Digesto Econômico nº 451

Page 1

Cabo da Boa Esperança à vista

DIGESTO ECONÔMICO - JANEIRO/FEVEREIRO 2009 - ANO LXIV - Nº 451

Otimismo volta a brilhar no epicentro da crise global, os EUA

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 – ANO LXIV Nº 451 – R$ 4,50



Newton Santos/Hype

Assistir ou

Agir?

D

esde o dia 16 de setembro do ano passado, o mundo não ouve outra coisa senão a palavra CRISE. Procura-se a causa deste fato e surgem, então, inúmeras conjecturas, suposições, previsões, algumas até catastróficas. Mas a grande verdade é que a maioria das profecias propaladas em um dia, o mercado desmentiu no dia seguinte. Os otimistas falavam em marolinha, já os pessimistas apregoavam o caos. A realidade, porém, a partir de uma análise dos fatos, é que a crise que vivemos é fruto de inconsequentes ações em países desenvolvidos, principalmente dos responsáveis pelo setor financeiro. Assim, a desmedida ganância de investidores e empresários determinou os efeitos danosos de uma crise, que se esperava só financeira, mas que, decorridos cerca de 150 dias, se alastra, com reflexos sociais altamente negativos, principalmente nos EUA, Europa e Japão, com a forte onda de desemprego. Os emergentes, embora atingidos pelos erros e efeitos daqueles que eram os "senhores absolutos" do sistema financeiro mundial, olham agora com desalento e tristeza para aqueles que não quiseram aprender com quem pretendia ensinar. A gravidade dessa crise não se restringe a setores, a segmentos empresariais. Ela avança de forma avassaladora por alguns países, não só em extensão, como em profundidade. Isso levou a uma ação imediatista de países desenvolvidos ao injetar expressivos recursos financeiros em empresas e instituições bancárias para aplacar a crise, o que fortalece a percepção de que o estrago provocado é muito maior, com desemprego em massa, perda de autoestima e apreensão quanto ao futuro. As medidas adotadas até agora são consideradas necessárias, mas paliativas. Previsões e ações mais consistentes são o que se espera em curto espaço de tempo. Mas há uma série de providências que podem ser tomadas para minimizar a situação, como conversar e ouvir os clientes e conscientizar os colaboradores das empresas para que entendam as angústias dos consumidores. O importante não é apenas oferecer produtos, mas razões para que não parem de comprar, desde que tenham controle de seu orçamento, a fim de que os efeitos das suas dúvidas e o pessimismo não virem um bumerangue, que vai atingi-los na volta. O momento exige criatividade, não passividade. Consultem fornecedores para que vendam produtos com prazos e preços melhores, a fim de que se atendam os anseios dos consumidores dentro de suas reais posses. Falem com os bancos, unam-se em seus respectivos setores e pressionem o governo – municipal, estadual e federal – na busca de medidas que beneficiem as empresas e a população. Não se omitam. Ofereçam críticas construtivas, com propostas de soluções captadas em todos os setores e segmentos da sociedade. Mas o importante é termos em mente que todos têm de ceder um pouco agora, para que não percam muito mais tarde. Dizem que a união é maior na crise do que na euforia dos bons resultados.

Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

3


ÍNDICE Masao Goto Filho/e-SIM

6

O Brasil pode surfar no tsunami da crise Carlos Ossamu Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br

12

A crise e o protecionismo Roberto Fendt

Presidente Alencar Burti Superintendente institucional Marcel Domingos Solimeo

ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici

Nir Elias/Reuters

Foto montagem: Paulo Zilberman

Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna

16

Editor de Fotografia Alex Ribeiro

Em busca de um novo modelo de prosperidade global Charles Tang

Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico Evana Clicia Lisbôa Sutilo Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo e Lino Fernandes Infográficos Alfer Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br)

Fernando Donasci/Folha Imagem

22

"654 mil vagas viram pó" Almir Pazzianotto Pinto

Impressão Lene Gráfica REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.br

Capa impressa em papel ecoeficiente Lumimax fosco 150g/m² e o miolo no papel ecoeficiente Starmax fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP.

CAPA Collage digital: ALFER.

4

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


Bob Jacobson/Corbis

24

54

A ganância na economia, na psicologia e nas artes Renato Pompeu

32

Os impostos e o conceito de justiça social Denis Rosenfield

ução

Reprod

Odair Leal/Folha Imagem

A mania das massas e a crise financeira Carlos Ossamu e Domingos Zamagna

40

Jim Watson/AFP

Um novo modelo de transparência Olavo de Carvalho

58

Amazônia Ives Gandra ALFER

46

Sergio Dutti/AE

O caso Battisti e nossas angústias diplomáticas Oliveiros S. Ferreira

62

A ascensão das duas esquerdas da América Latina Kurt Weyland

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

5


Masao Goto Filho/e-SIM

P a r a o economista R i c a r d o A m o r i m , o Brasil e d e m a i s emergentes darão as cartas na economia m u n d i a l d a q u i para frente

O Brasil pode surfar no tsunami da crise Por Carlos Ossamu

6

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


E

m um pronunciamento surpreendente, Ben Bernanke, presidente do Fed, o Banco Central dos EUA, disse que a recessão norteamericana poderá acabar ainda este ano, e que 2010 será o ano da reconstrução. O anúncio foi feito no dia 24 de fevereiro último, no Congresso daquele país. Também diante dos congressistas, o presidente Barack Obama fez um discurso otimista, afirmando que os EUA sairão fortalecidos deste episódio. Epicentro da crise financeira global, com os EUA crescendo novamente, a engrenagem da economia mundial voltaria a se movimentar, salvando o mundo de uma recessão profunda. A esperança voltou a brilhar. Em comparação aos países desenvolvidos, o Brasil vem sentindo pouco os efeitos da crise e há boas perspectivas para o futuro. No fim do ano passado, durante um evento da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (Facesp) em Campos do Jordão, o economista Ricardo Amorim, atual CEO da Assent, da Concórdia Corretora, e apresentador do programa Manhattan Connection, da Globo News, proferiu uma palestra com o tema "As perspectivas para o Brasil e o mundo em 2009 - o mundo que conhecíamos e que não existe mais". Apesar de a palestra ter ocorrido há mais de dois meses, as previsões de Amorim continuam atuais. "Lustrei bem a minha bola de cristal e vocês vão ver que absolutamente tudo o que eu disser vai acontecer igualzinho, e vai ser a primeira vez no caso de um economista na face da Terra", garantiu. Amorim mostrou como a dinâmica da economia vem mudando desde o início desta década. "Há uma tendência que já vem de quatro a cinco anos, que é uma mudança no eixo da economia mundial, saindo dos países desenvolvidos e indo para a Ásia e países emergentes. A importância que EUA e Europa tiveram na economia mundial nas últimas décadas do último século vem diminuindo num ritmo impressionante, só que a gente ainda não percebeu isso, ou percebeu pouco", observou. Segundo ele, para entender a atual crise é preciso analisar como esta dinâmica mudou a economia mundial – quais são os produtos que o mundo demanda mais, o que o mundo financeiro tem oferecido e as implicações disso. "Uma das coisas que fez com que os Estados Unidos e Europa tivessem esse domínio da economia mundial foi a capacidade de atrair gente brilhante de todo o mundo. Eles iam estudar e trabalhar nesses países, pois era onde havia as melhores oportunidades de emprego e de educação. Nos últimos três anos, pela primeira vez na história, o

número de estudantes universitários nos EUA vem caindo ano após ano, em parte por um antiamericanismo, em parte porque está difícil conseguir visto para ir para lá. O fato concreto é que, não só vai menos gente estudar, fazer pós-graduação nos EUA, mas quem vai não fica", disse. "Começaram a surgir oportunidades de trabalho mais atraentes fora dos EUA – nos últimos meses, com a crise, o processo acelerou, pois está ficando mais complicado permanecer no país. Os brasileiros também começaram a voltar em massa. Inicialmente, vieram os mais brilhantes; nos últimos meses, até a mim trouxeram de volta – definitivamente, eles não seguram mais ninguém", brincou. Uma outra faceta desta mudança no eixo da economia mundial está nas últimas incorporações e fusões. "Quase sempre o comprador está aqui, nos países emergentes; e o vendedor está nos países desenvolvidos – como exemplo, a compra da Xstrata, uma empresa suíça, comprada pela Vale; o Itaú comprando operações do Bank Boston; ou mais recentemente, o BTG, grupo do André Esteves, adquirindo operações da Lehman Brothers no Brasil; a Gerdau comprando empresas nos EUA; a Friboi comprando a Swift. Enfim, por que isto está acontecendo?", questionou Amorim. "Porque é aqui onde as empresas estão ganhando mais dinheiro, além de Rússia, Índia, China, nos países emergentes em geral; e não na Europa e nos Estados Unidos". Na sua visão, são a Ásia e os países emergentes quem dão as cartas hoje no cenário mundial. Tanto é verdade, que nos últimos oito anos a maior parte do crescimento global esteve na Ásia e nos países emergentes, e isso deve continuar por mais 20 ou 30 anos, de acordo com Amorim. "Quais são as características desses países?", perguntou para a plateia. "A mais falada é que há muita gente e gente pobre. Eles precisam de produtos básicos, as tais das commodities – comida, petróleo, minérios, metais para construir as cidades à medida que as pessoas saem do campo para trabalhar nas cidades em indústrias, em serviços, e não mais na agricultura de subsistência. Um outro ponto pouco comentado, mas importante para entendermos a crise econômica atual, é que, na medida que houve o crescimento do processo de globalização, cada vez mais vimos a produção no mundo migrando para locais onde os custos são menores, que basicamente são China e Índia. Isso fez com que a inflação no mundo, por um período bastante longo, somado ao bom trabalho dos bancos centrais, fosse bastante baixa. Ao mesmo tempo, foi transferida a geração de riqueza e de

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

7


Bobby Yip/Reuters

poupança para lugares que poupam com taxa de juros bem mais baixas, que é a Ásia". No sentido contrário, os norteamericanos se endividam muito. Para Amorim, isso se deve ao fato de a última crise financeira séria ter ocorrido por lá há quase 80 anos. Houve sim algumas recessões, mas crise séria, como a que o Brasil passou nas décadas de 80/90, eles praticamente não tiveram. Assim, os norteamericanos se acostumaram a gastar mais do que ganham. "Nós temos uma tendência a consumir por uma razão inversa. Passamos três décadas em um processo que os economistas chamam de stop-and-go, que é uma melhora e depois uma piora. Quando melhora, o brasileiro pensa: agora que tiraram a corda do meu pescoço, vou trocar de carro, de geladeira, de televisão, pois não sei quando terei uma próxima chance. Mas quando uma parte maior da riqueza passa a ser gerada na Ásia, que por questões culturais é muito mais cautelosa, poupam muito mais, você colabora para jogar a taxa de juros para baixo. Pensem no Japão: nos últimos 20 anos, a taxa de juros média foi de 1,5% ao ano. Imaginem o que aconteceria se isso ocorresse no Brasil: iria ter corrida na porta de shopping. Mas foi isso o que aconteceu no mundo como um todo, jogando a taxa de juro muito para baixo. Taxa de juros baixa significa forte expansão de crédito, isso é um processo mundial. E qual é o setor que mais precisa de crédito para crescer? O imobiliário, pois o valor do bem vendido é muito alto", explicou Amorim. "Com taxas de juros muito baixas no mundo, incluindo os países desenvolvidos, a lucratividade de operações tradicionais que os bancos na Europa e Estados Unidos faziam despencou. Eles tiveram de buscar outras alternativas. Qual era o mercado que mais iria se beneficiar desse processo de taxa de juros baixa? O imobiliário. Foi onde os bancos concentraram as suas apostas". A vez dos emergentes Antigamente, o mundo era dividido em três categorias: os países desenvolvidos, os socialistas e os subdesenvolvidos. Na década de 80 o marketing ficou mais forte e passaram a chamar os subdesenvolvidos de emergentes. Até o final do milênio passado, o crescimento dos emergentes era parecido com o dos desenvolvidos. "De 2001 para cá, abriu-se uma grande distância entre os crescimentos, que é o que eu chamo de mudança do eixo da economia mundial para os países emergentes. A emergência verdadeira começou a acontecer em 2001, com a entrada da China na OMC (Organização Mun-

8

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Robson Fernandjes/AE

No alto, a China, país muito populoso, mas com gente pobre, que precisa de produtos básicos, as chamadas commodities, como comida e minério, que são exportadas pelo Brasil. Na foto acima, o Porto de Santos.

dial de Comércio). A Índia também começou a ter um papel mais predominante na economia mundial, passou a se globalizar mais, a se abrir mais para a economia internacional". A Ásia tem representado nos últimos cinco ou seis anos quase metade do que o mundo cresce; os EUA e a Europa, uma parte pequena. A América Latina tem sido tão ou mais importante do que os EUA ou os países da zona do Euro, como Alemanha, França, Itália, Espanha, Portugal, Grécia e outros, todos somados. Para Amorim, em 2008 e 2009, a América Latina vai ser mais importante para o crescimento mundial do que a Europa e os Estados Unidos juntos. Com a crise, a contribuição destes dois últimos em 2009 será trazer o PIB mundial para baixo. Até a virada do milênio, 2/3 do que o mundo crescia era responsabilidade dos países desenvolvidos, o restante era dos emergentes. Virou o milênio, a situação inverteu. Para Amorim, nos últimos anos, algo em torno de 70% do cresci-


mento mundial estão nos países emergentes. É por isso que as empresas brasileiras estão comprando as estrangeiras, pois o lucro está aqui. E também é por esta razão que as multinancionais estão investindo aqui e em outros países emergentes. "Mesmo com as empresas no mundo inteiro perdendo dinheiro como nunca perderam, por que o investimento direto, que é o investimento de empresas estrangeiras no país, está no nível mais alto da história e continua crescendo? Porque elas estão vendo que as

Em torno de 70% do crescimento mundial estão nos países emergentes, por isso as empresas brasileiras estão comprando as estrangeiras.

nelson Almeida/AFP

oportunidades estão aqui, estão na China, na Rússia, na Índia, nos países emergentes, e não nos EUA e Europa", afirmou. A China tem representado nos últimos 10 anos entre 25% e 35% do crescimento do PIB do mundo. Os EUA têm representado entre 8% e 12%. Este fato não começou com a crise, vem de muito antes dela – a China tem sido de três a quatro vezes mais importante do que os EUA para o crescimento mundial. "É por isso que eu digo que o eixo da economia mundial já mudou, a gente só não percebeu. Claro que a economia americana ainda é maior do que a chinesa, mas mesmo isso não vai demorar muito para mudar". "Eu fiz um exercício: vou ser otimista com os EUA e pessimista com a China. Se os EUA crescerem o que cresciam na década de 90, quando eles efetivamente mandavam no mundo do ponto de vista econômico, que era 2,7% ao ano (em 2007 eles cresceram pouco mais de 1% e

É por isso que eu digo que o eixo da economia mundial já mudou, a gente só não percebeu. Claro que a economia americana ainda é maior do que a chinesa, mas mesmo isso não vai demorar muito para mudar.

em 2008 menos do que isso), e supondo que a China – que em 2007 cresceu 12% e na média dos últimos 30 anos cresceu 9,5% – cresça daqui para frente 8%, ainda assim, em 2020 a economia chinesa se tornará maior do que a americana, quando se ajusta para a paridade do poder de compra, que nada mais é do que a capacidade de compra do dinheiro em um lugar e em outro – às vezes, você ganha mais, mas mora em um lugar em que as coisas são mais caras e por isso compra menos. Na hora que se faz este ajuste, a economia chinesa, nestas hipóteses de otimista para os EUA e pessimista para a China, vira a maior economia em 2020. Pode ser que demore um pouco mais, mas provavelmente vai demorar bem menos". "A China se tornar a maior economia do mundo não quer dizer que os chineses serão ricos, mas que terão uma grande economia, o que é diferente. Como a população chinesa é praticamente cinco vezes a dos EUA, a renda per capita deveria ser 1/5 da americana para a China se tornar a maior economia do mundo. E 1/5 da renda per capita americana é a nossa renda per capita. Se eles chegarem a uma renda per capita que o Brasil tem hoje, eles se tornarão a maior economia do mundo. A minha dúvida não é se, mas quando, pois não tenho dúvida nenhuma de que acontecerá", garantiu. Em berço esplêndido O Brasil era conhecido como o país do futuro. Isso porque entre 1900 e 1979, a média de crescimento foi de 7% ao ano. Depois, essa média caiu para 2,5%. Se tivesse continuado a crescer 7%, hoje o Brasil teria uma renda per capita mais alta do que a Itália, França, Espanha, Coréia e Cingapura, o Brasil seria um país desenvolvido. "Este é o futuro que infelizmente não chegou para a nossa geração, mas é o futuro que chegará para os nossos filhos. Acho que as coisas serão muito complicadas na Europa e nos EUA, e as perspectivas por aqui serão muito mais favoráveis. No curto prazo, quanto pior ficar a crise,

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

9


mais forte ficará o dólar, pois são os fluxos de capitais que estão determinando o que está acontecendo na economia mundial. Amorim é da opinião que irá chegar um segundo momento em que os investidores vão se perguntar onde vão rentabilizar os seus investimentos – e não será nos EUA, pois o país não irá crescer e a taxa de juros está em 0,25% ao ano. Se o investidor quiser taxa de juros mais altas, terá de ir para outros lugares e acabará vindo parar o Brasil, se quiser aproveitar o crescimento, ou em outros emergentes. Nos dois casos, o dinheiro vai sair dos EUA e o dólar vai cair. "Nos próximos anos eu vejo o dólar voltar a cair fortemente, acho que ele vem abaixo daquele um real e cinquenta e poucos centavos que estava meses atrás. Pode ser que leve alguns meses, mas estejam preparados para o movimento do dólar caindo muito", advertiu. Um outro exemplo ilustrativo de Amorim sobre a mudança do eixo da economia mundial é que, se no início da década de 90, quando os EUA tinham o predomínio, se alguém tivesse colocado 100 reais na Bolsa americana, depois de 10 anos ele teria 400 reais. Qual era a economia que cambaleava? Era o Japão. Lá, estes mesmos 100 reais, depois de 10 anos, valeriam 80 reais. Nesta década, aqui aconteceu o contrário. Se alguém tivesse colocado 100 reais na Bolsa americana oito anos atrás, hoje teria 70 reais. "Isto vem de antes desta crise econômica, isso que é importante entender. A crise agravou esta perda de importância dos EUA e da Europa, mas é um processo que vinha lá de trás. Hoje, quem são os equivalentes ao que os EUA foram na década passada? Os mercados emergentes. Estes 100 reais colocados nas bolsas dos mercados emergentes há oito anos, hoje valeriam 250, mesmo depois de toda essa queda que elas tiveram recentemente". Desvalorização do dólar Quanto subiram os preços dos imóveis durante os últimos dez anos? Nos EUA a alta foi de 60%, na Europa e outros países foi muito mais. Na Irlanda foi de 174%, na Espanha foi de 133% e na Suécia foi de 131%. Agora, os preços devem cair mais onde eles mais subiram anteriormente. "O total de crédito imobiliário nos EUA é de 79% do PIB. Na Suíça é de 132% – a Suíça reduziu a taxa de juros para 1% ao ano, fazendo o maior corte da sua história, isso porque eles têm um problema imobiliário colossal. Nos últimos anos vimos um boom imobiliário no Brasil. O total de crédito imobiliário aqui é de 3% do PIB – apenas 3% de crescimen-

10

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


to da economia fez tudo isso que se viu de construção. Isso dá a dimensão do tamanho da bolha imobiliária, principalmente na Europa, razão pela qual eu acho que essa recessão vai levar anos para ser resolvida lá". Amorim afirma que o dólar irá cair, mas segundo ele não é contra o euro ou a libra esterlina. Como os problemas das economias europeias são mais graves e essas economias são pouco flexíveis em comparação à americana, a recessão lá será mais longa e mais profunda, o euro e a libra vão cair contra o dólar, e o dólar, por sua vez, vai cair frente a outras moedas – as moedas asiáticas principalmente e as latinas. O problema no mundo tem sido inflação e onde existe mais inflação? Na China. Os chineses, segundo Amorim, têm até exportado inflação, quando começou a ter alta nos preços de

Não se endividem, não se alavanquem nos próximos trimestres, o custo do capital vai ficar alto, ficará muito difícil. Por outro lado, depois, voltem os negócios para tudo o que depender de crédito para venda.

alimentos – eles precisavam de mais comida, não tinha para todos, era chinês demais para comida de menos, isso gerou um problema de inflação no mundo, mostrando que a China está determinando as tendências econômicas e não os EUA, onde a inflação é relativamente baixa. No Brasil, a taxa de juros é alta, por isso a inflação subiu menos do que em outros lugares. Para Amorim, a tendência da taxa de juros brasileira é vir para a média mundial, que é de 4,5% ao ano hoje – ele aposta que essa média irá subir, mas a do Brasil com certeza vai cair. "Nos próximos três a oito anos, vejo a taxa de juros cair entre 6% e 8%. A consequência é que nos próximos 6 a 12 meses, tudo o que depender de crédito vai sofrer, pois esta crise mundial secou o crédito, as empresas estão tendo dificuldade em financiar capital de giro, só que este é um processo temporário. Os sobreviventes deste primeiro ano de crise, e passados quatro ou cinco anos, quem depender de crédito é quem mais irá crescer. A mensagem é: não se endividem, não se alavanquem nos próximos trimestres, o custo do capital vai ficar alto, ficará muito difícil. Por outro lado, depois, voltem os negócios para tudo o que depender de crédito para venda, pois será o que vai crescer mais. O que depender de renda vai andar muito melhor nos próximos 6 a 12 meses, mas nos próximos quatro a cinco anos será o contrário. Aproveitem as oportunidades que estes próximos meses vão criar". Na opinião de Amorim, as exportações brasileiras continuarão a crescer, já que o mundo precisa do que o Brasil produz. Com esse aumento das exportações e a entrada de dólares, a moeda norte-americana já vinha se desvalorizando frente ao real. "Há alguns meses, Warren Buffett falou que o real ia valer mais do que o dólar. Ele não ficou gagá, não está doido – eu não acho que valerá mais do que o dólar, mas não é impossível. É algo que se formos olhar daqui a quatro ou cinco anos, pode ser que aconteça. À medida que a taxa de câmbio cai, os produtos importados vão ficando mais baratos, a inflação vai caindo no Brasil, a taxa de juros cai junto e o crédito entra em expansão. O crédito no Brasil já vem em expansão, está em 39% – o crédito no Brasil nos últimos quatro anos cresceu 11% do PIB e cresceu nos países emergentes como um todo e muito mais do que no Brasil. Na Ucrânia cresceu 40%, no Cazaquistão, 38%. Nesses lugares até acho que houve uma megabolha de crédito, mas no caso brasileiro acho que não. Mas por que cresceu em todo lugar? Porque a taxa mundial de juros estava baixa e vai crescer em todo lugar daqui a um ou dois anos, mas por enquanto vai continuar baixa", concluiu Amorim.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

11


A CRISE E O PROTECIONISMO

A

persistência da crise e seu agravamento vêm provocando preocupações de que, a exemplo do ocorrido na Grande Depressão dos anos 30, o protecionismo ressurja, com todos os seus malefícios – especialmente o de limitar a produção e o comércio com base nas vantagens comparativas de cada nação, de reduzir o crescimento da produtividade e de acentuar o desemprego. Razões para isso não faltam. Em primeiro lugar, a evidência histórica do aumento do protecionismo no episódio da Depressão – embora, como se verá a seguir, essa evidência precisa ser temperada. Segundo, pelos diversos ensaios protecionistas já observados, dos quais é exemplo a exumação do Buy American Act no pacote fiscal do presidente Barack Obama de combate à crise. Finalmente, tentativas tímidas, aqui e ali, de impor barreiras comerciais, com variados graus de sucesso. São exemplos disso a corrida protecionista argentina, que já atinge uma ampla gama de produtos originários inclusive do Mercosul; e o ensaio de licenciamento das importações brasileiras, felizmente abortado pela pronta intervenção do senhor presidente que, de público, desautorizou a manobra. Divulgação

Roberto Fendt Economista e vice-presidente do Instituto Liberal

12

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


Com o agravamento da crise financeira global, surge o temor de que os países adotem barreiras para proteger seus mercados

Foto montagem: Paulo Zilberman

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

13


Associated Press

Da primavera de 1928 até outubro de 1929, o Fed pôs em prática uma política monetária restritiva. O motivo alegado foi a crescente especulação em Wall Street

1. O protecionismo e o episódio da Depressão Tem sido apontado frequentemente que o protecionismo foi exacerbado pelo episódio da Grande Depressão e contribuiu para aprofundá-la. Por essa razão, vale a pena examinar o episódio para dele extrair lições que possam ser úteis para entender os desdobramentos da crise atual. Da Guerra Civil até a tarifa Smoot-Hawley de 1930, cabia exclusivamente ao Congresso dos EUA legislar em matéria de proteção aduaneira. A tarifa aduaneira americana consistia de alíquotas do imposto de importação não discriminatórias ou negociáveis com terceiros países. Ao contrário do que muitos supõe, os Republicanos foram, da Guerra Civil até a década de 1930, muito mais protecionistas que os Democratas, como atestam os níveis da própria lei tarifária Smoot-Hawley de 1930. Com a arrasadora vitória nas eleições de 1932, os Democratas introduziram uma novidade no processo de gestão da política protecionista americana. Ao aprovar em 1934 o Reciprocal Trade Agreement Act ("Lei de Acordos Comerciais Recíprocos"), o Congresso concedeu ao presidente (então, Roosevelt) a autoridade para negociar acordos de redução de tarifas aduaneiras sem a aprovação do Congresso – ao que se opuseram tenazmente os Republicanos, pelo menos até o final da década de 1940. O que levou o Congresso americano a abrir mão de sua razão de ser e da mais importante de suas funções, delegando-a ao presidente da república, não foi tanto a Depressão, mas o fato de que a Depressão iniciada nos EUA ter se tornado um fenômeno mundial. Foi o colapso da produção mundial e as

14

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

pressões protecionistas em outros países que levou ao aumento da proteção americana. Em conseqüência, a tarifa média dos EUA – receita do imposto de importação dividida pelo valor das importações – aumentou de 40% em 1929, para 59% em 1932, declinando no final da década de 1940 para 14% – aproximadamente o nível atual da tarifa média brasileira. Contudo, a tarifa Smoot-Hawley não representou um avanço do protecionismo tão marcante como parece à primeira vista. Caso as importações americanas não tivessem mudado sua composição, a tarifa média teria subido de 34,6% em 1928 para 42,5% em 1932 – um aumento de 23% na alíquota média, alto, mas nada espetacular. Além disso, o aumento da tarifa, embora ocorrido após a débâcle de 1929, teve seus estudos iniciados em 1928, antes, portanto, do início da Grande Depressão. Além disso, as importações correspondiam a somente 4% do PIB dos EUA na época e qualquer efeito do aumento das tarifas sobre uma parcela tão pequena do PIB americano seria ainda menor. 2. As causas monetárias do aprofundamento da Depressão Se o aumento do protecionismo, pelo menos nos EUA, não pode ser apontado como causa ou conseqüência importantes da Grande Depressão, a que a devemos? Talvez ninguém melhor que o chairman do Federal Reserve, Ben Bernanke, pela sua posição, formação acadêmica e especialização no estudo da Depressão, para falar sobre a História Monetária dos EUA, de Milton Friedman e Anna Schwartz, e de suas conclusões de


Emmanuel Dunand/AFP

Kevin Lamarque

A crise é de solvência e não de liquidez. Enquanto o diagnóstico não for alterado, persistirá o enxugamento do crédito, com todas as suas consequências sobre a produção e o emprego. Ao lado, Ben Bernanke, presidente do Fed.

que a política monetária americana causou a grande contração de 1929-33 e a aprofundou. "Como todos sabem", disse Bernanke no discurso comemorativo dos 90 anos de Milton Friedman, "em sua História Monetária Friedman e Schwartz concluíram que o colapso de 1929-33 resultou dos erros de política monetária do período". Da primavera de 1928 até a quebra de Wall Street em outubro de 1929, o Federal Reserve pôs em prática uma política monetária restritiva. Não havia razões técnicas para isso e os motivos alegados pelo Fed foram a crescente especulação em Wall Street – o que chamaríamos hoje de inchaço de uma "bolha especulativa". Em conseqüência do aperto monetário, "nos dois meses que se seguiram ao pico do ciclo econômico ocorrido em agosto de 1929 até o crash da bolsa, a produção industrial caiu a uma taxa anualizada de 20%, os preços por atacado de 7,5% e a renda pessoal em 5%", afirmaram Friedman e Schwartz. Um segundo episódio de aperto monetário ocorreu em setembro de 1931 em resposta à crise provocada pelos ataques especulativos à libra esterlina e ao receio de que uma crise de corrida similar pudesse ocorrer contra o dólar americano. Em decorrência, a economia que já dava sinais de recuperação da primeira fase da recessão, aprofundou-a, caindo no que hoje é conhecido como a Grande Depressão. 3. A crise atual e a experiência da década de 1930 Há mais dissimilaridades que símiles entre a crise que atravessamos e a crise de 1929. As similitudes ficam por conta do fato de que, em 1929 e agora, a crise começou nos EUA. As dissimilaridades, contudo, são muitas. Tendo sido um estudioso profundo da crise de 1929, Bem Ber-

nanke havia dito no discurso mencionado anteriormente que nunca mais repetiríamos o erro de 1929 (na verdade, de 1928 e de 1931). E os atos atestam sua determinação: vivenciamos a mais expansionista das políticas monetárias de que se tem notícia. Da mesma forma, a política fiscal é extremamente expansionista, atestado pelo pacote fiscal da administração Barack Obama e recentemente aprovada pelo Congresso dos EUA. Igualmente, em todo o mundo, as políticas monetária e fiscal são expansionistas e não se pode falar de uma recessão internacional das mesmas proporções da crise de 1929. Além disso, o segundo episódio de aperto monetário, relatado anteriormente, se deu em um regime de taxas de câmbio fixas (ao ouro) entre as principais moedas. O regime cambial que prevalece hoje é de taxas de câmbio flutuantes, que parcialmente isolam os países de choques vindos de fora da economia. 4. Conclusões É evidente que há sempre razões para que interesses específicos procurem reduzir a concorrência nos mercados de seus produtos, seja em épocas de expansão ou retração da atividade econômica. Mas, até o momento, as ameaças protecionistas ainda não se mostraram agudas o suficiente para que elas passem à primeira linha do palco da crise. Esta primeira linha, de fato, está sendo ocupada pelo diagnóstico equivocado do governo dos EUA – Federal Reserve e departamento do tesouro – de que o país e seu sistema bancário sofrem de uma crise de liquidez e não de uma crise de solvência. Enquanto o diagnóstico não for alterado, persistirá o enxugamento do crédito, com todas as suas conseqüências sobre a produção, o emprego e os preços das commodities no mercado internacional – com seus efeitos negativos sobre a economia brasileira.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

15


Em busca de um novo mod

A Divulgação

atual crise financeira internacional se originou de gigantesca dívida, de gastos excessivos com empréstimos crescentes e desenfreada especulação, sem a devida regulamentação e fiscalização do setor financeiro, nos EUA. Estes fatores contaminaram com rapidez inconcebível todos os mercados financeiros do mundo. Diante deste "tsunami" econômico, alguns países se prepararam, uns melhores que outros, para enfrentar seus efeitos. Os que adotaram com agilidade uma acertada estratégia de medidas defensivas para proteger suas economias sofrerão um impacto menor.

Charles Tang Membro do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, fundador do IPEDE Instituto de Pesquisa e Estudos de Desenvolvimento Econômico e presidente binacional da Câmara de Comércio & Indústria Brasil-China.

Reação brasileira à crise Esta abrangente recessão, que inclui a crise sistêmica de todo o setor bancário e da economia global, reúne todas as condições para se transformar em uma profunda e prolongada depressão mundial. No entanto, a reação brasileira, em um primeiro momento, foi de incredulidade. No auge da nossa euforia, achávamos que o nosso País seria uma ilha de prosperidade em um mundo de recessão. Já outras nações adotaram planos para se protegerem do impacto desta crise. Baixaram suas taxas de juros, desvalorizaram suas moedas, afrouxa-

ram suas taxas de redesconto bancário para gerar maior liquidez, estimularam empréstimos, baixaram seus tributos, devolveram o crédito fiscal para exportação de vários produtos e facilitaram o empreendedorismo, a fim de fazer crescer suas economias. Enquanto isto, nosso otimismo era tamanho que tomamos caminho inverso. Aumentamos nossas taxas de juros quando a recessão já batia em nossa porta. Mantivemos nosso câmbio desfavorável até que as circunstâncias do mercado desvalorizaram o real e demoramos muito para reduzir nossa taxa exorbitante de juros em dose simbólica. Tão logo encararmos a vulnerabilidade da nossa economia e ao invés de introduzir algumas medidas paliativas, prepararmos com agilidade um plano estratégico abrangente de medidas defensivas para enfrentar esta seríssima crise global, melhor defesa teremos. Essas medidas devem, forçosamente, incluir a redução do "custo Brasil", abolir nosso sistema de entraves e simplificar a nossa famigerada burocracia. Nossos juros ainda estão demasiadamente elevados, e devemos modernizar e tornar mais flexível nosso ultrapassado regimento trabalhista de 1943. O PAC pode ser ampliado para gerar maior número de empregos e atender a nossa necessidade de logística de transportes.


elo de prosperidade global A nossa política ambiental chegou ao ponto de promulgar uma lei valorizando mais um animal, ou pássaro silvestre, do que o homem. Devemos reconhecer que nosso maior bem natural a ser protegido é o ser humano. Para que se possa viver com um mínimo de dignidade humana, necessitamos de emprego para escapar da opressão de sua miséria. Devemos ter uma política que preserve o meio ambiente, mas que também permita o nosso crescimento econômico com geração de empregos. As negativas da nossa burocracia e fatores ligados ao meio ambiente, que levaram a Bao Steel chinesa a desistir de investir US$ 5 bilhões na implantação de uma siderúrgica em uma região pobre do Brasil, frustraram seis anos de tentativas infrutíferas, e causaram gastos de milhões. O empreendimento poderia ter gerado quase 5 mil empregos diretos e indiretos, além de multiplicar seu valor em investimentos indiretos. Deixamos uma região pobre do Brasil continuar na sua pobreza, o que muitas vezes é a causa da deterioração da nossa natureza. O PAC, a suspensão temporária do IPI para automóveis, a tentativa de desburocratizar as coisas com o reconhecimento de firmas, as tentativas de baixar os juros, isso tudo aponta para um governo que quer defender o País dos efeitos negativos desta crise mundial. Já que temos um presidente com esta visão de prosFernanda Preto/Folha Imagem

peridade, querendo até ser o mascate do Brasil para promover nossas exportações, seria possível aproveitar deste momento para adotar as medidas estratégicas e abrangentes de defesa econômica. Seria possível até expandir estas medidas para implantar um modelo econômico de riqueza, que deixaria como seu legado um Brasil fortalecido, próspero e moderno – pronto para realizar nosso "Brazilian Dream". Com a ajuda do modelo econômico neoliberal e do "Consenso de Washington", receitado pelo FMI, implantamos nosso modelo econômico de pobreza. Agora, diante desta crise global, esta pregação sagrada dos EUA provando sua clara limitação, qual será o nosso novo modelo econômico? A estratégia chinesa O governo chinês adotou um plano de medidas defensivas, que inclui um pacote de estímulo, gigantesco para o tamanho de sua economia, de US$ 585 bilhões. Esses fundos não provêm de empréstimos e nem são de emissão de moeda sem lastro. Tal soma será gasta com rapidez em obras de infraestruturas públicas e principalmente para mudar o hábito poupador do povo chinês para uma vida de maiores gastos. A parte mais importante deste pacote de estímulo se destina a neutralizar os dois principais motivos que prendem os chineses


Tobias Schwarz/Reuter

ao hábito de poupar: a criação de um sistema de aposentadoria e de saúde efetiva e acessível deve estimular maiores gastos. Somente a criação de um sistema de saúde mais universal consumirá mais de 850 bilhões de yuans (US$ 130 bilhões) nos próximos três anos. Em função de sua gigantesca reserva em divisas (mais de US$ 2,3 trilhões, inclusive Hong Kong e Macau), a China tem maior flexibilidade de ação. Uma vez que os bancos chineses não foram afetados por esta crise, a China foi o único país que conseguiu inundar o mercado de empréstimos com sua abundante liquidez. Tais empréstimos alcançaram o montante de 740 bilhões de yuans (US$ 108 bilhões) somente em dezembro de 2008. Em janeiro houve um surto de empréstimos de Rmb$ 1,3 trilhão (US$ 190 bilhões). As vendas a varejo cresceram 18% em dezembro passado; a entrada para compra de imóveis foi reduzida a 20%, após ter sido elevada a 40% quando se pretendeu desaquecer a economia nacional. Contudo, dezenas de milhares de fábricas chinesas fecharam as portas e mais de uma dezena de milhões de postos de trabalho se perderam. A maioria das indústrias fechadas era de mão-de-obra intensiva, com menor nível tecnológico. Embora o governo já tivesse intenção de elevar os níveis de sofisticação tecnológica e de valor agregado da indústria chinesa, a crise e a dispensa de tamanha quantidade de empregos fizeram o governo chinês repensar tal estratégia. A China terá de passar por uma penosa reformulação para adequar a sua capacidade produtiva à nova realidade de mercado externo e dirigir suas grandes reservas para desenvolver o potencial de seu vasto mercado interno. Feita esta reformulação econômica, a China sairá fortalecida, com maior diversificação e independência econômica. Isto fará com que tenha menor interesse em desviar de suas economias as significativas somas necessárias para sustentar o valor do dólar enfraquecido. Conforme o artigo "Cash is King" que escrevi para o "International Finance News", jornal econômico do Grupo "Renmin Ribao" (Diário do Povo), a China deverá aproveitar a sua significativa liquidez para comprar pelo mundo, atualmente a preços de liquidação, empresas, tecnologias, talentos, centros de pesquisas e desenvolvimento e para a criação de novos mercados. O investimento na infraestrutura criará empregos de curta duração até que sua economia possa se recuperar e facilitará ainda mais a trajetória chinesa para voltar ao crescimento econômico de que ne-

18

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Robert Galbraith/Reuters

cessita. É assim que a China se prepara para ser a segunda economia do mundo, pois ultrapassará o PIB japonês em 2010. Assumindo significantes prejuízos nos seus investimentos em papéis do mercado financeiro norteamericano, a poupança chinesa será menos dirigida à compra destes e será mais investida na própria economia doméstica. Francamente, os chineses se cansaram de trabalhar muito, poupar ao extremo e emprestar esta poupança a juros baixos para que o norteamericano financie um nível de vida muito superior ao chinês. Os chineses viram sua poupança ser diluída pela desvalorização do dólar e pela queda nas bolsas. Desde que o presidente do Fed (Banco Central Americano), Ben Bernanke, saiu-se, em 2002, com a bravata da força

Nir Elias/Reuters


do dólar, essa moeda se desvalorizou cerca de 40% em relação às demais. Séria contração monetária mundial Na página ao lado, norteamericanos comemoram a posse do presidente Barack Obama, que assume em um momento difícil da economia. O país sofreu uma queda acentuada no quarto trimestre do ano passado, com uma contração de 3,8% no PIB.

Neste momento, assiste-se a uma séria contração monetária nos EUA, cuja crise contagiou o mundo com instrumentos financeiros podres e pôs fim à liquidez do próprio país. A desalavancagem generalizada, e a retirada de investimentos feita em outros países pelos fundos e multinacionais norteamericanos e dos países ricos ajudaram a encolher a liquidez mundial. Esta repatriação de recursos reduz sensivelmente o volume de investimentos diretos estrangeiros de risco, tão essenciais às economias em desenvolvimento.

chegou a US$ 1,2 trilhão. Antes da crise atual, a dívida externa norteamericana já ultrapassava US$ 4 trilhões. Atualmente, o dólar tem se valorizado como refúgio temporário seguro para o fluxo financeiro mundial, mas a sua continuada desvalorização tem data marcada. Segundo análise da Bloomberg, incorporando dados do Tesouro dos EUA e da Seguradora Federal de Depósitos (FDIC), a necessidade da economia norteamericana pode chegar à soma estratosférica de US$ 8,5 trilhões: US$ 300 bilhões foram gastos com a "Fannie Mae" e o "Freddie Mac," a seguradora AIG e a Bear Stearns; US$ 300 bilhões adicionais foram para o Citigroup; US$ 700 bilhões para TARP (Troubled Assets Relief Program, programa de auxílio a ativos problemáticos); US$ 1,4 trilhão provisionados para a FDIC (com depósitos bancários até o limite de US$ 100 mil por depositante); US$ 800 bilhões para compra de dívidas com garantia de bens pelo Fed; US$ 2,3 trilhões para programas de papéis comerciais do Fed, e US$ 2,2 trilhões para empréstimos do Fed e outros compromissos governamentais. O governo dos EUA tornou-se o maior detentor mundial de créditos podres. A fase inicial desta crise "subprime", que já causou a ruptura da economia mundial, foi provocada pela inadimplência em massa dos financiamentos de imóveis residenciais. Porém, ainda temos pela frente várias ameaças: a dos imóveis comerciais, a dos cartões de crédito, a dos financiamentos de automóveis e a de outros créditos pessoais. A dupla crise financeira mundial

Desempregados chineses de Zhengzhou jogam carta na rua enquanto aguardam a chegada de novos anúncios de emprego.

A parceria entre os EUA consumista e empréstimos baratos da poupança chinesa possibilitou décadas de prosperidade mundial jamais sonhada. Todavia, desde os anos 90, o dólar tem sido sobrevalorizado, a ponto de ajudar a fomentar um déficit anual interno insustentável nos EUA. Em 2008, esse déficit

Os financiadores dos EUA – como a China, em primeiro lugar, os produtores de petróleo (na maioria seus rivais) e o Japão, estão reticentes em investir recursos da ordem de grandeza necessária para reparar a economia americana. Assim, a impressora da casa da moeda norteamericana deve rodar em ritmo acelerado. Essas emissões massivas de papel-moeda farão com que o dólar siga sua trajetória de desvalorização. Contudo, as nações financiadoras se deparam com uma armadilha, pois não podem simplesmente deixar de financiar os EUA, sob o risco de provocar uma corrida contra o dólar e assistir a evaporação de suas poupanças nacionais já investidas. A rejeição do dólar provocará outra crise financeira global – a do sistema financeiro mundial. O dólar ainda é a moeda da poupança de países e a moeda de transações co-

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

19


Pessoas fazem fila em frente à Secretaria de Emprego e Relações de Trabalho para concorrerem a vagas de auxiliar de limpeza do Metrô.

merciais e financeiras mundiais. Assim, a necessidade de reformar o ainda vigente acordo de Bretton Woods se torna urgente. As nações ricas, vitoriosas da 2ª Grande Guerra, que criaram o sistema financeiro internacional, estão endividadas. Algumas nações, então pobres, são hoje grandes credoras e estão sendo chamadas para pagar a conta do estrago provocado pelas nações ricas. Elas seriam menos reticentes em abrir seus bolsos profundos se tivessem voz ativa em um Bretton Woods-2. Uma nova moeda de reserva deve ser discutida, para desacoplar o enfraquecido dólar como base de reserva mundial e como padrão global de comércio e operações financeiras. Essa desvalorização continuada do dólar aumentará o preço das importações americanas, o que pressionará a inflação doméstica dos EUA. A fim de atrair investidores, o Fed será forçado a aumentar sua taxa de juros. Certamente, o nível de vida dos norteamericanos sofrerá sérias contrações, encolhendo dos atuais 25% do PIB global, controlado por menos de 5% da população do planeta que é dos EUA. Mais de 70% do PIB dos EUA era composto por consumo facilitado por créditos baratos e de fácil acesso. Com a redução deste consumo, certamente o PIB também encolherá. Qualquer outra nação nesta situação estaria, sob os auspícios do FMI, desvalorizando sua moeda e sendo forçada a implementar medidas de austeridade. Todavia, sendo ainda senhores da moeda de reserva internacional, os EUA podem dar-se ao luxo de continuar gastando, e o resto do mundo continuará a ter de assumir sua conta. Que nota se daria ao crédito soberano norteamericano se sua avalia-

ção fosse feita por alguma das empresas americanas de "rating", que ora estão desacreditadas pelas suas notas dadas aos bancos americanos antes da crise? O "Laissez Faire" de Adam Smith, pregado pelos EUA para o mundo como fórmula sagrada para a prosperidade, revela agora suas limitações. A socialização dos prejuízos de "Wall Street" e a estatização total ou parcial de quase todas as entidades financeiras e de indústrias dos EUA chocaram a opinião pública. Muitos americanos temem ver seu país se transformar em uma espécie de Estados Unidos Socialistas da América, enquanto o comportamento da China poderia levá-la a ser chamada de República Popular Capitalista da China. A emissão acelerada de sua moeda e a política de desvalorizar seu dólar para promover suas exportações poderá custar aos EUA a facilidade da gerar grandes dívidas. Sem créditos automáticos e ilimitados, atualmente possíveis como senhores da moeda-padrão, os EUA terão de viver conforme seus meios. Até suas aventuras globais poderão ser reduzidas, tendo de respeitar o consenso de seus financiadores. A intervenção governamental na economia, questão mais chegada às teorias de Keynes e aproximando-se da direção planejada dos "tigres asiáticos" e da China, deve ser vista agora sob nova ótica. O capitalismo, da forma como vinha sendo praticado, deixa de existir, e sinaliza o encaminhamento para o fim da era de soberania da ordem econômica e financeira mundial dominada pelos países do G-7 e do mundo unipolar. Com a emergência do nacionalismo econômico, veremos também um retrocesso na globalização financeira.

Brigida Rodrigues/e-Sim

20

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


Parceria Brasil-China

A cada mês, milhões de chineses são tirados da pobreza e passam a ter renda própria para consumir mais. Abaixo, trabalhador de uma mina de carvão em Xian e a estação de trem de Qingdao.

AFP

Diante deste quadro mundial, o Brasil e a China são obrigados a procurar alternativas ante a queda dos seus mercados tradicionais – EUA, União Européia e Japão. Na nova ordem mundial multipolar, a parceria estratégica e comercial entre estes dois gigantes do Leste e um do Oeste tende a crescer ainda mais. O comércio bilateral dos dois países partiu de meros US$ 1,5 bilhão, em 1999, para nada menos de US$ 36,4 bilhões em 2008. A China precisa desenvolver novos mercados e deve assegurar-se de fontes dos produtos estratégicos de que necessita para seu crescimento sustentado e para alimentar seu povo. O Brasil, por sua vez, necessita de liquidez, de crédito e de investimentos para gerar empregos e reduzir os efeitos desta recessão na economia nacional. Uma recessão profunda da China pode agravar em muito o delicado estado atual da economia mundial. Mas em função de sua reserva invejável, baixo nível de endividamento, superávit de conta corrente e principalmente de sua agilidade em implementar seu gigantesco plano de estímulos, a China deverá atingir sua meta de crescer 8% em 2009. Todavia, dificilmente poderá, sozinha, salvar o mundo capitalista e, ao mesmo tempo, resolver os problemas de reajuste econômico interno.

Em números absolutos, o PIB chinês representa somente 7% da economia mundial. Mesmo considerando a paridade de poder aquisitivo, que multiplica seu PIB por quase quatro, a economia chinesa não pode, por ora, preencher o papel desempenhado pela gigantesca economia norteamericana. Embora em 1997 a China já tenha salvado o mundo capitalista durante a crise asiática, o que ela pode fazer é acolchoar a queda dos países que lhe fornecem os produtos estratégicos de que necessita. Como grande exportador destes produtos, o Brasil será certamente beneficiado. Devemos lembrar que a política do governo do presidente Hu Jintao, denominada "Sociedade Harmoniosa", de maior justiça social, maior respeito ao meio ambiente e ao consumo de energia, está acelerando a inclusão econômica e social do povo chinês. A cada mês, milhões de chineses são tirados da pobreza e passam a ter renda própria para consumir mais. Independentemente da crise, essas pessoas necessitam melhorar sua alimentação, seu vestuário, sua habitação e ter meios de transporte mais adequados. Nos últimos 30 anos, a China passou por uma explosão de consumo, pois, numa conquista ímpar na matéria de direitos humanos, ela já tirou da pobreza cerca de 480 milhões de habitantes, os quais passaram a participar dos dividendos decorrentes do sucesso econômico do país. Nesta crise, alguns países partiram para acusar outras nações por sua aflição econômica e clamam por protecionismo. Acusações e guerras comerciais somente levarão ao agravamento da economia mundial. Convém lembrar que somente uma ação conjunta entre as nações de peso econômico poderá recuperar a economia globalizada.

Reuters

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

21


A

Paulo Pampolin/Hype

s maciças demissões divulgadas pelo nização compensatória. Há casos de estatais e socaderno de economia do jornal "O Esciedades de economia mista que, por excessiva litado de S. Paulo", sob a manchete "654 beralidade, asseguram empregos vitalícios. Famil vagas viram pó em dezembro" zem-no, todavia, com perda de competitividade, (20/01/09), passarão à história do trabalho como às custas dos consumidores (sobretudo quando a tragédia anunciada de 2008. monopolistas), ou dos cofres públicos. Deixe-se a hipocrisia de lado para se reconhecer, No texto original, a CLT concedia estabilidade ao ante tantos fatos consumados, que o rompimento empregado que completasse 10 anos de serviços do contrato de trabalho é possível e permitido, em efetivos na mesma empresa. Neste caso, a demissão tal variedade de negócio jurídico. Casos de rescisão somente caberia na rara hipótese de força maior, ou Almir prematura são comuns nas construções de imóveis, pela prática de falta muito grave, apurada em inPazzianotto em compras e vendas de veículos, entre locadores e quérito judicial. Pinto locatários, no meio futebolístico e até no matrimôA demorada experiência com a estabilidade não Ex-ministro do nio, considerado sacramento pela Igreja, mas tratasurtiu resultados positivos. Para substituí-la, foi Trabalho e do na lei civil como figura singular de contrato. criado o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, ex-presidente do O contrato de trabalho integra a esfera dos neinstituído pela Lei nº 5.107, de 1967. A primeira reaTribunal Superior gócios jurídicos vinculados ao direito privado. ção do movimento sindical foi forte, mas de breve do Trabalho Ao regulamentá-lo, o legislador observou que duração, como relatou o falecido senador baiano empregadores e empregados não se encontram, Luiz Viana Filho, no livro "O Governo Castelo habitualmente, em posição de equilíbrio e igualdade, salvo Branco". Com o tempo, os aspectos positivos do FGTS se nas microempresas. É por isso que a legislação social prevê sobressaíram, e o moderno instituto passou a ser ennumeroso rol de garantias aos assalariados, como salário mícarado como conquista dos trabalhadores, vinnimo, limitação da jornada, descanso semanal, férias anuais, do a ser incluído no elenco dos direitos sodécimo terceiro. Normas específicas acentuam a proteção à ciais pela Constituição de 1988. mulher, à maternidade, ao menor, à saúde e segurança. Entre A crise que o Brasil atravessa, em as garantias constitucionais, ganham destaque o direito de parte como reflexo da recessão greve e a liberdade de organização sindical, embora esta se mundial, recoloca em pauencontre subordinada ao modelo corporativo-fascista, cota o problema das dispiado pela Carta de 37. pensas. Nas últiEm períodos de recessão, quando os mercados ficam debimas semanas litados e as empresas passam a experimentar repetidas perdas de receitas, uma das perguntas é sobre o destino da força de trabalho. A resposta habitual, não obstante amarga, tem consistido no rompimento unilateral de contratos, recorrendo-se às demissões coletivas. A legislação autoriza a demitir. A estabilidade no emprego é garantia de caráter excepcional oferecida à gestante, ao acidentado, ao dirigente sindical. A regra está lançada no art. 7º, I, da Constituição, cuja combinação com o art. 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, legitima a rescisão sem justa causa, mediante inde-

li v

g a

m 4

s a

m ra

" ó

p

i v

5 6

"

Newton Santos/Hype

22

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


Fernando Donasci/Folha Imagem

repetiram-se informações sobre desligamentos coletivos, já consumados ou programados, na América, Europa, Japão, China. Entre nós iniciaram-se negociações entre empresas e sindicatos, algumas concluídas com sucesso. O governo bem que tentou subestimar a gravidade da recessão. De início procurou nos convencer de que não passava de reles "marola", incapaz de realizar a travessia do Atlântico. Pressionado pelos fatos, passou a cogitar de ações preventivas, na forma de financiamento aos empresários. Alimentou infundadas esperanças, no final do ano, determinando à população que fosse às compras. De concreto, entretanto, tivemos apenas a nebulosa reforma ortográfica, com propósitos insondáveis, mas que têm algo a ver com interesses ocultos. Não percebo como as empresas poderão, nas atuais circunstâncias, escapar às demissões coletivas. O setor automotivo, considerado carro-chefe no mercado de trabalho, enfrenta graves dificuldades decorrentes da retração dos consumidores, e do acúmulo de gigantescos estoques de novos, seminovos e usados. O mesmo passa-se no ramo de autopeças, na construção civil, no setor publicitário. A CLT limita-se a disciplinar o desligamento pessoal. Quando inexistir justa causa, assegura, além do aviso prévio, a liberação do Fundo de Garantia acrescido da multa de 40%, ordena o pagamento de férias e décimo terceiro proporcionais aos meses trabalhados e, em determinada situação, o demitido receberá um salário adicional, a título de indenização especial. Da dispensa impessoal e coletiva não trata a arcaica Consolidação. O legislador, indolente e incapaz como de hábito, insiste em ignorar que a medida traz profundas repercussões no seio da comunidade. O amparo ao dispensado, no Brasil, é razoável porque, além

dos valores de conteúdo indenizatório, será beneficiado pelo seguro-desemprego, por período que irá de 3 a 5 meses. Dilatálo mais 1 ou 2 meses pouca vantagem trará, se a economia ingressar no próximo ano em crise. Mais de 20 anos transitaram diante do Congresso Nacional, desde que foi promulgada a Constituição de 88. O dispositivo que cuida de proteger o empregado contra demissões arbitrárias ou sem justa causa (art. 7º, I), permanece, como tantos outros, no aguardo de regulamentação. Quando, e como virá, se for aprovada? Ante a passividade do Poder Executivo e a omissão do Congresso Nacional, ninguém consegue prever. Até lá, não há como recusar ao empregador em crise o direito de demitir um, dez, cem, ou todos os empregados. É trágico, mas faz parte da nossa cruel realidade. Robson Fernandejes/AE

O setor automotivo enfrenta graves dificuldades com a retração do mercado

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

23


A ganância na economia,

24

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


na psicologia e nas artes Por Renato Pompeu

N

ão se discute se a ganância teve ou não um papel na profundidade da atual crise econômica planetária. O que se discute é qual o seu papel. A grande maioria dos observadores atribui à ganância um papel fundamental no desencadeamento da crise. O mecanismo seria mais ou menos o seguinte: papéis com lastro real, com o mercado em alta, seriam usados como garantia para outros papéis, e esses últimos papéis serviriam de "garantia" para outros papéis, e assim sucessivamente, até que os papéis finais da cadeia não tivessem nenhuma relação com o lastro real inicial. Como ainda por cima todo lastro real, a longo prazo, pela concorrência e pela inovação tecnológica dela decorrente, tende a se baratear, segue-se que não há garantia real para os títulos sucessivamente alavancados. Em algum momento chega a hora de cobrar os papéis em algum ponto terminal da cadeia, sem que o devedor tenha condições de honrá-los. A onda reversa logo abate todos os detentores de papéis agora sem garantia. Isso desencadearia a crise, enquanto saem ganhando os gananciosos que deixaram o circuito com dinheiro vivo na mão, antes da queda.

Bob Jacobson/Corbis

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

25


Uma minoria de observadores, no entanto, acredita que a crise, na verdade, só pode ocorrer pela desvalorização do ativo real. Enquanto este estiver valorizado e se valorizando, tudo é festa, o problema começa quando o ativo real se desvaloriza. Nesse caso, dizem esses observadores, a alavancagem promovida pelos gananciosos até serve para retardar o desencadeamento da crise, num ganho de sobrevida que proporcionaria um prazo para as autoridades e demais agentes tomarem providências, o que teria sido o caso em crises anteriores, mas não agora. De todo modo, a ganância e seus mecanismos – a especulação, o sobrepreço, o engano e até o roubo, a sonegação e o estelionato – são pela esmagadora maioria dos observadores, e do público em geral, considerados males e até mesmo crimes, conforme o tipo de ganância, males e crimes que são responsáveis pelas crises. Esse sentimento é ainda mais generalizado na opinião pública leiga, um tanto atenuado quando o mercado está em alta, e exacerbado quando o mercado entra em baixa ou mesmo em contração. Mas o paradoxo é que, em proporção a esse sentimento, não são muitos os livros de economistas que discutem a ganância, e mesmo a maioria desses estudos só trata indiretamente do assunto, ou de passagem, sem tê-la como tema central. É o caso, por exemplo, de O novo paradigma dos mercados financeiros – A crise atual e o que ela significa, livro do megainvestidor americano nascido na Hungria George Soros, publicado no Brasil pela Agir. Nessa obra, inspirada pelo estouro da bolha imobiliária americana em agosto de 2007, Soros não condena propriamente a ganância ou a especulação, mas a crença de que o mercado sempre se autorregula, crença a que chama de "fundamentalismo de mercado". Diz Soros: "O fundamentalismo de mercado tem suas origens na teoria da competição perfeita, tal qual proposta originalmente por Adam Smith e desenvolvida pelos economistas clássicos. No período pós-Segunda Guerra Mundial, o conceito ganhou forte ímpeto devido ao fracasso do comunismo, do socialismo e de outras formas de intervenção estatal. Mas esse ímpeto tem falsas premissas. O fato de a intervenção do Estado ser sempre imperfeita não torna os mercados perfeitos. A proposição central da teoria da reflexividade é que todas as criações mentais humanas são imperfeitas. Os mercados financeiros não necessariamente tendem ao equilíbrio. Caso nenhum outro fator interfira, é provável que atinjam extremos de euforia ou desespero. Por esse motivo eles não

26

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

A gansa dos ovos de ouro U m homem e sua

funcionam de forma autônoma; foram colocados sob o controle das autoridades financeiras, cuja função é fiscalizá-los e regulamentá-los. Desde a Grande Depressão, as autoridades vêm obtendo notável sucesso em evitar qualquer grande colapso do sistema financeiro internacional. Ironicamente, foi exatamente o seu sucesso que permitiu que o fundamentalismo de mercado ressurgisse. Quando estudei na London School of Economics, nos anos 1950, o Laissez-Faire parecia ter sido enterrado definitivamente. Mas ele ressurgiu nos anos de 1980. Sob sua influência, as autoridades perderam o controle dos mercados financeiros, e a superbolha se desenvolveu". Agora, a superbolha financeira global também estourou, mas, como vemos, se pode dizer que Soros não julga a ganância responsável por isso; ao contrário, a causa fundamental da crise, a crença de que o livre mercado se autorregula, é que propicia o surgimento do que chamamos de ganância. Esta, para os partidários extremos do mercado totalmente livre, é apenas uma atividade mercantil tão legítima quanto outra qualquer. Em Crises financeiras – Uma história de quebras, pânicos e especulações do mercado, de autoria dos economistas brasileiros Pedro Carvalho de Mello e Humberto F.S. Spolador, obra publicada pelo Saint Paul Institute of Finance, temos, não uma condenação moral da ganância, mas uma análise "anatômica", que serve para todas as grandes crises financeiras que ocorreram nos últimos séculos, e em seguida uma descrição histórica de algumas das crises mais importan-

mulher tinham a sorte de possuir uma gansa que todo dia punha um ovo de ouro. Mesmo com toda essa sorte, eles acharam que estavam enriquecendo muito devagar, que assim não dava. Imaginando que a gansa devia ser de ouro por dentro, resolveram matá-la e pegar aquela fortuna toda de uma vez. Só que, quando abriram a barriga da gansa, viram que por dentro ela era igualzinha a todas as outras. Foi assim que os dois não ficaram ricos de uma vez só, como tinham imaginado, nem puderam continuar recebendo o ovo de ouro que todos os dias aumentava um pouquinho sua fortuna. Fábulas de Esopo

Você pode ler outras Fábulas de Esopo no livro da Companhia das Letrinhas


pode ser apenas uma história econômica do ponto de vista estritamente técnico, mas tem de ser também uma história social, uma história da sociedade em que a economia se desenvolve. Todos os seres humanos nascem com uma disposição para trocar o que têm e lhes sobra pelo que não têm e desejam. Além disso, nascem com uma disposição para calcular o que pode acontecer no futuro. Essas duas características é que, de um lado, explicam o maior desenvolvimento material dos seres humanos em relação a outras espécies animais, e, de outro, na medida em que a sociedade progride financeiramente, explicam a especulação financeira. A especulação, no capitalismo, pode ser benéfica socialmente em épocas de normalidade, mas se torna maléfica, individualmente, nas situações de crise. A essa especulação individualista maléfica durante a crise é que se dá o nome de ganância. A psicanálise explica

George Soros não condena a ganância ou a especulação, mas a crença de que o mercado sempre se autorregula.

Adam Hunger/Reuters

tes, para finalizar com proposições para regular o mercado, minimizar as crises e, principalmente, minimizar o seu impacto. Não se trata assim de uma condenação moral da ganância, mas de uma condenação técnica contra a especulação desregulada. Mello e Spolador apresentam quatro modelos dos estágios inerentes a cada crise financeira. O primeiro é do economista americano John Kenneth Galbraith: 1) surge no mercado algo novo, como tulipas (na Holanda, no século 17), ações de ferrovias (nos Estados Unidos, no século 19), companhias de alta tecnologia (na passagem do século 20 para o século 21); 2) os especuladores sentem orgulho em serem investidores de ponta; 3) na verdade não há maiores inovações nos mecanismos financeiros, repetem-se mecanismos que não deram certo em ocasiões anteriores; 4) criam-se débitos, mais ou menos garantidos por ativos reais; 5) alavancam-se os papéis, em desproporção cada vez maior à economia real; 6), desencadeada a crise, buscam-se os "culpados", isto é, os gananciosos. O modelo de Galbraith já basta para compreendermos a parte histórica do livro de Mello e Spolador, em que eles relatam as sucessivas bolhas da supervalorização e posterior desvalorização de ativos, desde as tulipas na Holanda no século 17, até a crise da Argentina em 2001, passando pelo chamado encilhamento no Brasil nos começos da República e pela grande crise de 1929. Quanto aos outros modelos apresentados por Mello e Spolador, são dos economistas também americanos Hyman Minsky (de obra não disponível em português) e Charles P. Kindleberger e do inglês Edward Chancellor. Em Manias, pânico e crashes – Um histórico das crises financeiras, publicado no Brasil pela Nova Fronteira, Kindleberger, já em 1978, atribuía a centralidade de cada crise "às dívidas contraídas para financiar a aquisição de ativos especulativos para posterior revenda", segundo Mello e Spolador. Nesse caso, a opinião pública considera gananciosos os que conseguiram revender antes da crise, com altos lucros, e vítimas os que foram surpreendidos pela crise, tendo ainda na mão os ativos especulativos, entre eles a massa dos pequenos investidores. Já Edward Chancellor, em Salve-se quem puder – Uma história da especulação financeira, em edição brasileira da Companhia das Letras, defende que a história das crises especulativas, como a história da economia em geral, não

Mas todos nós somos gananciosos, diz uma jornalista americana especializada em psicologia empresarial. Segundo Diane L. Coutu, uma das editoras principais da mais prestigiosa revista de negócios do mundo, a Harvard Business Review, em artigo publicado em fevereiro de 2003, na própria revista, "eu também já fui gananciosa. As pessoas sempre foram gananciosas. O problema surge quando a ânsia pelo dinheiro infecciona toda uma sociedade". Ela conta que, quando em março de 2000, o índice Nasdaq tinha passado de 5 mil pontos, ao ver isso no noticiário da noite na televisão, ela imediatamente se sentiu "pobre", apesar de estar suficientemente próspera para mais do que preencher todas as suas necessidades materiais e garantir a velhice. Passou a mão no telefone e ligou para seu corretor, mandando-o comprar o mais que pudesse em ações de empresas de tecnologia de ponta. Ela não queria "ficar fora da festa". No entanto, tempos depois o Nasdaq tinha caído para em torno de mil pontos e o público americano estava ultrajado com os executivos de Wall Street que tinham vendido ainda na alta, logo antes da queda abrupta das ações do índice. Só um deles gastou um milhão de dólares na festa de aniversário da mulher numa paradisíaca ilha italiana, sem falar no escândalo da Enron. Coutu acha que o ultraje pode ter lá as suas justificativas, mas chama a atenção para o fato de que "ganância" é uma atitude que só atribuí-

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

27


Reprodução

mos aos outros. E para o fato de que, quando o Nasdaq estava a 5 mil pontos, esses mesmos executivos, inclusive os da Enron, eram saudados como "heróis" da economia de ponta por esse mesmo grande público que agora os apontava como "gananciosos". A verdade é que, com a atuação desses "heróis" das finanças, dezenas de milhares de pessoas que agora os acusavam de "ganância" haviam também ganhado, ainda que temporariamente, se não milhões, ao menos uns poucos milhares de dólares, ou mesmo algumas centenas, embora depois tenham perdido tudo – quando só então reclamaram. A autora destaca que a ganância é uma característica eminentemente individual, mas que as ciências psíquicas pouco se dedicaram a estudála. A prova é que, após intensa pesquisa em Boston, cidade que é um dos maiores centros psicoterápicos dos Estados Unidos, encontrou apenas um livro sobre psicanálise da ganância. Acha que o pouco interesse da psicoterapia pela ganância se deve a que esse sentimento é visto como negativo, e por isso os psicoterapeutas hesitariam em assinalá-lo no comportamento de seus pacientes, que se ofenderiam com essa avaliação de suas pessoas. Mas Coutu aprofundou suas pesquisas e descobriu que a ganância foi mais extensamente discutida por três grandes nomes das ciências psíquicas, todos psicanalistas: o próprio Sigmund Freud, fundador dessa corrente; sua bem conhecida seguidora Melanie Klein e o menos famoso psicanalista austríaco Heinz Kohut, mais atuante depois dos anos 1950. Diz a jornalista da Harvard Business Review: "Freud argumentava que a ganância era natural, que o ser humano nascia ganancioso. Para ele, o inconsciente era um caldeirão de desejos e impulsos assassinos – o sexo e a agressão – que tinham de ser socializados. Nesse processo de socialização, as pessoas progrediam pelos estágios ‘psicossexuais’ oral, anal e fálico, e a ganância podia ser expressada em cada um deles". O ganancioso que se fixou na fase oral, por exemplo, pode ser o executivo obcecado em "engolir" outras companhias. Já o ganancioso que se fixou na fase anal, ou tende a acumular cada vez mais dinheiro, sem porém gastá-lo, como o bebê que se compraz em reter suas fezes, ou tende a

28

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Para Freud, o ganancioso que se fixou na fase oral, por exemplo, pode ser o executivo obcecado em "engolir" outras companhias. Já o ganancioso que se fixou na fase anal, tende a acumular cada vez mais dinheiro, sem porém gastá-lo como o bebê que se compraz em reter suas fezes (...)

gastar dinheiro para acumular bens em escala descomunal, "gastando adoidado", como se diz. Finalmente, o ganancioso que atingiu a fase fálica, ou genital, é do tipo daqueles que lutam obstinadamente para se tornar "o homem mais rico do mundo", ou "um dos homens mais ricos do mundo". Aqui não deve haver confusões. Freud, diz Coutu, via aspectos positivos no dinheiro, que para ele pode ser uma medida do nosso status e até de nossa liberdade. Mas ele escreveu em 1908: "Na realidade, sempre que modos arcaicos de pensamento predominam ou persistem – nas civilizações antigas, nos mitos, nos contos de fadas e superstições, no pensamento inconsciente, nos sonhos e nas neuroses – o dinheiro aparece no relacionamento mais íntimo com a sujeira". Cabe lembrar que, para Freud, a sujeira é um símbolo das fezes, as quais, segundo observou, exercem uma intensa fascinação nas crianças, que persiste em alguns adultos. Pode-se dizer que, para Freud, o princípio primordial que rege as ações das pessoas é o princípio do prazer – e não só os bebês sentem prazer tanto em reter as fezes quanto em defecar. Para sua seguidora Melanie Klein, no entanto, mais importante do que o prazer e o relacionamento do indivíduo com um ou mais objetos externos relacionados com outras pessoas – inicialmente, com o seio da mãe, visto como uma "coisa boa", já que é fonte de alimentação e da vida. A criança, no entanto, internaliza o seio da mãe como "perfeito", mas na prática descobre que ele não é perfeito – nem sempre está disponível, por exemplo. Se internalizam assim "bons" e "maus" objetos e o indivíduo se vê, por exemplo, lidando com a frustração de descobrir que o "bom" objeto é um "mau" objeto, ou está ausente, caso em que deve estar nas mãos de outro, o que gera sucessivamente o ciúme, a inveja e a ganância, sentimentos que têm todos a mesma origem – o medo de ficar sem o "bom" objeto. O ciúme implica em se desejar o que se sente que está na mão do outro. A inveja é uma agressão virtual a quem detém essa posse, e mesmo ao objeto da posse. E a ganância é o desejo de obter tudo de bom que possa haver no objeto, se necessário tirando de outrem, ou mesmo


Reprodução

destruindo o objeto para arrancar dele o que tem de bom. Essa é a definição de ganância, para seguidores de Melanie Klein. Quanto a Heinz Kohut, sua principal contribuição foi o conceito de narcisismo, segundo o qual a pessoa que cada uma tende a mais admirar e cultuar é a si própria; não é à toa que suas idéias foram mais influentes nos anos 1970 e 1980, quando os yuppies introduziram a noção de que a autoindulgência e a ganância são fatores positivos para o avanço da carreira profissional. Para Kohut, a autoexaltação era necessária para que o indivíduo não se sentisse um nada, um zé-ninguém, destinado, como cantava o compositor Raul Seixas, a ficar "com a boca aberta cheia de dentes, esperando a morte chegar". Com o livre desenvolvimento de sua ganância, o narcisista pode exibir os bens acumulados como provas objetivas e concretas dos motivos pelos quais sua personalidade deve ser admirada. Se poucos psicoterapeutas lidaram de fato com a ganância, a verdade é que a maioria, dentre esses poucos, julga que o que se pode considerar como ganância patológica – a necessidade de obter ganhos a todo custo, independentemente do que isso possa causar aos outros – tem origem em privações na infância. Quando a criança se sente particularmente carente em alguma de sua necessidade que não esteja sendo preenchida de modo satisfatório, ela vai, quando adulta, desenvolver necessidades agudas que quer ver preenchidas a qualquer custo, para nunca mais ficar em situação de privação de alguma coisa. Isso para fugir do pânico que sentia em criança. O ganancioso, assim, partiria de um infantilismo mal resolvido. Mas em termos da crise atual e do eventual papel da ganância na "corrente da felicidade" da ciranda financeira que a teria gerado, ainda não temos estudos mais aprofundados por parte de psicoterapeutas. O que mais se aproxima disso é um artigo algo brincalhão de Jo Nash, estudante de psicologia da Universidade de Sheffield, Inglaterra, de outubro de 2008, intitulado "Sincronicidade, psicologia do investidor e o fazer da história". Sincronicidade é um conceito da psicologia analítica, segundo o qual, quando se pensa num objeto, imediatamente ele se manifesta na realidade objetiva de alguma forma. O artigo apresenta a curva das atitudes psicológicas do investidor, que acompanha as curvas das cotações no mercado e começa ascendendo de patamar em patamar, o mais raso sendo o desprezo pelo investimento (quando as cotações estão baixas); depois, na medida que as cotações vão subindo, vêm a dúvida e a

Ebenezer Scrooge, da novela "Um cântico de Natal", de Charles Dickens, só queria acumular dinheiro, não se importando com a miséria alheia.

Se os estudos psicológicos sobre a ganância são parcos, a ficção explorou bastante essa temática, mas é raro que os autores de romances e contos tratem propriamente de ganância nas altas finanças.

suspeita, em seguida a cautela, depois a confiança e em seguida o entusiasmo, para atingir o auge – no ponto mais alto da curva dos preços – na ganância e na convicção. A partir daí, acompanhando a queda progressiva das cotações, a curva psicológica do investidor passa a descer, primeiro para o degrau da indiferença, depois para a atitude de deixar de lado, em seguida para a negação da realidade, daí para o medo e em seguida para o pânico; finalmente, novamente para o desprezo pelo mercado. Ou seja, o investidor típico, segundo esse diagrama, faz exatamente o contrário do secular conselho tão repetido de "comprar na baixa e vender na alta". A ganância o faz comprar quando os preços começam a subir, e a comprar cada vez mais conforme os preços sobem, e a entrar em pânico e a vender cada vez mais conforme os preços vão baixando. A ganância nas artes Se os estudos psicológicos sobre a ganância são parcos, a ficção explorou bastante essa temática, mas é raro que os autores de romances e contos tratem propriamente de ganância nas altas finanças. Outros tipos de ganância, que podem levar os gananciosos até ao assassínio para obterem as riquezas que desejam, são porém bem contemplados por romancistas e contistas. Entre os livros de ficção que têm a ganância como tema, um dos mais famosos é O Falcão Maltês, romance policial do escritor americano Dashiell Hammett, originalmente

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

29


Reprodução

O filme mais famoso sobre o tema é "Greed", que significa ganância, dirigido em 1924 em Hollywood, pelo também ator austríaco Eric von Stroheim.

30

publicado em 1929. No que se refere à ganância, trata-se da busca, por um grande número de pessoas, pela posse de uma estatueta muito valiosa, na verdade de valor incalculável, que representa um pássaro negro, de metal precioso, cravejado de pedras preciosas. A estatueta havia sido esculpida no século 16, para ser dada de presente em 1530 ao imperador Carlos V, mas desapareceu antes de chegar às mãos do imperador, tendo sido vista ocasionalmente em vários lugares do mundo ao longo dos séculos, passando de mão em mão. Nessa trilha, as pessoas à sua busca se perseguem, se roubam e se matam entre si. É um clássico que demonstra que as pessoas, por causa da ganância, são capazes das maiores vilezas e crueldades. Essas pessoas, no entanto, queriam o falcão maltês não para entesourá-lo, ou guardá-lo como obra de arte, mas para o venderem e gastarem o dinheiro levando não uma boa, mas uma excelente vida, cheia de luxo, ouropéis e lantejoulas. O mais famoso ganancioso da ficção, porém, Ebenezer Scrooge, da novela Um cântico de Natal, de 1843, do inglês Charles Dickens, só queria acumular dinheiro, levando

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

uma vida frugal para não gastá-lo – e para acumular mais e mais dinheiro não hesita em fazer crianças passarem fome ou em despejar de suas casas idosos em pleno inverno londrino. É um ganancioso do tipo avarento, portanto, que, no entanto, na noite de Natal se deixa comover pelo clima espiritual das boas festas. Vários desses livros sobre ganância se transformaram em filmes de sucesso, mas o filme mais famoso sobre o tema se chama justamente Greed, que quer dizer "ganância", dirigido em 1924 em Hollywood, pelo também ator austríaco Eric von Stroheim. Baseado em McTeague, um romance de 1902 do escritor americano Frank Norris, hoje esquecido, que já tinha sido filmado em 1915, o filme conta a história de um triângulo amoroso entre dois amigos que trabalhavam numa mina e a namorada de um deles. O mineiro que se apaixona pela namorada do amigo se transforma em prático dentista ambulante e acaba se casando com a mulher, com o ex-namorado se conformando e os três vivendo em harmonia e amizade, na pobreza. Mas aí a mulher ganha uma grande fortuna na loteria e se transforma completamente, tornando-se uma gananciosa


avarenta, acumulando cada vez mais dinheiro enquanto deixa o marido viver na pobreza, só com o rendimento de prático. O marido acaba matando a mulher e fugindo com o dinheiro, sendo perseguido pelo ex-namorado. Mas o personagem ganancioso mais célebre da história das artes é o rico judeu Shylock, da peça do autor de teatro inglês Shakespeare, O mercador de Veneza, cuja estréia, ao que tudo indica, ocorreu em Londres em 1605. Lembrandose que tinha sido insultado como judeu uma semana antes por um mercador cristão que agora lhe pede um empréstimo de três mil ducados, Shylock não pede juros, mas que o cristão lhe garanta fornecer uma libra (cerca de meio quilo) de carne de seu próprio corpo, se não puder honrar o crédito na data combinada. De fato, o mercador cristão fica sem dinheiro para pagar a dívida no prazo acertado e Shylock vai ao tribunal para exigir que o devedor cumpra o contrato e corte um pedaço de seu próprio corpo.

aos poucos judeus mais ricos, pois a grande maioria deles trabalhava como artesãos ou como pequenos comerciantes. Desse modo é que se criou a falsa fama dos judeus como gananciosos – alguns deles foram literalmente obrigados a lidarem com juros, e séculos depois a opinião pública europeia não se revoltou quando milhões de judeus foram sacrificados no Holocausto. Hoje, por exemplo, em Israel, grande parte dos judeus são trabalhadores manuais pobres, desmentindo a falsa noção que prevaleceu secularmente. Em suma, a ganância raramente foi punida, mas a falsa fama de ganância foi motivo de morticínios em massa. Nada deverá acontecer à maioria dos verdadeiros gananciosos que lucraram e continuam lucrando com a atual crise. Enquanto isso, os mais ingênuos, ou mais vulneráveis, continuarão pagando o pato.

Shylock, judeu da peça "O mercador de Veneza", de Shakespeare: ele exige pelo pagamento de uma dívida a própria carne do devedor.

Os judeus e a ganância Aqui cabe lembrar os motivos pelos quais os judeus, no imaginário cristão, sempre estiveram associados à ganância, embora a observação prática indique que os judeus não são nem mais, nem menos gananciosos do que as pessoas de qualquer outra etnia, mesmo porque a fama de ganância se espalha também, por exemplo, para árabes e escoceses. Quando, no século 4º, o imperador Constantino determinou que todos os cidadãos romanos se convertessem ao cristianismo, sob pena de serem mortos, somente os judeus puderam continuar praticando sua religião originária, pois as autoridades cristãs decidiram que era necessário que o povo judeu continuasse existindo, como prova viva de que a vinda do Messias havia sido profetizada. Assim, restaram no Império Romano somente uma grande maioria de cristãos e uma pequena minoria de judeus, e praticamente nenhum adepto de nenhuma outra religião. Quando chegou a Idade Média, com o trabalho nas terras senhoriais considerado o trabalho mais digno, entre todas as atividades, os judeus foram proibidos de serem senhores de terras, e mesmo de serem servos e trabalharem nelas. Ao mesmo tempo, a usura, ou seja, o empréstimo a juros, foi considerada um pecado pela Igreja Católica. Assim os cristãos não podiam financiar ninguém – e essa atividade foi reservada pelas autoridades cristãs aos judeus. Afinal, era o único povo que restava além dos cristãos, mas a usura só foi reservada

Reprodução

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

31


A mania das massas e a crise financeira Carlos Ossamu e Domingos Zamagna

A

Fotos: R

çã eprodu

o

especulação, a ganância, o estouro da bolha, a desconfiança em relação ao sistema e por fim a crise são personagens presentes no roteiro da difícil situação financeira pela qual passa o mundo. Mas se olharmos para o passado, veremos que eles se repetem na história em diferentes épocas e contextos. Em 1852, Charles Mackay publicou a obraprima Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds, que foi editado no Brasil pela Ediouro (2001) com o título Ilusões Populares e a Loucura das Massas. Toda vez que uma crise financeira eclode, os economistas costumam citar a obra de Mackay, composta de diferentes exemplos de como as pessoas se deixam levar por fatos que no fim se revelam ilusórios, em um comportamento que beira a loucura. Preparamos resenhas de três capítulos do livro de Mackay, com histórias que soam muito familiar nos dias de hoje.

32

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Editado em 1852, o livro de Mackay conta exemplos de epidemias morais que excitaram as mentes das massas, levando-as a certas loucuras.


JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

33


Mania de dinheiro O Esquema Mississipi Neste capítulo, Charles Mackay conta a vida e peripécias de John Law, considerado o pai das finanças modernas, defensor da introdução do papel-moeda e dos títulos lastreados em terra e impostos, mas que sempre será lembrado como o homem que quebrou a França com o seu Esquema Mississipi. Mas para Mackay, John Law não foi nem pilantra nem louco, mas sim, mais enganado do que enganador, mais vítima do pecado do que pecador. Tanto que morreu pobre em Veneza em 1729. Segundo o autor, "ele era o homem que melhor entendia a questão monetária em seus dias e se esse sistema despencou de maneira tão tremenda, não foi tanto por sua culpa, mas mais por culpa das pessoas para quem ele o erigiu. Ele não calculou o frenesi de avareza de toda uma nação; ele não viu que a confiança, como a desconfiança, poderia crescer quase ad infinitum e que a esperança era tão extravagante quanto o medo". John Law nasceu em Edimburgo, Escócia, em 1671. De família rica, seu pai possuía uma oficina de ourives e um banco. Aos 17 anos, Law se mudou para Londres, onde se tornou um jogador inveterado e um mulherengo de primeira. Um breve romance com uma senhora acabou em tragédia – Law foi desafiado para um duelo e acabou matando seu antagonista com um tiro. Foi preso, julgado e condenado à morte, mas conseguiu escapar para a Europa continental, ficando impedido de voltar para a Inglaterra. No período de exílio, escreveu a maioria de seus trabalhos sobre economia e finanças. Suas principais ideias são a "Teoria do Valor pela Escassez", a distinção entre "valor de troca" e "valor de uso", e a "Doutrina das Letras Reais". Segundo Law, a oferta de moeda não deve ser determinada pelas importações de ouro ou pelo saldo da balança comercial, mas de maneira endógena pelas "necessidades de troca". De acordo com Mackay, Law retornou à Escócia por volta de 1700. É certo que ele publicou naquela cidade sua obra "Proposals and Reasons for Constituting a Council of Trade", que na época não chamou muita atenção. Em seguida, publicou um projeto para estabelecer o que ele chamou de Banco da Terra, cujas promissórias por ele emitidas nunca deveriam exceder o valor de todas as terras do Estado de interesse comum, no máximo, ter valores iguais. O projeto incentivou um grande debate no parlamento escocês, mas acabou fracassando. Law mudou-se para Paris e se tornou íntimo do Duque de Orleans, que passou a ser seu pro-

34

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Para Charles Mackay, John Law era o homem que melhor entendia a questão monetária em seus dias e se esse sistema despencou de maneira tão tremenda, não foi tanto por sua culpa, mas mais por culpa das pessoas para quem ele o erigiu

tetor. Law aproveitava cada oportunidade para instilar suas doutrinas financeiras na mente daqueles cuja proximidade com o trono pudesse ajudá-lo a ter influência no governo. Um pouco antes da morte de Luís XIV, Law propôs um esquema para as finanças para Desmarets, que ocupava o cargo de controller do governo. O projeto foi rejeitado por Luís XIV pelo fato de Law não ser católico. O monarca morreu em 1715 e como o herdeiro do trono era ainda uma criança, o Duque de Orleans assumiu o governo como regente. Este era seu amigo e estava inclinado a ajudá-lo em seus esforços para restaurar o crédito perdido da França, que havia despencado pelas inúmeras extravagâncias ao longo do reinado de Luís XIV. As finanças do país estavam num estado de completa desordem. Um monarca pródigo e corrupto, cuja prodigalidade e corrupção eram imitadas por quase todos os funcionários, do nível mais alto ao mais baixo, levaram a França à beira da ruína. O primeiro cuidado do regente foi descobrir um "remédio" para um mal de tal magnitude. Foi neste cenário que apareceu John Law, que se apresentou à Corte e ofereceu dois memoriais ao regente, em que apontava os males que recaíam sobre a França, devido a uma moeda insuficiente e depreciada em diferentes momentos. Ele afirmou que uma moeda metálica, não lastreada por papel moeda, seria totalmente inadequada às demandas de um país comercial e particularmente citou os exemplos da Grã-Bretanha e Holanda, mostrando as vantagens do papel. Usou muitos argumentos impactantes sobre a questão de crédito e propôs estabelecer um banco que gerenciasse as receitas reais e que emitiria notas com garantias territoriais. Este banco seria administrado em nome do rei, mas sujeito ao controle de comissionados designados pelo ministro geral. Em 1716, nasceu o Banque Générale, com a emissão de títulos resgatáveis em moeda corrente do dia do lançamento. O sucesso foi imediato, face à constante ameaça de desvalorização da moeda metálica. Em menos de um ano, os títulos tinham ágio de 15%, enquanto as notas do Tesouro, emitidas por Luís XIV, acusavam um deságio de 80%. Nesse mesmo ano, Law iniciou o projeto pelo qual passaria à posteridade. A criação de uma companhia na Luisiana, então colônia francesa, que deteria o monopólio do comércio no rio Mississipi. Em 1717, o banco de Law foi estatizado sob o nome de Banque Royale, e foi ordenada a impressão de papel moeda em um montante equivalente a três vezes a dívida pública.


Se Law se opôs ou não a esta criação de moeda sem lastro, não se sabe ao certo. O fato é, no entanto, que, sob sua tutela, o volume impresso de papel moeda pelo banco nunca excedeu 5% deste valor. Ocorre que, a partir daí, o país se viu inundado de papel-moeda, e sob oposição do Parlamento o Regente foi compelido a afastar Law da direção do Banque Royale. Já envolvido no projeto da Companhia do Mississipi, Law obteve em 1718 a confirmação dos direitos comerciais sobre o rio Mississipi, Índias Orientais, China e Pacífico Sul. Com estes novos monopólios, ele propôs a emissão de 50 mil ações, a serem integralizadas em notas do Tesouro com 80% de deságio. E prometeu um dividendo anual fixo equivalente a uma rentabilidade de 120% ao ano. A combinação da alta rentabilidade garantida com excesso de papel moeda incendiou o interesse público e apareceram seis compradores para cada ação. Esta procura, transformou a porta da casa de Law em Pa-

John Law investiu todo o seu lucro na França e perdeu tudo, prova que acreditava no seu esquema Mississipi.

ris em um pregão ao ar livre, com o preço das ações saindo de 500 "livres", no início de 1719, para 15 mil "livres" em abril de 1720, com valorização de 2.900% em 15 meses. Law estava no zênite de sua prosperidade e as classes mais altas e mais baixas vislumbravam o paraíso ao alcance das mãos. Não havia quem não estivesse engajado na compra ou venda de ações. A rua de Quincampoix, onde morava Law, se tornou o antro dos especuladores. Conta a lenda que um corcunda que costumava ficar na rua ganhou somas consideráveis alugando suas costas como mesa para especuladores ansiosos. Quincampoix ganhou a aparência de uma feira. Barracas foram montadas para as transações e para a venda de refresco. Até mesas com roletas foram montadas na praça. A orgia financeira durou até o início de 1720. As advertências do parlamento de que uma emissão tão grande de papel moeda , mais cedo ou mais tarde, levaria o país à bancarrota, foram ignoradas. O regente, que não entendia nada de finanças, pensou que um sistema que tinha produzido efeitos tão bons não seria afetado pelos excessos. Esse foi o grande erro do regente, que Law não tentou corrigir. A extraordinária avidez das pessoas as fez manter a ilusão e, quanto mais alto os preços das ações das Índia e do Mississipi, mais "billets de banque" eram emitidos para manter o passo com elas. O "castelo de ilusões" começou a desmoronar quando o Príncipe de Conti, ofendido quando Law lhe negou ações frescas do estoque das Índias, enviou ao seu banco a solicitação de um pagamento em espécie numa quantidade de notas tão grande que precisou de três vagões para transportá-las. Law reclamou ao regente, que obrigou Conti a devolver dois terços do volume em espécie. Mas a semente da desconfiança estava lançada e alguns começaram a imitar Conti, convertendo as notas em espécie, enviando as quantias para o exterior. A reação do governo foi desvalorizar e limitar os saques de moeda metálica. Tais medidas, contudo, não surtiram efeito, e todo o metal disponível foi contrabandeado para Inglaterra e Holanda, inviabilizando o comércio. Em meio à crise, foi limitado o porte de metal por indivíduo em 500 "livres", sob pena de confisco do excedente, e proibida a compra de joias, prataria e pedras preciosas. Estas medidas levaram o país à beira da revolução e as ações da Cia. do Mississipi entraram o verão de 1720 com queda acumulada de 98 % em relação a abril. Antes considerado um deus, Law passou a ser a figura mais odiada da época.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

35


Conta Mackay que tudo o que John Law fez não foi por desnonestidade. Durante o auge do esquema Mississípi, ele nunca duvidou do sucesso do seu projeto em tornar a França o país mais rico e poderoso da Europa. Ele investiu todos os seus lucros na compra de uma propriedade na França, uma prova que acreditava no seu esquema. Não amealhou prata, ouro ou joias e não enviou dinheiro ao exterior, como fizeram os especuladores. Law morreu pobre em Veneza em 1729, mas foi enterrado na França. O ódio da população de Paris era tanto que várias manifestações ocorreram durante o seu funeral. Até os túmulos de seus familiares foram depredados e seus dois filhos quase foram linchados. A Mania das Tulipas Quem olha hoje essa flor famosa na Holanda não imagina que ela foi protagonista de uma das maiores loucuras sociais da Europa do século 17. Charles Mackay explica em seu livro que a tulipa – cujo nome origina de uma palavra turca que significa turbante – foi introduzida na Europa Ocidental por volta do século 16 e passou a ser muito procurada por pessoas abastadas, especialmente na Holanda e Alemanha. As primeiras raízes (bulbo) plantadas na Inglaterra vieram de Viena e até 1634, a tulipa cresceu em reputação, até se tornar uma prova de mau gosto um homem de fortuna não ter uma coleção delas. Muitos homens de boa formação, incluindo Pompeus de Angelis e o celebrado Lipsius de Leyden, autor do tratado "De Constantia", eram apaixonados pelas tulipas. A ansiedade de possuí-las contaminou as classes médias das sociedades, além de mercadores e comerciantes, que mesmo com recursos moderados, começaram a disputar entre si a raridade dessas flores e pagavam preços absurdos por elas. Conta-se que um comerciante em Harlaem pagou metade de toda a sua fortuna por uma única raiz, não com o objetivo de vendê-la visando o lucro, mas para mantê-la em sua estufa para que seus convidados a admirassem. Conta Mackay que em 1634 a ansiedade entre os holandeses para possuir uma tulipa era tão grande que a indústria do país foi negligenciada e a população, mesmo nas camadas mais baixas, embarcou no comércio de tulipas. À medida que a mania cresceu, os preços aumentaram até que, em 1635, soube-se que muitas pessoas investiram a fortuna de 100 mil florins na compra de 40 raízes. Tornou-se, então, necessário vendê-las por seu peso em perits, um peso pequeno,

36

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

menor que um grão. Uma tulipa da espécie Admiral Liefken, pesando 400 perits, valia 4.400 florins; uma Admiral Van der Eyck, pesando 446 perits, tinha o valor de 1.260 florins. A tulipa mais valiosa de todas, uma Semper Augustus, pesando 200 perits, teria sido adquirida por 5.500 florins, preço considerado muito barato. Esta era muito procurada e mesmo um bulbo inferior chegava a custar 2 mil florins. Há relatos de que em 1636 só havia duas raízes desta espécie na Holanda e não eram das melhores. Uma pertencia a um comerciante de Amsterdã e a outra estava em Haerlem. Os especuladores estavam extremamente ansiosos por possuílas. Uma pessoa ofereceu uma herança de 12 acres de terreno para o plantio da tulipa de Haerlem. A de Amsterdã foi comprada por 4.700 florins, o equivalente a uma carruagem nova, dois cavalos baios e um conjunto completo de armadura.

Especuladores apostavam na ascensão e queda das ações das tulipas e muitos ficaram ricos rapidamente.


Um epsódio engraçado sobre essa mania por tulipas é descrito na obra de Blainville, Travels. Um rico mercador, que orgulhava-se muito de suas tulipas raras, recebeu uma consignação de mercadorias muito valiosas do Oriente. A notícia foi trazida por um marinheiro, que se apresentou ao escritório central. Para presenteá-lo pelas boas novas, o comerciante deu ao marinheiro um fino arenque vermelho para sua refeição. Pelo visto, esse marinheiro gostava muito de cebolas e vendo algo parecido sobre o balcão, esperou uma oportunidade propícia e o colocou em seu bolso. Ao sentir falta do bulbo de tulipa, aliás uma valiosa Semper Augustus, avaliada em 3 mil florins ou cerca de 280 libras esterlinas, o comerciante ficou desesperado, revirou o escritório, causando o maior tumulto no local. Até que alguém lembrou da presença do marinheiro. Saíram todos em sua busca, que foi encontrado no cais, sentado em uma corda, saboreando sua refeição, mastigando o último pedaço do que ele imaginava ser uma saborosa cebola. Por causa disso, o desafortunado marinheiro passou alguns meses preso. Os especuladores de ações, sempre alertas, negociavam muito com tulipas, utilizando todos os meios que conheciam para causar flutuações nos preços. Eles jogavam na ascensão e queda das ações da tulipa e ganhavam muito dinheiro comprando quando os preços caíam e vendendo quando estavam valorizadas. Muitos ficaram ricos da noite para o dia. As operações comerciais se tornaram tão extensas e intrincadas que se fez necessário redigir um código de leis para guiar os comerciantes de tulipas. Até que chegou um momento em que os mais prudentes começaram a perceber que essa loucura não duraria para sempre. As pessoas não mais compravam a flor para enfeitar seus jardins, mas para vendê-la com 100% de lucro. Alguém teria de perder no final. Esta convicção se espalhou, criando uma crise de desconfiança, que derrubou os preços das tulipas. O pânico se instalou entre os comerciantes, que de uma hora para outra se viram com bulbos que não valiam um quarto do que eles tinham pago. Comerciantes de grande porte se viram a quase mendicância e muitos representantes de nobres linhagens viram as fortunas de suas casas arruinadas e sem possibilidade de resgate. Quando os primeiros alarmes soaram, os donos de tulipas de várias cidades fizeram reuniões para decidirem quais medidas tomariam para restaurar o crédito público. Houve concordância geral de que deveriam

Conta Mackay que em 1634 a ansiedade entre os holandeses para possuir uma tulipa era tão grande que a indústria do país foi negligenciada e a população, mesmo nas camadas mais baixas, embarcou no comércio de tulipas.

consultar o governo sobre algum remédio para o mal. Inicialmente, o governo se negou a interferir, mas depois aconselhou os donos de tulipas a montarem um plano entre si. Depois de várias discussões e reclamações, concordou-se em assembleia que todos os contratos firmados durante a alta da mania, ou seja, antes de novembro de 1636, seriam declarados nulos. Os compradores estariam livres de seus compromissos mediante o pagamento de 10% ao vendedor. Comerciantes que tinham tulipas em mãos estavam descontentes e aqueles que se comprometeram na compra se sentiam tratados com rudeza. Ações para a quebra de contratos foram levadas a todas as cortes do país, mas estas se recusavam a tomar conhecimento das transações do jogo. O governo dizia ser incapaz de encontrar uma solução. A economia holandesa levou um duro golpe e levou anos para se recuperar. Na Inglarerra, neste mesmo período, as tulipas eram comercializadas na Bolsa de Londres e os especuladores se esforçavam para que alcançassem os valores fictícios que elas atingiram em Amsterdã. Na França, também se tentou promover uma "tulipomania". Mas em ambos os países o sucesso foi apenas parcial. A Mania das Bruxas Charles Mackay insere também essa mania no inventário de algumas das grandes loucuras que acometeram as massas no decorrer da história, todas elas abrigando etapas de euforias contagiantes e frustrantes desfechos. O pico da "caça às bruxas" foi na segunda metade do século 15, especialmente a partir de 1455. Mas o sinistro empreendimento durou 250 anos. Por quê? Por causa de uma mistura de ignorância, fundamentalismo, preconceito, intolerância e crueldade, tudo desaguando num estuário de horror, sangue e fogo. Durante toda a idade média, como facilmente se compreende, muitas dimensões da realidade não puderam ser explicadas pela ciência ou pela filosofia. A essa impotência cognitiva juntou-se o fato de vários grupos medievais conceberem a vida apenas como passagem, a transição para um outro mundo, idealizado como livre das imperfeições terrenas. Deram livre curso à imaginação para que o universo fosse povoado de espíritos que circulavam por toda parte, intrometendo-se nas questões humanas. Neste mundo sublunar havia quem se sentisse autorizado para invocar tanto os espíritos do bem quanto os do mal para ajudá-los a causar – ou anular – todo tipo de malefícios.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

37


Exatamente porque muitos fenômenos da natureza não obtinham explicações, até os mais sábios de antigamente chegaram a atribuí-los a agentes sobrenaturais, o que causa, hoje, a irrisão até dos mais singelos iniciados no campo científico. Se nos dias atuais alguém disser ter visto um lobisomem, ou uma senhora voando numa vassoura, ele será certamente encaminhado ao hospital e não mais ao cadafalso ou à fogueira. Não temos mais o firmamento, o ar e as águas habitados por entidades grotescas que tanto atemorizavam os nossos ancestrais. Dentre todas essas entidades sobressaía Satanás, obviamente com uma grande variedade de alcunhas, apresentado como um espírito que se manifestava por corpanzil malformado, peludo e chifrudo, longa cauda, pés fendidos, asas de dragão, de cores escura ou avermelhada, cheirando a enxofre. Na verdade o diabo tinha assessores, demônios de vários graus hierárquicos. Houve quem fizesse um censo: 7.405.926 capetas, divididos em 72 companhias ou batalhões, liderados por um príncipe ou capitão. Os masculinos, íncubos; as fêmeas, súcubos. Era um sistema muito elaborado e abrangente. Enfrentá-los? Tarefa de santos anacoretas ou cenobitas, após orações, jejuns, mortificações.

Joana d’Arc foi queimada em Rouen em maio de 1431, para vergonha de Carlos V, que nada fez para salvá-la

38

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Quando isso não sortia efeito, havia outros expedientes: máscaras de infâmia, forquilhas, cavaletes, troncos, pêndulos, serrotes, peras, potros, gaiolas suspensas, quebradores de joelhos, berços de Judas, mesas de evisceração, rodas de despedaçamento, o estrangulamento, a forca, a empalação, o afogamento, a lâmina de decepação e – a mais popular de todos – a fogueira. Foi a partir das concepções falsas sobre o princípio do mal que surgiu a crença na bruxaria. Não se tratava de uma fé morta, mas operante em todo o corpo da sociedade, a ponto de extrapolar do catolicismo dominante para luteranos, calvinistas etc., atingindo o mais sábio e o mais humilde nos desejos de assassinato, ou pelo menos crueldades consideradas purgativas. Charles Mackay elenca abundantes exemplos desse período de obscurantismo (cf. p. 325ss.), dos quais podemos recordar alguns casos mais proeminentes. Em 1234 foram exterminados milhares de Frísios (massacre dos Stedinger) acusados de bruxaria por causa de suas convicções libertárias e republicanas. No início do século 14 foi a vez dos templários, no tempo de Felipe IV e do papa Clemente V, para cuja eliminação foram invocadas todas as práticas de bruxaria. A execução de Joana d’Arc, porém, é na sequência o mais notório exemplo que a história oferece de imputação de heresia e bruxaria contra um inimigo político. Queimada em Rouen, a 30 de maio de 1431, para vergonha de Carlos V, que nada fez para salvar a heroína, somente em 1456 teve a sua sentença fatal invertida pelo papa Nicolau V. Quinhentos anos depois, em 1920, foi canonizada pelo papa Bento XV. A "mania das bruxas" começou de fato nos tempo do papa Inocêncio VIII (o genovês João Batista Cibo, eleito ao papado em 1485) especialmente após a bula Summis desiderantes affectibus, de 1488. Dessa época resultou uma notável obra, de autoria de Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, "O Martelo das Feiticeiras" (Malleus Maleficarum), traduzido em português pela editora Rosa dos Tempos, verdadeiro tratado de demonologia, com o roteiro dos interrogatórios para mais facilmente identificar os culpados. A leitura dessa obra mostra claramente que as perguntas eram feitas para produção de respostas correspondentes aos desejos dos inquisidores. Quase sempre o alvo das denúncias eram os livres pensadores e velhas pobres e de conduta pouco convencional. Já se falou de 100 mil assassinatos de réus de "bruxaria", 85% mulheres. Se os acusados fossem ricos, podiam safar-se mediante compensação pecuniária. Na Alemanha chegou-se a


matar 600 "bruxas" por ano, praticamente duas queimadas por dia, e só não se matava mais porque não se devia trabalhar nos domingos, este era o dia para honrar e devotamente orar ao Senhor. Em Genebra, entre 15151516 foram queimadas 500 "bruxas". Em 1524 foram mortas nada menos que mil pessoas na região de Como. E quem manifestasse desaprovação ou compaixão por esses desafortunados devia ser punido como comparsa! Com o passar do tempo, em certos lugares como a Inglaterra e a Escócia, surgiu uma nova profissão, a dos "caçadores de bruxas", também conhecidos como "picadores comuns", verdadeiros especialistas em levar os obstinados à confissão. Ganhavam por bruxa identificada e muitos lucraram bastante dinheiro nessas empreitadas. A disseminação dos preconceitos foi tanta que praticamente tudo se transformava em sinais de suspeição: encruzilhadas, penas de travesseiros, gatos, serpentes, aves, sapos, moscas, cães ferozes, árvores tortas, buracos de fechadura, alfinetes, dentição irregular, rouquidão, falta de sangramento em feridas, dores que não encontravam alívio, ventanias, tempestades, secas, pessoas feias, cabisbaixas, donzelas muito bonitas, manifestações de afetividade e sexualidade... Demorou muito para que o medo epidêmico das bruxas se convertesse em medo individual, isto é, persistindo apenas nas mentes doentias e de inveterada superstição, somente aliviadas de tal preconceito na medida em surgiam progressos na civilização. Em todo caso o ano de 1736 registra o último caso de execução judicial na Inglaterra. Ainda bem, pois a Inglaterra já tinha conhecimentos da revolução científica iniciada na Europa continental, já devia ter lido Isaac Newton, que com sua "teoria dos idola" mostrou as distorções da mente humana e oferecia os instrumentos práticos para o conhecimento da natureza; já havia um século que René Descartes escreveu o "Discurso do Método" (para bem conduzir a razão e buscar a verdade nas ciências) e, dentre outros fatos relevantes, já despontava I. Kant com o criticismo filosófico. A mania das bruxas nasceu e perdurou em descompasso com a racionalidade. O rei Luís XIV contribuiu para o arrefecimento das perseguições ao recusar uma longa petição do Parlamento da Normandia (íntegra nas pp. 399-405) que visava o recrudescimento da repressão aos "crimes de bruxaria, os maiores que os homens podem cometer". Foi assim que na França e na Alemanha, em meados do século 18 a bruxaria já era contada entre as

O pico da "caça às bruxas" foi na segunda metade do século 15, especialmente a partir de 1455.

doutrinas desaparecidas, e a crença nela, reputada extrema vulgaridade. Na Suíça, as últimas execuções nos cantões protestantes foram no século 17. Em 1701 um famoso professor da Universidade de Halle, Christian Thomasius, escreveu a obra Dissertatio de crimine magiae, que contribuiu para golpear as concepções anacrônicas sobre fenômenos inexplicáveis atribuídos à magia. Os germes da mania das bruxas, porém, nunca foram totalmente extirpados. Se é consolo pensar que o delírio passou, que a raivosa loucura cedeu lugar a patologias menores, podendo-se agora contar por unidades os adeptos de tal alucinação; por outro lado devemos reconhecer que de vez em quando aqueles germes ressurgem em forma de novas ilusões, insufladas às populações, na busca de explicações simplistas ou viciadas para fenômenos que escapam à nossa capacidade de intelecção.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

39


Um novo modelo Divulgação

Olavo de Car valho Jornalista, escritor e professor de Filosofia

Jim Watson/AFP

C

ompreender os objetivos gerais da administração Obama com base nas suas primeiras medidas de governo não requer o mínimo esforço diagnóstico. Essas medidas falam por si mesmas de uma maneira tão clara, que algum esforço seria necessário, isto sim, para não enxergar o que pretendem e aonde vão levar. Desde logo, Obama tratou de acenar com um gesto de simpatia para os inimigos do país, escolhendo, para conceder sua primeira entrevista como presidente, a rede de TV Al-Arabiya. Chamála de canal terrorista não é nenhum exagero, não só pelo conteúdo editorial dos seus programas, mas pelo fato singelo de que o edifício-sede da emissora é usado como base para o lançamento de foguetes contra Israel.


de transparĂŞncia


Brennan Linsley/Reuters

Não há radical islâmico no mundo que não considere uma vitória o fechamento da prisão de Guantanamo.

Mais entusiasmo ainda entre as hostes antiamericanas ele despertou com o anúncio do fechamento da prisão de Guantanamo. Não há um só comunista ou radical islâmico no mundo que não considere isso uma vitória espetacular. A gritaria universal contra a "tortura" ali praticada conseguiu obscurecer por completo a diferença do tratamento concedido a prisioneiros de guerra nos EUA e entre os terroristas. Quem quer que tenha visto seres humanos implorando por suas vidas segundos antes de ter suas cabeças cortadas entende que a afetação de piedade pelos terroristas submetidos ao waterboarding (prática usada no treinamento dos próprios soldados americanos) é uma deformação monstruosa do senso moral. Impor essa deformação à mente das multidões tornou-se um objetivo sistemático da grande mídia e da intelectualidade esquerdista por toda parte. Obama julgou prioritário agradar a essa gente logo na sua primeira semana de governo, mesmo ao custo de endossar a difamação do seu país. Uma onda de alívio percorreu as almas dos produtores de petróleo árabes, bem como de Hugo Chávez, quando Obama vetou a perfuração de novos poços em alto-mar, que o Congresso havia aprovado em obediência a pressões populares. Nada, porém, pode ter ressoado mais docemente aos ouvidos do antiamericanismo do

que o anúncio presidencial de que pretende cortar o estoque de armas nucleares dos EUA em nada menos de 80%. Os EUA têm atualmente 2.300 ogivas. A opinião geral dos especialistas militares é que abaixo de 2 mil, a superioridade bélica dos EUA terá sido eliminada e o país estará exposto à derrota ao primeiro ataque. É universalmente reconhecido que a Rússia jamais cumpriu a sua parte em acordos de redução. Obama sabe perfeitamente bem que não há o mínimo motivo para esperar que o homem da KGB atualmente no poder vá agir de maneira diferente. A redução será unilateral, e Obama encara essa perspectiva sem pestanejar. Já a simples composição de sua equipe de governo mostra da maneira mais patente o estofo moral e patriótico da nova administração. Leon Panetta, indicado para diretor da CIA, é um homem que não passaria em nenhum teste de segurança para ser um simples empregado burocrático nessa ou em qualquer outra agência de inteligência dos EUA, por suas ligações estreitas com o Institute for Policy Studies, reconhecidamente um braço da KGB. Nenhum outro governo americano jamais nomeou tanta gente errada logo nos primeiros dias. Após ter prometido que seu governo se pautaria pelo mais rígido controle ético jamais visto na história americana, Obama convocou para os altos postos os seguintes tipos inesquecíveis:


- O governador do Novo México, Bill Richardson, teve de renunciar à nomeação para secretário do Comércio, porque está sob investigação num grande júri por favorecimento ilícito aos seus colaboradores de campanha. - Timothy Geithner, nomeado secretário do Tesouro, chegou lá com uma dívida jamais paga de 34 mil dólares em impostos. - Thomas Daschle, nomeado para chefiar o Departamento de Saúde, renunciou à nomeação quando se soube que havia deixado de pagar impostos no valor de 146 mil dólares. - O mesmo aconteceu com Nancy Killefer, nomeada chief performance officer (encarregada de enxugar o orçamento, atividade que de algum modo ela já vinha desempenhando ao abster-se de pagar seus impostos).

Jim Young/Reuters

- A deputada Hilda Solis, nomeada secretária do Trabalho, considera-se uma vítima inocente de perseguição, porque há pessoas que a julgam incapacitada para o cargo só porque – vejam vocês – seu marido esteve envolvido em fraudes de imposto por 16 anos. - Por fim, David Ogden, nomeado para segundo no comando da Procuradoria Federal, é conhecido como advogado de firmas de pornografia. Há mesmo quem o considere – quanta injustiça! – um hired gun (pistoleiro de aluguel) a serviço da indústria da obscenidade. Por enquanto é só. Ninguém mais foi acusado de nada. No entanto, entre os demais nomeados, há pelo menos 11 que pertencem à Comissão Trilateral, órgão fundado por David Rockefeller em 1973, com o propósito de

Timothy Geithner, nomeado secretário do Tesouro: dívida de 34 mil dólares em impostos.


Jim Watson e Saul Loeb/AFP

dissolver a soberania americana e instalar um governo mundial. São eles: % Timothy Geithner, já citado como

secretário do Tesouro; % Susan Rice, embaixadora nas

Nações Unidas; % Thomas Donilon, conselheiro de

Segurança Nacional; % Paul Volker, diretor da Comissão de

Recuperação Econômica; % General James L. Jones, conselheiro

de Segurança Nacional; % Almirante Denis C. Blair, diretor de

Inteligência Nacional; % Kurt M. Campbell, secretário-assistente de

Estado para a Ásia e o Pacífico; % James Steinberg, secretário-assistente

de Estado; % Richard Haass, Dennis Ross, Richard

Holbrooke, enviados especiais do Departamento de Estado. Muitos outros membros do gabinete têm ligação com a Trilateral: a secretária de Estado Hilary Clinton é casada com um membro da comissão; o grupo de conselheiros de Tim Geithner inclui quatro membros da comissão; e assim por diante: o governo Obama é uma fortaleza do globalismo. Não espanta, portanto, que em suas políticas sociais o novo presidente venha tratando de implementar o mais rapidamente possível os programas mais apreciados pela elite globalista, como por exemplo o abortismo. Uma das primeiras medidas de Obama foi liberar algumas centenas de milhões de dólares para disseminar a prática do aborto, não só nos EUA, mas no mundo todo. Numa significativa demonstração de elas-

Em comparação ao New Deal de Roosevelt, o plano de Obama é ainda mais intervencionista e socialista.

ticidade moral, o presidente declarou que "Deus jamais perdoará a matança de bebês inocentes", no instante mesmo em que liberava o dinheiro do contribuinte americano para financiar essa matança. Mais abortos ainda serão provocados pela liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, que o presidente já anunciou: as esperanças mais estapafúrdias de cura para todas as doenças possíveis e imagináveis embelezam e legitimam essas pesquisas, que até agora não deram o mínimo sinal de poder alcançar algum resultado, ao contrário do que acontece com as investigações de célulastronco adultas. Complementarmente, o novo governo já demonstra da maneira mais inequívoca sua intenção de reprimir e boicotar as comunidades religiosas que se oponham aos novos modelos de "moralidade" propugnados pelo globalismo: no seu rol de "estímulos" à economia, toda ajuda é ostensivamente negada a qualquer organização escolar ou assistencial que dê abrigo, direta ou indiretamente, a empreendimentos religiosos. Se uma escola, por exemplo, permite que um grupo de católicos ou evangélicos crie dentro de sua sede um grêmio religioso, estará excluída de toda ajuda oficial. Para grupos de gays e abortistas, não há nenhuma limitação nesse sentido. O "estímulo", por fim, apresentado como socorro de emergência a uma economia em perigo, é nada mais que um pretexto para alimentar de dinheiro as organizações que apoiaram Obama durante a campanha: a Acorn, por exemplo, que caprichou no obamismo ao ponto de espalhar milhares de títulos de eleitor falsos para aumentar a votação do seu "queridinho", recebeu nada menos de 4 bilhões de dólares, o que prova que ao novo presidente não falta a virtude da gratidão, embora posta em prática com o dinheiro alheio – um óbvio favorecimento eleitoral que, em circunstâncias normais, seria motivo cabal de impeachment. Mas nada no governo Obama é normal. O estímulo, em todo caso, se não trouxe nem pode trazer maiores benefícios, já que


Stan Honda/AFP

apenas 5% do total da verba se destinam aos setores afetados pela crise, pelo menos serviu para demonstrar que a mágica de Obama não é infalível. Ao convocar as organizações populares para um vasto movimento de apoio ao seu plano econômico, ele só obteve um comparecimento irrisório. Na própria capital do país, só 500 pessoas se inscreveram; em Sacramento, Califórnia, 78; em Fort Worth, Texas, 54; em Tacoma, Estado de Washington, 34: é a "mobilização de massas" mais micha que já se viu desde que Fernando Collor de Mello apelou ao povo para que saísse às ruas vestido de verde e amarelo. Segundo uma pesquisa da Zogby, 53% dos americanos acham que o plano de Obama vai atrasar a recuperação econômica; só 31% acham que não; 57% das pessoas sem partido acham que a coisa gasta dinheiro demais, concordando nisso com 89% dos republicanos. O mercado parece dar razão a eles: a Media DowJones caiu 400 pontos tão logo o governo anunciou o gasto de 838 bilhões de dólares. A estupidez suicida do plano é ainda sublinhada pelo fato de que ele busca atrair para si o prestígio histórico do New Deal, na mesma semana em que um estudo empreendido por economistas da Universidade da Califórnia (insuspeita de quaisquer inclinações conservadoras) revela que o ambicioso projeto econômico de Franklin D. Roosevelt atrasou em pelo menos sete anos a recuperação econômica do país. Roosevelt, como Obama, jogava todas as

culpas nas costas da competição capitalista, encobrindo os resultados desastrosos do intervencionismo praticado por seus antecessores e apostando tudo em doses ainda maiores de intervencionismo. O plano de Obama é ainda mais intervencionista e socialista. Nesse ponto parece haver acordo entre a direita e a esquerda. Rush Limbaugh, o mais ouvido comentarista de rádio conservador nos EUA, diz que Obama está implantando o socialismo nos EUA. Sam Webb, líder do Partido Comunista americano, concorda inteiramente. O primeiro joga pedras, o segundo aplaude – mas, no que diz respeito aos fatos, não têm a mínima divergência. Se a carreira pregressa de Barack Hussein Obama é uma trama indeslindável de obscuridades e mistérios, seu governo vem sendo de uma transparência admirável – não no sentido ético, é claro, mas no sentido lógico: ninguém com QI médio, conhecendo as primeiras decisões do novo presidente, pode ter a menor dificuldade em compreender o enredo da novela e adivinhar quem morre no fim. NB - Decorrido apenas um dia desde que enviei este artigo ao Digesto, mais dois nomeados de Obama foram pegos com a boca na botija e desistiram do cargo. O homem parece que só tem no seu círculo de convivência três tipos de pessoas: (a) picaretas; (b) membros da Comissão Trilateral; (c) picaretas membros da Comissão Trilateral.

A Media Dow-Jones caiu 400 pontos tão logo o governo anunciou o gasto de 838 bilhões de dólares.


O caso Battisti e nossas Sergio Dutti/AE

A Nelson Almeida/AE

Oliveiros S. Ferreira Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, escritor e jornalista

46

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

decisão do Ministro da Justiça concedendo asilo político a Cesare Battisti permite a discussão de algumas questões, não apenas de política externa, mas também de Direito Internacional – matéria que, embora isso surpreenda a muitos, também se presta a ser discutida e muitas vezes mais o merece. A primeira das questões referidas é o fato de o ministro Tarso Genro ter sustentado sua decisão no juízo negativo que formulou sobre sentenças da Justiça italiana, desconhecendo aquelas proferidas pela Justiça francesa e pela Corte Europeia de Direitos Humanos, ambas declarando a correção do processo ao termo do qual Battisti foi condenado. Essas últimas decisões judiciais foram proferidas quando Battisti estava na França. A Justiça italiana havia considerado que os quatro homicídios pelos quais Battisti havia sido condenado são crimes comuns e solicitara do governo francês sua extradição. À imprensa, o ministro Tarso Genro declarou que Battisti não tivera


angústias diplomáticas Remo Casilli/Reuters

Em um protesto realizado em frente à embaixada brasileira em Roma, o senador Stefano Pedica segura um cartaz com os dizeres: "Lula defende terroristas". A Justiça italiana considera Cesare Battisti culpado por quatro homicídios cometidos nos anos 70, quando pertencia a um grupo de extrema esquerda.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

47


direito a uma defesa plena durante seu julgamento, pois fora condenado à revelia. Nesse particular, desconheceu também as decisões do Conselho de Estado da França (segunda instância no processo francês) ao julgar o pedido de Battisti para não ser extraditado. O Conselho de Estado francês decidiu que Battisti não tinha "motivos para afirmar que a extradição tenha sido pedida com finalidade política" e, no tocante à questão da revelia, que o julgamento à revelia se dera de acordo com o devido processo legal no decorrer do qual Battisti se beneficiara "em todas as fases de um processo longo e complexo, da defesa de advogados por ele escolhidos". Já a Corte Europeia, no que tange ao problema da revelia, entendeu que era lícito "concluir que o requerente [Battisti] tinha renunciado de maneira inequívoca a seu direito de comparecer pessoalmente " e de ser julgado estando presente. Note-se que a sentença da Justiça italiana foi proferida antes das decisões do Conselho de Segurança da ONU condeBeto Barata/AE

nando os atentados do 11 de setembro de 2001, e antes que os países membros da OTAN tivessem considerado esses atentados como atos de guerra que reclamavam uma reação coletiva da organização atlântica. Atente-se, igualmente, para o fato de que, tivesse a Justiça italiana julgado em sentido contrário os assassinos de Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã, sequestrado pelas Brigadas Vermelhas, teriam cometido um crime político e não comum, com o que poderiam ter solicitado asilo político a qualquer Estado membro das Nações Unidas. A discussão que se trava hoje no Brasil, comprometendo as relações diplomáticas entre Brasil e Itália, está centrada em torno a uma pergunta: o homicídio, quando praticado em circunstâncias que podem ser vistas como parte de ação terrorista, é crime político ou crime comum? A esta se acrescentaria uma outra, mais específica e atinente ao caso em questão: mais do que pode, deve um Estado conceder asilo político a alguém que está sendo julgado em seu próprio território, por tribunais nacionais, por crime comum de uso de

48

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

documentos públicos falsos? Battisti, como é noticiado, deverá ser julgado, acusado que foi, no Brasil, de ter usado um passaporte francês falsificado. Considerando-se o caso concreto, esta última questão é de resposta mais fácil. Mais fácil porque evidencia que, desde sua chegada ao Brasil, Battisti não quis solicitar o asilo político. Terlhe-ia sido fácil invocar a condição de perseguido político e reclamar o asilo desde o instante em que entrou no Brasil, vindo da França de onde saíra para não ser extraditado, especialmente levando-se em conta, pelo que declarou à revista IstoÉ, que notara comportamento atípico das autoridades policiais federais que analisaram seu passaporte, quando chegou a Fortaleza. Pelo visto, não requereu à entrada a condição de asilado político – e seu caso só se tornou rumoroso, ele conseguindo algum apoio internacional e nacional, depois do pedido de extradição formulado pelo governo italiano. Por outro lado, o fato de o ministro da Justiça ter tomado sua decisão após uma consulta ao presidente Lula da Silva indica, claramente, que ele sabia que Após a o assunto era grave e manifestação que a decisão necessitado presidente va do apoio do chefe de Lula, o ministro governo. Ora, se o asTarso Genro sunto foi levado ao prepassou a sidente da República esgrimir outro (chefe de governo e, argumento para convém não esquecer, defender sua também chefe de Estadecisão: a crítica do) é porque não havia, à concessão no governo, consenso do asilo seria sobre conceder ou não o ideológica. asilo político. Esse consenso, de fato, não existia. Após a consulta e o "nihil obstat" (ou o "possumus"?) do presidente da República, a decisão passa a ser não mais do ministro Tarso Genro, mas do presidente Lula da Silva. Razão pela qual o chefe de governo fez questão de afirmar, primeiro, em território estrangeiro, depois, repetidas vezes no Brasil e em carta ao presidente da Itália, que a decisão era uma decisão soberana do Estado brasileiro e que o governo italiano deveria aceitá-la. Seria o caso de perguntar se um ato do ministro da Justiça, ainda que referendado pelo chefe de governo, pode ser considerado como um ato de "soberania". Após a manifestação do presidente Lula, o ministro Tarso Genro passou a esgrimir outro argumento para defender sua decisão: a crítica à concessão do asilo seria ideológica. Assim agindo, colocou a discussão em terreno impróprio, valeu-se de um argumento que pretende inibir qualquer tipo de crítica e serviu-se de uma tática própria do que se chamaria de "pensamento autoritário", para não dizer totalitário: o de que quem critica a decisão deverá ser, automaticamente, considerado um reacionário. "Reacionário", sim, porque a militância terrorista de Battisti deu-se na extrema esquerda italiana. O


que transforma em uma decisão ideológica a decisão do miou a expulsar de seu território pessoas perseguidas por motinistro e do presidente da República. vos ou delitos políticos". Ao argumento – ideológico – do ministro, juntou-se uma Nos consideranda iniciais, a Declaração da ONU de 1967 curiosa sucessão de fatos. O professor Dalmo de Abreu Dalrefere-se ao artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos lari sustentou que a concessão de asilo era juridicamente corHumanos, no qual se afirma: "1. Toda pessoa vítima de perreta. Logo em seguida, o ministro veio a público para dizer seguição tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros que a opinião do professor Dallari encerrava a questão. Um países; 2. Este direito não pode ser invocado em caso de perdos argumentos usados pelo ministro Tarso Genro e pelo seguição legitimamente motivada por crimes de direito coprofessor Dallari foi o de que Battisti havia sido condenado mum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das por dois homicídios cometidos no mesmo dia em cidades Nações Unidas". A Declaração estatui também em seu artigo distantes. Esqueceram-se, ambos, de que, num dos casos, 1º: "1. O asilo concedido por um Estado no exercício de sua Battisti fora condenado na condição de autor e, em outro, na soberania a pessoas que tenham justificativa para invocar o de cúmplice ou organizador. artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, inDevemos considerar, igualmente, a afirmação do presicluindo as pessoas que lutam contra o colonialismo, deverá dente da República, segundo a qual os crimes dos quais Batser respeitado por todos os outros Estados; 2. O direito de bustisti é acusado foram cometidos há muito tempo. Enquanto o car o asilo e de desfrutá-lo não poderá ser invocado por qualministro da Justiça considera o julgamento à revelia e o insquer pessoa sobre a qual exista suspeita de ter cometido um tituto da "delação premiada", em vigor em crime contra a paz, um crime de guerra ou um muitos países civilizados, como sinônimos crime contra a humanidade, conforme definide violência cometida contra o acusado, o dos nos instrumentos internacionais elaboraUm dos argumentos presidente Lula da Silva parece pretender dos para adotar disposições sobre tais crimes; usados pelo ministro inovar a lei penal (pelo menos a brasileira) ao 3. Caberá ao Estado que concede o asilo quaTarso Genro e pelo estabelecer que um crime, mesmo tendo tranlificar as causas que o motivam". prof. Dallari foi o de sitado em julgado a sentença condenatória, O pormenor deve ser assinalado, tendo-se estará prescrito se tiver sido cometido há em vista a Declaração da ONU: o texto deste que Battisti havia sido muito tempo. Ao fazer esta afirmação, o predocumento é claro ao estabelecer que o Estado condenado por dois sidente desconsidera o Código Penal Brasique concede o asilo deverá explicitar as razões homicídios cometidos no leiro, que cuida, no seu artigo 110 e parágraque o levaram a assim proceder. Essa explicimesmo dia em cidades fos, da "prescrição depois de transitar em jultação faz-se necessária para que terceiros Estadistantes. Esqueceram-se, gado sentença final condenatória". O referidos, inclusive e sobretudo aquele que reclama do artigo estabelece que a prescrição se a extradição de quem solicitou o asilo político, ambos, de que, num dos regula pela pena aplicada. O artigo 109 do CP, possam ajuizar se o benefício foi concedido em casos, Battisti fora ao qual remete o artigo 110, estabelece que a base a fundadas razões ou apenas por motivos condenado na condição prescrição regula-se pelo máximo da pena também políticos. Seguramente, ao inscrever de autor e, em outro, privativa de liberdade cominada ao crime, no artigo 1º, inciso 3, esta exigência, os autores na de cúmplice. verificando-se "em 20 anos, se o máximo da da Declaração não tinham em mente provocar pena é superior a 12". um conflito de soberania, mas sim evitar que, Nas explicações à imprensa, o ministro da alegando o exercício da soberania, um Estado Justiça não fez qualquer referência seja à Convenção sobre Asipudesse se transformar em refúgio privilegiado, em santuário lo Territorial aprovada na reunião da Organização dos Estados para indivíduos que terceiros Estados, mormente o de origem Americanos em Caracas, em 1954, seja à Declaração da Assemde quem pretende o asilo, consideram ter cometido crimes cobleia Geral da ONU sobre Asilo Territorial, de 1967. São textos muns. Observe-se, ainda, que a definição de "crime comum" se interessantes, que o Itamaraty seguramente conhece e o minisinscreve nos Códigos Penais nacionais; já os crimes que podetro Genro, pelo menos, deveria deles ter tido notícia nas suas riam ser considerados "políticos" normalmente estão tipificaandanças pela oposição aos governos dos presidentes militados em leis de exceção. res. Digo que os textos são interessantes porque permitem a Pelo que se pôde ler na imprensa, na sua carta ao presidente discussão sobre a relação entre homicídio e terrorismo – desde da Itália o presidente Lula da Silva preferiu não explicitar as que o terrorismo seja considerado crime político e sua prárazões que levaram seu ministro da Justiça a decidir o asilo ora tica considerada inerente ao crime de opinião. concedido, invocando, apenas, a legislação brasileira e a sobeVeja-se o artigo II do texto da OEA: "O respeito que, segundo rania. É interessante, igualmente, ter presente que o Comitê o direito internacional se deve à jurisdição de cada Estado soNacional para os Refugiados (Conare), órgão do Ministério da bre os habitantes de seu território, deve-se igualmente, sem neJustiça, ao decidir por maioria pela não concessão de asilo, exanhuma restrição, à jurisdição que tem sobre as pessoas que neminou a questão das insistentes solicitações do governo italiale entram, procedentes de um Estado, onde sejam perseguidas no em favor da extradição de Battisti. Sobre o assunto, o Conare por suas crenças, opiniões e filiação política ou por atos que decidiu que as pressões por ventura exercida sobre as autoripossam ser considerados delitos políticos". O artigo III estabedades brasileiras eram "direito legítimo de qualquer Estado lece que "Nenhum Estado é obrigado a entregar a outro Estado que pretende ver cumpridas as suas decisões, como o faz da

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

49


Medhi Fedouach/AFP

1

Cesare Battisti declarou à revista IstoÉ que o período em que teria cometido os crimes (crimes que nega, veementemente) era um período de "guerra civil". À direita, carta escrita por Battisti para a imprensa.

mesma maneira o governo brasileiro, sem que se caracterize constrangimento à soberania de outros países". Lendo as várias declarações de Tarso Genro à imprensa e o que se conhece de sua decisão formal, cabe destacar que o ministro fez questão de deixar claro que a sua decisão fora adotada com base na tradição brasileira de generosidade e na certeza de que Battisti tinha sido perseguido na Itália, além de que a extradição colocaria em risco sua integridade física. Tarso Genro não apenas decidiu fundado na convicção de que Battisti "possui fundado temor de perseguição por suas opiniões políticas" — foi além. Opinando sobre o fato de o governo do presidente Chirac haver negado asilo a Battisti, afirmou que isso se devera à "mudança de posição do Estado francês que lhe dera guarida". Referia-se, sem dúvida, ao fato de o governo Mitterand, que precedera o de Chirac, haver permitido que Battisti vivesse na França. O ministro brasileiro emitiu, assim, juízo sobre o processo judiciário italiano, ao considerar que o julgamento à revelia e a sentença condenatória constituiriam risco à integridade física de Battisti. É um juízo condenatório proferido por ministro de Estado sobre o processo judicial de um Estado amigo. Idêntica postura é a dos defensores de Battisti. Para eles, especialmente os estrangeiros que o defendem, o julgamento à revelia foi uma farsa jurídica. O que implica, igualmente, um juízo condenatório de quem o julgou. Indo mais longe, sustentam que a condenação pela Justiça italiana se deu durante um período que se convenciona, hoje em dia, chamar de "anos de chumbo" – a expressão servindo para designar períodos em que as leis para combater o terrorismo se tornam mais duras. Em suas declarações à revista IstoÉ, Battisti foi mais longe ainda: o período em que teria cometido os crimes (crimes que nega, veementemente) era um período de "guerra civil", que os italianos de hoje deveriam "passar a limpo". Embora o ministro brasileiro não o tenha afirmado, deixou transparecer em suas declarações que o terrorismo é um crime político e que os homicídios que um terrorista comete não são crimes comuns, mas políticos. Reformou, pois, em última instância particular (e em ato dito ser soberano) a sentença da Justiça italiana.

50

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

2


3

4

A discussão sobre se o terrorismo pode ou deve ser ou não considerado uma ação política e os atos praticados por terroristas tidos como crimes políticos ou comuns não cabe aqui. Ainda que, a meu ver, esta seja uma discussão da maior relevância, pois compromete toda e qualquer repressão ao terrorismo. Gostaria, nesse particular, de assinalar que a decisão do ministro da Justiça – logo referendada pelo presidente da República – obriga a que se atente para posições jurídico-políticas (para não dizer ideológicas) que, partindo de quem partiram, podem vir a constituir-se no futuro em doutrina – doutrina de Estado ou seria melhor dizer doutrina de governo. Que "princípios" sustentam a decisão, além da convicção de que a sentença condenatória permite inferir que a integridade

física de Battisti corre risco se ele for recolhido a uma prisão italiana? Enumero alguns, apenas alguns, antes de prosseguir: ' 1. a delação premiada é instituto que pode vigorar para a descoberta de criminosos comuns, notoriamente comuns. Quando o delatado é terrorista, este instituto passa a ser instrumento de perseguição de que se valem as autoridades para que a Justiça possa condenar os terroristas com base em legislação vigente em período de exceção ou guerra civil; 2. o julgamento à revelia configura violência do devido processo legal, porquanto o acusado não pôde exercer o direito de defesa em sua plenitude. Como não houve menção em contrário, deduz-se que a "revelia" é válida para julgar criminosos notoriamente comuns, mas não terroristas; 3. o tempo é o senhor de todos os juízos. Não apenas os crimes prescrevem; também as sentenças judiciais, porque os crimes foram cometidos há muito tempo. Ademais, se o tempo impõe o esquecimento, não há razão para que, no presente, condene-se ainda alguém pelo crime que eventualmente tenha cometido algum dia, no passado distante. 4. A condenação à prisão perpétua constitui uma violência contra o acusado. Portanto, o Estado brasileiro, cuja legislação não reconhece a prisão perpétua, não está obrigado a atender a pedido algum de extradição de Estado em que essa pena é consagrada pelo Direito Penal. Escrevo antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir se concede ou não a extradição de Battisti, examinando o parecer do procurador-geral da República e ouvidos os argumentos da defesa e os do governo Italiano, que no caso será a acusação. Para o procurador-geral da República, o ato do Poder Executivo concedendo o asilo obriga o Supremo Tribunal Federal a extinguir o processo de extradição, convalidando, assim, o ato do ministro da Justiça referendado pelo presidente da República. Os argumentos do procurador-geral são institucionais e podem ser assim resumidos: o STF, em julgamento anterior, considerou constitucional a lei que permite ao ministro da Justiça conceder o asilo. Na opinião do procurador-geral, a concessão do asilo é um ato de política externa. A política externa é de competência do Executivo, secundado pelo Senado nos casos que a Constituição estabelece. Donde se segue que, em sua opinião, concedido o asilo, o STF não poderá se pronunciar sobre o pedido de extradição, a menos que reforme decisão anterior e julgue o pedido do governo italiano. Há, no Supremo Tribunal Federal, quem sustente a tese de que a Corte poderá rever decisão anterior, negando a extradição para quem fora beneficiado pelo asilo político. Se o Supremo decidir julgar a extradição, estará considerando como não efetiva a concessão do asilo e poderá chamar a si, estabelecer os casos em que o Executivo poderá agir no plano da política externa. Agindo assim, estaria agindo contra a norma constitucional ou seu espírito. O presidente Lula da Silva, no entanto, embora sustente que a decisão do Executivo é soberana, diz-se pronto a acatar qualquer decisão da Corte Suprema que invalide o ato de seu ministro da Justiça. Outras questões podem ser discutidas no exame desse rumoroso caso. A primeira é o ato do ministro Tarso Genro; melhor dizendo, as razões pelas quais decidiu conceder o asilo, tornando-

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

51


as públicas. Mesmo que suas palavras contenham um juízo inequívoco condenatório da Justiça italiana na medida em que considera que a extradição poderá acarretar danos morais e talvez físicos a Battisti, em sua decisão ele nada vê que possa provocar as suscetibilidades da Justiça e do próprio Estado italianos. Tanto assim é que lhe causaram espanto – não apenas a ele, mas a todos os que defendem o asilo de Battisti – as reações registradas na Itália, entre elas a do presidente da República italiana. Esse espanto manifestado não deveria, no entanto, nos causar estranheza: se o chefe do Estado brasiO presidente do leiro não reagiu por atos, muito Supremo Tribunal menos por palavras, a um inFederal (STF), Gilmar sulto que o presidente Chávez Mendes (dir.) recebeu fez ao Senado brasileiro, chao embaixador da Itália mando-o de "papagaio de pirano Brasil, Michele ta dos Estados Unidos", podeValensise, para mos supor que, no governo Ludiscutir o caso Battisti. la da Silva, tenha-se como normal que um chefe de governo ou um ministro de Estado possa insultar ou fazer publicamente pouco de um Poder de Estado estrangeiro. O silêncio do chefe do Estado brasileiro ao insulto dirigido contra o Senado da República pelo presidente venezuelano explicouO ministro do Exterior se pelo fato de não ser politicaequatoriano, Fander mente conveniente que fosse Falconi (esq.) e o criada uma situação embaraembaixador brasileiro çosa nas relações entre o Brasil no Equador, Antônio e a Venezuela – seguramente Marques Porto, que porque se temia, tal como se teficou ausente de seu me hoje em dia, que o governo posto por dois meses. Lula da Silva pudesse ser tomado pelos "bolivarianistaschavistas" como um "papagaio de pirata dos Estados Unidos" — que, para Chávez, durante todo o governo Bush, era a encarnação do mal. O silêncio diante do insulto, no entanto, diz-nos que estamos diante de um padrão de política externa em que a visão ideológica das relações internacionais deverá prevalecer sobre o que poderíamos dizer ser a ideia do que seja o Estado nacional. O fato de o ministro Tarso Genro ter decidido contra o parecer do Conare e do próprio representante do Itamaraty nesse Conselho é uma demonstração evidente de que a política externa do governo Lula da Silva é feita ao sabor das conveniências ideológicas, quando não é orientada por percepções pessoais de cada ministro e, no caso do Ministério das Relações Exteriores, pela reação do ministro dessa pasta a possíveis críticas à sua gestão. Tomo dois casos. A convocação do embaixador brasileiro em Quito em protesto contra a decisão do presidente do Equador de submeter

52

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

a um organismo internacional de arbitragem a dívida do Equador com o BNDES é um claro exemplo de como se faz política externa ao sabor dos humores de cada indivíduo. O ministro do Exterior e o próprio presidente da República deixaram claro, repetidas vezes, que o embaixador brasileiro fora convocado não porque o Equador recorrera à arbitragem – André Dusek/AE

José Jacome/EFE

recurso, aliás, não surpreendente, pois estava previsto – mas porque o anúncio dessa decisão fora feito publicamente pelo presidente equatoriano sem que o governo brasileiro tivesse antes sido informado. Tratou-se, portanto, de uma questão de forma. Por ser de forma – as autoridades brasileiras tomaram o anúncio como uma desfeita, um desvio das normas diplomáticas – só poderia ser resolvida por um gesto formal do governo equatoriano que satisfizesse as autoridades de Brasília. Um pedido de desculpas, evidentemente em linguagem ou gestos diplomáticos. Nada disso aconteceu, e apesar de a deselegância do presidente do Equador permanecer, o governo brasileiro decidiu que seu embaixador retornasse a Quito depois que o governo equatoriano pagou parcela da dívida contraída com o BNDES. O governo do Equador nunca antes dissera que não pagaria; apenas havia comunicado urbi et orbe que estava recorrendo à


arbitragem porque considerava que a dívida contraída tinha sido acordada de maneira irregular. Ao chamar o embaixador em Quito, o Itamaraty – apoiado pelo presidente da República – quis demonstrar que não aceitava fatos dessa natureza, ou seja, que não aceitava que uma decisão que afetava as relações entre os dois países fosse anunciada publicamente antes de ser comunicada ao governo brasileiro. E o embaixador brasileiro foi chamado, com toda a pompa que cercou esse fato, porque estava pendente o pagamento de uma parcela de dívida conta contraída soberanamente e se temia que a dívida não fosse honrada. A parcela foi paga e tudo voltou à normalidade; e esqueceu-se, para todo o sempre, que um gesto do presidente do Equador tinha ofendido o Estado brasileiro, contribuindo paCelso júnior/AE

ra uma rusga internacional. As relações exteriores foram tratadas, assim, como um impasse mercantil, nada mais. Ou uma questão de melindres ou não melindres pessoais. O resultado, ainda que não tenha sido explorado pela oposição, foi danoso para o prestígio brasileiro. Contra a opinião do representante do Itamaraty no Conare, o ministro da Justiça tomou decisão que afetou de maneira dramática – e real! – as relações com a Itália. Agiu, assim, como se fora o ministro das Relações Exteriores. A invasão de competências não é de estranhar, porque não é nova neste governo. Em Varsóvia, em conferência sobre Meio Ambiente, o delegado do ministro do Meio Ambiente comprometeu o Brasil com isto e aquilo sem que o Itamaraty tivesse sido consultado. Por sua vez, o ministro da Defesa estabeleceu relações especiais e estratégicas com a França, sem considerar acordos assinados com a então República Federal da Alemanha para a transferência de tecnologia para a construção de submarinos convencionais. E o ministro Mangabeira Unger procura motu proprio auxiliares de Barack Hussein Obama, valendo-se da circunstância de, em tempos idos, tê-lo conhecido como seu aluno nos bancos da faculdade. Isso, ao mesmo tempo em que, Obama já eleito presidente, o ministro das Relações Exteriores o chamava às suas responsabilidades nas negociações da Rodada de Doha... O affaire Battisti é mais um caso – este, exemplar! – de como as relações exteriores do Brasil são conduzidas no governo Lula da Silva. De coração, desejamos que não produza mais efeitos que a irritação já suficiente do governo italiano. O que, infelizmente, parece não ser a projeção do caso. Enquanto escrevo, leio que produtores de Santa Catarina começam a queixar-se do fato de que, depois da concessão do asilo, as exportações para a Itália começam a enfrentar obstáculos burocráticos até então inexistentes. Para o ministro Tarso Genro, este não é problema seu: será dos ministros da Fazenda e do Desenvolvimento. E todo o resto é e será problema nosso.

Rafael Correa, presidente do Equador, e Lula: a parcela da dívida com o BNDES foi paga e tudo voltou à normalidade, esquecendo-se, para todo o sempre, que um gesto de Correa tinha ofendido o Estado brasileiro. Ao lado, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, cuja pasta foi bastante abalada com o caso Cesare Battisti.

Dida Sampaio/AE

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

53


Os impostos e o conceito de justiça social Contexto Ueslei Marcelino/Folha Imagem

T

Denis Rosenfield Professor de Filosofia com doutorado na Universidade de Paris

anto estamos atualmente acostumados aos conceitos de justiça social e de impostos – que teriam uma função distributiva –, que podemos encontrar dificuldades em entender que isto possa ter sido diferentemente considerado no passado ou que possa, no futuro, vir a ter uma outra conotação. Ou mesmo, hoje, esses conceitos tão admitidos podem vir a revelar cada vez mais a sua equivocidade, oriunda de uma suposta justificação política, que deveria ser distinguida de sua fundamentação propriamente ética. O que se torna "normal" numa determinada época, pode ter a sua "normalidade" contestada por uma outra perspectiva, um outro olhar, ou por uma outra experiência história. Inglaterra, 1923 Sir David Ross, o célebre tradutor, editor e comentarista inglês de Aristóteles, em 1923, quando confrontado ao conceito aristotélico de justiça distributiva, que se encontra na base de boa parte da fundamentação do conceito de justiça social, constata: "O dar conta da justiça distributiva parece algo estranho para os nossos ouvidos; não estamos acostumados a ver o Estado distribuindo riqueza entre os cidadãos. Pensamos melhor nele como distribuindo cargas na forma de impostos". Para um inglês, naquele então, os impostos eram considerados como uma mera carga tributária, onde a palavra "carga" tem aqui uma significação precisa. E essa carga assim suportada era decorrente de uma visão do Estado, segundo a qual não caberia a este exercer funções socialmente distributivas, pois essas escapariam, precisamente, de seu escopo de

54

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

atuação. Tal função social era tida, precisamente, por "estranha". Inglaterra, poucas décadas depois Ora, esse mesmo Estado inglês, menos de meio século depois, já era considerado por Hayek como um Estado que tinha extrapolado as suas funções, tendo se deformado, ao passar a exercer uma atividade propriamente distributiva, alterando as relações de mercado, tornando os cidadãos meros contribuintes de uma entidade que os controla e reduzindo drasticamente a sua capacidade de livre escolha. Confrontado a essa situação, toda a sua obra se volta para elaborar ideias que pudessem contestar o que tinha se tornado "normal". E tanto mais "normal" que a nova opinião pública considerava essa inovação como devendo ser a forma mesma de organização das relações humanas. Ainda segundo Hayek, a função do intelectual deveria consistir em levar a cabo essa luta junto à opinião pública, resgatando o verdadeiro sentido de justiça, entendido como fazendo parte de uma economia de mercado e de relações contratuais. Grécia Contudo, para um grego da época de Aristóteles, isto aparecia, ainda na avaliação de Sir David Ross, como sendo natural: "Na Grécia, entretanto, o cidadão olhava a si mesmo, como foi fito, como um partícipe (shareholder) do Estado mais do que como um contribuinte; e propriedades públicas, por exemplo as terras de uma nova colônia, não era infrequentemente divididas entre eles, enquanto a assistência pública aos necessitados era também reconhecida". O conceito aristotélico de



justiça distributiva, porém, não se escora em sua significação social assistencialista, podendo ter uma outra conotação, por exemplo, referente à partilha de valores e méritos. Para nosso propósito específico, basta, todavia, assinalar as diferentes concepções de Estado aqui envolvidas. Com efeito, o cidadão é entendido não somente como um contribuinte, mas, também, como aquele que partilha uma parte do Estado, detém algo do que compartilha, podendo ser esse algo alguma coisa decorrente de sua participação social, que lhe vem sob a forma de um benefício público, no caso de tipo assistencialista. Partilha de impostos Impostos são transferências de bens da sociedade, do trabalho, esforço e investimento dos cidadãos para a esfera estatal. Impostos são, neste sentido, bens públicos derivados dos bens privados, não podendo perder essa conotação sua, sob o risco de o Estado entender que esses bens lhe pertencem, como se coubesse apenas a ele determinar o seu destino, fazendo intervir a sua noção específica de justiça. A justiça empreendida pelo Estado não tem, nem necessita ter, uma conotação social para ter a sua forma própria de justificação. Os recursos dos contribuintes/cidadãos podem ser destinados à preservação de instituições, à construção de estradas e ruas, à conservação das leis (segurança jurídica), ao policiamento (segurança da vida e dos bens) ou à soberania nacional (segurança externa). Função social Em todos esses casos, os cidadãos podem considerar que essas funções do Estado são vitais para a preservação da vida, da família, dos bens e da livre escolha em seu sentido mais amplo. Não se segue, contudo, que a "justiça social" deva ser necessariamente uma função sua, pois ela implica não somente uma transferência de recursos para bens públicos, mas uma transferência para outros indivíduos. Ela faz, portanto, intervir uma outra concepção de Estado, baseada em outros valores, como o de que o lucro é um pecado que deveria ser justificado com sua distribuição para os que dele não usufruem. Na verdade, está aqui presente a concepção de que o lucro e a riqueza em geral são benefícios indevidos, tendo nascidos de uma exploração do homem pelo homem. Logo, está implicada uma determinada concepção das relações sociais.

56

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Leis e impostos A propósito da origem dos corpos legislativos, Hayek assinala que o primeiro poder reconhecido de fazer leis foi o dos governantes, que precisavam de regras, claramente estabelecidas, que servissem de guias para os seus subordinados, na consecução das atividades administrativas. Neste caso, podemos colocar as regras de alistamento militar, o seu financiamento, os exércitos e o conjunto de atividades administrativas próprias de uma organização. Impostos para o financiamento de suas atividades administrativas estavam também contemplados, com a ressalva de que a contestação começa então, pois se coloca o problema se tais arrecadações estavam ou não conforme as leis estabelecidas. Poderíamos colocar nesta rubrica o conjunto de atos administrativos que organizam as tarefas e funções do Estado brasileiro como decretos, portarias, resoluções e instruções normativas. Caso inglês (taxação) Hayek observa que o Parlamento, no sentido inglês do termo, quando de seu nascimento, tinha como função central o controle e a fiscalização dos atos governamentais. O seu pressuposto era o de que a lei, no sentido dos princípios da conduta justa, estava dada pela "common law", que não era feita pelo órgão legislativo. Logo, a feitura das leis não correspondia a um processo legislativo que se faria pelo ato de uma assembleia de representantes, cuja função principal residiria em se contrapor a um governo ávido de ultrapassar as suas prerrogativas, indo, inclusive, para além da "common law" estabelecida. Ou seja, trata-se de delimitar quais seriam as prerrogativas do governo no sentido de que essas não interferissem com o que era considerado como os direitos dos cidadãos, sobretudo no que diz respeito à tributação. O Parlamento O Parlamento se coloca, desta maneira, como aquela instância cuja função central consistia na autorização de tributações e se esse consentimento não fosse dado, o governo não poderia elevar os impostos. Ou ainda, o Poder Legislativo estava, sobretudo, voltado para as tarefas governamentais, mesmo se sob a forma de sua limitação, e não no sentido próprio de elaboração de leis de caráter universal. Não se deve, portanto, identificar as leis às "leis" no sentido de regras nascidas das


necessidades de governar, voltadas para a administração e a organização, e não pelos direitos de livre escolha no exercício do direito de propriedade, considerados como situados fora da esfera propriamente dita de comando e organização do Estado. Descentralização e federalismo O federalismo e a descentralização são importantes questões que abrangem o Estado no seu conjunto. Aquilo que é considerado "governo" é dividido em várias esferas, como a federal, a estadual e a municipal em nosso País. Assim, para evitar uma grande concentração de poder em uma das esferas, no caso a da União que é, de longe, a mais representativa, seria importante uma descentralização, com Estados e municípios tendo uma maior responsabilidade em seus distintos setores de atuação. Isto significa, evidentemente, que responsabilidades maiores se traduzem também por impostos descentralizados, de tal maneira que os contribuintes, os cidadãos, possam ter um controle mais direto do que é feito com os seus recursos. Tributação Hayek, a propósito da teoria das finanças públicas, ressalta um ponto que, no seu entender, é relevante para a existência da democracia. Diz ele respeito à determinação do total dos gastos públicos, que deveria ser fixado previamente, de tal maneira que toda nova demanda deveria se enfrentar com a repartição do bolo previamente estipulado. Por exemplo, um percentual determinado do PIB. Com efeito, se o total dos gastos públicos funcionar como um limite, toda outra "necessidade" deveria se confrontar ao problema da repartição de uma quantia previamente determinada ou deixar claro que a sua realização implica uma maior carga tributária, que deveria ser arcada por todos. O princípio da transparência deveria ser efetivo, dentro de um espírito geral de responsabilização individual e de grupos sociais, de tal maneira que novas demandas não sejam simplesmente vistas como questões de "necessidade", independentemente de seus custos. Necessidades O problema é diferentemente colocado quando primeiro se determina a "necessidade" e só depois os seus recursos, criando um

círculo vicioso em que ocorre sempre um aumento da carga tributária, como se isto fosse uma demanda geral dos cidadãos. Na maior parte dos casos, é somente uma demanda setorial, corporativa, que foi, assim, transferida para toda a sociedade. Deste modo, tem lugar um enfraquecimento das relações de mercado, baseadas na responsabilização de cada um, e uma transferência de recursos para o Estado, que funciona à maneira de uma organização baseada no comando da sociedade, em imposições, que se traduzem mesmo na palavra imposto, algo não voluntário. A burocracia se fortalece em função, precisamente, de demandas que serão atendidas por intermédio de finalidades concretas, particulares, que serão por ela determinadas, restringindo, ainda mais, o espaço da responsabilidade individual e da livre escolha. Poder limitado e ilimitado Enquanto a tributação era compreendida como um mero ato do governo ou do Poder Executivo de sacar recursos dos contribuintes em proveito próprio, tal ato aparecia como sendo arbitrário, devendo estar subordinado a um controle dos cidadãos, que se exercia no Parlamento. Aparece aqui a noção de resistência a um ato arbitrário, que interferia diretamente no direito de propriedade, no direito de cada um a seus próprios trabalho e esforço. A contraposição entre poderes podia ser entendida como uma resistência dos cidadãos contra exações arbitrárias. Com a introdução da ideia de justiça social, o jogo muda, pois os atos do governo de aumento da carga tributária supostamente perderiam o seu caráter arbitrário, passando a ser feitos em nome da coletividade, e não em nome do governo. O Parlamento, por sua vez, tomado ele também por essa ideia passa a colaborar no sentido da justiça social, pelo menos dentro de limites tributários que são difíceis de ser estabelecidos, pois são sempre ampliados. Logo, atos políticos de tipo eleitoral se voltam para a discussão dessas políticas de justiça social, de tal maneira que a vontade da maioria começa a se organizar cada vez mais em defesa de interesses setoriais, que para se justificarem passam a se apresentar como de justiça social. A sociedade torna-se cada vez mais refém desses interesses assim organizados, que se escondem sob o manto de um bem público, para se apoderarem de uma fatia maior do bolo tributário, que é arrecadado de toda a sociedade.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

57


Marcos Bergamasco/Folha Imagem

Com o argumento de preservar o meio ambiente, ecoam vozes que desejam internacionalizar a

^

Odair Leal/Folha Imagem

AMAZONIA

58

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


E

m 1991, participei com o senador Roberto Campos e o então ministro das Relações Exteriores do Brasil, Francisco Rezek, de um seminário realizado na Fundação Konrad Adenauer, na Alemanha (Bonn), em que se discutiram assuntos de interesse comum aos dois países. Um dos paineis foi sobre a Amazônia, do qual participamos proferindo palestrar e debatendo, Roberto Campos, eu e dois professores alemães. Já no dia anterior a presidente do IBAMA também participara sobre o tema do meio ambiente. Na exposição dos dois professores alemães, houve nítido posicionamento a favor da internacionalização da Amazônia. O argumento era simples. Como a humanidade dependerá, no século 21, da preservação do meio ambiente e como a Amazônia representa uma das últimas grandes reservas de preservação ambiental, nada mais razoável que não um só país, mas toda a comunidade internacional dela cuidasse. Roberto e eu reagimos, de imediato, concordando com a tese geral, mas discordando do direito da comunidade internacional intervir em assunto afeto à soberania do Brasil. A única colaboração possível seria, como contrapartida aos ônus que têm que ser suportados para a preservação de um bem de interesse global, ofertar recursos financeiros e técnicos para que o País possa cuidar da Amazônia, sem que se possa admitir a internacionalização ou redução da soberania nacional sobre o território amazônico.

Divulgação

Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP, do CIEE/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado Maior do Exércio-ECEME e Superior de Guerra-ESG e presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP e do Centro de Extensão Universitária-CEU.

Dida Sampaio/AE

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

59


Cheguei a lembrar que, para conquistar o elevado padrão de vida de que hoje desfrutam, os europeus, ao longo da história, não souberam ou não se preocuparam em preservar suas florestas, faltando-lhes, portanto, autoridade para exigirem que o Brasil bloqueie seu desenvolvimento naquela área, em prol de assegurar maior conforto às nações civilizadas. Propus mesmo que os recursos internacionais a serem destinados à Amazônia para exclusivo uso do Brasil, na preservação da rica região, deveriam incluir também valores compensatórios pela não exploração agropecuária, extrativa, comercial e industrial da região, ressarcindo aqueles que seriam privados de obter o mesmo grau de desenvolvimento europeu, por serem obrigados a preservar suas florestas, quando a Europa não preservou as suas. A discussão, embora acadêmica, revelava, todavia, o permanente desejo da comunidade internacional, manifestado nos mais variados "fóruns internacionais", de que um dia a Amazônia se transforme em área internacional, administrada pelos "guardiões do mundo", ou seja, as nações desenvolvidas (EUA-EU-Japão). O tempo, todavia, tem trazido outras preocupações às nações do 1º mundo, como as guerras do Oriente próximo desde a 1ª invasão do Iraque, em 1991; o desenvolvimento dos quatro grandes emergentes (Brasil, Rússia, Índia e China), denominados BRICS; a crise econômica do ano 2009; o alargamento da União Europeia para 27 países e o desmembramento da União Soviética e da Iugoslávia. O tema, portanto, continuou mais no plano da retórica e das discussões acadêmicas, que de interesse imediato, principalmente após os Estados Unidos não terem se interessado pelo Tratado de Kyoto sobre meio ambiente. De qualquer forma, a questão, embora latente, continua a preocupar, mormente após o denominado direito de ingerência ter sido repetidas vezes utilizado pelas nações desenvolvidas, nos últimos anos, direito este que permitiria à comunidade internacional intervir na soberania de outras nações, quando a própria comunidade corresse riscos. A grande questão, todavia, reside no fato de que o denominado direito de ingerência é dirigido exclusivamente pelas nações poderosas. A comunidade internacional pouca força tem para opor-se ao pequeno grupo de nações que decide a sorte do mundo. A própria ONU é um organismo manietado pelo poder de veto de uma única nação, entre as cinco com assento permanente no Conselho de Segurança. Assim, intervenções como no Iraque, no Afeganistão, ou em Kosovo, atingindo a soberania de países – embora fossem ditaduras, a maior parte deles – não teve o consenso geral, até porque a guerra de Bush

60

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

contra o Iraque ocorreu contra a manifestação dos técnicos da ONU, que não encontraram armas de destruição que o governo americano afirmava existir naquele país. A decisão foi exclusivamente do presidente Bush. Ora, não excluo que o objetivo, quando as outras questões mundiais chamarem menos atenção, possa ser retomado. Temo, inclusive, que o debate futuro não se travará mais no campo da preservação do meio ambiente, mas da intervenção a pretexto de uma suposta necessidade de preservação de 400 mil índios brasileiros e estrangeiros, que vivem em 25% do território amazônico, em reservas nas quais os brasileiros não-índios não


No dia em que a comunidade internacional voltar seus olhos novamente para a Amazônia, por certo vai fundamentar seu pretenso "direito de ingerência" na proteção dos povos indígenas, além da preservação do meio ambiente.

podem penetrar, salvo por horas, com autorização da FUNAI. Embora discorde da leitura que ilustres magistrados fizeram do art. 231 da C.F., assim redigido: "Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens" (grifo meu). Estou convencido de que mais do que o equívoco na interpretação do dispositivo, a assinatura da Declaração Universal dos Povos Indígenas poderá trazer, no futuro, problemas sérios para

o País, na medida em que já há movimentos insuflando os povos destas reservas no sentido de exigir que elas se tornem países independentes, como um grupo de ianomânis tem pleiteado, junto a organizações internacionais. O equívoco na leitura do texto constitucional reside, a meu ver, em não se respeitar o tempo do verbo utilizado pelo constituinte. Ao utilizar-se do presente do indicativo (OCUPAM) a Lei Suprema, preservou os direitos originários SOBRE AS TERRAS QUE OCUPAVAM EM 5 DE OUTUBRO DE 1988 e não as terras que ocuparam antes daquela data, e já não ocupavam em 05/10/1988. Correta ou incorreta a leitura da Suprema Corte, o certo é que, 25% da Amazônia pertence exclusivamente aos indígenas, negando-se aos demais brasileiros o direito a parte do território nacional. Ora, minha preocupação maior é de que as futuras reivindicações do "direito de ingerência" da comunidade internacional venham a ser "fundamentadas" numa pseudo-necessidade de preservação dos povos indígenas e de suas comunidades, como nação independente, como, por exemplo, já ocorre com as reivindicações do Tibete, que é parte da China, mas que a pressão internacional é para que se separe de um dos quatro BRICS. À evidência, sou favorável à preservação das reservas indígenas, mas nos termos da Constituição Federal, ou seja, apenas aquelas terras que efetivamente ocupavam em 05/10/1988, e não que ocuparam no passado. Defensor do governo do Amazonas, em diversas questões relativas à manutenção da Zona Franca de Manaus – polo indispensável para o desenvolvimento daquela região – junto ao STF, perante o qual tive oportunidade de produzir diversas sustentações orais, em que aquela Corte assegurou os incentivos pertinentes, assim como defensor intransigente da soberania de nosso País, em fóruns internacionais, temo por ela, pelo fato de quase toda a fronteira norte do País ser habitada por indígenas. No dia em que a comunidade internacional voltar seus olhos novamente para a Amazônia, por certo vai fundamentar seu pretenso "direito de ingerência" na proteção dos povos indígenas, além da preservação do meio ambiente. Para uma publicação que objetiva, fundamentalmente, levantar questões para reflexão sobre a Amazônia, fiz questão de trazer matéria que é de minha permanente meditação, não só como professor de Direito Constitucional, mas, fundamentalmente, como brasileiro consciente do dever que todos temos de defesa de nossa pátria, cujo hino conclama todos os brasileiros a dar até mesmo a vida por ela.

Dida Sampaio/AE

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

61


ALFER


A ascensão das duas esquerdas da América Latina Perspectivas da teoria do Estado-rentista Kurt Weyland Professor de Políticas Latino-Americanas Instituto de Estudos Latino-Americanos Lozano Long na Universidade de Texas em Austin

Tradução de Cintia Shimokomaki


N

os últimos anos, a esquerda teve um retorno surpreendente na América Latina. A partir de 1998, partidos, movimentos e líderes de esquerda ganharam poder governamental em oito países da região. Enquanto que em algumas nações, como o Chile, presidentes esquerdistas assumiram o poder com o apoio de uma coalizão de centro-esquerda pré-existente, em outros países a esquerda desalojou forças de centro ou de direita, como na Bolívia, Brasil, Equador, Nicarágua, Uruguai, Venezuela e, discutivelmente, na Argentina (1). Esta ampla virada para a esquerda foi inesperada, já que a década de 1990 foi testemunha da decretação de reformas neoliberais por toda a região. O projeto econômico da direita – privatização, liberalização do comércio, desregulamentação e desmantelamento geral do intervencionismo estatal – parecia estabelecer predominância. Até governos de origem populista ou esquerdista implementaram reformas de mercado ortodoxas, renunciando aos seus projetos anteriores de transformação estrutural e redistribuição determinada. A direita parecia ter vencido, especialmente em termos de orientação de políticas e do processo de decisão governamental. A esquerda sofreu derrota política ou autodestruição em vários países, como a Argentina, Brasil, Equador, El Salvador, Nicarágua e Peru; ela sobreviveu em outras nações, incluindo Chile e Bolívia, ao renovar seu programa e abraçar grande parte da agenda de reforma de mercado. Neste contexto, o retorno da esquerda após 1998 é surpreendente. O que explica este fenômeno? Além disso, a onda esquerdista dos últimos anos não é uniforme. Os novos governos vão desde a cautelosa Concertación, uma sólida coalizão de partidos de centro e de esquerda no Chile, ao populismo radical de Hugo Chávez na Venezuela. Outros governos alinhamse entre esses extremos, com o Brasil e o Uruguai contemporâneos, mais próximos do Chile; Bolívia e Equador tendendo a seguir o caminho de Chávez e a Argentina oscilando entre os dois. Portanto, há grande diversidade entre as administrações esquerdistas da América Latina. Em vez de constituir uma onda uniforme, elas são vistas como uma série de marolas e redemoinhos (2). Para maior clareza conceitual, vários observadores propuseram métodos de classificação que são úteis para destacar os pontos principais, apesar de inevitavelmente desconsiderar nuances mais sutis. Em um ensaio muito citado, Jorge Castañeda distinguiu uma "es-

64

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

A esquerda sofreu derrota política ou autodestruição em vários países, como a Argentina, Brasil, Equador, El Salvador, Nicarágua e Peru; ela sobreviveu em outras nações, incluindo Chile e Bolívia, ao renovar seu programa e abraçar grande parte da agenda de reforma de mercado.

O colapso de um sistema partidário não antecede a ascensão dos esquerdistas radicais – como uma causa verdadeira faria –, mas pode resultar parcialmente de sua ascensão.

querda certa", com orientação moderada e resp o n s á v e l , d e u m a " e s q u e rd a e r r a d a " , conduzida por radicalismo não reconstruído e ativismo voluntarista (3). Este artigo começa por reconsiderar os dois ramos de esquerdismo da América Latina e oferece uma nova interpretação à "esquerda certa" de Castañeda: a esquerda renovada e moderada que atualmente governa o Chile, Uruguai e Brasil tem reconhecido uma reivindicação básica da direita política, a saber, a necessidade de respeitar restrições, especialmente as limitações derivadas do capitalismo global, da reforma do mercado doméstico e da democracia liberal e representativa. Por outro lado, a esquerda radical repudia essas restrições e busca uma transformação mais ousada. A seguir, o artigo examina os motivos e os resultados dessa diferença fundamental em orientação política. Por que os governos de Ricardo Lagos e Michelle Bachelet no Chile, Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, e Tabaré Vásquez no Uruguai, buscaram melhorias sócioeconômicas dentro das restrições do sistema de mercado, enquanto Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador têm proclamado um ataque frontal contra o neoliberalismo? Além disso, quais foram os resultados dessas orientações políticas divergentes? Chávez, o principal proponente do radicalismo, cumpriu suas promessas de impulsionar as perspectivas de vida dos pobres? Ou a abordagem de reforma gradual da esquerda moderada tem chances maiores de um sucesso duradouro? Este artigo mostra que o neoliberalismo não estimulou diretamente o radicalismo esquerdista. O repuxo mais forte ocorreu na Venezuela, que adotou relativamente poucas reformas de mercado. As instituições destacadas pela ciência política contemporânea tampouco parecem ser as "variáveis independentes" decisivas. O colapso de um sistema partidário não antecede a ascensão dos esquerdistas radicais – como uma causa verdadeira faria –, mas pode resultar parcialmente de sua ascensão; em vez de ser produto de um sistema partidário sólido, a moderação esquerdista pode caminhar lado a lado com um processo de consolidação institucional, como o caso brasileiro sugere. Já que instituições podem ser flexíveis e mudar com uma rapidez surpreendente, é problemático lhes atribuir um papel causal decisivo (4). O fator crucial é o ciclo de expansão e contração ("boom and bust") de Estados-rentistas ("rentier states"), com destaque à prosperida-


Yuri Cortez/AFP

de de recursos naturais dos últimos anos e aos lucros extraordinários acumulados por Venezuela, Equador e Bolívia. Essas rendas desconsideram a insistência neoliberal em restrições, sugerem a disponibilidade de grandes oportunidades e estimulam radicalismo e ataques voluntaristas na ordem sócio-econômica e política dominante. Por outro lado, nos países que não possuem uma economia rentista, como o Brasil e o Uruguai, ou que possuem riquezas de recursos naturais mais limitadas e controlam o produto por meio de instituições estatais sólidas e arraigadas, como o Chile, a esquerda sente-se compelida a trabalhar dentro dos limites da nova economia de mercado e da democracia representativa. A mudança na Bolívia de uma esquerda moderada para o radicalismo imediatamente após a descoberta de enormes reservas de gás natural fornece provas surpreendentes desta virada inusitada nos argumentos de Estados-rentistas (5). Esta explicação tem implicações profundas no desempenho e promessa dos esquerdistas radicais contra os moderados. Em vez de traçar um novo modelo de desenvolvimento ("socialismo do século 21"), a esquerda popu-

lista liderada por Chávez está ressuscitando amplamente o modelo rentista tradicional, que levou a Venezuela do fabuloso boom da década de 1970 à terrível quebra e longo declínio das décadas de 1980 e 1990. Aumentos drásticos em gastos públicos e dívidas sugerem que a República Bolivariana está em um caminho insustentável similar (6). Em contraste com os riscos inerentes à esquerda radical, o caminho lento e gradual seguido pela esquerda moderada no Chile, Brasil e Uruguai parece mais promissor a longo prazo.

Os aumentos drásticos em gastos públicos e dívidas sugerem que a República Bolivariana de Hugo Chávez está em um caminho insustentável. Já o caminho lento e gradual da esquerda moderada parece mais promissor a longo prazo.

Direita x esquerda: a questão das restrições Historicamente, a principal diferença entre a direita e a esquerda refere-se à questão das restrições nas mudanças sócio-econômicas e políticas (7). A direita insiste em limitações que uma pessoa desafia de acordo com seus próprios riscos. Por outro lado, a esquerda acredita em chances amplas para o aperfeiçoamento: "Um novo mundo é possível!" A direita quer, cautelosamente, preservar estruturas existentes, enquanto a esquerda busca, audaciosamente,

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

65


Enrique Marcarian/Reuters

O neoliberalismo, portanto, ensitransformações estruturais. A direita nou um realismo sóbrio e instou o conpostula uma natureza humana imutásentimento de restrições econômicas. vel, mas a esquerda vê as pessoas como Governos devem apenas gastar o que sendo socialmente construídas e acrediarrecadam por meio de impostos não ta na perfectibilidade da humanidade. distorcivos e permanentes. Países deConsequentemente, a direita retrata vem apenas importar o que podem fio mercado como o produto "natural" da nanciar por fontes confiáveis de câmbusca do próprio interesse e da orienbio. Se os governos aceitam essas limitação competitiva dos indivíduos. O tações, o mercado produz um crescimelhor que o Estado pode fazer é gamento maior e mais sustentável do rantir o funcionamento estável do merque o intervencionismo estatal, o recado ao proteger direitos de propriedaformismo radical ou o socialismo. Trade e exercer algum regulamento, como tado corretamente, ele produz uma leis antitruste. Por outro lado, a esquersérie de "ovos de ouro" que diminui a da quer submeter a economia à tomada pobreza, eleva a prosperidade em de decisão coletiva, majoritária e demassa e permite ao governo ampliar mocrática. Idealmente, ela pretende José Paulo Lacerda/AE os benefícios sociais. usar critérios sociais e políticos como guia para a alocação do valor econômiA questão das restrições co. A racionalidade do planejamento na América Latina deve amansar ou substituir a "anarquia" do mercado. Já que instituições O colapso mundial do socialismo; a sócio-econômicas e políticas são proqueda do intervencionismo estatal dutos da ação humana, elas podem ser protecionista na crise da dívida da déreformadas para deliberar intervencada de 1980; o fracasso surpreendenções. Por outro lado, a direita se preote do ajuste heterodoxo na Argentina, cupa se alguém não alimenta corretaBrasil e Peru (1985-87); o longo boom mente a gansa que bota ovos de ouro; se de crescimento (finalmente) alcançaalguém a confina numa gaiola apertado pelo Chile neoliberal depois de da e se alguém a faz trabalhar em dema1985; e bonanças similares, embora sia, a gansa para de fazer seu truque albreves, projetadas pelos reformadoquímico ou pode até morrer. res de mercado Carlos Menem na ArEste duradouro debate molda progentina (1991-94) e Alberto Fujimori fundamente as divergências entre dino Peru (1993-95) levaram forças esreitistas e esquerdistas, e entre diferenBreves momentos de bonanças foram querdistas em diversos países da tes ramos do esquerdismo na América projetadas por reformadores como América Latina a abraçar o esboço báLatina contemporânea. "NeoliberalisCarlos Menem (no alto), da Argentina, sico do modelo de mercado. Eles mo", a defesa da direita por reformas e Alberto Fujimori, do Peru. abandonaram a busca por transforde mercado minuciosas, buscou impor mação sistêmica e defenderam muum sentido de limitação: o mercado esdanças que não destruiriam o mercatá para ficar, possui dimensões globais do. Esta renovação ideológica, uma mudança do radicalismo e impõe restrições em países soberanos, especialmente no Terativista para o reformismo moderado, ocorreu principalceiro Mundo. O neoliberalismo rejeitou os esforços para momente no Chile, Argentina, Peru e México, temporariamente delar profundamente ou até abolir o mercado, como as demona Bolívia (1989-2000) e eventualmente no Uruguai e Brasil. cráticas "marchas ao socialismo" (Chile 1970-73), o reformisEm vez de tentar fazer a gansa botar ovos de platina, pequemo militar radical (Peru 1968-1975), os esforços de ajuste henas pepitas de ouro ou tijolos para a habitação de baixa renda, terodoxos (Argentina 1985-87, Brasil 1986-87, Peru 1985-87) e partidos de esquerda em toda a América Latina decidiram o pesado intervencionismo estatal prevalecente na América manter o pássaro bem alimentado, seguro e confortável e esLatina em geral – errado em planejamento e condenado ao fraperavam usar a riqueza resultante para promover prospericasso. Economistas ortodoxos enfatizaram a necessidade de dade econômica, justiça social e cidadania. proteger as regras de mercado, garantir estabilidade e manter Esta esquerda renovada e moderada reconheceu as restriequilíbrio, por motivos econômicos e sociais. O "populismo ções fundamentais que emanam do capitalismo global e do econômico", a investida da irresponsabilidade esquerdista neoliberalismo doméstico, e busca mudança dentro dessas aplicada a presidentes diversos, como Juan Perón (1946-55), restrições. Neste sentido, é uma "esquerda certa", porém, seSalvador Allende (1970-73) e Alan García (1985-90), está fadaguindo um conceito menos normativo do que Castañeda sudo a falhar, arruinar a economia e acaba prejudicando a maiogere: ela reconhece uma reivindicação essencial da direita, ria de seus beneficiários, os pobres (8).

66

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009


mas mantém seu compromisso com justiça social e maior igualdade. Na visão destes esquerdistas pragmáticos, o mercado deixa espaço suficiente para superar ortodoxias rigorosas (definição estrita do neoliberalismo) e o retorno ("payoffs") do dinamismo econômico permite aliviar as necessidades sociais urgentes. Investimentos em capital humano e segurança de renda para os pobres podem avançar tanto o desenvolvimento econômico como o progresso social. As reformas graduais defendidas pela esquerda renovada, que defende a negociação e o compromisso em vez de confronto, levam tempo, mas reduzem o risco de reversão. Apesar do cenário estrutural e histórico-mundial diferenciar esta abordagem moderada da social-democracia europeia, ela compartilha a estratégia central – introduzir reformas dentro do sistema de mercado. Na Venezuela, Bolívia e Equador, por outro lado, uma esquerda radical emergiu da rejeição popular pelo modelo de mercado, do ceticismo nacionalista quanto à globalização, do forte repúdio à "classe política" dominante e do questionamento da democracia pluralista e representativa. Com ataques ao neoliberalismo, líderes como Chávez, Morales e Correa rejeitam muitas limitações e restrições. Pelo menos em sua retórica, eles substituem o reformismo cauteloso por políticas missionárias de redenção e buscam uma transformação profunda da ordem política e sócio-econômica. Eles voltam atrás nas privatizações com esforços de nacionalização, regulamentos mais rigorosos e a promoção de cooperativas de propriedade coletiva. Eles intervêm no mercado ao decretar novas regras e regulamentos – frequentemente, sem consulta – e aumentar gastos públicos drasticamente. Por que este radicalismo renovado se consolidou em alguns países, enquanto a moderação prevaleceu em outros lugares? Qual é o motivo desta diferença tão evidente? Um repuxo contra o neoliberalismo? A explicação mais comum para o renascimento do esquerdismo radical ressalta os problemas e os fracassos das reformas de mercado adotadas na América Latina na década de 1990. Anunciado com fanfarra como um meio para colocar a região novamente no caminho do crescimento sustentável e da prosperidade econômica, o neoliberalismo não foi bem-sucedido no cumprimento de suas promessas. Enquanto restaura a estabilidade econômica

Com ataques ao neoliberalismo, líderes como Chávez, Morales e Correa rejeitam muitas limitações e restrições. Eles substituem o reformismo cauteloso por políticas missionárias de redenção e buscam uma transformação profunda da ordem política e sócio-econômica.

ao combater inflações galopantes e outros desequilíbrios, os mercados recém-liberalizados tiveram um desempenho abaixo do esperado em termos de crescimento e, especialmente, de geração de empregos. Curtos períodos de crescimento temporário têm sido seguidos por crise e ajustes renovados, e medidas para aumentar a eficiência e a maior exposição à concorrência estrangeira contraíram ainda mais os mercados de trabalho formal. À medida que o emprego se torna mais instável, a insatisfação popular ao funcionamento atual do novo modelo de mercado cresce na região. A insatisfação com o neoliberalismo certamente exerceu um papel importante no ressurgimento da esquerda radical. No entanto, a relação é menos direta do que sugerido. De forma interessante, o repuxo ocorreu especialmente em países que nunca implementaram o programa neoliberal completo, especialmente na Venezuela e no Equador. Após um processo de reforma de mercado malsucedido, com uma sucessão de períodos de crescimento baixo e de crescimento elevado ("stop-and-go"), importantes setores desses países rejeitaram esta pílula amarga sem a engolir totalmente (9). A Bolívia tentou seriamente promover a reforma de mercado, e a esquerda se tornou mais moderada ou até enfraqueceu por muitos anos. Mas o crescimento decepcionante e a pobreza persistente levaram muitas pessoas a eventualmente considerar o neoliberalismo um fracasso. Paradoxalmente, porém, este retorno à rejeição aconteceu logo após o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-97) ter conseguido aumentar o crescimento e implementar um ambicioso pacote de reformas econômicas, sociais e de cidadania que foi além do estereótipo do neoliberalismo: ele buscou tratar de um amplo leque de interesses progressivos por meio da reforma constitucional, participação popular, descentralização, educação bilíngue e assistência à saúde (10). A insatisfação com o neoliberalismo teve um papel importante na ascensão da esquerda radical na Venezuela, Equador e Bolívia. Mas é difícil atribuir essa rejeição diretamente ao desempenho objetivo da reforma de mercado. Outros fatores também devem ter tido um papel importante. Instituições partidárias frágeis? Muitos observadores destacam as características político-institucionais dos sistemas de partido que tiveram um impacto moderador nos partidos e movimentos de esquerda em al-

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

67


guns países, mas que liberaram o radicalismo em outros (11). Os sistemas partidários sólidos, ou que gradualmente se consolidaram, no Chile, Uruguai e Brasil, e as raízes duradouras do peronismo na Argentina estabeleceram limites à ascensão de forasteiros e atraíram forças esquerdistas para uma competição centrípeta com forças direitistas e centristas, que, por sua vez, exerceram uma poderosa pressão moderadora. Mesmo quando a esquerda ganhou poder governamental, ela não conseguiu dominar todo o sistema político e reformar profundamente as instituições dominantes por assembléias constituintes – usadas pela esquerda radical para seu projeto transformatório. Em vez disso, governos esquerdistas no Chile e no Brasil, compelidos a forjar coalizões com forças centristas, ou até direitistas, tiveram que trabalhar dentro dos limites da ordem política existente. Esta limitação institucional asfixiou qualquer tentação remanescente de promover uma reestruturação fundamental da ordem econômica e social. Por outro lado, a esquerda radical conquistou poder em sistemas partidários que desmoronavam, e conseguiu afastar uma "classe política" desacreditada que governava anteriormente. Aproveitando este vácuo, ela defendeu um projeto hegemônico e invocou a soberania popular para reformar a estrutura institucional por meio de novas constituições. Ela usa um discurso majoritário e plebiscitário para desmantelar os freios e contrapesos ("checks and balances") e concentrar o poder em líderes carismáticos. Portanto, a fraqueza institucional permitiu o ressurgimento da esquerda radical. Fatores institucionais claramente contribuíram para o surgimento de dois ramos diferentes de esquerdismo na América Latina; particularmente, eles são responsáveis pela esquerda moderada no Chile e no Uruguai, e pelo surgimento de forasteiros radicais na Venezuela e no Equador. Mas nos países onde a solidez do sistema partidário mudou rapidamente, como na Bolívia e no Brasil, as instituições são consideradas mais como variáveis intervencionistas do que causas verdadeiras (12). Além disso, já que fraqueza institucional é algo difícil de ser medido (13), o institucionalismo tem dificuldade em avaliar a causa separada de seu efeito presumido. A prova definitiva da fraqueza dos partidos dominantes surge precisamente na ascensão bem-sucedida de radicais desafiadores. O colapso dos sistemas partidários na Venezuela, Bolívia e Equador não antecedeu, mas sim, coincidiu

68

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Fatores institucionais claramente contribuíram para o surgimento de dois ramos diferentes de esquerdismo na América Latina; particularmente, eles são responsáveis pela esquerda moderada no Chile e no Uruguai, e pelo surgimento de forasteiros radicais na Venezuela e no Equador.

com a ascensão dos radicais. Esses líderes carismáticos fazem tudo o que podem para destruir os antigos partidos, que não eram moribundos anteriormente. Os partidos da Bolívia, por exemplo, foram exaltados na década de 1990 pela sua capacidade em forjar pactos políticos que sustentavam reformas de mercado controversas – uma indicação de força (14). De fato, esses partidos conseguiram neutralizar a primeira safra de líderes populistas, Carlos Palenque e Max Fernández, ao inclui-los em coalizões governistas. Ao trocar seu status de forasteiro por acesso ao direito de nomear cargos públicos, essas forças populistas desapareceram rapidamente. Portanto, os partidos bolivianos demonstraram uma força surpreendente na década de 1990 (15). Mas logo depois, esses partidos aparentemente fortes viram seu controle sobre o eleitorado evaporar. De modo oposto, partidos brasileiros foram descritos por muito tempo como "incipientes" ou "fracos" (16). Mas na década de 1990, esse sistema partidário fluido passou por uma rápida consolidação. A volatilidade eleitoral recuou significativamente, e partidos conseguiram formar coalizões governistas razoavelmente estáveis. Apesar de um forasteiro populista (Fernando Collor de Mello) ter assumido a presidência em um ataque eleitoral em 1989, os partidos dominantes conseguiram capturar o gabinete presidencial desde então. Portanto, fatores institucionais podem mudar com uma velocidade inesperada. Eles não podem ser facilmente considerados como variáveis independentes que explicam integralmente o surgimento de duas variantes do esquerdismo. Além disso, o institucionalismo não apresenta uma explicação completa. Ele destaca causas permissivas, tais como a brecha que um sistema partidário à beira do colapso proporciona ao radicalismo de esquerda. Mas o institucionalismo não explica o ímpeto e a "causa que move" por trás do radicalismo de esquerda. Outros fatores também devem ser importantes. Bonanças de recursos naturais e rendas extraordinárias Uma causa mais fundamental para a ascensão da esquerda radical é a disponibilidade de gigantescas rendas derivadas de matériaprima na Venezuela, Equador e – com a descoberta de volumosas reservas de gás – Bolívia. Por outro lado, Brasil, Argentina e Uruguai não possuem economias rentistas: a


principal commodity de cada país representa apenas 10% ou 19% das exportações, em comparação aos impressionantes 75%, 64% e 52% na Venezuela, Equador e Bolívia, respectivamente (17). Até a principal commodity do Chile (cobre) fornece apenas 33% das receitas das exportações e seria menos importante para as finanças públicas do que o petróleo da Venezuela e, provavelmente, do gás da Bolívia. Além disso, a Venezuela possui, há tempos, um petro-Estado institucionalmente fraco, que nunca conseguiu limitar o impacto dos ciclos de expansão e contração (18). Por outro lado, o Chile construiu o núcleo de um Estado forte sob Diego Portales na década de 1830 (19), e depois conquistou seus recursos naturais ao derrotar a Bolívia e o Peru na Guerra do Pacífico (1879-84). Levando vantagem na construção do Estado, o Chile cimentou uma estrutura institucional firme: ele consolidou rendimentos voláteis de exportações com um fundo estabilizador bem-sucedido, que é insulado da discrição governamental, das políticas partidárias e das pressões populares. Por esta instituição estatal arraigada, o país garante equilíbrio econômico, apesar das enormes flutuações nas receitas do cobre (20). Por outro lado, o Estado politizado da Venezuela é indefeso contra tais movimentos de sobe-edesce, e o Estado ainda mais dilapidado da Bolívia parece caminhar na mesma direção. Fabio Pozzebom/ABr A enorme riqueza de recursos, a experiência de booms na Venezuela e a esperança em relação à Bolívia minaram o poder persuasivo do neoliberalismo. A abundância do subsolo e os lucros extraordinários resultantes fazem com que pareça desnecessária a busca neoliberal pela criação de riqueza por produtividade, eficiência e competitividade. Em vez disso, a tarefa principal parece ser a distribuição equitativa da riqueza natural e os fluxos de renda correspondentes (21). Portanto, a política reina suprema, e a economia possui um papel subordinado e puramente instrumental na consciência popular (22). Recursos naturais fartos e o influxo de enormes rendas nos tempos de expansão minam a insistência neoliberal para limitações. Qualquer coisa é possível – gasolina superbarata para motoristas venezuelanos, alimento subsidiado para os bairros pobres de Caracas e

saúde gratuita para todos os bolivianos, como Morales prometeu em 2006. Dadas as possibilidades aparentemente ilimitadas, a única questão é a vontade política. Este sentimento oferece um convite permanente para o ativismo não reconstruído da esquerda radical. As rendas aparentemente ilimitadas estimulam a propensão à tomada de riscos. Assim como visitantes em Las Vegas que inicialmente ganham uma grande quantidade de dinheiro são mais dispostos a arriscar esse ganho inesperado e "apostar com o dinheiro da casa" (23), as pessoas usam rendas extraordinárias para apostas arriscadas, segundo experiências cog-

A abundância do subsolo faz com que pareça desnecessária a busca neoliberal pela criação de riqueza por produtividade.

nitivas. Esta tendência a arriscar com renda adquirida sem esforços ajuda a explicar a tentação irresistível que os governos de Estados-rentistas enfrentam de gastar descontroladamente o aumento de receita inesperado criado pela expansão de commodities. Eles iniciam enormes projetos de investimento e programas sociais expansivos, resultando em compromissos de despesas que são insustentáveis quando os preços internacionais de commodities caem. Eles sufocam negócios domésticos e internacionais e atacam seus inimigos políticos, promovendo polarização e confrontação perigosas. Nas esferas econômica e política, eles demonstram uma tendência evidente a tomar riscos. O ciclo de expansão e contração dos Estados-rentistas, que não foi protegido por um fundo estabilizador institucionalizado como no Chile, parece sustentar a ascensão dos ra-

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

69


dicais na América Latina contemporânea. Na Venezuela, a longa ressaca provocada pelo boom do petróleo da década de 1970, e o consequente declínio econômico e a deterioração social decisivamente desacreditaram os partidos dominantes, que foram, anteriormente, os modelos de força institucional (24). Essa contração, um problema característico dos Estados-rentistas, colocou mais pessoas no "domínio das perdas", induziu-as a tomar grandes riscos ao votar em um desconhecido radical e catapultou Chávez à presidência em 1998 (25). A renovada bonança projetada em parte pela política de Chávez para a OPEP foi decisiva para a manutenção desse autoproclamado socialista no poder, apesar de ter provocado graves conflitos. A chuva de receitas, obtida por esse líder plebiscitário com a destruição de salvaguardas institucionais, permitiu que ele repudiasse o neoliberalismo, tentasse traçar um modelo de desenvolvimento alternativo (26) e se tornasse cada vez mais radical.

Flávio Canalonga/AE

Agliberto Lima/AE

1989

1994

Os casos cruciais do Brasil e da Bolívia Esta teoria rentista pode oferecer uma explicação melhor ao surgimento de dois ramos da esquerda do que o argumento do sistema partidário? Países onde os principais fatores causais dessas explicações rivais passaram por mudanças significativas, ou seja, Bolívia e Brasil, são particularmente esclarecedores para esta análise. De forma interessante, ambos os países passaram por um processo de consolidação institucional e moderação esquerdista por vários anos – mas a descoberta de enormes reservas de gás estimulou a radicalização e o colapso do sistema de partidos na Bolívia. Portanto, o Brasil é a referência de um cenário que se desvenda na ausência de rendas extraordinárias, enquanto a experiência da Bolívia mostra a mudança dramática causada pelo "surgimento" repentino de uma riqueza decorrente de uma matéria-prima. A rápida consolidação do sistema partidário brasileiro Argumentos institucionalistas alegam que a esquerda brasileira mudou do radicalismo à moderação porque uma estrutura institucional sólida a atraiu para uma concorrência centrípeta com o centro e a direita pelo voto mediano. No entanto, a força partidária não antecedeu a moderação da esquerda, mas surgiu de forma simultânea. A

70

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Luludi/AE

A quase vitória do Partido dos Trabalhadores (PT), socialista, nas eleições presidenciais em 1989 e sua enorme liderança nas intenções de voto no início de 1994 induziram o centro e a direita a formar uma aliança defensiva e a estabilizar a economia e a democracia no Brasil.


quase vitória do Partido dos Trabalhadores (PT), socialista, nas eleições presidenciais em 1989 e sua enorme liderança nas intenções de voto no início de 1994 induziram o centro e a direita a formar uma aliança defensiva e a estabilizar a economia e a democracia no Brasil. Seu sucesso assegurou apoio prolongado aos partidos dominantes e tornou o radicalismo pouco promissor, induzindo o PT a renovar sua ideologia e a buscar atrair os eleitores centristas (27). No final da década de 1980, a maioria dos partidos brasileiros não era considerada modelo de força organizacional, mas foi classificada como "incipiente". De acordo com argumentos institucionalistas, essa fraqueza abriu uma brecha para que a esquerda não reconstruída capturasse o poder governamental. De fato, o líder do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, um radical na época, quase ganhou a presidência em 1989. E, em 1994, a sua liderança era tão grande nas intenções de voto que políticos dominantes, como o ex-presidente conservador José Sarney, quase o apoiaram por motivos oportunistas. Em vez de abrir o caminho para o radicalismo de esquerda, a fraqueza institucional no Brasil acabou tendo efeito contrário: ela estimulou os esforços para um fortalecimento institucional que eventualmente levou a esquerda a abandonar o radicalismo. Em 1994, a ameaça de uma vitoria de Lula assustou políticos direitistas e centristas, assim como setores empresariais influentes, principalmente porque o Brasil estava no meio de um processo incerto de ajuste estrutural. Portanto, o destino econômico e político do país estava sob ameaça. Ao reagir a esse perigo, setores centristas e direitistas se alinharam com o ministro da Economia, Fernando Henrique Cardoso, um ex-esquerdista que passou a apoiar as reformas de mercado. Membro da elite e um habilidoso executor, Cardoso usou, de forma competente, o espectro do "sapo barbudo" de Lula para reconstruir a aliança partidária que sustentou a transição do Brasil à democracia na década de 1980. A força política resultante permitiu que ele levasse adiante no Congresso um plano de estabilização econômica que finalmente segurou a inflação galopante e o catapultou à presidência. O ambicioso sociólogo adotou medidas para cimentar o equilíbrio econômico, reduzir o intervencionismo estatal e reformar as políticas educacional e de saúde. A estabilidade econômica e a renovada governabilidade garantiram apoio contínuo

Em vez de abrir o caminho para o radicalismo de esquerda, a fraqueza institucional no Brasil acabou tendo efeito contrário: ela estimulou os esforços para um fortalecimento institucional que eventualmente levou a esquerda a abandonar o radicalismo.

a Cardoso e à sua coalizão partidária. Portanto, a volatilidade eleitoral caiu consideravelmente e o sistema partidário do Brasil começou a se consolidar. O desafio esquerdista e a adoção das reformas de mercado pelo centro-direita também clarificaram a posição ideológica dos partidos para os eleitores. Ambas as evoluções levaram o PT radical a competir pelo eleitor mediano. Para conquistar o poder governamental, ele teria que abandonar as convocações ao "socialismo", suavizar seu programa e concentrar-se nas promessas de benefícios concretos para os setores mais pobres (28). Essa moderação, que acompanhou a coagulação do sistema partidário do Brasil, finalmente permitiu ao PT conquistar a presidência em 2002. Portanto, instituições sólidas não eram uma "causa sem causa", que levou a esquerda a recuar do socialismo. Em vez disso, o sistema partidário do Brasil variava consideravelmente em força institucional – mais do que o institucionalismo pode aceitar. Sofrendo inicialmente de fraqueza institucional, os partidos dominantes responderam à ameaça da esquerda radical com uma aliança defensiva que conseguiu restaurar a estabilidade econômica e política. Por sua vez, esta rápida consolidação levou a esquerda a aceitar os limites do sistema econômico e político existente e a entrar em competição centrípeta, em vez de seguir com uma estratégia externa de atacar e derrubar a ordem dominante. A mudança na Bolívia de estabilidade e moderação para o radicalismo O fortalecimento do sistema partidário do Brasil faz uma inflexão completa da trajetória particularmente surpreendente da Bolívia e torna este país um exemplo para os argumentos rivais analisados neste artigo. Comumente considerados como "incipientes" (29), os partidos da Bolívia conseguiram, de 1985 a 2000, garantir a governabilidade, mesmo durante um ajuste econômico brutal (30); eles até absorveram novos desafiantes que surgiram com o voto de protesto. Durante esta fase de consolidação temporária, que correu em paralelo à experiência do Brasil, a esquerda boliviana desapareceu ou se tornou moderada. Por que, então, o resultado final foi tão diferente daquele do Brasil? A análise a seguir sugere que a descoberta de enormes reservas de gás natural e a súbita esperança por enormes receitas extraordinárias foram cruciais para estimular o radicalismo esquerdista e minar o controle dos par-

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

71


David Mercado/Reuters

tidos dominantes. Um ataque da maldição de recursos empurrou a Bolívia fora de seu curso rumo à consolidação. Castigados por longos tumultos políticos e conflitos sociais, os partidos da Bolívia no início da década de 1980 mereceram claramente sua classificação como "incipientes". A volatilidade eleitoral era alta, a disciplina organizacional e as raízes na sociedade estavam debilitadas e a fragmentação era pronunciada. A debilidade partidária exacerbou a instabilidade que a Bolívia sofreu após seu retorno tortuoso à democracia em 1982, e ajudou a produzir uma inflação de 25.000% em 1984/85. O país estava prestes a cair no abismo, e a baixa institucionalização partidária era, em grande parte, a responsável. Para evitar um desastre, as forças dominantes milagrosamente fecharam as fileiras, superaram divisões políticas e ódios pessoais existentes e forjaram pactos que restauraram a governabilidade e a autoridade estatal, além de terem facilitado um ataque determinado contra os problemas econômicos. Um plano de choque de estabilização trouxe de volta o equilíbrio econômico (31). O governo de Victor Paz Estenssoro, apoiado por uma coalizão de centro-direita com maioria no Congresso, desarticulou o radicalismo de esquerda e suprimiu protestos. Houve o retorno da calmaria política. Neste contexto, a esquerda que sobreviveu à crise e ao ajuste se tornou moderada. Particularmente, o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR) abandonou a estridência ideológica e transformou-se em um partido que apoia o sistema (32). Para ganhar a presidência na barganha do Congresso – o modo boliviano de escolher um presidente na ausência de uma maioria eleitoral – o líder do MIR Jaime Paz Zamora se aliou ao ex-ditador conservador Hugo Banzer em 1989. Em troca da vaga na presidência, Paz Zamora prometeu continuar com as reformas de mercado (33). Portanto, em resposta à renovada estabilidade econômica e política, a esquerda da Bolívia claramente deixou de ser radical, seguindo o mesmo curso de suas contrapartes no Chile e, posteriormente, no Brasil. A Bolívia não conseguiu alcançar um crescimento econômico elevado. Mas a promulgação da reforma de mercado, as coalizões pragmáticas e oportunistas entre antigos inimigos políticos e a pronunciada moderação

72

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Com a renúncia de Carlos Mesa em meados de 2005, as eleições foram antecipadas e trouxeram o triunfo de Evo Morales, um líder carismático do Movimento ao Socialismo (MAS).

da esquerda não impuseram um custo eleitoral punitivo aos partidos dominantes. Certamente, movimentos de protesto populistas surgiram e ganharam mais de 10% dos votos em 1989 e mais de 25% em 1993. Mas os partidos dominantes reagiram com habilidade e conseguiram reduzir o apelo desses movimentos. Para ganhar em 1993, o ingênuo Gonzalo Sánchez de Lozada, um magnata de sucesso que fala espanhol com sotaque de gringo, nomeou audaciosamente um líder indígena como vice-presidente, angariando o seu apoio em massa. Além disso, ele e seu sucessor agregaram os novos movimentos populistas ao oferecer participação no governo. Abandonando seu status de forasteiro em troca do direito de nomear cargos públicos, esses desafiantes aos partidos dominantes desapareceram rapidamente. A maioria política da Bolívia, portanto, conseguiu um feito extraordinário, a dizer, derrotar concorrentes populistas importantes (34). Partidos que pareciam desesperadamente fracos na década anterior demonstravam agora uma força surpreendente. Um analista perceptivo afirmou na década de 1990: "De acordo com os critérios sugeridos por Scott Mainwaring e Timothy Scully, a Bolívia possui um sistema partidário relativamente bem-institucionalizado (e não o sistema incipiente, volátil que eles alegam que possuem)." (35) Mas assim que os observadores descreveram a Bolívia como um modelo de coalizões partidárias e de um presidencialismo acordado, a recém-encontrada tranquilidade foi desafiada. Ironicamente, esses problemas renovados foram estimulados pelo surpreendente sucesso do neoliberalismo: a descoberta de enormes reservas de gás natural no final da década de 1990. Atraídas pelos termos generosos oferecidos pelos reformadores de mercado, companhias transnacionais investiram enormes quantidades em prospecção e obtiveram sucesso rapidamente (36). De repente, este país desesperadamente pobre tornou-se rico (37). Foi como se a Bolívia tivesse ganhado o prêmio da loteria. Esta enorme renda extraordinária teria afetado o pensamento da população de modo previsível. Por que respeitar os limites enfatizados pelos neoliberais? A nova descoberta de riqueza, uma vez explorada apropriadamente e usada para o benefício do


David Mercado/Reuters

país, permitiria à população satisfazer finalmente as suas necessidades econômicas e sociais que foram longamente negligenciadas. A paciência e o aperto dos cintos, que os bolivianos aceitaram estoicamente por muitos anos, se tornaram insuportáveis agora. Em vez de eficiência e produtividade, os mantras do neoliberalismo, a distribuição generosa tornou-se o ditado do dia. Após anos de calma relativa, a riqueza recém-descoberta estimulou uma onda de demandas, permitiu o surgimento de vários movimentos contenciosos e da esquerda radical. O apoio popular para bloqueios nas ruas, a forma preferida de protesto ilegal, aumentou na Bolívia após a descoberta de reservas de gás e era muito alta em comparação aos outros países latino-americanos (38). A onda resultante de contenção e rebelião, que começou no início de 2000, imediatamente após o aumento comprovado das reservas de gás, certamente tinha outras raízes, tais como mobilização indígena e deficiências estatais ( 3 9 ) . A recessão após 1998 exacerbou a tensão ao impor sacrifícios cuja

aceitação era difícil por causa da nova riqueza do gás. O ex-ditador moribundo Banzer (1997-2001), que compensou sua brutalidade na década de 1970 com indecisão, comprovou-se incapacitado de responder aos movimentos de protestos (40). Após retornar à presidência em 2002, Sánchez de Lozada tentou acalmar a insatisfação popular com programas de benefício social (41), mas o aumento nos gastos agravou a crise fiscal, forçando-o a propor uma nova rodada de ajuste. Em resposta, violentos protestos que eclodiram no início de 2003, e uma outra rebelião no final de 2003, que se concentrou na política neoliberal de exportação de gás do governo, obrigaram o presidente a renunciar. Seu sucessor Carlos Mesa fez concessões aos movimentos populares enquanto salvaguardou os principais interesses dos investidores estrangeiros. Mas essas concessões deixaram todas as partes insatisfeitas, e Mesa foi obrigado a renunciar em meados de 2005. Eleições antecipadas trouxeram o triunfo de Evo Morales, um líder carismático do Movimento ao Socialismo (MAS).

O apoio popular para bloqueios nas ruas, a forma preferida de protesto ilegal, aumentou na Bolívia após a descoberta de grandes reservas de gás, muito maiores em comparação à de outros países da América Latina.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

73


Durante esses anos, a questão do gás natural contribuiu de duas principais maneiras em desacreditar os partidos dominantes e trazer o ressurgimento do radicalismo esquerdista – uma reversão das tendências que prevaleceram de 1985 a 2000. Primeiramente, o regime generoso de investimento com o qual os governos neoliberais atraíram investidores multinacionais e projetaram a descoberta de enormes depósitos de gás na década de 1990, logo parecia uma liquidação não-justificada que permitia às empresas estrangeiras "roubar" a riqueza de recursos naturais do país. Desta forma, o programa eleitoral do MAS em 2002 acusava os partidos dominantes de "traição à pátria" e a "entrega de patrimônio nacional quase gratuitamente à voracidade do capital internacional" (4 2) . Neste contexto, o ganho recém-descoberto foi ameaçado por perda imediata. Como a psicologia cognitiva mostra, o temor de perda pesa nas mentes das pessoas; elas ficam mais determinadas a prevenir a perda do que obter um ganho de magnitude equivalente (43). Esta forte aversão à perda resultou em um criticismo crescente às políticas de gás do governo e estimulou uma explosão de nacionalismo dos recursos naturais. Esses sentimentos encontraram uma receptividade particular na Bolívia porque eles ressoaram com uma prolongada sensação de vitimização. Todos os vizinhos tomaram alguma parte do território nacional, principalmente o Chile que conquistou as províncias litorâneas e negou o acesso ao mar à Bolívia. Nacionalistas também alegaram que, ao longo da história boliviana, estrangeiros exploraram a riqueza de recursos naturais do país, mas deixaram seus habitantes pobres, um padrão que começou há séculos com as minas de prata de Potosí (44). Já que os governos neoliberais seguiam os conceitos de eficiência econômica e buscaram exportar o gás da Bolívia para os EUA pelo Chile, eles incitaram, de forma imprudente, essas duas lembranças de vitimização (45 ) . Portanto, uma profunda aversão à perda e a determinação resultante de defender o novo tesouro dos estrangeiros vorazes despertaram uma resistência furiosa aos planos de desenvolvimento economicamente racionais, mas politicamente suicidas. Em segundo lugar, a recém-descoberta riqueza de recursos naturais estimulou expectativas de enormes ganhos extraordinários (46). Enquanto grandes quantidades de investimentos eram necessárias para desenvolver a indústria do gás, muitos setores populares

74

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

anteciparam as volumosas receitas e as consideravam como uma oportunidade dourada para finalmente satisfazer suas demandas que foram longamente negligenciadas (47). Esta percepção de riquezas iminentes fez com que a ênfase neoliberal em restrições não convencesse. Enquanto os bolivianos demonstraram grande paciência com a estabilização e o ajuste durante as décadas de 1980 e 1990, a partir de 2000 eles passaram a perseguir seus interesses e necessidades com grande vigor. A janela de oportunidade que esperavam abrir com a futura bonança impulsionou uma dinâmica competitiva; muitos setores que-


Celso Junior/AE

riam "colocar seu pé na porta" e reivindicar parte dos ganhos extraordinários - para evitar a perda de outra oportunidade (48). Como testemunhei durante pesquisa de campo em La Paz em meados de 2002 e como a "guerra do gás" no final de 2003 tornou óbvio (49), muitos grupos que protestaram nas ruas somaram a questão do gás às suas demandas específicas; por exemplo, pessoas que se sentiram enganadas pela privatização de pensões em 1997 também atacaram os planos de exportação de gás do governo. A ligação entre essas questões aparentemente sem relação veio da crença de que o uso correto das novas rique-

Em maio de 2006, os presidentes Hugo Chávez, Evo Morales, Nestor Kirchner e Lula se encontraram em Puerto Iguazu, na Argentina, para discutir a nacionalização das empresas de gás e petróleo na Bolívia.

zas da Bolívia poderia finalmente satisfazer a diversas demandas setoriais (50). Em geral, o esperado ganho extraordinário teria provocado uma aceitação ao risco. Visitantes a Las Vegas arriscam avidamente ganhos não auferidos; se um pequeno investimento inicial resulta em uma montanha de fichas, eles estão dispostos a "apostar com o dinheiro da casa" (51). De modo similar, as receitas que eram esperadas da riqueza de gás da Bolívia estimularam ousadia. As pessoas pressionaram por suas demandas com mais vigor e recorreram à contenção violenta, a uma taxa muito mais alta do que em outros países latinoamericanos (52). Movimentos de protesto engajaram-se em "guerras", tais como a "guerra da água" de 2000 e a "guerra do gás" de 2003. O radical MAS de Evo Morales usou esse clima de rebelião para ligar sua principal preocupação inicial, a defesa dos camponeses produtores de coca, a questões nacionais amplas e para dar a essas lutas uma direção mais clara ao conquistar o poder governamental (53). Com esta finalidade, o MAS combinou esforços eleitorais e ação contenciosa nas ruas. Esses protestos e bloqueios de ruas minaram a governabilidade, forçaram a renúncia dos presidentes Sánchez de Lozada e Mesa e abriram caminho para Morales ganhar a presidência. O novo governo mostrou uma aceitação ao risco típica, estimulada pelos esperados ganhos extraordinários (54) que o novo vicepresidente estimou em 80-100 bilhões de dólares para as próximas décadas (55) – dez a doze vezes o PIB da Bolívia! Por meio de uma ocupação militar ostentosa, o presidente Morales "nacionalizou" rapidamente a indústria de gás, prejudicando a relação com o seu maior investidor e comprador, a companhia estatal de petróleo do Brasil. Com ataques à oposição, à mídia e a instituições independentes como o Judiciário, ele fomentou a polarização, como Hugo Chávez. Com uma correnteza de retórica "anti-imperialista", ele pôs sob ameaça o acesso preferencial da Bolívia ao mercado dos EUA e arriscou o sustento de muitos artesãos e empresários informais em El Alto, reduto do MAS (56). Ao ignorar a potencial flutuação das receitas de gás, o governo está se sujeitando a compromissos de gastos permanentes, por meio da extensão de programas sociais, incluindo um subsídio escolar e um plano de saúde "universal". De fato, na campanha para as eleições da Assembléia Constituinte de 2006, Morales fez promessas generosas, como "assistência à saúde livre para todos" (57), que seriam di-

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

75


Como a experiência da Bolívia comprova, a descoberta de enormes depósitos de commodities pode minar um sistema partidário que demonstrava sinais surpreendentes de força. Recursos extraordinários têm prioridade causal para instituições partidárias.

76

fíceis de financiar em quaisquer circunstâncias. Portanto, a iminente bonança induziu o governo a tomar riscos econômicos e políticos significativos, alimentando a radicalização da política boliviana. Em resumo, a recém-descoberta riqueza do gás estimulou o ativismo esquerdista, tornou ilegítimas as restrições defendidas pelo neoliberalismo e minou os partidos políticos dominantes. Como os bolivianos esperavam que seu país se tornasse uma economia rentista e recebesse enormes quantidades de receitas, prudência e moderação deram lugar a demandas para uma transformação fundamental e a uma disposição de usar protesto e contenção para forçar esta ruptura. A experiência da Bolívia e o impressionante contraste em relação ao Brasil mostram como uma mudança em uma riqueza comprovada de recursos naturais pode mudar a direção da trajetória institucional de um país. Expansão e contração de commodities Como corroboram os estudos dos casos do Brasil e da Bolívia, as características institucionais dos sistemas partidários não foram causas decisivas para a ascensão do esquerdismo radical em alguns países e da moderação esquerdista em outros. Em vez disso, as fantásticas receitas de commodities foram mais importantes. Padrões organizacionais são mais flexíveis e abertos a mudanças do que o institucionalismo tende a admitir. Como a experiência da Bolívia comprova, a descoberta de enormes depósitos de commodities pode minar um sistema partidário que demonstrava sinais surpreendentes de força. Recursos extraordinários têm prioridade causal para instituições partidárias. Esta descoberta apoia os argumentos do Estado-rentista (58). Esta explicação sugere que a abordagem desenvolvimentista adotada por Chávez da Venezuela e seus seguidores na Bolívia e no Equador traz grandes riscos e retornos limitados, especialmente a médio e longo prazos. O tendão de Aquiles do modelo rentista é que os booms de matéria-prima eventualmente acabam em contrações. Governos que passaram a aceitar riscos devido às receitas fenomenais não estão preparados para essas quedas. Com o estouro da ilusão de renda ilimitada, a crise é particularmente dura. Governos não gastam as receitas extras só com projetos de investimento ou redução de dívida, como o Chile faz

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

com os rendimentos excedentes do cobre (59). Em vez disso, eles contraem, de forma imprudente, compromissos de gastos duradouros ao usar rendimentos flutuantes de recursos naturais em programas permanentes. Eles estendem os subsídios e os projetos de benefícios sociais cuja continuidade é esperada, exigida e defendida pelos setores favorecidos. O resultado é desordem econômica e política. Com o superaquecimento da economia em expansão e o gasto excessivo do governo, a inflação sobe e prejudica principalmente os pobres, os declarados beneficiários do radicalismo. E quando o governo enfrenta receitas em queda e se sente compelido a abandonar seus compromissos com gastos, podem estourar tumultos, como ocorreu na Venezuela no início de 1989. O recente renascimento do radicalismo esquerdista na América Latina parece, portanto, se sustentar sobre areia movediça. Impulsionada artificialmente pela bonança atual de matéria-prima, sua sustentabilidade é questionável. Enquanto a concentração de poder na Venezuela e seu avanço gradual na Bolívia permitem aos presidentes Chávez e Morales sobreviver ao declínio sócio-econômico, as promessas e as realizações surpreendentemente limitadas do radicalismo esquerdista no front econômico e social podem estar ameaçadas. Qualquer recessão, crise ou estouro deverá provavelmente impor grandes sofrimentos aos setores mais pobres, que dependem dos subsídios e programas sociais que os líderes radicais têm prolongado. Realizações limitadas da esquerda radical O menosprezo às restrições e a tomada de riscos inspirada por rendimentos massivos vindos de recursos naturais limitaram as realizações do esquerdismo radical, mesmo em períodos de expansão. Na Venezuela, a experiência que possui os registros mais antigos, aumentos drásticos em gastos públicos alimentaram a inflação. O confronto político atiçado por Chávez prejudicou o crescimento econômico e a geração de empregos. E a impressionante fraqueza institucional do Estado, que os expurgos ideológicos, a politização populista e o personalismo inexplicável exacerbaram, limitou os retornos sociais dos novos programas políticos. Os esforços de Chávez para traçar uma alternativa "bolivariana" ao neoliberalismo trouxeram resultados tímidos. Como o presidente substituiu habilidade por ativismo polí-


tico, não houve o surgimento de um modelo realista e viável para um novo tipo de economia (60). Em vez de anunciar e seguir um plano de desenvolvimento sistemático, Chávez seguiu uma variedade de iniciativas e promulgou uma série de regulamentos e controles, muitas vezes de forma não transparente, que criaram incerteza entre investidores domésticos e estrangeiros. Controles de preço e de câmbio fracassaram em segurar a inflação e começaram a criar carências. E os aumentos exorbitantes nos gastos do governo, que sustentam o recente período de crescimento, parecem insustentáveis a partir do momento que os preços de petróleo recuarem. Em vez de desenhar um novo plano para o futuro, Chávez reviveu o modelo rentista de petróleo da Venezuela. Em épocas de boom, o Estado venezuelano sempre aumenta seu intervencionismo econômico, cria uma variedade de programas de gastos e segue uma política externa ativista e esquerdista. Durante a bonança da década de 1970, a nêmese de Chávez, Carlos Andrés Pérez (1974-79) nacionalizou a indústria de petróleo, criou enormes empresas estatais, comprou apoio diplomático ao fornecer petróleo barato aos seus vizinhos do Caribe, liderou a luta do Terceiro Mundo por uma Nova Ordem Econômica Internacional - visto como uma grande ameaça pelos países industrializados - e irrompeu uma grande quantidade de retórica esquerdista e nacionalista (61). Ao adotar estratégias de confronto e de retórica beligerante, Chávez pouco contribuiu a esta mistura tradicional. Na verdade, as modificações que ele introduziu tornam suas políticas de desenvolvimento menos sustentáveis economicamente. Chávez priorizou gastos sociais, que fortalece seu apoio político, mas desprezou investimentos econômicos, pelos quais Pérez buscou "semear o petróleo" e promover crescimento sustentável. Até a exploração de petróleo diminuiu consideravelmente, levantando dúvidas sobre a capacidade da Venezuela de manter seus níveis de produção e exportação. E o mais importante, a economia rentista do petróleo não é uma estratégia promissora a longo prazo; estouros ocorrem eventualmente, e eles sempre atingem a Venezuela duramente, como o sofrimento das décadas de 1980 e 1990 demonstra.

As realizações sociais de Chávez também são mais modestas do que a sua retórica sugere. Como observadores simpatizantes admitem (62), a "Revolução Bolivariana" levou seis anos – até o início de 2005 – para alcançar qualquer redução na pobreza e no desemprego em relação a 1999, quando o presidente assumiu o poder. O confronto intenso que Chávez promoveu - e que estimulou uma tentativa de golpe de estado em 2002 e uma ruinosa greve do comércio em 2002/03 - impôs grandes custos ao país, inclusive aos pobres (63). A longa persistência da pobreza e do desemprego é um fracasso impressionante considerando o recente boom dos preços de petróleo, que em ocasiões anteriores produziu melhorias substanciais ao bem-estar popular. Além disso, apesar da retórica anti-neoliberal, as políticas sociais de Chávez projetam características do neoliberalismo. Assim como os programas bem-sucedidos adotados por

Depois de vencer as eleições, Lula da Silva decidiu renunciar ao radicalismo e seguir a política de Fernando Henrique Cardoso.

Rickey Rogers/Reuters

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

77


Chile e Brasil, os projetos de Chávez não possuem cobertura universal, mas têm como alvo os pobres (64) – um princípio essencial da política social neoliberal. Em contraste ao Chile e Brasil, as Misiones de Chávez são altamente politizadas. O governo distribui benefícios de acordo com critérios políticos, como as análises estatísticas confirmam 65). Esta politização, que prioriza pagamentos eleitorais a necessidades sociais na alocação de recursos e que frequentemente produz desperdício e corrupção, concede às políticas sociais de Chávez qualidade significantemente inferior em comparação às suas contrapartes no Brasil e no Chile. Portanto, mesmo no front social, o protótipo do radicalismo esquerdista na América Latina contemporânea não teve um desempenho impressionante. As realizações do esquerdismo moderado O sucesso econômico e social limitado do radicalismo de Chávez e sua sustentabilidade precária fazem com que as realizações lentas e graduais da esquerda moderada e seguidora do mercado sejam comparativamente boas. O crescimento impressionante do Chile e os programas sociais criados ou reforçados pela Concertación, de centro-esquerda, e implementadas por um Estado institucionalmente forte diminuíram a pobreza e a indigência. Enquanto pesquisas sócio-econômicas classificaram 13% da população como extremamente pobre em 1990, este número recuou para 3,2% em 2006; o total de pobres caiu de 38,6% para 13,7% (66). Estas realizações ajudaram milhares de pessoas e parece ser sustentável, baseado na economia sólida, exportações bem-sucedidas e programas sociais institucionalizadas do Chile (67), em vez de um boom de commodities temporário. De fato, apesar da recessão de 1998/99, os dados de 2000 relativos à pobreza e à indigência foram menores que os de 1998, que, por sua vez, vem caindo desde 1996 (68). Este progresso social é resultado da decisão da Concertación de manter o modelo de mercado imposto pela ditadura de Pinochet. Em vez de reverter as reformas neoliberais que criticaram enquanto estiveram na oposição, os novos partidos da situação, de centroesquerda, abraçaram a livre iniciativa, a concorrência e a abertura à economia global. Apesar de serem menos zelosos na privatização, eles diminuíram as tarifas externas ainda mais. Mas eles também buscaram expandir o impressionante sucesso das exportações chi-

78

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

lenas com diversas medidas de correção e apoio ao mercado, tais como assistência aos esforços empresariais em aumentar as vantagens comparativas do Chile, o investimento em pesquisa e desenvolvimento e treinamento no trabalho (69). Eles se despediram de um neoliberalismo rígido ao mesmo tempo em que sustentaram a estrutura básica do sistema de mercado. Esta prudente estratégia resultou em considerável sucesso econômico, social e político. O Brasil obteve realizações similares – apesar de serem de menor magnitude – desde que o centro-esquerda assumiu a presidência no final de 1992, após o impeachment do presidente Collor. O "social-democrata" Fernando Henrique Cardoso, primeiro como o virtual primeiro-ministro sob o mercurial presidente Itamar Franco (1993-94), depois como presidente por dois mandatos (1995-2002), estabeleceu os fundamentos mais importantes para este sucesso, ao restaurar a estabilidade econômica, adotar reformas de mercado pragmáticas e promulgar programas sociais institucionalizadas que distribuíram benefícios não como favores pessoais ou políticos, mas por critérios gerais de pobreza (70). Deste modo, Cardoso eliminou a taxa de inflação que sobrecarregava desproporcionalmente os pobres, criou empregos progressivamente, melhorou os indicadores sociais surpreendentemente sombrios e distribuiu mais capital humano e segurança à renda dos mais pobres. Consequentemente, a pobreza caiu de 35,3% da população em 1993 para 26,7% em 2002 (71). Em relação à estratégia econômica, Cardoso gradualmente promoveu reformas de mercado para dar à economia do Brasil a maior dinâmica já exibida desde a crise da dívida da década de 1980. Uma série de medidas - tais como desregulamentação, privatização de empresas estatais e reforma dos benefícios - seguiu a liberalização comercial decretada pelo presidente Collor em 1990. Deste modo, o Brasil se afastou do pesado intervencionismo estatal, mas com menos dogmatismo neoliberal que a Argentina ou o Peru. Ao alcançar o poder governamental, o presidente Lula da Silva (2003 – presente), cujo socialista Partido dos Trabalhadores atacou ferozmente as cautelosas reformas de mercado de Cardoso, decidiu renunciar ao radicalismo e seguir a política de Cardoso com uma fidelidade surpreendente. O novo presidente comprometeu-se a manter as linhas gerais do modelo de mercado e se absteve de reverter medidas liberalizantes anteriores. Apesar da desaceleração


AFP

na inovação da política social, Lula colheu consideráveis melhorias sócio-econômicas e retornos políticos. A taxa de pobreza, que recuou de 29% em 1996 a 26,7% em 2002, caiu substancialmente para 22,8% em 2005 (72). As realizações do Brasil, entretanto, foram mais limitadas do que as do Chile. Um esmagador ônus tributário - que chega perto de 40% do PIB, segundo alguns cálculos – asfixia o crescimento econômico. Além disso, o Estado brasileiro não possui a solidez institucional alcançada pelo Chile, como o fracasso da primeira iniciativa de Lula, o programa Fome Zero, demonstra. Apesar dessas limitações, a melhoria nas vidas de numerosos pobres parece mais sustentável do que as realizações precárias da Venezuela bolivariana. Conclusões teoréticas Este artigo promove uma nova explicação para a ascensão de dois ramos do esquerdismo na América Latina contemporânea. Os frutos das reformas de mercado e as características do sistema partidário não explicam a moderação esquerdista no Brasil, Chile e Uruguai, e o radicalismo na Venezuela, Bolívia e Equador. As bonanças de recursos de matéria-prima que se acumularam nesses países também foram cruciais. Rendimentos fantásticos de commodities parecem fazer com que a concessão aos limites destacados pelo neoliberalismo seja desnecessária. Ao incitar aceitação ao risco, a receita extraordinária surpreendente estimulou o ativismo e o radicalismo esquerdistas. Em contraste, a ausência de tal receita extraordinária no Brasil e no Uruguai, e a extensão mais limitada e a esterilização institucional no Chile induziram a esquerda nesses países a aceitar o princípio básico da direita - trabalhar dentro dos limites de um sistema econômico e político dominante, e buscar melhorias por meio de uma reforma gradual. Dada a natureza temporária dos booms de commodities, este curso prudente garante uma promessa maior de progresso sustentável do que a ambição da esquerda radical, que eventualmente pode sentir a conhecida "maldição dos recursos de matéria-prima". O argumento desenvolvido neste artigo soma às teorias do Estado-rentista (73). Estas abordagens descrevem a riqueza de recursos de matéria-prima e as receitas resultantes como um amortecedor para as elites dominantes evitarem riscos políticos ao manter o ônus tributário baixo e ao comprar uma

potencial oposição com o direito de nomear cargos públicos (74). Enquanto essa aversão ao risco prevalece em tempos normais, o meu estudo de caso da Bolívia identifica duas situações de transição segundo as quais a riqueza de recursos naturais pode incentivar a aceitação pronunciada ao risco. Primeiro, o regime generoso e liberal de investimentos para companhias multinacionais pode ser visto como uma imposição de custos insustentáveis ao permitir que estrangeiros "roubem" o patrimônio nacional e privem os cidadãos de sua parte na riqueza. Essa sensação de perda pode ocorrer mesmo se os incentivos ao investimento foram decisivos para a descoberta do tesouro. A forte aversão à perda das pessoas resulta em esforços furiosos para a recuperação, que podem ser acompanhados por radicalismo ideológico e contenção violenta. Em segundo lugar, um boom nos preços internacionais pode desatar uma chuva de receitas que as elites e os cidadãos estão dispostos a apostar com este ganho extraordinário. Como a bonança estimula a aceitação ao risco, os governos embarcam em projetos de investimento faraônicos, como a Venezuela fez em meados da década de 1970, ou resultar em compro-

Os frutos das reformas de mercado e as características do sistema partidário não explicam a moderação esquerdista no Brasil, Chile e Uruguai, e o radicalismo na Venezuela, Bolívia e Equador. As bonanças de recursos de matéria-prima que se acumularam nesses países também foram cruciais.

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

79


missos de gastos permanentes ao estender subsídios e programas sociais generosos, como a Venezuela, Bolívia e Equador estão fazendo agora. No front político, eles compram brigas com adversários domésticos e internacionais e não se privam de fazer inimigos. Como booms eventualmente levam a contrações, esta ousadia pode ter um preço oneroso. Ao elucidar o renascimento do radicalismo esquerdista na América Latina, o artigo soma essas perspectivas ao Estado-rentista e à teoria da maldição de recursos naturais. Em um nível mais básico, essas duas novas perspectivas se sustentam nas desobertas cognitivas psicológicas sobre a aversão à perda e a aceitação do risco em uma escolha intertemporal, especialmente a disposição para "apostar com o dinheiro da casa" (75). Portanto, elas possuem uma microfundação firme e científica, que é discutivelmente mais sólida do que os postulados ideal-típicos que sustentam a escolha racional convencional (76). Estes tipos de descobertas têm inspirado a "economia comportamental" que assolou a ciência desoladora nos últimos anos (77). Com esses avanços, as explicações cognitivas para a maldição dos recursos naturais não são necessariamente "ad hoc" e merecem ser levadas mais seriamente do que tem sido sugerido (78).

80

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Notas Gostaria de agradecer a Felipe Agüero, Merilee Grindle, Evelyne Huber, Wendy Hunter, Robert Kaufman, Raúl Madrid, Scott Mainwaring, Richard Snyder e três revisores anônimos pelos comentários excelentes; ao Instituto de Estudos Latino-Americanos Lozano Long da UT e à Andrew W. Mellon Foundation pelo apoio generoso à minha pesquisa de campo. (1) Hector Schamis, "Populism, Socialism, and Democratic

Institutions," Journal of Democracy, 17 (Outubro 2006): 20-34; Kenneth Roberts, "Latin America’s Populist Revival," SAIS Review, 27 (Inverno 2007): 3-15. (2) Franklin Ramírez, "Mucho más que dos Izquierdas," Nueva Sociedad, 205 (Setembro 2006): 30-44. (3) Jorge Castañeda, "Latin America’s Left Turn," Foreign Affaire, 85 (Maio 2006): 28-43; similar Teodoro Petkoff, "Las dos Izquierdas," Nueva Sociedad, 197 (Maio 2005): 114-28. (4) Adam Przeworski, "Institutions Matter?" Government and Opposition 39 (Outono 2004), p. 527-30. (5) Hossein Mahdavy, "The Patterns and Problems of Economic Development in Rentier States," in M. Cook, ed., Studies in the Economic History of the Middle East, 428-67 (London: Oxford University Press, 1970); Hazem Beblawi e Giacomo Luciani, eds. The Rentier State (London: Croom Helm, 1987); Terry Karl, The Paradox of Plenty (Berkeley: University of California Press, 1997); Michael Ross, "The Political Economy of the Resource Curse," World Politics, 51 (Janeiro 1999): 297-322. (6) José Manuel Puente et al., The Political Economy of the Budget Process in the Andean Region (Washington, DC: Banco Interamericano de Desernvolvimento, 2007), Working Paper CS-103; Víctor Salmerón, "El Gasto consume el Ingreso petrolero generado por el Boom," El Universal (22 de maio de 2007). (7) Albert Hirschman, The Rhetoric of Reaction (Cambridge: Harvard University Press, 1991). (8) Rüdiger Dornbusch and Sebastian Edwards, eds., The Macroeconomics of Populism in Latin America (Chicago: University of Chicago Press, 1991). (9) Kurt Weyland, The Politics of Market Reform in Fragile Democracies (Princeton: Princeton University Press, 2002), caps. 5, 6, 8. De modo interessante, esta relutância em adotar ajustes e reformas de mercado rigorosos também resultou parcialmente da riqueza do petróleo, que é enfatizada pela minha explicação para a ascensão do radicalismo esquerdista. (10) Merilee Grindle, "Shadowing the Past?" in Merilee Grindle and Pilar Domingo, eds. Proclaiming Revolution (Cambridge: Rockefeller Center, Harvard University, 2003); Ulrich Goedeking, Politische Eliten und


demokratische Entwicklung in Bolivien 1985-1996 (Münster: LIT Verlag, 2003), p. 206-24. (11) Jorge Lanzaro, "La ‘Tercera Ola’ de las Izquierdas Latinoamericanas," paper for Colloquium on "Amérique Latine: Nouvelles Gauches?" Montréal, 29-30 de março de 2007; Roberts, p.11-12. (12) Przeworski, p. 527-30. (13) Solidez institucional é mais ampla do que o frequentemente utilizado indicador de volatilidade eleitoral, que não considera o papel dos partidos em sustentar governabilidade (por exemplo, através de coalizões). Além disso, a volatilidade aumenta não só quando partidos dominantes perdem votos para desconhecidos, mas também quando eles reconquistam votos desses desafiantes (como ocorreu na Bolívia, em 1997) – um sinal de força. (14) Eduardo Gamarra, "Crafting Political Support for Stabilization," in William Smith, Carlos Acuña e Gamarra, eds., Democracy, Markets, and Structural Reform in Latin America, 104-27 (New Brunswick: Transaction, 1994); René Mayorga, "Bolivia’s Silent Revolution," Journal of Democracy, 8 (Janeiro 1997): 142-56. (15) Entrevista com Hugo Carvajal Donoso, ex-ministro, Movimiento de Izquierda Revolucionaria, La Paz, 26 junho de 2006. (16) Scott Mainwaring e Timothy Scully, "Introduction: Party Systems in Latin America," in Mainwaring and Scully, eds. Building Democratic Institutions (Stanford: Stanford University Press, 1995), p. 17-20. (17) Jonathan Isham, Lant Pritchett, Michael Woolcock e Gwen Busby, "The Varieties of Resource Experience" (Middlebury, VT: Economics Discussion Paper No. 03-08R, 2004), p. 31-32; similar Sheila Gutierrez de Pineres and Michael Ferrantino, "The Commodity Composition of Export Portfolios," Latin American Business Review, 1 (2000), p. 7-10. (18) Karl. (19) Simon Collier e William Sater, A History of Chile, 1808-1994 (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), p. 51-69. (20) José Pablo Arellano, "Del Déficit al Superávit Fiscal," Estudios Públicos, 101 (Verão 2006): 165-86; Ugo Fasano, "Review of the Experience with Oil Stabilization and Savings Funds in Selected Countries" (Washington, DC: IMF, 2000). Working Paper WP/00/112; em geral, Halvor Mehlum, Karl Moene e Ragnar Torvik, "Institutions and the Resource Curse," Economic Journal 116 (Janeiro 2006): 1-20. (21) Alfredo Keller, "Motivación Electoral y Participación Política," in Ricardo Combellas, ed., Gobernabilidad y Sistemas Políticos Latinoamericanos (Caracas: Fundación Konrad Adenauer, 1996); Filemón Escóbar, "Entrevista con Isabel Arauco," in Fernando Calderón, ed., Política y Sociedad en el Espejo (La Paz: PNUD, 2001), p. 78; entrevista com Carvajal. (22) Aníbal Romero, "Rearranging the Deck Chairs on the

Titanic," Latin American Research Review, 32 (1997), p. 19-21. (23) Richard Thaler e Eric Johnson, "Gambling with the House Money and Trying to Break Even," Management Science 36 (Junho 1990): 643-660; Kevin Keasey and Philip Moon, "Gambling with the House Money in Capital Expenditure Decisions," Economic Letters, 50 (Janeiro 1996): 105-10; Lucy Ackert, Narat Charupat, Bryan Church e Richard Deanes, "An Experimental Examination of the House Money Effect in a Multi-Period Setting, Experimental Economics, 9 (Abril 2006): 5-16. (24) Michael Coppedge, "Explaining Democratic Deterioration in Venezuela," in Frances Hagopian and Scott Mainwaring, eds., The Third Wave of Democratization in Latin America, 289-316 (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), p. 307-14. (25) Weyland, Politics of Market Reform, p. 243-50. Já que o livro explica "a tomada de riscos no domínio das perdas" em detalhes, eu não destaquei este outro extremo do ciclo típico de expansão e contração dos Estados-rentistas neste artigo. (26) Schamis, p. 29-31. (27) Wendy Hunter, "The Normalization of an Anomaly," World Politics, 59 (Abril 2007): 440-75. (28) Ibidem. (29) Mainwaring and Scully, p. 17-20. (30) Entrevista com Juan Antonio Morales, ex-presidente do Banco Central (1995-2006), La Paz, 26 de junho de 2006. (31) James Malloy, "Democracy, Economic Crisis, and the Problem of Governance," Studies in Comparative International Development, 26 (Verão 1991): 37-57. (32) Donna Van Cott, From Movements to Parties in Latin America (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), p. 63-64. (33) Entrevista com Carvajal; Grindle, p. 324. (34) Entrevista com Carvajal. (35) Mayorga, p. 153. (36) Annegret Mähler, "Bolivianische Erdgaspolitik im Wandel," Lateinamerika Analysen, 16 (2007), p. 128-32. (37) Em 2001, "os recursos naturais" eram o "motivo de orgulho mais importante para os bolivianos" que os entrevistados mencionaram: Apoyo Opinión y Mercado Bolivia, Opinión Data, 1 (Setembro 2001), p. 4. (38) Mitchell Seligson, The Political Culture of Democracy in Bolivia: 2000 (La Paz: USAID, 2005), p. 176-79. (39) Deborah Yashar, Contesting Citizenship in Latin America (Cambridge: Cambridge University Press, 2005), cap. 5; Van Cott, cap. 3; Scott Mainwaring, "State Deficiencies, Party Competition, and Confidence in Democratic Representation in the Andes," in Mainwaring, Ana Bejarano, and Eduardo Pizarro, eds., The Crisis of Democratic Representation in the Andes (Stanford: Stanford University Press). (40) Entrevista com Hugo San Martín, ex-Secretário de

JANEIRO/FEVEREIRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO

81


Organização (1998), Movimiento Nacionalista Revolucionario, La Paz: 26 de junho de 2006. (41) Eduardo Gamarra, "The Construction of Bolivia’s Multiparty System," in Merilee Grindle e Pilar Domingo, eds. Proclaiming Revolution (Cambridge: Rockefeller Center, Harvard University, 2003), p. 292. (42) Movimiento al Socialismo, Territorio, Soberanía, Vida: Programa de Gobierno (La Paz: MAS, 2002), p. 9; similar Thomas Perreault, "From the Guerra del Agua to the Guerra del Gas," Antipode, 38 (2006), p. 160, 166; Escóbar, p. 78. (43) John Payne, James Bettman e Eric Johnson, "Behavioral Decision Research," Annual Review of Psychology, 43 (1992): 87-131. (44) Movimiento al Socialismo, Nuestros Principios Ideológicos (Oruro: N.p, 2001); Pablo Stefanoni e Hervé do Alto, Evo Morales, de la Coca al Palacio (La Paz: Malatesta, 2006), p. 81. (45) Nancy Postero, "Indigenous Responses to Neoliberalism," Political and Legal Anthropology Review, 28 (May 2005), p. 75; Carlos Domínguez, "Collective Action Frames and Policy Windows" (Oxford: Queen Elizabeth House, 2005), Working Paper Nº. 127, p. 11. (46) Escóbar, p. 78-79. (47) Cf. Antonio Araníbar, "Los Bolivianos, la Democracia y el Cambio Político," paper para a World Association for Public Opinion Research, Primer Congreso Latinoamericano, Colonia del Sacramento, Uruguay, Abril 2007, p. 12-16; George Gray-Molina et al., Informe Nacional sobre Desarrollo Humano 2007 (La Paz: PNUD, 2007), p. 455-56. (48) Cf. Domínguez, p. 9; Roberto Laserna, "El Caudillismo Fragmentado," Nueva Sociedad, 209 (Maio 2007), p. 108-10. (49) Jorge Lazarte, Entre los Espectros del Pasado y las Incertidumbres del Futuro (La Paz: Plural, 2005), p. 445-58. (50) Araníbar, p. 12-16; Alvaro García Linera, "La Lucha por el Poder en Bolivia," in idem et al. Horizontes y Límites del Estado y el Poder (La Paz: Muela del Diablo, 2005), p. 55-57. (51) Thaler e Johnson; Keasey e Moon; Ackert et al. (52) Mitchell Seligson, Daniel Moreno e Vivian Schwarz, Democracy Audit: Bolivia 2004 Report (La Paz: USAID, 2004), p. 74-75. (53) Entrevistas com Filemón Escóbar, principal estrategista do movimento cocalero e do Movimiento al Socialismo (1985-2003), La Paz, 30 de junho de 2006; e com Antonio Peredo, senador do MAS e candidato a vice-presidente em 2002, La Paz, 30 de junho de 2006. (54) Roberto Laserna, "La Fiesta del Rentismo," Pulso, 24 de agosto de 2007. (55) García Linera, p. 51; veja também Movimiento al Socialismo, Programa de Gobierno. 1.4 Sectores de la Matriz Productiva (2006). <www.masbolivia.org/mas/programa/pgsmatrizp.htm>. (56) Entrevista com Escóbar. (57) Movimiento al Socialismo, 10 Propuestas para Refundar

82

DIGESTO ECONÔMICO JANEIRO/FEVEREIRO 2009

Bolivia (La Paz: MAS, 2006), p. 2. (58) Mahdavy; Beblawi e Luciani; Karl; Ross. (59) Arellano, p. 179. (60) Hans-Jürgen Burchardt, "Das soziale Elend des Hugo

Chávez," in Oliver Diehl e Wolfgang Muno, eds. Venezuela unter Chávez (Frankfurt: Vervuert, 2005). (61) "Venezuela: Power from a Barrel," Latin America 8 (10 de maio de 1974): 137-38. (62) Mark Weisbrot, Luis Sandoval e David Resnick, "Poverty Rates in Venezuela," International Journal of Health Services, 36 (2006): 813-23; veja também Thais Maingon, "Caracterización de las Estrategias de la Lucha contra la Pobreza, Venezuela 1999-2005," Fermentum, 16 (Janeiro 2006): 57-99. (63) Javier Corrales, "Hugo Boss," Foreign Policy, 152 (Janeiro 2006), p. 35-37. (64) Neritza Alvarado Chacín, "Populismo, Democracia y Política Social en Venezuela," Fermentum, 15 (Setembro 2005): 305-31. (65) Kirk Hawkins e Guillermo Rosas, "Social Spending in Chávez’s Venezuela," paper para a 77ª Reunião Anual, Southern Political Science Association, Atlanta, GA, 5 de janeiro de 2006; Michael Penfold-Becerra, "Clientelism and Social Funds: Chávez’s ‘Misiones’ Programs in Venezuela" (Caracas: IESA, 2006). (66) Ministerio de Planificación, "Encuesta CASEN revela que la Pobreza en Chile alcanza al 13.7%" (2007) <www.mideplan.cl/final/noticia.php?idnot=1336>. (67) Mauricio Olavarría, Pobreza, Crecimiento Económico y Políticas Sociales (Santiago: Editorial Universitaria, 2005). (68) Ministerio de Planificación, "Encuesta CASEN. Módulo Pobreza" (2006) <www.mideplan.cl/casen/modulo_pobreza.html>. (69) Kurt Weyland, "Economic Policy in Chile's New Democracy," Journal of Interamerican Studies and World Affairs, 41 (Outono 1999): 67-96. (70) Luciana Jaccoud, "Indigência e Pobreza," in Anna Peliano, ed., Desafios e Perspectivas da Política Social, 30-40 (Brasília: IPEA, 2006). (71) Marcelo Neri et al., Poverty, Inequality and Stability (Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, n.d.), p. 3. (72) Ibidem. (73) Ver especialmente Mahdavy; Beblawi e Luciani. (74) Ross, p. 311-13. (75) Ver, respectivamente, Payne, Bettman e Johnson; e Thaler e Johnson 1990, Keasey e Moon 1996 e Ackert et al. (76) Daniel Kahneman e Amos Tversky, eds., Choices, Values, and Frames (Cambridge: Cambridge University Press, 2000). (77) Colin Camerer, George Loewenstein e Matthew Rabin, eds., Advances in Behavioral Economics (Princeton: Princeton University Press, 2004). (78) Ross, p. 309-10.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.