Brasil, em diversos setores, já é muito competitivo (por exemplo: serviços bancários, informática, telecomunicações etc); as negociações devem prosseguir não em base ao passado, mas em relação ao futuro. A abertura de serviços deve ser vista prospectivamente e estou certo que poderemos ser competitivos na área de serviços, desde que haja reciprocidade. O Brasil tem espaço para fazer mais concessões, isso tem sido sinalizado, se bem que neste momento devemos entrar numa espécie de compasso de espera, por causa das eleições americanas. Digesto: O sr. acha que o Barack Obama tem chance? Furlan - Claro, chance ele tem, mas vamos esperar. Aquilo que a gente pensa ser muito fácil, nem sempre o é. Interessante verificar o nosso relacionamento com os EE.UU. ultimamente. Os americanos protagonizaram um afastamento intencional com o Brasil e fizeram a política de cercar o Brasil. Fizeram aproximação com o Uruguai, com a Colômbia, com o Chile, alguns países do Caribe; sinalizaram tratamento especial para algumas nações. No crescimento do comércio exterior, a participação do comércio com os EE.UU. caiu de 22% para 15%; com a Europa ficou estável, 25, 24; subiu muito com a América Latina: 22, 23, ultrapassando a Europa; subiu também com a Ásia e a África: 5,6 e Médio Oriente: 5%. A nossa dependência no caso da crise americana é menor. Já quanto à crise européia, eu me preocupo. Estive há pouco tempo na Espanha e fiquei impressionado com o pessimismo que está grassando na Europa. O mercado de construção

Everett K. Brown/Reuters 12/04/2006

Presidente Lula com o vice-primeiro ministro de Israel, Ehud Olmert.

Desembarque do presidente Lula no aeropor to de Abuja, na Nigéria. Luiz Furlan, Celso Amorim, o ex-primeiro ministro japonês Junichiro Koizume e Hélio Costa.

Celso Júnior/AE 07/03/2005

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Joedson Alves/AE 11/04/2005

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civil, por exemplo, que era impressionante, de repente começou na cair.

Conheci todos os presidentes das últimas décadas e Lula é o único que não tem nenhum complexo ou preconceito; ele é capaz de pegar o telefone e falar com Bush ou com quem quer que seja para promover uma empresa brasileira.

Jacques Chirac, ex-presidente da França, em visita ao Palácio da Alvorada.

Digesto: Quais os obstáculos internos, regulatórios, para uma empresa estrangeira que queira se instalar no Brasil? Furlan - Tive recentemente contato com vários empresários estrangeiros. Fizeram uma série de ponderações, mas a conclusão foi que, desses países de nossa região, o Brasil ainda é o mais amistoso. Embora tenhamos uma burocracia complexa, a visão do investidor estrangeiro sobre o Brasil é fundamentalmente positiva para investir. Pesa muito, também, o ambiente de plena democracia de que desfruta o Brasil. Outro ponto também muito positivo é que o governo não fez mudanças nas regras do jogo, se bem que tenhamos tido umas 'pisadas de bola', com o presidente precisando corrigir declarações de ministros que falavam em alterar impostos, mexer na Zona Franca de Manaus, contingenciamento de exportação de arroz etc. Digesto: O presidente está para alterar a legislação para poder viabilizar uma megaoperação na área de telecomunicações, com nomeações de funcionários públicos, cujo escopo é facilitar as mudanças regulatórias. Até o BNDES está disponibilizando recursos para uma operação que nem sequer é legal. Esse comportamento não gera insegurança? Furlan - Creio que não. Até onde eu sei, as regras que foram feitas para o setor de telecomunicações foram feitas depois do programa de desestatização. O setor mudou, e muito. Se alguém dissesse há dez anos que um aparelhinho celular seria capaz de fazer tudo o que ele faz hoje e fará amanhã, diríamos que tinha lido tudo num livro de ficção científica. O que enfatizou a lei de telecomunicações? Os que venceram as concorrências deveriam dar acesso à população, por exemplo, a telefones públicos numa proporção de tantos aparelhos para tan-

Bruno Domingos/Reuters 06/06/2006

tos milhares de habitantes etc. Ora, hoje, telefone público virou quase uma raridade, até as crianças usam telefonia celular. Por isso, a lei geral de telecomunicações deverá ser adequada. Existem três leis que interagem nesse campo: a Lei de Telecomunicações, a Lei de Informática e a Lei da Zona Franca de Manaus. Outrora uma televisão era uma televisão, um monitor era um monitor, impressora, fax, coisas separadas... agora você tem um conjuntinho que contém tudo ao mesmo tempo. Vez por outra se pergunta: mas pode-se produzir televisão fora da Franca de Manaus? Monitor pode? Enfim, vai ser preciso fazer uma compatibilização da legislação. A própria distribuição dos espaços para as companhias na era das privatizações ficou superada. E a telefonia fixa virou um "mico". No mundo inteiro a telefonia fixa está perdendo espaço. Efetivamente vamos precisar flexibilizar as regras. Digesto: A queda que vem sendo observada nos preços das commodities é uma tendência, ou as cotações devem se estabilizar em um patamar ainda elevado? Furlan - O mundo vai ficar feliz se o barril de petróleo cair a 95 dólares... esquecendo em quanto ele estava a um ano atrás. Podemos exemplificar com o que aconteceu no começo do governo Lula. O presidente do Banco Central de Angola veio aqui pedir crédito. Angola tinha uma antiga dívida que havia sido renegociada para ser paga em 20 anos, algo como um bilhão e 400 milhões de dólares. Pagavam em x barris de petróleo por dia. Mas o preço do barril de petróleo explodiu e aquilo que os angolanos pagavam em um ano acabava sendo pago em três meses (hoje seria em um mês!). O crédito solicitado poderia ser compensado mediante uma renegociação dos valores quanto ao fornecimento de petróleo. Não foi o que aconteceu. A visão da burocracia foi a de que ali estava para cobrar aquilo a que tinha direito e não a de dar crédito aonde há possi-

Presidente Lula cumprimenta Evo Morales, presidente da Bolívia.

Carlos Gutierrez, secretário de comércio da EUA, e Luiz Furlan. Dida Sampaio/AE 25/05/2006

Ricardo Stuckert/Presidência da República 04/07/06

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bilidade de risco. Aí os chineses entraram em Angola, abriram um crédito de dois, três bilhões de dólares e tomaram um mercado que poderia ser nosso. Por que? Porque o burocrata acha que sua missão é a de enrolar o meio do campo, a missão de dizer não. É que muitas vezes setores do governo têm uma visão distorcida da economia e até as ordens do presidente não são cumpridas, quando chegam na área operacional elas não andam. As commodities precisam realmente de acompanhamento porque suas oscilações de cotação têm impacto nos fluxos financeiros mundiais. Tomemos o exemplo do petróleo. A quanto estava o petróleo há cinco anos? Perto de 30 dólares o barril! Em 2003, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita me dizia, em Riad, que o orçamento do reino fora feito com a cotação do barril de petróleo a 17 dólares, mas com a alta do barril para 20 dólares e o orçamento do reino estava com grande fluxo de dinheiro, muito mais da previsão do orçamento. Essa pergunta me faz pensar na conhecida história do bode (colocado na sala, incomoda a todos e, quando retirado, causa alívio geral e ninguém mais se recorda dos antigos incômodos). O barril de petróleo está a 130 dólares e não vai voltar ao preço de anos atrás. Se cair para 115, 110 dólares terá o efeito do bode fora da sala, todos vão respirar aliviados. Quanto à soja, para dar outro exemplo, a média histórica da cotação na Bolsa de Chicago nos últimos 20 anos permaneceu estável. Agora é que está subindo. Mas isso não significa que vai ser preciso dar subsídios. No meu ponto de vista, vai haver uma acomodação, o mercado vai promover essa acomodação, talvez com uma queda de demanda de matérias-primas, mas não será grande, mesmo porque China e Índia vão continuar na demanda de matérias primas. A acomodação vai ser boa para todos. Pode haver até uma desaceleração da inflação com algum tipo de deflação para os alimentos.

Li há poucos meses um estudo dizendo que a cada 1% de queda da economia americana corresponde 2% de queda da economia chinesa, com estimativas de que o PIB chinês seja reduzido até 8% de crescimento. Noutras palavras: a crise americana vai levar os chineses a atingir o nível de crescimento que queriam atingir e não conseguiam...

José L. da Conceição/AE 04/09/2006

Ricardo Stuckert/Presid. da República 17/07/06

Digesto: Existe mais um bode na sala: e se Israel atacar o Irã? Furlan - Aí as commodities vão subir. Quando há ameaça de conflito ninguém fica indiferente. Os países procuram estocar matériasprimas e alimentos, por isso a demanda faz puxar os preços. Rotas marítimas podem ser interrompidas, portos podem ser bombardeados etc. Mas pode também não acontecer nada e alguns países até podem acabar tirando proveito da situação. A propósito, há alguns meses eu disse que, como o Brasil não estava envolvido diretamente na área de conflito do Oriente Médio, em caso de guerra não deveríamos ter prejuízos, poderíamos até ser beneficiados. Isso deu margem para um manchetista de jornal fazer estampar: "Ministro diz que o Brasil vai levar vantagem com a guerra"... Houve um mal-entendido, claro que o manchetista não leu a minha entrevista, porque eu disse uma coisa bem diferente. O Brasil está suprindo o Iraque pelo Kuwait e pela Jordânia. As tropas inglesas que estão no Iraque estão consumindo frango brasileiro. Aliás, há partes do território iraquiano que praticamente retornaram à normalidade. Ainda há emboscadas, ainda há homens-bomba etc., mas às vezes a imagem que se tem do Iraque no exterior nem sempre corresponde à realidade dos fatos. As regiões críticas acabam dando o tom do noticiário geral. Mutatis mutandis, o que acontece conosco aqui na Amazônia tem analogia com o que acabo de dizer. E qual é a realidade do Brasil? Nós temos hoje 70% da florestas que tínhamos há mil anos. A

Maria Eugenia Solis/Reuters 10/10/2006

Luiz Furlan e o ministro Alistair Darling, do Reino Unido, visitam usina de álcool em Piracicaba, SP. Manmohan Singh, primeiro ministro indiano, George W. Bush e Lula.

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DIGESTO ECONÔMICO JULHO/AGOSTO 2008

Felisa Miceli, ministra da economia da Argentina, e Luiz Furlan.


Arquivo pessoal

Europa tem 0,13% de suas florestas antigas. A América do Norte tem 19%. O mundo tem uma visão distorcida e exagerada do que se passa na Amazônia brasileira.

Para Furlan, Lula tem sido um verdadeiro caixeiro viajante do Brasil. Na foto, visita ao Reino Unido em março de 2006.

Digesto: Que tipo de proteção os países oferecem às empresas, ou elas têm de arcar sozinhas com todos os custos, quando desejam se internacionalizar? Furlan - Isso varia muito de mercado para mercado. O presidente Gerdau me disse que em todas as suas aquisições no exterior, ele colocou, na média, 20% de capital e financiou 80%. Depois amortizou os empréstimos com

Miguel Rojo/AFP 26/03/2007

Reuters 15/01/2008

Luiz Furlan participa de coletiva de imprensa no Uruguai.

Fidel Castro brinca de fotografar Lula durante encontro em Havana.

o crescimento da operação local. Há países que exigem que se tenha um sócio local: Oriente Médio, China até há pouco tempo, até o Brasil tem exigências nesse sentido (comunicação, transporte aéreo etc). O certo é que as companhias estão descobrindo os caminhos, há escritórios especializados que as apóiam, e há empresas que formaram seus grupos especializados para fazer análises, auditorias, avaliar os riscos. O governo espanhol, por exemplo, assume o risco em até 50% do investimento de suas empresas no exterior, é uma das formas de apoiar as empresas que querem se internacionalizar.

Cristina Kirchner, presidente da Argentina, e o presidente Lula.

Tiziana Fabi/AFP 02/06/2008

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A internacionalização das empresas brasileiras

NOTAS No dia em que concedeu a entrevista para a revista Digesto Econômico, o ex-ministro Luiz Fernando Furlan veio devidamente preparado para responder nossos questionamentos. Em sua mão notava-se um calhamaço de papéis com anotações digitadas e impressas, que eram sempre consultadas. No final do encontro, tivemos acesso a essas anotações. Vejam os principais tópicos:

Empresas brasileiras, no âmbito doméstico, criaram perfis de competência diferenciados por suas características específicas e influenciadas pela competitividade do mercado interno como forma de atingir o externo.

A partir deste princípio básico, identificou-se, no final de 2006, 44 empresas que tinham o perfil do que seria o conceito de "multinacional", sendo 36 delas industriais e outras 8 de prestação de serviços.

A maior concentração dessas empresas é encontrada no segmento de insumos básicos, seguido por parte, componentes e subsistemas, situadas em diferentes posições nas cadeias globais de produção, não ficando restrita às indústrias baseadas em recursos naturais, nem ao caso excepcional da Embraer.

A presença brasileira é significativa especialmente nas indústrias de base metalmecânica. No setor de bens de consumo e alimentos, destaque para a Ambev. Em petroquímica, podemos citar a Petrobras como principal, com presenças da Brasken e da Oxiteno. Na indústria de construção civil, destacam-se as cimenteiras e a Tigre no fornecimento de insumos básicos.

Entre o fim de 2006 e começo deste ano, 29 empresas brasileiras comandavam 93 subsidiárias espalhadas pelo mundo

As subsidiárias estão localizadas principalmente na América Latina sendo, individualmente, o país com maior número de subsidiárias os

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Estados Unidos, seguido por Argentina e México, figurando a China e a Índia como destino importante dos interesses brasileiros, como também a Europa, o Oriente Médio, a África e a Ásia.

Interessante notar que 40% das subsidiárias vendem apenas para o país hospedeiro e as demais atendem mercados internacionais. As subisidiárias da América Latina vendem 70% de sua produção na própria região, 10% na América do Norte e 20% na Europa. As filiais da América do Norte enviam 10% da produção para a América Latina e 29% à Europa. Os braços europeus têm como principal mercado o Leste Europeu, seguido da Ásia, este continente sendo o mais globalizado, exportando para a Europa e Américas do Norte e Latina. Na África, as filiais atendem mercados locais, enquanto as localizadas na Europa do Leste têm pequena exportação para a Europa.

Outro dado que chama a atenção é o tamanho das empresa subsidiárias: cerca de 30% têm 60 funcionários, 20% têm entre 50 e 200, outras 25% têm entre 200 e 1.000 e os 25% restantes, mais de mil funcionários.

Quanto às receitas, 25% das subsidiárias vendem entre US$ 1 milhão e US$ 16 milhões, outros 25% vendem entre US$ 20 milhões e US$ 125 milhões, outras 35% vendem até meio bilhão de dólares, 8% estão entre US$ 500 milhões e US$ 1 bilhão e restantes 7% faturam mais de US$ 1 bilhão.

Até o ano de 2000, a forma de penetração das multis brasileiras no exterior foi o "greenfield


Investment". A partir desta data, passaram a privilegiar as estratégias de aquisição, onde o exemplo mais recente é a Gerdau, no setor de aço, e a Votorantim, que já é a terceira maior produtora de zinco do mundo. Assim, tais conquistas estão divididas entre aquisições (43%), investimentos diretos (42%) e joint-ventures e alianças (15%)

As multis brasileiras ainda são "bebês": 30% iniciaram suas operações no exterior na década de 1990 e 47% após esta data, não tendo, portanto, mais de 15 anos de experiência no exterior, onde o primeiro destino foi, naturalmente, a América do Sul. Isso por razões de ordem econômica e financeira, relacionadas com o Mercosul, como também pela proximidade geográfica e cultural.

As análises mostram que o processo de internacionalização das empresas brasileiras, embora tardio, é considerado como estágio seguinte nas estratégias de crescimento, concorrendo para isso a saturação do mercado interno e a demanda internacional, além da necessidade de ter receitas em moeda forte.

E, como no Brasil as coisas são feitas à nossa maneira e do nosso jeito, pesquisas mostram também que a internacionalização – na maioria dos casos – não é feita de maneira totalmente planejada e com critérios acadêmicos, mas sim, sugerem que, em grande parte dos casos, as decisões em alçar vôo são tomadas em curto prazo e de modo a aproveitar as oportunidades.

Neste sentido, a superação de barreiras comerciais e técnicas se revelam importantes para a maioria das empresas brasileiras, o que dá um idéia da grandiosidade, dos desafios e da competitividade enfrentados.

Nesse quadro de competitividade, as empresas brasileiras no exterior estão voltadas para as áreas de P&D e Engenharia, Produção e Operações e Relacionamentos com Clientes. A competência em Produção e Operação aparece como a mais importante, e a função Produção é a que dá maior sustentação ao processo de internacionalização. Foco final: o mercado, onde os consumidores finais ou corporativos

são os que exercem a maior influência para o desenvolvimento das competências.

Em relação aos governos locais, três são os fatores mais importantes para as empresas brasileiras no exterior: políticas do ambiente competitivo, de comércio exterior e econômica, ficando as restrições para as políticas de educação, infra-estrutura e meio ambiente.

Visão estratégica: de um modo geral, as subsidiárias admitem ter maior grau de autonomia do que as matrizes admitem estar concedendo. Neste sentido, as filiais dizem estar assumindo mais riscos do que as matrizes poderiam permitir. Mesmo assim, é de elevada freqüência a comunicação entre matriz e filial. A primeira cobra da segunda uma agressiva política de vendas, seguidos de acordos logístico e de gestão de pessoas.

Conclusões Embora recente, a análise mostra que empresas brasileiras estão buscando a internacionalização a partir de estratégias pró-ativas, mesmo antes que ocorra a saturação dos mercados internos e sem dependência de apoio governamental.

As opções atuais de localização não levam em conta riscos mínimos, ou seja, a escolha por países de menor grau de desenvolvimento, relevando a intenção estratégica de enfrentar a competição de mercados internacionais.

A tendência, depois de iniciado o processo, é de retomar modelos pré-internacionalização.

As prioridades, no exterior, são para planejamento, gestão de pessoas e modelos, revelando que o brasileiro gosta mesmo de realizar à sua maneira, tendo baixa propensão à aprendizagem resultante das estratégias de internacionalização.

Os investimentos brasileiros no exterior em 2006 foram de US$ 28 bilhões

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Sebastião Moreira/AE

Marcel Domingos Solimeo Economista e superintendente do Instituto de Economia Gastão Vidigal da ACSP.

Contradições do capitalismo brasileiro


Centro de Controle de Tecnologia da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa)

O

ex-ministro da Indústria e Comércio, Luís Fernando Furlan, destacou que a nova face do capitalismo brasileiro, e que demonstra o grau de avanço da economia do País, é a forte participação de empresas brasileiras investindo ou trabalhando no exterior, ou, em outras palavras, a existência de multinacionais verde-amarelas.


Eduardo Pregal/Folha da Manhã/AE

Neco Varella/AE

Na parte superior da página, integrantes do MST invadem fazenda. Acima, mulheres da Via Campesina depredam Aracruz

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A presença de empresas brasileiras atuando em outros países é um fato antigo, mas que ganhou importância na última década, quando as condições favoráveis do mercado mundial e a globalização, de um lado, e a retração da economia doméstica, de outro, induziram os empresários a investir no exterior para se posicionar junto a determinados mercados, obter ganhos de escala ou reduzir custos, criando ou comprando empreendimentos lá fora. Petrobrás, Gerdau, Vale (antiga CVRD), Ambev são os exemplos mais conhecidos,

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além de empreiteiras e bancos. Empresas de porte médio têm procurado outros mercados, aumentando a presença brasileira, não apenas em países emergentes, mas, também, em nações industrializadas, ao que se soma a grande expansão das exportações, especialmente de "commodities", e o aumento dos investimentos externos no país, o que o coloca como "player" relevante no cenário internacional. Assim, se pode dizer que o Brasil está inserido na globalização e participa ativamente do comércio internacional, podendo ser considerado um país moderno, que pratica o jogo do capitalismo nas mesmas condições que seus principais parceiros. Essa é a face do Brasil Moderno, que participa de discussões nos Foros e organismos internacionais, freqüenta reuniões empresariais importantes no exterior e figura nas principais publicações econômicas do mundo como um mercado desenvolvido e atrativo. Estudo realizado por Alexandre P. Groh, Heinrich Liechtenstein e Miguel A. Canela, (Gazeta Mercantil 18/8/08) analisa os fatores determinantes para os investidores em capital de risco e sociedades de participação limitada em "private equity". Como no mundo globalizado os investidores institucionais dispõem de uma vasta gama de negócios e empreendimentos em inúmeros países para escolher onde aplicar seus recursos, o estudo procurou detectar quais os critérios empregados pelos investidores na hora de decidir. Eles investigaram seis diferentes critérios para avaliar quais os fatores que mais influenciam as decisões dos investidores: atividade econômica, mercado de capitais, tributação, proteção ao direito de propriedade (intelectual, imobiliária ou pessoal), e atividade empresarial, através de mil questionários encaminhado a investidores institucionais. A proteção ao direito de propriedade foi o item mais citado de forma destacada como o principal fator determinante na escolha do local para investir, o que implica, também, no respeito às regras e aos contratos.


Valter Campanato/ABr

As conclusões desse estudo não surpreendem, pois é bastante claro que gestores de recursos de terceiros, ou mesmo os que investem seu próprio capital, não desejam correr riscos que não aqueles inerentes à atividade empresarial. Obter maior ou menor rentabilidade, ou, mesmo, ter alguma perda, em função da flutuação do mercado ou da administração do empreendimento, faz parte dos riscos da economia de mercado e podem ser avaliados pelo investidor, que exige maior rentabilidade, quando o risco for maior. Essa pesquisa confirma trabalhos dos Prêmios Nobel, Douglas North e Ronald Coase, que ressaltaram a importância das instituições para o desenvolvimento das nações, entendendo como "instituições", a Constituição, as leis, regulamentos, normas e regras, o funcionamento dos órgãos públicos, a forma como o Judiciário garante os direitos e a própria conduta da sociedade, isto é, seus valores e o grau de adesão à economia de mercado. Considerando-se os aspectos institucionais – direito de propriedade, estabilidade das regras e respeito aos contratos – no entanto, o Brasil parece longe de atender à principal condição apontada pelos investidores em capital de risco e "private equity" na pesquisa mencionada, que apontaram o respeito ao direito de propriedade como fator fundamental para a escolha dos países onde investir. Desde a Constituição de 1988, que incorporou o conceito de "função social da propriedade", o direito de propriedade no Brasil passou a ser relativizado, dando margem não apenas a legislações que o restringem, como, principalmente, a ataques diretos por parte de grupos que se auto denominam de "movimentos sociais". Não bastassem as permanentes agressões do MST e outros grupos semelhantes, incentivados e acobertados por órgãos governamentais e verbas públicas, assiste-se no País a um movimento sistemático de ataque ao direito de propriedade por parte da Funai, com a demarcação de terras indígenas, e do Incra, com as desapropriações para atender a

É notória a pressão que o ministro das Comunicações, Hélio Costa, faz para a mudança da lei, de forma a permitir a aquisição da Brasil Telecom pela Oi.

grupos de "quilombolas", sem qualquer respeito a documentos de posse dos atuais proprietários, como se nada valesse a legitimidade dos mesmos frente à "justiça social" buscada por grupos empenhados em não apenas reescrever a história, como em mudá-la de acordo com suas visões ideológicas anticapitalistas. Embora se possa alegar que os ataques e violações ao direito de propriedade tem se restringido apenas às áreas rurais, o que não é o caso das demarcações de terras indígenas que abrangem cidades inteiras, e dos "quilombolas", que tem reivindicado áreas urbanas, as agressões dos "movimentos sociais" têm atingido diversas empresas, como a Vale, Aracruz, Votorantin e outras, mostrando que se trata de uma luta contra o "capitalismo", e não apenas a propriedade agrária. Mais importante do que isso, é que essas agressões vão se incorporando à realidade como se fosse um fato normal, aceito passivamente pela sociedade brasileira, e apoiado pelas autoridades, pois não há qualquer ação para evitá-las, e nem a punição dos agressores. Se o direito de propriedade não é garantido, menos ainda a estabilidade das regras que regem as atividades privadas sujeitas a alguma forma ao controle

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Também absurda é a nomeação de uma diretora para a Anatel, não por seu "notório saber" ou experiência no setor, mas pelo fato de que ela votará a favor da mudança das normas que impedem o negócio da OI/Brasil Telecom.

governamental, como a das empresas que dependem de concessões. Quando do programa de privatização de diversos setores, foram criadas agências reguladoras dos mesmos, que deveriam atuar com independência em relação ao Executivo, para normatizar e fiscalizar suas atividades, com o objetivo de dar segurança aos investidores. O que vem ocorrendo, no entanto, é que tais agências vêm sendo politizadas, enfraquecidas e ignoradas em muitos casos, como no tocante às telecomunicações, onde o Ministro procura interferir nas decisões, sendo notória a pressão que vem sendo exercida para que a Anatel mude as regras para permitir a aquisição da Brasil Telecom pela OI. O argumento que se tem noticiado é o de que o governo considera importante a criação de uma "grande empresa nacional de telefonia", por se tratar de um setor vital, lembrando o velho nacionalismo que parecia esquecido, mas que, pelo jeito, estava apenas adormecido, embora outros interesses possam estar norteando as decisões. O absurdo a que se chegou no caso, foi o fato de que dois bancos oficias, o Banco do Brasil e o BNDES, se dispuseram a financiar a maior parcela dos recursos necessários para criar a "grande empresa nacional", mesmo essa operação ainda não sendo permitida pela legislação, na certeza de que as regras serão mudadas casuisticamente para atender a esse objetivo. Também absurda é a nomeação de uma diretora para a Anatel, não por seu "notório saber " ou experiência no setor, mas pelo fato de que ela votará a favor da mudança das normas que impedem o negócio da OI/Brasil Telecom. É evidente que regras podem ser mudadas ao longo do tempo, para adequá-las às mudanças que ocorrem no mercado, inclusive as tecnológicas, mas não de forma casuística para beneficiar uma empresa determinada, como é o caso em foco. Outra questão bastante discutida no momento é a da exploração do petróleo descoberto na camada do pré-sal. Declarações de autoridades falando em mudança das regras, em desapropriação das reservas encontradas, o que representaria quebra de contratos, de modificações na

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Lei do Petróleo de forma casuística, vem criando um clima de incerteza entre as empresas que operam no setor. Diversas propostas, inclusive a da criação de uma empresa estatal para explorar as reservas, sob argumentos nacionalistas e estatizantes, desqualificam inclusive a Petrobras para a tarefa de explorar as reservas , por ter estrangeiros entre seus acionistas. Ao invés de análises e estudos técnicos sobre como explorar as reservas encontradas, o que vai exigir investimentos de grande monta, superior à capacidade tanto da empresa como do País, discute-se a forma de administrar e dividir os recursos que serão gerados, quando houver a exploração efetiva das reservas, esquecendo-se do que dizia Roberto Campos sobre o risco de se confundir "reservas com riquezas". Embora a Petrobras e seus acionistas tenham financiado as pesquisas, fala-se em retirar da empresa a exploração do "pré-sal" porque "as reservas pertencem ao povo brasileiro", o que nunca foi contestado por ninguém. É importante lembrar que o governo estimulou os trabalhadores a comprar ações da Petrobras com o FGTS e que os Fundos de Pensões de empregados de várias empresas estatais também possuem investimentos nessa companhia. A confusão gerada por tais declarações tem provocado queda no valor das ações da Petrobras, em prejuízo de seus acionistas e da própria empresa. A adoção de medidas que permitam ao governo aumentar a receita sobre o petróleo extraído dessas reservas é positiva e possível, sem mexer na Lei. O que não se deve é criar incerteza quanto ao marco jurídico e, principalmente, transmitir a impressão, muito comum em declaração de algumas autoridades, de que os direitos dos que investiram não serão respeitados e que as regras podem ser mudadas ao sabor dos interesses dos governantes de plantão. A discussão sobre a utilização dos recursos para a criação de um "Fundo Soberano" no estilo da Noruega parece precipitada antes de se avaliar a real extensão das reservas e o montante necessário para sua exploração, mas, o maior risco, é que se queira vincular a

Pré-sal: declarações de autoridades falando em mudanças de regras, em desapropriação das reservas encontradas, de modificação na Lei do Petróleo de forma casuística, vem criando um clima de incerteza entre as empresas do setor.


Bruno Domingos/Reuters

receita proveniente do petróleo, seja para educação ou para qualquer outra finalidade que permita aumento dos gastos públicos, sem antes se fazer um amplo programa de racionalização das despesas. As preocupações se tornam mais justificáveis quando se constatam intervenções políticas de natureza ideológica ou eleitoral, não apenas nas declarações desencontradas de autoridades, como pelo fato de o governo ter obrigado a Petrobras a desfazer a venda de uma mina de silvinita, da qual se extrai o potássio, para uma empresa canadense, sob o argumento de que se trata de um mineral estratégico para a produção de fertilizantes. Esses exemplos servem para mostrar que o respeito ao direito de propriedade e aos contratos no Brasil não é respeitado, o que é agravado pelo fato de que, segundo o almirante Mário César Flores, em artigo no Estadão de 13/08 (veja matéria na pág. XX), "a sociedade, em vez de indignação, quer usufruir o Estado paradisíaco, haja vista o interesse pelo serviço público e pelo apoio estatal, do capital à exclusão assistida". Isto é, a sociedade brasileira, regra geral, espera do estado benfeitor o atendimento de suas necessidades, não valorizando o papel do empresário como gerador de riquezas. Embora muitas empresas estejam disputando o mercado internacional, o capitalismo brasileiro ainda não está consolidado na medida em que parcela expressiva da população não parece defender os valores da economia de mercado, o que permite aos governantes e políticos manterem a tributação elevada, os controles burocráticos exagerados, a regulamentação excessiva da economia e, até, o arbítrio em muitas decisões, levando a que já se tenha definido o regime vigente como "capitalismo consentido", no sentido de que, para se desenvolver, as empresas precisam contar com o beneplácito das autoridades. Muitos argumentam que esses problemas não são relevantes porque os investimentos continuam entrando no País, mas, certamente, o volume poderia ser maior se o Brasil oferecesse condições mais favoráveis para os investidores.

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MULTINACION A Rota dos Investimentos Em 2006, o volume de investimentos diretos efetuados do Brasil para o exterior foi, pela primeira vez na história, maior do que o de investimentos recebidos. A internacionalização revela um Brasil além das commodities minerais e agrícolas, que pode conquistar um espaço de destaque no cenário global das indústrias e dos serviços.

Arte de Alfer sobre foto divulgação

Relatório elaborado pela consultoria KPMG


AIS BRASILEIRAS Brasileiros no Exterior

E

m 2006, o volume de investimentos diretos efetuados do Brasil para o exterior foi, pela primeira vez na história, maior do que o de investimentos recebidos. A internacionalização revela um Brasil além das commodities minerais e agrícolas, que pode conquistar um espaço de destaque no cenário global das indústrias e dos serviços. Este relatório retrata o processo cada vez mais comum e crescente da internacionalização das empresas brasileiras.

O estudo que segue foi elaborado pela KPMG no Brasil com base em dados e estudos públicos disponibilizados pelo Banco Central do Brasil, pela UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), Fundação Dom Cabral e notícias divulgadas pela mídia brasileira. As informações foram atualizadas até 31 de janeiro de 2008. A KPMG no Brasil não se responsabiliza pela acuracidade de tais informações, cujas fontes encontram-se devidamente citadas. Este material está disponível no website www.kpmg.com.br.


A Trajetória das Transnacionais Brasileiras Muito embora a maior parte das grandes empresas transnacionais do mundo tenha origem na União Européia, Estados Unidos e Japão, tem sido observada nos últimos anos uma mudança significativa neste cenário. De fato, nota-se um aumento expressivo no número de empresas de economias em desenvolvimento na lista das empresas exportadoras de capital (1). No Brasil, a multinacionalização aconteceu com quase um século de atraso em relação a empresas européias e americanas, que tiveram seu processo iniciado após a Primeira Guerra Mundial. Todavia, este processo vem crescendo vigorosamente nos últimos anos, impulsionado principalmente pelos cenários econômicos nacional e internacional favoráveis e pela valorização do real. Tardiamente ou não, o fato é que se pode afirmar que fronteira já não mais representa uma barreira para a expansão das empresas brasileiras. Ao contrário, trata-se de uma estratégia de mercado e talvez até questão de sobrevivência. A pressão cada vez maior pela liberalização do comércio internacional, o fortalecimento dos blocos econômicos formados por países ricos e as aquisições internacionais tornaram o mercado muito mais competitivo. Em muitos setores, a presença global e o tamanho dos grupos econômicos podem decretar seu sucesso ou fracasso.

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Os pioneiros iniciaram tal processo na década de 70, mas em 2006, pela primeira vez na história, o volume de investimentos brasileiros diretos no exterior ultrapassou o volume de investimentos estrangeiros no País. Do total de US$ 152,2 bilhões de ativos brasileiros declarados como localizados no exterior no ano de 2006, o destaque ficou para a modalidade "Investimento Direto" (investimentos superiores a 10% do capital da investida) (2), que totalizou um montante acumulado de US$ 97,7 bilhões (sendo US$ 91 bilhões associados ao setor terciário). O Brasil figura como 19º maior receptor de investimentos do mundo. Só em 2006, o Brasil recebeu US$ 19 bilhões em investimentos, um aumento de 20% em relação a 2005 e figura como um dos principais destinos de investimentos internacionais. Mas além de ser um dos principais destinos dos investimentos internacionais (como demonstram os gráficos a seguir), o Brasil tornou-se também um forte exportador de capitais. Segundo dados divulgados em 2007 pelo Banco Central do Brasil com base nas declarações de Capitais Brasileiros no Exterior (CBE 2007), os investimentos diretos brasileiros (IDB) no exterior atingiram a incrível marca de US$ 32,3 bilhões no ano de 2006. Esta marca colocou o Brasil na 12ª posição no ranking dos maiores investidores do mundo, superando países como Austrália, China, Rússia e Suécia, entre outros (3).


Pércio Campos/O Globo

A marca de investimentos brasileiros no exterior em 2006 colocou o Brasil na 12ª posição no ranking dos maiores investidores do mundo.

A Petrobras figura na segunda posição do ranking por ativos externos no ano de 2006.

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Os recursos que saíram do País a título de investimento externo direto no ano de 2006 aumentaram 49,4% em relação ao montante do ano de 2005 e 129,46% em relação a 2001, quando o estudo do Banco Central foi conduzido pela primeira vez.

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O aço é um dos principais itens de exportação. Na foto, a Companhia Siderúrgica de Volta Redonda (RJ). Alaor Filho/AE

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Na análise dos dados anterior (setor terciário), deve-se considerar que muitos investimentos diretos são efetuados por intermédio de empresas holding, que tem por objeto social a participação societária em outras empresas. O resultado dos dados estatísticos acima poderia ser distinto, caso se considerasse o ramo de atividade das investidoras e não das investidas ou, ainda, das empresas operacionais detidas pelas holdings.


Principais Destinos dos Investimentos De acordo com o levantamento do Banco Central do Brasil de Capitais Brasileiros no Exterior 2007, grande parte dos capitais brasileiros tem como destino os chamados "paraísos fiscais", principalmente Ilhas Cayman, Ilhas Virgens Britânicas e Bahamas. Os Estados Unidos da América também destacam-se no destino de capitais brasileiros. A partir de 2004, a Dinamarca juntou-se ao grupo dos maiores receptores de investimento direto e, em 2006, as Bermudas também ganharam importância como destino inicial de investimentos diretos de residentes no País.

As Ilhas Cayman permaneceram na liderança, com US$ 20,3 bilhões, seguidas por Bermudas (US$ 15,1 bilhões), Dinamarca (US$ 10,4 bilhões), Ilhas Virgens Britânicas (US$ 10,3 bilhões) e Bahamas (US$ 9,3 bilhões). Os cinco países responderam por 66,8% do total da conta de Investimento Externo Direto (participações acima de 10% do capital da investida). O destino primário dos investimentos estrangeiros nem sempre é o país no qual se localiza a empresa operacional a ser constituída ou adquirida. Muitas vezes o investimento transita por empresas que possuem por objeto social a participação societária em outras empresas (holdings) localizadas em países

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europeus ou paraísos fiscais. Os atrativos de tais jurisdições compreendem condições tributárias favoráveis, regras simplificadas, estabilidade financeira e política, além de permitir melhor administração dos investimentos estrangeiros, consolidação para fins contábeis e financeiros etc. Paraísos Fiscais Conforme as informações do Banco Central do Brasil, dos atuais US$ 152 bilhões aplicados no exterior, US$ 75,7 bilhões destinaram-se a jurisdições conhecidas como paraísos fiscais. Deve-se considerar que além da possibilidade de utilização dos paraísos fiscais para a constituição de empresas holdings, muitos investimentos efetuados em paraísos fiscais são de natureza financeira. O valor destinado aos paraísos fiscais aumentou 55% no ano de 2006 em relação ao ano anterior. Este aumento foi superior ao percentual de crescimento dos investimentos diretos brasileiros (36%) (4). A Receita Federal do Brasil considera como paraísos fiscais os países ou dependências que não tributam a renda ou que a tributam à alíquota inferior a 20% ou, ainda, cuja legislação interna oponha sigilo relativo à composição societária de pessoas jurídicas ou à sua titularidade (5). Top 20 Um estudo coordenado pela Fundação Dom Cabral em conjunto com o Columbia Program on International Investment (CPII), da Columbia University, sobre o fluxo de investimentos estrangeiros diretos (IED) concluiu sobre as multinacionais brasileiras que (7): G

Os ativos de companhias brasileiras mais que dobraram no exterior entre 2005 e 2006. G O Brasil passou a ser o segundo maior investidor externo entre nações em desenvolvimento no ano de 2006 (somente atrás de Hong Kong). G As multinacionais brasileiras ainda são empresas regionais. Das 20 maiores, dez concentram suas atividades na América Latina. G A internacionalização tem sido liderada pela Vale, Petrobras e outras companhias de recursos naturais, que detêm 70% do estoque total de investimentos estrangeiros diretos brasileiros, de US$ 108 bilhões no exterior. G A lista das 20 maiores investidoras inclui grupos industriais, empresas de construção civil e de tecnologia, como Embraer, Odebrecht e Itautec. G A Gerdau lidera com 54% o "índice de transnacionalidade" das empresas do País. O resultado seria outro se a Odebrecht tivesse sido considerada sem a petroquímica Braskem. Sem a Braskem, a Odebrecht possui índice de 57% de transnacionalidade, o mais elevado entre as brasileiras. G As 20 principais multinacionais do País têm US$ 56 bilhões de ativos no exterior, mais da metade

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do total de fluxo de investimentos diretos brasileiros. Isso representou 20% de seus ativos totais em 2006 (12% no ano anterior). A média das 200 maiores empresas de países emergentes é de 33%, o que reflete a ainda tímida presença brasileira no exterior comparativamente a concorrentes asiáticos. G As empresas brasileiras empregam 77 mil pessoas no exterior – cifra idêntica ao total de empregados do grupo farmacêutico suíço Roche no exterior. G Três firmas têm mais de 10 mil empregados fora do País, representando, na média, 19% do total dos empregados. Já as maiores multinacionais dos grupos de nações em desenvolvimento têm em média 33% dos empregados no exterior. G Oito, das vinte maiores brasileiras, declararam que espanhol e/ou inglês são língua oficial, juntamente com o português. G 885 empresas brasileiras investem em 52 países, o que indica que também pequenas e médias companhias começam a se instalar no exterior. As multinacionais brasileiras estão presentes em, em média, três diferentes países.


De acordo com a Fundação Dom Cabral, cerca de 885 empresas brasileiras investem em 52 países distintos. Os principais motivos que justificariam a forte expansão seriam a aproximação e ampliação dos mercados de consumo, a valorização da moeda nacional (R$) e a valorização da marca.

A Gerdau lidera com 54% o índice de transnacionalidade das empresas do País.

Divulgação

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Investimentos de Destaque

Aquisição da argentina Mirab pela Marfrig em 2008 (8) De acordo com pesquisa da KPMG Corporate Finance Brasil, as transações anunciadas de fusões e aquisições envolvendo empresas Brasileiras continuaram a crescer em 2007 e estabeleceram novo recorde anual, com crescimento expressivo de 48% em relação ao ano anterior. De janeiro a dezembro, foram realizadas 699 transações, 226 a mais do que no ano anterior. A conjuntura econômica local favoreceu o nível de atividade desses setores em virtude da expansão do consumo, aumento da oferta de crédito, redução das taxas de juros ao longo do ano, redução do Risco País e o aumento das reservas internacionais. Além disso, a continuidade do desenvolvimento do mercado de capitais deixou as companhias nacionais capitalizadas para investir. Os últimos anos foram representados por um marco importante no processo de internacionalização de empresas do País, pois, o fluxo de investimentos para o exterior é cada vez maior e mais intenso. As transações anunciadas em que empresas brasileiras adquiriram empresas no exterior registraram crescimento de 40% em 2007. As transações desta natureza triplicaram nos últimos 4 anos, tendo sido registradas 22 operações em 2004, 24 em 2005, 47 em 2006 e 66 operações em 2007.

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Aquisição da americana Swift Foods Company pela Friboi em 2007 (9) Aquisição da Chaparral Steel Company pela Gerdau em 2007 (10) Aquisição da colombiana Acerías Paz del Rio, da americana U.S. Zinc e a compra de 27% do capital da argentina Aceros de Bragado (AcrerBrag) pelo Grupo Votorantim em 2007 (11) Construção de fábrica na Rússia pela Sadia em 2007 (12) Aquisição da canadense INCO em 2006 e da australiana AMCI Holdings em 2007 pela Vale (13) Joint venture com Tata Motors em 2006 para construção da maior fábrica de ônibus do mundo na Índia pela Marcopolo (14) Aquisição da argentina Loma Negra pela Camargo Corrêa em 2005 (15)


Tasso Marcelo/AE

A Vale, que atua na área de mineração, é a primeira empresa no ranking por ativos externo, cujo percentual chega a 46%.

Estratégias para o Sucesso A internacionalização é um processo que exige planejamento. Porém, um estudo da Universidade de São Paulo, publicado pela Revista Época Negócios, revelou que em um grupo de empresas, no qual 96% possuem planos de internacionalização, apenas 43% afirmam ter efetuado estudos criteriosos para sair do País (16). As oportunidades são muitas e compreendem redução de custos logísticos e de mão-de-obra, obtenção de recursos financeiros em condições mais favoráveis, conquista de novos mercados etc. Por outro lado, há que se administrar diferenças culturais, idiomáticas e, em alguns países, instabilidade cambial, política e econômica. Questões como recrutamento de profissionais, treinamento, flexibilidade na gestão, entre outras, devem ser analisadas antes da implementação do investimento. Tarefa importante para o investidor é a obtenção de recursos para a expansão internacional. As opções são muitas e abrangem financiamento com recursos próprios, empréstimos bancários, incluindo as linhas de crédito disponibilizadas pelo BNDES, financiamentos no exterior e captação no mercado de capitais. Os custos tributários do investimento devem ser cuidadosamente analisados. Deve-se entender os tributos cobrados no

país de destino do investimento, os impactos tributários no Brasil e verificar a existência de tratados para evitar a dupla tributação (17) e potenciais benefícios fiscais deles decorrentes. É importante considerar não só as relações da investidora brasileira com as subsidiárias estrangeiras, mas também o tratamento fiscal das operações e relações entre as subsidiárias. Depois de efetuado o investimento, um desafio importante é transferir o conhecimento não só da matriz para o exterior, mas estar atento às oportunidades de aprendizado com a experiência estrangeira. De fato, principalmente em casos de aquisições internacionais, as empresas brasileiras tendem a maximizar os benefícios da internacionalização quando ao invés de impor sua forma de atuação à empresa estrangeira, criam um novo modelo a partir da experiência acumulada por ambas. A integração das operações e processos pós-aquisição e o grau de autonomia das subsidiárias estrangeiras também é outro fator que merece atenção. As multinacionais devem definir qual é o nível de autonomia das filiais em relação à matriz. Por falta de políticas claras, pode-se acabar delegando menos do que deveria, resultando no enfraquecimento das subsidiárias, perda de seu empreendedorismo e sobrecarga da matriz, desestimulando os executivos estrangeiros. Deve-se buscar o ponto de equilíbrio tanto na questão da centralização ou descentralização das operações e funções administrativas, a fim

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de se evitar duplicação de tarefas ou ineficiência por atribuição errônea de responsabilidades. Na pesquisa citada acima, participantes apontaram a gestão de recursos humanos como uma das principais preocupações das empresas. Expatriar executivos da matriz é uma prática comum entre as companhias. Porém, excessos e a falta de organização neste processo podem produzir impactos negativos. As equipes ideais devem ser heterogê-

neas, compostas de conhecedores da cultura, missão e valores da empresa e de conhecedores do novo mercado, que possam contribuir com informações da cultura local e do funcionamento do mercado alvo, sem as quais a maior parte das iniciativas está fadada ao fracasso. É imprescindível que os profissionais tenham a capacidade de conviver e aceitar idéias e formas de trabalho diferentes daquelas com as quais estejam habituados.

Jefferson Coppola/Folha Imagem

Divulgação

Leonardo Rodrigues/Hype

A lista das 20 maiores investidoras inclui grupos industriais, empresas de construção civil e de tecnologia. As empresas brasileiras empregam 77 mil pessoas no exterior, cifra idêntica ao total de empregados do grupo farmacêutico Roche.

Divulgação

(1) UNCTAD, World Investment Report 2007

(6) Ranking publicado em um estudo coordenado pela Fundação

(2) Data-base: 31 de dezembro de 2006. Não inclui empréstimos

Dom Cabral e pela Columbia University apontando as 20 empresas mais internacionalizadas. (7) Estudo publicado pelo jornal Valor Econômico em 3 de dezembro de 2007 - Dobram os ativos no exterior de companhias brasileiras. (8) Fonte: Estado de São Paulo, 3 de janeiro de 2008 (9) www.jbs.com.br (10) www.gerdau.com.br (11) Fonte: Valor Econômico, 27 de dezembro de 2007 e 21 de novembro de 2007 (12) Fonte: Valor Econômico, 3 de dezembro de 2007 (13) www.vale.com.br (14) www.marcopolo.com.br (15) www.camargocorrea.com.br (16) Época Negócios – dezembro 2007 – Os 7 pecados das maiores empresas - Estudo coordenado pelos professores Afonso e Maria Tereza Fleury (17) Países com os quais o Brasil possui Acordos para evitar a Dupla Tributação: África do Sul, Argentina, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, China, Coréia, Dinamarca, Equador, Espanha, Filipinas, Finlândia, França, Holanda, Hungria, Índia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, México, Noruega, Portugal, República Checa e Eslováquia, Suécia e Ucrânia (www.receita.fazenda.gov.br/ Legislacao/AcordosInternacionais/AcordosDuplaTrib.htm)

entre companhias e somente considera participações societárias superiores a 10% do capital da empresa receptora. Participações inferiores a 10% foram consideradas na modalidade "Portfolio". (3) UNCTAD, World Investment Report 2007 (4) Fonte: Folha de São Paulo. Sábado, 05 de janeiro de 2008 (5) São considerados paraísos fiscais, nos termos da Instrução Normativa/SRF no. 188 de 6 de agosto de 2002: Andorra; Anguilla; Antígua e Barbuda; Antilhas Holandesas; Aruba; Comunidade das Bahamas; Bahrein; Barbados; Belize; Ilhas Bermudas; Campione D’Italia; Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey e Sark); Ilhas Cayman; Chipre; Cingapura; Ilhas Cook; República da Costa Rica; Djibouti; Dominica; Emirados Árabes Unidos; Gibraltar; Granada; Hong Kong; Lebuan; Líbano; Libéria; Liechtenstein; Luxemburgo (no que respeita às sociedades holding regidas, na legislação luxemburguesa, pela Lei de 31 de julho de 1929); Macau; Ilha da Madeira; Maldivas; Malta; Ilha de Man; Ilhas Marshall; Ilhas Maurício; Mônaco; Ilhas Montserrat; Nauru; Ilha Niue; Sultanato de Omã; Panamá; Federação de São Cristóvão e Nevis; Samoa Americana; Samoa Ocidental; San Marino; São Vicente e Granadinas; Santa Lúcia; Seychelles; Tonga; Ilhas Turks e Caicos; Vanuatu; Ilhas Virgens Americanas; e Ilhas Virgens Britânicas.

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Desafios

Oportunidades

G

Diversidade cultural

G

Redução de custos (mão-de-obra, logística)

G

Impasses políticos e religiosos

G

Valorização do real em relação ao dólar

G

Domínio do idioma estrangeiro

G

Valorização e fortalecimento da marca

G

Vantagens fiscais

G

Novos mercados

Dificuldade na introdução dos valores da matriz

G

G

Mão-de-obra despreparada

Dificuldades na integração de estratégias, operações, sistemas e pessoas

G

G

Burocracias locais

Falta de transparência e instabilidade econômica em alguns países

G

G

Corrupção

G

Infra-estrutura

G

Volatilidade cambial

Estudos e custos de planejamento e implementação

G

Busca de novos canais de distribuição e aprimoramento de eficiência

G

G

Competitividade internacional

Obtenção de recursos financeiros a taxas mais competitivas

G

As fronteiras já não mais representam uma barreira para a expansão das empresas brasileiras. Ao contrário, ultrapassá-las representa uma estratégia de mercado. As oportunidades no exterior são muitas, com redução de custos logísticos e de mão-de-obra.

Masao Goro Filho/e-SIM

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A Regulação e o Setor de InfraEstrutura


Wilton Junior/AE - 11/01/02

Adriano Pires Diretor do Centro Brasileiro de Infra-estrutura e professor da UFRJ

E

O setor de telecomunicações é regulado pela Anatel Agência Nacional de Telecomunicações, que tem a missão de desenvolver este segmento. Na foto, cabos de fibra óptica.

mbora a maior parte do debate acadêmico sobre política econômica concentre-se na sua essência na dicotomia Estado versus mercado, o entendimento das inúmeras questões econômicas e a busca de soluções práticas não se enquadram nesse simples clichê. O mercado e o Estado são ambos sistemas imperfeitos e partes inexoráveis do nosso cotidiano, sendo a operação de cada um significativamente influenciada pelo outro. Tanto o mercado como o Estado são processos que variam em tempo real, sendo dependentes de aspectos históricos e recheados por surpresas. A regulação aparece como importante elemento para atuação da economia de mercado, em particular, em serviços de utilidade pública. Alguns autores acham que o termo regulação descreve muito do que o governo faz e que não deveria fazer. Ressaltam que é possível entender melhor o sistema regulatório como uma configuração específica, que visa a estruturação da relação entre interesse social, Estado e o ator econômico em múltiplos setores da economia. Por outro lado, poderíamos encarar a regulação como um jogo entre as agências e as empresas. Sob essa ótica, a agência reguladora deveria especificar as possíveis estratégias dos "jogadores", seus objetivos, a ordenação dos movimentos e as informações trocadas no "jogo". No que se refere a "possíveis estratégias", as empresas deverão tomar decisões sobre preços, produção, investimentos de capital, qualidade do serviço e investimentos em redução de custo e inovação. As agências devem procurar regular apenas algumas dessas variáveis, não interferindo em quaisquer outras atividades. Ao explicitar as limitações das partes e as obrigações recíprocas, os contratos re-

gulatórios deveriam estimular investimentos e elevação dos padrões de atendimento. Nesse sentido, os objetivos da regulação seriam reduzir externalidades negativas (meio ambiente), promover externalidades positivas (otimização das redes e universalização), coibir exercício do poder de mercado (tarifas justas e razoáveis), promover custos e investimentos eficientes e proteger os consumidores de práticas lesivas (qualidade e informação). A existência de uma regulação clara, crível e bem aplicada é essencial para o bom funcionamento das chamadas indústrias de rede. Entenda-se, desde logo, pela expressão "indústrias de rede", o conjunto das indústrias dependentes da implantação de malhas (ou redes, ou ainda "grids") para o transporte e distribuição ao consumidor dos seus respectivos produtos. Com efeito, as indústrias de rede foram, desde a sua emergência – quando as primeiras redes de distribuição de gás para iluminação urbana surgiram nos Estados Unidos no início do século 19 – consideradas, no todo ou em parte, objeto de uma dupla caracterização: de um lado, eram entendidas como sujeitas a uma situação, a elas intrínseca, de monopólio natural; de outro, percebia-se, nelas, a presença de fortes elementos de serviço público, ou seja, elementos que as caracterizariam como indústrias de importância estratégica, cujo funcionamento afetaria o interesse geral. A conjunção destas duas especificidades justificaria um processo de intervenção do poder público, a ser manifestado, seja pela nacionalização dos serviços – resposta que foi geralmente adotada pelos países da Europa e pelos em desenvolvimento – seja pela adoção de procedimentos específicos de regulamentação – adotados essencialmente nos Estados Unidos.

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Joel Silva/Folha Imagem

Paulo Pampolin/Hype

Não haverá crescimento sustentado da economia e promoção do bem-estar social sem a expansão dos investimentos em infra-estrutura.

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Os objetivos dos modelos de intervenção originalmente concebidos no pós-Segunda Guerra eram de três ordens. Primeiro, proteger o investidor contra uma concorrência destrutiva. Segundo, proteger o consumidor contra o abuso do poder de monopólio. Por último, salvaguardar o interesse geral no que tange a segurança de abastecimento e à igualdade de tratamento a todos os consumidores Nos anos de 1970, estas políticas intervencionistas tornaram-se alvo de inúmeras críticas, gerando um grande debate acerca do futuro das indústrias de rede, em termos da sua organização institucional. Todas estas questões encontram-se vinculadas, em última instância, ao comportamento adotado pelo poder público em relação ao controle das rendas geradas, pelas indústrias de rede, no âmbito das suas atividades produtivas. Desde logo, é oportuno destacar que, embora aparentemente distintas, as questões envolvendo propriedade (pública ou privada), concentração (controle fragmentado ou não, riscos de oligopolização etc.) e nível e intensidade da regulamentação encontram-se fortemente interligadas. Em outras palavras, quanto menor for o controle público sobre as atividades produtivas, maior será a probabilidade de se fazer instaurar um regime regulatório preocupado justamente em evitar uma forte concentração de mercado por parte das empresas e, por conseguinte, de aproximar os objetivos da regulação dos interesses do consumidor, despolitizando o sentido da atuação pública sobre estes mercados. Além disso, qualquer que seja o posicionamento adotado acerca desta questão, será sempre necessário alguma forma de comprometimento com a regulação, dado que, apesar dos extraordinários progressos tecnológicos que vêm sendo alcançados em algumas áreas (telefonia, por exemplo), ainda subsistem características de monopólio natural nas indústrias de rede, principalmente nos segmentos de transporte e distribuição de gás natural e energia elétrica, onde o pequeno consumidor não possui nem poder de escolha, nem capacidade de enfrentamento em relação ao seu habitual fornecedor. Desde os primeiros desenvolvimentos das indústrias de rede, diversos modelos organizacionais foram sendo adotados e modificados, em função dos resultados que auferiam e dos problemas que suscitavam, no processo de teste empírico a que são submetidas, implacavelmente, todas as instituições que compõem a vida econômica, política e social. A discussão mais intensa a respeito do modo de organiza-


ção das indústrias de infra-estrutura, ocorrida no curso da década de 1970, não se deveu, por certo, a uma eleição temática fruto de pré-disposições ideológicas ou de caprichos políticos. Ao contrário, a intensificação do processo de globalização econômica advinda da intensificação dos fluxos de comércio internacional e da formação de grandes blocos econômicos transnacionais, bem como a crise financeira atravessada pelo Estado, acabaram desenhando um quadro onde níveis crescentes de exigência por parte dos consumidores – em termos de prestação de serviços diferenciados e tecnologicamente mais sofisticados – coexistiram com estruturas produtivas institucionalmente arcaicas e dependentes da tutela estatal, financeiramente incapacitada a responder a estes desafios. Os diversos matizes que comporta a questão da abertura das indústrias de rede à concorrência demonstram grande complexidade ao longo do tempo, pois, além de envolver claros compromissos ideológicos, como o papel do Estado como regulador e/ou planejador, impacta decisivamente o status quo dos negócios já estabelecidos, além de determinar a di-

reção e o perfil dos novos projetos. Caso o objetivo seja termos no Brasil setores de infra-estrutura maduros e desenvolvidos, é fundamental a inexistência de quaisquer tipos de obstáculos à instauração de mercados concorrenciais, desde que amparados em uma legislação objetiva e transparente e fiscalizados e regulados por uma agência reguladora com capacitação técnica e com direção autônoma e independente. Caso queiramos que o marco regulatório seja um fator para a consolidação de uma estratégia que objetive o desenvolvimento sustentável da economia brasileira, é fundamental entender três mensagens chaves. A primeira é que não haverá crescimento sustentado da economia e promoção do bem-estar social sem a expansão dos investimentos em infra-estrutura. A segunda mensagem é que uma maior participação dos capitais privados nos projetos de infra-estrutura é fundamental diante das restrições existentes para o aumento dos gastos públicos. Por último, a atração de capitais privados para a infra-estrutura somente ocorrerá com o estabelecimento de um regime regulatório crível, previsível e claro.

Ainda subsistem características de monopólio natural nas indústrias de rede, principalmente nos setores de transporte e distribuição de gás natural e energia elétrica (...)

Marcos Peron/Folha Imagem

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A

parentemente, vai tudo bem: presença internacional, aceleração do crescimento, inflação controlada (?), grau de investimento, reservas vultosas, candidatura a sede de Olimpíada (no tranqüilo e seguro Rio de Janeiro...), bancos ganhando enormidades, indústria e comércio felizes com o crédito-aventura, agronegócio reclamando do dólar baixo e surfando no mercado global, classe média consumindo e fazendo turismo, desemprego em queda, povo incluído satisfeito em seus anseios pequeno-burgueses e o excluído, conformado na informalidade e no assistencialismo. Este artigo aborda a insegurança dessa aparente felicidade diante de fatores negativos da nossa combinação de Estado de que tudo se espera, de proteção e apoio à tolerância permissiva, com a psique coletiva resistente a valores, deveres e limites da vida em comunidade. Realça de imediato a deterioração da missão cívica da política e da administração pública, assimilada pela sociedade, que, em vez de indignação, quer usufruir o Estado paradisíaco, haja vista o interesse pelo serviço público e pelo apoio estatal, do capital à exclusão assistida. A associação da deterioração cívico-política com a leniência societária dá espaço a tudo: partidos sem programas e projetos, abertos a conluios oportunistas e sem consistência ideológica, micropolítica imediatista acima da política de maior prazo, que não produz dividendos eleitorais rápidos, estatismo e as condutas viciosas que lhe são inerentes, loteamento (político, familiar e, recentemente, também sindical) de milhares de cargos comissionados, naturalmente propenso a situar a conveniência política (evidenciada no número de Ministérios) e o privilégio acima da competência e do mérito, encargos do Estado mal atendidos em razão do desempenho

político-administrativo insatisfatório, grevismo no serviço público, abusivo e impune, que faz do povo refém da sua capacidade de chantagem – enfim, desacertos de toda ordem, de que os citados são representativos. Outra macrorrazão da insegurança da situação supostamente feliz é o desrespeito pandêmico à lei (e à Justiça, manifesto na resistência ao cumprimento de sentenças de reintegração de posse) e a correlata banalização da anormalidade, do jeitinho trivial à desordem, violência e criminalidade, à insegurança individual e patrimonial. O certo-errado é hoje uma antinomia conceitual ambígua, tolerante com o ilícito, da invasão e destruição de fazendas, sedes do Incra, Reitorias e até da Câmara dos Deputados (!), do mensalão e cartão corporativo, ao simples carro na calçada. Mesmo quando grave, o ilícito cai rapidamente no esquecimento, uma vez saturado seu potencial de espetáculo midiático. Nos episódios de violência os sistemas de segurança são comumente acusados, com ou sem razão, como culpados pelas conseqüências (a delinqüência não indeniza...). Já existem áreas em que a delinqüência controla a ordem, caracterizando a coexistência dos


(futebol, carnaval, réveillon etc.) e o consumismo paranóico estimulado por propaganda de mau gosto ou equívoco padrão moral. Particularmente sintomática, a relativa desimportância do nosso mercado de livros. Estamos, de fato, vivendo razoável crescimento econômico que, com altos e baixos, vem gerando reflexos positivos, embora limitados, sociais e internacionais, mas esse avanço não tem sido acompanhado por avanços correspondentes na política, no respeito à lei, na educação e na cultura. O descompasso valida a dúvida: o crescimento econômico aparentemente feliz e seus reflexos positivos têm fundamentos sólidos ou, mais dia, menos dia, sua continuidade será abalada não apenas por percalços econômicos alheios ao escopo deste artigo (infra-estrutura precária, problemas no mercado internacional, por exemplo), mas também pela areia movediça política, sociocomportamental, educacional e cultural? O sucesso de qualquer país, e muito mais de país complexo como o Brasil, exige seriedade na distinção entre o mero crescimento e o desenvolvimento lato senso, entre o certo e o errado, entre o lúdico e o dever, entre o pífio e a qualidade, entre o despreparo indutor do atraso e o saber promotor do avanço. A inobservância dessa distinção põe em risco o progresso com eqüidade social e coesão nacional e compromete a essencialidade da democracia (o crescimento em si é complacente com o autoritarismo: China, hoje). Motivo de júbilo, o crescimento em curso não garante sozinho a ascensão do Brasil ao status a que o credencia seu potencial. Pode levá-lo – tem levado – a incursionar pontualmente no jogo do mundo mais desenvolvido, mas não teremos visto de entrada plena e permanente nele se não controlarmos nossa bolha macunaíma, capaz de sufocar o fôlego do crescimento.

Reprodução

Estados formal de direito e paralelo (da delinqüência) e já vivemos sintomas (por ora claros no Rio de Janeiro) de ameaça insólita: a da delinqüência no processo eleitoral, na configuração do poder legal! A terceira razão expressiva, influente na formação do poder político (na condução da vida nacional...) e no desapego pela ordem legal, é a combinação do ensino precário (suas ilhas virtuosas não neutralizam a mediocridade geral) com a hegemonia da vulgaridade na cultura, até na classe média. Em vez de ensino de boa qualidade, do fundamental à ciência e ao humanismo, à semelhança do que fizeram países recentemente bem-sucedidos, optamos por recursos ao estilo "progressão continuada" e cotas. Quanto à fatuidade cultural, figuremo-la sinteticamente nestas manifestações emblemáticas: programas da TV (e filmes apoiados por recursos públicos, alguns eivados de licenciosidade vista como arte) que aluem a nossos já fracos padrões culturais, abastardamento televisado da religião, enaltecimento de anomalias (sexual, nos costumes), exaltação do lazer em detrimento do trabalho (a apoteose do feriadão), a anestesia psicossocial lú di ca

Mario César Flores Almirante-de-esquadra (reformado), ex-ministro da Marinha e da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo)


Denis Balibouse/Reuters


Bel Pedrosa

OMC: a vida continua

Roberto Fendt Economista e vice-presidente do Instituto Liberal

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aso se tivesse chegado a bom termo e a um bom acordo teria sido ótimo para o Brasil e a comunidade das nações, dizem alguns. Caso não se tivesse chegado a bom termo e a um bom acordo, também teria sido ótimo para o Brasil e a comunidade das nações, dizem outros. E há quem, como alguns argentinos, afirmam que, o que de pior poderia ter acontecido para o seu país teria sido um bom acordo; melhor, diziam esses últimos, foi que não se chegou a acordo algum.

nas principais economias mundiais. A União Européia e o Japão, países tradicionalmente protecionistas de seus mercados internos, fincaram pé em suas posições. Os EUA continuaram a ser a nação mais aberta ao comércio, embora abrigue certos surtos protecionistas localizados. O caso do algodão é o mais sintomático, já que a proteção a esse pequeno segmento produtivo no Sul dos EUA tem conseqüências devastadoras para a produção e exportações de alguns dos países mais pobres da África. Contudo, não há como ignorar que 40% das exportações mundiais de Um breve retrospecto produtos manufaturados têm os Estados Unidos como destino. Boa parte dessas exportações se origina em países asiáDoha não é apenas mais uma rodada de negociações multicos, que têm no mercado americano sua principal receita tilaterais no âmbito da Organização Mundial de Comércio de exportações. Um eventual surto protecionista nos Esta(OMC). A complexidade das negociações vem crescendo ao dos Unidos teria conseqüências desastrosas para a manulongo do tempo, especialmente após a Rodada Uruguai, com a tenção do crescimento de uma boa parte das economias asiáinclusão de temas como a proteção à propriedade intelectual e ticas e teria um efeito também negativo nas taxas de cresciaos investimentos. E é também fato que mento de um número expressivo de Delegados defendem os interesses o formato das negociações, em single países em todo o mundo. econômicos de seus países em sala undertaking – como aponta a OMC, virMuitos se surpreenderam com a de reunião na sede da Organização tualmente cada item da negociação é emergência do protecionismo agrícoMundial do Comércio, em Genebra, parte de um pacote indivisível e não la na Índia e na China. Parte da explidurante a rodada de Doha. pode ser objeto de acordo separadacação é encontrada na adesão tardia mente – não facilita em nada a chegada da China à OMC. Mas a parte substana um mínimo de consenso, ainda que tiva tem a ver com a política interna em temas pontuais. dos dois países. Também as expectativas, pelo meA agricultura familiar é o sustentános de alguns países, cresceram com culo da sobrevivência da maior parte essa rodada. Para o Brasil, a opção pelo da população da Índia e da China. Os multilateralismo, entre outras razões, setores modernos dos dois países, onde nos levou a abandonar a alternativa da está localizado o dinamismo das duas Alca e a aprofundar as negociações em economias, envolve a parcela menor torno de um acordo de livre comércio das duas populações. O tradicionalisMercosul-União Européia. mo da agricultura da Índia e da China O mundo como um todo, dividido não suportaria a competição do agropelo evento do 11 de setembro, parte negócio brasileiro, como não suportaconsternado, parte em júbilo, também ria a concorrência da agricultura amecolocou grandes expectativas com os ricana ou dos subsídios europeus. O resultados da rodada. É certo que não que fazer com a massa de agricultores, abrandaram as pressões protecionistas mais de setecentos milhões somente na Denis Balibouse/Reuters

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Fernando Donasci/Folha Imagem

China, que seria deslocada para a periferia das megacidades chinesas e indianas? É claro que há quem diga que a questão das "salvaguardas especiais" para a proteção da antiquada agricultura indiana e chinesa serviu apenas de pretexto para a suspensão das negociações. Pode ser. O fato é que a questão é delicada. Como disse recentemente o embaixador Marcos Castrioto de Azambuja, a hora de Doha ainda não chegou. O imediato pós-Doha Muitos se preocuparam, no calor das negociações, com um eventual fracasso nas negociações e com suas conseqüências. É difícil definir um "fracasso" em negociações internacionais dessa natureza. É claramente possível dizer que as negociações foram suspensas, mas é menos claro indicar que fracassaram. Isso porque, independentemente de ter-se ou não chegado a acordo, há um virtual consenso de que a ausência de acordo não significa um retrocesso, um desprestígio da OMC ou uma retração no comércio mundial, que quase todos crêem que continuará em expansão. Retrocesso teria ocorrido se, em seguida à suspensão das negociações, alguma lei de comércio tivesse sido aprovada nos EUA, de cunho fortemente protecionista. O OMC hoje é muito mais que um fórum de negociações para a ampliação do espaço de livre comércio no âmbito internacional. A sua função na solução de controvérsias entre as partes contratantes, por seu caráter permanente, já é tão importante quanto a tradicional função exercida pelo GATT de fórum de negociações comerciais.

Divulgação

Jitendra Prakash/Reuters

Os efeitos da suspensão das negociações Caso se tivesse chegado a bom termo e a um bom acordo teria sido ótimo para o Brasil e alguns dos principais exportadores de alimentos. Aponta-se com freqüência que, agora que as negociações multilaterais "fracassaram", o Brasil deverá voltar-se para negociar acordos bilaterais e regionais. As perguntas que ficam são: acordos bilaterais com quem? Regionais, onde? Porque não dispomos de massa crítica para chegar a bom termo com potenciais parceiros de acordos bilaterais do porte dos EUA, União Européia ou China. Compensaríamos a suspensão das negociações multilaterais da rodada Doha firmando acordos bilaterais com países pobres da África? Com a expansão do nosso principal acordo regional, o Mercosul, quais as regiões factíveis para acordos regionais envolvendo o Mercosul, com o qual estamos umbilicalmente associados? O multilateralismo no comércio internacional é um equivalente, ainda que distante, do Estado de Direito nas relações entre os cidadãos de uma mesma nação. É a garantia da paz interna; da manutenção da ordem; de que os contratos livremente pactuados serão honrados. O poder do multilateralismo como regulador das relações comerciais entre as nações tem se revelado nos diversos casos de infringência das suas regras. Ganhamos dos poderosos EUA em caso recente em que patentemente tínhamos razão; e essa razão nos foi asse-

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Há quem diga que a questão das "salvaguardas especiais" para a proteção da antiquada agricultura indiana e chinesa serviu apenas de pretexto para a suspensão das negociações.


Ricardo Stuckert/Reuters

gurada pela independência dos componentes do painel que julgou nosso litígio com os norte-americanos. Da mesma forma, outros países submeteram seus litígios comerciais aos diversos painéis, sendo a decisão independente do tamanho ou poderio dos contendores. Por essa razão, um bom acordo nos teria sido benéfico – como será, tenho certeza, no futuro, quando a hora desse acordo chegar. O ônus da prova de que o impasse nas negociações nos beneficiou está com os que defendem esse ponto de vista. A raiz da questão é uma só: mais comércio é melhor ou pior que menos comércio? Há toda uma literatura, que se inicia no final do século 18, em favor de mais comércio, por oposição a menos comércio. Desconheço argumentos consistentes em contrário. Por fim, é compreensível a posição de alguns argentinos que se regozijaram com o impasse nas negociações. O que eles afirmam, em off, é que já teria sido ruim para a Argentina mesmo um mau acordo; um bom acordo teria sido simplesmente catastrófico. O argumento é simples: um bom acordo beneficiaria enormemente o campo, em detrimento das cidades, já em adiantado processo de deterioração econômica. O atual governo não tem dado provas de ser capaz de gerenciar os interesses conflitantes dos produtos agrícolas, exportadores, como os interesses protecionistas, urbanos. Um acirramento desse conflito, como resultado de um bom acordo em Doha, seria imanejável e teria seqüelas difíceis de imaginar. É possível. Se assim for, estaríamos replicando, com o sinal trocado, os casos das agriculturas ineficientes da Índia e da China, que levaram à interrupção das negociações.

AFP

Mario Anzuoni/Reuters

O impasse foi bom para a Argentina. Um bom acordo beneficiaria enormemente o campo, em detrimento das cidades, já em adiantado processo de deterioração econômica. O atual governo não tem dado provas de ser capaz de gerenciar os interesses conflitantes dos produtos agrícolas, exportadores, como os interesses protecionistas, urbanos.

O futuro mais distante Não é a primeira vez que negociações internacionais são suspensas. Certamente não será a última. Há diversos motores que favorecem uma expansão do comércio, com ou sem acordo na Rodada de Doha. Esses fatores têm naturezas tecnológicas e políticas. Os fatores tecnológicos contribuem para uma redução da distância econômica entre as nações. Na época dos Descobrimentos, levava um ano de Portugal às Índias e outro ano na volta, em razão do regime dos ventos. O volume de cargas era pequeno. Metade dos navios se perdia no meio do caminho. Em 1788, uma viagem da Inglaterra à Austrália tomava 100 dias; toma hoje cerca de 20 dias. A introdução de megaembarcações para granéis sólidos e líquidos reduziu brutalmente o custo unitário do frete. A introdução do container tornou viável o comércio internacional de manufaturados a baixo custo. O frete aéreo apressou o just in time dos sistemas manufatureiros. Finalmente, os satélites de comunicação e a melhoria da telefonia viabilizaram um mercado financeiro e de câmbio mundiais que funciona 24 horas por dia. Espera-se mais progresso, em lugar de regresso, na introdução de inovações tecnológicas que aproximarão ainda mais as nações no futuro. Também os fatores políticos militam a favor de mais comércio. Basta apontar o exemplo da China para mostrar que há mais consenso em favor de mais comércio que à sua oposição. Independentemente de quando venha a ocorrer uma nova rodada da OMC, sanando as deficiências da atual.

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O fracasso da economia

C Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP, do CIEE/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado Maior do Exércio-ECEME e Superior de GuerraESG e Presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e do Centro de Extensão Universitária-CEU.

ertamente, a idade tem me tornado mais intolerante com uma enormidade de falácias que se ouve no mundo moderno e que não consigo esconder. A primeira delas é de natureza econômica. A economia é, fundamentalmente, uma ciência psicossocial definida pelo mercado. São bons os economistas que percebem suas tendências, aproveitando-as e, quando possível, – o que é raro – reorientando-as. A econometria é uma mera ciência instrumental e, decididamente, não há economia ideológica. O fracasso daqueles que entendem que os economistas fazem a economia, a partir de suas convicções políticas, tem seu retrato, no mundo moderno, na monumental falência de todos os países que estiveram sob o domínio soviético, na Cuba de Fidel e naquelas nações afro-asiáticas e latino-americanas que ainda vivem da vã ilusão de que a ideologia faz o mercado.


ideológica

O p ró p r i o MST, inspirado por economistas, defendem o avanço do retrocesso e da agricultura pré-histórica – certamente entre os neandertalenses haveria "economistas" de maior visão, pois seu povo sobreviveu, primitivamente, por algumas dezenas de milênios – é um movimento de natureza política e não econômica, totalitário e não democrático, cujo objetivo mais remoto é entregar terras para uma parcela reduzida da população. Seu principal e verdadeiro escopo é desestabilizar as instituições, impor ideologias anacrônicas pela violência – e não pelas urnas – e impedir o desenvolvimento do País, tomando terras que tornaram o Brasil uma das maiores potências do agronegócio na atualidade. É que a economia é um jogo de xadrez. Cabe ao economista analisar as regras de mercado – que são percebidas por todos –, sendo bom aquele que consegue antecipar as jogadas futuras, como o faz um hábil jogador. Não é um jogo de pôquer, como querem os ideólogos, nem um jogo de estatísticas, como querem os econometristas, cultores de uma ciência cuja utilidade instrumental, todavia, não pode ser dispensada. O mundo atual tem excesso de operadores econômicos e carência de verdadeiros economistas. Por isto está em crise, porque não anteviu os movimentos das regras do mercado, nem percebeu o que já se admitia, desde o início do século: que o "boom" econômico iria provocar uma inflação de demanda, com escassez de produtos essenciais e seu natural aumento de preço. Estão todos os países, agora, assustados com a inflação. As técnicas clássicas de combatê-la, com política monetária e fiscal, parecem de indiscutível fragilidade. Paulo Nogueira Neto, talvez o maior ambientalista do Brasil, disse-me, certa vez, que se o mundo inteiro tivesse o padrão de vida dos Estados Unidos, não haveria como produzir alimentos, energia e condições de vida para toda sua população. De rigor, uma melhora de qualidade de vida de toda a humanidade acabou por resultar no incrível preço do petróleo, na es-

cassez de alimentos e no aumento de preços das "commodities". Os próprios Estados Unidos sofreram o impacto deste "boom" que lideraram e do qual foram as primeiras vítimas. Seu sistema financeiro – não lastreado, como o sistema brasileiro, fundamentalmente em títulos públicos, mas em títulos privados –, terminou por mostrar-se débil, gerando a crise mundial. Mesmo a redução dos juros para incentivar o consumo, num momento de necessidade de controlá-lo, provocou dois fatores que afetaram ainda mais a dimensão da crise: a recuperação mais lenta do próprio mercado financeiro, em face dos juros baixos, e um desinteresse maior dos investidores estrangeiros, derrubando seu próprio consumo e atingindo as ações de suas companhias, pela falta de credibilidade. Tal impacto, à evidência, num PIB mundial em torno de 50 trilhões de dólares, sendo os EUA responsáveis por quase 30%, não poderia gerar senão um descontrole de intestino, que terminou por elevar o nível de preocupação sobre o futuro. Nitidamente, a China, cuja ditadura esquerdista adotou as regras do livre mercado, está se beneficiando da crise mundial, em face de os encargos burocráticos, tributários, trabalhistas acumularem um custo de descompetitividade, para os países ocidentais, que a China desconhece. Certamente, combater a tendência ocidental de cada vez trabalhar menos, com mais direitos e menos deveres, provoca pesados ônus políticos, que os governantes do mundo inteiro não querem assumir, o que torna o futuro domínio da China na economia mundial uma questão de tempo. Não é que a China seja melhor, é que o mundo é muito pior. Neste quadro, o Brasil não está imune aos problemas gerais, em face de sua absurda carga tributária (37% do PIB), da esclerosada máquina burocrática, que gasta muito e gasta mal, dos juros elevados, único instrumento que tem para combater a inflação, e dos monumentais encargos trabalhistas, alavancados pelas questões judiciais de resultados desestimulantes. Patinamos como os outros. Mas, de todos os países da atualidade, o Brasil é o que tem melhores condições para sair-se bem, nesta crise, pois, num mundo dominado pela necessidade de "commodities", é aquele que melhores condições possui de suprir suas carências e as do mundo. Para isto, todavia, haveria necessidade de combater a inflação com corte de despesas de custeio, para que a política fiscal não se fizesse pelo aumento da arrecadação, mas sim de redução da esclerosada máquina administrativa. Para isto, precisamos ter estadistas e não de políticos. Até porque, como dizia famoso autor português, "os políticos e as fraldas devem ser mudados constantemente e pelas mesmas razões". Sem a ironia do autor, parece-me, todavia, que estamos necessitando, urgentemente, de estadistas no País.

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Fotos: Euler Paixão

No Recôncavo, os Vista da cidade de São Félix, às margens do rio Paraguaçu. É do Recôncavo Baiano que sai grande parte do tabaco utilizado na fabricação de charutos.

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charutos 'made in Brazil' Por Euler Paixão

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Dannemann: começou a operar em 1873 em São Félix, iniciando a produção com o trabalho de seis negras alforriadas.

Num passeio em algumas cidades do Recôncavo Baiano, principalmente em Cachoeira, São Félix, Maragojipe e Muritiba, podemos sentir o passado que estas cidades vivenciaram através da cultura fumageira, com a produção industrial de charutos e cigarrilhas. Instalados em fins do século 19, o aumento do consumo mundial nas primeiras décadas do século 20 elevou o grau de importância na fabricação de charutos, chegando esta região a produzir 120 mil toneladas de fumo e 250 milhões de toneladas deste produto por ano, com 50 unidades fabris instalados. Dentre as empresas que tinham uma extensa produção de charutos no passado, podemos enfatizar a Dannemann, que começou a operar em 1873 em São Félix, iniciando a produção com o trabalho de seis negras alforriadas. Foi fundado pelo alemão Gerhard Dannemann, grande benfeitor da cidade, que realizou inúmeras melhorias, como a introdução do telefone, da iluminação, pavimentação pública, entre outras, sendo prefeito da cidade duas vezes. Na década de 50, a Dannemann chegou a empregar 3 mil operários, instalando indústrias em outras cidades do Recôncavo. Em 1976, a marca foi vendida para um grupo suíço e desde 1981, a fabricação de charutos se dá no interior do Centro Cultural Dannemann. 50

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Outra empresa, a Suerdieck, foi fundada em 1892 em Maragojipe, pelo também alemão Gerhard Suerdieck. A fábrica dedicava-se inicialmente apenas à exportação do fumo e só começou a fabricar charutos em 1905, chegando a ser um dos maiores fabricantes mundiais, sendo que na época do jubileu de ouro da empresa, em 1955, empregou mais de 2 mil operários e reinou quase sozinha, absorvendo a clientela dos demais, que entraram em falência, chegando a produzir 160 milhões de charutos anuais. Segundo depoimentos de pessoas que conheceram a fundo a história da empresa, Winston Churchill (ex-primeiro ministro britânico) e Franklin D. Roosevelt (ex-presidente norteamericano) fumavam, entre outras marcas, os charutos Suerdieck. A empresa chegou a se expandir com uma grande fábrica em Cruz das Almas, fechada em 1993. A Leite & Alves foi fundada no fim do século 19 em Cachoeira, onde trabalhavam cerca de 200 operários. Fechada na década de 70, a antiga instalação ocupa uma área de 3.916 m², com construções do período colonial, imperial e republicano, que está sendo reformada e adaptada para abrigar a futura Universidade Federal do Recôncavo. Por fim, é preciso também citar a Costa Ferreira & Penna e a Vieira de Melo, ambas fundadas em 1851, e a Pimentel Indústria de Charutos, fundada em 1939 na cidade de Muritiba.


Operárias trabalham na confecção de charutos na fábica da Dannemann

O mercado em números Os charutos dividem-se em duas categorias: o Premium Cigars, em que o miolo é constituído pela folha inteira do tabaco, e o Short Filler, com miolo feito por meias folhas. O Brasil tem 11 fábricas de charutos, fora as produções artesanais, todas no Nordeste e a maioria na Bahia. O Recôncavo Baiano é a principal região produtora, de onde sai grande parte do tabaco utilizado na fabricação de charutos. Ao todo, são produzidas 60 marcas, incluindo as cigarrilhas. A produção nacional atinge mais de 22 milhões de unidades ao ano. A indústria nacional gera 600 empregos diretos e 1.200 indiretos. O mercado oficial de charutos Premium no Brasil é de 2,4 milhões de unidades – 1,6 milhão produzido no País e o restante trazido de Cuba. Para cada charuto vendido legalmente, há um contrabandeado sendo consumido. Os charutos nacionais são exportados para a Alemanha, Suíça, Portugal, Itália e Argentina. As principais fabricantes de charutos no Brasil são a Dannemann, Menendez Amerindo, Josefina Tabacos do Brasil, Manufatura Brasileira Le Cigar e Chaba, todas baianas. A mais antiga é a Dannemann, fundada em 1873 pelo imigrante alemão Gerhard Dannemann na cidade de São Félix. A fábrica passou por sérias dificuldades durante a Segunda Guerra Mundial e, em 1976, foi comprada pelo grupo suíço Burger, que também detém as marcas Salvador, Menudo, Maduro, Especial, nº 1 e São Félix, além das cigarrilhas Reynitas e Bahianos. Cuba é o principal produto mundial, com cerca de 80 milhões de unidades por ano, vendidas para o mundo todo, com destaque para a Europa e América do Sul. Os charutos cubanos, conhecidos como Habanos, não podem ser comercializados nos Estados Unidos. O faturamento chega a US$ 300 milhões.

AS MÃOS FEMININAS Do ofício de fazer charuto, a principal atividade das fábricas é ocupada por mulheres, conhecidas como charuteiras. No passado, elas representavam 80% do universo da mão-de-obra fabril. Estas trabalhadoras aprimoraram a forma artesanal dos charutos, sendo elas feitas à mão, com 100% de fumo sem aditivos químicos. No trabalho manual é feita a arrumação das folhas, sua torção, preparo dos capotes e das capas. É reconhecido que os charutos do Recôncavo são de fumo encorpado, aromático e levemente adocicado. Atualmente, temos pequenas fábricas com um número reduzido de funcionários, entre as quais podemos destacar: Chabra Charutos da Bahia (Alagoinhas), Dannemann (São Félix), Menendez & Amerino (São Gonçalo do Campo, com produção de 3 milhões de unidades/ano, destinadas ao Canadá, EUA e Alemanha), Josefina e Le Cigar Manufatura Tabaqueira (Cruz das Almas), Paraguaçu e Talvis (Cachoeira). JULHO/AGOSTO 2008 DIGESTO ECONÔMICO

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Do ofício de fazer charuto, a principal atividade das fábricas é ocupada por mulheres, conhecidas como charuteiras. No passado, elas representavam 80% do universo da mão-de-obra e aprimoraram a forma artesanal de fazer charutos, totalmente feito à mão.

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preponderância e cerco

Fotomontagem/AFP

Liderança, Nelson Almeida/AE

Oliveiros S. Ferreira Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, escritor e jornalista

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Presidentes: Luís Inácio Lula da Silva (Brasil), Tabaré Vázquez (Uruguai), Hugo Chávez (Venezuela), Cristina Kirchner (Argentina), Michelle Bachelet (Chile), Evo Morales (Bolívia), Daniel Ortega (Nicarágua), Fernando Lugo (Paraguai), Rafael Correa (Equador).


O

presidente Luís Inácio Lula da Silva teve a iniciativa de afirmar – e não apenas uma vez – que o Brasil tinha direito a ser reconhecido como líder da América do Sul. A seu ver, razões não faltavam para que essa posição fosse dada como natural; na enumeração de algumas delas, repetiu os dados que se costumam alinhar para afirmar que o Brasil tem importância no mundo – território, população e PIB, entre outros. Com o correr dos meses, a pretensão (pois a afirmação de uma liderança nada mais é que isso) deixou de estar presente no discurso oficial, que cuidou de insistir na idéia de integração sul-americana, sob a alegação de que ela era necessária para que a região pudesse enfrentar os desafios lançados pelo Norte e pela chamada globalização. A posição do Brasil na última reunião da Rodada de Doha, quando deixou de lado a Argentina e o Grupo dos 20 para sustentar interesses isolados, associada à oposição que Bolívia e Paraguai movem ao que seus presidentes indicam ser "hegemonia brasileira", deverá fazer que o Itamaraty e o Planalto procurem esquecer durante um bom tempo aquilo que o presidente

O Brasil disputa com a Venezuela uma posição de preponderância na América do Sul, mas a pretensão de Lula é de uma hegemonia.

Lula dizia ser uma verdade a ser reconhecida pelos demais países da América do Sul. O que não impede que o governo brasileiro continue trabalhando para disputar, agora com a Venezuela, uma posição de preponderância na região. A afirmação do presidente Lula da Silva sobre liderança escondia no fundo uma pretensão de hegemonia – com ou sem império, mas sempre hegemonia, isto é, o desejo do Brasil de falar pela região nos foros internacionais, e ser reconhecido pelos governos sul-americanos como seu intérprete qualificado. Essa é uma coisa. Outra, totalmente diferente, é o que vem sendo realizado há muito tempo no sentido de afirmar uma posição de preponderância. Hegemonia e preponderância são substantivos diferentes, ainda que para muitos possam parecer sinônimos. Hegemonia internacional implica o reconhecimento tácito ou expresso por parte de terceiros Estados de que há um Estado que fala em nome deles, reconhecimento esse que leva, no limite, a aceitar que os interesses políticos de quem é aceito como representante sejam tidos como iguais ou semelhantes aos dos demais. Já preponderância implica simplesmente a afirmação, por um Estado, do seu maior relevo ou importância na relação com os demais Esta-

Daniel Aguilar/Reuters

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AFP 08/08/1974

Quando o presidente Nixon, ao saudar em Washington o presidente Médici, disse que para onde se inclinasse o Brasil, inclinar-se-ia a América Latina, a reação foi negativa, pois era a imagem que não deveria ser passada aos governantes latino-americanos.

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dos: este Estado vê-se como tendo chegado a um nível mais alto de desenvolvimento econômico e tecnológico, podendo, por isso, auxiliar (disso retirando necessariamente vantagens políticas e econômicas) o desenvolvimento dos que ocupam posição menor na escala das posições de poder (tome-se "preponderante" no sentido em que o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa o toma (terceiro significado): "que tem importância ou relevo – considerável, importante, influente: aquele país teve um papel absolutamente preponderante nas negociações para o estabelecimento da paz".) A preponderância, se politicamente bem administrada, e o seu reconhecimento não questionado pelos demais Estados, poderão elevar um Estado a uma posição de liderança, portanto. O que permitirá que fale pelos demais em nome de interesses econômicos, não políticos, comuns. Para que não se tenha o presidente Lula da

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Silva como o primeiro a manifestar a pretensão de que o Brasil fosse preponderante, cabe registrar que em 1958, ao fim das negociações que conduziram ao depois malogrado Acordo de Roboré com a Bolívia, o então chanceler Macedo Soares confidenciava a alguns jornalistas que seu próximo objetivo seria conseguir dos países sul-americanos procuração bastante para falar em nome deles na Assembléia Geral da ONU, que se abriria poucos meses depois. Contudo, registre-se, igualmente, que, quando o presidente Nixon, ao saudar em Washington o presidente Médici, disse que para onde se inclinasse o Brasil, inclinar-se-ia a América Latina, a reação no Estabelecimento Militar em Brasília foi negativa, pois essa era a impressão que os governos brasileiros não deveriam, jamais, passar aos governos latino-americanos. Ao dizer que a proclamação da liderança nada mais é que uma pretensão, mesmo do país que se reconheça como preponderante, tenho claro que não é possível a Estado algum da América Ibérica – do Sul, do Norte (México) ou Central – supor que seus interesses políticos possam ser idênticos ou semelhantes aos dos demais a ponto de um deles cogitar de assumir a direção dos esforços de todos frente a determinados problemas internacionais. Sem dúvida, há elementos na História que permitem uma tentativa de encontrar uma identidade comum: foram colônias, tiveram seu desenvolvimento industrial tolhido pelo Pacto Colonial, alguns deles (México, os países da América Central e das Antilhas) sofreram intervenções armadas dos Estados Unidos e todos, depois de independentes, viram-se engolfados por aquilo que muitos costumam chamar de imperialismo (fosse inglês, fosse norte-americano). As semelhanças, a rigor, terminam aí. Depois, vêm as diferenças, algumas das quais impedem que se possa imaginar que seja possível, um dia, apagá-las por decisão governamental. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que cada país tem sua formação social (demografia, estruturas sociais e políticas) e história, sobretudo essa, próprias. Depois, que os povos e os governos da América de colonização espanhola têm consciência viva de sua história – o que os brasileiros não têm. Ora, quando se tem em mente as relações históricas do Brasil com seus vizinhos, não é possível esquecer que, desde 1822, o Brasil separou-se deles: primeiro, foi o Império, enquanto todos eles cultivavam, ainda que idealisticamente, a forma republicana de governo. Depois, é preciso não olvidar que as relações do Império com seus vizinhos no Prata foram conflituosas – ou nos esquece-


Andre Dusek/AE

mos, os de minha geração, de que no ginásio aprendemos que houve as guerras contra Oribe e Rosas (Uruguai e Argentina) e que a guerra do Paraguai deixou seqüelas que ainda hoje não se apagaram na vizinha nação? Por ventura, também não nos lembramos de como se deu a incorporação do Acre ao território brasileiro? Por último, mas não por fim, é preciso não esquecer de que a língua espelha culturas diferentes, vale dizer, aspirações, visões do mundo distintas e muitas vezes inconciliáveis. Quando comecei minhas andanças pela América do Sul em missões jornalísticas, surpreendi-me ao encontrar nos países vizinhos que visitei, e na literatura política dos demais, a firme convicção de que o Brasil era um país imperialista. A afirmação do presidente Morales, segundo a qual o Brasil comprou o Acre pelo "preço de um cavalo" é falsa em todos os sentidos; a reação dos novos dirigentes do Paraguai ao Tratado de Itaipu (que apenas repro-

Fabrice Coffrini/AFP

A reação dos novos dirigentes do Paraguai ao Tratado de Itaipu mostra que a Guerra Grande ainda está viva na memória de muitos.

Foi o embaixador Celso Amorim, quando ministro de Itamar Franco, quem reconheceu que os interesses primeiros do Brasil estavam na América do Sul.

duz o estado de espírito de amplos setores de sua classe política), e de setores sociais avessos à presença de brasileiros na agricultura de seu país, mostra que a Guerra Grande ainda está viva na memória de muitos, muitos... que têm a avivá-la, lançando lenha na fogueira daquilo que, na Inglaterra, chamou-se de "jingoismo", ou seja, um nacionalismo exacerbado, a palavra do presidente Hugo Chávez, lembrando sempre que pode a figura de Solano Lopes, para ele um herói. O acerto, erro ou falta à verdade histórica parece não ter tanta importância, pois o que deve ser levado em conta é que essas avaliações da política brasileira são feitas por chefe de governo, e com certeza encontram respaldo em setores da população, especialmente entre as pessoas que, segundo se aprende na Academia, formam opinião. Não se apaga a história de um povo por um ato de governo – especialmente quando o País, cujo governo deseja que se esqueça a História, é aquele que, na consciência coletiva dos povos que pretende liderar, é tido como o inimigo histórico. Ao fazer essas observações, não esqueço os fatos – e eles militam em favor da tese da preponderância. Pretendo apenas deixar presente que o processo de integração levado a cabo pelo governo Lula não é uma estrada larga e sem obstáculos a ser trilhada sem cuidado. Especialmente agora que os capitais brasileiros descobriram, com o apoio do BNDES, onde é possível acumular. Da perspectiva em que me coloco, é necessário lembrar que esse processo não é de iniciativa do atual governo; os créditos diretos pela iniciativa devem ser dados ao governo Fernando Henrique Cardoso, que realizou a primeira reunião de Chefes de Estado e governo da América do Sul. Ou, se quisermos distribuir medalhas a quem as merece, talvez devamos reconhecer que foi o embaixador Celso Amorim, quando Ministro das Relações Exteriores do governo Itamar Franco, quem reconheceu que os interesses primeiros do Brasil estavam na América do Sul e não na América chamada Latina. Ou, a título de reconhecimento da melhor verdade histórica, devemos não esquecer que o presidente Castelo Branco, em julho de 1964, já estabelecia que "O interesse do Brasil coincide, em muitos casos, em círculos concêntricos, com o interesse da América Latina, do Continente Americano e da comunidade ocidental", não devendo "cercear contatos comerciais e financeiros com países de diferentes sistemas políticos e econômicos". A referência ao discurso que o presidente Castelo Branco proferiu na cerimônia de formatura dos diplomatas em 1964 não vem ao acaso.

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Castelo Branco insistia em que o Brasil devia "ter seu próprio pensamento e sua própria ação". E acrescentava que "Esse pensamento e essa ação não serão subordinados a nenhum interesse estranho ao do Brasil".

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Deixemos de lado, por ora, qualquer consideração outra sobre a insistência que colocava na "interdependência" imposta pelo confronto entre os sistemas "democrático ocidental" e o dos "paises socialistas" (a Guerra Fria). Sem entrar agora na discussão desse problema, cabe ver como a ação diplomática era vista pelo presidente do segundo ciclo de presidentes militares (a expressão "ciclo de presidentes militares" traduz melhor a realidade histórica do que aquela, tão em voga, de "governos militares": o primeiro ciclo inaugurou-se e se esgotou com o governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra, um dos contestáveis do Estado Novo. Castelo Branco insistia em que o Brasil devia "ter seu próprio pensamento e sua própria ação". E acrescentava que: "Esse pensamento e essa ação não serão subordinados a nenhum interesse estranho ao do Brasil". Ele também deixava claro, ao cuidar da opção "entre a negociação bilateral versus a multilateral", que o Brasil tinha "uma posição

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chave – demográfica e estratégica" que deveria ser explorada nas negociações bilaterais, tendo igualmente uma "especial posição" nas negociações multilaterais que, em seu tempo, centravam-se na Aliança para o Progresso. No que se refere à ALAC, dizia que seu governo se empenharia "em tornar a Associação Latino-Americana de Livre Comércio um instrumento eficiente de incremento nas trocas entre os países americanos". (Não devemos esquecer, hoje, que a ALAC, depois ALADI, forneceu para governos posteriores o arcabouço jurídico-institucional para que se lançassem as bases do Mercosul). Antes, Castelo Branco havia firmado posição: "A nossa política externa tem, por sua vez, os seus próprios objetivos. A diplomacia deve ser também um instrumento para carrear recursos para o nosso desenvolvimento econômico e social, como meio de fortalecimento do Poder Nacional". Curiosamente, o então presidente fez questão de dar ênfase ao "desenvolvimento econômico e social", colocando a expressão em itálico, quando da publicação do discurso. Embora a política externa brasileira tivesse, para Castelo Branco, seus próprios objetivos, ela e a política interna "constituem um contexto de ações táticas decorrentes da estratégia nacional". Essa, como visto acima, preocupava-se com o "fortalecimento do Poder Nacional". Chamando à colação o discurso de Castelo Branco, pretendo que se encontrem nele alguns paradigmas que ajudarão a examinar a política externa do governo Lula da Silva e a compreender o desejo do presidente, primeiro, de ver reconhecida a liderança do Brasil, depois de contentar-se com ter uma posição preponderante no cenário sul-americano. Que de fundamental – e ousaria dizer de permanente – podemos encontrar na fala de julho de 1964? Que a política interna e a política externa são elementos táticos da estratégia nacional que visa, antes de tudo, ao fortalecimento do Poder Nacional. Qual estratégia visando ao fortalecimento do Poder Nacional podemos encontrar no governo Lula da Silva que seja o contraponto tático de uma política interna? A passividade que o Governo Federal sempre demonstrou frente às ações do MST, que agora age em associação com a Via Campesina, permite concluir que a estratégia do governo Lula da Silva é dar aos que são por ele considerados "vítimas" de um sistema iníquo, todas as oportunidades de, enfrentando os mais fortes, abalar sua histórica posição de dominação. Note-se que tenho plena consciência de que a defesa da ordem pública, no caso específico do MST, não é da primeira competência do Governo Federal. O que não


impede que por palavras e fatos, ele demonstrasse – se desejasse – sua condenação de um movimento que age fora da lei e que se guarda de eventuais sanções legais refugiado na nãoexistência jurídica, isto é, não tendo cadastro na Receita Federal nem registro em cartório. Uma análise fria e objetiva permitiria dizer que, nesse particular, a política interna é determinada pela política externa centrada na ideologia (pois de outra coisa não se trata) de que por ser o país mais avançado da América do Sul, o Brasil tem o dever de auxiliar os demais a desenvolver-se, cedendo onde e quando necessário para obter o apoio verbal de outros, ainda que prejudicando interesses brasileiros estabelecidos e garantidos há tempo. Se assim for – e tudo leva a crer que é – devemos começar nossa análise pela política externa. Buscando compreender o processo, é necessário não esquecer que essa postura de ceder para ter o apoio verbal, do sócio ou sócios menores em qualquer empreendimento bi ou multinacional, não é marca registrada do governo Lula. Marca registrada, se quisermos, será o pensamento que inspira as ações, pensamento esse que se reflete, como visto acima, na política interna. Com o que se pode dizer ser ele que inspira a estratégia. Aquilo que poderíamos chamar de "política do acordo verbal" pode ser registrada já no governo Médici, especialmente quando se examina o Tratado de Itaipu, pelo qual se constituiu uma empresa binacional em que os dois sócios têm iguais direitos – o que significa, na prática a societária e administrativa, que têm igual poder. Essa condição conferida ao Paraguai era contestada (verbalmente) por membros dos Estados Maiores no governo Geisel, preocupados com a possibilidade de que uma mudança política no Paraguai colocasse o Brasil diante de situação difícil (como a que se configura agora). O que, a rigor, poderia distinguir uma política de outra, a de Médici da de Lula, é que o pensamento que conduzia a política externa naquela época estava preocupado em mascarar a preponderância e fazer desaparecer qualquer sinal de pretensão à hegemonia. Considerando-se mais rico, não se cuidava de dar ao governo amigo a possibilidade de romper os ditos grilhões do sistema econômico e político internacional, como ocorre hoje. Distinção que se dirá subjetiva de minha parte, mas ainda necessária. É também do período dos presidentes militares o empenho em sustentar a penetração de empresas (sobretudo empreiteiras), apoiando com empréstimos do BNDES a construção de represas ou estradas em países vizinhos. A

Zuhair Mohamad/AE

O Governo Federal sempre demonstrou passividade frente às ações do MST, que agora age em associação com a Via Campesina.

presença da Odebrecht na Argentina ou da Camargo Corrêa na Venezuela data desse período – sem que passasse pela cabeça dos diplomatas, muito menos de presidentes, dizer que o Brasil era líder. Pelo contrário, sempre houve o cuidado de evitar que a preponderância se tornasse evidente demais, prejudicando as relações do Brasil com seus vizinhos. Com isso, quero dizer que o pensamento que fundamentava a estratégia visando ao desenvolvimento econômico e social era diferente daquele que inspira hoje a diplomacia brasileira, fato que impedia que se fizessem concessões que prejudicassem os interesses nacionais, ou se quisermos, prejudicassem a construção do Poder Nacional em bases sólidas. Muitos dos que se opõem ao governo Lula partem do princípio, não enunciado, de que as ações diplomáticas brasileiras são inspiradas quando não orientadas pelo que chamam de política do Foro de São Paulo. Sem chegar a esse extremo – ainda que considerando a existência dessa organização informal que reúne as esquerdas americanas – não se pode deixar de reconhecer, como fiz, aliás, em artigo anteriormente publicado na revista Digesto Econômico, que a política sul-americana do governo Lula dirige-se a afastar da América do Sul qualquer tipo de influência dos Estados Unidos, como se esta parte do continente pudesse viver em esplêndido isolamento de Washington. A postura do chanceler Amorim no tocante à crise que irrompeu entre Equador e Colômbia apontava nitidamente para esse objetivo. Da mesma maneira que a pretendida criação de um organismo de defesa conjunto, afastando qualquer participação norte-americana nas ações pretendidas, como, aliás, o Ministro Nelson Jobim, da Defesa, fez questão de deixar claro depois de se encontrar com a secretária de Estado Rice, a quem comunicou a intenção brasileira de criar esse órgão. A preponderância é um fato inegável, mensurável inclusive quando se pensa em território, população, PIB – até mesmo Educação. O problema com que o governo Lula se defronta – e para o qual parece não atentar ou, se percebe que o Brasil corre riscos, parece não saber como sair da armadilha que Chávez ergue lentamente – é que o presidente da Venezuela pretende ser hegemônico e, mais que isso, pretende impedir que o Brasil venha a desempenhar no plano internacional o papel que sua preponderância natural o autoriza a representar. Houve um momento, no governo Médici, que o general Lanusse, presidente da Argentina, apareceu como candidato a ocupar o lugar de protagonista

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Fabio Rodrigues Pozzebom/AE

O cerco que se constrói lentamente, hoje, não é mais contra o regime político vigente no Brasil (pelo contrário), mas contra o Brasil!

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que o Chefe de Estado brasileiro poderia representar. Para os que viveram aquele período, será fácil lembrar da visita de Estado que Lanusse fez ao Brasil e do desempenho pouco protocolar que teve fosse no banquete oficial que o presidente brasileiro lhe ofereceu (quando proferiu discurso não comunicado anteriormente a Médici, como o protocolo exige, condenando por meias palavras o regime brasileiro), fosse em São Paulo, quando continuou a exaltar os méritos da democracia argentina. Lembrar-seão, igualmente, de que foi nessa época que em amplos setores militares e até mesmo diplomáticos, começou-se a cogitar da possibilidade do Brasil estar cercado por regimes à esquerda que, mais dia menos dia, poderiam representar ameaça ao brasileiro – aquilo que chamei à época de "teoria do cerco". O cerco que se constrói lentamente, hoje, não é mais contra o regime político vigente no Brasil (pelo contrário), mas contra o Brasil! Entendamo-nos. É contra a projeção do Brasil dar-se no quadro de uma política externa a serviço do Poder Nacional. Esse cerco não contradiz a realidade de que o Brasil é aceito como necessário nas negociações internacionais por ser um bom negociador (como parecia ser desde que afirmamos nossa projeção no G-20 até a

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última sessão da Rodada Doha). Mas elimina a possibilidade do Brasil agir como potência, média que seja, um Estado com Poder Nacional que o leva a ser de fato tratado como igual pelos Estados considerados "grandes". A Venezuela sempre teve petróleo – sempre, ao menos para minha geração. No governo de Rómulo Betancourt, procurou sem êxito impor uma "doutrina" que pretendia se transformasse em norma nas relações internacionais dos países americanos, recusando-se a reconhecer o governo Castelo Branco na medida em que o considerava não resultante de uma consulta democrática às urnas. Hoje, temos uma decisão da OEA, condenando os regimes não democraticamente estabelecidos, o que de certa forma transformou em realidade (dentro do possível) a "doutrina Betancourt" de que poucos se lembram. A interferência da potência petrolífera da América do Sul nos outros países do Hemisfério limitou-se a esse gesto. Hoje, sem que o seu poderio petrolífero tenha aumentado, os governos democráticos venezuelanos (ainda que elitistas e provavelmente corruptos) do país foram substituídos por um sistema de governo que se propõe a ser "bolivariano", vale dizer Hemisférico. Não apenas isso: o presidente Chávez usa o potencial pe-


Ricardo Stuckert/Reuters

trolífero do país para auxiliar na consolidação de governos que não têm grande simpatia pelo Brasil enquanto potência: Bolívia, Paraguai e Argentina, sem falar no Equador e Cuba. A Venezuela não apenas comprará títulos soberanos desses países (exigindo juros altíssimos e revendendo-os depois, ou não, e, com isso, resgatando o dinheiro investido, pouco importa) como fornecerá petróleo a preços inferiores aos praticados no mercado internacional ou fará generosas doações do "ouro negro", como fez à Bolívia às vésperas do plebiscito que decidiu sobre o destino do presidente Morales. Nesse terrenos, o de doar petróleo, o Brasil não poderá competir. Não se trata apenas de usar o petróleo e o dinheiro que ele proporciona para afirmar uma posição; agora, o presidente Chávez procura estar presente, sem que sua presença tenha sido programada pelo Itamaraty, a qualquer encontro do presidente Lula com presidentes sul-americanos. Isso aconteceu na visita de Lula à Bolívia e à Argentina. É como se fora um fiscal do que o Brasil pretende oferecer aos "companheiros" da "revolução bolivariana". Se o cerco da esquerda correspondia a uma realidade, a uma ameaça de fato, ou era uma criação intelectual nos Estados Maiores e no Itamaraty, o cerco que Chávez vem montando lentamente é uma indiscutível realidade. Não atentar para ele é fechar os olhos aos fatos; negá-lo em nome da solidariedade sul-americana é mentir para dentro. O pior é que a mentira para dentro é acompanhada por um olhar sem crítica dos que fazem a política externa para seu próprio umbigo, seja no Planalto, seja no Itamaraty. Esse olhar satisfaz aqueles que pretendem que o Brasil, por ser maior, possa conceder, ainda que perdendo em status e, o que é mais importante, em Poder. A política externa do governo Castelo Branco pode ser criticada de muitos pontos de vista e por muitos atos ou omissões. Não se poderá deixar de reconhecer, no entanto, que sempre esteve voltada para fortalecer o Poder Nacional, mesmo que dele se tivesse, nos círculos decisórios de então, uma visão estreita. A política externa do governo Lula da Silva não se preocupa com o fortalecimento do Poder Nacional. Diria que a desculpa que se deu para a posição do Brasil na Rodada Doha, procurando não ceder à pressão argentina, foi uma tentativa de prestar homenagem aos que ainda acreditam em fatos mais que em palavras. A visita do presidente Lula a Buenos Aires, logo em seguida ao fim da Rodada, serviu para colocar tudo nos eixos: afinal, mesmo que o Brasil mantivesse a

Dyn-Alberto Raggio/Reuters

irmandade com a Argentina, a Rodada estava condenada ao malogro pela posição da Índia e da China. Sendo assim, nada impediu que as relações com a Argentina voltassem à normalidade (do ponto de vista do Itamaraty, sim, mas possivelmente não da Casa Rosada). Liderança, o Brasil nunca exercerá na América do Sul. A preponderância que poderia fazer sua, é hoje ameaçada pelo presidente Chávez, e contra essa ameaça o governo Lula da Silva nada faz porque não pode ou porque não quer. Com o que o cerco se fecha cada dia mais.

O pior é que a mentira para dentro é acompanhada por um olhar sem crítica dos que fazem a política externa para seu próprio umbigo, seja no Planalto, seja no Itamaraty.

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A CRISE DE PETRÓLEO Jorge Silva /Reuters

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os últimos tempos, o mercado de petróleo e das "commodities" tem sofrido sérios abalos com o aumento do preço do barril para acima de US$ 140 (julho), seguido por ondas de elevação de preços de alimentos e de inúmeros subprodutos, tais como plásticos, petroquímicos e fertilizantes pelo mundo afora. Lembrando os choques de petróleo na década dos setenta e seus impactos nos custos de energia e na inflação generalizada, uma onda de pessimismo e até pânico atravessa o mundo, causando manifestações de protestos das populações contra a alta dos combustíveis e de alimentos, na Espanha e na França, no Haiti e em vários países africanos, até as Filipinas. Soou patético o comunicado dos ministros de Energia do G-8, reunidos em junho no Japão, exigindo dos países exportadores de petróleo (OPEP) que invistam mais na produção e na ampliação da oferta do combustível e reclamando também da falta de transparência sobre os níveis atuais de produção e de suas reservas. A nossa civilização depende do petróleo, combustível e matéria-prima para inúmeros subprodutos. Iniciada a produção no fim do século 19 pela Standard Oil of New Jersey (da família Rockefeller), a expansão da produção seguiu aceleradamente nas primeiras décadas do século 20, após a descoberta de enormes campos nos países do Oriente Médio, particularmente na Arábia Saudita. Na segunda metade do século 20, os dois choques de petróleo nos anos setenta causaram uma elevação radical dos preços, sobretudo nos países europeus e nos Estados Unidos, grandes consumidores e dependentes da importação do combustível para gerar energia e mover a rede de transportes, hoje composta por centenas de milhões de veículos alimentados por gasolina e/ou diesel. Nas duas décadas seguintes, houve um recuo e relativa estabilização dos preços nos mercados, para retomar o ritmo de alta com uma intensidade inédita, nesses primeiros anos do século 21. Como explicar esse comportamento errático do mercado de petróleo? Dois fatores parecem fundamentais para explicar a alta dos preços e seus impactos na economia mundial. Primeiro, a entrada no mercado da China e da Índia, grandes consumidores e importadores, devido às altas taxas de crescimento de suas economias. A pouca elasticidade da oferta – a perfuração de novos poços e as descobertas de novos campos de exploração não conseguem acompanhar o ritmo de expansão da demanda global – explica em parte o salto do preço do barril acima de US$ 140 (um barril equivale a 160 litros). O outro fator, não menos importante, é o aumento da especulação no mercado de futuros, impactando no cenário internacional. Os atores nesses mercados de futuros são os grandes grupos financeiros que movimentam livremente, sem fiscalização ou controle das autoridades fazendárias e fiscais dos respectivos estados nacionais, imensos volumes de recursos via a rede virtual. O volume de recursos financeiros que circula nessa ciranda é maior que o valor gerado pela economia real (mais de 40 trilhões de dólares) e está concentrado nas mãos de uma parcela ínfima da po-


pulação mundial. Vivemos no mundo de financeirização da economia e da autonomia dos mercados financeiros que transforma o capitalismo industrial em um capitalismo de renteiros, tudo controlado pelas redes de informação e comunicação, frente aos quais a capacidade de gestão e regulamentação do poder público – o Estado – se revela impotente. Acrescentando-se a presença do cartel da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), que controla 78% das reservas mundiais e responde por 40% da produção e 60% das exportações, fica patente a cilada em que se encontra a imensa maioria dos países e da população mundial. Criado em 1960, para conseguir melhores preços para seu produto, a associação dos membros do cartel conta com 14 países membros. Na África são Argélia, Nigéria, Angola e Líbia; na América Latina, Venezuela e Equador; no sudeste asiático, a Indonésia; e no Oriente Médio, a Arábia Saudita, os Emirados do golfo pérsico, o Irã, Iraque, Kuwait e Quatar. Entre os grandes produtores que ficaram fora do cartel encontram-se os Estados Unidos, México, Grã-Bretanha, Noruega e Rússia. Os países da OPEP mantêm as maiores reservas do mundo em petróleo e conseguem controlar seus preços, por exercer uma administração centralizada dos volumes de produção e exportação. Criada em 1960 com o objetivo de se opor às pressões das grandes empresas compradoras – Exxon, Aramco, Shell, British Petroleum, ENI (italiana), Total (francesa) e Repsol (espanhola), a associação cindiu-se após a guerra de 1967 entre Israel e os países árabes, que formaram uma organização própria para controlar as exportações, sem deixar de aderir à OPEP, com sede em Viena. Estima-se que o total da produção mundial, neste começo de século 21, se eleva a 24 bilhões de barris por ano, dos quais 23 bilhões são consumidos e um bilhão é retido para formar estoques. As reservas globais de petróleo são estimadas em um trilhão de barris, sendo que 67% encontram-se no Oriente Médio. Em várias partes do mundo, as reservas de gás e de petróleo estariam

Henrique Rattner Professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP (FEA/USP); e na pós-graduação no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Fundador do Programa LEAD Brasil e da ABDL - Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Lideranças


Paulo Pinto/AE

Como equacionar este problema da demanda por combustível de quase um bilhão de veículos em uso no mundo?

diminuindo (México, Mar do Norte), o que tem intensificado a pesquisa e o desenvolvimento de fontes energéticas alternativas. As respostas a esse dilema, que afetará a todas as sociedades, mais cedo ou mais tarde, são complexas e intrincadas. Mesmo com a descoberta de novos campos, como é o caso da Bacia de Santos no Brasil, a instalação de torres de perfuração e de plataformas de exploração é de alto custo e exige, além de grandes investimentos, anos de trabalho para começar a produção e comercialização. A construção de plataformas leva anos e os resultados das perfurações, sobretudo nas áreas marítimas de grande profundidade, são incertas. Outro fato relevante neste contexto é o aumento contínuo da frota de veículos movidos à gasolina e/ou óleo diesel, subprodutos de refino de petróleo cru. As refinarias existentes trabalham a plena capacidade e a construção de novas unidades exige tempo, investimentos e, sobretudo, precauções quanto aos possíveis impactos negativos no meio ambiente. Como equacionar este problema da demanda por combustível de quase um bilhão de veículos em uso no mundo, aos quais são acrescentados anualmente quase 100 milhões de novos, incluindo carros, caminhões, ônibus, motocicletas, que devoram quantidades enormes de combustível líquido e impactam negativamente no meio ambiente, pelas emissões de gases causadores do "efeito estufa" e do aquecimento global terrestre? O dilema vislumbrado por governos e empresas tem inspirado o renovado interesse pela energia nuclear e outras fontes de energia. Quanto à energia nuclear, alega-se que, além de ser mais "limpa" e de custo competitivo (?), sua fonte de matéria-

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prima, o urânio, está localizada em países politicamente estáveis e aliados (Austrália e Canadá), ao contrário do petróleo, controlado por governos hostis ou autoritários, como o Irã, a Venezuela e todo o Oriente Médio. Não é por acaso que as encomendas por novos projetos de reatores têm aumentado significativamente nos países ricos – EUA, França, Grã Bretanha, Finlândia, sem falar dos países "emergentes", como a China, Índia, Rússia e Brasil. Mas, se o tempo necessário para a construção de plataformas em águas profundas e de novas refinarias é demorado, sempre dependendo de um longo e controvertido processo de licenciamento ambiental, o prazo para a construção de reatores nucleares é ainda maior e a resistência das populações à sua instalação é dificilmente superada. Por outro lado, as pressões sobre os países produtores de petróleo, para aumentarem sua produção, não têm surtido efeito. A oferta de petróleo ficou praticamente estagnada e não foi capaz de atender a demanda crescente, sobretudo dos países "emergentes". Estima-se que somente a Arábia Saudita e os Emirados do Golfo estariam em condições de elevar sua produção, situação que pressiona os preços, dado o desequilíbrio entre demanda e oferta. Também, pequenos acidentes como a sabotagem por guerrilheiros dos oleodutos na Nigéria, tempestades no Golfo do México ou a ameaça constante de eclosão de novos conflitos nos Oriente Médio, pressionam os preços para alta. Outro fator de instabilidade do mercado é representado pelos diferentes tipos de petróleo e sua viscosidade, que deve ser processado pelas refinarias. O petróleo "leve", de menor viscosidade, produz a gasolina e o óleo diesel enquanto o "pesa-


do" serve para combustível de calefação. Na crise atual, ocorre um excesso de óleo combustível "pesado" e a falta de gasolina, o que reduz a rentabilidade das operações das refinarias. Estas, para poderem processar diesel com o óleo de variedade "pesada" necessitam de investimentos adicionais para transformar suas instalações, um processo lento e caro. Empresas de consultoria calculam que os custos para a construção de refinarias e da instalação de plantas petroquímicas têm aumentado em mais de 70% desde o ano 2000. O mesmo raciocínio vale para o desenvolvimento de novas jazidas de petróleo, cujo custo tem subido em mais de 100% no mesmo período. A postura nacionalista de certos governos – Rússia e Oriente Médio – tem desencorajado novos investimentos privados. As novas áreas de exploração no Brasil e na região ártica apresentam dificuldades técnicas, além de políticas, o que tende a aumentar os preços finais do produto. Face à esta situação, os países ricos da OCDE – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – avaliam seriamente a redução do consumo de petróleo e sua substituição por fontes energéticas alternativas, tais como o etanol, veículos elétricos, plantas eólicas e usinas nucleares. A curto prazo, nem a oferta nem a demanda de petróleo são "elásticas" (na linguagem dos economistas) ou seja, reagem a alterações de preços no mercado. O desenvolvimento de um novo

campo após sua descoberta pode levar até 10 anos, posto que as empresas consigam captar os capitais no mercado financeiro, hoje extremamente volátil e sujeito a especulação desenfreada. Em resumo, parece que nossa civilização encontra-se em um beco sem saída: por um lado, as pressões representadas por um bilhão de veículos a motor que não param de expandir, sobretudo com a construção de novas fábricas para veículos populares na China e na Índia. Os impactos dessa corrida irracional atrás do "desenvolvimento" estão sendo sentidos em todos os setores da economia, impulsionando a demanda por mais aço, alumínio, plásticos, vidros e os materiais para a construção de novas plantas. Acrescenta-se a demanda por materiais para expandir a infra-estrutura – rodovias, pontes, túneis e espaços para o estacionamento – fica patente que o planeta não é capaz de sustentar essas sociedades baseadas no consumo de desperdício, na opção individualista por um sistema de transporte e no estilo de morar em grandes aglomerações metropolitanas, devoradoras de enormes quantidades de energia no verão (ar condicionado) e no inverno (calefação). A crise de petróleo tem o mérito de alertar os governos e as populações para o perigo de um colapso e a necessidade de se investir seriamente em pesquisa e desenvolvimento de soluções alternativas e sistêmicas, que abranjam o conjunto das atividades humanas, enfim, um novo paradigma civilizatório.

Plataforma Merluza da Petrobras, no litoral santista

Usina nuclear de Goesgen, a oeste de Zurique, na Suíça

Luiz Fernando Menezes/Folha Imagem

And Wiegmann/Reuters

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Marco Antônio Teixeira/Ag. O Globo

Ueslei Marcelino/Folha Imagem

Denis Rosenfield Professor de Filosofia com doutorado na Universidade de Paris

Os minérios,

Aumentou muito a percepção dos atores empresariais e estatais de que os recursos do planeta são finitos.

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O contexto

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contexto da economia atual, em nível mundial, é o de uma forte competição por minérios e as mais diversas fontes de energia. Empresas e Estados estão cada vez mais engajados nessa luta, fazendo com que os preços subam e as nações interfiram mais nos assuntos umas das outras. A China, por exemplo, entra diretamente neste jogo, exercendo, inclusive, um papel semelhante ao que foi o das potências coloniais européias na África. Em alguns casos, governos despóticos, mesmo suspeitos de genocídios, tornam-se amigos da potência chinesa, que os defende e apóia em troca da exploração desses recursos. A percepção dos mercados Aumenta em muito a percepção dos atores empresariais e estatais de que os recursos do planeta são finitos, cada um procurando, então, assegurar para si essas fontes energéticas e as jazidas de minério, que viabilizariam os seus investimentos a preços competitivos. Há 50 anos, essa percepção praticamente não existia no nível propriamente econômico, vindo a ganhar, nestes últimos anos, uma grande relevância. A sua tradução se faz na elevação dos preços e em rivalidades políticas de novo tipo. A disputa por minérios, recursos hídricos e petróleo começa a se apresentar como um dado que todos deveriam levar em consideração. Neste sentido, é cada vez maior a tendência de ingerência dos Estados,

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ONGs e agências internacionais em assuntos que dizem respeito à exploração do subsolo, à construção de usinas hidrelétricas e à exploração do petróleo. Cada país procura guardar para si o máximo de condições para o seu desenvolvimento econômico e social, graças à utilização desses recursos, vitais para as suas empresas. Declaração dos Povos Indígenas Sob esta ótica, não deixa de causar espécie o fato do Brasil ser signatário da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de setembro de 2007 e aprovada pela Assembléia Geral da Nações Unidas. Alguns países não aprovaram essa Declaração, como Estados Unidos, Canadá e Austrália, e outros se abstiveram, como Colômbia e Argentina. Trata-se de um instrumento legal que, contudo, não tem ainda força de lei entre nós, porque necessita ser ratificado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, em cujo caso passaria a valer como se fosse uma emenda constitucional. O embate atual consiste, precisamente, nessa ratificação, que pode mudar a configuração nacional e constitucional do País. Analisemos alguns pontos especialmente problemáticos dessa Declaração. A soberania nacional O primeiro deles diz respeito à soberania nacional. Em seu preâmbulo, diz a Declaração: "Considerando que os direitos firmados nos tratados, acor-


os índios e a ONU

dos e soluções construtivas entre os Estados e os povos indígenas são, em algumas situações, objeto de preocupação, interesse, responsabilidade e caráter internacionais". Observe-se que os tratados, acordos e resoluções firmados entre os povos indígenas e os Estados são "objeto de preocupação, interesse, responsabilidade e caráter internacionais". Isto significa que um Estado, como o brasileiro, signatário desta Declaração, estaria, sob determinadas circunstâncias, obrigado a receber uma inspeção internacional, que verificaria se os termos acordados foram ou não seguidos. A preliminar consistiria em que o Estado assinaria acordos e tratados com os povos indígenas, considerados enquanto entidades coletivas, submetidos a um controle internacional. Ocorre, aqui, o que poderíamos chamar de uma fragmentação da soberania brasileira sobre o seu próprio território, que poderia passar à responsabilidade internacional. Por exemplo, a ONU poderia não reconhecer que um tratado ou acordo estivesse sendo seguido, pedindo providências para o seu cumprimento e interferindo diretamente na vida nacional.

Direitos dos Povos Indígenas ou soberania nacional?

Logo, criam-se as condições de uma soberania internacional sobre terras e territórios brasileiros. A auto-determinação dos povos O segundo concerne o próprio modo de se compreender a livre determinação ou a auto-determinação dos povos indígenas, que passariam a ser considerados como nações autônomas. Eis o texto: "Reconhecendo que a Carta das Nações Unidas, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, assim como a Declaração de Viena e o programa de Ação, afirmam a importância fundamental do direito de todos os povos, à livre determinação, em virtude da qual estes decidem livremente sua condição política e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural" (1). Observe-se a ênfase na idéia de auto-determinação, de livre determinação dos povos indígenas, a partir da qual esses povos se organizariam de uma forma independente, constituindo-se como verdadeiras nações. A Declaração vai mesmo além ao afirmar que essa livre determinação seria exercida em conformidade com o direito internacional. Duas idéias são aqui introduzidas e merecem ser destacadas: a de livre determinação e a de reconhecimento internacional. A mentalidade européia O conceito de livre determinação ou de auto-determinação tem a maior relevância na mentalidade européia, principalmente aquela afeita ao uso das línguas inglesa, francesa e alemã. Ele evoca imediatamente o contexto em que os "povos africanos" ganharam a independência nacional, no decorrer do século 20, enquanto conseqüência do fim da colonização daquele continente pelas potências européias. Logo, ao se falar de "livre determinação", está-se falando de independência nacional, de povos e tribos que se dotaram de formas jurídicas e políticas de auto-governo. Os significados das palavras são, aqui, politicamente determinados. A aparente ambigüidade do conceito, como não se referindo a uma nação independente, é somente um artifício retórico, que esconde um propósito político claramente definido, e definido por povos que, assim, ganharam a soberania sobre os seus territórios.

(1) Declaração da ONU sobre os Direitos dos Eduardo Knapp/Folha Imagem

Povos Indígenas. Preâmbulo.

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Divulgação

Pedro Sette Câmara É gerente de operações no Brasil de OrdemLivre.org

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ma das mais famosas canções de Milton Nascimento diz que "todo artista deve ir aonde o povo está". Essa fórmula simples expressa uma verdade muitas vezes difícil de aceitar, uma verdade que o economista austríaco Ludwig von Mises expressou da seguinte maneira: quem deseja enriquecer precisa dar às pessoas aquilo que elas querem. Por que isso é difícil de aceitar? Porque nosso desejo mais imediato é não querer atender aos desejos dos outros, mas a nossos próprios desejos. Um escritor, por exemplo, pode escrever o livro que quiser. Se esse livro não coincidir com aquilo que o público deseja ler, ele só terá algum sucesso financeiro se ganhar prêmios – e para ganhá-los ele só precisa agradar algumas dezenas de pessoas. Igualmente, um cineasta pode usar das leis de incentivo para levantar o dinheiro para fazer seu filme. Ele não precisa convencer investidores de que seu filme terá retorno financeiro. Basta convencer os diretores de marketing de meia dúzia de empresas. Mesmo que ninguém veja o filme, o público que o cineasta precisa agradar muda quando os diretores mudam. É bastante fácil para o artista bradar contra o "mercado" e dizer que não conseguiria sobreviver nele. Falar contra o "mercado" nada mais é do que perpetuar um tabu, pois o mercado não é uma entidade, exceto na razão humana: concretamente, o mercado são as pessoas. Mercado e público são sinônimos. Assim, o artista exibe seu ressentimento contra o mercado quando na verdade tem apenas a sua vaidade ferida: o público que não tem o menor interesse pela sua obra. Ser invisível comercialmente significa que ninguém pretende falar com você. Afinal, mesmo que você diga que o dinheiro é perverso e maligno, não há como fugir do fato de que ele é o instrumento social preferencial de aprová-lo ou desaprová-lo. Você não vai pagar a prestação da sua casa com um artigo favorável do seu crítico favorito. As leis brasileiras nada mais fazem do que incentivar essa vaidade dos artistas e alienar o público. O artista brasileiro não precisa "ir aonde o povo está", não precisa conversar com a platéia, não precisa colocar seu talento a serviço de outras pessoas, e, mais importante, não precisa depender de seu público. O artista brasileiro precisa apenas receber uma autorização do Ministério da Cultura para coletar patrocínios – aliás, sejamos honestos: o

Ministério concede generosamente essas autorizações – e então é ir aonde os diretores de marketing estão. Assim, uma parte da cultura brasileira é uma conversa entre um número bastante reduzido de pessoas, que nem mesmo imaginativamente poderiam atender a variedade de gostos da população brasileira. Existe outro aspecto perverso do financiamento de obras de arte pela Lei Rouanet. O dinheiro vem de renúncia de impostos. A retórica oficial diz que o governo é tão magnânimo que, em vez de construir hospitais e escolas para a população carente, aceita que parte do dinheiro vá para o financiamento das artes. Se as obras de arte financiadas não dão nenhuma espécie de retorno (e, pensando bem, até mesmo se dessem), não seria melhor construir hospitais e escolas? Mas nem eu nem você acreditamos que o governo fará isso com o dinheiro. Ao permitir o financiamento de obras que não atendem a ninguém exceto aos produtores, que também precisam comer (e bem), o governo passa a mensagem de que não faria nada de útil com aquele dinheiro mesmo, e que é melhor eliminar intermediários. Por outro lado, um diretor de marketing pode passar por um dilema perfeitamente realista: devo financiar um filme que ninguém vai ver ou colocar o dinheiro na cueca dos políticos? Como as classes dos diretores, roteiristas, câmeras e contra-regras ainda não conseguiram difamar-se a si próprias tanto quanto a classe política, o dilema não parece tão difícil. Afinal, os artistas estão apenas cumprindo a lei. E este não é o último aspecto perverso. As artes hoje gozam de uma situação melhor do que a de qualquer outra indústria. A exposição que ninguém vai ver é viável financeiramente, mas nem mesmo um simples sorvete pelo qual ninguém vai pagar tem a mesma vantagem. Ou seja: o rent-seeking, nas artes brasileiras, nada menos do que a norma. Assim como empresários e lobistas podem abusar o público obtendo privilégios do governo, também os artistas podem alienar as pessoas à vontade. Pode ser imoral, mas, novamente, ilegal definitivamente não. Claro que se pode dizer que, por outro lado, o governo brasileiro está fatiado por diversos interesses corporativos, e não há razão para os artistas ficarem de fora do jogo, já que, em vez de organizar nossa sociedade em princípios justos e equânimes, preferimos acreditar que todas as pequenas injustiças compen-


Abê

sarão umas pelas outras no final. Mas isso não é razão para fechar os olhos para o fato de, questões morais à parte, as leis de incentivo trazem um problema artístico. Sem contato e comércio com o público, a arte se fecha em si mesma. Com patrocínio, não há risco – e é muito mais fácil arriscar-se artisticamente do que financeiramente. Sem uma ligação mais estreita com o dinheiro, isto é, com o famoso mundo real, o artista pode ser mais imprudente artisticamente, o que significa que ele pode ficar ainda mais fechado em si mesmo, produzindo obras ininteligíveis. Quanto mais incompreensível ele for, mais o público o rejeitará, e mais autorizado ele vai se sentir a querer patrocínio das pessoas que despreza (e que simplesmente o ignoram). Esse movimento centrífugo não pode ser confundido com alta cultura, e nem mesmo com a preservação da variedade. Somente o mercado, composto de agentes livres, pode garantir a variedade de oferta de produtos, inclusive de produtos culturais. Com o aumento do mercado, da atividade capi-

talista, da aceleração das trocas, isto, das compras e vendas, fica infinitamente mais fácil escapar da "tirania do gosto" da sua própria época. As leis que funcionam como barreiras de entrada à atividade artística acabam concentrando a oferta em dois nichos: o massificado e o clube dos queridinhos dos diretores de marketing. Se alguém na política realmente deseja fazer algo pelas artes no Brasil, pode tanto lutar pela segurança jurídica e pela reforma tributária que beneficiaria a todos, quando pela simples possibilidade de se perder dinheiro como em qualquer outra indústria. Quando o artista começar a levar em conta a existência do público, também vai se perguntar mais sobre a verdadeira qualidade do que faz, e se realmente é digno de ser oferecido àqueles de quem depende.


A História das Coisas: Consumo Consciente e Cidadania Fotos: Reprodução

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Helio Mattar PhD, é idealizador e um dos fundadores do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, do qual é Diretor Presidente.

Jorge Maranhão É idealizador e fundador de A Voz do Cidadão.

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o livre e democrático espaço da internet está sendo veiculado o documentário "The Story of Stuff" (A História das Coisas), sobre a produção e o consumo na sociedade atual, assinado pela entidade americana Tides Foundation, escrito e apresentado pela ativista ambiental Annie Leonard. Mesmo que você seja bem informado sobre o quanto já avançamos no processo de devastação ambiental provocada no planeta pelos atuais padrões de produção e consumo, você não vai deixar de sentir uma sensação de "soco no estômago" com as informações, bem fundamentadas por fatos e números, que o filme transmite. A menos que você não se importe com o mundo que estamos deixando para as próximas gerações. Bem produzido, simples, conciso, e ao mesmo tempo emocional e surpreendente, este filme de 20 minutos, com animação singela, mas eficiente, nos mostra, com excepcional didática, os aspectos mais cruciais de nossa cultura

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voltada para "as coisas", trazendo luz às relações quase sempre ocultas entre o padrão de vida dos países ricos, aspirado de forma hegemônica pelas sociedades emergentes, e o enorme custo social e ambiental decorrente deste modelo. São relações de causa e efeito que, por estarem muitas vezes distantes no tempo e no espaço, nos passam despercebidas. Com estilo informal e ao mesmo tempo apaixonado, com um tom de urgência na voz, Annie nos conduz às entranhas do modelo consumista que impera no mundo. Mostra o ciclo que se inicia na extração de recursos naturais e que alimenta a super produção de bens materiais, passando pela sua distribuição e finalmente pelo seu descarte. Revela o quanto este modelo está se tornando cada vez mais insustentável, dada a finitude dos recursos da Terra e o enorme custo social que o sistema impõe. Os países ricos, de maneira míope, ainda buscam jogar o lixo ambiental "para baixo do tapete" dos países pobres. Não se dão conta de que não há o "fora" em um planeta único, no qual há uma interdepen-


dência global entre os processos produtivos e os seus impactos sobre as regiões, países e indivíduos de todo o mundo. Dos computadores que ficam obsoletos de ano a ano, aos modelos de salto de sapato que "precisam" ser trocados a cada estação, o documentário demonstra que os produtos são desenhados para se precisarem ser trocados com regularidade, com a propaganda encarregando-se de convencer os consumidores de que suas "coisas" precisam ser permanentemente renovadas. Esta noção de obsolescência planejada move a máquina do consumismo continuamente. Não se pode negar, no entanto, que a visão do filme é unilateral e maniqueísta em suas posições contra o mundo corporativo, que Annie coloca como o vilão da história. Neste ponto, a realidade é mais complexa do que ela demonstra. Em primeiro lugar, porque não se pode generalizar a avaliação sobre a atuação das empresas, como sempre negativa, pois seria negar o movimento em direção à responsabilidade social empresarial e entrada do tema da sustentabilidade definitivamente na agenda das grandes corporações. Se os avanços ainda não são suficientes para uma verdadeira transformação, e efetivamente estão longe de ser, é importante pensar que este é um processo que será tanto mais acelerado quanto maior for a conscientização dos consumidores no sentido de exigir das empresas mais do que os atributos tradicionais de qualidade e preço, mas também ação responsável ambiental e socialmente. Nesse sentido, são os consumidores no mercado quem "autoriza" as empresas a agir de uma ou outra maneira, e a comunicação de massa, especialmente a internet, possibilita que novos atributos de natureza social e ambiental sejam incorporados às decisões de compra. Em segundo lugar, não se pode negar que o enorme avanço alcançado pela humanidade no último século foi, em boa parte, fruto de investimentos privados em produtos e serviços que mudaram significativamente, e para melhor, a qualidade de vida em inúmeros aspectos, em especial em áreas cruciais como saúde, saneamento e alimentação. Mas, descontados os excessos, o saldo do documentário é muito positivo. Especialmente por nos levar a pensar, ou repensar, o papel representado pelas "coisas" em nossa felicidade e a premente necessidade de revermos nossos estilos de vida e nossas prioridades a partir da consciência dos impactos de nossos atos cotidianos de consumo sobre a sociedade e o meio ambiente. É também importante por nos dar uma visão holística do mundo da produção e do con-

sumo, revelando as relações de causa e efeito entre o que ocorre localmente e seus efeitos globais. Por esta via, o filme aponta para outra tendência que deveria ser um dos temas principais da educação do século 21, a cidadania planetária. O cidadão não mais voltado para as questões de seu bairro, de sua cidade, de seu país, mas para todo o mundo. O desenvolvimento sustentável e o nosso futuro, como o de nossos filhos e netos, passam por uma cidadania que irá lutar por justiça econômica global, preservação das reservas naturais, respeito à diversidade biológica e étnica, democratização dos organismos políticos internacionais, e por um mundo corporativo que presta contas dos impactos de sua ação sobre o meio ambiente e a sociedade, e, desta forma, recebe, ou não, a sua licença social para operar e progredir.

A indústria de eletrônicos e informática desenvolvem novos recursos, criando uma obsolescência programada, convencendo os consumidores de que eles precisam ser trocados.

Paulo Pampolin/Hype

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Divulgação

Três desafios à liberdade Reprodução

Václav Klaus Presidente da República Tcheca. Seu artigo é uma contribuição de OrdemLivre.org.

Tradução: Cíntia Shimokomaki

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esde 2003, sou presidente da livre e democrática República Tcheca. Um país que, há mais de 17 anos, teve êxito em livrar-se do comunismo; um país que, de forma rápida, tranqüila e sem custos adicionais desnecessários superou sua herança comunista e se transformou em uma democracia parlamentar e numa economia de mercado no estilo europeu; um país que é parte integral do mundo livre, um membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Européia (UE) e um bom amigo dos Estados Unidos. Todos possuem uma lista – a maioria, uma lista implícita – de questões, problemas e desafios que – com base em suas experiências, preconceitos, sensibilidades, preferências e prioridades – sentem e consideram ser cruciais, tópicos, ameaçadores e relevantes. Todos são inevitavelmente relacionados a algo que esteve ausente durante a maior parte da minha vida durante a época comunista. O que tenho em mente, claro, é a liberdade. Algo que os norte-americanos dão grande valor, apesar do fato de nunca terem se submetido pessoalmente à sua inexistência ou ausência. A experiência de viver sob o comunismo me proporciona uma sen-

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sibilidade especial, senão uma hipersensibilidade, para a falta de liberdade. Onde vejo os principais perigos à liberdade no começo do século 21? Não falarei das manchetes atuais e me recuso a falar sobre nossos inimigos externos – como o Talibã, a Al Qaeda e o fundamentalismo islâmico – porque não tenho nada especial a falar ou a acrescentar à questão do terrorismo e não quero simplesmente repetir argumentos e fatos já conhecidos. Basta dizer que nossa capacidade de avançar e, eventualmente, enfrentar perigos externos depende, em grande parte, de nossas crenças, visões, convicções, força interna, coerência, habilidade de atuação etc. Considero mais importante, portanto, falar sobre nossos desafios internos, sendo três dos quais os principais desafios da época atual. Neoestatismo Meu primeiro tema está ligado ao comunismo. A República Tcheca, assim com todos os outros expaíses comunistas, teve de passar por uma transição difícil. Compreendemos desde cedo que a transição deveria ser feita em casa, já que era impossível importar um sistema elaborado no exte-


rior. Ainda compreendemos que tal mudança fundamental não era um exercício em economia aplicada, mas um processo evolucionário feito pelo homem e que tínhamos de encontrar nosso próprio caminho, nosso "modo tcheco" para uma economia e uma sociedade eficientes. Nos últimos 15 anos, discursei diversas vezes nos Estados Unidos sobre o processo de transição; sobre sua ausência de custos; sobre seus benefícios, princípios e ciladas. Agora que acabou, enfrentamos um problema diferente. Tivemos êxito em nos livrarmos do comunismo, mas, assim como muitos outros, presumimos erroneamente que as tentativas de suprimir a liberdade e de centralizar a organização, planejamento e regulamentação da sociedade e da economia eram questões do passado, uma relíquia quase esquecida. Infelizmente, esses impulsos centralizadores ainda existem. Vejo mais exemplos de tais impulsos na Europa e na maioria das organizações internacionais do que nos Estados Unidos, mas eles também podem ser encontrados aqui. O motivo da minha preocupação é o surgimento de novos "is-

Há 17 anos, a República Tcheca teve êxito em livrar-se do comunismo e se transformou em uma democracia parlamentar. Ao lado, Ponte Carlos, sobre o Rio Vltava. Abaixo, relógio astronômico. Ambos cartões postais da capital Praga, uma das cidades mais bonitas da Europa.

mos", muito populares e na moda, que mais uma vez colocam várias questões, visões, planos e projetos na frente da liberdade e do livre-arbítrio. Existe o social-democratismo, que nada mais é do que uma versão mais moderada e amena do comunismo, e o direito-humanismo, que é baseado principalmente na idéia de direitos positivos aplicáveis ao redor do mundo. Ainda há o internacionalismo, multiculturalismo, europeísmo, feminismo, ambientalismo e outras ideologias similares. O comunismo acabou, mas as tentativas de governar de cima ainda existem, ou talvez elas simplesmente retornaram. Europeísmo O segundo principal desafio está ligado à nossa experiência com a União Européia, mas que vai além da UE, porque faz parte de uma tendência maior em direção à desnacionalização de Estados-nações e à supranacionalização mundial e governança global. A sensibilidade especial que eu e muitos de meus compatriotas temos faz com que eu veja muitas tendências na Europa de forma crítica. Meus adversários parecem não ouvir meus argumentos. Eles continuam rejeitando antecipadamente pontos de vista que eles não gostam. Para entender minha crítica é necessário ter conhecimento do desenvolvimento na UE – sua metamorfose gradual de uma comunidade de nações cooperantes para a união de nações não-soberanas – e das tendências supranacionalistas predominantes. Este desenvolvimento não é conhecido nos Estados Unidos. Eu sempre fui a favor de uma cooperação e colaboração amigáveis, pacíficas e mutuamente enriquecedoras entre os países europeus. No entanto, já destaquei que o movimento de uma Europa cada vez mais unida, o chamado aprofundamento da UE, assim como a rápida integração política e as tendências supranacionais da Europa, que não são apoiadas por uma identidade européia autêntica ou por um "demos" (povo) europeu, são prejudiciais à democracia e à liberdade. Liberdade e democracia – estes dois valores preciosos – não podem ser assegurados sem democracia parlamentar dentro de um território estatal claramente definido. No entanto, é exatamente isto que as atuais elites políticas européias e seus simpatizantes estão tentando eliminar. Ambientalismo

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Eu vejo que a terceira principal ameaça à liberdade individual está no ambientalismo. Para ser mais específico, eu compreendo as preocupações sobre uma eventual degradação ambiental, mas também vejo um problema no ambientalismo como uma ideologia. Ambientalismo apenas aparenta lidar com a proteção ambiental. Por trás de sua terminologia favorável às pessoas e à natureza, os adeptos ao ambientalismo fazem tentativas ambiciosas de reorganizar e mudar radicalmente o mundo, a sociedade humana, nosso comportamento e nossos valores. Não há dúvida de que é nosso dever proteger racionalmente a natureza para as futuras gerações. Os seguidores da ideologia ambientalista, entretanto, insistem em nos apresentar vá-

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A República Tcheca, assim como todos os outros ex-países comunistas, teve de passar por uma transição difícil. Essa transição deveria ser feita em casa, já que era impossível importar um sistema elaborado no exterior. Acima, Prazský Hrad, o Castelo de Praga, datado do ano 850. Abaixo, Karlovy Vary, cidade do "circuito das águas" tcheco

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rios cenários catastróficos com a intenção de nos persuadir a implementar as suas idéias. Isto é injusto como também extremamente perigoso. Ainda mais perigoso, no meu ponto de vista, é a falsa aparência científica que as suas previsões freqüentemente refutadas assumem. Quais são as crenças e suposições que formam a base da ideologia ambientalista? - Descrença no poder da mão invisível do mercado livre e crença na onipotência do dirigismo estatal. - Descaso com o papel de mecanismos e instituições econômicos importantes e poderosos, principalmente aqueles relacionados a direitos de propriedade e preços, em uma eficaz proteção da natureza.

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- Incompreensão do significado dos recursos e da diferença entre recursos naturais potenciais e reais que podem ser usados na economia. Pessimismo maltusiano em detrimento de progresso técnico. - Crença na predominância das externalidades nas atividades humanas. - Promoção do chamado princípio da precaução, que maximiza a aversão ao risco sem prestar atenção aos custos. - Subestima do crescimento da renda a longo prazo e das melhorias no bem-estar, que resultam em uma mudança fundamental na demanda por proteção ambiental e que pode ser demonstrada pela chamada Curva de Kuznets. - Depreciação incorreta do futuro, demonstrada claramente pelo Relatório Stern, que foi amplamente divulgado há alguns meses. Todas essas crenças e suposições são associadas às ciências sociais – e não às ciências naturais. É por isso que o ambientalismo, diferentemente da ecologia científica, não pertence às ciências naturais e pode ser classificado como uma ideologia. Este fato, entretanto, não é compreendido pelas pessoas comuns e por diversos políticos. A hipótese de aquecimento global e do papel da humanidade neste processo é a mais recente e, até hoje, a mais poderosa concretização da ideologia ambiental. Ela contribuiu com muitas "vantagens" importantes aos ambientalistas:

- Uma análise empírica do fenômeno de aquecimento global é muito complicado, por causa da complexidade do clima global e da mistura de várias tendências e causas de longo, médio e curto prazos. - O argumento dos ambientalistas não é baseado em medidas empíricas ou testes laboratoriais simples, mas em testes sofisticados com uma variedade de suposições infundadas, que são geralmente ocultas ou incompreendidas. - Os adversários da hipótese de aquecimento global têm de aceitar o fato de que, neste caso, habitamos um mundo permeado por externalidades. - As pessoas tendem a perceber e lembrar apenas de fenômenos climáticos extraordinários, e não em desenvolvimentos normais e em tendências e processos lentos e de longo prazo. Não é minha intenção apresentar argumentos para refutar esta hipótese. O que considero mais importante é protestar contra os esforços dos ambientalistas em manipular as pessoas. As recomendações nos levariam de volta à época do estatismo e da liberdade restrita. Portanto, é nossa tarefa estabelecer um limite e diferenciar entre ambientalismo ideológico e ecologia científica.



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