Digesto Econômico nº 453

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Bom pagador ou mau pagador? Você por acaso tem bola de cristal?

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Pablo de Sousa/LUZ

Hora de pensar no futuro do Brasil D

esde a quebra do banco americano Lehman Brothers em setembro do ano passado, que deu início à fase mais aguda da crise financeira, já se passaram nove meses. Agora, os mercados começam a dar sinais de recuperação, o que indica que o pior já passou. O mundo já vivenciou crises mais graves, como a Grande Depressão dos anos de 1930, mas nunca se viu uma crise se alastrar com tanta rapidez e a ação de tamanha articulação global para combatê-la, a um custo não menos extraordinário. Como disse Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI): "O socorro ao setor financeiro foi extremamente generoso e serão os contribuintes quem irão pagar por tudo. A princípio, parece bom, o contribuinte está feliz. Mas ele ainda não viu a conta e, ao vê-la, entrará em estado de choque". Em comparação aos países desenvolvidos, o Brasil sofreu um impacto menor, apesar da retração no PIB por dois trimestres consecutivos, o que nos colocou tecnicamente em recessão. Estávamos com os fundamentos econômicos mais sólidos, mas como bem disse o ex-ministro Pedro Malan, que juntamente com Kenneth Rogoff participou da conferência "A crise econômica mundial e o Brasil", realizada no início de junho em São Paulo, isso não significa que o País fez toda a lição de casa como deveria. Enquanto a arrecadação de impostos vem caindo mês a mês, o governo vem aumentando seus gastos, principalmente nos de custeio e com pessoal, que cresceram 19% e 24%, respectivamente. Nos Estados Unidos, o governo do presidente Barack Obama combate a crise salvando empresas e também incentivando a adoção de soluções baseadas em energias alternativas e mais limpas, que beneficiem o meio ambiente. Percebese um claro objetivo para o futuro. E quanto ao Brasil? O governo tem algum plano para aproveitar este momento de crise para definirmos onde o País quer chegar daqui a alguns anos? Temos planos de médio e longo prazos? Ou a preocupação do governo é apenas a de manter bons resultados momentâneos, visando fazer o sucessor nas eleições do próximo ano? Estas são questões que devemos refletir e debater daqui para frente.

Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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ÍNDICE Luiz Prado/Luz

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O mundo respira aliviado, o pior já passou Cintia Shimokomaki Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br

Luiz Prado/Luz

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Presidente Alencar Burti Superintendente institucional Marcel Domingos Solimeo

O Brasil deve olhar para o futuro Carlos Ossamu

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Crise: o fim já está à vista? Roberto Fendt

ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici

Alex Ribeiro/DC

Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira

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Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Chefia de Reportagem José Maria dos Santos e Arthur Rosa

A novela da tributação dos juros da poupança Roberto Macedo

Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Ilustrações Alfer Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br)

Paulo Pampolin/Hype

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O que precisa ser feito daqui para frente Ian Luder

Impressão Lene Gráfica REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.br

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CAPA Foto: Ann Cutting/Corbis Ilustração: Sakai/CWS/NYT

Scott Olson/AFP


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ALFER

O INPE no século 21: Desafios e Oportunidades Gilberto Câmara

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Brasil, porto seguro para os refugiados Heci Regina Candiani

Divu

lgaç

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Paulo Pampolin/Hype

60 Lula Marques/Folha Imagem

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O livro pouco esclarecedor do refugiado Cesare Battisti Renato Pompeu Andre Dusek/AE

Ganham o trabalhador e o governo Sílvia Pimentel Milton Mansilha/LUZ

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Terceirização: vamos depurar os discursos? Hélio Zylberstajn

A política externa brasileira, de FHC a Lula Amaury de Souza

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Reprodução Kimberly White/Reuters

Todo o poder aos ladrões Olavo de Carvalho

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Reprodução

Por que Chávez está confiscando empresas? Alejandro Penã Esclusa Rodolfo Buhrer/AE

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Sinais positivos na balança comercial do agronegócio Antonio Carlos Lima Nogueira

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Populismo brasileiro: bom para os políticos, ruim para os pobres Augusto Zimmermann

Reprodução

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O Brasil e seu desenvolvimento econômico João Pandiá Calógeras

Abelhas brasileiras nas alturas Adriana David Itamar Miranda/AE

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O mundo respira aliviado, o pior jรก passou

Cintia Shimokomaki

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A sensação de pânico recuou e a economia global começa a dar sinais de recuperação


Luiz Prado/Luz

Kenneth Rogoff: o mundo vive a pior recessão global desde a Segunda Guerra Mundial. Não é a Grande Depressão, mas é algo significativo.

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crise financeira global já chegou ao fundo do poço e a partir de agora espera-se uma lenta retomada, que em um gráfico será parecido com um L, com uma leve inclinação para cima. Mas não está descartada a possibilidade de um W neste gráfico, com uma retomada, seguida de nova queda e outra retomada. Esta é a opinião de Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e professor da Universidade de Harvard, nos EUA, que conta com o aval do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. No último dia 8 de junho, ambos foram palestrantes da conferência "A crise econômica mundial e o Brasil", realizada em São Paulo e promovida pela Associação Comercial de São Paulo, Federação Brasileira de Bancos, Fundação Liberdade e Cidadania, Confederação Nacional das Instituições Financeiras, Mackenzie e FAAP. Rogoff espantou a todos na plateia prevendo que o PIB brasileiro este ano terá uma queda de 2%, previsão mais pessimista que a do FMI, que estimou em -1,3% e recebeu pesadas críticas do presidente Lula por isso. Por outro lado, Rogoff acha que em 2010 o Brasil tem condições de crescer 4% ou até 5%. "O Brasil precisa de urgentes investimentos na infraestrutura. Os impostos recolhidos pelo governo devem retornar nesses investimentos. É a contrapartida do governo na economia", disse. Rogoff é otimista em relação ao futuro. "É muito difícil dizer o que vai acontecer, mas a situação está bem melhor do que antes. Estávamos preocupados em cair de um precipício. Havia uma chance; alguns falavam que a possibilidade era de 5%, outros de 20%, mas o fato é que a chance de ocorrer uma segunda Grande Depressão não era zero. A sensação de pânico recuou e o crescimento global começou a se estabilizar. Os mercados de ações caíram pouco acima de 50%; agora apresentam queda de apenas 30%. Os preços do petróleo não se recuperaram totalmente, mas estão perto do normal", disse. Para o economista, há diferenças de opiniões, alguns acreditam que haverá uma recuperação normal, seguindo o desenho de um "V". Mas outros, como ele, acreditam em uma recuperação mais gradual, em forma de "L". "O que vem ocorrendo em 2009 é bem diferente: temos visto crescimento negativo, algo que nunca vimos antes. Sem a menor dúvida, esta é a pior recessão global desde a Segunda Guerra Mundial. Não é a Grande Depressão, mas é certamente algo significativo", disse. Segundo Rogoff, é preciso uma mudança de


Spencer Platt/AFP

hábitos. "A China cresce, praticamente não consome nada e economiza. Isso mantém as taxas de juros baixas. Por sua vez, os EUA consomem muito. Os chineses trabalham e os norte-americanos fazem compras. Os EUA registram grandes déficits e todo mundo fica feliz. Os mercados emergentes voltarão ao crescimento sustentável. É isso que as autoridades nos grandes países querem", observou. "Podemos voltar a essa dinâmica? O consumidor norte-americano voltará a consumir? Sou cético quanto a isso. Se o consumidor norte-americano não voltar a comprar, quem o substituirá? O consumidor chinês pode, mas não totalmente, e não tão rapidamente. Algo extraordinário aconteceu: a economia norte-americana teve um infarto. Assim como alguém que sobreviveu a um infarto, ela precisa mudar seus hábitos, fazer ajustes", salientou. A situação normal que os EUA tinham antes (os norte-americanos consomem e os asiáticos economizam) levou aos problemas atuais. Se os EUA retornarem à situação anterior, verão os mesmos problemas novamente. O país deveria ter visto que isto estava acontecendo, todas as luzes vermelhas estavam piscando, todas as provas mostravam que os EUA teriam uma crise financeira. "Mas os EUA tinham líderes de torcida, assim como os mercados emergentes quando registram um crescimento expressivo: o secretário do Tesouro e o presidente do Fed estavam em estado de negação. Levando em consideração as crises anteriores, é importante que as autoridades alertem sobre o risco, e não trabalhem apenas para agradar os mercados", disse Rogoff. Para o economista, séculos de crises financeiras nos mostram que elas são parecidas, que existem fatores que são muito comuns. Em todas elas, as autoridades e os investidores dizem para não se preocupar. Ao olhar os números antes desta crise, parecia que a economia teria um infarto. Ao analisar as outras crises desde a Segunda Guerra Mundial (Japão, Finlândia, Espanha, Suécia, Noruega), vimos que os preços de imóveis sobem e, após a crise, caem. Desta vez, não foi diferente: os EUA seguiram o mesmo caminho de uma típica crise financeira profunda. Na sua opinião, é um mito que as economias avançadas não têm crises financeiras. Economias avançadas têm crises bancárias praticamente com a mesma frequência que mercados emergentes. Isso vem ocorrendo há 200 anos. Os preços das ações se recuperam após crises financeiras – não em seis meses, mas geralmente em três anos. Já os preços de imóveis

nunca se recuperam. "Em uma típica crise financeira profunda, os preços de imóveis caem 36%, os preços de ações recuam 56% e o desemprego sobe 7%. Essa situação permanece por um bom tempo", comentou Rogoff. Segundo ele, uma coisa surpreendente é o que ocorre com a dívida. "A dívida pública praticamente duplica nos três anos após uma crise. Os EUA estão perto de chegar a isso. Alguns dos motivos são a queda nas receitas tributárias e o custo para socorrer o setor financeiro". Para o economista, é preciso cautela neste momento. "Vimos uma reação extraordinária às políticas monetária e fiscal. Mas também vimos que as outras crises ocorridas a partir da Segunda Guerra Mundial foram regionais ou em um único país. Esta é a primeira crise global. Nunca vimos nada parecido; portanto, te-

A economia norte-americana teve um infarto. Assim como alguém que sobreviveu a um infarto, ela precisa mudar seus hábitos, fazer ajustes.

Mauricio Lima/AFP

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remos sorte se as coisas se tornarem melhores do que os parâmetros anteriores", alertou. "Vamos supor que seguimos esses parâmetros, o que aparenta ser o caso – o desemprego sobe, mas eventualmente recua; os preços de ações retornam, após alguns anos, ao que eram antes; a produção se recupera. O que nós temos Joe Raedle/AFP

A descoberta de petróleo é algo extraordinário, mas é uma bênção mista. Para ter sucesso, é preciso manter a indústria do petróleo em mãos privadas ou ser administrada o máximo possível pelo setor privado. É só olhar para o México para ver o outro extremo.

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que nos preocupar é com os preços. Os déficits orçamentários são inacreditáveis. As dívidas vêm alcançando níveis que nunca vimos, exceto em guerras. Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA cresceram rapidamente, e não sei se é o caso atualmente. Devido ao maior papel do governo, e a necessidade de aumentar os impostos, eu estou cético se veremos crescimento como aquele nos EUA", disse. Rogoff disse que houve uma mudança política com o presidente Obama, que mostrou interesse no meio ambiente, sistema de saúde e redistribuição de renda. São objetivos louváveis, mas eles não são bons para o crescimento do país. Os EUA teriam um crescimento mais lento, mesmo sem a crise financeira. "Se alguém me perguntasse quatro meses atrás, eu diria que as pessoas na equipe econômica de Obama são muito boas, são meus amigos, e entendem que terão de regulamentar o setor financeiro. Elas continuam sendo muito boas, continuam sendo meus amigos, mas estou preocupado se, já que as coisas parecem estar um pouco melhores, elas dirão que não querem fazer nada para mudar o status quo. Acho isso assustador. O socorro ao setor financeiro foi extremamente generoso.

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Os contribuintes pagam por tudo. A princípio, parece bom; o contribuinte está feliz. Mas ele ainda não viu a conta e, ao vê-la, entrará em estado de choque. Acho que parte do problema é que não foi exigido do setor financeiro que pague mais", criticou. Em relação ao Brasil, Rogoff fez uma previsão pessimista para este ano. "Está claro que 2009 não será um bom ano para o Brasil: haverá crescimento negativo, em torno de -2%. Há uma possibilidade razoável de que o País tenha crescimento normal no próximo ano. Acho que a próxima década será aquela na qual o crescimento do Brasil em relação ao mundo será melhor do que foi nos últimos 20 anos. O crescimento mundial será gradual, mas em qualquer cenário o Brasil terá desempenho melhor. Os EUA tiveram um infarto; o Brasil teve uma recessão normal. O País não desmoronou: os mercados mantiveram a liquidez, as autoridades não entraram em pânico. Isso é promissor a longo prazo", observou. "Conversei com investidores e autoridades ao redor do mundo e todos estão entusiasmados com relação ao Brasil. Ao falar sobre investir no Brasil, quem é especialista, já está aqui. Mas quem não é, pode perguntar: "Quero construir uma fábrica no Brasil, mas posso eventualmente retirar meu dinheiro?" Pode ser uma pergunta ingênua, mas ao passar por experiências como uma crise, é normal", comentou. Para Rogoff, mudanças políticas são necessárias. O aumento do tamanho do Estado é a principal preocupação. Houve um período de boa reforma econômica que precisa ser retomado. "A infraestrutura não é comparável ao crescente papel do Brasil no mundo. Há problemas legais, políticas e ambientais, mas acredito que são algumas questões que precisam ser resolvidas. A descoberta de petróleo é algo extraordinário, mas é uma bênção mista. Para ter sucesso, é preciso manter a indústria do petróleo em mãos privadas ou ser administrada o máximo possível pelo setor privado. É só olhar para o México para ver o outro extremo. A indústria do petróleo brasileira é muito bem administrada segundo padrões internacionais, mas o País está entrando em um novo jogo. Isto é algo que pode energizar a economia como também pode exaurir a energia da economia. Os eco-


Jim Bourg/Reuters

nomistas chamam isso de ‘a maldição do petróleo’", comentou. Se os chineses estão dispostos a continuar escrevendo cheques para os EUA e a emprestar dinheiro a taxas de juros baixíssimas, os norte-americanos poderão fazer isso por um longo período. Mas se as taxas de juros começarem a subir, será doloroso aumentar os impostos. "Por exemplo, a Califórnia. É um Estado rico; como país, seria algo como o quinto maior país do mundo. Mas ele está falido e não consegue pagar suas dívidas porque não quer aumentar os impostos e tampouco cortar gastos. Acho que o governo Obama terá de socorrer a Califórnia do mesmo modo que o FMI ajuda alguns países. A mesma coisa pode acontecer com os EUA. Não é algo inconcebível e os bancos centrais não podem interferir eternamente", afirmou. "Estamos em uma fase de recuperação muito delicada. Se houver um problema na China, ou um problema geopolítico, ou se alguns países europeus entrarem em default, as coisas podem piorar. Acho que o crescimento global está se estabilizando, e um crescimento gradual deve ser retomado. Mas provavelmente não será uma recuperação seguindo um desenho de um "V". Acho que os preços das ações devem se recuperar algum dia, mas não os de imóveis", disse. De acordo com Rogoff, o grande perigo

mundial é que os governos garantiram todos os empréstimos do mundo. "É por isso que as taxas de juros estão no patamar atual. Podemos pagar por isso? Se as taxas de juros permanecerem baixas, podemos continuar pedindo empréstimos. Mas e se as taxas de juros subirem, qual é o plano? Esse é o problema; ainda não está claro o plano para o futuro", observou.

O grande perigo mundial é que os governos garantiram todos os empréstimos do mundo.

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O Brasil deve olhar para o futuro Carlos Ossamu

Luiz Prado/Luz

Pedro Malan: panorama positivo para o Brasil a partir de 2010.

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Rafael Hupsel/Folha Imagem

m sua palestra no evento, o ex-presidente do Banco Central (1993-1994) e ex-ministro da Fazenda (1995-2002) Pedro Malan traçou um panorama positivo para o Brasil a partir de 2010, caso nada de extraordinário ocorra daqui para frente. Quem esperava algum tipo de previsão de sua parte se decepcionou. Para o ex-ministro, se o PIB este ano irá cair 2%, como estimou Kenneth Rogoff, ou será zero, pouco importa agora. O que interessa é que o terceiro e o quarto trimestres serão de crescimento. "No Brasil, não tivemos os problemas sérios que levaram os países desenvolvidos à recessão. Não temos problemas graves em nossas contas externas que exijam dramáticos ajustes de curto prazo; não temos bolhas imobiliárias e crises de crédito derivadas de empréstimos de alto risco a famílias e empresas sem condições de pagálos; não temos, de forma complacente, a percepção de que basta o Banco Central reduzir os juros nominais para evitar qualquer crise; e por fim, resolvemos os problemas de solvência no setor financeiro há mais de uma década, com o Proer", observou. Mas isso não significa que o País está fazendo toda a lição de casa da forma que deveria. Segundo Malan, nos anos anteriores o Brasil teve um grande aumento na arrecadação de impostos, que permitiu um extraordinário aumento nos gastos públicos, principalmente gastos de custeio. "Este ano, no primeiro quadrimestre, a receita caiu e os gastos de custeio aumentaram Leonardo Rodrigues/Hype

O Brasil e o mundo vivem o fim das consequências de um extraordinário ciclo de expansão da economia mundial. Foi o ciclo mais longo, o mais intenso da história moderna.

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Amit Dave/Reuters

Yuriko Nakao/Reuters

19%; gastos com pessoal cresceram 24%. É uma situação insustentável. Este fato deveria fazer parte da discussão da crise, pois irá gerar problemas a médio e longo prazos", ressaltou Logo no início, Malan fez questão de ressaltar que o pior da crise já passou, que o mundo chegou ao fundo do poço e que daqui para frente a tendência é de retomada da economia. "Estamos vivendo hoje, o Brasil e o mundo, o fim das consequências de um extraordinário ciclo de expansão da economia mundial. Foi o ciclo mais longo, o mais intenso e o mais amplamente disseminado da história moderna. Este ciclo teve o seu auge no quinquênio que vai de meados de 2003 ao terceiro trimestre de 2007 e foi necessário um ano, até setembro ou outubro de 2008, para que fossem sepultadas de vez as ideias de descolamento, seja do setor real, seja do mundo dos emergentes, da crise que afetou o mercado financeiro dos países desenvolvidos. E nós estamos, desde então, na mais grave recessão desde os anos 30, sincronizada, que o mundo experimentou nos últimos 80 anos", disse. "Mas nós queremos olhar para frente, onde estamos hoje e para onde vamos ou podemos ir a partir de 2010 e adiante. E uma coisa que eu aprendi é que tanto na vida de pessoas, de empresas, de governo ou países, é fundamental a capacidade de resposta a determinadas dificuldades, de fazer uma avaliação dos desafios, riscos e oportunidades que a superação da crise sempre gera e que dependem muito da qualidade da compreensão dos processos pelos quais nós chegamos à situação atual". Como tudo em economia, nada ocorre de repente, sempre há um processo em curso. No

Leonardo Rodrigues/e-Sim

caso da crise atual, o pano de fundo começou a ser desenhado há mais de uma década. "Nós tivemos, no início dos anos 90, eventos que configuraram uma nova etapa e que estiveram na raiz deste ciclo extraordinário de expansão – o colapso do império soviético e a sua fragmentação em mais de duas dezenas de países soberanos, hoje membros do FMI e do Banco Mundial; já era claro nesta época que a China iria se transformar em uma potência, não apenas regional, mas global pela dimensão da sua economia, com as reformas de Deng Shiao Ping desde 1978-79; a Índia já tinha iniciado suas reformas de facilitação de investimentos privados na economia; mais de 20 países em desenvolvimento haviam restabelecido relacionamentos com a comunidade financeira internacional, renegociando suas dívidas, tanto no setor oficial, no âmbito do Clube de Paris, quanto no setor privado. Os europeus haviam definido com muita clareza um cronograma para o lançamento do euro; e os EUA, no início dos anos 90, pela primeira vez, desde a 1ª Guerra Mundial, se transformaram num devedor líquido. Em outras palavras: os ativos de propriedade de residentes no exterior na economia americana passaram a exceder os ativos de norte-americanos no resto do mundo e desde então os EUA tiveram déficit em conta corrente, que foi aumentando desde então". Segundo o ex-ministro, os EUA se tornaram consumidor e tomador de empréstimos de última instância na economia internacional, juntamente com Inglaterra, Espanha, Austrália, Itália e outros países desenvolvidos. Antes, esse papel cabia a países em desenvolvimento, como México, Brasil, Argentina, Turquia, Ni-

Anos 90: a Índia já havia feito reformas para facilitar investimentos privados na economia, era claro que a China seria uma grande potência e uma revolução tecnológica começava com a internet e a popularização do computador.

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géria etc. "Esse processo todo representou uma enorme redução de aversão ao risco na economia mundial", disse Malan, que exemplificou. "O investimento estrangeiro direto fora dos países do G7 em 1992 foi o dobro de 1990; em 94 foi o dobro de 92, em 96 foi o dobro de 94; e em 98 caminhava, a julgar pelos oito meses de 97, se não tivesse havido a crise da Ásia, para ser o dobro de 1996". Essa dramática redução de aversão ao risco proporcionou novas oportunidades de investimentos e uma extraordinária transição demográfica, que fez com que meio bilhão de pessoas se transferissem do meio rural para o setor urbano e se integrassem na economia global, como trabalhadores urbanos e consumidores. "Não é preciso muito esforço para entender o que isso significa em termos de demanda por alimentação, minerais, energia, por investimento em capital social urbano, infraestrutura etc. e que ainda está em curso". Para Malan, também como pano de fundo, houve uma revolução tecnológica que permitiu não só redução de custos de transações financeiras e comerciais, mas o acesso instantâneo a informações do que estava ocorrendo no resto do mundo e uma revolução sobre expectativas, porque permitiu que milhões de pessoas tomassem conhecimento de padrões de consumo, estilo de vida, níveis de renda e riqueza vividos por pessoas, em outras partes do mundo. Isso foi um enorme estímulo ao aumento do consumo no planeta. O efeito foi extraordinário e levou a quatro grandes complacências, mencionadas por Rogoff como "arrogâncias". "A primeira foi o desequilíbrio com a balança de pagamento em conta corrente. As pessoas diziam: qual é o problema se são os EUA, a Inglaterra, a Espanha, a França, a Itália, a Austrália que são os grandes deficitários, que estão gastando em consumo mais do que suas capacidades domésticas de produção e se financiando com o superávit de países como China, Japão, Alemanha, Rússia, Noruega (exportadora de petróleo), Arábia Saudita, Holanda, Suíça ou países que tinham grandes superávits na balança de pagamentos e estavam financiando os déficits?", perguntou Malan. "Eu ouço com frequência que os melhores economistas do mundo não perceberam o que estava acontecendo. Não é verdade. O Kenneth Rogoff há muitos anos escreveu uma das melhores séries de artigos sobre as dificuldades de sustentação desse padrão de desbalanceamentos globais e mostrando claramente que isso teria de significar, em algum momen-

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O investimento estrangeiro direto fora dos países do G7 em 1992 foi o dobro de 1990; em 94 foi o dobro de 92, em 96 foi o dobro de 94; e em 98 caminhava, a julgar pelos oito meses de 97, se não tivesse havido a crise da Ásia, para ser o dobro de 1996.

Nelson Antoine/AE

to, uma redução do dispêndio norte-americano em consumo, em investimento em relação à sua capacidade doméstica de produção e uma desvalorização do dólar em relação a outras moedas. A expectativa era que esse processo pudesse ser ordenado". Apesar dos avisos, Malan disse que os alertas não foram ouvidos. "Muitos economistas diziam que era uma preocupação irrelevante – qual era o problema se o resto do mundo estava querendo comprar ativos dos EUA? Era o maior mercado de capitais do mundo, o mais líquido, o mais profundo, governos responsáveis, com credibilidade, instituições sólidas e capacidade de emitir instrumentos de dívidas denominados em sua própria moeda e serem aceitos pelo resto do mundo. Eu participei de inúmeros debates em que as pessoas diziam que o relevante era a relação déficit em conta corrente com total dos ativos de um país – os EUA têm 60 trilhões de dólares de ativo. Qual o problema de ter 6% de déficit na balança de pagamento em conta corrente se isso, como porcentagem de ativos, é pouco mais de 1%?", perguntavam. A segunda complacência mencionada por Malan foi a questão dos empréstimos imobiliários. Os especialistas estavam discutindo is-


Antonio Ledes/AE

Muitos economistas diziam que era uma preocupação irrelevante – qual era o problema se o resto do mundo estava querendo comprar ativos dos EUA?

so há algum tempo, mas houve uma complacência derivada da crise da associação de poupança e empréstimos décadas antes, que foi resolvida por um custo de 150 bilhões de dólares, mas foi uma crise restrita a uma classe de ativos imobiliários. Houve a criação de uma resolução, a liquidação de várias associações e muitos acharam que, o máximo que podia acontecer da crise do subprime era uma nova resolução, sem nenhuma implicação sistêmica importante. Mas isso foi discutido, pois os preços explodiram, entre 2000 e o seu pico em junho de 2006. Na opinião do ex-ministro, a terceira grande complacência teve a ver com o Fed, o banco central dos EUA, e a ideia que ele sempre estaria ali como o sétimo regimento de cavalaria, como nos filmes de western, para chegar no momento certo e salvar os colonos, cercados pelos índios, porque era isso que tinha acontecido no passado. Em 1987, em 1998, em 2001, em todas estas ocasiões, sempre que houve dúvidas sérias sobre implicações sistêmicas; o Fed reduziu, nas três ocasiões, em menos de seis semanas, as taxas de juros e gradualmente a situação se normalizou. "Havia sempre a arrogância, a complacência, de que o Fed sempre estaria atento e a qualquer momento daria início a uma dramática redução das taxas de juros, que faria com que a situação voltasse ao normal. Tanto que em setembro de 2007, quando o Fed deu início à redução dos 5,25%, as bolsas americanas chegaram ao mais alto nível da sua história – foi em outubro de 2007. Essa complacência também foi muito discutida", disse. "A quarta complacência, e essa pegou pesado, não foi discutida e não foi entendida em prazo hábil. Foi o fracasso e a falência do sis-

tema de supervisão e regulação bancária e nãobancária, de sistema sombra de bancos. Aqui houve culpas de governos de países desenvolvidos, que descobriram atrasados a ineficiência dos seus sistemas de regulação e supervisão de instituições financeiras, que haviam falhado em detectar problemas sérios de riscos sistêmicos; além da culpa, obviamente, do sistema financeiro privado. Isso não foi claramente percebido, foi se revelando aos poucos, demorou um ano, de agosto de 2007 a setembro de 2008 para que se desse conta do desastre que tinha sido e como isso afetaria o setor real em 2008, continuando em 2009, que é o ano de uma grande recessão", salientou. Porém, estas quatro complacências não se aplicam ao Brasil. "Nós temos nossas complacências, mas não são exatamente estas. Estamos em meados de 2009 e temos aqui 15 anos de inflação civilizada desde o lançamento do (Plano) Real; temos 15 anos de um banco central com autonomia operacional desde agosto de 1993, graças ao presidente Fernando Henrique Cardoso, e mantida pelo atual governo; temos 15 anos do restabelecimento do nosso relacionamento com a comunidade financeira internacional, com as renegociações das dívidas externas com setores privado e público; temos mais de 15 anos do início de um processo de privatização; temos mais de 15 anos do início da abertura da economia brasileira nas dimensões comercial, financeira e de investimento direto. Isso significou que nos últimos 15 anos, mais de 300 bilhões de dólares entraram no Brasil em forma de capital de risco, investimento estrangeiro direto, que eu interpreto como confiança no País e em seu futuro. Temos 12 anos de resolução de nossos problemas de solvência e liquidez do sistema bancário brasileiro, público e privado. Nós tínhamos três dúzias de bancos públicos comerciais, hoje temos meia dúzia. Nós reduzimos consideravelmente o número de instituições que não tinham condições de sobreviver em período de estabilidade de preço. Nós reestruturamos, há mais de 12 anos, as dívidas de 25 Estados e de 180 municípios para com a União, assegurando uma solvência fiscal que eles detêm até hoje – e isso não é um fato irrelevante. Nós temos nove anos e meio de um sistema de taxa de câmbio flutuante, temos nove anos de um regime monetário com metas de inflação, temos nove anos da aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, que introduziu uma nova base de um regime fiscal no País, e temos mais de oito anos do início do sistema de transferência direta de renda para a população mais pobre", observou.

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Colaborou o fato de o governo Lula ter dado continuidade às políticas econômicas implantadas por Fernando Henrique Cardoso, sem grandes experimentos heterodoxos.

Estes eventos todos, junto com o contexto internacional extraordinariamente favorável que marcou o quinquênio 2003-2007, beneficiou muitos países no mundo, e em particular o Brasil. Colaborou, segundo Malan, o fato de o governo Lula ter dado continuidade às políticas econômicas implantadas por Fernando Henrique Cardoso, sem grandes experimentos heterodoxos e sem rupturas. "O Brasil se beneficiou enormemente deste conjunto. Não é por acaso que geramos superávits comerciais de 190 bilhões de dólares entre 2003-2007, que tivemos superávits na balança de pagamentos em conta corrente em cada um desses cinco anos, que acumulamos quase 200 bilhões de reservas internacionais nesse período, não é por acaso que o Brasil passou a ser visto como um país confiável, mais previsível, como um país menos propenso a grandes experimentos heterodoxos de reinvenções da roda, o que nos beneficia enormemente. Nós não tivemos as quatro complacências que o mundo desenvolvido teve. Nós não tivemos a complacência de problemas insustentáveis de desequilíbrio na balança de pagamento. Acho que temos uma balança de pagamento razoável, considerando a parte comercial – conta corrente e a atratividade que o país ainda exerce sobre investimento estrangeiro

direto Não temos problemas de empréstimos excessivos para quem não tem condições de pagar, como foi o caso dos subprimes norteamericanos; não temos a expectativa de que basta o Banco Central reduzir a taxa de juros para resolver qualquer problema macroeconômico; e não temos problemas de regulação e supervisão bancária – nós mudamos este sistema quando resolvemos a crise financeira em meados dos anos 90". Claro que há algumas críticas que Malan faz em relação à condução da crise. "Temos alguns tipos de complacência, uma é na área fiscal, onde residem, a meu ver, os grandes desafios a serem debatidos mais amplamente. Não é correto, ao meu juízo, a visão de que, como os EUA vão ter um déficit fiscal de 12% ou 13% do PIB este ano, de que não há problema nenhum de outros países terem déficits fiscais de 4% a 6% do PIB, pois se o mundo desenvolvido está realizando políticas kenesianas de caráter contracíclico, por que o Brasil não pode e não deve fazê-lo também?", perguntou. "A resposta é pode e deve, é um papel que o governo deve desempenhar, mas isso seguramente não é a criação de gastos permanentes e recorrentes que se projeta por décadas adiante. A ideia de gastos contracíclicos, kenesianos, são gastos transitórios para lidar com a retração da demanda privada, e o setor público transitoriamente aumenta seus gastos, de preferência em investimento, em infraestrutura – temos deficiências nesta área, que comprometerão o crescimento futuro ; nós não deveríamos desperdiçar a oportunidade de uma crise para avançar o mais rapidamente numa área onde os investimentos públicos na área federal é pouco mais de 1% do PIB, uma quantia irrisória em comparação às necessidades do País. Outra complacência é a ideia de que o crescimento de longo prazo de um pais como o Brasil depende fundamentalmente da capacidade que os governos tenham de atrair e estimular investimentos privados, nacional e internacional, para as inúmeras oportunidades de investimentos que possuímos. "Uma complacência gravíssima é em relação à educação. A Coreia, que tinha uma renda per capita metade da brasileira em 1960, hoje é três vezes superior a nossa., Lá, todo trabalhador, na faixa etária de 20 a 35 anos tem pelo menos o ensino secundário completo, quando não em curso universitário. Os nossos números não são nada animadores em comparação a outros países com os quais competimos", disse. "Olhando para o futu-

Dida Sampaio/AE

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Roberto Jayme/Reuters

ro, acompanho, por dever de ofício, os processos de transformações pelas quais o Brasil vem passando ao longo de décadas e acho que as mudanças não são para pior, elas têm sido para melhor e eu tenho a tendência de olhar mais o filme do que a fotografia do momento. E o filme vem se desenvolvendo na direção correta, embora por vezes em algumas áreas, em um ritmo exasperadamente lento, mas é na direção correta". Para Malan, se o Brasil souber aproveitar as oportunidades, o futuro será promissor. "Os economistas geralmente não dão importância à demografia, mas deveriam. A humanidade demorou milhares de anos para chegar a 1 bilhão de pessoas, em 1800, mais ou menos, 300 milhões só na China, naquela época; demorou mais 100 anos para chegar a 1,6 bilhão, em 1900; mais 50 anos a chegar 2,5 bilhões, em 1950; e em apenas 50 anos, que não é nada em termos de história mundial, passou de 2,5 bilhões para 6 bilhões. E chegaremos a 7,1 bilhões em 2015, e 97% deste 1,5 bilhão ocorrerão nos países em desenvolvimento. Isso significa que após a crise ser superada, continuará a haver um enorme aumento na demanda por pro-

dutos em que o Brasil tem competitividade, no agronegócio, na área mineral, somos competitivos em alguma áreas da indústria, em algumas áreas de serviço, não apenas financeiro, mas de construção e engenharia. Acho que o Brasil deveria estar olhando esta crise e a sua superação, não apenas para mitigar seus efeitos, mas também aproveitar esta oportunidade para tomar uma visão ampla do futuro que almeja para si e para os seus", comentou. "No que diz respeito à crise, concordo com a opinião do Kenneth Rogoff, ela será superada, embora a um custo monumental, que apenas será visível a partir de 2010, 2011. Esperemos que ela seja esquecida daqui a 15 ou 20 anos, que não fique registrada na memória como a crise de 1930, até que venha uma próxima, que é da natureza humana se deixar levar por ondas de ganância, exuberância, medo – há 300 anos de história sobre esta questão". Para concluir, o ex-ministro citou o naturalista Charles Darwin, em A Origem das Espécies. "Os que sobrevivem não são os mais fortes, são os que têm maior capacidade de adaptação e flexibilidade para se adaptar – espero que nós tenhamos".

Este ano, no primeiro quadrimestre, a receita caiu e os gastos de custeio aumentaram 19%; gastos com pessoal cresceram 24%. É uma situação insustentável. Este fato deveria fazer parte da discussão da crise, pois irá gerar problemas a médio e longo prazos.

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Crise: o fim já está à vista? Scott Olson/AFP

As bolsas de valores da América Latina apresentaram expressiva valorização, da ordem de 40% a partir de março.

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Divulgação

Roberto Fendt Economista e colaborador regular do jornal Diário do Comércio

Shannon Stapleton/Reuters

A quebra do banco Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, deu início à fase mais aguda da crise global.

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aira no ar a ideia de que já passamos pelo fundo da crise e que, daqui para frente, estamos a caminho de retomar o nível de atividade que prevalecia antes da eclosão da crise. Uma indicação importante nesse sentido foi divulgada no último dia 9 de junho. O Departamento do Tesouro dos EUA autorizou os bancos Goldman Sachs, JP Morgan e outros oito grandes bancos americanos a iniciar o repagamento dos empréstimos tomados junto ao Tesouro no âmbito do chamado programa TARP

(Troubled Asset Relief Program). Como se recorda, esse programa do governo americano consistiu na compra de ativos e ações de instituições financeiras para fortalecer os balanços das instituições, consistindo do principal elemento do elenco de medidas adotadas nos EUA no ano passado para enfrentar a crise do chamado subprime. Com isso, espera-se que cerca de 68 bilhões de dólares de recursos do contribuinte americano retornem ao Tesouro, recursos que serão retirados de circulação e deixarão de pressionar tanto o

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endividamento americano como os gastos. Outras indicações do fim da crise já teriam surgido, incluindo o retorno de capitais de risco ao País, depois da debandada que ocorreu após a quebra do banco Lehman Brothers, em 15 de setembro passado. Os resultados desse enorme influxo de recursos já se fizeram sentir. As bolsas de valores da América Latina apresentaram expressiva valorização, da ordem de 40% a partir de março. Comparado com os níveis historicamente baixos observados em novembro último, a recuperação é da ordem de 70%. Nessa ocasião, a fuga de capitais motivada pelo contágio das diversas bolsas mundiais havia afugentado o capital da região, provocando as quedas históricas mencionadas. Embora os índices ainda não tenham voltado aos níveis pré-15 de setembro, uma parcela substancial das perdas no último trimestre do ano já foi recuperada. A contrapartida desse ingresso de capitais direcionado para o mercado de capitais e renda fixa brasileiro é a também expressiva valorização do real, a ponto de começar a ameaçar a rentabilidade das exportações. O real havia se desvalorizado e atingido seu valor mais baixo no início de março; a partir de então, o real tem se valorizado e pela primeira vez desde outubro do ano passado caiu abaixo de 2 reais por dólar. Esse patamar tem sido sustentado por intervenções do Banco Central na ponta compradora. Recorde-se que o real havia se desvalorizado mais de 30% nos últimos cinco meses de 2008. Fenômeno semelhante ocorreu também com o peso mexicano. O ponto de maior desvalorização ocorreu também em março; a partir daí a moeda mexicana valorizou-se, a despeito da queda da receita de turismo motivada pela "gripe suína" que assolou o país. Contudo, algumas dúvidas ainda persistem com relação ao desempenho econômico mexicano, dada a dependência de 80% das exportações do país para o mercado norte-americano. Considerado também o desempenho positivo de países como o Peru e o Chile diante da gravidade do choque externo, é hoje corrente a expectativa de que os principais países da América Latina – excluída a Argentina – teriam ultrapassado o estágio de colapso financeiro, a exemplo do ocorrido em outros episódios de crise de menor intensidade no passado.

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Um último ponto é relevante, nesse contexto. Os dados relativos ao comportamento do Produto Interno Brasileiro no primeiro trimestre deste ano vieram melhores que as expectativas do mercado e do próprio governo, que esperava uma queda de 2,4%. Esse resultado reforça a tese daqueles que acreditam que o PIB poderá fechar o ano próximo de zero, talvez do lado positivo – em lugar de fechar negativamente, conforme era a expectativa unânime dos analistas econômicos no início do ano. Devemos concluir dessas observações que a crise ficou para trás? Creio que é ainda cedo para conclusões desse tipo. Logo que a crise se instalou, e antes que se percebesse sua extensão e profundidade, esperava-se uma retração em formato de "V", isto é, uma queda acentuada, seguida de uma rápida recuperação. A partir de dezembro, a discussão sobre o formato da recessão havia mudado para um formato em "L", indicando uma queda grande em um curto lapso de tempo, o último trimestre de 2008, seguida de um longo período de permanência do PIB em torno de um patamar muito inferior ao que se observava até o final de 2007 no mundo desenvolvido, e até o segundo trimestre de 2008, no Brasil. A rápida aceitação desse formato deveu-se à intensidade do choque e à análise de Nouriel Roubini, que havia se notabilizado por antecipar com grande antecedência a natureza e profundidade da crise. A forte atuação das autoridades monetária e fiscal, principalmente nos EUA e na China, mostrou que era possível estancar o agravamento da recessão – deixando-se para depois a discussão dos custos das medidas tomadas e de seus possíveis efeitos colaterais. A tendência da discussão hoje é de adotar-se uma visão cautelosa a respeito dos desdobramentos das medidas tomadas até aqui e de como se comportarão os PIBs dos países desenvolvidos e dos emergentes, nós aí incluídos. Fala-se agora na possibilidade de uma recessão em novo formato, em "W": a queda da atividade econômica e sua parcial recuperação neste primeiro semestre poderiam vir seguidas de uma nova etapa recessiva, no segundo semestre do ano. Essa possibilidade decorre da ainda incerta situação internacional. Decorre também da expressiva queda no


investimento, recorde desde que a série do investimento trimestral passou a ser estimada pelo IBGE, há 13 anos. A queda foi de 12,6% relativamente ao trimestre anterior e, pior ainda, de 14% frente ao mesmo trimestre de 2008. Sem a recuperação do investimento é até possível um crescimento transitório, com a indústria ocupando a capacidade ociosa gerada no auge da crise. Mas não garante uma retomada sustentável do crescimento. É também de se ressaltar que os postos de trabalho na indústria não mostraram ainda sinal de recuperação. Em conclusão, é possível apontar que o pior já passou, especialmente o estado de

É possível apontar que o pior já passou, especialmente o estado de pânico que se abateu sobre as economias.

Divulgação - Manoel Souza/Codesp

pânico que se abateu sobre as economias mundial e brasileira. Isso certamente já ficou para trás; e seria mais relevante discutir os efeitos colaterais futuros das medidas contracíclicas tomadas, novamente, no mundo e no Brasil. Ocorre que ainda não temos elementos para concluir que não possamos ter uma nova desaceleração mais à frente. Os efeitos colaterais mais importantes estão relacionados com a queda do superávit primário da União no primeiro trimestre. Esse superávit, indispensável para assegurar a solvência das contas públicas do governo federal, mostrou-se inferior ao esforço fiscal

realizado pelos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, junto com os resultados fiscais das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. A queda do superávit primário da União tem dois claros componentes: a queda da receita tributária, em razão da recessão, e da grande renúncia fiscal para socorrer setores industriais mais duramente atingidos pela crise; e o aumento das despesas correntes do governo central, quer com pessoal e encargos, quer com outras despesas correntes. O desafio, portanto, é retomar o crescimento de forma sustentada, com a inflação estável e cadente – nosso desafio permanente.

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Alex Ribeiro/DC

A novela da tributação dos juros da poupança


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ssa tributação da caderneta de poupança tem um quê de novela, pois está no ar há meses, envolve personagens com as mais variadas motivações, tem um enredo tortuoso, e não há um fim à vista. Especula-se também sobre a possibilidade de uma nova linha para o enredo, na qual entraria uma redução do Imposto de Renda (IR) incidente sobre os rendimentos dos fundos de renda fixa, que disputam com a poupança as preferências da audiência de investidores. Recorde-se que depois de procrastinar uma decisão quanto ao assunto, o governo federal anunciou em meados de maio a primeira iniciativa diante do seu temor de que novas quedas da taxa básica de juros, a Selic, levariam investidores de fundos de renda fixa a fugir para as cadernetas de poupança. Fariam isso porque a comparação entre os rendimentos da poupança e dos fundos, descontados dos ganhos destes as taxas de administração e o IR, se revelaria claramente favorável à poupança. Isto, a partir de um "determinado valor" da Selic, em cuja queda o mercado financeiro vinha apostando, pelo menos até a reunião do Copom com encerramento marcado para o dia 10/6/09, cujo resultado não era de nosso conhecimento quando este artigo foi concluído. As aspas em "determinado valor" se justificam porque não se sabe bem que valor da Selic levaria à fuga para a poupança. Ao lado das dificuldades de prever a reação dos investidores, a comparação de remunerações não é simples, pois envolve as taxas brutas de remuneração das duas aplicações, as taxas de administração dos fundos e o IR cobrado em cada caso, que a partir de 2009 também envolverá o da poupança. Isto, se a proposta do governo seguir para o Congresso, e ali for aprovada na sua forma atual. Em princípio, a comparação caberia a cada aplicação nos fundos, levando-se também em conta que a tributação pelo IR tem alíquotas que dependem do prazo da aplicação. Outra razão pela qual o mercado financeiro apostava em nova queda da Selic na citada reunião do Copom, era a de que o próprio crupiê desse jogo, o Banco Central, vinha distribuindo dicas na mesma direção. Para quem quiser conferir as previsões do mercado, um levantamento publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 6/6/09, mostrava que consultados analistas representando 60 instituições financeiras, 41 apostaram numa redução de 0,75 ponto percentual, 16 numa de 1 ponto, e apenas 3 cravaram a de 0,5 ponto.

Newton Santos/Hype

O que move o investidor? Esse temor de fuga dos fundos para a poupança pressupõe que os investidores são racionais, buscam o maior ganho, dispõem de todas as informações sobre suas aplicações e sabem fazer os cálculos. É a visão dominante no ensino de Finanças, crescentemente contraditada por outra, que agrega elementos da Psicologia no seu estudo do comportamento humano, e é conhecida como Finanças Comportamentais. Esta diz que o ser humano muitas vezes não age racionalmente, entre outras razões porque se acomoda no que faz, não busca informações e procrastina decisões. As duas visões não são excludentes, pois podem se aplicar a diferentes grupos de investidores. De qualquer forma, algumas observações sugerem que essa outra visão também merece atenção dos que seguem o assunto. Assim, por muito tempo no passado a remuneração líquida dos fundos de renda fixa foi claramente su-

Roberto Macedo Economista (USP e Harvard), professor associado da Faap e vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo.

Newton Santos/Hype

perior à da poupança e não houve uma fuga desta para aqueles. E ao final de maio, quando já era conhecida a intenção do governo de tributar a poupança, a captação líquida das contas desse tipo mostrou pequeno aumento no mês, de 0,7% em relação ao saldo, e não uma queda. Talvez por causa do limite de isenção que o governo definiu, a ser examinado posteriormente, ou porque a tributação está prevista para começar só em 2010. Vale acrescentar que não é tarefa simples verificar qual dessas duas linhas de análise encontra respaldo empírico, pois a preferência de muitos pela poupança poderia ser explicada

Este artigo constitui versão ampliada de outro publicado no jornal O Estado de S.Paulo, no dia 21/5/09. O autor agradece a colaboração de Patrícia Marrone, da Websetorial Consultoria Econômica, na elaboração deste artigo.

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Diogo Salles/AE

pela sua conveniência para o tipo de investidor a que serve, que muitas vezes a usa como uma conta-corrente disfarçada, tem dificuldade em entender as regras dos fundos, não é propenso a dialogar com seus gestores nas instituições financeiras e é muito avesso ao risco. O que move o governo? Quanto ao que decidiu fazer, foi criado um IR sobre os juros da poupança de pessoas físicas, a partir de 2010. As jurídicas já pagam IR, o que também está sendo desprezado nos dados e nas análises que a imprensa vem divulgando, pois muitos e grandes investidores de fundos são desse tipo. O novo IR será pago pelas pessoas físicas com saldos acima de R$ 50 mil na poupança, e as alíquotas sobre os rendimentos do que exceder esse valor aumentarão à medida que a Selic cair para valores abaixo de 10,5% ao ano, conforme tabela amplamente difundida pela imprensa. De modo geral, a cobrança virá "a posteriori", na declaração anual do IR, ou seja, a partir de 2011. Assim, dependerá também da alíquota da classe de rendimento em que o contribuinte se enquadrar nessa declaração. A TR, que também integra o rendimento da poupança, continuará isenta, qualquer que seja o valor do saldo. Na visão dos economistas, medida ideal e definitiva seria reduzir os próprios juros da poupança, tornando-os uma proporção da Selic, em lugar de o governo tomar parte deles com o IR. Entre outras desvantagens desse IR está o fato de que ele impede que os juros diminuam também para os tomadores de financiamentos imobiliários sustentados pela pou-

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pança, prejudicando o crescimento do setor da construção civil que tem grande importância econômica e social. Essa visão dos economistas segue a linha da racionalidade que usualmente pregam. Contudo, na opção do governo, outra questão comportamental, a política, com peso maior num ano que antecede o de eleição presidencial, se impôs à decisão de preferência dos economistas. A lamentar, também, que nossos políticos, da situação e da oposição, não tenham o hábito civilizado de deixar suas divergências à margem quando se trata de um objetivo como a queda dos juros em geral, de interesse nacional. Com razão, os jornalistas reclamaram que esse IR da poupança veio muito complicado para o cidadão comum que quiser saber qual será o rendimento líquido de sua poupança para compará-lo ao dos fundos. Isso faz lembrar uma das críticas à visão que o investidor é racional. Segundo tal crítica, esse investidor precisaria ter a inteligência de um Einstein, um computador na cabeça e a força de vontade de Gandhi para sempre agir dessa forma. Os novos capítulos Vários jornalistas se esforçaram em produzir tabelas comparativas de rendimentos da poupança e dos fundos, segundo várias hipóteses, mas é possível que tenham mais trabalho à frente. Entre outras razões porque há a ideia governamental de tomar outra medida, uma que em cima da tributação da poupança reduziria a dos fundos, alterando assim as comparações já realizadas. Aliás, nesse trabalho de informar ao inves-


Givaldo Barbosa/Ag. Globo

Brígida Rodrigues/e-Sim

O ministro Guido Mantega e o presidente do BC, Henrique Meirelles, falam sobre mudanças na caderneta de poupança para jornalistas.

tidor ainda há muito a fazer, principalmente por parte do governo e no caso das taxas de administração dos fundos, que os bancos insistem em não reduzir de modo significativo mesmo com a queda da Selic, tornando essas taxas um ônus crescente em relação à remuneração bruta dos fundos. Em particular, seria necessário exigir que os extratos mensais dos fundos explicitassem a taxa de administração e o respectivo valor cobrado, para tornar essa cobrança mais transparente, e permitir que os cotistas percebessem o absurdo que estão pagando em vários fundos. Quando anunciou o IR da poupança, o ministro Mantega deu a entender que o dos fundos seria reduzido logo em seguida. Todavia, declarações posteriores deixaram o assunto em suspenso. Sabe-se também que a equipe da Fazenda recomendou ao seu ministro só fazer essa redução se detectado o temido movimento dos fundos para a poupança, o que até agora não aconteceu. A propósito, é o caso de perguntar a essa equipe por que a tributação da poupança veio mesmo sem esse movimento (a Selic atual é de 10,25% ao ano, e a tabela veio com o IR já para um valor abaixo de 10,50%). Ademais, essa recomendação da equipe da Fazenda também parece se assentar numa visão comportamental, pois em lu-

gar de propor alterações do IR para evitar a saída dos fundos, agora quer se pautar pelo comportamento dos investidores para defini-las. Sabe-se também que nos fundos onde a aplicações médias por investidor são as menores, as taxas de administração são as mais elevadas e a remuneração bruta é uma proporção bem menor da Selic do que nos fundos onde ocorrem as grandes aplicações. Assim, há quem diga que já há investidores que têm prejuízo relativamente à poupança. Ora, como permanecem nos fundos, a visão comportamental parece se aplicar ao seu caso, com as ressalvas acima apontadas. Inconclusão Quando terminávamos esse texto, não havia condições de prever o fim dessa novela. Alegando novamente conveniências políticas, o governo considerava ainda inoportuna a remessa ao Congresso de sua proposta para a tributação da poupança. E haviam surgido dúvidas quanto à sua constitucionalidade, levantadas pelo ex-Secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, ao constatar que essa tributação ficava atrelada a valores da Selic, o que não seria cabível. Por essa e outras razões, duvidava-se de uma passagem tranquila da proposta pelo Congresso. E havia voltado à prateleira a ideia de reduzir a tributação dos fundos, aguardando nova queda da Selic e a reação dos investidores. Portanto, o leitor deve aguardar os próximos capítulos, mas com o cuidado de não prever seu conteúdo por crenças ingênuas quanto ao comportamento dos vários atores envolvidos.

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No momento, a maioria do debate se concentra na revisão da regulação e supervisão financeiras, publicada em março pelo lorde Turner, presidente da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido.

Toby Melville/Reuters

Ian Luder *

O que precisa ser

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urante a minha recente visita ao Brasil, onde encontrei diversos players, incluindo o Banco Central, a Comissão de Valores Mobiliários e a BM&F Bovespa, fiquei impressionado com a sólida compreensão que os líderes institucionais brasileiros possuem das lições da história – e como isso ajudou o País em sua recuperação dos desastres da geração passada. Foi construtivo ouvir as medidas adotadas para comba-

* Ian Luder é prefeito do centro financeiro de Londres (City de Londres)

Paulo Pampolin/Hype

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ter o risco sistêmico no Brasil, e eu acredito que maior cooperação e contato entre nossos países podem levar a um aprendizado de duas mãos. A reforma da regulação e supervisão financeiras ainda está no topo da agenda política no Reino Unido. À medida que o pânico financeiro diminui e a poeira começa a se assentar, não parece estar surgindo um consenso sobre o que precisa ser feito. No momento, a maioria do debate se concentra na revisão da regulação e supervisão financeiras, publicada em março pelo lorde Turner, presidente da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido. As partes interessadas têm até este mês (junho) para responder ao Relatório Turner ("Turner Review"), como é conhecido – portanto, a comunidade da City se encontra atualmente em momento de reflexão, enquanto analisa os prós e contras das propostas de Turner. O Relatório Turner estabelece uma análise detalhada sobre o que deu errado. Lorde Turner argumenta que problemas macroeconômicos – principalmente taxas de juros excessivamente baixas e vastos desequilíbrios comerciais globais – estabelecem o cenário para um desenvolvimento rápido da inovação e alavancagem financeiras. Esse casamento perverso não foi identificado anteriormente por uma série de razões: os reguladores estavam muito concentrados em instituições individuais, deixando de observar a saúde geral do sistema financeiro interconectado globalmente; as empresas aceitavam rapidamente as classificações excessivamente otimistas das agências de classificação de crédito; confiança em demasia foi depositada em modelos matemáticos complexos; e aqueles que tentaram soar os alarmes há alguns anos foram silenciados ou ignorados. (Os brasileiros po-


Dylan Martinez/Reuters

Shaun Curry/AFP

feito daqui para frente dem dar um sorriso irônico neste momento – os seus ouvidos estavam bem sintonizados com os perigos). Então, o que deve ser feito? Algumas das sugestões de lorde Turner são razoavelmente difíceis de questionar. Em primeiro lugar, depositantes inocentes devem ser protegidos, de modo que o nível mais alto de depósito de seguro do varejo que vimos em meio à crise possa ficar fixo, se não ampliado ainda mais. Em segundo lugar, uma supervisão macroprudencial deve ser seriamente fortalecida. O Reino Unido não pode fazer isso sozinho – o sistema financeiro global necessita de uma arquitetura regulatória global. Algumas das outras propostas de Turner podem encontrar maior resistência de setores da indústria, mas elas são provavelmente inevitáveis. As agências de classificação de crédito serão registradas e supervisionadas, embora os detalhes de tal plano ainda necessitam ser elaborados. Os requisitos de adequação de capital provavelmente virão à tona. Eles também serão menos pró-cíclicos – o que pode resultar em mudanças para padrões contábeis. Além disso, a contração do crédito revelou como o sistema financeiro é vulnerável a uma crise de liquidez, de modo que a regulamentação de liquidez irá assumir uma importância similar à adequação de capital. As regras de governança corporativa, principalmente aquelas sobre remuneração e o papel de diretores não-executivos, devem se tornar mais rígidas. O escopo da regulamentação será definido cada vez mais pela função econômica, e não pelo status legal. Portanto, se um fundo de hedge se comportar como um banco, ele será regulamentado como um banco. Turner também levanta algumas questões mais controversas. Como os bancos transfronteiriços devem ser administrados, tan-

to na União Europeia como globalmente? A recente cúpula do G20 – e, em nível europeu, o Conselho Europeu da Primavera – levaram esse debate adiante. De todos os centros financeiros mundiais, o resultado desse processo provavelmente interessa mais a Londres, por abrigar a maior concentração de sedes globais de instituições financeiras multinacionais. Há dúvidas sobre se e como o mercado de derivativos de balcão (OTC, em inglês) deve ser regulamentado. Há uma forte pressão política para "limpar" as obrigações de dívida colateralizada (CDO, em inglês) e os swaps de crédito de inadimplência (CDS, em inglês), que foram culpados pela crise. É claro que o Reino Unido não pode agir unilateralmente. Como membro da União Europeia, cerca de 70% de nossas leis são elaboradas em Bruxelas. Por isso o Reino Unido precisa se engajar fortemente com seus vizinhos europeus para conseguir o resultado correto. Além da Europa, essa crise global necessita de uma solução global. O Brasil demonstrou, durante o G-20, estar disposto e ser capaz de assumir um papel importante, e eu prevejo mais disso no futuro. Além disso, e por fim, com o estabelecimento dos escritórios do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em Londres e do Lloyd’s no Brasil – há sinais de maiores ligações comerciais e de outros tipos entre nossos países. Seja qual for o caminho adiante para o Reino Unido e outros centros financeiros globais, é um truísmo que o Brasil possui não só muitos dos recursos globais necessários para este século – como também muitas das outras respostas. Tradução: Cintia Shimokomaki

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ão mais de 40 milhões de pessoas no mundo, segundo relatório as Nações Unidas de 2008. Pessoas forçadas a abandonar suas casas, famílias, amigos e trabalho para escapar de guerras, conflitos étnicos e religiosos, perseguições envolvendo opiniões políticas. São 40 milhões de pessoas que têm seus direitos humanos violados constantemente pelos governos ou grupos de poder paralelo de seus países e que, para fazerem valer sua liberdade e segurança,

Brasil, porto seguro para os refugiados

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Heci Regina Candiani atravessam quilômetros de fronteiras ou mares na clandestinidade, enfrentando medo e fome, e levando consigo pouco além de suas memórias e experiências, a língua que falam e a roupa do corpo. É um número elevado de pessoas, nunca exato, e que não para de oscilar. O relatório anual do Alto Comissariado da ONU para os

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Refugiados (Acnur) destaca que o número, que contabiliza os refugiados – os solicitantes de asilo (26 milhões) e os deslocados (16 milhões) –, diminuiu em 700 mil pessoas na comparação com 2007. "No entanto, os novos deslocamentos em 2009, que não figuram no informe anual, já ultrapassaram esta redução", ressalta o documento, que detalha um fluxo global de deslocamentos forçados que envolve quase 150 países. Muitos deles, pontos de partida; alguns, pontos de chegada. O Brasil é um desses pontos de chegada. Hoje vivem no País cerca de 4 mil refugiados, vindos de mais de 70 países, 44% deles em regiões urbanas do Estado de São Paulo. A maior parte dos refugiados no Brasil vem da África: 67,7%. Chegaram aqui vindos de Angola (43,3%, ou 1.686 pessoas), fugindo da guerra civil no país; Colômbia (13,5%, equivalente a 530 pessoas), como resultado dos conflitos com as Forças Armadas Revolucionárias (Farc); e República do Congo (7,7%, cerca de 300 pessoas).

Assim como analisa quais os melhores países para receber um refugiado – além do Brasil, constam da lista Canadá, Estados Unidos, Costa Rica e Benin, entre outros –, o Acnur também sabe quais são os piores lugares para os refugiados. A lista é bem maior e inclui Bangladesh, Índia e China, Malásia, Grécia, Polônia, Eslovênia, Itália, França, Iraque, Quênia, Malásia, Rússia, Sudão e Tailândia. São países que deportaram, torturaram, perseguiram, segregaram ou até assassinaram pessoas que chegavam ali solicitando proteção. Ou seja, reproduziram em seu território condições semelhantes àquelas que conduziram tais pessoas a buscarem refúgio.

Embora o número de refugiados vivendo aqui seja pequeno – e talvez exatamente por isso – o Brasil é hoje um dos melhores países de acolhimento de acordo com os critérios do Acnur. Aqui, como em poucos lugares do mundo, quem foge da violação constante de seus direitos encontra um espaço democrático de garantia de sua integridade física, acesso à Justiça, liberdade de ir e vir, de estabelecer residência e de encontrar um trabalho para garantir sua sobrevivência. Para ser um bom país de acolhida, a democracia é condição fundamental.

zações não-governamentais e instituições que desde a década de 1970 ajuda o governo na prestação de serviços aos refugiados. O Brasil desenvolveu uma legislação moderna e uma estrutura exemplar para a acolhida. Além de ser um dos primeiros países signatários da Convenção de Genebra, da ONU, de 1951, o País também é signatário da Declaração de Cartagena, de 1984, no âmbito latinoamericano, e possui uma legislação específica para os refugiados, a Lei 9.474, de 1997. Conhecida por Lei do Refúgio, esta legislação específica criou o Comitê Nacional de Refugiados

A acolhida Segundo a pesquisadora da Universidade de Campinas (Unicamp), Julia Bertino, que se dedica ao estudo da política brasileira para refugiados, as garantias democráticas oferecidas no Brasil são internacionalmente reconhecidas e estão relacionadas a dois aspectos importantes: a legislação específica e, em alguns sentidos, pioneira, do País e a rede de organi-

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REFUGIADOS PELO MUNDO

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Hoje vivem no País cerca de 4 mil refugiados, vindos de mais de 70 países, 44% deles em regiões urbanas do Estado de São Paulo. Embora o número de refugiados vivendo aqui seja pequeno – e talvez exatamente por isso – o Brasil é hoje um dos melhores países de acolhimento. Com as atividades financiadas por recursos do Acnur, a Cáritas também é responsável por ajudar os refugiados a encontrar moradia, receber a ajuda de custo emergencial (...)

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(Conare), que decide sobre a concessão de refúgios, caso a caso, e também define as políticas a serem adotadas. É essa base legal que garante os direitos dos refugiados, o acolhimento de pessoas vindas de diversos países e a não-criminalização dos estrangeiros que entram irregularmente em território nacional quando chegam de países onde seus direitos são violados. Esse é um aspecto legal importante porque a entrada de refugiados no País é quase sempre irregular. Eles chegam clandestinamente em navios que aportam aqui ou após atravessar alguns pontos da fronteira, em geral sem a documentação exigida para estrangeiros ou sem qualquer comprovante da própria origem e formação. Em terra firme, passam pela Polícia Federal onde iniciam uma maratona jurídica pelo reconhecimento de sua condição de refugiados que pode durar meses e que se segue a um processo de integração nem sempre tranqüilo. Língua e costumes diferentes dificultam a criação de novos laços sociais no país. É então que entra em ação a rede de organizações responsáveis pela acolhida. Em São Paulo, esse processo é coordenado pela Cáritas Arquidiocesana. Segundo a advogada da organização, Liliana Jubilut, assim que chegam, as pessoas se identificam na Polícia Federal e são encaminhadas à Cáritas, onde são entrevistadas por especialistas que tentam reconstituir sua história e as condições que determinaram sua fuga. "Tudo isso é importante para definir a situação objetiva do país ou região de origem da pessoa, o que permitirá analisar a solicitação da condição de refugiado. Para garantir a segurança individual, as informações são confidenciais", explica Liliana. Isso porque, dependendo das condições de cada país de origem, o refugiado que chega ao Brasil ou outro país de acolhida pode estar seguro, mas em alguns casos, a divulgação de seu nome, suas opiniões, ou mesmo o contato com familiares e amigos pode implicar em represálias, colocando em risco os que ficaram. É também na Cáritas, que possui parcerias com hospitais, abrigos e instituições como Sesi, Senai e Senac, que tem início o atendimento às necessidades básicas do solicitante de refúgio: um lugar para dormir, acesso a aulas de português, alimentação, regularização da entrada no País por meio de uma documentação provisória, atendimento psicológico, elaboração da solicitação de refúgio. Com as atividades financiadas por recursos do Acnur, a Cáritas também é responsável por ajudar os refugiados a encontrar moradia, re-

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ceber a ajuda de custo emergencial de cerca de um salário mínimo por mês pelo período de três meses, ajudar os pais e mães que chegam com seus filhos a encontrar escolas para as crianças e ter acesso ao material escolar. A solicitação de refúgio é, então, analisada pelo Conare, órgão colegiado que congrega os ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Trabalho, Saúde, Educação e Esporte, o Departamento da Polícia Federal, a Cáritas – que representa a sociedade civil – e o Acnur, que embora não tenha direito a voto nos momentos decisórios, tem o papel consultivo, trazendo informações e dados importantes para a análise de cada solicitação de refúgio. Assim que tem sua condição de refugiado reconhecida, a passoa passa a ter acesso a documentos definitivos, ao Registro Nacional de Estrangeiro (RNE) e a regularização de sua permanência no País, com acesso a cursos profissionalizantes e a obtenção de uma carteira de trabalho definitiva. "Caso o refúgio seja negado, existe a possibilidade de apresentar um recurso direto ao ministro da Justiça. Se o pedido é novamente negado, a pessoa continua no País, ainda que ilegalmente. Como não existe uma política brasileira para a legalização, nesses casos, só conseguem permanecer legalmente no País quando se casam ou têm filhos aqui", diz Liliana Jubilut. Segundo a coordenadora do Centro de Acolhida para Refugiados da Cáritas São Paulo, Cezira Furtim, muitos refugiados que chegam ao País têm bom nível de escolaridade e quase 15% têm formação superior. Para eles, há ainda um outro processo burocrático: a tradução de documentos e diplomas, quando dispõem desses papéis, e o reconhecimento de sua formação. Destaque internacional A legislação específica brasileira e as condições de acolhimento oferecidas aqui colocam o País em posição de destaque internacional e de liderança na América Latina quando o tema é o refúgio. Julia Bertino explica que cada decisão sobre a condição de um refugiado envolve questões de política interna e externa complexas. Parte dessa complexidade fica evidente nos poucos casos de solicitação de refúgio que chegam aos jornais e ao noticiário televisivo. Casos como o do escritor e militante italiano Cesare Battisti ou dos dois boxeadores cubanos, Guillermo Rigoundeaux e Erislandy Lara, que abandonaram a delegação do seu país durante os Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro em 2007. Os atletas foram entregues ao governo de Cuba e Cesare Battisti obteve o status de refugiado após


Edward Parsons/AFP

recurso ao ministro da Justiça Tarso Genro, mas a decisão está sendo questionada pelo governo italiano junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). Casos controversos que nem sempre favorecem a imagem internacional que o Brasil tenta construir em torno da questão do refúgio. O Brasil foi um dos primeiros países latinoamericanos a assinar os acordos internacionais relativos aos refugiados, pioneiro na abertura de suas portas aos refugiados de outros países da América Latina e o primeiro país da região a criar uma lei específica e para refugiados. "Isso coloca o País como líder regional, principalmente em termos jurídicos, na questão dos refugiados", explica Julia. "Ao se mostrar um país disposto a acolher pessoas e a aprimorar sua política de acolhimento, o Brasil busca também projeção internacional em torno da questão da defesa dos direitos humanos", analisa. Ao acolher pessoas de outros países, o Brasil se mostra aberto a contribuir na solução de problemas globais, o que reforça sua imagem como um país democrático e ativo nas relações internacionais. A política consistente em relação aos deslocamentos populacionais também se reflete em ganhos políticos de longo prazo. Hoje, o Bra-

sil está na lista de países emergentes não apenas economicamente, mas também em relação à acolhida. "A política adotada para os refugiados permite que o País estreite seus laços com a Acnur e a ONU, o que tem consequências positivas na defesa de alguns de seus interesses, um deles a intenção de obter um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas", lembra Julia. O Brasil tem também uma política de reassentamento de pessoas que já têm o refúgio reconhecido em outros países. Um processo mais sofisticado do que a acolhida dos refugiados que chegam clandestinamente e que, segundo Julia, tem um aspecto positivo extra. "No caso dos programas de reassentamento, os representantes brasileiros têm a oportunidade de ouvir diretamente as necessidades dos refugiados", explica. No caso do reassentamento, representantes do Conare e do Acnur, juntos, analisam as condições de acolhida de grupos específicos já vivendo em um país acolhedor, ouvem as necessidades desses grupos e avaliam as reais condições do Brasil oferecer moradia, educação, saúde e trabalho para essas pessoas, que passam então por um novo processo de transferência e nova integração cultural. Foi o que aconteceu

A atriz Angelina Jolie é embaixadora da Boa Vontade do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. Ela e o marido, o ator Brad Pitt, doaram recentemente US$ 1 milhão para a entidade.

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Pedro Ugarte/AFP

Nas décadas de 1960, 70 e 80, novos conflitos ampliaram o contingente de refugiados no mundo.

em 2007, com a transferência de 109 refugiados palestinos da Jordânia para o Brasil – muitos deles descontentes com o processo de integração cultural e que, atualmente, solicitam junto ao Acnur a transferência para a Europa. Fenômeno global A questão do refúgio se tornou um problema mundial após a Segunda Guerra Mundial, quando um enorme contingente de pessoas deslocadas de suas origens precisava de proteção e auxílio. Nas décadas de 1960,1970 e 1980, uma série de novos conflitos acabaram por ampliar o contingente de refugiados no mundo: movimentos de independência em colônias africanas e asiáticas, conflitos armados em países como Vietnã, Laos, Camboja, Afeganistão, Etiópia, Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Conflitos étnicos e religiosos, a prolongada situação de hostilidade em países do Oriente Médio, as invasões norte-americanas no Afeganistão e no Iraque contribuíram para gerar um fluxo de refugiados que hoje é global, mas também concentrado em alguns países. Tudo isso envolve os países em emaranha-

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do político difícil de solucionar. As nações mais desenvolvidas, como Estados Unidos, França, Alemanha e Inglaterra, recebem milhares de contingentes de refugiados todos os anos e cada vez mais – em especial depois dos atentados de 11 de setembro, por questões políticas, econômicas e de segurança interna – tentam fechar suas fronteiras a essas pessoas, restringindo a concessão de refúgio ou buscando no Acnur apoio para reassentar essas populações em terceiros países. Isso envolve uma questão econômica. O fluxo de refugiados pelo mundo é acompanhado em grande parte pelo Acnur, órgão que supervisiona e financia grande parte das ações de acolhimento de refugiados nos mais de 70 países que o integram. A maior parte dos recursos do Acnur – cerca de 98% – vem dos países mais ricos, que certamente têm maior poder de influência nas decisões sobre o fluxo de refugiados. O Brasil, por exemplo, só nos últimos dois anos passou a contribuir financeiramente para o órgão, com quantias ainda pequenas diante do orçamento que, em 2009, é previsto em U$ 1,275 bilhão, com U$ 535 milhões adicionais para programas suplementares.


Aamir Qureshi/AFP

Ao abrir suas portas ao reassentamento, o Brasil se coloca como agente desse processo, reforçando suas relações internacionais. Segundo o Acnur, o fluxo de refugiados tem duas características principais: em geral, buscam proteção em nações vizinhas a seu país de origem e, na maioria das vezes, passam a integrar populações urbanas nos países que os acolhem. Mas nem sempre a integração no primeiro país de asilo é tranquila, como o caso dos cerca de 200 colombianos que atravessaram a fronteira com o Equador fugindo da guerrilha local, mas continuavam em risco, e foram reassentados no sul do Brasil. O reassentamento é uma solução para esses casos. Tropeços locais "Muitos países estão fechando as portas para refugiados e o Brasil é muito respeitado na ONU por suas políticas", diz o diretor da Cáritas São Paulo, Ubaldo Steri. Mas, segundo ele, essas políticas ainda precisam ser ampliadas. Se em termos internacionais e globais o Brasil é reconhecido, no âmbito interno ainda

há muito o que precisa ser melhorado. Para Ubaldo Steri, uma das principais dificuldades é convencer os empregadores a abrirem algumas de suas vagas aos refugiados. O problema é complexo. Com um grande número de desempregados brasileiros, destinar uma vaga a um estrangeiro é uma decisão difícil. Mas Steri lembra que essa oportunidade pode fazer toda a diferença na vida de um refugiado. "Um registro em carteira, mesmo que seja temporário, pode ser o que aquela pessoa precisa para comprovar experiência e conseguir outras colocações". Outra necessidade, apontada por Julia Bertino, é a de dar voz aos refugiados que chegam ao Brasil. Segundo ela, embora o Conare seja, em si, um órgão democrático, avançado e com políticas efetivas e abertas, falta nele um canal institucional pelo qual os refugiados possam ser ouvidos diretamente e ter suas necessidades avaliadas. Ela reconhece que a proposta esbarra em questões como a necessidade de controle governamental das políticas, mas insiste que é possível pensar em mecanismos para que os refugiados sejam melhor representados no órgão.

Muitos países estão fechando as portas para refugiados e o Brasil é muito respeitado na ONU por suas políticas.

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O livro pouco esclarecedor do refugiado Cesare Battisti Renato Pompeu

Lula Marques/Folha Imagem

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oucas luzes e muitas sombras envolvem o caso do mais famoso refugiado no Brasil, o italiano Cesare Battisti, a julgar pelo único livro do próprio Battisti aqui publicado, Minha fuga sem fim – dos anos de chumbo na Itália, de leis ao revés na França, ao inferno do cárcere no Brasil, editado pela Martins Fontes. Esse título já é enganoso, pois Battisti encerra o livro na sua chegada ao Brasil em 2006, antes de ser detido a pedido da Interpol. Atualmente preso em Brasília, e tendo o estatuto de refugiado outorgado pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, Battisti aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal, previsto para o começo deste segundo semestre, do pedido de extradição do governo da Itália, onde foi condenado à revelia (por ter fugido da cadeia para o México e depois para a França) à prisão perpétua por quatro homicídios, praticados em nome do grupo político clandestino Proletários Armados para o Comunismo-PAC, ao qual pertenceu nos tumultuados anos 1970. Nascido em 1954 num pequeno centro industrial instalado durante o governo de Mussolini, Battisti conta que cresceu numa família politizada, pois seus avós haviam sido fundadores do Partido Comunista da Itália, e seus pais eram membros do rebatizado Partido Comunista Italiano. Isso não o impe-

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diu de abandonar a escola aos 17 anos e, antes de completar 20 anos, praticar pequenos delitos – furtos e roubos (roubou o carro da sogra do próprio irmão), tendo passado cerca de dois anos detido. Assim, Battisti já tinha sido delinquente antes de, após ser solto em 1976, aderir aos Proletários Armados para o Comunismo. Esse pequeno grupo foi criado no ambiente febril que se espalhava na passagem dos anos 1960 para os anos 1970 por todo o mundo, em especial na França do Maio de 1968, nos Estados Unidos do movimento contra a guerra do Vietnã, na China da Revolução Cultural, na Tchecoslováquia da rebelião antistalinista, no México do massacre de universitários, na Argentina, Brasil e Uruguai da luta armada e também de manifestações de rua contra seus regimes militares, no Chile da derrubada violenta do governo esquerdista do presidente Salvador Allende, na Alemanha Ocidental e na Itália do terrorismo respectivamente da Fração Vermelha e das Brigadas Vermelhas – que chegaram a matar o ex-primeiro-ministro italiano Aldo Moro em 1978.


Remo Casilli/Reuters

Battisti foi preso na Itália por ligações com o PAC e por assassinato, até ser libertado por uma ação armada comandada pelo antigo amigo e correligionário Pietro Mutti.

O livro de Battisti é muito mais uma autobiografia romanceada – não tivesse o autor se tornado na França um autor de ficção policial – do que um relatório documentado em sua defesa. Ele conta como o PAC seria a favor da luta armada para fazer ações com o objetivo de angariar recursos e de fazer propaganda política – matar pessoas era explicitamente proibido pelos regulamentos do grupo, segundo ele, que não apresenta documentação comprobatória. E que abandonou o PAC quando, contrariamente à posição que Battisti apresenta como oficial da organização, militantes da organização mataram sua primeira vítima – Antonio Santoro, agente penitenciário, em 1976 (homicídio pelo qual Battisti viria a ser condenado posteriormente). E que abandonou definitivamente a luta armada, mesmo com a ressalva de não praticar assassínios, após a morte de Moro, dois anos depois. Em seguida, conta que, já desligado do PAC, a organização viria a cometer os outros três assassínios, matando em 1979 o joalheiro Pierluigi Torregiani (cujo filho de 4 anos ficou paraplégico por ter sido atingido por uma bala no tiroteio), o açougueiro Livio Sabatini e o policial Andrea Campagna. Battisti relata que foi preso na Itália como suspeito de ligações com o PAC e com os assassínios, até ter sido libertado por uma ação armada comandada pelo seu antigo amigo e correligionário Pietro Mutti, após o que Battisti conta que fugiu para o México (era tão amigo de Mutti que Battisti, segundo escreve no livro, foi amante da esposa do amigo com a concordância do amigo e até a prática do sexo a três). Anos depois, quando o então presidente francês François Mitterrand concordou em

não extraditar ex-militantes armados italianos que tivessem abandonado as armas e quisessem se integrar pacificamente à sociedade francesa, Battisti se estabeleceu na França. Conta que nunca ficou sabendo, durante o julgamento e até a condenação, que estava sendo processado à revelia na Itália, por isso não teve oportunidade de se defender das acusações, cuja única testemunha, segundo ele, era o próprio Mutti, que teria sido preso e teria aceitado a delação premiada em troca da redução da pena. Segundo Battisti, Mutti é que era o responsável por todos os homicídios. A maior parte do livro de Battisti não se refere à sua vida política ou a documentações de sua defesa em relação aos quatro homicídios. Pelo contrário, ele se estende por seu cotidiano na França. Estava ele posto em sossego, escrevendo suas ficções policiais, quando inesperadamente o novo presidente francês, Jacques Chirac, aboliu a "doutrina Mitterrand". A Justiça francesa então julgou e condenou Battisti à extradição para a Itália, para cumprir prisão perpétua. Ele então passa grande parte do livro narrando a sua fuga da França e seu périplo por vários países, inclusive do Oriente Médio, até chegar ao Brasil em 2006, não esquecendo de mencionar em detalhes a sua vida amorosa com diferentes mulheres. O resultado é muito mais uma espécie de romance de aventuras do que um requisitório de defesa. Na verdade, no livro de Battisti, a sua defesa fica muito mais por conta do prefácio do filósofo francês Bernard-Henry Lévy, insuspeito de simpatias pelo esquerdismo mesmo o mais pacifista, quanto mais pela luta armada ou pelo terrorismo, e do posfácio da escritora

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Celso Junior/AE

policial francesa Fred Vargas (mulher, apesar do nome), colega e amiga de Battisti. Essa defesa é baseada nos seguintes pontos: G A decisão do governo Mitterrand de conceder asilo político aos italianos que haviam abandonado a luta armada estaria inserida numa política tradicional de Estado francesa de dar abrigo a perseguidos políticos e, portanto, não poderia ter sido cancelada pelo governo subsequente do presidente Chirac, o qual abriu caminho para o processo de extradição. G Battisti foi condenado por quatro homicídios num processo à revelia na Itália, no qual não teria podido se defender, e nesses casos grande parte dos países impõe que, se o condenado for localizado, terá direito a um segundo julgamento com a sua presença no banco dos réus, o que se tornou norma da União Europeia, mas na Itália não existe esse direito a um segundo julgamento. G A única testemunha quanto aos homicídios contra Battisti seria Pietro Mutti, que recebeu o benefício da delação premiada em troca da libertação, da troca de identidade e de recebimento de dinheiro para iniciar nova vida. Essa testemunha, assim, teria interesse em mentir para acusar qualquer outra pessoa que não ele próprio, ainda mais uma pessoa que não estava presente para ser acareada com Mutti e confrontar suas acusações. G A alegação da Justiça italiana de que Battisti teve direito à defesa e orientou em três cartas a seu advogado não seria procedente, porque se trataria de cartas sobrepostas a assinaturas dele em documentos em branco que ele deixou com seus companheiros ao fugir da Itália, caso fosse necessário algum documento assinado seu. No entanto, ao longo do livro tanto Battisti como Vargas reconhecem que, durante o processo de extradição da França para a Itália, ele sempre se negou a esclarecer se era culpado ou inocente das acusações pelos quatro homicídios. Segundo eles, porém, isso não adveio de uma tácita admissão de culpa e sim da necessidade de estabelecer um precedente para a linha de defesa de quaisquer perseguidos políticos, fossem ou não autores de ações violentas. Todos esses argumentos, no entanto, são contraditados pelos partidários da extradição de Battisti. Em primeiro lugar, a norma europeia de conceder um segundo julgamento ao condenado revel quando for localizado não se aplicaria ao caso Battisti, transitado em julgado antes da elaboração da norma europeia, que não é retroativa. Em segundo lugar, Battisti, mesmo à revelia, teve acesso a ampla defesa, como foi reconhecido não só pela Jus-

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Alessandro Bianchi/Reuters

Battisti teve o estatuto de refugiado outorgado pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, mas aguarda preso o julgamento no Supremo Tribunal Federal. Ao saber disso, o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi cancelou visita ao Brasil e a Itália apresentou protestos formais.

tiça italiana, como pela Justiça francesa e pela própria Corte Europeia, que consideraram legítimas as três cartas com sua assinatura enviadas a seu advogado no processo da Itália. Aqui cabe lembrar que Battisti deixou documentos assinados em branco justamente para o caso de ser necessário algum documento assinado seu na própria Itália. Em terceiro lugar, Mutti não é a única testemunha contra Battisti – outros ex-companheiros também o acusaram e até uma sua ex-namorada testemunhou que Battisti contou a ela como se sentia intimamente por ter matado uma pessoa. Ainda mais: Mutti cumpriu nove anos de cadeia e, ao ser libertado, não recebeu o benefício de nova identidade. Pelo contrário, vive e trabalha normalmente com seu nome verdadeiro e até concedeu recentemente uma entrevista ao semanário italiano Panorama. Finalmente, ao final do processo de extradição na França, só então Battisti passou a alegar inocência quanto aos assassínios, quando teria percebido que a tendência era para o pedido de extradição ser aceito. Ele manteve essa nova linha de defesa no livro que escreveu no Brasil e a vem mantendo desde então, embora determinados meios esquerdistas brasileiros defendam que, mesmo que Battisti tenha cometido os homicídios pelos quais foi condenado na Itália, ele não deve ser extraditado, pois estes também foram crimes políticos e não crimes comuns, já que as vítimas eram policiais acusados de torturas e militantes neofascistas acusados de estarem envolvidos em tentativas de golpe. Essa afinal é a questão a ser debatida. Como esclareceu o advogado e ex-ministro do Trabalho, Almir Pazzianotto Pinto, não existe "competência do governo brasileiro para anular decisões do Poder Judiciário italiano". E Pazzianotto acrescenta: estaria o governo Brasileiro "equiparando a Itália a regimes ditatoriais, que perseguem, prendem e calam os opositores"? Aqui se deve destacar que durante todo o pósguerra, na Itália, os comunistas e os que continuam sendo comunistas continuaram e continuam livres para propagar suas idéias, não havendo necessidade para isso nem de clandestinidade, nem de luta armada, ao contrário do que foi o caso dos regimes militares e das ditaduras na América do Sul e do que é o caso ainda de muitos países no mundo. A defesa de Battisti argumenta que a Itália não era uma democracia na época, pois os dissidentes como ele eram impedidos de agir legalmente tanto pelo centro-esquerda no poder (democratas-cristãos e socialistas) como pela oposição comunista, só restando aos dissiden-


tes a clandestinidade e/ou a luta armada e que em situações semelhantes, na América Latina, militantes clandestinos e armados ou chegaram ao poder e foram reconhecidos como governantes legítimos, ou foram anistiados quando houve o restabelecimento da plena liberdade. Os dissidentes italianos teriam enfrentado, de acordo com a defesa de Battisti, principalmente os neofascistas e os partidários de um golpe, como o tramado pela chamada Loja Maçônica P-2, com o apoio de setores influentes na Itália. Acontece que o neofascismo, como o comunismo, é legal na Itália, desde que não haja recurso a ações ilegais, em particular a ações violentas. E que o golpe tramado pela P-2 foi impedido pelas próprias autoridades italianas contra as quais, paradoxalmente, agiam dissidentes como Battisti. Argumenta ainda Battisti que houve "confissões sob tortura", como seria o caso de Mutti. Entretanto, em seu livro Battisti faz apenas observações vagas sobre ter convivido, na prisão, com companheiros que teriam sido torturados, sem nem mesmo identificar seus nomes. Não há nenhuma documentação sobre torturas a Mutti, por exemplo, ou ao próprio Battisti. Não existe nenhum dossiê "Torturas nunca mais" na Itália, nem mesmo elaborado pelos dissidentes que fugiram para outros países. Além do mais, conforme observa o advogado italiano radicado em São Paulo, Antonio Laspro, do Conselho Geral dos Italianos no Exterior, se é que existem casos em que a luta armada e o terrorismo podem ser considerados legítimos, certamente não é esse o caso no que se refere a um Estado democrático onde ocorrem periodicamente eleições livres e há plena liberdade de expressão e organização, como vem sendo a Itália em todo o pós-guerra. Laspro chama a atenção para o fato de Battisti só ter pedido o estatuto de refugiado no Brasil depois de ter sido localizado no País pela Interpol em 2007. "Por que não pediu asilo logo ao desembarcar em 2006?", pergunta. E Antonio Fattore, italiano que foi sindicalista em seu país nos anos 1970 e atualmente é assessor do governo petista no Pará, embora seja contra a extradição de Battisti, condena a ação política deste, argumentando que a ação golpista na Itália daquela época foi contida, não pela luta armada (que ao contrário, segundo ele, forneceu pretextos para os golpistas), mas por grandes greves e grandes manifestações de rua. O jurista italiano Gian Carlo Caselli assinala que, ao assinarem as convenções sobre refugiados, os governos se comprometeram a não emi-

tirem avaliações sobre a legitimidade ou não de decisões judiciais definitivas nos países contratantes. Por isso mesmo o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, após Battisti ter sido declarado refugiado pelo ministro brasileiro Tarso Genro, cancelou sua viagem ao Brasil. O Ministério das Relações Exteriores chamou de volta seu embaixador em Brasília e o governo da República da Itália protestou oficialmente. A União Européia também questionou a legitimidade de um governo se contrapor à decisão judicial definitiva em outro país. No Brasil, não há pesquisas sobre a posição da opinião pública quanto à extradição ou não de Battisti – na Itália, porém, praticamente Battisti não encontra defensores: todos os partidos políticos, de esquerda, direita ou centro, conservadoValter Campanato/ABr

res e progressistas, se pronunciaram a favor do cumprimento da pena de prisão perpétua por alguém que, lá, é considerado, unanimemente, um criminoso comum. Enquanto juristas brasileiros se têm manifestado tanto a favor como contra Battisti, só há registro de manifestações de juristas italianos contra ele. Quanto à alegação de que na prisão na Itália Battisti correria o risco de ser morto pela Máfia ou pela CIA, observam os favoráveis à extradição que essas instituições, afinal de contas, têm recursos para matá-lo em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil. O problema, portanto, é decidir se Battisti é um criminoso político ou um criminoso comum, o que depende da visão que se tenha a respeito da legalidade democrática na Itália na época e a respeito da legitimidade do assassínio por razões políticas.

Battisti foi condenado à prisão perpétua por quatro homicídios, praticados em nome do grupo político clandestino PAC .

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Queima de fogos na Esplanada dos Ministérios

Andre Dusek/AE

A política externa brasileira, de FHC a Lula Amaury de Souza

Andrea Felizolla/Luz

Cientista político

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m duas oportunidades, 2001 e 2008, o CEBRI - Centro Brasileiro de Relações Internacionais realizou amplas pesquisas sobre as relações internacionais do Brasil. Em ambos os casos, o objetivo foi conhecer as avaliações e preferências da comunidade de política externa quanto aos principais temas da agenda brasileira. A expressão "comunidade brasileira de política externa" designa o universo constituído por pessoas que participam do processo decisório ou contribuem de forma relevante para a formação da opinião no tocante às relações internacionais do País. Compreende, portanto, não só integrantes do Executivo e do Legislati-

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vo, mas também representantes de grupos de interesse, líderes de organizações não-governamentais, acadêmicos, jornalistas e empresários com atuação na esfera internacional. A metodologia utilizada foi a mesma nos dois projetos: aplicação de um questionário a integrantes destacados da comunidade de política externa e entrevistas mais extensas com alguns deles. O que diferenciou os dois trabalhos foi a maior abrangência temática do primeiro, preocupado em apreender de maneira compreensiva o pensamento internacional brasileiro, ao passo que o segundo tratou especificamente de aspectos estratégicos da inserção brasileira na América do Sul.


Reuters

Amit Dave/Reuters

O Brasil e o Sistema Internacional A política externa brasileira ganhou contornos mais definidos e afirmativos na virada do século 20 para o 21. A quase totalidade dos entrevistados (97%) concorda que o País deve aumentar o seu envolvimento e ter presença mais ativa no que toca a questões internacionais. Consolidou-se também a percepção de que a nossa presença internacional cresceu em importância nos últimos dez anos (85%) e deverá crescer ainda mais nos próximos dez (91%). Os entrevistados preveem que os outros três BRICs – China

Os entrevistados da pesquisa preveem que, além do Brasil, os outros três BRICs – China (97%), Índia (94%) e Rússia (63%), assim como a África do Sul (57%), aumentarão também a sua projeção na ordem mundial. Na foto, estátua de Confúcio, na China, e mulheres e crianças indianas carregando água.

(97%), Índia (94%) e Rússia (63%), assim como a África do Sul (57%), aumentarão também a sua projeção na ordem mundial, compartilhando o poder que os Estados Unidos (61%), o Japão (59%) e a Alemanha (54%) detêm atualmente. As tendências acima indicadas foram antevistas pela comunidade de política externa em 2001, mas não de forma tão pronunciada. Nos seis anos decorridos desde a primeira pesquisa, a percepção da importância futura da China manteve-se elevadíssima (96% e 97%, respectivamente, mas a da Índia subiu de 73% para 94%, a do Brasil de 88% para 91% , a da Rússia de 49% para 63%, e a África do Sul de 39% para 57%). Por outro lado, os entrevistados

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Joedson Alves/AE

avaliaram que as atuais grandes potências dificilmente terão mais poder daqui a 10 anos do que têm hoje ; consideram mais provável que elas preservem a posição atual. A expectativa de que a Alemanha terá mais poder caiu de 64% para 28% , os Estados Unidos, de 49% para 15%, e o Japão, de 29% para 16%. Nos últimos seis anos, a formação de alianças no sentido SulSul tornou-se um dos eixos prioritários da estratégia externa do Brasil. Todavia, não existe consenso quanto ao alinhamento SulSul no que diz respeito à inserção do País na economia internacional. Um terço dos entrevistados (31%) prefere priorizar negociações comerciais com os países da América do Sul e economias em desenvolvimento fora da região, como a China, Índia e África do Sul; quase outro terço (26%) prefere aproximar-se dos países desenvolvidos do Norte, como os da União Européia, os Estados Unidos e o Japão. Cumpre ressaltar que a maioria (41%) prefere trabalhar nessas duas linhas ao mesmo tempo. Prioridades da Agenda Internacional No topo da hierarquia dos países considerados vitais para os interesses do Brasil, permanecem a Argentina e os Estados Unidos (com ligeira queda de 96% para 95% e de 99% para 94%, respectivamente) e a China (que subiu de 82% para 92%). Caiu, no entanto, a percepção da importância de aliados tradicionais: a Inglaterra (de 59% para 41%), Alemanha (76% para 59%), França (67% para 50%), Espanha (63% para 46%) e Japão (62% para 54%). No sentido contrário, aumentou sensivelmente a percepção de interesses vitais nos países vizinhos, com destaque para Bolívia (de 57% para 81%), Colômbia (62% para 69%) e Venezuela (não mencionada na primeira sondagem, recebeu 78% das menções na segunda). Entre os países de menor relevância para o Brasil destacam-se Cuba, Coréia do Sul, Indonésia, Irã e Israel. Entre possíveis ameaças, três são atualmente consideradas críticas pela maioria dos entrevistados: o aquecimento global (65%), o tráfico internacional de drogas (64%) e o protecionismo comercial dos países ricos (50%). Outras ameaças, consideradas críticas por um grande número, mas não pela maioria dos entrevistados, incluem o surgimento de governos ditatoriais na América do Sul (48%), o contrabando de armas pequenas e armamentos leves (46%), a internacionalização da Amazônia (46%), a corrida armamentista na América do Sul (40%) e o aumento de países com armas nucleares (39%). Cumpre igualmente salientar um forte aumento na percepção de que o Brasil é capaz de defender os seus interesses no contexto da globalização econômica. O ineditismo e as proporções dessa mudança podem ser aferidos pela diferença de percepções quanto à ameaça representada pelo protecionismo comercial dos países ricos (que caiu de 75% para 50%), pela desigualdade econômica e tecnológica entre o Norte e o Sul (de 64% para 38%) e pelo poder econômico dos Estados Unidos (de 39% para 15%). Em relação à inserção brasileira na economia internacional, as duas pesquisas permitem traçar um quadro de substancial continuidade. A maioria dos entrevistados continua a atribuir importância às negociações multilaterais de comércio e a ver de maneira positiva uma crescente inserção brasileira na economia internacional. Em 2001, o cerne de nossa agenda inter-

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De cima para baixo, presidente Lula desfilando em Dacar, no Senegal; na Guatemala, tocando marimba; e na foto oficial da 34ª Cúpula dos presidentes do Mercosul.

Luis Echeverria/AFP

Fábio R. Pozzebom/ABr

nacional tinha a ver com a economia mundial; na de 2008, o aumento de nossa participação nos mercados mundiais continua prioritário, haja vista o apoio de 42% à promoção de nova rodada de liberalização do comércio exterior do Brasil. Para bem apreciar a significação desta última cifra, é mister lembrar que dois dos objetivos classificados como prioritários pelos entrevistados em 2001 foram atingidos. São eles: "promover o comércio exterior e reduzir o déficit comercial do País", apontado por 73% dos entrevistados, e "apoiar nova rodada de negociações na Organização Mundial do Comércio", por 55%. Integração Regional A comparação entre os dois levantamentos evidencia o forte desgaste do projeto Mercosul. Em 2001, a quase totalidade (91%) dos entrevistados via benefícios no acordo, posição hoje sustentada por uma maioria menos expressiva (78%). Acreditava-se também que o Mercosul era necessário para aumentar o poder de


Dmitry Kostyukov/AFP

barganha do Brasil em negociações internacionais (72%). Em 2008, praticamente a metade (49%) afirma que o Brasil tem peso próprio para negociar, sendo de apenas 38% a parcela que valoriza o apoio do Mercosul. Variações dignas de nota podem também ser percebidas no que tange ao formato do Mercosul. A maioria (52% em 2001, 51% hoje) continua a apoiar a transformação do Mercosul em mercado comum, ao estilo da União Europeia. No entanto, somente um em cada quatro concordam em mantê-lo como união aduaneira (a proporção caiu de 43% para 25%). Na outra ponta, aumentou cinco vezes (de 4% para 21%) o número dos que preferem reduzi-lo a uma área de livre comércio. Política Externa e Representação de Interesses

Eric Feferberg/AFP

Ricardo Stuckert/Reuters

De cima para baixo, Lula com os presidentes Dmitry Medvedev, da Rússia, Hu Jintao, da China, e com o primeiro ministro da Índia, Manmohan Singh; Lula com o presidente francês Nicolas Sarkozy; e com o presidente dos EUA, Barack Obama.

O cientista político Amaury de Souza acaba de lançar o livro A Agenda Internacional do Brasil, editado pela Campus-Elsevier e Cebri. A obra de Souza revela diversos números, baseados em estudos realizados pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais, mostrando um panorama de como vem evoluindo a política externa brasileira.

Durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a política externa do governo abriu numerosas frentes de atuação, sem condições de dedicar a atenção necessária a todas elas, do que advieram negativas da parte dos formadores de opinião e mesmo de titulares de funções públicas. Embora sejam em geral positivas, as opiniões sobre a política externa do atual governo apresentam-se mais polarizadas que as registradas em 2001 a respeito da política do presidente Fernando Henrique Cardoso. Em 2001, 62% avaliavam a política externa como "ótima ou boa", contra 12% que a consideravam "ruim ou péssima". No governo Lula, os percentuais são 46% e 21%, respectivamente. No tocante à representação de interesses, o quadro que emerge das pesquisas sugere uma queda no nível de atenção dado pelo Itamaraty a opiniões e propostas de interlocutores – isto tanto no caso de interlocutores situados em outros setores do próprio governo ou no de interlocutores externos. No caso de "outros ministérios do governo federal", a percepção de que o Itamaraty dá a eles "muita atenção" caiu de 57% em 2001 para 36% hoje. A mesma tendência declinante pode ser observada em relação aos meios de comunicação (46% para 30%), associações empresariais (49% para 39%), opinião pública (28% para 21%) e organizações nãogovernamentais (18% para 14%). A atenção concedida ao Congresso Nacional foi percebida como estável no nível de 30%, e ascendente em relação aos sindicatos de trabalhadores (6% para 11%) e a universidades e centros de estudo (14% para 18%). Tradicionalmente, a política externa tem sido atribuição exclusiva do Poder Executivo, cabendo ao Congresso Nacional apenas ratificar as decisões tomadas. Em 2001, 54% dos entrevistados recomendavam negociação prévia com o Congresso, a fim de limitar a margem de arbítrio do Executivo, contra 46% favoráveis à manutenção da existente divisão de papéis e prerrogativas. A pesquisa de 2008 registra uma inversão: a maioria (54%) defendendo as prerrogativas do Executivo contra um terço (38%) preconizando uma maior participação do Congresso Nacional.

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Por que Chávez está confiscando empresas? Alejandro Penã Esclusa

Luludi/Luz

Engenheiro e político venezuelano, foi candidato à presidência do seu país em 1998. Hoje dirige a ONG Fuerza Solidaria e a UnoAmérica – Unión de Organizaciones Democráticas de América. Autor de O Continente da Esperança.

Tradução: Domingos Zamagna Kimberly White/Reuters

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urante os últimos meses houpresas que precisam de divisas estranve ataques muito graves à geiras para operar. É voz comum dizer propriedade privada na Veque, com a baixa dos preços do petróleo nezuela. Essas agressões se e os compromissos políticos internacioapresentam sob diversas modalidades. nais, o governo venezuelano carece de A que passa mais despercebida, por dólares para honrar suas obrigações. ser aparentemente legal, é o controle A quinta forma de atentar contra a dos preços, que obriga os empresários a propriedade consiste nas expropriações vender seus produtos abaixo do custo e confiscos. A diferença entre uma e oude produção. As grandes empresas até tra reside em que nas primeiras se paga, e que podem remediar a medida, comnas segundas, não. Na Venezuela, popensando as perdas com a venda de bens não controlaMaria Cecilia Toro/Reuters dos; já os pequenos empresários se veem obrigados a fechar as portas. De fato, durante os dez anos de governo de Chávez, quarenta e cinco por cento das indústrias fecharam as portas. O segundo ataque contra a propriedade provém do crime organizado, em que se destaca a guerrilha colombiana, a qual opera impunemente nas regiões fronteiriças de Apure, Barinas, Táchira e Zulia. Como se sabe, Chávez mantém uma proximidade ideológica com as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), inclusive guardando um minuto de silêncio logo que soube da morte de Raúl Reyes, razão pela qual muitos venezuelanos asseguram que há cumplicidade entre governo e guerrilha. Chávez se manifestou publicamente A terceira modalidade contra a propriedade privada. são as invasões de terras produtivas e, também, edifícios de apartamentos, favorecidas e amparadas por setores ofirém, essa diferença não é clara, porque ciais. Os proprietários invocam a lei, em muitas expropriações o pagamento é mas mesmo quando os juízes decidem tardio, duvidoso e, mesmo em caso poa seu favor, os corpos de segurança do sitivo, é praticamente anulado com paEstado permanecem inermes quando péis estatais desvalorizados. se trata de reintegração de posse. CháO governo Chávez confiscou emprevez se manifestou publicamente, sosas dos setores cimenteiro, alimentício, bretudo nas últimas semanas, contra a metalúrgico, de comunicações, para propriedade privada. mencionar somente alguns. O quarto esquema de agressão conMas nas últimas semanas o governo siste em não pagar as empresas terceiriestrangulou as terceirizadas petrolífezadas pelo Estado, levando-as à falênras, particularmente 76 delas situadas cia. Há uma crise de pagamento no setor na Zona Oriental do Lago de Maracaipetrolífero, elétrico, alimentício, de inbo (Cabimas, Ciudad Ojeda, Bachafraestrutura e em geral de todas as emquero e Mene Grande).

Mesmo que o governo diga que são expropriações, a forma militar e agressiva como são tomadas as instalações, assim como as promessas de pagamento pouco claras, indica que se trata, de fato, de confiscos. Tudo o que aqui se refere, no momento em que são escritas essas linhas, está causando uma crise social em suas regiões, pois as medidas produziram em torno de vinte mil desempregados. A indústria petrolífera venezuelana sofre uma perda incalculável com os confiscos em Zulia, porque se trata de empresas que durante 60 anos desenvolveram uma grande capacidade tecnológica, convertendo-se realmente em companhias de engenharia de ponta, capazes de desenhar plataformas petrolíferas e construir refinarias. O valor principal dessas empresas não são os seus multimilionários ativos materiais, mas o conhecimento e a experiência, agora irremediavelmente perdidos. O ataque à propriedade privada tem um móvel político. O governo Chávez sabe perfeitamente que a derrocada do preço do petróleo pode dar origem em curto prazo a uma crise financeira e, como consequência, uma crise de governabilidade. O oficialismo acredita equivocadamente que, controlando os meios de produção, poderá ir avante, sem perceber que está jogando lenha na fogueira, pois as empresas confiscadas não aumentam sua produção; pelo contrário, sua produção despenca. Este é um claro exemplo de como o socialismo marxista atua como cabra-cega, impedindo que se vejam os mais simples aspectos da realidade. As agressões contra o empresariado venezuelano coincidem com a feroz perseguição contra os adversários políticos do governo. Chávez quer acabar com toda forma de dissidência para assim poder reprimir com mão de ferro, e sem oposição política, os protestos de ordem social e econômica que se avizinham.

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Rodolfo Buhrer/AE

Sinais positivos na balan莽a comercial do agroneg贸cio


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Antonio Carlos Lima Nogueira Mestre em Administração pela FEA-USP, mestre e graduado em Engenharia agrícola pela Unicamp, professor na pósgraduação da Faculdade de Tecnologia de São Paulo e consultor em agronegócio


Joel da Silva/Folha Imagem

A receita de exportações de carnes diminuiu 11,3%, com US$ 970 milhões em abril de 2009.

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agronegócio brasileiro está melhorando seus resultados no comércio internacional, após o primeiro impacto da crise econômica global. Com base em dados divulgados pelo Ministério da Agricultura e Abastecimento, é possível analisar a evolução recente e a situação atual da balança comercial do agronegócio. Ainda que os valores agregados apresentem uma recuperação para patamares próximos aos do ano passado, algumas mudanças relevantes ocorreram na composição dos fluxos, considerando-se as regiões compradoras, produtos e variações de preços e quantidades. No mês de abril de 2009 as exportações totalizaram US$ 5,483 bilhões, o que representou uma redução de 4,7% em relação ao mesmo período do ano anterior. As importações foram de US$ 679 milhões, ou 13,4% de redução. Como resultado, a balança comercial do agronegócio registrou um superávit de US$ 4,804 bilhões. Assim, diminuíram os valores das exportações e das importações, só que as importações caíram mais do que o dobro do que as exportações. O resultado está alinhado com a análise de Octavio de Barros, diretor de Pesquisas Econômicas do Bradesco, em entrevista à Folha de São Paulo (15/05/2009). Para ele, a grande participação da China e de commodities na pauta de exportações do Brasil impulsionarão um aumento do saldo comercial do País

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em meio à crise econômica. Ele espera um saldo na balança comercial brasileira de US$ 29,4 bilhões neste ano, mais que os US$ 24,7 bilhões registrados no ano passado. Assim como ocorreu no agronegócio, a expectativa de Barros é de que a queda nas importações brasileiras seja maior que a das exportações neste ano, de 31,5% e 25,2%, respectivamente. Na balança comercial do agronegócio em abril, os setores que apresentaram maiores taxas de crescimento em relação ao mesmo mês do ano passado foram: complexo soja (12,2%), complexo sucroalcooleiro (21,1%), animais vivos (14,6%) e produtos apícolas (113,7%). Considerando os grupos de produtos mais importantes da pauta exportadora, apresentaram variações negativas as exportações dos setores de carnes (-11,3%), couros e seus produtos (-49,4%), produtos florestais (10,9%) e café (-12,2%). Para se compreender como esses resultados em valores monetários foram atingidos, é interessante observar os balanços em termos de quantidades e preços negociados nas principais categorias da balança comercial do agronegócio brasileiro. As exportações do complexo soja apresentaram elevação de 12,2%, com US$ 2,087 bilhões. A receita com a exportação de grãos foi de US$ 1,542 bilhão, resultante do aumento de 34,3% na quantidade e redução de 17,8% nos preços. A receita com farelo de soja foi 47% maior, resultado de um aumento de 58,2% na quantidade e queda de 7% nos preços. Os valores exportados de óleo de soja apresentaram queda (-28,5%), com elevação de 27,1% no volume e queda de 43,7% nos preços. Cabe destacar a melhoria qualitativa na composição da categoria, com aumento dos volumes exportados de farelo e de óleo, com potencial melhoria nas margens por serem produtos de maior valor agregado do que o grão. A receita de exportações de carnes diminuiu 11,3%, com US$ 970 milhões em abril de 2009. As receitas de exportação de carne bovina in natura diminuíram 19,5%, com US$ 248 milhões, resultado de uma queda de


Nelson almeida/AFP

15,4% no preço médio e uma redução de 4,9% na quantidade embarcada. As receitas de exportação de carne de frango in natura apresentaram crescimento (4,2%), resultante do aumento da quantidade exportada (28,2%), que mais do que compensou a queda de preços (18,7%). As vendas de carne suína apresentaram re d u ç ã o d e 2 2 , 8 % , e m função da redução dos preços (28,5%) e aumento da quantidade exportada (8,1%). Para os próximos meses são esperados resultados negativos para o comércio de carne suína, em razão da ameaça de epidemia entre os seres humanos da gripe "A H1N1", inicialmente denominada "gripe suína", que teve origem no México. O valor das exportações do complexo sucroalcooleiro apresentou crescimento de 21,1% (passando de US$ 411 milhões para US$ 498 milhões). Esse crescimento é em função das exportações de açúcar, que cresceram 47,9%, atingindo a cifra de US$ 405 milhões. Houve aumento tanto de preço como de quantidade nas exportações do produto, respectivamente de 8,2% e 36,7%. As exportações de álcool tiveram redução, em dólares, de 32,2%, totalizando US$ 93 milhões, resultante da redução tanto da quantidade (-13%) quanto do preço (-22%). Em relação a abril de 2008, as exportações do agronegócio aumentaram em abril de 2009 para a África (24,2%), Ásia (excluindo o Oriente Médio) (+20,9%) e Oriente Médio (33,1%). Para as demais regiões, o impacto da desaceleração econômica mundial se fez refletir sobre o valor das vendas externas. O fato relevante é que a Ásia aumentou a sua participação nas exportações do agronegócio brasileiro, de 28,2% para 32,6%, passando a ocupar a primeira posição, seguida pela União Europeia (27 países), cuja participação caiu de 32,3% para 27,7%. Entre os países de destino das exportações do agronegócio, destacaram-se pelas taxas positivas de crescimento as exportações para China (20,1%), Japão (46%), França (14,5%), Coreia do Sul (36,4%), Arábia Saudita (33,9%)

e Irã (140,3%). A China mantém a primeira posição em participação nos valores totais, com um aumento de 16,5% para 20,7%, enquanto o segundo colocado, os EUA, apresentou queda de 8,2% para 6,9%. Essa concentração de vendas para a China também se observa na balança comercial geral do Brasil, visto que este país passou a responder por 13% do volume exportado, superando os Estados Unidos. Conforme o economista Octavio de Barros, enquanto a importação total da China caiu 22,8% em abril sobre o mesmo mês de 2008, a entrada de produtos brasileiros no país aumentou em 68%. Para ele, o Brasil tem se beneficiado da retomada do crescimento da China, marcada pela expansão do mercado doméstico e pelos investimentos em infraestrutura, que demandam uma grande quantidade de matéria-prima. Apesar dos resultados agregados em valores serem inferiores aos obtidos em abril de 2008, observa-se uma tendência de recuperação do saldo da balança em relação à queda ocorrida no fim do ano passado. Os resultados são positivos em relação às expectativas negativas no início da crise, mas não se podem ignorar as implicações da concentração das exportações em poucos produtos e países para a competitividade internacional do setor e a ameaça da valorização do real em relação ao dólar. A concentração da balança comercial do agronegócio em poucos produtos é uma situação observada ao longo da história do

O valor das exportações do complexo sucroalcooleiro cresceu de 21,1%, passando de US$ 411 milhões para US$ 498 milhões.

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Ayrton Vignola/Folha Imagem

Fernando Donasci/Folha Imagem

A deterioração na capitalização do produtor poderá afetar sua capacidade de custear o plantio da safra 2009/2010.

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País e nas últimas décadas foi intensificada em relação ao complexo soja. Alguns esforços têm sido feitos pelo setor privado e pelo governo para a diversificação da pauta de exportações, principalmente com a participação em feiras internacionais para divulgar os produtos brasileiros. Um exemplo é o crescimento das exportações de produtos apícolas em 113,7%, já citado. Entretanto, ainda não ocorreu uma mudança estrutural na balança comercial, visto que o principal direcionador das exportações nos anos recentes foi a bolha de crescimento global, encerrada em setembro de 2008. No momento atual, a concentração da pauta de exportações, normalmente desfavorável, representa um fator positivo para a recuperação das contas externas brasileiras,

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em razão da recente recuperação econômica da China após o primeiro impacto da crise econômica e consequente aumento das importações do complexo soja. Entretanto, os resultados de abril indicam que a concentração da balança comercial do agronegócio aumentou também quanto aos países de destino, pelo mesmo motivo. O aumento da vinculação do desempenho da balança comercial do agronegócio às vendas do complexo soja para a China, apesar do alívio momentâneo que possa oferecer, envolve alguns riscos. Este país depende de exportações de manufaturados para financiar seu crescimento, apresenta enormes disparidades de renda e uma grande população rural ainda fora do mercado de consumo. Dadas as perspectivas de recessão nos compradores dos seus produtos industrializados, como EUA e os países da Europa, existem claras limitações ao crescimento da China com base em seu mercado interno no curto prazo. Além da baixa renda média da população, a manutenção de níveis elevados de crescimento na China tem gerado problemas ambientais com a emissão de gases de efeito estufa pelo uso de combustíveis fósseis (petróleo e carvão), esgotamento de recursos hídricos e poluição do ar. Apesar da baixa organização atual da sociedade chinesa para articular soluções, esses temas têm sido cada vez mais questionados pela sociedade em âmbito global e por organismos multilaterais. O aumento nos volumes exportados a preços inferiores, observado em alguns produtos, pode ter sido favorecido pela desvalorização do real ocorrida no período. Entretanto, já se observa um movimento de valorização da moeda neste mês. A percepção das melhores condições macroeconômicas do Brasil para suportar os efeitos negativos da crise global tem provocado a volta dos investidores internacionais ao mercado de capitais brasileiro. Além disso, a queda generalizada das taxas de juros nos países desenvolvidos torna a taxa de juros básica brasileira, de 9,25%, extremamente atrativa para os capitais especulativos. Esse processo provavelmente está contribuindo para a valorização do real que, se prosseguir, poderá colocar em risco os recentes avanços na balança comercial do agronegócio, além de prejudicar a renda do setor. A deterioração na capitalização do produtor poderá afetar sua capacidade de custear o plantio da safra 2009/2010, em uma conjuntura esperada de escassez de crédito das agroindústrias, empresas de insumos e tradings.


Adriana David

Abelhas brasileiras nas alturas Paulo Pampolin/Hype

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setor apícola brasileiro está em esmas ainda não se aproximam do mesmo desempenho de anos tado de graça. As fortes vendas de atrás. Foram exportados cerca de US$ 9 milhões nos primeiros mel para o exterior, principalmente quatro meses de 2009 e no mesmo período de 2004, foram empara os Estados Unidos que agora é o barcados o equivalente a US$ 19 milhões em mel. principal comprador do produto brasileiro – posA projeção da Associação Brasileira de Exporto antes ocupado pelos países da União tadores de Mel (Abemel) é vender US$ 83 Europeia – é a razão para a comemomilhões em mel, contra US$ 43,5 miração. Nos primeiros quatro melhões negociados no ano passases do ano, o Brasil exportou do. "Além da retomada das US$ 25,728 milhões em exportações para a Europa, 10,586 mil toneladas de há aumento de consumo mel. Os dados são do Mimundial de mel, decornistério do Desenvolvirente dos cuidados que a mento, Indústria e Copopulação tem com a saúmércio Exterior (Mdic). de", afirma a presidente O resultado já supera o da entidade, Joelma Lamdesempenho do primeiro bertucci de Brito. quadrimestre de 2004 (US$ 20 Segundo Joelma, o grande milhões), dois anos antes de a gargalo é a exigência de casa de União Europeia aplicar embargo ao mel (apiário) registrada no MAPA, Brasil ao constatar, em 2003 e 2005, que o que tem alto custo, e a dificuldade de exItamar Miranda/AE Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecipandir as exportações ao mercado europeu, mento (Mapa) não havia cumprido o cronograma para imque é o melhor mercado para o produto. "Os órgãos goverplantar o Plano Nacional de Controle de Resíduos (PNCR), namentais deveriam estabelecer políticas públicas de desenque certifica o mel brasileiro exportado para a Europa. Em tovolvimento e criar um bom senso quantos às exigências que do o ano de 2004, o Brasil embarcou 21 mil toneladas de mel, estão sendo muito pesadas e de alto custo ao setor", diz. que geraram US$ 42 milhões. Com o embargo, além de passar a vender para os Estados Mesmo com o fim do embargo, as vendas para os Estados Unidos, o Brasil buscou novos mercados, como Japão, que Unidos continuam altas. As vendas para o país norte-amerialém de mel, compra quase toda a produção nacional de cera cano somaram 15,941 milhões de janeiro a abril, quase o dobro de abelha, própolis, pólen e geléia real. Esses últimos produde igual período de 2008, quando foram embarcados US$ 8,673 tos têm pouco peso na composição de exportação do setor. enmilhões em mel. Os Estados Unidos foi responsável por 73% tre 10% e 15%. Alguns exportadores também começaram a da importação do mel brasileiro em 2008. tentar embarcar mel envasado, que tem mais valor agregado As exportações para a União Europeia foram retomadas, que o mel em tambor.

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Gilber to Câmara Diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

O INPE no século 21: Desafios e Oportunidades


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Vista aérea da Grande São Paulo


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O INPE é hoje um centro de excelência

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ivemos num mundo onde os progressos na qualidade de vida e no bem-estar pessoal, social e ambiental dependem cada vez mais da produção de conhecimento. Esse desafio de gerar conhecimento com qualidade é ainda mais intenso para países em desenvolvimento, como o nosso Brasil. É preciso antecipar o futuro e ter a coragem de fazer as escolhas certas hoje. Na trajetória brasileira de conhecimento, inovação, indústria e cultura, quase tudo acontece tardiamente, não raro com atraso de muitas décadas. Nossa história registra uma enorme defasagem entre as mudanças em países desenvolvidos e sua introdução no Brasil. Machado de Assis escreveu Brás Cubas, o primeiro romance realista brasileiro, 40 anos depois da Comédia Humana de Balzac. A estética das músicas de VillaLobos apresentadas na semana de Arte Moderna de 1922 é herdeira direta das peças de Debussy e Fauré, de 1890. Foi apenas em 1946 que montamos a Companhia Siderúrgica Nacional, nossa primeira usina de aço, tecnologia já bem estabelecida na Europa e nos Estados Unidos no final do século 19. Em 1945, as bases da moderna ciência nos EUA foram propostas no relatório de Vannevar Bush, "Science: The Endless Frontier". Do nosso lado, o pleno estabelecimento da ciência

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brasileira acontece apenas no final do século 20, com programas de pesquisa e pós-graduação qualificados. Enquanto isso, o mundo avançou. No século 21, tornou-se mais competitivo e mais conectado. Hoje sabemos que o esforço de formar recursos humanos qualificados e de produzir pesquisa de qualidade não é suficiente para, por si só, gerar riqueza. No mundo desenvolvido, já existe uma outra visão. Os países desenvolvidos aumentam cada vez mais sua riqueza por serem capazes de incorporar o progresso técnico às suas economias. Eles sabem transformar o conhecimento em benefícios sociais e econômicos de forma sistemática e eficiente. O Brasil não pode ficar indiferente a essas mudanças. Por isso, o papel de institutos nacionais como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) é cada vez mais importante. No mundo inteiro, as instituições de Ciência e Tecnologia fazem parte dos bens nacionais mais preciosos. O INPE é hoje reconhecido pelo governo e pela sociedade brasileira como um centro de excelência nacional. Somos responsáveis pelos modelos operacionais de previsão de tempo e clima para o Brasil. Também fazemos o monitoramento diário do desmatamento da Amazônia por satélite. Os satélites sino-brasileiros de sensoriamento remoto (CBERS) são considerados um modelo de cooperação tecnológica avançada entre países em desenvolvi-


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Imagem de satélite da cidade de Manaus

mento. Somos respeitados internacionalmente por nossa pesquisa e nossa tecnologia. A revista "Science" publicou um editorial em que diz que "o sistema de monitoramento do desmatamento do INPE é invejado pelos outros países do mundo". O prestígio e a capacidade já demonstrados pelo INPE aumentam muito nossa responsabilidade. E nosso futuro depende de nossa capacidade de antecipar desafios. E quais são esses desafios? Primeiro, o desafio do desenvolvimento sustentável em meio a uma crise ambiental global. Podemos ter um país diferenciado, se usarmos nosso território para crescer sem des-

truir os recursos naturais. Temos de ser, ao mesmo tempo, líderes mundiais em biocombustíveis e no combate ao desmatamento. Temos ainda de saber como as mudanças climáticas globais irão nos afetar e como poderemos nos adaptar. O segundo desafio é estabelecer um sistema de inovação. Não adianta apenas gerar conhecimento desinteressado, segundo o modelo dos EUA dos anos 50. Não podemos esperar mais 50 anos para descobrir o que os países desenvolvidos sabem hoje: atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) associadas a avanços tecnológicos são essenciais para gerar competitividade.

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O INPE quer ser referência em P&D espacial e do ambiente terrestre

O terceiro desafio é a redução das desigualdades sociais. O contraste entre miséria e riqueza não será vencido apenas com programas de transferência de renda. Precisamos de instituições públicas eficientes, que saibam onde, como e porque alocar os limitados recursos de investimento de que dispomos. Sem um Estado de qualidade, nunca sairemos do subdesenvolvimento. Qual o missão do INPE no século 21? Como as competências e as capacidades do INPE responderão a esses três grandes desafios nacionais? Esses foram os desafios colocados à comunidade em nosso Planejamento Estratégico (PE), concluído em 2007. Partimos de duas questões instigantes: "Como fazer o programa espacial ter o tamanho do Brasil? Como organizar o INPE para gerar resultados de impacto?". A partir delas, promovemos um exaustivo, amplo e participativo processo de debate. Nele, discutimos nossa história, examinamos alternativas, analisamos cenários. Mais que tudo, descobrimos muito sobre nós mesmos. Hoje, sabemos muito melhor quais são nossas dúvidas e quais as perguntas certas a fazer. E cientistas e engenheiros precisam mais de boas perguntas do que de respostas prontas. Temos um norte. Pactuamos uma estratégia central. Para que o programa espacial tenha o tamanho do Brasil, o INPE tem de ser capaz de atender e antecipar as demandas de desenvolvimento e qualidade de vida da sociedade brasileira. Os resultados de impacto do INPE devem ser uma combinação virtuosa de excelência com relevância. Valorizamos nossa pluralidade, pois é a diversidade de competências que nos permite dispor de equipes cooperativas interdisciplinares, imprescindíveis para resolver problemas complexos. Nosso compromisso com o Brasil e nossa responsabilidade cívica fazem com que o INPE tenha contribuições diferencia-

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das para os grandes desafios nacionais. Nossa contribuição para o desafio do desenvolvimento sustentável inclui nossos programas de satélites de observação da terra e suas aplicações, e nossas competências em tempo, clima e mudanças globais. São serviços e conhecimentos que só o INPE possui. Queremos ser a referência mundial em P&D espacial e do ambiente terrestre para todos os problemas científicos que acontecem nas regiões tropicais do planeta. Também queremos ter um papel importante no estabelecimento de um sistema nacional de inovação. Nosso PE recomenda que a janela de planejamento de satélites seja de pelo menos duas décadas. Com isto, poderemos planejar o desenvolvimento tecnológico necessário para implementar o nosso programa de satélites e ampliar a nossa ação como motor de inovação. Passamos a projetar famílias de satélites, com consequente economia de escala e capacidade de incorporar novas tecnologias de forma gradativa. Queremos ter programas de satélites consistentes. Com uma política industrial inteligente, as demandas do INPE fortalecerão as indústrias e ampliarão a inovação no Brasil. Ao partilhar de nossa visão de longo prazo, as indústrias poderão se diversificar e transferir as inovações geradas na área espacial para múltiplos segmentos de mercado. Finalmente, queremos dar respostas importantes para o desafio de reduzir as desigualdades no Brasil. De forma direta, nossos produtos serão instrumentos essenciais para políticas públicas em áreas como energia, agricultura, ecossistemas, saúde, segurança, gestão de cidades e planejamento territorial. O mais importante, porém, é a contribuição intangível. Que melhor contribuição podemos dar para a sociedade do que mostrar que é possível ter no Brasil instituições estatais de


Divulgação

Imagem de Santa Catarina vista do espaço

qualidade? Que melhor exemplo de um Brasil que sonhamos do que um INPE sério, dedicado e com qualidade? Somente como instituições públicas estáveis e com visão de longo prazo é que construiremos um País mais justo, menos ineficiente e mais solidário. O Brasil precisa do INPE. O INPE precisa e pode responder ao Brasil. A relação de 20 anos que o instituto tem com a China, para o desenvolvimento de satélites, tem muitas vantagens. Uma delas é estar exposto a uma cultura que pensa a longo prazo. Sun Tzu, o grande general e estrategista chinês, escreveu há 2.500

anos: "Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas." Hoje o INPE conhece muito melhor a si mesmo, e conhece também melhor o mundo em que estamos inseridos. Daí porque nos enchemos de coragem e confiança para enfrentar as muitas batalhas que teremos pela frente. Estamos a construir uma nova instituição para um novo século.

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Fotos: Paulo Pampolin/Hype

Wesley Alisson/Hype

Ganham o trabalhador ...

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economia informal vai diminuir de tamanho no Brasil. Sob o lema "Vale a Pena Ser Legal", entra em vigor no dia 1º de julho a nova figura jurídica inserida no Simples Nacional, o MEI, sigla de Microempreendedor Individual. Integrantes do governo e da iniciativa privada classificam a chamada lei do empreendedor individual como uma das mais avançadas no mundo em termos de simplificação e menor custo tributário. Não sem razão, promete tirar da informalidade cerca de 10,3 milhões de trabalhadores autônomos que ganham até R$ 36 mil por ano, sendo 3,5 milhões só no Estado de São Paulo. Esses brasileiros não pagam impostos, não têm cobertura da Previdência Social e, tampouco, registro empresarial. À margem da legislação, eles não podem comprovar renda e, portanto, têm dificuldade para obter crédito e tocar de forma satisfatória seus negócios, que não entram no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) por serem clandestinos. A nova figura jurídica foi desenhada de forma a eliminar dois grandes obstáculos à formalização de pequenos negócios no País: a alta carga tributária e a burocracia.

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A inscrição do empreendedor, por exemplo, será feita pela internet em 30 minutos. Outro atrativo é que os optantes vão pagar valores mensais e fixos de impostos que não ultrapassam R$ 60 por meio de um carnê. Nesse montante está incluído um imposto estadual, um municipal, caso seja prestador, e a contribuição ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Fazendo a inscrição, os novos empresários terão direito a benefícios previdenciários e acesso e facilidade de obter crédito. Os planos do governo com a novidade são ambiciosos. A expectativa é chamar para a formalidade perto de 1,1 milhão de trabalhadores até o final de 2010. De concreto, está sendo desenvolvido um portal exclusivo para receber esses empreendedores, o portaldoempreendedor.gov.br. O portal entrará em funcionamento em breve, antes do dia 1º de julho. As primeiras resoluções sobre o funcionamento da nova figura jurídica também já foram publicadas, como a lista das atividades que poderão se enquadrar no Simples Nacional. São mais de 170 atividades das mais diversas, como manicures, cabelereiros, alfaiates, costureiras, vendedores ambulantes, jardineiro, limpador de piscina,


... e o governo entre outros. Esses novos empresários poderão contratar um empregado, no máximo, e, para isso, deverão recolher à Previdência Social. Não precisarão emitir documento fiscal na venda de produtos ou serviços, mas deverão guardar as notas de matérias-primas compradas para exercer sua atividade. Outro ponto em favor da simplificação é que não precisarão fazer a escrituração fiscal que, além de tomar tempo, tem custo elevado. A ideia de um projeto para tirar da informalidade contingente expressivo de trabalhadores sem qualquer vínculo com órgãos do governo, mas que movimentam, e muito, a economia informal, obteve consenso dentro e fora do governo. A votação no Congresso ocorreu de forma tranquila e hoje pelo menos três órgãos concluem os últimos detalhes para fazer valer a lei, com a participação de líderes do setor da contabilidade. São eles o Ministério da Previdência Social, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e a Receita Federal. No primeiro ano de vigência da lei, os novos empresários receberão orientação gratuita dos escritórios contábeis optantes do Simples Nacional. São mais de 20 mil deles

Sílvia Pimentel

espalhados pelo Brasil. Caberá aos profissionais da contabilidade, ainda, a elaborarem a primeira declaração do Imposto de Renda desses trabalhadores. A orientação gratuita foi uma das condições impostas pelo governo durante o aperfeiçoamento da Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas, no Congresso, para que a categoria pudesse migrar de anexo na tabela do Simples Nacional, com custo tributário menor. Se depender da vontade desses trabalhadores, os escritórios de contabilidade terão muito trabalho pela frente. Uma pesquisa feita pelo Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa entre fevereiro e março revelou que 75% dos entrevistados estão dispostos a ingressar no mercado formal sem qualquer receio. Foram entrevistados 534 trabalhadores autônomos nas principais regiões metropolitanas do País. Ao se formalizar, o empreendedor que atua na indústria ou no comércio vai desembolsar todo mês o equivalente a 11% do salário mínimo, ou R$ 51,15, em valores de hoje, para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mais R$ 1 de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), um tributo de

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Fotos: Paulo Pampolin

competência do Estado. O total será de R$ 52,15. Já os prestadores de serviços vão recolher os mesmos R$ 51,15, mais R$ 5 de Imposto sobre Serviços (ISS), gerido pelas prefeituras. Nesse caso, o pagamento mensal será de R$ 56,15. E quem exerce atividade mista (comércio e serviço) recolhe nas três esferas o total de R$ 57,15. Legalizados, no período de um ano, esses trabalhadores passam a ter direito aos benefícios previdenciários, como o auxílio maternidade, auxílio doença. Se o empreendedor escolher se aposentar por idade, deve contribuir por pelo menos 15 anos. Candidatos a MEI O vendedor de massas ambulante Rolando Vanucci não vê a hora de se transformar num MEI. "Quero ser um cidadão legal", disse. Ele vende pratos da culinária italiana há dois anos numa kombi estacionada numa loja de lingerie, próximo à Avenida Sumaré. Possui licença da Prefeitura para trabalhar, mas quer se legalizar por um nobre motivo nos dias atuais. "Terei a oportunidade de registrar minha funcionária", explica. Vanucci foi informado pelo seu contador sobre essa possibilidade e promete ser um dos primeiros a acessar o portal e registrar o seu negócio. Caminho idêntico vai seguir o luthier Wolfgang Schmidt. Ele fabrica de forma artesanal violões numa oficina que mantém na própria casa para estudantes de música erudita. Uma das desvantagens de ser informal é a dificuldade em comprovar renda para obter crédito no mercado. Não é bem esse o problema de Wolfgang, já que costuma comprar sua matéria-prima, a madeira, à vista. "Acho interessante me legalizar por uma questão de marketing", completa. Na lista de atividades que

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No alto, o vendedor de massas Rolando Vanucci; à esquerda, o fabricante de violões artesanais Wolfgang Schmidt; e à direita, a taróloga e astróloga Sandra Ayana.


Wesley Alisson/Hype

Fotos: Paulo Pampolin

No sentido horário, começando pelo alto à esquerda: a costureira Edna dos Anjos Souza, o maquiador Alan Andrew, o fotógrafo Euler Paixão e o adestrador Douglas de Souza. Todos candidatos ao MEI.

poderão ingressar no Simples Nacional preparada pela Receita Federal, algumas chamam atenção. Astrólogos e cartomantes são alguns exemplos. A taróloga e astróloga Sandra Ayana achou interessante a ideia e vai avaliar as vantagens da adesão. "Acho que essa legislação vai trazer para a formalidade muitos trabalhadores honestos", avalia. A costureira Edna dos Anjos Souza mantém uma pequena oficina em sua casa. Confecciona cortinas, almofadas e serviços de costura em geral. Seu negócio é informal por causa dos impostos exigidos e da burocracia a ser enfrentada. Ela fez vários cursos no Sebrae sobre empreendedorismo e pensou, no passado, em registrar o negócio na cidade de Embu, onde morava e a alíquota do ISS é mais baixa que da capital. Desistiu porque se mudou para São Paulo. Agora, com a novidade, vai estudar a possibilidade de registrar seu empreendimento. "É uma boa oportunidade e uma das vantagens é a simplificação, pois a burocracia preocupa e atrapalha", analisa. O maquiador Alan Andrew também é forte candidato a ingressar no sistema. Ele trabalha há seis meses por conta própria numa agência de fotografia e não contribui para o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). "A legislação é bacana porque vai ajudar quem não consegue comprovar renda", afirma. O adestrador Douglas Ricardo de Souza treina cães há 10 anos. Não tem empresa registrada e se mostrou interessado na adesão à nova figura jurídica. "Acho que um registro empresarial fortifica a minha filosofia de trabalho", avalia. O fotógrafo Euler Paixão também ficou entusiasmado com a ideia de ter um CNPJ. Ele trabalha na área há 18 anos.

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TERCEIRIZAÇÃO: VAMOS Leonardo Wen/Folha Imagem

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argumento tradicionalmente utilizado para justificar a terceirização é o do chamado core business. Segundo esse argumento, a empresa deveria focar todo o seu esforço nas atividades essenciais ao seu negócio e delegar para outros tudo aquilo que não seja essencial. O que não for essencial para ela pode ser a especialidade de outra. Contratando essa outra, a empresa ganha em eficiência e em competitividade. Por essa linha de argumentação, a empresa deve terceirizar, por exemplo, a segurança, a limpeza, a manutenção de equipamentos, o suporte de TI, e assim por diante. O problema desse argumento está exatamente no "assim por diante". Muitas vezes não é tão simples separar o core business do secondary business. De qualquer forma, há sempre algumas atividades que podem ser delegadas ou terceirizadas, porque a empresa simplesmente não tem vantagem em aprender a executá-las. Nestes casos, sua terceirização seria uma decisão sensata. Outro argumento também muito utilizado é o da redução de custos: o terceiro pode fazer o serviço com um custo menor. A questão aqui é simples: de onde viria a redução dos custos? Há duas possibilidades: ou a firma terceira é mesmo mais eficiente e faz mais com menos, ou então ela paga menores salários e/ou utiliza insumos de menor qualidade. Se a primeira hipótese for a verdadeira, a terceirização se justificaria plenamente. Mas, se a causa do menor custo for a segunda hipótese, a empresa contratante não fará um bom negócio quando ter-

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Fábio D'Castro/Hype

ceiriza. Na terceirização, em geral, o barato sai caro. O barato sai caro entre outras razões pela possibilidade da terceirização criar um passivo trabalhista. A empresa terceira muitas vezes é pressionada pela contratante para reduzir o preço do contrato. Para não perder o cliente, concorda e acaba numa situação em que o preço cobrado não cobre seus custos. Para continuar operando, deixa de recolher tributos ou então deixa de registrar os empregados terceirizados. Tudo isso se transforma um dia em reclamações na Justiça do Trabalho, para a qual a contratante é tão legalmente responsável quanto a contratada. Por falar em Justiça do Trabalho, essa instituição tem uma visão bastante peculiar sobre a terceirização. O famoso Enunciado 331 do TST, pelo qual nossa corte trabalhista tem se pautado, criou a dicotomia atividade-fim e atividade-meio. De acordo com o Enunciado, nossos juízes consideram a terceirização legal e legítima apenas se a atividade terceirizada for atividade-meio. As atividades-fim não podem ser terceirizadas. A mesma dificuldade que se tem em definir o core business está presente neste conceito. Hoje, as facilidades criadas pela tecnologia e pela globalização levaram muitas empresas a se organizar segundo o conceito de cadeia produtiva. Nesse conceito, a empresa-mãe é apenas uma coordenadora, contratando empresas para executar partes do serviço. A soma de todos os serviços contratados resulta num bem ou num serviço oferecido pela empresa mãe. Muitas vezes a cadeia produtiva é


DEPURAR OS DISCURSOS? Milton Mansilha/Luz

Leonardo Rodrigues/e-Sim

Quando a empresa terceiriza uma atividade, ela deve abrir mão do controle dessa atividade e delegá-la totalmente à empresa terceira. Se a empresa contratante pretender manter a supervisão e o controle, não terá terceirizado a atividade.

formada por empresas próximas, que podem estar localizadas numa mesma vizinhança ou até em um mesmo local. Outras vezes, as empresas prestadoras dos serviços podem estar localizadas em continentes diferentes, embora pertençam a uma mesma cadeia produtiva. Os negócios se organizam nos dias de hoje de uma maneira extremamente dinâmica. O conceito de atividade-meio e atividade-fim é claramente desatualizado para essa realidade. De onde viria a resistência da Justiça do Trabalho em reconhecer a transformação produtiva a aceitar a terceirização? Provavelmente vem da constatação de que, infelizmente, muitas terceirizações de fato deterioram as condições de trabalho. Para entender melhor esse ponto, talvez valha a pena criar mais uma dicotomia: a terceirização de atividade e a intermediação de mão-de-obra. Quando a empresa terceiriza uma atividade, ela deve abrir mão do controle dessa atividade e delegá-la totalmente à empresa terceira. Esse seria o conceito correto de terceirização. Se a empresa contratante pretender manter a supervisão e o controle sobre os trabalhadores terceirizados, na verdade não terá terceirizado a atividade. Terá apenas contratado um serviço de intermediação de mão-de-obra. Terá contratado empregados por meio de um terceiro e, de fato, os empregados terceirizados seriam seus empregados, porque continua exercendo sobre eles o monitoramento e o controle. Por que a empresa faria isso? Muitas vezes, porque assim procedendo "transfere" seus emprega-

Hélio Zylberstajn Professor da FEA/USP e presidente do IBRET – Instituto Brasileiro de Relações de Emprego e Trabalho

dos para a representação de outro sindicato, menos poderoso e menos exigente em termos de negociação das condições de trabalho. Em outras palavras, reduz custos por meio de um expediente questionável. Como os sindicatos vêem a terceirização? Na verdade, com alguma ambigüidade. De um lado, manifestam preocupação pela terceirização que disfarça a intermediação de mão-deobra, sob o argumento da chamada precarização. Não deixam de ter razão nesse ponto. Mas a oposição sindical à terceirização tem outra razão, essa menos explicitada: a disputa pela "base" sindical e pela receita da contribuição sindical. É muito simples: se a terceirização implicar em "transferência" de trabalhadores para outra representação sindical, o sindicato original perde membros e receita. É por essa razão que os sindicatos pressionam o Congresso para, por meio da regulamentação, restringir a possibilidade de empresas reduzirem salários e direitos via terceirização. É a bandeira de salários iguais para terceiros que desempenham funções iguais. Mas, essa bandeira se aplica apenas à terceirização que estou denominando de intermediação. Como ficaria nessa futura regulamentação a terceirização legítima de atividades? A conclusão é simples: no debate da terceirização, tanto o discurso empresarial quanto o discurso sindical precisariam ser depurados. A terceirização não é boa nem má; é uma necessidade em muitos negócios. Reconhecê-la e legalizá-la é tão importante quanto combater a intermediação travestida de terceirização.

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Todo o poder aos ladrões Divulgação

Olavo de Carvalho Jornalista, escritor e professor de Filosofia

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Ed Ferreira/AE

Lula Marques/Folha Imagem

O combate à corrupção passou a ser ocupação da mídia.

O partido que mais devotamente se empenhou em denunciar corruptos, foi aquele que, ao chegar ao poder, construiu a máquina de corrupção mais majestosa de todos os tempos.

Rodrigo Paiva/AE

o tempo dos militares, centenas de políticos passaram pela Comissão Geral de Investigações (CGI) e tiveram suas carreiras encerradas com desonra, por delitos de corrupção. Ao mesmo tempo, dos generais e coronéis que ocuparam altos postos na República, nenhum saiu milionário. O patrimônio que lhes sobrou é o que teriam adquirido normalmente com seus soldos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Com a Nova República, tudo mudou. Primeiro, o combate à corrupção deixou de ser um empreendimento discreto, levado a cabo por investigadores profissionais: tornou-se ocupação da mídia. Nos momentos mais intensos das CPIs nos anos 90, deputados e senadores confessavam que os jornais passavam por cima deles, investigando e descobrindo tudo antes que Suas Excelências tivessem acabado de tomar seu café da manhã. Tudo o que os parlamentares tinham a fazer era dar cunho oficial às sentenças condenatórias lavradas nas redações de jornais. Segunda diferença: o partido que mais devotadamente se empenhou em denunciar corruptos, destruindo as carreiras de todos aqueles que pudessem se atravessar no seu caminho, e assim tornando viável, por falta de adversários, a candidatura presidencial de uma nulidade que de tanto sofrer derrotas já levava o título de “candidato eterno”, foi também aquele que, ao chegar ao poder, construiu a máquina de corrupção mais majestosa de todos os tempos, elevando o roubo a sistema de governo e provando que só conhecia tão bem as vidas e obras dos ladrões que denunciara por ser muito mais ladrão do que eles. Essa transformação foi acompanhada de outra ainda mais temível: o crescimento endêmico do banditismo e da violência, que hoje atingem a taxa hedionda de 50 mil brasileiros assassinados por ano. Completando o quadro, a classe política mais canalha que já se viu investiu-se da autoridade de educadora da pátria, impondo por toda a parte suas crenças e valores e destruindo os últimos resíduos de moralidade tradicional que pudessem


Reprodução

subsistir na sociedade brasileira. Definitivamente, há algo de errado no “combate à corrupção” tal como empreendido desde o retorno da democracia. Hoje em dia, espetáculos degradantes em que senhores de meia-idade, seminus, balançam suas banhas na Parada Gay são tidos como o auge da moralidade, o símbolo de direitos sacrossantos ante os quais a população, genuflexa, deve baixar a cabeça e dizer “amém”. O suprassumo da criminalidade reside em empresários que falharam em cumprir algum artigo de códigos labirínticos propositadamente calculados para ser de cumprimento impossível, criminalizando todo mundo de modo que os donos do poder possam sele-

cionar, da massa universal de culpados, aqueles que politicamente lhes convém destruir, com a certeza de sempre encontrar algum delito escondido. Ao mesmo tempo, juízes bem adestrados no espírito militante invertem a seu belprazer o sentido das leis, promovendo assassinos e narcotraficantes ao estatuto de credores morais da sociedade, e impõem como único princípio jurídico em vigor a “luta de classes”. Nesse quadro, qualquer acusação de corrupção, vinda da mídia ou do governo, é suspeita. Não que sempre os fatos alegados sejam falsos. Mas, por trás do aparente zelo pela moralidade, esconde-se, invariavelmente, alguma operação mais ilegal e sinistra do que os medíocres delitos denunciados. A noção de “corrupção” implica, por definição, a existência de um quadro jurídico e moral estabelecido, de um consenso claro entre povo, autoridades e mídia quanto ao que é certo e errado, lícito e ilícito, decente e indecente. Esse consenso não existe mais. Quando uma elite de intelectuais iluminados sobe ao poder imbuída de crenças nefastas que aprenderam de mestres tarados e sadomasoquistas como Michel Foucault, Alfred Kinsey e Louis Althusser, é claro que essa elite, fingindo cortejar os valores morais da população, tratará, ao mesmo tempo, de subvertê-los pouco a pouco de modo que logo haverá dois sistemas jurídico-mo-

rais superpostos: aquele que a população ingênua acredita ainda estar em vigor, e o novo, revolucionário e perverso que vai sendo imposto desde cima com astúcia maquiavélica e sob pretextos enganosos. Nesse quadro, continuar falando em “corrupção”, dando à palavra o mesmo sentido que tinha nos tempos da CGI, é colaborar com o crime organizado em que se transformou o governo da República. Isso não aconteceria se, junto com a inversão geral dos critérios, não viesse também um sistemático embotamento moral da população, manipulada por uma geração inteira de jornalistas que aprenderam na faculdade a “transformar o mundo” em vez de ater-se ao seu modesto dever de noticiar os fatos. Quando um país se confia às mãos de uma O jornal Diário do elite revolucionária, sem saber que Comércio criou o é revolucionária e imaginando que Museu da Corrupção ela vai simplesmente governá-lo (MuCo), que pode em vez de subvertê-lo de alto a baiser acessado no site xo, a subversão torna-se o novo nowww.dcomercio.com.br me da ordem, e a linguagem dupla torna-se institucionalizada. Já não se pode combater a corrupção, porque ela se tornou a alma do sistema, consagrando a inversão de tudo como norma fundamental do edifício jurídico, ocultando e protegendo os maiores crimes enquanto se empenha, para camuflá-los, na busca obsessiva de bodes expiatórios. Sempre que o governo se sente ameaçado por denúncias escabrosas ou por uma queda nas pesquisas de opinião, logo aparece algum empresário que não pagou imposto, algum fazendeiro que reagiu a invasores, algum padre que expulsou um traveco do altar – e estes são apontados à população como exemplos máximos do crime e da maldade. Enquanto isso, o Estado protege terroristas e narcotraficantes, acoberta as atividades sinistras do Foro de São Paulo e lentamente, obstinadamente, sem descanso, vai impondo à população o respeito devoto a tudo o que não presta. O mais abjeto de tudo, no entanto, é a presteza com que as próprias classes mais vitimizadas nesse processo – os empresários, as Forças Armadas, os proprietários rurais, as igrejas cristãs – se acomodam servilmente à nova situação, inventando os pretextos mais delirantes para fingir que acreditam nas boas intenções de seus perseguidores. Quando se torna institucional, a corrupção é ainda algo mais do que isso: é um veneno que se espalha pelas almas e as induz à cumplicidade passiva ou à adesão subserviente.

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POPULISMO BRASILEIRO

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Getúlio Vargas e o Estado Novo: ditadura populista, em que ele assumiu o papel de governante patriarcal.

Bom para os políticos,

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Augusto Zimmermann Professor de Direito da Murdoch University, Western, Austrália.

ruim para os pobres O populismo é forte no País porque muitos brasileiros fazem uma leitura mais emotiva do mundo, e estão mais inclinados a aceitar promessas demagógicas. Ricardo Stuckert/PR

Publicado no site Brazzil.com. Tradução: Tatiana Silvestre.

Valter Campanato/ABr

Ricardo Stuckert/PR

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Durante o período colonial, a Coroa Portuguesa era excessivamente dependente da aristocracia latifundiária .

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opulismo reflete o estilo retórico de líderes políticos que alegam governar diretamente para o povo. No contexto da América Latina, populismo pode assim ser usado para descrever "movimentos de massa populares... baseados em apelo emotivo... e frequentemente organizados em torno de um único líder carismático". Como afirma o teórico político Carlos Alberto Montaner: "Populismo é uma tendência ideológica e uma forma de governança que une todos os erros e vícios políticos despudoradamente praticados por latino-americanos ao longo do século 20: a lei do mais forte, a patronagem, o estadismo, o coletivismo e o antiamericanismo". Políticos cuja vocação pode ser descrita como populista desejam que seu povo os considerem dotados de atributos reais ou imaginários de bondade, generosidade, coragem e preocupação pelos pobres. São políticos que

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aparentam falar pelo povo, apesar de, como o falecido historiador José Honório Rodrigues já tinha observado, problemas sócio-econômicos no Brasil sejam agravados por causa deles — "falsos líderes do tipo agitador, incansáveis e dominados por sentimentos de vergonha e culpa". Durante o período colonial, a Coroa Portuguesa era excessivamente dependente da aristocracia latifundiária para o desenvolvimento da economia brasileira e para sua segurança militar. Donos de terras administravam a Justiça em seu território e tinham suas próprias milícias com o propósito de manter a ordem pública. Como eram independentes da lei vigente, tornaram-se protetores patriarcais da população a seu redor. Por isso, como o professor de história Márcio Valença aponta, "uma relação do tipo patrono-cliente era baseada na troca mútua e na expectativa de ambos os lados de que esta


dependência traria rendimentos futuros. O patrão provia recursos, proteção e conexão com o mundo externo... O ‘cliente’ oferecia apoio e obediência... O sistema patronocliente dependia da interação entre indivíduos e do favorecimento de relações informais e flexíveis. Com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, patrões rurais locais tornaram-se mediadores entre cidadãos e o governo. Esses patrões locais mantinham seu poder tradicional, exigindo lealdade daqueles sob sua proteção patriarcal. A segurança econômica e bem-estar social dos indivíduos tiveram origem diretamente na soberania de seus patrões. Havia, de fato, certo senso de noblesse oblige da parte dos patrões, ao passo que seus vassalos mantinham uma postura de lealdade pessoal para com eles. Como explica o antropólogo americano Charles Wagley, já falecido: "Frequentemente, o chefe político local, o coronel, era como um patrão dos seus seguidores, que recebia favores e esperava favores futuros. Um trabalhador de classe mais baixa sem patrão, fosse um coronel ou outro tipo patrono, era um homem sem um protetor em tempos de necessidade. O patrão provia alguma forma de previdência social – geralmente a única disponível ao trabalhador". Um texto importante para aqueles interessados em entender, em detalhes, o papel do patrono político na sociedade brasileira e, em especial, a maneira como o poder político tem sido exercido desde o início da colonização do Brasil, é o clássico "Os Donos do Poder" (The Owners of Power), escrito em 1957 pelo já falecido jurista Raymundo Faoro. Em um dos últimos e mais importantes parágrafos desde livro seminal, Faoro fornece uma explicação generalizada do por que o poder pessoal tem tanta significação no Brasil: O chefe protege interesses particulares, concede privilégios e incentivos, e distribui empregos e benefícios. É esperado que ele faça justiça sem nenhuma atenção a regras objetivas e impessoais. Na pessoa do soberano está concentrada toda a esperança dos ricos e dos pobres, pois o Estado é o centro de todo poder da sociedade brasileira... O chefe não está sujeito à aristocracia latifundiária nem à burguesia. Ele governa… diretamente sobre a nação. Ele fala diretamente ao seu povo, não a intermediários... Ele é o pai do povo, não... um governante legal e constitucional. Ele é o bom príncipe que… põe em prática políticas de bem-estar social a fim de garantir o apoio das

massas. Para evitar qualquer participação real popular, ele frequentemente apela a mobilizações de rua; manifestações públicas das quais a única coisa que fica é a poeira de suas palavras sem sentido. Como filho de um Estado providencialista, ele fortalece o poder do Estado usando todos os meios que a tradição (estadista) oferece. Em casos extremos, torna-se o ditador social do tipo socialista, que satisfaz aspirações populares acalmando as pessoas com pão e circo. O processo de industrialização iniciado na década de 1930 criou uma vasta classe urbana que se desenvolveu independentemente das velhas influências da aristocracia latifundiária. Esse período de migração interna viu o poder político transferido da oligarquia latifundiária a líderes urbanos. A ascensão do populismo é identificada como um subproduto do processo de industrialização, emergindo na cena política no momento em que as massas populares migraram para os centros urbanos em busca de novas oportunidades. No entanto, toda essa mudança na estrutura sócio-econômica não modificou os padrões comportamentais tradicionais, uma vez que aqueles que saíram da zona rural para as cidades mantiveram a tendência de conservar todas as relações, incluindo aquelas com oficiais públicos, em termos pessoais, ao invés de impessoais e legais. Em outras palavras, daqueles no poder ainda se esperava "generosidade" aos partidários e conhecidos. O primeiro líder político a tirar vantagens da preservação da mentalidade política herdada do meio rural foi Getúlio Vargas, um caudilho próspero (oligarquia rural). Em 1937, planejou a tomada de poder que instalou o Estado Novo, uma ditadura populista em que ele assumiu o papel de governante patriarcal que atraía as massas populares como seu governante supremo e benfeitor. Como mostra Joseph Page: "Ao assumir a presidência, após a revolução de 1930, ele partiu para criar uma relação de dependência, não somente entre governo e empresas privadas... mas também entre governo e trabalho. Este relacionamento tornou-se imagem espelhada do tradicional laço entre o dono da terra e os lavradores rurais brasileiros". Lavradores que se mudaram para as cidades encontraram estrutura social bastante diferente da que estavam acostumados. Eles agora têm de morar em favelas desorganizadas e, à medida que o Brasil se industrializa,

Com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, patrões rurais locais tornaram-se mediadores entre cidadãos e o governo. Esses patrões locais mantinham seu poder tradicional, exigindo lealdade daqueles sob sua proteção patriarcal.

Curiosamente, Vargas era um advogado e dono de terras, que iniciou sua carreira política com apoio de outras oligarquias rurais também originárias do Rio Grande do Sul.

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Paulo Whitaker/Reuters

trabalhar em empresas impessoais. Dessa forma foi fácil para Vargas substituir o governo como a autoridade que cuidaria das necessidades dos empregados, assim como o dono da terra havia feito anteriormente no interior Curiosamente, Vargas era um advogado e dono de terras, que iniciou sua carreira política com apoio de outras oligarquias rurais também originárias do Rio Grande do Sul. Mas ele foi sábio o suficiente para perceber que o processo de urbanização reduziria drasticamente o poder dos donos de terras. Originalmente, porém, como explica o filósofo político e ex-embaixador brasileiro J. O. de Meira Penna: "Vargas mantinha laços, principalmente, com os donos de terra do seu próprio Estado, cujo interesse ele continuou a defender mesmo depois de se tornar um populista líder carismático. Logo após a 'revolução' de 1930, um de seus mais jovens seguidores, Lindolfo Collor, sugeriu a introdução de uma nova lei trabalhista... Vargas aceitou as idéias de Collor com desconfiança: 'Vamos torcer para que este alemãozinho não nos traga muitos problemas...' Mas então se deu conta que as novas leis trabalhistas e da Previdência Social haviam sido copiadas da italiana e fascista Carta Del Lavoro, mantendo os sindicatos sob o poder do Ministério do Trabalho do seu próprio governo. Assim, as massas proletárias poderiam, eventualmente, mobilizarem-se a seu favor..." Vargas construiu em torno de si a imagem de governante paternal, tendo como modelo o pater familias. Posou como sendo o grande "pai" das classes trabalhistas, esperando delas lealdade absoluta, a ponto de, entre 1937 e 1945, suas leis serem pouco mais que ferramentas para a imposição da própria vontade. De fato, Vargas era virtualmente livre para instruir autoridades públicas a matar, prender e torturar qualquer pessoa que desejasse. Após visitar o País em 1938, o famoso cientista político Karl Loewenstein escreveu que o maior trunfo da ditadura brasileira era o próprio ditador, o qual, segundo disse, carregava o regime "nos próprios ombros". A ditadura tem caráter personalista. Pois é inteiramente diferente do padrão totalitarista europeu. Nenhum partido político a protege, e nenhuma ideologia coerciva a sustenta. O regime, exceto o exército, apoia-se em calços invisíveis; é baseada na popularidade de um único homem. Desde então, alguns dos políticos brasileiros mais bem-sucedidos foram "discípulos"

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Fábio Motta/AE

Cada setor do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual pertence Lula, foi acusado de suborno, fraude, compra de voto, roubo de dinheiro público, financiamento ilegal de campanha, e por acobertar outros comportamentos de caráter fraudulento.


orgulhosos de Vargas. Admiram o ex-ditador por suas políticas "progressistas" de estadismo nacional e previdência trabalhista, que também são bastante apreciadas pelos eleitores que aguardam um "salvador" para inaugurar o "paraíso tropical" no Brasil. Esses eleitores compreendem que "Vargas era ditador, mas foi bom conosco". Ou, como disse um trabalhador: "Nunca permiti que falassem pejorativamente sobre Vargas... Sabia que ele sempre nos dava benefícios, minha carteira de trabalho... Pensava: sou trabalhador, e ele me deu tantos benefícios". Segundo a socióloga brasileira Maria Lúcia Victor Barbosa, o populismo é forte no País porque muitos brasileiros "fazem uma leitura mais emotiva do mundo", e desta forma estão mais inclinados a aceitar promessas demagógicas de "natureza messiânica". Este aspecto antidemocrático da sociedade brasileira ajuda a explicar os resultados da pesquisa conduzida pela Organização das Nações Unidas (ONU), que concluiu, em 2004, que apenas 30,6 % dos brasileiros se consideram democratas. A pesquisa pode refletir sentimentos nostálgicos por antigas ditaduras "benevolentes". Seu resultado teria sido pior caso tivesse sido pedido àqueles que responderam a favor da democracia que explicassem o que a expressão significa. Devido à natureza da sociedade brasileira, muitos brasileiros associam democracia ao desejo da maioria e não com o Estado de Direito. De fato, todo o processo de "mobilização social" tende à personificação do poder, isolando o poder supostamente "democrático" de líderes demagógico-populistas do Estado de Direito. Como resultado, sob o atual governo populista do presidente Lula da Silva, a corrupção atingiu níveis sem precedentes. A administração Lula é responsável pela maior série de escândalos de corrupção da história do País. Segundo James Petras, professor de sociologia esquerdista e especialista em política brasileira, "cada setor do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual pertence Lula, foi acusado de suborno, fraude, compra de voto, roubo de dinheiro público, financiamento ilegal de campanha, e por acobertar outros comportamentos de caráter fraudulento". O fato de o presidente Lula permanecer tão popular em meio a tantos escândalos, envolvendo centenas de milhões de dólares, não deveria oferecer nenhum tipo de surpresa àqueles familiarizados com o funcionamento da máquina política brasileira. Por exemplo, o

Sob o atual governo populista do presidente Lula da Silva, a corrupção atingiu níveis sem precedentes. A administração Lula é responsável pela maior série de escândalos de corrupção da história do País.

Outro exemplo de populismo atual envolve a distribuição de dinheiro a famílias na forma de um suposto programa antifome chamado Bolsa Família. Este programa é controlado pelo governo federal e fornece dinheiro a milhões de brasileiros.

governo gastou milhões de dólares em propaganda política. No entanto, tal propaganda nada faz para reduzir os problemas sociais, serve para aumentar a imagem carismática do presidente, "ex-trabalhador de chão de fábrica, sem diploma universitário, que fala ao seu povo como um deles". O apoio ao governo também é obtido pelo fato de a administração pública federal ter empregado, dentro da máquina governamental, milhares de membros e partidários do PT, no poder atualmente. Um grande número de líderes deste partido, incluindo líderes sindicais, foi indicado para altas posições do governo. É prática tão comum, que um ex-presidente da Suprema Corte de Justiça (STF), o ministro Mauricio Correa, já aposentado, denunciou que até mesmo os cargos que exigem a mais alta qualificação técnica estão sendo destinados a membros não qualificados do partido, que pagam ao PT contribuição de até 20% dos seus salários. Outro exemplo de populismo atual envolve a distribuição de dinheiro a famílias na forma de um suposto programa antifome chamado Bolsa Família. Este programa é controlado pelo governo federal e fornece dinheiro a milhões de brasileiros, cerca de um quinto da população do País. Tal "generosidade" não oferece solução real ao problema da pobreza; no entanto, incentiva o pobre a ver o presidente Lula como um líder paternal "generoso" e provedor. Infelizmente, programas governamentais demagógicos como o Bolsa Família, acabam por agravar o excesso de burocracia e gastos do governo, que são um dos motivos pelos quais a dívida pública, impostos e taxas de juros sejam tão altos no Brasil, com o governo reivindicando estimados 40% do PIB (Produto Interno Bruto) na forma de impostos e contribuições. No Brasil, a tributação para subsidiar a expansão governamental é exagerada, e a quantidade de burocracia enfrentada, em todos os níveis do governo, é simplesmente enorme. Segundo o Index of Economic Freedom (Índex de Liberdade Econômica), de 2008 , "iniciar uma empresa no Brasil leva três vezes mais tempo que a média global de 43 dias, e obter licença para abertura de uma empresa demora mais que a média global de 234 dias". Por fim, "regulamentações empregatícias inflexíveis", outro problema que o populismo certamente agravam, são responsáveis por criar "uma aversão de risco para empresas que, de outra maneira, contratariam mais pessoas e cresceriam".

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Reprodução

Pandiá Calógeras, um brasileiro ilustre José Maria dos Santos Após assumir o poder em 1930, Getúlio Vargas pôs em movimento uma máquina de propaganda que, reforçada pela liberdade que lhe deu a ditadura, a partir de 1937, tentou fazer a nação acreditar que a República estava começando naquela época. Foi bem-sucedido porque até hoje os 40 anos de existência da chamada República Velha são repassados vaga e burocraticamente nas escolas, atirando ao limbo as figuras políticas que dela participaram. Tais personagens sobreviveram apenas nos meios acadêmicos. O engenheiro carioca João Pandiá Calógeras (1870-1934) foi uma das vítimas desse banimento de caráter histórico. No entanto, uma rápida consulta à sua biografia denunciaria a injustiça do ostracismo. Foi um homem que procurou pensar o País no sentido de realizar seus potenciais. Iniciou essa trajetória na Câmara Federal onde, como deputado pelo Partido Republicano Mineiro, conseguiu aprovar a lei que garantia à União o direito de explorar nosso subsolo. Como ministro da Agricultura de Wenceslau Brás (1914-1918) inaugurou os estudos para substituir a gasolina pelo álcool e, em seguida, reorganizou o Ministério da Fazenda, contaminado pela incompetência e corrupção. No entanto, seu momento maior ocorreu durante o governo de Epitácio Pessoa (1919-1922). Tornou-se então o primeiro e único Ministro da Guerra Civil do Brasil até a criação do Ministério da Defesa, ocorrida durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso. Ele assumia a pasta com amplo apoio das Forças Armadas e não as decepcionou no que diz respeito à função constitucional delas, que é a de garantir a segurança do País. Promoveu seu reaparelhamento e modernização que beneficiou particularmente o Exército, instalou a Escola de Aperfeiçoamento dos Oficiais e empreendeu novo traçado da nossa divisão territorial militar à luz dos conceitos geopolíticos. O texto que se segue resume com fidelidade a sua mobilização e preocupação com a evolução da Nação.


Digesto Econômico nº 81 Agosto de 1951

O Brasil e seu desenvolvimento econômico João Pandiá Calógeras

Ilustrações:

Enriquecendo a sua "calogereana", o Digesto Econômico arquiva em suas páginas a conferência que o notável publicista, Pandiá Calógeras, proferiu, em 1912, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, sobre o desenvolvimento econômico do Brasil e que não foi tirada em folheto, nem inserta nos seus opulentos e clássicos livros. Este ensaio magistral, que tanto entusiasmo despertou no apaixonado dos fastos brasileiros, o autor do "Pelo Sertão", ainda recentemente mereceu de Sérgio Buarque de Holanda a seguinte apologia: "Admirável síntese

em que Calógeras mostrou as amplas perspectivas que oferece a exploração de um domínio quase virgem: o de nossa história econômica". O Digesto Econômico, com a divulgação dessa preciosa lição de economia nacional, conhecida apenas de pesquisadores e de leitores dos anais da Biblioteca Nacional, espera prestar um serviço relevante, sobretudo aos estudantes das Faculdades de Ciências Econômicas do País. Agradecimentos a Luciana Costa, do Núcleo de Biblioteca e Memória da ACSP

A

atividade econômica brasileira fora incompreensível se se não procurassem seus estímulos originários em remoto passado, nas possibilidades do meio, no esforço humano nacional, no impulso vindo do mundo inteiro, A própria configuração política da nossa Pátria é, em parte, sua criação, por menos que se queira aceitar do materialismo histórico: o ouro no século 18 lindou Mato Grosso das possessões espanholas; a borracha, em nossos dias, traçou a divisa com o Peru e a Bolívia. Os cabedais levados pelos conquistadores do México e do Império dos Incas correspondiam estreitamente às noções contemporâneas sobre riquezas: pedrarias, metais preciosos, aromas, especiarias, essências raras. O Oriente mais valia do que o Poente, nas ideias da época. Não seria o Brasil, a Leste dos países do ouro, da prata e das esmeraldas, mais rico do que esses?


Organizada a dominação lusa, por 1530-35, vinha esse preconceito fixo da existência de riquezas firmado nos próprios forais das Capitanias. Procuravam-nas expedições várias, inconscientemente transviadas pelos índios que desconheciam os metais, falavam em pedras brilhantes de cores várias, onde os portugueses compreendiam ouro e prata. O ciclo de pesquisas desta última durou 200 anos e provou infrutífero. O ouro só dois séculos após Cabral tomou vulto. No século 18 fazem-se as descobertas que fundaram Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Das esmeraldas, alvo de pesquisas nos primeiros tempos da conquista, principalmente, restavam apenas as turmalinas, as águas marinhas e os berilos da zona do Arassuaí. Assim, antes do rush do ouro em Minas Gerais, de 1698 em diante, largo prazo houve, mais de século e meio, durante o qual tiveram de ser considerados elementos basilares da vida colonial os que derivam de sua flora, dos animais que lhe povoavam as terras e os mares. (...) A Serra do Mar havia sido transposta em ponto único, São Paulo. Daqui, seguindo a di-

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retriz dos rios, se iniciava a conquista do sertão. Na Bahia, não havia cadeia litorânea e a internação se fizera com menores empecilhos. Na ausência de indústrias, na existência do gado, na falta do sal teve sua origem o largo emprego do couro cru, espichado em varas e seco ao sol, utilizado em todos os misteres da vida. Propôs Capistrano de Abreu adotar a "idade do couro" como característica desse gênero de atividade, ainda vigente em vastas zonas do Brasil atual. (...) Unidade econômica era a fazenda, produzindo o essencial para vestir e alimentar seus moradores. O supérfluo vinha do Reino. Nas trocas os saldos compensavam em gado. As economias empregavam-se em escravos e joias, quando não devoradas pelo jogo. Moeda, escassa e de pequena circulação, não abundava no interior; refluia para as praças da costa. Entesourava-se, mais do que utilizava no giro comercial. (...) Era uma revolução nas relações entre a colônia e metrópole. Surgiam valores novos. Modificavam-se conceitos. Faziam-se mister soluções outras que as vigentes. Acentuou essa

Unidade econômica era a fazenda, produzindo o essencial para vestir e alimentar os moradores. O supérfluo vinha do Reino. Nas trocas os saldos compensavam em gado.


superioridade das capitanias mineiras o invento dos diamantes em 1729. Não há exagero ao afirmar que todo o esforço metropolitano, a partir de 1700, foi subordinado ao predomínio da extração das riquezas minerais. Daí a proibição de qualquer desvio de atividade para faina diversa do meneio das jazidas. Fechavam-se os engenhos. Um alvo único – ouro e diamante –, e nesse rumo a atenção máxima do aparelho governativo português. Abrem-se estradas. Povoam-se de gente e de gado, os sertões goianos e matrogrossenses. As cidades, fundadas pelos lavradores de minas, tem população por vezes décupla da atual. O latim, o francês são ensinados; desenvolve-se a cultura musical. A história desse período é a luta do faiscador, do garimpeiro, da sociedade de mineração contra o Fisco. A guerra entre o esforço e o exator. História política. História econômica e geográfica também. Esgotada a mina, vinha o declínio de atividade, a morte das zonas despojadas do metal que lhes alimentava o labor e a energia. Ir a estes lugares é visitar cidades mortas. Ambiente de lendas, tradições e fantasias, restos longínquos do sonho do ouro do faiscador, das fulgurações do brilhante na mente do garimpeiro, nas quais, amortalhadas, acabam as velhas capitais resplandecentes seus lentos e últimos e tristes dias de decadência e agonia. Em certos pontos, vin-

gou-se a floresta, derrubada para se abrir a lavra: hoje, o matagal tudo invadiu, cobrindo os engenhos, derruindo aos poucos as construções, sepultando destroços, Etiam periere ruinae. Florescia o contrabando, em razão da ganância fiscal. Melhorava o conhecimento do território; aumentava a povoação da terra inculta, sem amanho mesmo: consequências benéficas do descaminho. Por 1780, começou o enfraquecimento das minas, esgotadas progressivamente por um labor que mal reservava o futuro. Salientava-o, na sua instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais, de 1787, o Desembargador Teixeira Coelho. Formulou plano para combater sua decadência, o Governador D. Rodrigo José de Menezes, propondo remédios que valeriam por uma revolução nos métodos de governo: desenvolver a lavoura; criar indústrias novas; fundar uma caixa de auxílio para as pesquisas; provocar a cooperação; simplificar litígios sobre as posses lavradas; reformar a circulação metálica regional; criar a circulação fiduciária, resgatável nas condições da emissão da moeda local. Detalhe curioso, que se poderia ligar à proposta "idade do couro": as notas emitidas viriam pregadas em pedaços de couro de tamanho igual. A escravatura, importada da África, viveiro de metalurgistas natos, havia iniciado o preparo do ferro, extraído de seus minérios, em Ipa-

O texto que publicamos é uma conferência dada por Pandiá Calógeras em 1912 na Biblioteca Nacional do Rio do Janeiro.

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nema e em vários pontos de Minas Gerais. O tabaco incrementava a sua exportação. Fábricas rudimentares de tecidos de algodão iam sendo fundadas. Veio a ordem de 1785, mandando fechar as fábricas nas capitais mineradoras. Citemos alguns números para dar ideia da situação. Antonil, em 1711, conta 528 engenhos de açúcar na Bahia, Pernambuco e Rio, produzindo 35.020 caixas de 35 arrobas, valendo 2.535:142$800; 27.500 rolos de fumo no valor de 334:650$000; 110.000 meios de sola; somando 201:800$000. O ouro, dada a margem do contrabando, representava umas 300 arrobas, cerca de 1.500 contos, na moeda da época. Seriam ao todo uns 4.600 contos, aos quais se devem juntar a parte da produção destinada ao consumo local e a que servia ao pagamento dos impostos e monopólios. Esta última valeria talvez uns 800 contos. Nessa mesma época, ensaiava-se a aclimatação do anil e do café. A primeira, base de um comércio florescente, decaiu por fraudes na preparação do produto. A segunda veio do Pará e do Maranhão do Sul uns 50 anos mais tarde. O que ela se tornou, di-lo o que hoje somos. Tais fatores do desenvolvimento, é que a ordem de 1785 vinha ferir. O ouro tinha iniciado seu declínio. O diamante, 15 anos depois, seguiria igual rumo. Em turbilhão pela América e pela Europa, ia desencadeado o movimento revolucionário de que haviam de resultar a emancipação das colônias, a queda da Monarquia francesa, a primeira República e o surto do imperialismo napoleônico. O Brasil experimentava as consequências desse movimento de ideias, em circunstâncias de aperto econômico causada pela errada política metropolitana: a ferocidade fiscal quanto aos quintos; sua cegueira quanto a fontes outros de produção e de riqueza. (...) Cresciam as trocas. Em 1796, avaliaram-se as exportações em cerca de 11.500 contos, moeda forte; as importações em 7.000 contos. Em 1800, os algarismos haviam crescido a ... 12.600 e a 15.800 contos, respectivamente. Em 1806, em vésperas da transferência para o Brasil da sede do Governo Português, remetiam-se mercadorias no valor de 14.200 contos e recebiam-se em troca 8.500 contos de importações. (...) Indústrias novas estabeleciam-se, favoneadas pelo Governo de D. João VI; um pouco a esmo, ao Deus-dará, com desejos superio-

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res às possibilidades do meio. Tornava-se, entretanto, mais fácil a vida nas regiões dantes sujeitas às regras draconianas do Livro da Capa Verde ou às exigências severas do regime das zonas auríferas. Nas demais comarcas do País, menos mineralizadas, prosperava o trabalho agrícola, em ascensão contínua para níveis mais altos de produção, desenvolvendo os elementos preexistentes: o café, já então aclimado no Sul, base de uma organização cultural cujo crescimento nada mais impediria até hoje; a cana, admirável repositório de energias econômicas, incompletamente aproveitadas e desenvolvidas, mesmo em nossos dias; o gado, que só recentemente entrou em fase de progresso, que a indústria ascendente dos laticínios revela; o milho e sua tradução animal – o porco, com as indústrias que dele vivem – ; cereais outros, como arroz, definitivamente entrado nos usos agrícolas correntes e o trigo, mais fraco e mais sujeito a contratempos; as féculas; o algodão; o cacau; o fumo; os couros; o charque. Provara eficiência prática quase nula a liberdade de estabelecimento de fábricas. A política de submissão portuguesa à Inglaterra a esta assegurara taxas preferenciais nas alfândegas, contra o próprio produtor nacional, mais onerado. O domínio dos mares, incontestavelmente britânico, tinha varrido do tráfego marítimo qualquer pavilhão. Inundavam, pois, o Brasil, as mercadorias inglesas. Como produzi-las aqui? Os fatores consentidos mais tarde, por ocasião da Independência e do reconhecimento do Império, a várias nações estrangeiras, eliminavam a possibilidade de se fundar indústria sob o regime da carta régia de 28 de janeiro e do decreto de 1º de abril de 1808, promulgados para esse fim e com esse intuito. Só com a ação de estadista de Bernardo de Vasconcelos, na lei de 24 de setembro de 1828, cessou essa anomalia, uniformizando em 15% os direitos alfandegários, sem distrinção de procedência. Assim mesmo, não agiu desde logo e levou 16 anos para produzir resultados práticos. (...) A solução, má, porém única, foi o empréstimo por meio da emissão de notas concedidas ao primeiro Banco do Brasil. Política de expedientes, dirão censores. Que outra seria possível a um país peado pela convenção com a Inglaterra, sem reservas econômicas locais, impossibilitado de recorrer ao crédito no exterior, dentro em pouco cerceado em suas rendas e nas possibilidades restantes de surto industrial pelos tratados de reconhecimento do Império? O trabalho reparador da natureza iria aos

A política de submissão portuguesa à Inglaterra a esta assegurara taxas preferenciais nas alfândegas, contra o próprio produtor nacional, mais onerado.


O público estava acostumado às notas do Tesouro, sempre em giro, em todas as fases da evolução monetária.

poucos cicatrizando essas feridas. Já em 1817, as duas correntes do intercâmbio se equilibravam em torno de 8.500 contos. Mas a tradução da má gestão financeira e dos erros econômicos se encontrava na moeda fiduciária inconversível, na queda dos câmbios. De 67 e 1/2 pence, paridade legal, vinham as cotações caindo a 47 em 1822; a 22 pence em 1829, para subir a 37, e 41 e 1/2 em 1835. Essa a origem da lei monetária de 1833, degrau de transição para a de 1846, vigente até hoje, com as modificações provenientes das tentativas fixadoras do valor da moeda, lei pela qual a nova equivalência se fixava em 27 pences. Já nessa última data, exportações e importações conjuntas orçavam, por parcelas quase iguais, em 105.000 contos de réis. (...) Restava a grave questão do meio circulante. O público estava acostumado às notas do Tesouro, sempre em giro, em todas as fases da evolução monetária. As dificuldades de comu-

nicação, porém, criavam crises de numerário localizadas, germe do movimento, iniciado em 1836 no Ceará, seguido depois no Rio, Maranhão, Pará e Pernambuco, para se criarem instrumentos de permuta não oficiais, fora das normas constitucionais, que reservavam ao Parlamento a competência privativa de legislar sobre moeda. A chicana, concessões de autoridades provinciais, a fraqueza do Governo Geral, permitiram que, sob o nome de vales, se estabelecesse uma série de emissões particulares, fundamente perturbadoras do mercado. Reagiu, em nome da Constituição e da economia política, esse grande financeiro, o maior talvez do Império, que foi Rodrigues Torres, o futuro Visconde de Itaboraí. A lei de 1853 reivindicou o princípio constitucional e firmou a unidade emissora. Não cessaram, entretanto, os esforços particularistas e, mediante concessões ilegais, insustentáveis, de 1857 a 1866 novamente vigorou a pluralidade de circulação fiduciárias, concorrentes entre si e da oficial.

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As duas grandes crises de 1857 – repercussão das dificuldades vigentes na Europa e nos Estados Unidos, trazidas ao Brasil pela insuficiência profissional dos financeiros da praça do Rio, – e de 1864 – devido ao abuso do crédito, favorecido pela casa Souto - haviam mostrado os vícios da situação monetária. A Itaboraí, contra as vistas incertas e hesitantes do gabinete Olinda, coube ainda uma vez solver o problema. Foi a lei de 1866, prescrevendo a volta à unidade emissora, atribuída exclusivamente ao Tesouro. Durou o sistema até os últimos dias da Monarquia, que só meses antes de cair iniciaria uma reação pluralista. Cessou em 1892 esta nova fase, ao concentrar-se no Banco da República o direito emissor. Quatro anos depois, garantido o princípio unitário, passava a circulação a ser feita por notas do Tesouro, retirado ao banco o seu privilégio. Essa a situação vigente. (...) Em terra, o desenvolvimento fazia-se paralelo. À Regência cabe a honra de ter cogitado duas vias férreas desde 1835. Dezessete anos durou a gestação da ideia. 1852 presenciou a primeira realização: o trecho de Mauá a Raiz da Serra, terminado quatro anos depois. E, de então para cá, nunca se paralisou o progressivo aumento de extensão das linhas, até os 23 mil quilômetros atuais. Um fenômeno curioso revela-se neste ponto: o crescimento das vias férreas, antes de existirem no País verdadeiras estradas de rodagem, impediu se cuidasse destas. A não ser em trechos que não somam 500 quilômetros – a União e Indústria, abandonada, e a Graciosa – continuam os produtos a afluir às estações por meios de caminhos feitos à pata de animal, de uma ou outra extensão, abertos por fazendeiros, colonos ou comissões oficiais, fora de condições de solidez e meios de conservação. Daí curioso contraste nas regiões mais bem servidas pelos trilhos, junto aos quais começa imediatamente a zona ínvia. A inexistência de verdadeiras estradas de rodagem limita assim a utilização da malha intermédia na rede ferroviária. (...) Fechadas as fábricas por ato da Metrópole, reabertas mais tarde, em 1808, a política dos tratados comerciais dos primeiros anos do Reino e, depois, do Império impediu a fundação de uma grande indústria de tecido permanente e progressiva. Só por 1842, quando expirasse o prazo de vigência dessas convenções, produziria a lei de Bernardo de Vasconcelos, de 1828, seus efeitos benéficos. A ela obedeceu a tarifa Alves Branco de 1844. So-

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mente então começou para o Brasil a possibilidade prática de possuir labor industrial. (...) O problema da mão-de-obra preocupava a todos os pensadores. Fizera-se o Brasil à custa da colaboração servil, índia e negra. Nos engenhos de açúcar, nas fazendas de café, outro não era o braço. A partir da guerra da Tríplice Aliança, haviam avultado as libertações. O manifesto liberal de 1868 fazia vibrar a nota que resumia o sentir geral: as antigas fórmulas tinham preenchido sua missão; urgia substituí-las. Em 1870, o manifesto republicano insistia sobre o assunto e propunha a solução: a República. No ano seguinte, o primeiro Rio Branco libertava os nacituros. Dezessete anos depois, João Alfredo, antigo membro do Gabinete 7 de Março, um predestinado, referendava a lei de 13 de maio de 1888, a Abolição sem frases. (...) O golpe da Abolição, ainda assim, foi fundo. Desorganizou-se o regime do trabalho; as primeiras colheitas só parcialmente foram aproveitadas; a dívida hipotecária, garantida pelos escravos, viu quase anulado o seu valor. Ruínas individuais houve e numerosas. Salvou o País a alta do preço do café. E a produção, impessoal, não cessou. Estava transposto o passo mais difícil. Avizinhava-se a queda da Monarquia, anunciada desde a Regência, posta em destaque pelos próceres de 1870, dos quais alguns iam presidir e organizar a fundação da República em 1889. Fora esta proclamada em momento singular de nossa história. Saneada a circulação; restabelecida as or-

O problema da mão-de-obra preocupava. Fizera-se o Brasil à custa da colaboração servil, índia e negra.


Com tal muralha nas alfândegas, não surpreende que algumas indústrias se desenvolvessem no País.

dens nas finanças, iniciados grandes melhoramentos; despertadas vastas aspirações; o Gabinete de 7 de Junho, presidida pelo grande brasileiro, que foi o Visconde de Ouro Preto, voltara às tradições de Sousa Franco e batia-se pela pluralidade de emissão. Não foram de grande vulto as somas postas em giro pelos três bancos que se valeram da lei de 24 de novembro de 1888 e do decreto de 6 de julho seguinte, fruto, a primeira ,da colaboração dos liberais e de uma dissidência conservadora chefiada pelo Visconde do Cruzeiro e pelo Conselheiro Pereira da Silva. Influiu no ambiente de especulação, mais que os valores emitidos, o desconto antecipado de novas emissões. Quando, depois de 15 de novembro, cessou a faculdade de emitir para estes três institutos, continuou, mais amplo e desenvolvido, esse elemento de perturbação monetária nas leis citadas e nos decretos do Provisório, de 17 de janeiro e de 8 de março de 1890. (...) E, para lutarem contra a concorrência estrangeira, todas as fábricas exigiam maior proteção aduaneira do que a da tarifa Belisário. Essa a gê-

nesis da reforma Rui Barbosa, da sobretaxas orçamentárias, até o momento de relativa parada que foi a tarifa Bernardino de Campos. Não cessaram, porém, os reclamos industriais. Veio o decreto de 1900, expedido por Joaquim Murtinho, com direitos mais onerosos. Continuaram as leis do orçamento a modificar no mesmo rumo os impostos aduaneiros. (...) Com tal muralha nas alfândegas, não surpreende que algumas indústrias se desenvolvessem no País. Tempo seria, entretanto, diminuído os impostos, provarem elas a verdade de suas primitivas alegações de que só transitoriamente, na fase da fundação, precisariam do resguardo. Avaliam-se, incompletamente, em 1907, os estabelecimentos industriais do Brasil em 3.528, dispondo de capital de 665.576 contos, produzindo 741.536 contos, com uma população operária de 152 mil indivíduos. (...) Expressas em ouro, para permitir estudo comparativo, as exportações oscilam de 28 milhões esterlinos, em 1889, a 36 milhões, em 1895; caem a 29 em 1889, após a crise do ano an-

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terior, e daí por diante crescem gradativamente até 67 milhões em 1911. Grande restrição se nota nas importações, sacrifícios impostos e concedidos pelos consumidores. Os algarismos traduzem-nos. O Brasil, que, com população menor, importava, de 1890 a 1896, de 30 a 34 milhões esterlinos, reduziu suas compras, de 1897 a 1904, a 27 e mesmo a 21 milhões apenas; este último algarismo refere-se a 1901, após a crise bancária de 1900. No comércio geral, entretanto, somam-se as parcelas e alí o crescimento, com variações mínimas, é contínuo, de 52 milhões de esterlinos, em 1889, a 120 milhões, em 1911, com tendência a nível mais alto no atual exercício. (...) Já o protecionismo, encarecendo a produção e a vida, havia criado numerosas causas de queixa pelos sofrimentos impostos à maioria da nação, em benefício de insignificante minoria, de detentores de capital. A desvalorização forçada da moeda contra todas as indicações do meio econômico brasileiro, robusteceu os males vindos do preconceito protecionista. A essas duas errôneas concepções, principalmente, são atribuíveis malestar, reivindicações socialistas, relações tensas entre patrões e empregados, que hora atribulam a vida nacional. Criações artificiais, em excesso do que normalmente decorreria do evoluir social em busca de níveis mais altos e mais generosos de cultura e de civilização. (...) O Brasil tem indústrias para as quais lhe seria fácil encontrar matéria prima local e, entretanto, importa esta: assim para as fibras, para a alimentação. Queremos ter raças animais apuradas e não lhes preparamos o habitat, soltando-as em campos mal beneficiados, quando não inteiramente agreste. Estamos convencidos da necessidade de desenvolver-se a agricultura e ainda simbolizam o nosso esforço atual o machado e a foice, para a derrubada, a enxada, para o preparo da terra. (...)

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DIGESTO ECONÔMICO MAIO/JUNHO 2009

Não há desanimar, porém, a longa história do País revela admirável elasticidade, assombrosa capacidade de reação contra as crises. Nos períodos de maior depressão, nunca esmoreceu o esforço brasileiro, filho de forças imanentes e fiado nos recursos próprios do solo pátrio. Onde o homem errava, a Natureza, benfazeja e material, corrigia. Esforcemo-nos por melhorar o elemento humano. Auxiliemos, em vez de contrariar, o influxo do meio. Dessa conjugação incessante, calma, sinérgica, pujante, com possibilidades infinitas surgirá o Brasil de amanhã.

Esforcemo-nos por melhorar o elemento humano. Auxiliemos, em vez de contrariar, o influxo do meio.


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25/6/2009

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