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O combate às drogas Pablo de Sousa/LUZ
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tualmente, as drogas estão entre os maiores problemas da sociedade moderna e a preocupação número 1 dos pais, qualquer que seja a classe social. Os entorpecentes estão diretamente relacionados com o aumento da violência e da criminalidade, cuja grande vítima é a juventude. Quantos jovens tiveram seus sonhos interrompidos e quantos pais já choraram a perda de seus filhos para as drogas? Não podemos mais aceitar esta situação. O tráfico é um crime hediondo e deve ser punido com o máximo rigor da lei. Nesta edição, estamos trazendo o tema das drogas para discussão. Todos são unânimes em afirmar que o problema já se tornou uma epidemia mundial e que o assunto deve ser tratado como uma questão de saúde pública. Várias propostas estão surgindo, inclusive a da descriminalização da maconha, um tema polêmico, defendido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Precisamos ampliar a discussão, mobilizar a sociedade, pressionar as autoridades e principalmente implementar com urgência medidas mais eficazes para combater o tráfico de drogas e também de armas. É inadmissível que bandidos continuem a comandar o tráfico de dentro das penitenciárias, que são sustentadas por todos nós, contribuintes. Convém esclarecer que o próximo número da revista Digesto Econômico será uma edição dupla referente aos meses de novembro/dezembro e janeiro/fevereiro de 2010. Esta é, portanto, a última edição de 2009, um ano turbulento, marcado pela primeira grande crise econômica global do milênio. O mundo todo se mobilizou para conter o desastre, os governos gastaram trilhões de dólares para salvar suas economias, houve demissões nas empresas, a produção e o consumo caíram. Foi um ano duro, de muito trabalho, mas que felizmente passou rápido (quem não se surpreende ao perceber que já estamos no fim do ano). A crise mostrou que o País está mais bem preparado para superar as turbulências do mercado, nossos fundamentos econômicos estão mais sólidos. Diversos organismos internacionais concordam com isso – o Banco Mundial prevê que o Brasil poderá ser a quinta economia do mundo em 2016. Há um clima de otimismo no ar: com certeza teremos um Natal melhor do que o do ano passado, a renda do trabalhador cresceu, fomos escolhidos para ser sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas em 2016. Tudo isso não veio de graça, foi fruto de muito trabalho. Por outro lado, essa maior evidência nos traz maiores responsabilidades. Teremos eleições no próximo ano e por conta disso o governo vem aumentando seus gastos pensando nos resultados das urnas. Isso pode resultar em pressões inflacionárias no próximo ano, o que levaria o Banco Central a aumentar os juros, reduzindo as perspectivas de crescimento. Devemos deixar de lado disputas mesquinhas e agir com responsabilidade e ética, para finalmente construirmos uma grande nação.
Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo
SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO
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ÍNDICE
Superintendente institucional Marcel Domingos Solimeo
A economia mundial é dependente das drogas
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DROGAS e DEMOCRACIA: Rumo a uma mudança de paradigma
Dirceu Portugal/AE
Presidente Alencar Burti
Arte de ALFER sobre foto de Andrei Bonamin/LUZ
Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br
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ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici
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Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Jorge Dan Lopez/Reuters
Chefia de Reportagem José Maria dos Santos Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho
ONU tem posição contrária à legalização Antonio Maria Costa
Ilustrações e Infográficos Alfer e Jair Soares Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122 Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3244-3029 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br)
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As Guerras do Ópio, sua história, livros e filme Renato Pompeu
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DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009
CAPA Ilustração: Paulo Zilberman
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ALFER
O mundo ainda corre perígo Cíntia Shimokomaki
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Combate às drogas no ambiente de trabalho Romina Miranda Cerchiaro
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A revolução globalista Olavo de Carvalho
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Política Externa Afonso Arinos de Melo Franco
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Reprodução
Os descaminhos da política externa brasileira
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Christian Knepper/Embratur
Mauricio Lima/AFP
Federação brasileira Alexandre de Moraes
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A crise acabou? Roberto Fendt
SETEMBRO/OUTUBRO 2009 DIGESTO ECONÔMICO
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A economia mundial é dependente das drogas
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os 62 anos o desembargador Walter Maierovitch se alinha entre as pessoas que mais conhecem os bastidores do tráfico de drogas no País. Foi natural, portanto, que ocupasse pioneiramente o cargo de secretário da Secretaria Nacional Antidrogas, nomeado pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso, que criara o órgão no primeiro mandato. O profundo conhecimento do assunto levou Maierovitch para o patamar dos especialistas em crime organizado, já que os dois temas são intimamente ligados. Nessa condição ele é hoje consultor da União Europeia a respeito, dividindo seu tempo entre Roma, onde está assentada sua base na Europa, e São Paulo, onde mora. A propósito, sua vasta experiência está resumida no livro "Na linha de frente pela cidadania", lançado pela Editora Michael em 2008. Além das atribuições referidas, Maierovitch preside o Instituto de Pesquisas Criminológicas Giovanni Falconi e mantém uma coluna semanal na revista "Carta Capital". Nesta entrevista, o desembargador propicia um impressionante roteiro pelos meandros das máfias internacionais, mostra que muitos países são dependentes da economia gerada pelo narcotráfico e critica a posição do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de descriminalização da maconha (veja na pág. 14). Na sua opinião, enquanto no passado o argumento principal para a legalização dessa droga era a liberdade individual, hoje se fala em salvar economias com a cobrança de impostos.
Arte de ALFER sobre foto de Andrei Bonamin/Luz
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Digesto Econômico - A sociedade vem perdendo a batalha contra as drogas. Qual a sua opinião sobre isso? Walter Maierovitch Pouca gente consegue entender a geopolítica e a geoestratégia das drogas. Se pensarmos em termos de geoeconomia, se numa pessoa a droga gera dependência, na economia ocorre fato semelhante. Temos países dependentes da economia movimentada pelas drogas, que tem participação importante no PIB. Se pegarmos, por exemplo, o Vale do Bekaa (Líbano) há mais de 400 mil pessoas envolvidas no plantio da erva canábica e na produção de derivados, como o haxixe e o óleo. A economia do Marrocos é dependente dessas atividades. Pouca gente se preocupa com este tipo de problema. DE - Há maiores dados sobre isso? No Marrocos, que o senhor comentou, sabe-se qual a participação das drogas no PIB desse país? WM - Evidentemente, os dados não são oficiais. O único número mais concreto que se tem até agora é o da Bolívia, estimado na época do falecido presidente Hugo Banzer, quando ele foi eleito (em 1997). A Bolívia é dividida em duas áreas, uma de plantio legal de coca e outra ilegal, que é o Chapare. Os americanos, junto com a ONU, fizeram uma primeira tentativa de cultivo substitutivo à coca. Eram programas em que o plantador de coca recebia a garantia de que, se ele plantasse milho ou outra coisa legal, ele teria seus produtos colocados no mercado. Pelo acordo, esse mercado seria a Argentina. Acho a proposta muito interessante e o mundo deveria insistir nisso. Não deu certo porque foi na época em que a Argentina quebrou. Os agricultores ficaram com a safra na mão. Para o programa de cultivo substitutivo é preciso ter garantias de que o produto será vendido e de preço mínimo. Quando se fez este plano, que se chamou Plan Dignidad, o presidente Hugo Banzer concordou, mas com uma condição: os norteamericanos tiveram de cobrir o equivalente a 30% do PIB. Isso significava o quanto o negócio da coca movimentava. Ele precisou ter essa garantia, pois senão quebrava o país. Há tam-
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DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009
Walter Maierovitch: estima-se que o mercado das drogas movimente de US$ 200 bilhões a US$ 400 bilhões.
bém uma estimativa com dados do Banco Mundial e do FMI de que o mercado das drogas movimentaria de US$ 200 bilhões a US$ 400 bilhões dentro do sistema financeiro internacional. Imagine a crise se tirarem este montante do sistema financeiro. Outro dado econômico: o governador da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, apoia um processo de legalização da maconha. Para quê? Ele governa um Estado quebrado; ele quer garantir renda por meio de tributos. O ex-presidente George W. Bush bateu na porta da Suprema Corte para conseguir uma decisão de que era inconstitucional um Estado federado legislar sobre drogas, uma vez que a competência legislativa para assuntos de drogas é federal. Ele fez isso porque vários Estados legislaram, admitindo o uso terapêutico da maconha, condicionado a uma receita médica. Começou pela Califórnia. Houve um caso de uma senhora com um tumor na cabeça, com dores horríveis, que só era inibida quando ela fumava maconha. Hoje, nos EUA, já são oito Estados federados com essa legislação. O objetivo de Bush era quebrar essa legislação. Como a Suprema Corte foi chamada para decidir sobre a constitucionalidade, ela decidiu que a competência era federal, mas não disse que as legislações dos Estados eram inconstitucionais. O Bush ganhou, mas não levou. E o que fez o presidente Barack Obama há alguns meses? Ele determinou ao FBI para que não prendesse pessoas que fizessem uso terapêutico da maconha, pois o Bush havia determinado que essas pessoas fossem presas. Essa permissão de uso para fins terapêuticos do Obama está sendo vista como um primeiro passo para a liberação para uso lúdico. É o que se espera dele. Há 40 anos se discute a liberalização do uso da maconha, embora o (ex-presidente) Fernando Henrique tenha começado agora e ache que é iniciativa dele. Essa discussão foi retomada por Barack Obama e agora todo mundo fala disso. O grande ponto que vejo aí, e com preocupação, é que não se está levantando aquela velha discussão de liberdade individual, do direito de autolesão – ninguém é condenado por tentar o suicídio ou por se automutilar, isso não é crime. O uso de droga é uma autolesão, não há dúvidas. E por que seria crime o uso de droga? Mas não é essa a discussão agora. O que se quer hoje é salvar as economias. DE - Na sua opinião, o mundo pode prescindir do mercado de drogas? WM - Se a movimentação chega a US$ 400 bilhões e há países dependentes, além de Es-
Robert Galbraith/ Reuters
tados que estão buscando fonte de renda na droga ... Há 40 anos, o discurso era o da liberdade individual, hoje fala-se em salvação da economia. Isso é apresentado com a tese de legalização de drogas leves, no caso a maconha. Como se faz isso? O Estado teria o monopólio e estabeleceria o porcentual permitido de tetrahidrocanabinol (THC). Veja o que aconteceu no pós-guerra, com economias quebradas. Em alguns países europeus, como a Itália, o que o Estado guardou para si? O monopólio do tabaco. Na Itália, nos lugares que vendem cigarros tem um "T", de tabacachaio, na parede. Depois do tabaco entrou o sal e os selos. Notem como as coisas estão voltando. No Brasil, se discute o problema da droga como na porta de um bar, sem enxergar o contexto mundial. Muitas vezes a droga é usada como arma na geoestratégia. Todo ano o presidente dos EUA manda aquele relatório obrigatório para o Congresso – este ano entrou a Bolívia e a Venezuela, mas com a recomendação de não haver retaliação econômica, pois a legislação fala em retaliação. As empresas privadas ficam proibidas de investir em países que não colaboram com a luta antidrogas. Mas há quantos anos não entra a Birmânia (Myanmar), que é um narcoestado? A ditadura militar da Birmânia sempre protegeu o maior traficante de ópio e metanfetamina para a Ásia, que morreu no ano passado. Na África, a Guiné Equatorial é um narcoestado, que é diferente de Estado dependente. Na Birmânia acontecem coisas absurdas. A Nobel da Paz (Aung Suu Kyi), filha de Aung San (heroi da independência birmanesa, assassinado em 1947), continua presa, agora em casa. Suu Kyi foi dada como violadora de obrigação de quem se encontra em prisão domiciliar, ou seja, permitiu a presença de um estranho em sua residência. Na verdade, tratava-se de um intruso, com problemas mentais, e que invadira a casa: William Yettaw – um americano de 53 anos de idade, ex-combatente na Guerra do Vietnã e que está aposentado por problemas mentais – resolveu atravessar o La-
Há 40 anos se discute a liberalização do uso da maconha, embora o Fernando Henrique tenha começado agora e ache que é iniciativa dele.
go Inya a nado e invadir a casa de Suu Kyi. E não se toma providência no mundo. A ONU ameaçou e nada. Qual é a força desse narcoestado? Deve ter uma força geopolítica extraordinária. Como se sustenta uma ditadura daquelas? É evidente que tem apoio. Quando o Tribunal Penal Internacional decretou a prisão do presidente do Zimbábue, a China e a Rússia apoiaram o presidente por interesses comerciais. Com a droga ocorre a mesma coisa. Na Nigéria, o ditador Sani Abacha era traficante de drogas, morreu de overdose de heroína. A droga esconde interesses geopolíticos, geoestratégicos e geoeconômicos. Então, discutir o problema da droga em cima da criminalização do usuário, que é um problema de saúde pública e não criminal – problema criminal é o traficante –, é uma hipocrisia, é superficial, beira conversa de tolos. O que legitimou, por exemplo, (Felipe) Calderón, no México, após uma eleição fraudada? No dia seguinte à sua posse ele entrou na guerra contra as drogas, com todo apoio da população. Levou dinheiro do Plan Merida, de Bush. Hoje, a guerra contra as drogas mata civis, que são as grandes vítimas, e não traficantes. Sob a presidência de (Ernesto) Zedillo, aliado de Fernando Henrique e (César) Gaviria nessa tentativa de descriminalização da maconha, o México quebrou. Qual era a única indústria próspera do México quando ele quebrou? A indústria das drogas. O que sustenta os grandes cartéis de fronteira, onde entra dro-
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ga e sai arma e vice-versa? Um grande interesse, que passa pelo crime organizado, às vezes dando sustentação a ditaduras, influenciando na política partidária, injetando dinheiro. É um quadro que não pode ser examinado à luz do usuário, que é uma peça menor. Dizer que não existiria o problema da droga se não existisse o usuário é estúpido. Se não existissem insumos químicos também não existiriam as drogas sintéticas. Por isso vamos acabar com a indústria químico-farmacêutica? DE - Diante desse quadro tão terrível, em que há tantos interesses poderosos que sustentam a indústria das drogas, o senhor enxerga alguma solução? WM - É lógico que há soluções. Essa tentativa de cultivo substitutivo é uma solução. Por que não vingou? Porque ninguém bancou? Quem é que hoje entra num programa desses se for colocado de novo no Chapare? O pessoal morreu com a safra na mão, pois a Argentina quebrou. Mas soluções existem! Há diversas questões em jogo, inclusive culturais. O historiador Heródoto (484 antes de Cristo) conta a história de várias tribos que faziam uso de drogas, inclusive em cerimônias fúnebres. Homero (século 9 antes de Cristo) falava de uma droga para tirar dores dos navegantes. O primeiro estava falando da maconha e o segundo da heroína, do ópio. Não se pode encontrar soluções sem tirar algumas armadilhas. O que são esses US$ 400 bilhões, vamos deixar por US$ 200 bilhões, dentro do sistema financeiro? Lavagem de dinheiro? Por que se lava dinheiro? Somente para deixá-lo limpo? Não, para que seja reinvestido em atividades formalmente lícitas. Foi isso que construiu Aruba (Caribe), seus hotéis, turismo, jogos. Então, o problema das drogas é extremamente complexo. Não é levantando a bandeira de liberar a droga que vamos acabar com o tráfico. Se é um problema de saúde pública, para liberar é preciso ter limites. O que faz o Canadá, que permite o uso terapêutico da maconha? O Canadá planta maconha e oferece. O que fez a Holanda para quebrar essa ligação traficante-usuário de droga leve? Abriu, em 1968, o Café Sarasani, que foi o primeiro a vender maconha a seus clientes para uso próprio dentro do estabelecimento. Qual foi a consequência disso? Iniciou-se um turismo contra o qual hoje provoca uma reação, principalmente em regiões de fronteira, às pessoas que vão lá comprar drogas. Há uma proposta do atual governo de acabar com o turismo da droga. E porque não acaba? O que garante o PIB do país? O
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Por que se lava dinheiro? Somente para deixá-lo limpo? Não, para que seja reinvestido em atividades formalmente lícitas. Foi isso que construiu Aruba, seus hotéis, turismo, jogos.
que acontece se tirar esse turismo? Quem mexer perde a próxima eleição. São questões complexas, que exigem que sejam dados passos. Vamos imaginar que aqui no Brasil o governo fique com o monopólio e estabeleça o porcentual de 18% de THC. Quem garante que não vão vender maconha com 20%, 40%? Quem vai fiscalizar? Em 1919, um filósofo holandês escreveu que o grande problema do jogo é quando aparece o banqueiro, o terceiro que vai explorar o jogo, que vai jogar com você com um porcentual maior. Qual o grande problema do jogo? Quem controla a aferição das máquinas? No monopólio de drogas, quem vai fiscalizar se tem tantos porcentos de THC? No tabaco, por exemplo, as indústrias já carregaram na nicotina e em outras substâncias. DE - O tabaco movimenta mais dinheiro do que a droga? WM - Não. No mundo inteiro houve redução no consumo de tabaco por causa das campanhas. Existe alguma campanha do governo federal sobre droga? Não tem nada, tem apoio, mas o governo não faz campanha. Este governo e o anterior têm posições semelhantes. Eles acham que se fizer campanha, isso vai despertar a curiosidade. Em 1998, houve uma Assembleia Geral das Nações Unidas para discutir a questão da droga, mais especificamente sobre a responsabilidade compartilhada entre os Estados. Os países de consumo diziam que o problema eram os países de produção, os países de produção diziam que se não houvesse consumo, não haveria produção. Estabeleceu-se nessa assembleia o princípio da responsabilidade compartilhada. O que ocorreu após 1998? Houve um movimento fora das Nações Unidas, em que várias pessoas, intelectuais, prepararam um documento contrário à política da ONU sobre drogas, e que não deveria mais haver a criminalização do usuário. Sabe quem assinou? O Lula, que era candidato à presidência da República. A lei que ele fez é pela descriminalização? Não, é para não ter pena de prisão, a despenalização, mas continua sendo crime. Eu estava lá, tenho esse documento, tem a assinatura do Lula. Isso mostra que às vezes há um jogo político, de interesses.... DE - O senhor tem dados sobre a situação do Brasil no contexto das drogas? O que se consome mais e o que vem crescendo? WM - Deixei na Secretaria Antidroga um projeto de observatório. Isso começou agora e não tem dados concretos. Em regiões mais po-
Jose Miguel Gomez/Reuters
bres, como no Norte, tem consumo até da merla (derivado da cocaína de baixo custo). Nas regiões mais ricas há o consumo de drogas sintéticas. A cocaína colombiana passa pelo Brasil, mas o que fica é a cocaína boliviana. A coca é um produto andino – os maiores produtores são Peru, Colômbia e Bolívia. Trata-se de uma folha, de mascagem tradicional, necessária para o povo andino por causa da altitude. Mas a transformação da folha de coca em cloridrato de cocaína implica no uso de produtos químicos, como éter e acetona. A Colômbia, Peru e Bolívia têm indústrias químicas? Não. Eles só têm folha de coca. E como eles refinam? Ninguém fala sobre o tráfico de insumos químicos. Em qual país fica a maior indústria química da América Latina? No Brasil, no eixo Rio-São Paulo. Quem é o maior vendedor (de insumos químicos) para a Colômbia? Há três anos era Trinidad e Tobago, sendo que lá não tem nenhuma indústria química. A comercialização é feita por grandes indústrias multinacionais, com capital da Holanda, Estados Unidos etc., que entregam os insumos a Trinidad e Tobago. DE - Neste caso, há uma falta de fiscalização do Estado. Não dá para dizer que a indústria química tem um relacionamento direto com o tráfico. WM - A indústria vende para quem tem registro. Mas vá na Junta Comercial, verifique uma empresa química, pegue o endereço, o nome dos sócios e veja se acha um endereço ali registrado. Veja as alterações de contrato social. Quando se localiza um dos sócios, geralmente há uma alteração de contrato e ele alega que está fora disso há muitos anos. Não há fiscalização alguma. Quando o governador do Rio de Janeiro faz aquelas megaoperações contra o tráfico, isso é tudo pirotecnia. Alguém controla insumos químicos? Não é mais fácil controlar os insumos químicos do que combater com força armada? O México está fazendo isso e dando com os "burros n’água". A ONU, que teria de regular tudo isso, de quando é a convenção em vigor sobre drogas? De 1966, que é a Convenção de Nova York.
Ninguém fala sobre o tráfico de insumos químicos, essencial para a produção das drogas. Acima, plantação de coca na Colômbia; abaixo, cultivo da papoula no Afeganistão, flor de onde se extrai o ópio.
Será que ela ainda tem atualidade? E por que ela não muda? Porque há necessidade de unanimidade. Pega um país islâmico e veja se ele quer mudar alguma coisa dessa convenção; é nela que eles encontram legitimação para impor a pena de morte a traficante. DE - É verdade o que se conta de que no início os traficantes do Rio de Janeiro não deixavam entrar o crack no Estado por ser uma droga que mata rapidamente o usuário, que é o seu cliente? WM - Isso é estória, está provado que é estória – de que os traficantes queriam preservar o mercado porque o crack mata. O crack demorou para chegar lá por condições de mercado. AhmadMasood/Reuters
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O mercado consumidor do Rio começa na classe A e nos turistas. Quem é que vai entregar uma pedra de crack para um turista? Ele quer cocaína. Quando se populariza a cocaína, vem a pedra de crack, que é mais barata. Isso que falam é lenda. Desde quando um criminoso tem princípios éticos? A ideologia do crime organizado é o do lucro. Por que o crime organizado fornece bombas para o Bin Laden, fornece armas para terroristas? O negócio é lucro. DE - O senhor disse que não há fiscalização. Por que isso ocorre? WM - O Brasil não conhece o fenômeno das drogas. DE - Isso em todos os níveis? O Congresso Nacional, Polícia Federal, Ministério Público, Presidência da República... WM - Respondo essa pergunta citando um relatório de um ministro canadense. O Canadá tem um observatório, em que a polícia se gabou de ter feito apreensões recordes. Perguntaram para o ministro da Justiça desse país o que ele achava disso. Ele respondeu que essas apreensões têm a seguinte imagem: o governo resolve combater a vinda de álcool em determinado bar, faz a apreensão nesse bar, só que há centenas de outros bares em outros locais. A imprensa deu recentemente que no Paraná a Polícia Federal fez a apreensão de uma tonelada de maconha do Paraguai, que há vários meses eles estavam apreendendo mensalmente um caminhão. Perguntaram para o delegado se ele sabia quem fornecia essas drogas, ele disse que não. É o caso do bar que fecha e há centenas de outros abertos. Uma tonelada não significa nada, pois continuam plantando e fornecendo, e com uma sofisticação – no Paraguai, a maconha é transgênica, como tem a coca transgênica, não se depende mais de clima. Quem vê na televisão acha uma tonelada muita coisa, mas faltou maconha na praça? Essa estratégia é conhecida. A Cosa Nostra, a máfia americana, estabelecia algumas apreensões para a polícia fazer, uma polícia corrompida, para gerar estatísticas. DE - A fronteira do Brasil é uma peneira, toda vazada. Haveria locais mais vulneráveis por onde a droga entra no País? Fala-se muito de Foz do Iguaçu WM - Esse argumento de que o Brasil tem uma fronteira enorme e, portanto, de difícil controle, é outra estupidez. O governo fala isso e a imprensa repercute. O crime organizado não sai do nada para atravessar a fronteira e
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Esse argumento de que o Brasil tem uma fronteira enorme e, portanto, de difícil controle, é outra estupidez. O governo fala isso e a imprensa repercute.
entrar no mato. Ele precisa de estrada, de banco e de transporte. Basta ver os pontos de fronteira onde têm cidades, verificar a movimentação dos bancos nesses locais e se são compatíveis com a cidade. O Banco Central poderia fazer esse controle, mas não faz. O crime organizado também precisa de estrada, de aeroporto, transporte. Na Tríplice Fronteira – Brasil, Peru e Colômbia –, ninguém sai da selva e entra na selva de novo. Ele precisa de cidade, de estrada, precisa distribuir isso. Então, não precisa controlar toda a fronteira, mas pontos que tenham esses recursos. Um outro exemplo: Tabatinga-Letícia, ColômbiaBrasil, uma cidade grudada na outra. Tem controle? Ali é uma fronteira de porta aberta. O Pablo Escobar operava lá com Evaristo Porras Ardila. Ali não tem controle nenhum. Do lado brasileiro não tem posto de gasolina, quem abrir vai à falência, pois basta atravessar a fronteira, que a gasolina é muito mais barata. O mesmo com a droga. O tráfico precisa de cidades, de bancos, ninguém carrega mala de dinheiro. Mas existe controle de movimentação de dinheiro? Um outro problema é a falta de comunicação. A Polícia Federal da Amazônia se comunica com a Polícia Estadual de São Paulo? Ou as polícias estaduais dos dois Estados se comunicam? Se fizerem exames químicos e toxicológicos das apreensões de drogas, é possível saber os insumos utilizados, concluindo se é o mesmo traficante que está atuando em São Paulo e no Rio Grande do Norte, por exemplo. Mas isso não é feito. Hoje, o que se faz é uma planilha informando ao juiz que a mercadoria apreendida tem princípio ativo, então é droga, a prova da materialidade. O juiz precisa disso para condenar. Hoje, os laudos químicos toxicológicos atendem apenas uma necessidade processual. DE - Com isso, seria possível fazer uma espécie de mapeamento da droga. WM - Acho que deveria ter um trato profissional, científico. As pessoas se impressionaram com a apreensão de uma tonelada de maconha mostrada na televisão. Mas, pergunta para o delegado quem é que vendeu para quem estava transportando a droga. Onde ele estava se abastecendo no Paraguai? Ele não sabe. Existe cooperação internacional? Não. Na Colômbia, antes eram grandes cartéis – Medelin, Cali, do Vale Norte, que pertencia ao Abadia –, hoje são cartelitos, mas a oferta continua exatamente igual. As áreas de plantio de coca também são iguais, segundo fotos de satélites, não no mesmo lugar, mas na mesma re-
gião. A Colômbia hoje responde por 80% da cocaína do mundo. Como eles conseguem colocar cocaína em qualquer parte do mundo? DE - Para deixar clara a sua opinião, o senhor acha que não há interesse em fazer um combate sério contra as drogas, ou não se faz por ignorância? WM - Quando falo em geoestratégia e geopolítica, falo da droga sendo utilizada para encobrir interesses. Se discutiu agora sobre as bases americanas para combate de drogas na Colômbia. Pense no Canal do Panamá, quando foi devolvido. Estamos falando de um período em que o ditador do Panamá, (Manuel) Noriega, estava preso. Quem foi ele? Um ex-agente da CIA que controlava o Panamá, defendia o interesse norte-americano, que mantinha nesse país um sistema bancário para lavagem de dinheiro, em que se abria conta corrente com nome de Pateta, Mickey Mouse. O Noriega lavava dinheiro do Pablo Escobar, por exemplo. Quando os Estados Unidos estavam prestes a devolver o Canal do Panamá, o Noriega é preso. São construídas em Aruba e Curaçao bases americanas para controle do narcotráfico. Depois em Iquitos, no Peru, e Manta, no Equador. Qual é a contribuição dessas bases em Aruba, Curaçao e Iquitos no combate às drogas e insumos químicos? Nenhuma. E qual será a contribuição dessas bases na Colômbia? Existe algum interesse geopolítico, geoestratégico em que a droga é usada. DE - Pena de morte, como na China, trouxe algum resultado? WM - A China, como o Irã, são governos totalitários, antidemocráticos, que de alguma forma querem ter total controle social. Qual é a forma mais intimidatória para combater o tráfico? Agora, quem eles estão matando: os verdadeiros narcotraficantes ou os vendedores de rua? DE - Qual droga se consome na China? WM - Metanfetaminas, que vem de Myanmar, ex-Birmânia, eles até mudaram o nome do país. São drogas sintéticas. DE - O que os pais, as escolas, ONGs, igrejas etc., poderiam fazer para que os jovens não sejam
tragados para esse submundo? WM - Existe a prevenção ao uso, que começa na escola. Não há dúvidas de que a droga faz mal à saúde, como não há dúvidas quanto a possibilidade de se recuperar um usuário de drogas. E existe a prevenção ao tráfico. São coisas completamente diferentes. O primeiro significa educação, programas educativos nas escolas, a criação de uma cultura antidroga. A prevenção contra o tráfico implica na verificação de riquezas sem causas, as observações nas esquinas. A repressão é a apreensão. Quem tem Fábio Motta/AE
Falta no Brasil uma política antidroga adequada, se ter um conhecimento do fenômeno das drogas, ter uma separação bem nítida, em que a questão criminal é do traficante e do usuário é sócio-sanitária.
de fazer a prevenção ao uso são os professores, os pais. Mas quem faz isso no Brasil? A Polícia Militar, que tem um programa para isso. Mas a polícia tem de fazer prevenção ao tráfico, olhar porta de escola, movimentação de festa, boate, balada. Falta no Brasil uma política antidroga adequada, com real conhecimento do fenômeno das drogas; e uma separação bem nítida, em que a questão criminal é do traficante, ao passo que a do usuário é sócio-sanitária. DE - Há algum estudo sobre o custo social da droga? WM - Sim, há uma estimativa feita pelo Canadá, um estudo muito sério com 50 indicadores, por exemplo, redução de capacidade elaborativa, morte por overdose, corrupção policial, dinheiro da droga na política partidária etc. Quanto custa para a sociedade o problema da droga? Segundo o estudo canadense, o montante variou de 4% a 6% do PIB.
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DROGAS e DEMOCRACIA: Rumo a uma mudança de paradigma Rogério Uchôa/Diário do Pará
A América Latina é o maior exportador mundial de cocaína e maconha, converteu-se em crescente produtora de ópio e heroína e se inicia na produção de drogas sintéticas.
Um documento divulgado em fevereiro pela ONG Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, encabeçada pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, César Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México), propõe uma revisão das políticas de repressão às drogas na América Latina e de quebra sugere a descriminalização da maconha para uso pessoal. Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que ele não aguenta mais tantos pedidos da imprensa sobre esse assunto, que não deseja falar sobre o tema a toda hora para não dar a impressão de que isso "virou a sua ocupação diária". Esse interesse é natural, pois se trata de um tema polêmico, que vem sendo mal compreendido, mal interpretado e, talvez por isso, muito criticado. Leia a seguir os principais trechos desse documento, que pode ser encontrado, na íntegra, no endereço eletrônico www.drogasedemocracia.org/DocumentosComissao.asp.
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O modelo atual de política de repressão às drogas está firmemente arraigado em preconceitos, temores e visões ideológicas. Paulo de Sousa/Luz
Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia César Gaviria / Colômbia / co-presidente Ernesto Zedillo / México / co-presidente Fernando Henrique Cardoso / Brasil / co-presidente Ana Maria Romero de Campero / Bolívia Antanas Mockus / Colômbia Diego García Sayán / Peru Enrique Krauze / México Enrique Santos Calderón / Colômbia General Alberto Cardoso / Brasil
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João Roberto Marinho / Brasil Mario Vargas Llosa / Peru Moisés Naím / Venezuela Patricia Marcela Llerena / Argentina Paulo Coelho / Brasil Sergio Ramírez / Nicarágua Sonia Picado / Costa Rica Tomás Eloy Martínez / Argentina
DECLARAÇÃO: Uma guerra perdida
A
violência e o crime organizado associados ao tráfico de drogas ilícitas constituem um dos problemas mais graves da América Latina. Frente a uma situação que se deteriora a cada dia, com altíssimos custos humanos e sociais, é imperativo retificar a estratégia de "guerra às drogas" aplicada nos últimos trinta anos na região. As políticas proibicionistas baseadas na repressão à produção e de interdição do tráfico e da distribuição, bem como a criminalização do consumo, não produziram os resultados esperados. Estamos mais distantes que nunca do objetivo proclamado de erradicação das drogas. Uma avaliação realista indica que: - A América Latina continua sendo o maior exportador mundial de cocaína e maconha, converteu-se em crescente produtora de ópio e heroína e se inicia na produção de drogas sintéticas; - Os níveis de consumo continuam se expandindo na América Latina, enquanto tendem a se estabilizar na América do Norte e Europa; - Na América Latina, a revisão em profundidade das políticas atuais é ainda mais urgente à luz de seu elevadíssimo custo humano e das ameaças às instituições democráticas. Assistimos, nas últimas décadas a:
- Um aumento do crime organizado, tanto pelo tráfico internacional como pelo controle dos mercados domésticos e de territórios por parte dos grupos criminosos; - Um crescimento da violência a níveis inaceitáveis, afetando o conjunto da sociedade e, em particular, os pobres e jovens; A criminalização da política e a politização do crime, bem como a proliferação de vínculos entre ambos, que se reflete na infiltração do crime organizado nas instituições democráticas; - A corrupção dos funcionários públicos, do sistema judiciário, dos governos, do sistema político e, particularmente, das forças policiais encarregadas de manter a lei e a ordem. Romper o silêncio, abrir o debate O modelo atual de política de repressão às drogas está firmemente arraigado em preconceitos, temores e visões ideológicas. O tema se transformou em um tabu que inibe o debate público por sua identificação com o crime, bloqueia a informação e confina os consumidores de drogas em círculos fechados, onde se tornam ainda mais vulneráveis à ação do crime organizado.
Os níveis de consumo continuam se expandindo na América Latina.
Jose Gomez/Reuters
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Por isso, romper o tabu, reconhecer os fracassos das políticas vigentes e suas consequências é uma precondição para a discussão de um novo paradigma de políticas mais seguras, eficientes e humanas. Isso não significa condenar em bloco as políticas que custaram enormes recursos econômicos e o sacrifício de incontáveis vidas humanas na luta contra o tráfico de drogas. Tampouco implica desconhecer a necessidade de combater os cartéis e traficantes. Significa, isso sim, que devemos reconhecer a insuficiência dos resultados e, sem desqualificar em bloco os esforços feitos, abrir o debate sobre estratégias alternativas, com a participação de setores da sociedade que se mantiveram à margem do problema por considerar que sua solução cabe às autoridades. A questão que se coloca é reduzir drasticamente o dano que as drogas fazem às pessoas, sociedades e instituições. Para isso, é essencial diferenciar as substâncias ilegais de acordo com o prejuízo que provocam para a saúde e a sociedade. Políticas seguras, eficientes e fundadas nos direitos humanos implicam reconhecer a diversidade de situações nacionais, bem como priorizar a prevenção e o tratamento. Essas políticas não devem negar a importância das ações repressivas para enfrentar os desafios impostos pelo crime organizado – inclusive com a participação das forças armadas, em situações limite, de acordo com a decisão de cada país. Limites e efeitos indesejáveis das estratégias repressivas É imperativo examinar criticamente as deficiências da estratégia proibicionista seguida pelos Estados Unidos e as vantagens e os limites da estratégia de redução de danos seguida pela União Europeia, bem como a pouca prioridade dada ao problema das drogas, por alguns países, tanto industrializados como em desenvolvimento. A Colômbia é um exemplo claro das limitações da política repressiva promovida globalmente pelos Estados Unidos. Durante décadas, o país adotou todas as medidas de combate imagináveis, em um esforço descomunal, cujos benefícios não correspondem aos enormes gastos e custos humanos. Apesar dos significativos êxitos da Colômbia em sua luta contra os cartéis da droga e a redução dos índices de violência e de delitos, voltaram a crescer as áreas de plantação de culturas ilícitas, bem como o fluxo de drogas a partir da Colômbia e da área andina. O México se converteu, de maneira acelerada, em outro epicentro da atividade violenta dos grupos criminosos do narcotráfico. Isto impõe desafios enormes ao governo mexicano em sua luta contra os cartéis de drogas, que substituíram os traficantes colombianos como introdutores da maior quantidade de narcóticos no mercado dos Estados Unidos. O México tem direito de reivindicar do Governo e das instituições da sociedade norte-americana um debate sobre as políticas que lá se aplicam e também de pedir à União Europeia um esforço maior para a redução do consumo. A traumática experiência colombiana, sem dúvida, é uma referência para que se evite o erro de seguir as políticas proibicionistas dos Estados Unidos e que se encontrem alternativas inovadoras.
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A política europeia de focalizar a redução de danos causados pelas drogas como um assunto de saúde pública, por meio do tratamento dos usuários, se mostra mais humana e eficiente. Porém, ao não priorizar a redução do consumo, sob o argumento de que as estratégias de redução de danos minimizam a dimensão social do problema, a política dos países da União Europeia mantém intacta a demanda de drogas ilícitas que estimula sua produção e exportação de outras partes do mundo. A solução de longo prazo para o problema das drogas ilícitas passa pela redução da demanda nos principais países consumidores. Não se trata de buscar países culpados por tal ou qual ação ou omissão, mas sim de afirmar que os Estados Unidos e a União Europeia são corresponsáveis pelos problemas que enfrentamos na região, pois seus mercados são os maiores consumidores das drogas produzidas na América Latina. É desejável, por isso, que apliquem políticas que efetivamente diminuam o nível de consumo e que reduzam significativamente o tamanho deste negócio criminoso. A visão da América Latina: rumo a um novo paradigma Considerando a experiência da América Latina na luta contra o tráfico de drogas e a gravidade do problema na região, a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia se dirige à opinião pública e aos governos da América Latina, às Nações Unidas e à comunidade internacional, propondo um novo paradigma sustentado em três grandes diretrizes: - Tratar o consumo de drogas como uma questão de saúde pública; - Reduzir o consumo por meio de ações de informação e prevenção; - Focalizar a repressão sobre o crime organizado. Nosso enfoque não é de tolerância com as drogas. Reconhecemos que as drogas provocam danos às pessoas e à sociedade. Tratar o consumo de drogas como uma questão de saúde pública e promover a redução de seu uso são precondições para focalizar a ação repressiva em seus pontos críticos: a diminuição da produção e o desmantelamento das redes de traficantes. Para concretizar esta mudança de paradigma, propomos que a América Latina tome as seguintes iniciativas no marco de um processo global de transformação das políticas de combate ao uso de drogas ilícitas: 1. Converter os dependentes e compradores de drogas no mercado ilegal em pacientes do sistema de saúde. A enorme capacidade de violência e corrupção do narcotráfico só poderá ser combatida efetivamente se suas fontes de renda forem substancialmente debilitadas. Com este objetivo, o Estado deve criar as leis, instituições e regulações que permitam que as pessoas que tenham caído na dependência de drogas deixem de ser compradores no mercado ilegal para se transformar em pacientes do sistema de saúde. Isto, em conjunto com campanhas educativas e de informação, levaria a uma redução da demanda de drogas ilegais e à derrocada dos preços das mesmas, minandose desta maneira as bases econômicas deste negócio criminoso.
2. Avaliar, com um enfoque de saúde pública e fazendo uso da ciência médica mais avançada, a conveniência de descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal. A maconha é, de longe, a droga mais difundida na América Latina. Seu consumo tem um impacto negativo sobre a saúde, inclusive a saúde mental. Entretanto, a evidência empírica disponível indica que os danos causados por esta droga são similares aos causados pelo álcool e o tabaco. Mais importante ainda, grande parte dos danos associados à maconha – da prisão e encarceramento indiscriminado de consumidores à violência e corrupção que afetam toda a sociedade – são o resultado das políticas proibicionistas vigentes. A simples descriminaliza-
3. Reduzir o consumo através de campanhas inovadoras de informação e prevenção que possam ser compreendidas e aceitas, em particular pela juventude, que é o maior contingente de usuários. As drogas afetam o poder de decisão dos indivíduos. O testemunho de ex-dependentes sobre estes riscos pode ter maior poder de convencimento que a ameaça de repressão ou a exortação virtuosa a não consumir. As mudanças na sociedade e na cultura que levaram a reduções impressionantes no consumo de tabaco demonstram a eficiência de campanhas de informação e prevenção baseadas em uma linguagem clara e argumentos consistentes com a experiência das pessoas a que se destinam.
Andrei Bonamin/Luz
Cabe às campanhas de comunicação alertar constantemente a população em geral e os consumidores em particular sobre a responsabilidade de cada um diante do problema, os perigos que o "dinheiro fácil" gera e os custos de violência e corrupção associados ao tráfico de drogas.
ção do consumo, se não for acompanhada de políticas de informação e prevenção, pode ter como consequência o aprofundamento dos problemas de dependência. Os Estados Unidos são provavelmente o país industrializado que dedica mais recursos à luta contra o tráfico de drogas ilícitas. O problema está na eficácia e consequência de suas ações. Sua política de encarcerar os usuários de drogas, questionável do ponto de vista do respeito aos direitos humanos e de sua eficácia, é inaplicável na América Latina, considerando a superpopulação carcerária e as condições do sistema penitenciário. Inclusive esta política repressiva propicia a extorsão dos consumidores e a corrupção da polícia. Nesse país também é descomunal a magnitude dos recursos que se usam para a interdição do tráfico e para sustentar o sistema carcerário, em comparação ao que se destina para a saúde e a prevenção, tratamento ou reabilitação dos consumidores.
Cabe às campanhas de comunicação alertar constantemente a população em geral e os consumidores em particular sobre a responsabilidade de cada um diante do problema, os perigos que o "dinheiro fácil" gera e os custos de violência e corrupção associados ao tráfico de drogas. A maior parte das campanhas de prevenção que hoje se desenvolvem no mundo é bastante ineficiente. Há muito que aprender com as experiências de países europeus como, por exemplo, o Reino Unido, a Holanda e a Suíça, e é preciso explorar experiências de outras regiões. 4. Focalizar as estratégias repressivas na luta implacável contra o crime organizado. As políticas públicas deverão priorizar a luta contra os efeitos mais nocivos do crime organizado para a sociedade, como a violência, a corrupção das instituições, a lavagem de dinheiro, o tráfico de armas, o controle de territórios e po-
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pulações. Nesta questão é importante o desenvolvimento de estratégias regionais e globais. 5. Reorientar as estratégias de repressão ao cultivo de drogas ilícitas. Os esforços de erradicação devem ser combinados com a adoção de programas de desenvolvimento alternativo, seriamente financiados e que contemplem as realidades locais em termos de produtos viáveis e com acesso aos mercados em condições competitivas. Deve-se falar não somente de cultivos alternativos, como também de desenvolvimento social de fontes de trabalho alternativo, de educação democrática e de busca de soluções em um contexto participativo. Simultaneamente, é preciso considerar os usos lícitos de plantas como a coca, nos países onde existe longa tradição sobre seu uso ancestral anterior ao fenômeno de sua utilização como insumo para a fabricação de droga, promovendo medidas para que a produção se ajuste estritamente a esse tipo de consumo. A participação da sociedade civil e da opinião pública Um novo paradigma para enfrentar o problema das drogas deverá estar menos centrado nas ações penais e ser mais inclusivo no plano da sociedade e da cultura. As novas políticas devem se basear em estudos científicos e não em princípios ideológicos. Neste esforço, é preciso envolver não somente os governos, mas o conjunto da sociedade. A percepção do problema pela sociedade, bem como a legislação sobre drogas ilícitas encontram-se em processo acelerado de transformação na América Latina. Um número crescente de líderes políticos, civis e culturais expressou a necessidade de uma mudança drástica de orientação. O aprofundamento do debate em relação às políticas sobre consumo de drogas deve se apoiar em avaliações rigorosas do impacto das diversas propostas e medidas alternativas à estratégia proibicionista, que já estão sendo experimentadas em diversos países, buscando a redução dos danos individuais e sociais. Esta construção de alternativas é um processo que requer a participação de múltiplos atores sociais: instituições de justiça e segurança, educadores, profissionais da saúde, líderes espirituais, as famílias, formadores de opinião e comunicadores. Cada país deve enfrentar o desafio de abrir um amplo debate público sobre a gravidade do problema e a busca das políticas mais adequadas a sua história e sua cultura. No âmbito continental, a América Latina deve estabelecer um diálogo com o governo, congressistas e a sociedade civil dos Estados Unidos para desenvolver de forma conjunta alternativas à política de "guerra às drogas". A inauguração da administração de Barack Obama representa uma oportunidade propícia para a revisão em profundidade de uma estratégia que fracassou e a busca em comum de políticas mais eficientes e mais humanas. Simultaneamente, no nível global, devemos avançar na articulação de uma voz e visão da América Latina capaz de influir no debate internacional sobre drogas ilícitas, sobretudo no marco das Nações Unidas e da Comissão Interamericana
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para o Controle do Abuso de Drogas. Esta participação ativa da América Latina no debate global marcaria a transição de região-problema para região pioneira na implementação de soluções inovadoras para a questão das drogas. (...) Resultados e consequências da "guerra às drogas" Atualmente, 208 milhões de pessoas no mundo usam algum tipo de drogas ilícitas pelo menos uma vez por ano. Deste total, calcula-se que 15% sofrem de problemas crônicos de dependência. A maconha é a droga mais consumida (160 milhões). Drogas sintéticas, à base de anfetaminas e o ecstasy, já superam, em número de usuários, a cocaína e a heroína (1). O negócio das drogas ilícitas controlado pelo crime organizado é estimado em centenas de bilhões de dólares. O último Relatório Mundial sobre Drogas (2) , da UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), reconhece que a aplicação das Convenções das Nações Unidas sobre drogas ilícitas produziu várias consequências negativas inesperadas: - A criação de um mercado negro controlado pelo crime. - A luta contra o crime, consorciado com o comércio de drogas, exige recursos crescentes, muitas vezes em detrimento do investimento em saúde pública, que era a razão de ser da política proibicionista. - A repressão à produção em um local levou a que esta fosse transferida para outras regiões, mantendo a oferta global estável. O deslocamento do tipo de drogas usadas, em função de mudanças nos preços relativos produzidos pela repressão. - Finalmente, a política proibicionista tem gerado a estigmatização de pessoas dependentes de drogas, que são marginalizadas socialmente, sofrendo dificuldades para obterem tratamento adequado. O objetivo fixado se revelou irrealizável e os próprios organismos das Nações Unidas reconhecem que se passou do objetivo inicial de eliminação das drogas para uma política de contenção dos níveis de produção e comercialização. Os custos para manter a proibição se mostraram enormes. O relatório da UNODC subestima o que denomina de consequências inesperadas. O narcotráfico produziu incrementos enormes nos níveis de violência. Ele corrompe as instituições e a democracia. Transforma milhões de pessoas que moram em bairros pobres em reféns do crime organizado. Empurra os dependentes de drogas a utilizarem seringas transmissoras de HIV e outras doenças contagiosas. As Convenções internacionais desconhecem formas ancestrais de utilização da coca, criminalizando culturas e povos. Em muitos países, as penalidades são desproporcionais, causando o encarceramento massivo e, em alguns países, execuções. As políticas de erradicação na América Latina Três países latino-americanos (Colômbia, Peru e Bolívia) produzem a totalidade da oferta mundial de cocaína (www.unodc.org/brazil/pt/pressrelease_20080619. html). Nas últimas décadas, com o apoio do governo dos Estados Uni-
dos, estes países iniciaram políticas de erradicação de plantios, apreensão e repressão ao tráfico. O programa mais importante foi o Plano Colômbia, que se propunha acabar com o conflito armado nesse país, elaborar uma estratégia de enfrentamento com o narcotráfico, erradicar a produção de coca, revitalizar a economia do país e oferecer alternativas aos produtores rurais. As principais metas do Plano Colômbia e dos outros programas de erradicação não foram alcançadas. A produção, embora tenha chegado a sofrer flutuações, continua sendo suficiente para suprir o mercado mundial: (Gráfico 1) Apesar de os níveis de apreensão terem apresentado aumentos consideráveis, tanto nos países exportadores como nos importadores, eles não afetaram a oferta final e nem mesmo o preço ao consumidor. Pelo contrário, o preço da cocaína apresenta uma tendência dominante de queda, enquanto o produto aumenta o seu grau médio de pureza. (Gráfico 2) Em suma, a política proibicionista se mostrou ineficaz. Não somente a oferta foi mantida em níveis estáveis, como os preços caíram, apesar dos enormes gastos realizados pelos Estados Unidos na repressão ao comércio exportador dos países produtores: (Gráfico 3) Esta situação é o resultado, em primeiro o lugar, da diferença entre o preço da matéria-prima e o preço pago pelo consu-
midor final. A proibição produz um mercado que oferece lucros exorbitantes: (Tabela 1) Em segundo lugar, os programas de erradicação não conseguiram diminuir de forma relevante a produção, que se deslocou para outros lugares. O resultado efetivo da repressão foi uma mudança constante da localização da produção e dos principais centros de comercialização. Até meados da década de 1990, a folha da coca era cultivada principalmente no Peru e na Bolívia, dois países que detinham 80% das plantações mundiais da coca e que processavam as folhas em pasta. A pasta era transportada em pequenos aviões para a Floresta Amazônica em território colombiano, onde, então, era misturada a substâncias químicas e se convertia, finalmente, em cocaína. Em seguida, a droga era enviada para os Estados Unidos, país que consumia mais da metade da cocaína no mundo. A primeira mudança substancial na localização da produção ocorreu com a redução das áreas de cultivo no Peru e na Bolívia, compensada pelo crescimento da produção na Colômbia, que se tornou o maior produtor mundial. Na Colômbia, parte das áreas cultivadas estava localizada em território sob o controle das FARC — Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia –, que passaram a organizar os produtores e intermediar as vendas da produção. A coca transformou-se em
Gráfico 1
(1) UNOC, World Drug Report 2008, http://www.unodc.org/documents/wdr/WDR_2008/WDR_2008_eng_web.pdf (2) UNODC, World Drug Report 2008, http://www.unodc.org/documents/wdr/WDR_2008/WDR_2008_eng_web.pdf
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Grรกfico 2
Grรกfico 3
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Tabela 1
um componente importante da receita do grupo guerrilheiro colombiano. Por sua vez, os grupos paramilitares autodenominados Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), também passaram a participar do negócio da coca (3). Os cartéis formados por traficantes colombianos controlaram boa parte da exportação de coca para os Estados Unidos até os anos 1990, quando as principais organizações ficaram enfraquecidas. A morte e as prisões de narcotraficantes colombianos levaram ao desmantelamento dos Cartéis de Medellín e de Cali. Isto produziu uma fragmentação do narcotráfico e o deslocamento do controle de parte do sistema de comercialização nos Estados Unidos para o crime organizado mexicano. Os traficantes mexicanos expandiram seu domínio sobre a distribuição de cocaína nos Estados Unidos ingressando também no mercado europeu. Isto tem levado a um aumento enorme da criminalidade e violência associadas ao tráfico no México, com importantes ramificações nas instituições públicas. (...) (Tabela 2: Taxa de Homicídio Juvenil) (...) O proibicionismo ajudou a converter os Estados Unidos no país com a maior população carcerária do mundo. O custo total para sustentar um traficante na cadeia nos Estados Unidos pode chegar a 450 mil dólares: os custos de prisão e julgamento estão calculados em 150 mil dólares; os custos de prover uma vaga adicional no sistema prisional é de aproximadamente 50 mil a 150 mil dólares, dependendo da jurisdição; os custos de manutenção de um preso é de cerca de 30 mil dólares por ano — com uma condenação média de cinco anos, são 150 mil dólares. Com esta mesma quantia de 450 mil dólares, pode-se conceder tratamento ou educação para aproximadamente 200 pessoas. (...)
Redução de danos, despenalização e descriminalização Nas últimas décadas, vários países desenvolveram políticas inovadoras para enfrentar o problema do uso de drogas ilícitas, tendo como pilares a despenalização e/ou a descriminalização do usuário e a política de redução de danos. As políticas de redução de danos consistem numa estratégia que trata o consumo de drogas como uma questão de saúde pública, na qual o dependente é visto como pessoa que precisa ser auxiliada ao invés de criminoso que deve ser castigado. O objetivo inicial dos países que desenvolveram a política de redução de danos foi regulamentar a distribuição de seringas, agulhas e cachimbos aos usuários de drogas, com a finalidade de reduzir o número de casos de doenças como AIDS e hepatite, cujo risco de contaminação é alto quando há o compartilhamento de seringas. Posteriormente esta política passou a incluir programas de apoio e tratamento de pessoas dependentes. A despenalização é definida por Cervini (4) como "o ato de diminuir a pena de um ilícito sem descriminalizá-lo, quer dizer sem tirar do fato o caráter de ilícito penal". Ou seja, a proibição legal do uso e porte de entorpecentes continua vigente no direito penal, mas o ilícito deixa de ser sancionado com a privação de liberdade. O problema colocado pela despenalização do consumo, mantendo sua criminalização, é que ela ainda outorga à autoridade policial um alto poder discricionário. Em países onde a corrupção da força policial é endêmica, a criminalização pode ser utilizada para chantagear o usuário de drogas, prática comum em países da América Latina. A alternativa à despenalização é a descriminalização, aplicada somente ao consumidor:
(3) Pecaut, Daniel. Guerra contra la sociedad, Bogotá, Editorial Espasa, 2001 (4) CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização 2ª. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.75, em Boiteux,p.82-83.
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A descriminalização retira o status de lei criminal daque- Na Holanda, a posse de pequenas quantidades de macoles atos aos quais se aplica. Isso significa que certos atos deinha e seu plantio em pequena escala para uso pessoal foram xam de ser considerados crimes. Em relação às drogas, geraldespenalizados, e sua venda e uso nos chamados coffeeshops mente se refere à demanda; atos de aquisição, posse e consu– com licença oficial para uso e venda de maconha em pequemo. De acordo com a descriminalização, ainda é ilegal usar, nas quantidades – foram descriminalizados. O objetivo oripossuir, adquirir ou, em alguns casos, importar drogas, mas ginal era permitir o acesso à maconha para consumo indiviesses atos deixam de ser crime. Entretanto, ainda podem ser dual, desassociando-a de drogas mais pesadas. A heroína esaplicadas sanções administrativas; essas podem ser uma tá disponível sob prescrição médica, e as salas para injeção semulta, suspensão da licença de dirigir ou do gura são disponibilizadas a dependentes. A porte de armas, ou apenas uma advertência. oferta legal de maconha não tem produzido Ao contrário, a legalização é o processo de taxas de consumidores mais altas que em váA política de trazer para o controle da lei uma atividade esrios países europeus onde o comércio permapecífica que foi previamente ilegal e proibida nece ilegal. Os coffeeshops funcionam regucombate às drogas, ou estritamente regulada (5). larmente desde 1976, embora sua continuidaadotada oficialmente A política de combate às drogas, adotada de esteja sendo questionada pelo incômodo por diversos países, oficialmente por diversos países, associa a causado pelos turistas que visitam a Holanda associa a despenalização ou a descriminalização do exclusivamente para comprar maconha e pedespenalização ou consumo a políticas de redução de danos. Esta la presença de pequenos traficantes em busca perspectiva está provando ser um modelo de turistas para vendas de drogas pesadas. a descriminalização mais eficaz e humano, em contraste com o en- Em abril de 2001, Luxemburgo descrimido consumo a políticas foque proibicionista. nalizou o uso e porte de maconha. Problemas de redução de danos. Na maioria dos países europeus (com excerelacionados ao uso, aquisição e plantio de maEsta perspectiva está ção de Suécia e Grécia), Canadá e Austrália, a conha são tratados com sanções administratiprovando ser um modelo posse de quantidades pequenas de maconha vas em vez de penalidades criminais. não leva à criminalização dos usuários. Tanto - Na Bélgica, desde 2002, o uso de maconha mais eficaz e humano, na prática legal como na repressão ao comérfoi descriminalizado. Processos penais só se em contraste com o cio, observa-se uma distinção entre drogas fradesenvolvem e prisões só acontecem em caenfoque proibicionista. cas e fortes. Na maioria dos países, os traficansos de grave perturbação social e da ordem tes, em particular de drogas pesadas, podem pública. Lei semelhante está sendo adotada ser tratados com penas severas. no Reino Unido e já vigora há poucos anos Na Holanda, a Apesar de apresentarem muitos aspectos na Irlanda. em comum, as políticas nacionais mostram - Na Alemanha, a posse de pequenas quanposse de pequenas variações: tidades de qualquer tipo de droga foi despenaquantidades de - Em Portugal, Espanha e Itália, a posse de lizada (a tolerância com relação ao peso é demaconha e seu drogas para uso pessoal foi descriminalizada. terminada pelos governos regionais). Desde plantio em pequena As pessoas podem estar sujeitas apenas a san1994, foram abertos mais de 50 centros para inescala para uso ções administrativas, como multas (que em aljeção segura de heroína, com supervisão médiguns casos podem ser retiradas se o usuário ca. Desde 2002, um programa sofisticado de pessoal foram concordar em se submeter a um tratamento). disponibilização de heroína a usuários altadespenalizados, Na Espanha, é permitido plantar maconha pamente dependentes vem funcionando em assim como a sua ra uso pessoal. grandes cidades. venda e uso em - A política suíça se funda em "quatro pila- Na Dinamarca, a posse de pequenas quanres": prevenção, terapia, redução dos riscos e tidades de maconha é tratada com simples adcoffeeshops. repressão. Na Suíça, a posse de qualquer drovertência policial, enquanto que pequenas ga para uso pessoal é tratada como uma conquantidades de cocaína ou heroína são tratatravenção (submetida a sanções administrativas). Em 2001, o das pela lei com advertência e apreensão. Multas são imposSenado aprovou uma lei para legalizar a posse, o cultivo e o uso tas para os reincidentes. Em certos casos de drogas pesadas, de maconha (para maiores de 18 anos). A medida, no entanto, os usuários com posse de uma única dose, para uso próprio, foi derrotada por poucos votos na Câmara dos Deputados e por vezes, recebem permissão de permanecerem com a dronum referendo recente. Apesar disso, a maconha é tolerada pega. O motivo dado pela polícia é o de que o efeito desse tipo de la polícia e pode ser adquirida praticamente de forma aberta. A apreensão seria mínimo e os custos podem ser altos já que o Suíça tem um programa pioneiro de prescrição de heroína, que usuário poderá cometer um crime ou delito para obter difoi aprovado por um referendo nacional. nheiro para outra dose.
(5) "Decriminalisation in Europe? Recent developments in legal approaches to drug use" EMCDDA, ELDD Comparative Analysis, November 2001; European Legal Database on Drugs. Published at: http://eldd.emcdda.org/databases/eldd_comparative_analyses.cfm
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Tabela 2
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- Na França, embora o uso de entorpecentes não tenha sido se, cultivo e consumo, podem ainda nomear uma outra pesdespenalizado, a fiscalização decide, caso a caso, se dá uma adsoa – de quem sejam dependentes ou recebam cuidados – vertência por uma primeira infração, aplica as penalidades cripara ganhar a "carteira da maconha". minais ou encaminha o usuário para tratamento. Uma diretriz, A lei é aplicada de forma muito diferente segundo o estado de 1999, do Ministério da Justiça, recomenda não processar os e município. Na cidade de São Francisco, por exemplo, prolicasos de uso individual de drogas ilegais, quando não existiferam pequenos estabelecimentos – quase sempre cafés ou lanrem outras infrações agravantes. Também determina que a chonetes – que têm à disposição para venda cigarros, chás e liprisão deva ser usada apenas como um "último recurso". mitadas quantidades de maconha. Apesar de ilegal, a polícia Em maio de 2004, a Rússia apresentou uma nova lei que raramente intervém nesse tipo de comércio. substitui a prisão de usuários por multas administrativas para (...) a posse de "até duas doses" de qualquer droga para uso pessoal. No entanto, estrangeiros poNovas dinâmicas na América Latina dem ser expulsos ou ter negadas futuras entradas no país caso se envolvam em casos de inNa América Latina, vários países impleNo Estado da frações por posse de drogas. mentaram – ou estão em vias de implementar Califórnia, a Na América do Norte, as políticas igual– políticas para despenalizar a posse para uso maconha não só mente estão mudando. No Canadá, o debate pessoal de drogas ilícitas. Estão entre eles Vetem sua produção sobre a política de combate às drogas vem evonezuela, Argentina, Colômbia e Brasil. Além permitida para luindo rapidamente nos últimos anos. Uma disso, cresce, nos países da região andina com comissão do Senado canadense propôs a legatradições ancestrais de uso da coca, a exigên"uso médico", como lização da maconha, bem como a realização de cia de respeito a culturas locais e a procura de também já é taxada. reformas importantes na legislação de prevenusos alternativos. Pequenos cultivos de folha O uso de maconha ção e repressão às drogas. de coca na Bolívia são diferenciados dos celeipara fins medicinais Até mesmo nos Estados Unidos, várias leros do tráfico, e o lema do presidente Evo Moe terapêuticos foi gislações estaduais e municipais garantem rales é "cocaína zero, mas não coca zero" – um tratamento diferenciado aos usuários de objetivo ainda a ser atingido, pois a Bolívia descriminalizado no drogas leves. Há mais de 35 anos, em outucontinua sendo um importante produtor de início de dezembro bro de 1973, o estado de Oregon reduziu a incoca para usos ilícitos. Desde 1988, a Bolívia de 2008 no Estado fração de posse inferior a 30 gramas de mapermite, por lei, o cultivo da coca, para masde Michigan. conha para uma "violação civil", com pena car ou fazer infusões, em até 12 mil hectares. A máxima de uma multa de 100 dólares. Dez parcela foi ampliada em 2004. O que ultrapasoutros Estados americanos (incluindo o sa a área deve ser erradicado. Embora desAlasca, que chegou a descriminalizar a poscontente e pressionando por limites menores No Brasil, a se para uso pessoal) promulgaram leis que de cultivo, a Casa Branca cedeu ao formato e primeira política reduziram para apenas uma multa a pena continuou enviando ajuda ao governo para máxima por posse de maconha. No estado realizar ações antidrogas. A cooperação, ponacional de controle de da Califórnia, a maconha não só tem sua prorém, foi suspensa com o veto de La Paz às erdrogas foi formulada dução permitida para "uso médico", como radicações forçadas. pelo governo do também já é taxada. No Brasil, a primeira política nacional de presidente Fernando O uso de maconha para fins medicinais e controle de drogas foi formulada pelo goverterapêuticos foi descriminalizado no início no do presidente Fernando Henrique CardoHenrique Cardoso, de dezembro de 2008 no Estado do Michiso, através da criação do Secretariado Nacioatravés da criação do gan. Michigan tornou-se, assim, o 13º Estado nal das Drogas, que deveria desenvolver Secretariado Nacional do país a legalizar a maconha para uso clíniuma orientação para conciliar métodos de das Drogas. co e terapêutico, apesar das leis não serem repressão, planos de prevenção e redução de claras com relação aos meios de obtenção da demanda. Em 2006, sob o governo do presierva. A lei, aprovada em referendo por eleidente Luis Inácio Lula da Silva, a política de tores, permite que pacientes com câncer, AIDS, glaucoma e drogas foi realinhada com a Lei nº. 11.343, fortalecendo algumas outras doenças utilizem a maconha, sob recomenações de prevenção e garantindo medidas educativas, em dação médica, como forma de amenizar os sintomas tanto lugar de penas para usuários, e espaço para cultivo de plandas doenças como dos respectivos tratamentos. As pessoas tas para uso comprovadamente pessoal. habilitadas podem se registrar oficialmente na burocracia No México, em março de 2003, o ex-presidente mexicano do estado para receber carteiras especiais de identificação. Vicente Fox fez o seguinte comentário: "Minha opinião é de As pessoas com posse dessa carteira "poderão adquirir, posque, no México, não é delito possuir ou portar no bolso uma suir, portar e cultivar uma quantidade limitada – não ultraquantidade pequena de droga. […] a Humanidade um dia passando o peso de 2,5 onças (cerca de 30 gramas) e 12 planverá a legalização das drogas como a alternativa mais sentas – de maconha. Os contemplados com esse direito de possata". Já em outubro passado, o presidente mexicano Felipe
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Paulo Pampolin/Hype
Calderón enviou um projeto de lei que descriminaliza a posse de pequenas quantidades de drogas com o objetivo de manter viva sua cruzada contra o narcotráfico e acalmar a violência das ruas. A iniciativa de Calderón propõe que não sejam punidos usuários com quem acharem até dois gramas de maconha, 50 miligramas de heroína, 500 miligramas de cocaína e 40 miligramas de metanfetamina. A medida pretende diferenciar, de forma legal, o consumidor, o fornecedor e o vendedor de drogas. "O que se busca é tratar o dependente não como um delinquente, mas sim como um enfermo e dar-lhe tratamento psicológico ou médico", comentou o senador Alejandro González, presidente da Comissão de Justiça do Senado mexicano. (...) Encarando o futuro
Mesmo com forte repressão policial-militar, erradicação de plantações, danos causados às estruturas físicas do narcotráfico e com as constantes apreensões de vultosos carregamentos de drogas, as margens de lucro do crime organizado superam, amplamente, seus prejuízos.
O incremento da violência na América Latina, em boa medida associada ao tráfico de drogas, tem se transformado nos últimos anos num dos principais problemas para os cidadãos e as instituições democráticas da região. A orientação de combater as drogas pela proibição, repressão, sanção e punição não só não resolve o problema, como gera outros novos e mais graves. A experiência com drogas legais, como o tabagismo e o alcoolismo, indica que podem ser obtidos resultados altamente positivos utilizando campanhas de informação, educação e conscientização e, quando necessário, apoio terapêutico. Mesmo com forte repressão policial-militar, erradicação de plantações, danos causados às estruturas físicas do narcotráfico e com as constantes apreensões de vultosos carregamentos de drogas, as margens de lucro do crime organizado superam, amplamente, seus prejuízos. A oferta de coca foi suficiente para suprir os mercados e inclusive baixar os preços. Como já foi dito, os conflitos envolvendo a produção ilegal para a exportação e para o consumo interno levaram a região a ter os maiores índices de homicídios do planeta. O lucro das drogas é o principal financiador do comércio ilegal de armas e milhares de jovens são mortos em lutas internas pelo controle do comércio ou em combates com a polícia ou com militares, que também são vítimas fatais desta guerra singular. Parte das forças responsáveis pela manutenção da ordem e das estruturas de poder foi cooptada pelo crime organizado, e o poder corruptor do dinheiro associado ao tráfico de drogas penetra em todos os níveis dos poderes públicos e corrói os próprios fundamentos da democracia. Como enfrentar este problema? A estratégia centrada fundamentalmente na repressão fracassou na América Latina. O
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desejo de um mundo sem drogas não constitui um horizonte realista e, portanto, não pode ser o fundamento de políticas públicas, cujos objetivos devem ter como prioridade a prevenção, o tratamento e a redução de danos para o conjunto da sociedade, os indivíduos, as famílias e as instituições. Apesar da importância e da gravidade que o tema apresenta para os cidadãos da região, ele é tratado marginalmente nas campanhas eleitorais, na mídia e no debate público em geral. Os avanços na região – e muitos deles importantes – feitos por diversos países na legislação ou nas for-
cundários extremamente maléficos (como utilização de seringas contaminadas que veiculam doenças contagiosas, como o HIV), têm-se mostrado um modelo mais eficaz e humano. Na América Latina, diversos países implementaram (ou estão em vias de adotar) políticas de despenalização de posse de drogas para uso pessoal, entre eles o Uruguai, a Venezuela, a Colômbia, a Argentina e o Brasil. Além disso, crescem na região novas formas de pensar e agir na luta contra as drogas com foco nos direitos humanos, no respeito às culturas ancestrais e na busca de novos tipos de cultivos e de usos alternativos. Márcio Fernandes/AE Parte da legislação e das políticas públicas, nos diferentes países da região, se mostra insuficiente e/ou ineficaz para conter o uso e a comercialização das drogas. Mudanças na legislação, campanhas de educação, tratamento dos consumidores, informação e conscientização são elementos centrais para lidar com os problemas citados. As declarações claras a favor da despenalização, ou mesmo da descriminalização, da regulação e do tratamento do problema da droga como questão de saúde pública, partem hoje de figuras dos diversos países da região e diferentes matizes ideológicos e partidários. As campanhas de conscientização dos malefícios das drogas, das quais devem participar os meios de comunicação, os formadores de opinião pública, o sistema educacional e as organizações da sociedade civil, deverão utilizar mensagens eficazes e realistas, que atinjam efetivamente o público receptor. A mobilização de ex-viciados que transmitam o drama vivido, certamente, impacta muito mais que petições de princípios. Os sistemas de saúde pública devem ser capacitados e dotados de recursos para apoiar os dependentes, assim como é preciso apoiar organizações da sociedade civil dedicadas ao tratamento de dependentes. Juan Carlos Ramirez Abadia é um dos maiores traficantes de drogas da As forças de segurança pública deveriam Colômbia. Ele foi preso em 2007 em Aldeia da Serra, Grande São Paulo. focalizar seus esforços e recursos na luta contra o crime organizado e o tráfico de armas a ele associado, procurando desmantelar as grandes redes de comércio de drogas e de armas e de lavamas práticas de tratar a questão, assim como as declarações gem de dinheiro. Esforços desmedidos na repressão do públicas realizadas por líderes políticos, embora represenusuário representam um desperdício de recursos limitados tem passos importantes, ainda são insuficientes. Os govere abre as portas de formadesnecessária à corrupção das fornos e as sociedades da América Latina devem aprofundar o ças policiais e militares. debate sobre o fenômeno das drogas. Com a ausência de A política de segurança deverá se orientar por um sólido sisuma discussão ampla e bem informada, os problemas relatema de inteligência. Sem ele, a repressão é ineficaz e seus efeitivos à violência, à corrupção e à erosão do poder público tos sociais podem ser até contraproducentes. As novas polítitendem não somente a se agravar, como se tornam cada vez cas deverão utilizar perícias sobre a qualidade das drogas ilímais difíceis de serem resolvidos. citas utilizadas e estudos sobre seus impactos na saúde. O coAs políticas de combate às drogas, adotadas oficialmente n h e c i m e n t o p ro d u z i d o e m n í v e l n a c i o n a l d e v e s e r por diversos países, em particular na Europa, com enfoque na compartilhado entre os países da região, o que permitirá includespenalização ou na descriminalização do consumo, no trasive identificar origem e rotas das drogas. tamento das pessoas dependentes, na prevenção de efeitos se-
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Mariana Bazo/Reuters
A construção do bem comum exige soluções corajosas que só podem ser desenvolvidas por um debate aberto (...)
Novas políticas e campanhas educativas devem estar acompanhadas de pesquisa sistemática que apoie a tomada de decisões para agir de forma eficaz na prevenção, informação, educação e tratamento. Observatórios de pesquisa devem estudar regularmente os padrões e mudanças no uso de drogas ilícitas, de acordo com tipos, faixas etárias e estratos sociais dos usuários. Isto exige um acompanhamento constante sobre o que está acontecendo com os consumidores, incluindo consequências indiretas, como transmissão de HIV (seja por via sexual sob efeitos de drogas, seja por via sanguínea no compartilhamento de seringas). A procura de alternativas de desenvolvimento rural que crie infraestrutura e mercados viáveis para os atuais produtores de drogas ilícitas não deve excluir a priori a possibilidade do aproveitamento lícito das mesmas. Novas pesquisas científicas podem valorizar o uso da maconha e da coca como ingredientes para aplicações medicinais, uso culinário, goma de mascar, produção de fibras extremamente resistentes para uso têxtil e cordas, produtos de higiene, biocombustíveis e plásticos vegetais. A construção do bem comum exige soluções corajosas que só podem ser desenvolvidas por um debate aberto que fortaleça a disposição a experimentar novas soluções. Trata-
se de um tema complexo que exige a mobilização das mais diversas áreas de conhecimento e da ação coordenada das várias instituições e de políticas públicas. Nele, deverão participar parlamentos, governos, poder judiciário, órgãos de segurança pública, especialistas do setor de saúde e organizações da sociedade civil, para um diálogo aberto e informado, que transcenda os interesses corporativos. Um problema complexo exige a mobilização dos mais diversos saberes e instituições, que tratem o problema através de políticas integradas. O problema das drogas deve ser debatido frontalmente – através de discussões, debates, estudos, pesquisas – por cada país e pelo conjunto da região. Ele não apenas afeta as respectivas sociedades, como cria espaços de criminalidade que desconhecem limites nacionais. O tema exige, portanto, novos fóruns de debate em cada país e em nível regional, que possibilitem a livre e intensa discussão, o intercâmbio de experiências locais e a busca de soluções conjuntas para uma problemática regional. Região que mais tem sofrido com as consequências negativas da política de "guerra às drogas", a América Latina pode contribuir efetivamente para a busca de novos paradigmas no enfrentamento dos problemas postos pelo comércio e o consumo das drogas ilícitas.
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ONU tem posição contrária à legalização Divulgação
Antonio Maria Costa Diretor Executivo do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC)
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fim do primeiro século de enfrentamento às drogas (que teve início em Xangai, no ano de 1909) coincidiu com o término da década UNGASS (Sessão Especial da Assembleia Geral sobre Drogas, lançada em 1998). Esses marcos estimularam a reflexão acerca da efetividade, e também das limitações, da política sobre drogas. Essa reflexão resultou na reafirmação de que as drogas continuam a exercer perigo à saúde da humanidade. Por esta razão são, e devem continuar sendo, combatidas. A partir dessa premissa, os Estados-Membros reiteraram total apoio às Convenções que a ONU estabeleceu no sistema mundial de enfrentamento às drogas. Simultaneamente, o UNODC ressaltou alguns efeitos negativos, e obviamente indesejados, do controle das drogas, realizando um necessário debate acerca dos modos e meios para lidar com esses efeitos. Recentemente, tem-se ouvido algumas poucas vozes, porém em número crescente, entre os políticos, a imprensa e até na opinião pública, dizendo: o enfrentamento às drogas não está funcionando. E a frequência na disseminação dessa mensagem está em ascensão. Grande parte desse debate público é caracterizada por amplas generalizações e soluções simplistas. Porém, a essência da discussão su-
blinha a necessidade de se avaliar a eficácia da atual abordagem. Após um estudo do problema, com base em nossos dados, o UNODC concluiu que, considerando que mudanças são necessárias, elas deveriam focar em diferentes meios para proteger a sociedade das drogas, ao invés de perseguir uma meta diferente de abandonar essa proteção. A. O que é o debate sobre a fim do controle às drogas? Diversos argumentos têm surgido em favor do fim do controle às drogas, baseados nas áreas (I) econômica, de (II) saúde e de (III) segurança, além de combinações entre as três áreas. I. O argumento econômico para a legalização diz: legalize as drogas e gere mais impostos. Esse argumento está ganhando espaço à medida que as administrações nacionais buscam novas fontes de receita durante a crise econômica atual. Esse argumento "legalize e taxe" é antiético e antieconômico. Ele propõe uma taxa perversa, de geração sobre geração, em cima de grupos marginalizados (entregues ao vício), a fim de estimular a recuperação econômica. Serão os partidários dessa causa também favoráveis à legalização e à taxação sobre
Prefácio do Sumário Executivo do relatório World Drug Report 2009 - disponível em: http://www.unodc.org/ pdf/brazil/WDR2009/ WDR_2009_Sumario_ Executivo_em_portugues.pdf
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Jorge Dan Lopez/Reuters
O crescimento desenfreado observado no passado perdeu força. O Relatório 2009 traz evidências de que o cultivo de drogas (ópio e coca) está estável ou em declínio.
outros crimes abomináveis, como o tráfico de pessoas? Os escravos modernos (que são milhares) certamente gerariam boas receitas em impostos para recuperar bancos falidos. O argumento econômico também está baseado em uma lógica fiscal frágil: qualquer redução no custo do controle das drogas (devido a gastos mais baixos com a fiscalização) será compensada por um gasto com a saúde pública muito maior (devido ao aumento no consumo de drogas). Moral da história: não transforme transações perversas em legais só porque elas são difíceis de fiscalizar. II. Outros defendem que, com a legalização, uma ameaça à saúde (na forma de uma epidemia de drogas) poderia ser evitada a partir de regulação por parte do Estado ao mercado de drogas. Novamente isso é ingênuo e míope. Primeiramente, quanto mais leve é a fiscalização (em tudo), maior será e mais rapidamente emergirá um mercado paralelo (do crime) – invalidando, desta forma, o conceito. Em segundo lugar, apenas poucos países (os ricos) poderiam financiar meios de controle tão elaborados. E o resto da humanidade (que é a maioria)? Por que deflagrar uma epidemia de drogas nos países em desenvolvimento em nome de um discurso de liberalização, ostentado por um lobby de quem se dá ao luxo de ter acesso a tratamento contra as drogas? As drogas não são prejudiciais porque são ilegais – elas são ilegais porque são prejudiciais. E causam prejuízos tanto aos viciados ricos e bonitos, quanto aos pobres e marginalizados. As estatísticas sobre drogas continuam falando em alto e bom som. O crescimento desenfreado observado no passado perdeu força e a crise dos anos 90 parece estar sob controle. O Relatório 2009 (World Drug Report 2009) traz evidências de que o cultivo de drogas (ópio e coca) está estável ou em declínio. E mais importante: os maiores mercados de ópio (Europa e o Sudeste Asiático), de cocaína (América do Norte), e de maconha (América do Norte, Oceania e Europa) estão diminuindo. O aumento no consumo de estimulantes sintéticos, principalmente no Leste Asiático e no Oriente Médio, é motivo de preocupação, ainda que o uso dessas substâncias esteja diminuindo nos países desenvolvidos. III. As preocupações mais sérias estão relacionadas ao crime organizado. Mas todas as atividades de mercado fiscalizadas pelas au-
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Por que deflagrar uma epidemia de drogas nos países em desenvolvimento em nome de um discurso de liberalização, ostentado por um lobby de quem se dá ao luxo de ter acesso a tratamento contra as drogas?
toridades geram transações paralelas e ilegais, como dito anteriormente. O controle das drogas inevitavelmente gerou um mercado criminoso de dimensões macroeconômicas, que se utiliza da violência e da corrupção para intermediar a demanda e o fornecimento. Com a legalização das drogas, o crime organizado perderia sua linha de atividade mais lucrativa, afirmam os críticos. Pois não é bem assim. O UNODC está ciente da ameaça que representam as máfias internacionais de drogas. Nossas estimativas sobre o valor do mercado de narcóticos (em 2005) foram inovadoras. O Escritório também foi responsável pelo primeiro alerta sobre a ameaça do tráfico de drogas em países do Leste e do Oeste da África, do Caribe, da América Central e dos Bálcãs. Com isso, ressaltamos a ameaça que o crime organizado representa à segurança, um problema que hoje é periodicamente abordado pelo Conselho de Segurança da ONU. Tendo iniciado esse debate sobre drogas/crime, e após longa ponderação, concluímos que esses argumentos sobre o crime organizado relacionado às drogas são válidos. Eles devem ser considerados. Peço urgência aos governos que rearranjem a combinação de suas políticas, sem perdermos mais tempo, aumentando o enfrentamento ao crime, sem diminuir o enfrentamento às drogas. Em outras palavras, enquanto o discurso sobre a criminalidade das drogas está certo, as conclusões alcançadas por seus propositores são imperfeitas. Por que? Pois nós não estamos aqui contando feijão, estamos contando vidas. A política econômica é a arte de se contar feijão (dinheiro) e de se administrar os dilemas: inflação versus emprego, consumo versus poupança, balança comercial interna versus externa. Com vidas é diferente. Se começarmos a comercializá-las, terminaremos violando os direitos humanos de alguém. Não pode haver trocas, nem compensações quando a saúde e a segurança estão em risco: a sociedade moderna deve, e pode, proteger ambos os problemas com absoluta determinação. Faço um apelo aos heróicos partidários da causa dos direitos humanos em todo o mundo que auxiliem o UNODC a promover o direito à saúde dos viciados em drogas: eles precisam ser assistidos e reintegrados à sociedade. O vício é uma questão de saúde e aqueles que estão afetados por ele não devem ser presos, feridos ou, como sugerido pelos proponentes desse argumento, comercializados, a fim de reduzir
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a ameaça à segurança por parte das máfias internacionais. De fato, esse último argumento deve ser abordado, e abaixo seguem nossas sugestões para isso. B. Um conjunto de medidas mais bem equilibrado A relação entre drogas e crime foi o assunto de um relatório intitulado O Crime Organizado e sua Ameaça à Segurança: atacando uma consequência perturbadora do controle das drogas (1) que apresentei à Comissão sobre Narcóticos e à Comissão sobre o Crime em 2009. Devido à importância desse tema, direcionamos o capítulo temático do Relatório deste ano para uma análise mais aprofundada do problema e de suas implicações políticas. E aqui estão alguns dos pontos principais. Primeiramente, o foco de penalização deve mudar do usuário de drogas para o traficante. O vício das drogas é uma questão de saúde: as pessoas que usam drogas precisam de ajuda médica, e não de sanção criminal. A atenção deve ser dada aos usuários que fazem uso intenso de drogas. São eles que consomem a maior parte das drogas, causam um enorme dano a si mesmos e à sociedade – e geram a maior renda para as máfias de drogas. O acompanhamento e a assistência médica tendem a construir sociedades mais saudáveis e seguras do que o encarceramento. Peço aos Países-Membros que busquem a meta de acesso universal ao tratamento de usuários de drogas como compromisso de salvar vidas e de reduzir a demanda de drogas: a queda no fornecimento e das receitas relacionadas às drogas serão consequência disso. Vamos avançar em direção a essa meta nos próximos anos e então avaliar seu impacto benéfico na próxima reunião dos Estados-Membros, a fim de revisar a eficácia da política de enfrentamento às drogas (2015). Em segundo lugar, devemos por fim à tragédia que são as cidades sem o controle das autoridades. As vendas de drogas, assim como outros crimes, ocorrem mais frequentemente em áreas urbanas controladas por grupos criminosos. E esse problema será ainda mais grave nas megalópoles do futuro, caso as autoridades não acompanhem a urbanização. Até porque prender indivíduos e apreender drogas para uso pessoal é como limpar
ervas daninhas – deve ser feito novamente no dia seguinte. O problema somente pode ser solucionado com o enfrentamento ao problema das favelas e do abandono das nossas cidades, por meio de recuperação da infraestrutura e de investimento nas pessoas – especialmente na assistência aos jovens, que são vulneráveis às drogas e ao crime, com educação, trabalhos e esporte. Os guetos não criam viciados e desempregados: frequentemente ocorre o inverso. E é nesse processo que os criminosos prosperam. Em terceiro lugar, e este é o ponto mais importante, os governos devem se utilizar, individual e coletivamente, dos acordos internacionais contra os transgressores. Isto significa ratificar e aplicar a Convenção da ONU contra o Crime Organizado (TOC) e contra a Corrupção (CAC), e os protocolos relacionados ao tráfico de pessoas, armas e migrantes. Até agora, a comunidade internacional não tem levado a sério esses comprometimentos internacionais. Enquanto os moradores das favelas sofrem, a África vive sob ataque, os cartéis do narcotráfico ameaçam a América Latina e criminosos se apropriam de instituições financeiras falidas, negociadores inexperientes discutem nas Conferências e Convenções sobre questões burocráticas e noções obscuras de inclusão, propriedade, alcance e não-ranqueamento. Há inúmeras lacunas na implementação das Convenções de Palermo e de Mérida, anos após a entrada delas em vigor, a ponto que vários países enfrentam problemas com o crime, amplamente causados por suas próprias escolhas. E isso já é ruim o bastante. Pior ainda é o fato de que, com frequência, vizinhos vulneráveis pagam um preço ainda mais alto por isso. Há muito ainda a ser feito por nossos países, a fim de enfrentar a força brutal do crime organizado: o contexto interno no qual os criminosos operam também deve ser abordado. • A Lavagem de dinheiro ocorre em grande escala e praticamente sem oposição, em um período em que os empréstimos interbancários secaram. As recomendações concebidas para prevenir o uso de instituições financeiras para a lavagem de dinheiro de origem ilícita hoje estão sendo violadas. Em tempos de grandes falências dos bancos, os banqueiros
(1) E/CN.15/2009/CRP.4 - E/CN.7/2009/CRP.4; http://www.unodc.org/unodc/en/commissions/CCPCJ/session/18.html
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Ramzi Haidar/AFP
parecem acreditar que o dinheiro não tem cheiro. Cidadãos honestos, que estão lutando em tempos de dificuldades econômicas, querem saber porquê os crimes – transformados em imóveis, carros, barcos e aviões ostentosos – continuam não sendo apreendidos. • Outro contexto que merece atenção é relacionado a um dos maiores bens da humanidade, a internet. Ela mudou nossas vidas, especialmente a forma com que conduzimos os negócios, a comunicação, a pesquisa e o entretenimento. Porém a internet também se transformou em uma arma de destruição em massa pelos criminosos (e terroristas). De forma surpreendente, e apesar da atual onda de crimes, chamados por novas formas de ação contra a lavagem de dinheiro e os crimes cibernéticos continuam sem resposta. Nesse processo, a política sobre drogas leva a culpa e é subvertida. C. Um duplo "NÃO" Para concluir, o crime organizado transnacional jamais será eliminado pela legalização das drogas. Os cofres das máfias são igual-
mente nutridos pelo tráfico de armas, de pessoas e seus órgãos, pela falsificação, pelo contrabando, pela extorsão e pela agiotagem, além de sequestro, pirataria e agressões ao meio ambiente (desmatamento ilegal, despejo de lixo tóxico etc.). O argumento sobre a relação drogas/crime, como discutido acima, não passa de uma antiga campanha de legalização das drogas, defendida insistentemente pelo lobby pró-drogas (note-se que os partidários dessa ideia não ampliariam o conceito para as armas, cujo controle – segundo eles – deveria ser realizado amplamente: literalmente, não às armas, sim às drogas). Até agora a campanha pela legalização das drogas vem, felizmente, sofrendo oposição por parte da maior parte da sociedade. As políticas de enfrentamento ao crime devem, sim, mudar. Não basta mais dizer não às drogas. Temos que afirmar com a mesma veemência: não ao crime. Não há alternativa senão a melhoria tanto da segurança, quanto da saúde. O fim da restrição às drogas é um erro épico. E igualmente catastrófica é a atual negligência diante da ameaça à segurança representada pelo crime organizado.
Até agora a campanha pela legalização das drogas vem, felizmente, sofrendo oposição por parte da maior parte da sociedade.
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A papoula é uma planta que dá flores de pétalas vermelhas, ou brancas, originária da Ásia Menor. O ópio contém alcaloides como a morfina, codeína, papaverina.
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As Guerras do Ópio,
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s duas únicas guerras – bem entendido, entre nações, fora as guerras nas ruas promovidas pelo tráfico e sua repressão – provocadas por drogas giraram em torno do ópio, e foram do Ocidente contra a China, em meados do século 19, para obrigar o governo chinês a aceitar a entrada legal dessa droga, extraída da papoula.. Essas guerras ocorreram entre 1839 e 1842, quando a Grã-Bretanha atacou a China, e entre 1856 e 1860, quando tropas britânicas foram ajudadas por tropas francesas ao atacarem de novo o território chinês. O ópio foi assim um presente de grego do Ocidente para a China. Se a memória desses acontecimentos está um tanto apagada entre os ocidentais, ela está bem viva entre os chineses, que não esquecem as humilhações que seu país passou e que juram que nunca mais vai passar.
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Ópio é uma palavra grega que significa "suquinho". Trata-se de uma substância marrom amarelada, bastante amarga; é o suco desidratado da vagem da papoula, semelhante à vagem das ervilhas, suco leitoso extraído quando a vagem da papoula ainda está verde, logo antes de amadurecer. A papoula é uma planta que dá flores de pétalas vermelhas, ou brancas, originária da Ásia Menor. O ópio contém alcalóides como a morfina, codeína, papaverina, narcotina, narceína e noscapina, e constitui uma droga que logo estabelece dependência. A morfina e a codeína agem sobre o sistema nervoso, com os mesmos efeitos das endorfinas naturais do organismo, hormônios que reduzem a dor e geram sensações e emoções prazerosas, como sonhos, mas a morfina e a codeína intensifi-
Fotos: Reprodução
O comércio britânico com a China era altamente deficitário, por causa da grande importação de chá, que tinha de ser paga em dinheiro vivo, especificamente com prata, porque os chineses praticamente não importavam produtos ocidentais.
sua história, livros e filme cam artificialmente esses efeitos naturais. Medicamente, a morfina e a codeína são usadas como potentes analgésicos, mas são narcóticas e facilmente geram dependência. Já a papaverina e a noscapina aliviam os espasmos dos músculos lisos e não são narcóticas, nem geram dependência. O dependente de ópio, droga que é comida ou fumada, sofre deterioração física e mental e pode morrer prematuramente de crise respiratória por overdose. As indicações são de que a deterioração física e mental não é causada organicamente de modo direto pela droga, que somente parece afetar em algum grau o sistema imunológico. Ocorre que o dependente, além do efeito analgésico, sofre a narcose, um estado de estupor. Isso o incapacita para trabalhar e também para se alimentar direito e para
se cuidar higienicamente, o que gera a deterioração física e mental. Sem contar a deterioração moral originada pelos expedientes escusos, e até violentos, para obter a droga. Por refino do ópio, se extrai a morfina, droga mais potente; por refino da morfina, se extrai a heroína, droga de efeitos muito mais potentes. A tintura de ópio (isto é, mistura com álcool) se chama láudano; o elixir paregórico é uma mistura de ópio, álcool e cânfora. Até o século 19 o láudano era usado como remédio (sonífero e analgésico), mas foi abandonado por causar dependência; célebres dependentes de láudano foram o escritor americano Edgar Allan Poe e o músico russo Mussorgski. O elixir paregórico ainda é usado contra diarréia, mas não mais como antitussígeno. O ópio já era usado pelos sumérios 4 mil
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O ópio já era usado pelos sumérios 4 mil anos antes de Cristo e logo em seguida se espalhou pela Grécia e Europa.
anos antes de Cristo e logo em seguida se espalhou pela Grécia e Europa, mas só com a expansão do islamismo é que foi introduzido na Índia e, posteriormente, na China. Entre os chineses, no entanto, até a passagem do século 18 para o século 19, o ópio era pouco difundido, até que passou a ser maciçamente introduzido na China, no começo do século 19 por comerciantes britânicos estabelecidos na Índia recém colonizada pela Grã-Bretanha. Ocorre que o comércio britânico com a China era altamente deficitário, por causa da grande importação de chá, que tinha de ser paga em dinheiro vivo, especificamente com prata, porque os chineses praticamente não importavam produtos ocidentais. Os comerciantes britânicos passaram a difundir o ópio na China, para pagar com cargas de ópio as cargas de chá e assim não ter de pagar o chá com dinheiro vivo. Cumpre notar que, ciente dos malefícios provocados pelo ópio, o governo chinês havia proibido seu consumo e seu comércio dentro de seu território. Na Grã-Bretanha, no entanto, na época o consumo de ópio era livre e legal, como mostra o famoso li-
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vro "Confissões de um Comedor Inglês de Ópio", publicado a partir de 1821 pelo escritor inglês Thomas DeQuincey, em que ele narra sua própria experiência de dependente do ópio e sonhos fantásticos e hipercoloridos que costumava ter com o uso do narcótico. E como mostra também a famosa frase do teórico comunista alemão Karl Marx, segundo a qual a religião é "o ópio do povo", referência a que o ópio em si era de livre consumo na Londres em que Marx escrevia, só que era muito caro, reservado aos ricos. Em 1839, irritado com a desenvoltura dos contrabandistas britânicos de ópio, o governo chinês apreendeu um grande carregamento da droga no porto de Guangzhou (em português, Cantão). A Marinha Real britânica enviou então, naquele mesmo ano, canhoneiras para bombardear grande número de cidades litorâneas da China. As forças chinesas não puderam resistir aos armamentos muito mais modernos dos britânicos e capitularam em 1842, quando foi firmado entre as duas partes o Tratado de Nanquim; no ano seguinte Grã-Bretanha e China assinaram um tratado suplementar. Os tratados eram leoninos. Por eles, a China abria ao comércio do ópio e de quaisquer outros produtos britânicos os seus cinco
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principais portos, entre eles Guangzhou e Shanghai (Xangai); esses portos eram declarados "zonas de residência" para cidadãos britânicos, que ficariam sob a jurisdição das leis britânicas e seriam isentados de cumprir as leis chinesas. Além disso, a China cedia Hong Kong à Grã-Bretanha (assim, ironicamente, as instituições de hoje em Hong Kong, mais democráticas do que no restante da China, são uma herança... do ópio!) Com o tempo, o governo chinês foi abrindo esses portos e essas "zonas de residência" a nacionais de outros países ocidentais. De qualquer modo, o governo chinês só havia legalizado a importação de ópio nesses seus cinco principais portos, e não em todo o país. Assim, em 1856 autoridades chinesas apreenderam o carregamento de ópio de um navio britânico, o "Arrow", ao largo de Guangzhou, mas fora de seu porto. A GrãBretanha alegou ilegalidade nessa apreensão e, com o auxílio de tropas francesas, atacou de novo a China. Novamente derrotado, o governo chinês assinou em 1858 o Tratado de Tianjin, que abria outros onze portos para a Grã-Bretanha, França, Estados Unidos e Rússia, estabelecendo "zonas de residência" para os nacionais desses países na própria Beijing (Pequim), liberando a ação de missionários cristãos em território chinês – e legalizando o comércio de ópio em todo o país. Entretanto, em 1859 o governo imperial chinês criou obstáculos para as legações estrangeiras em Pequim, o que levou tropas britânicas e francesas não só a ocuparem Pequim, mas também a destruírem o Palácio Imperial de Verão. A partir de 1860, o governo chinês voltou a respeitar os direitos especiais de cidadãos britânicos, franceses, americanos e russos, só abolidos em 1917 para estes últimos, por decisão das autoridades soviéticas, e em 1949, com a vitória dos comunistas na China, para os demais, por decisão do novo governo chinês. Na China, esses acordos ficaram conhecidos como os Tratados Desiguais, e provocaram revoltas entre o povo chinês, mais exatamente a Rebelião dos Taiping (1850-1864), a Rebelião dos Boxers (1899-1901) e a queda da dinastia manchu Qing, com a proclamação da República em 1912. Essas revoltas foram o prelúdio da Revolução Comunista e assim o ópio está na raiz da modernização da China, hoje o país que mais cresce no mundo. O ópio continuou sendo um problema grave de saúde pública na China até a tomada do poder pelos comunistas, embora tivesse sido de novo declarado ilegal com a proclamação da República. A gravidade do problema está registrada no romance "A Condição Humana", do francês André Malraux, em que a ação se passa na China nos anos 1920-1930. Não existem nas livrarias de São Paulo livros em português sobre as Guerras do Ópio, mas podem ser importados livros em inglês, como "Britain’s China Policy and the Opium Crisis", por Glenn Melacon (282 reais); "The Chinese Opium Wars", de
Em 1856 autoridades chinesas apreenderam o carregamento de ópio de um navio britânico, o "Arrow", ao largo de Guangzhou, mas fora de seu porto. Jack Beeching (58,52 reais); "The India-China Opium Trade in the Nineteenth", Hunt Janin (123,05 reais); "The Inner Opium War", James M. Polachek (88,67 reais). Um filme famoso sobre as Guerras do Ópio foi o recente épico chinês "A Guerra do ópio", de 1997, dirigido pelo veterano Xie Jin. Ao custo de 15 milhões de dólares, largamente bancados pelo governo comunista, foi o filme de maior orçamento da história do cinema chinês, lançado para comemorar a devolução de Hong Kong à China, no mesmo ano. Há um outro filme recente com esse nome, americano, de 2008, mas se refere ao Afeganistão contemporâneo.
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Combate Ă s drogas no
ALFER
ambiente de trabalho Romina Miranda Cerchiaro
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maior parte do dia estamos lá. Nossos amigos, colegas, sonhos e aspirações fazem parte deste ambiente. E, como em qualquer outro lugar, lá existem pessoas que têm problemas com o álcool e com outras drogas. De resultados positivos para empregado e empregador, os programas de atenção às drogas já fazem parte das ações das empresas brasileiras. Dr. Laco, com mais de 20 anos de experiência no assunto, fala sobre drogas no ambiente de trabalho. Dr. Luiz Alberto Chaves de Oliveira é presidente do COMUDA – Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool de São Paulo e coordenador da CDR – Coordenadoria de Atenção às Drogas da cidade de São Paulo, primeiro órgão executivo no Estado de São Paulo para cuidar do assunto das drogas de maneira integrada e direta, recentemente criado pelo prefeito Gilberto Kassab.
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ormado em medicina em 1972, com especialização em pediatria, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, o Dr. Laco, como é conhecido e carinhosamente chamado, tem uma vasta experiência na área de dependência química. Em 1985 começou um trabalho voltado à questão das drogas e seus usuários quando era diretor do IMESC – Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo. Neste momento, iniciou-se um novo trabalho e uma nova especialização. Ocupou também a Chefia do Gabinete da Superintendência do IAMSPE – Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo. Foi Assessor Especial do Secretário de Estado da Saúde, inclusive na área de alcoolismo e outras drogas e Diretor Técnico do Departamento do Hospital Psiquiátrico de Água Funda, onde estimulou o desenvolvimento da atenção aos dependentes de álcool e outras drogas. Foi responsável pela abertura do primeiro hospital-dia, específico para dependentes no âmbito do serviço público, em nível nacional. Dr. Laco também foi convidado pelo Secretário Walter Feldman a acompanhá-lo na Prefeitura de São Paulo, na gestão de José Serra, para trabalhos diversos nas subprefeituras, visando melhorar a qualidade de vida dos funcionários da prefeitura e da população. Na CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos implantou e coordenou o Programa de Qualidade de Vida, em 1995, com ênfase inicial no Programa de Prevenção e Tratamento ao Abuso de Dependência de Álcool e outras Drogas, continuidade do programa que havia iniciado na FEPASA em 1988. E, sobre o tema, Dr. Laco escreveu este ano o livro "Drogas no ambiente de trabalho" que foi lançado pela Prefeitura da Cidade de São Paulo, por meio do COMUDA, CDR e Secretaria de Participação e Parceria. Em entrevista à revista Anônimos, que reproduzimos a seguir, Dr. Laco fala sobre o tema de seu livro, sobre a experiência da CPTM e revela, sobretudo, o lado positivo deste tipo de programa organizacional: a possibilidade de ajudar o empregado a sair do mundo das drogas. Como surgiu a ideia de escrever o livro? Quando era jovem, com oito ou nove anos de idade, alguém me disse que a pessoa, para se realizar, tinha de fazer três coisas: ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro. Eu levei isso muito a sério. Eu já plantei dezenas, centenas de árvores, indiretamente milhares. Tenho três filhos, o Luiz Renato, a Ana Luiza e o Lucas. E já escrevi muito para revistas, programas de televisão, de rádio, fui o executor de um filme – "O alcoolismo - como sair dessa". Participei do roteiro, orientei a gravação, fui o artista, mas ainda ficava aquela ideia dos oito ou nove anos de idade sobre deixar alguma coisa no papel, escrever um livro. Tudo aquilo era no sentido figurado, a gente tem de deixar a nossa marca na vida, mas a ideia de ter um livro me seduzia. Eu escrevi um livro aqui na coordenadoria, com o José Florentino, intitulado "Drogas - onde obter ajuda e orientação". Ele é uma coletânea de endereços. Mas eu ti-
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nha um material mais ou menos pronto, feito para as aulas que ministro em MBA sobre qualidade de vida. Havia então, aqui no COMUDA, a oportunidade de lançar o livro, pois era interessante para o nosso trabalho de políticas públicas, já que o assunto é extremamente importante. Reuni o material pronto, os meus artigos já publicados, os textos sobre o processo da implantação do programa dentro da CPTM e atualizei tudo. Assim surgiu o livro "Drogas no ambiente de trabalho". Quais os assuntos abordados no livro? No livro mostramos como implantar o programa em uma empresa, apontamos as dificuldades, sugerimos caminhos, etapas a seguir e discutimos a questão polêmica dos testes de drogas. E como funciona a questão dos testes? Isto hoje é feito na CPTM com aplausos dos próprios sindicatos. Por que? Porque houve todo um cuidado de se implantar o programa antes de se fazer os testes. Eles não são a maneira pela qual se implanta o programa, mas uma ferramenta a mais que se coloca dentro de um programa já em andamento, um programa já respeitado, já entendido pelos empregados como uma forma de ajuda, e não de punição. Desta forma, tudo o que você faz dentro do programa é bem vindo. Normalmente, os testes são feitos de maneira aleatória, por sorteio e, às vezes, por indicação de chefia, que comunica que tem empregado com problemas. É uma etapa diagnóstica para saber se isso pode estar envolvido com o problema daquele empregado naquele momento. Há total confidencialidade por parte da equipe médica. Se o exame der positivo, o empregado é chamado para um exame rotineiro e, nessa hora, o médico conversa com ele, dizendo que está ali para ajudá-lo. Este momento pode resultar num pedido de ajuda do próprio empregado, que é então encaminhado para um programa de orientação e tratamento. Para isso, é necessário um treinamento sério desses profissionais. Este trabalho não é uma aventura e deve ser muito bem feito porque, muitas vezes, é um momento único. Se houver uma má abordagem, o indivíduo pode rejeitar a ajuda e talvez nunca mais possa ter outra oportunidade de recuperação. Por que é tão importante a atenção às drogas no ambiente de trabalho? Mais de 70% dos usuários de drogas estão empregados, diferentemente do que muita gente julga, imaginando que estão nas sarjetas ou na cadeia. Eles estão trabalhando e a duras penas mantendo horários e compromissos. O ambiente de trabalho é onde passamos pelo menos um terço de nossa vida produtiva adulta e, quando a gente gosta do que faz, é quase o dia inteiro. É um ambiente favorável para trabalhar a questão, em primeiro lugar porque a gente fica muito tempo nesse ambiente, em segundo porque temos vínculos com amigos, companheiros, e em terceiro porque através dele o empregador e os profissionais de gestão de Recursos Humanos têm con-
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pação do departamento de tato direto com a família. O recursos humanos, dos psiprograma não tem vantagens cólogos, dos médicos, das só para o trabalhador, mas paentidades de classes. Na pera a própria empresa. Prevequena empresa, três pessoas nir custa sete vezes menos do já podem formar o comitê. que tratar. Custa muito meDepois disso, é necessário nos para a empresa tratar o iniciar uma ampla divulgaempregado do que substituíção, mostrando que o prolo. Há empresas no mundo ingrama é de promoção de saúteiro que fazem esse prograde e não de demissão comma e ele oferece uma vantapulsória. É para ajudar e não gem de três a quatro vezes o para punir. O teste não deve que é investido nele. Na ser colocado num primeiro CPTM , por exemplo, um mamomento, porque vai mexer quinista demora seis meses com muitos mitos e preconpara ser treinado, depois disceitos que cercam a questão. so ele fica mais seis meses Ele é uma ferramenta imporacompanhado de um maquitante, mas que deve ser colonista mais experiente. Em um cada no momento certo. ano de treinamento, a empresa investe dinheiro, atenção Após a detecção do problema, para formar um profissional. Matéria publicada na edição nº 8 como a empresa deve agir? Vamos imaginar que seis meda revista Anônimos O programa é, acima de tuses depois, este profissional www.revistaanonimos.com.br do, de prevenção e neste tracomece a apresentar problebalho de promoção de saúde mas com drogas. Você vai são detectados os casos promandá-lo embora e perder toblemáticos, com abuso ou dependência. A empresa precido o investimento? Por isso, é melhor investir primeiro sa ter um sistema de atenção para esses casos. Dentro da em prevenção, promoção de saúde, qualidade de vida. empresa deve ter a orientação, o encaminhamento e acomE quais são os resultados positivos panhamento dos casos e , se possível, grupos de mútua ajucolhidos com este tipo de programa? da que não precisam ser AA (Alcoólicos Anônimos) ou NA Na CPTM, por exemplo, já tratamos mais de 400 pa(Narcóticos Anônimos), mas devem ser conduzidos por cientes da empresa e com índice de sucesso de 72%. Na um profissional da empresa que vá beber sua água na fonte empresa temos a vantagem de trabalhar com a família, dessas irmandades. A empresa deve ter, neste caso fora decom os amigos, com a chefia. Todas as relações sociais la, um local adequado para encaminhamento do paciente, mais significativas são abordadas de forma conjunta. ou para tratamento ambulatorial, para internações ou ainAlém dessas vantagens econômicas, sociais e organizada para psicoterapia familiar. cionais, há a melhora do relacionamento no ambiente de E os custos deste programa? Como funcionam? trabalho, a diminuição dos acidentes e a empresa se beO programa como um todo é custeado pela empresa. Já neficia também mostrando uma ação de responsabilios custos dos tratamentos que ocorrem fora dela variam dade social. Algumas empresas são, inclusive, obrigaentre as diversas políticas. Mesmo custeando o tratamendas a fazer isso. to inteiro, ainda assim a empresa ganha. Nós recomendaQue tipos de empresas têm de adotar mos que o primeiro tratamento seja pago pela empresa. programa dessa natureza, de forma obrigatória? Havendo uma recaída, que é uma coisa que pode perfeiPor exemplo, a Embraer. No transporte aéreo não há tamente acontecer nas melhores circunstâncias de tratacomo correr o risco de um parafuso ser colocado de forma mento, um segundo (tratamento) seria custeado meio a errada. As empresas de transportes, de uma forma geral, meio, parte pela empresa, parte pelo empregado. E, um também devem adotá-lo, pois os motoristas não estão joterceiro tratamento teria 1/3 financiado pela empresa ou gando somente com as próprias vidas. Um usuário pode totalmente pelo empregado, porque ele tem de sentir que matar um monte de gente e produzir muitas perdas. é o responsável pela sua saúde. Caso contrário, a empresa se torna uma facilitadora. E como a empresa pode iniciar a implantação do programa? Mas, cada empresa tem uma política diferente, alguns Em primeiro lugar, para o programa emplacar, é premandam o empregado embora na recaída. Mas a minha ciso convencer a alta direção da empresa. Nas grandes postura é dar mais de uma chance, porque a gente sabe empresas, um amplo comitê deve contar com a particique a recaída faz parte da doença.
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Os descaminhos da Reprodução
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imagem do Brasil no exterior nunca esteve tão boa, mas isso se deve muito mais ao carisma do presidente Lula do que a uma estratégia clara de sua política externa. Não há dúvidas de que a diplomacia brasileira poderia ser mais atuante, principalmente em relação aos países vizinhos, com o País assumindo um papel de liderança na região, mas isso está longe de ocorrer. A atual política externa brasileira e suas perspectivas foram debatidas em profundidade no fim de agosto, em São Paulo, pelos embaixadores Rubens Ricupero, Luiz Felipe Lampreia, Sergio Amaral, Marcos Azambuja e Sebastião do Rego Barros, além do jornalista Antônio Carlos Pereira, editor do jornal O Estado de São Paulo. O evento foi realizado pela Associação Comercial de São Paulo, Fundação Liberdade e Cidadania, Instituto Teotônio Vilela e Fundação Astrojildo Pereira. O tema ganha especial relevância pelos recentes acontecimentos em Honduras, quando o presidente deposto Manuel Zelaya pediu abrigo na embaixada brasileira, criando um conflito diplomático entre os dois países. Veja a seguir os principais trechos do evento.
política externa brasileira Divulgação
Divulgação
Acima, reunião do Conselho de Segurança da ONU, órgão em que o Brasil almeja uma cadeira permanente; ao lado, o presidente Lula com o secretário-geral da ONU, o sul-coreano Ban Ki-Moon. Na página ao lado, manifestação da popularidade de Lula no encontro do G20 em abril.
Paulo Pampolin/Hype
Rubens Ricupero Embaixador e ex-ministro da Fazenda
O relativo consenso citado por Tancredo já não existe mais. Isso não é matéria de opinião, mas constatação (...)
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omo nos encontramos a poucos meses de completar 25 anos da Nova República, resolvi tomar como ponto de partida um discurso do presidente Tancredo Neves em fins de 1984, no qual ele afirmava: "Se há um ponto na política brasileira que encontrou um consenso de todas as correntes de pensamento, este ponto é realmente a política externa levada a efeito pelo Itamaraty." O relativo consenso citado por Tancredo já não existe mais. Isso não é matéria de opinião, mas constatação factual, como se pode ver das dificuldades de se aprovar no Congresso o ingresso da Venezuela no Mercosul, os editoriais em jornais e revistas, as acusações de fraqueza e concessões excessivas diante de ações de alguns países e outros episódios. Convém verificar quais as alterações de conteúdo na política externa que explicariam essa mudança. Embora a diplomacia do presidente Lula desperte considerável controvérsia, não chega a ser uma mudança radical de paradigma, como ocorreu quando a política externa independente de Jânio Quadros, Santiago Dantas e Araújo Castro substituiu de forma duradoura o paradigma anterior de Rio Branco, Nabuco e Oswaldo Aranha. Retomado e consolidado no período do presidente Geisel e do ministro Azeredo da Silveira, o novo paradigma foi mantido pela Nova República, não se registrando desde então nenhuma ruptura significativa. Contra este fundo de quadro, a política externa do governo Lula vem se desdobrando em três eixos principais: primeiro, a conquista de um posto permanente no Conselho de Segurança da ONU; segundo, a conclusão da Rodada de Doha, da OMC, com ganhos para a agricultura; e terceiro, a construção na América do Sul de um espaço de preponderância brasileira. (...) O balanço provisório dos resultados mostra que, dependendo do tema, os avanços variam, da mesma forma que varia a distância entre as pretensões brasileiras e a realidade. A frustração dos objetivos não atingidos plenamente em nenhum caso, não se deve necessariamente a culpas ou deficiências de nossa parte. Escrevi uma vez que nos dois primeiros eixos o governo brasileiro quer, mas não pode; no terceiro pode,
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mas não quer. Trocando em miúdos: na OMC e na ONU, ainda que o Brasil faça tudo certo, sua capacidade de influenciar não é suficiente para resolver o impasse da maneira que desejamos. Por mais que nos esforcemos, não se logrou até agora produzir consenso para reformar o Conselho de Segurança ou para concluir a Rodada, quanto mais para fazê-lo de acordo com os nossos interesses. Quer dizer, é mais um problema de falta de poder que de falta de uma política. Não quer isso dizer que não se haja feito nada, ao contrário, em ambos os fóruns a atuação em anos recentes nos posicionou de uma forma favorável a tirar bom partido de eventual retorno de condições propícias. Em termos do Conselho de Segurança, a política do atual governo claramente se destaca da anterior, cuja tendência era de não valorizar tanto a questão ou de conceder eventual candidatura brasileira numa espécie de condomínio com a Argentina, a fim de não prejudicar o relacionamento com o vizinho. É inegável que o Brasil conquistou este momento uma situação diferenciada em relação a outros aspirantes latinoamericanos, como o México e a Argentina, distanciando-se como favorito a ocupar uma cadeira, caso esta seja destinada à América Latina. Reflexo, em parte, do próprio crescimento econômico e da estabilidade brasileira, essa percepção também deve ser creditada ao ativismo da atual política externa. No caso da OMC, eu creio que houve muito mais continuidade do que ruptura e mesmo a diferença de ênfase é por causa da fase nobre da Ro-
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Fotos: reprodução
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dada. Na América do Sul o Brasil não pode tudo, mas pode alto. Em tese, a diplomacia brasileira teria tido condições de agir mais, por exemplo, entre o Uruguai e a Argentina, para ajudar, como facilitador, a superar o conflito em torno das chamadas papeleiras; ou poderia ter atuado de forma diferente no episódio feito por Kirchner com a Venezuela para aderir ao Mercosul. Na ocasião, sem antagonizar a Venezuela, nós poderíamos ter ponderado que adesões a acordos complexos como uniões aduaneiras demandam um longo processo prévio de negociação técnica. Poderia ter feito, mas preferiu não fazer. A questão não seria tanto de falta de poder, mas de falta da política mais adequada. Essa é a área do mundo em que a influência sempre se fez sentir de maneira mais direta. Não é à toa que a maioria das divergências sobre a política exterior se refira a assuntos sulamericanos. Não custaria esforço enumerar nesse domínio uma série de políticas e decisões discutíveis, que forme em conjunto um padrão de erros de concepção ou de execução. Eles vão da reação equivocada e insatisfatória, como a violação pela Bolívia de tratados e contratos no caso do gás, até a imprudente ingerência nas eleições bolivianas e paraguaias em favor de candidatos hostis a interesses brasileiros. Partindo do esforço de consolidação do Mercosul, a diplomacia do governo atual procurou edificar no espaço político e econômico, utilizando não o conceito de América Latina e sim o de um projeto que abarcasse toda a América do Sul, deixando de fora a proposta norte-americana da Alca, o México, os centroamericanos e caribenhos, já integrados na área econômica da América do Norte. Nesse sentido, ela não é diferente em substância da IRSA, do governo Fernando Henrique, de escopo mais modesto e progressivo, enfocado na integração física, mas talvez por isso mesmo mais exequível. (...) Os dirigentes atuais, a começar pelo próprio presidente, não souberam resistir à tentação de se atribuírem o crédito total pelos eventuais acertos. Buscaram fazer crer que era novo e sem precedente tudo o que empreendiam. De maneira geral, eles tiveram a possibilidade de admitir e valorizar nos assuntos que apresentaram a parte que herdaram de governos anteriores. Mas preferiram se apropriar de todo o mérito em nome do governo atual e de seu partido. Naturalmente, é um opção sem surpresa, mas seguramente não será a melhor em termos de construção de consenso. Há nesta matéria uma
Nomes ilustres da política externa brasileira: no alto, da esquerda para a direita, o ex-presidente Jânio Quadros e os embaixadores Santiago Dantas e Araújo Castro; acima, o Barão de Rio Branco, Joaquim Nabuco e Osvaldo Aranha.
espécie de trade-off – não é possível monopolizar a glória para um governo e seu partido e esperar ao mesmo tempo que o universo dos injustamente excluídos se sintam partes integrantes dessa política. São casos indiscutíveis da fase atual da política brasileira o abuso do protagonismo e o excesso da glorificação personalista do presidente. Neste ponto, pode-se dizer que a diplomacia brasileira sofre com os defeitos de suas qualidades, isto é, tudo repousa cada vez mais na biografia pessoal e nas qualidades de desempenho do líder supremo. Nisso aliás, a política externa não constitui exceção no panorama geral de um governo cujos ministros são quase anônimos, da maioria deles se ignora até o nome, quanto mais o que fazem ou deixam de fazer. Nenhum desses defeitos costuma facilitar o consenso interno ou externo, basta pensar no exemplo do presidente Truman, que preferiu dar ao plano famoso o nome de seu Secretário de Estado Marshall e não o seu próprio; ou o caso do Rio Branco, que depois de ganhar a questão de Palmas contra a Argentina – convocado a vir ao Brasil, queriam que ele fosse candidato a presidência, ele mandou um telegrama para não ferir as suscetibilidades argentinas, regressou à Europa, escrevendo no seu diário esta fase de Hoffmann, que aparentemente hoje em dia se ignora: "A inveja é a sombra da glória". (...) O discurso de Tancredo deixava claro, não sendo uma política externa qualquer a que me-
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receria consenso, mas apenas a levada a efeito pelo Itamaraty. Não se tratava da política dos militares no poder, de um determinado governo ou facção, mas uma política de Estado, acima das disputas internas e a serviço da nação. Convém recordar que a etimologia da palavra partido vem de fragmentado, rompido, quebrado, parte de um todo que é a nação. Quem faz diplomacia de partido mostra indiferença pelo esforço de converter tais ações em causas autenticamente nacionais. É incompatível com esse objetivo a existência de uma diplomacia paralela do Partido dos Trabalhadores, junto a governos ou movimentos ideologicamente afins, exercida por contatos fora dos canais diplomáticos e emissários como assessores de política externa da presidência, o qual dá impressão de predominar em certas áreas, enquanto o chanceler ficaria com algumas outras. Tal divisão de esfera de influência converteu-se em complicações como nós sabemos. Não há evidências que essa afinidade ou simpatia ideológica tenha demonstrado eficácia ou utilidade perceptível para encaminhar soluções satisfatórias quando surgem questões espinhosas como as que opuseram o Brasil com a Bolívia, ao Paraguai, ao Equador. A diplomacia paralela do PT parece servir mais para contaminar desnecessariamente a política exterior com suspeitas ideológicas do que para qualquer propósito prático. (...)
Há neste governo uma diplomacia paralela do Partido dos Trabalhadores.
fabio Rodriguez Pozzebom/ABr
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Luiz Felipe Lampreia Embaixador e ex-ministro das Relações Exteriores
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tema que me c a b e neste seminário é sobre as questões econômicas e comerciais, as negociações que o Brasil empreende na OMC e n o s a c o rd o s re g i onais. Hoje é um dia particularmente interessante para falar de OMC, porque houve uma decisão, preliminar ainda, sobre o montante da retaliação que o Brasil será autorizado a praticar em relação aos EUA, embora eles tenham perdido em primeira instância a avaliação de que os subsídios que se fornecem aos produtores de algodão, particularmente no sul dos EUA, não é compatível com as regras da OMC e praticamente consideraram que era impossível politicamente pela sensibilidade do tema mexer nisso, de maneira que conformaram-se com a ideia de sofrer um punição, conforme evidentemente os acordos que a OMC autorizam plenamente. Eu gostaria de fazer uma reflexão sobre este assunto, porque ele traz à baila duas ou três coisas importantes. Em primeiro lugar, um fato inédito, que é um país como o Brasil, que em termos comerciais é uma potência média, já que mal passa de 1% do total do comércio mundial, poder disputar com um país como os EUA, que são a maior economia do mundo e maior potência comercial, com mais de 20% de participação, e ganhar. E assim sendo, ser autorizado a retaliar um país mais forte. É uma situação inédita, que seria impossível há tempos atrás. Tradicionalmente, desde a década de 50, os EUA tinham o temível Trade Act, a sua Seção 301, que depois foi acrescentada, que autorizava o executivo a, unilateralmente, impor condições contra países que estivem praticando atos que, a juízo da administração americanas, fossem contrários aos interesses dos EUA. O próprio Brasil foi vítima de um processo como esse no ano de 1988, quando o principal negociador americano chegou à conclusão de que nós violávamos as leis. Isso sem qualquer possibilidade de contestação – havia uma possibilidade teórica e o Itamaraty tentou fazê-la, mas era um combate absolutamente desigual. E o GATT (Acordo Geral
Evelson de Freitas/AE
sobre Tarifas e Comércio) , que era o organismo internacional, que mal ou bem detinha o poder de fiscalização das regras do comércio internacional, era completamente prejudicado pelo fato de o seu mecanismo de solução de controvérsia podia ser interrompido por uma potência que não estivesse de acordo com o rumo que estivesse tomando as investigações. Os EUA usaram várias vezes essa prerrogativa e a única salvação era a famosa "queixa ao bispo". A OMC representou – e o (Rubens) Ricupero e eu tivemos o privilégio de ser os negociadores-chefes do Brasil na Rodada do Uruguai – uma virada de paradigma, uma modificação fundamental, porque criou um sistema que é praticamente judiciário de discussão das querelas e das controvérsias em comércio, e um sistema de atribuição de culpas e de poderes para recuperar direitos feridos. Esse sistema tem permitido ao Brasil – que embora tenha crescido o seu volume de comércio, mas ainda é um país que possui a fatia de 1% ou 1,2% do comércio mundial – acionar por diversas vezes e contra as maiores potências do mundo o sistema de solução de controvérsias. Isso foi iniciado durante o governo Fernando Henrique e continuado no atual governo, fazendo com que o Brasil disputasse o regime de subsídio a exportação de açúcar na União Europeia – um verdadeiro escândalo internacional, pois é a maneira de subsidiar a exportação de um produto que não seria produzido se não tivesse, antes de mais nada, subsídio para ser produzido dentro da própria União Europeia, através da beterraba, ou o subsídio para os clientes europeus, as ex-colônias europeias – e ganhou. Acionou o EUA na questão do algodão e ganhou, e vários outros casos também, o Brasil hoje é o segundo maior utilizador depois dos EUA. A OMC significa uma conquista extraordinária, que é esse direito democrático, internacional, de justiça entre nações. Mas, por outro lado, a OMC tem sofrido desgastes sucessivos, desde 1994, quando foram assinados da Rodada do Uruguai em Marrakesh, a OMC iniciou pouco depois, em 1996, a ideia de aprofundar os seus acordos através da chamada Rodada do Milênio, que depois em 2001 transformou-se na Rodada Doha – nome da cidade onde foi realizada uma reunião ministerial, pouco depois dos ataques às Torres Gêmeas, então operando no conceito de que a pobreza e o subdesenvolvimento eram fermento do terrorismo, se resolveu lançar
Paulo Libert/AE
uma rodada para o desenvolvimento. Houve fracassos sucessivos. O mais recente foi em julho de 2008 e muita gente começa a questionar se seria possível completar uma rodada nesses moldes. A rodada em si já é uma proposta muito ambiciosa, porque ela quer dizer que são negociados simultaneamente muitos assuntos, muitos temas, e todos eles estão embrulhados em um único compromissos – nada está acordado enquanto tudo não estiver acordado, tudo tem que fazer parte de um acordo único, debaixo de um único envelope. Esse regime de rodadas, de nossa parte, tem evidentes prioridades de buscar negociação agrícola. Por que isso? Porque a agricul-
A OMC significa uma conquista extraordinária, que é esse direito democrático, internacional, de justiça entre nações. Mas, ela tem sofrido desgastes desde 1994.
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Paulo Pampolin/Hype
tura é a prima pobre do sistema. A agricultura, em todos os países do primeiro mundo, sem exceção, é fortemente subsidiada ainda que apenas uma parcela muito pequena da força de trabalho e do eleitorado viva da agricultura, não mais do que 2% ou 3% de todos os países ricos do mundo. E, no entanto, todos eles praticam, ou o regime de autoprotecionismo, de barreiras, de altas tarifas, cotas e todas as restrições de acesso, ou então de subsídios fortes aos seus produtores nacionais, como é o caso do algodão dos EUA. (...) Por outro lado, os acordos regionais de comércio também não estão mais tão em voga como já estiveram. Um certo momento, países importantes como o México, como a Coreia, se lançaram numa aposta quase que frenética de fazer acordos comerciais, regional, bilaterais, para com isso abrir caminho para as suas exportações. Mas, em primeiro lugar, o próprio México, depois de fazer 30 ou 40 acordos deste gênero continua tendo uma dependência de mais de 80% dos EUA. Em segundo lugar, porque houve uma perda de apetite: eu não tenho dúvidas de que os EUA, quando a Alca foi declarada morta – em grande parte por causa da ação do governo brasileiro, que considerava que a Alca seria uma forma de anexação, a meu ver um raciocínio um pouco simplista, mas evidentemente com algum fundamento –, eles decidiram fazer acordos bilaterais com todo mundo, isolando o Mercosul, que ficou olhando do lado de fora, sem as preferências, nem dos EUA, nem desses países com os quais eles estão fazendo acordos. (...) A conclusão é que, pelo menos no momento, nenhum desses grande esquemas, grandes negociações, tem muito futuro. Pode ser que o quadro mude, espero que haja uma grande retomada da atividade econômica pós-crise, mas no momento o comércio internacional recuou nos últimos 12 meses em torno de 10% a 14%, conforme o estudo, da OMC ou da OCDE. Não há clima político nenhum para fazer grandes rasgos de liberalismo em matéria comercial. Com isso, eu creio que não é um momento muito heróico nessa área. É momento de procurar consolidar a OMC, defender o organismo quanto for possível, continua sendo a nossa melhor aposta, mas não devemos achar que vão surgir fórmulas salvadores que vão, de repente, abrir as portas do paraíso para as exportações do Brasil.
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Sérgio Amaral Embaixador e ex-ministro da Indústria, Comércio e Desenvolvimento
Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, em encontro do Mercosul.
Eduardo Martins/Ag. A Tarde/AE
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odos vocês sabem que o Brasil foi descoberto em 1500, mas talvez não saibam que o Brasil só descobriu que o mundo existia faz muito pouco tempo, entre 10 e 15 anos. Hoje, vejo esta análise mudando substancialmente pelo interesse crescente das relações internacionais nas universidades, na imprensa e nos meios políticos. Foi-se o tempo em que política externa era um privilégio quase exclusivo do Itamaraty. Em fins de julho, o Mercosul reuniu o seu conselho e o chanceler do Paraguai escolheu esse momento para brindar os presentes com um comentário surpreendente para um encontro político desse nível. Ele disse: o Mercosul se encontra em estado terminal. Essa declaração, ainda que chocante, é de certo modo compartilhado por muitos, sobretudo os empresários brasileiros cansados de ver o aumento da proteção tarifária nas suas exportações para a Argentina. Pouco depois das eleições, a Argentina surpreendeu, quando todos esperavam que o governo retirasse as medidas de proteção crescente que vinham tomando. A ministra do comércio disse que a Argentina não retiraria as licenças não-automáticas ou, uma das quais, tomaria de quatro a seis meses para ser retirada ou aprovada. E, embalado por estes bons exemplos, o Uruguai, mais recentemente, chegou a anunciar que deverá também tomar medidas de restrições a exportações brasileiras,
Kevin Lamarque/Reuters
/Reute
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Há um descompasso entre as economias argentina e brasileira. Nosso vizinho, ao invés de estimular os investimentos internos e externos, tem criado uma série de dificuldades.
Stapff Andres
certo de que contará, assim como o Paraguai, a Argentina e também a Bolívia, com a benevolência da diplomacia brasileira. Eu acho que a declaração do chanceler paraguaio é um exagero retórico, mas é inegável que, se não estamos assistindo a agonia do Mercosul, porque ele tem um fundamento político sólido e tem a sua razão de ser, estamos assistindo a uma das crises mais profundas, pois não se trata apenas das questões de comércio, nós estamos vendo uma crise institucional e de identidade, porque os seus sócios não sabem muito bem o que querem do Mercosul, e o que eles sabem são conflitantes. (...) Por que esta situação? Nós temos que analisar um pouco o relacionamento Brasil-Argentina, que é o eixo fundamental do Mercosul. A meu ver, duas questões estão nas bases dos problemas do Mercosul, das dificuldades dele avançar, assim como das dificuldades para a integração da América do Sul avançar. O primeiro é um descompasso claro entre o momento da economia argentina e o momento da economia brasileira. O Brasil vive, há cerca de 15 anos, um período de prosperidade, com estabilidade da moeda e as reformas econômicas. A Argentina, ao contrário, passou em 2001 por uma de suas crises econômicas mais profundas. O Brasil, nos últimos 20 anos implementou uma verdadeira revolução na sua agricultura. Na Argentina, os sucessivos problemas do governo com o campo levaram a uma redução da área plantada e, o que é um paradoxo, a migração de vários produtores rurais da Argentina para o Uruguai para plantarem lá, onde têm mais tranquilidade e previsibilidade para poderem produzir e exportar. O Brasil, por força das reformas que fez e das privatizações, tornou-se um centro importante de investimentos estrangeiros. A Argentina, em vez de estimular esses investimento, tem criado uma série de dificuldades, como o congelamento de preços. O Brasil promoveu uma abertura no comércio internacional e é um dos defensores do acordo de liberação do comércio de Doha, enquanto que a Argentina, ao invés de abrir, marcha em direção ao protecionismo e será um problema para a conclusão de qualquer acordo por parte do Mercosul, seja em Doha, seja com a União Europeia, seja eventualmente com acordos bilaterais. O Brasil desregulamentou a sua economia e reduziu o papel do Estado, a Argentina está praticando uma reindustrialização nos moldes dos anos 70 e está aumentando a ingerência do Estado. O Brasil tem 214 bilhões de dólares de reserva, a Argentina come-
ça a enfrentar problemas crescentes em relação a sua base de divisas e volta a conversar com o Fundo Monetário Internacional para obter os recursos de que necessita. Em resumo, o Brasil caminha em uma direção, a Argentina caminha em direção contrária. (...) Diante desta situação de tão grande descompasso, qual resposta poderia ter o Brasil? A res-
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Soldados do exército boliviano ocuparam a refinaria da Petrobras, após o presidente Evo Morales nacionalizar a indústria de gás.
posta que o Brasil tem tido para esta situação, a meu ver, tem sido uma parte do problema. A primeira parte do problema é a diferença nas realidades objetivas. O segundo, é uma política equivocada que temos praticado. Equivocada porque ela parte de dois pressupostos equivocados. O primeiro é o pressuposto de que não é possível fazer comércio onde existe uma simetria entre as economias. Foi esta tese que nós criamos para rejeitar a Alca, ainda que nós tenhamos boas razões para ter dificuldade com ela, mas não é verdade que a simetria impede o comércio, senão a América Central e o Caribe não teriam lutado tanto para entrar no Nafta, nem o Leste Europeu para ser aceito na União Europeia. No entanto, esta tese da simetria, que nós inventamos, tem sido muito bem aceita pelos nossos vizinhos, que a cada momento nos cobram pelo pecado de termos um saldo comercial com eles. Esta mesmo cobrança, de uma tese que nós inventamos, que nos leva a ter responsabilidade por manter com a Argentina um comércio equilibrado – a Argentina chegou a propor coisa de um para um. Em outras palavras, o que nós estamos buscando é recriar no âmbito do Mercosul aquilo que foi o comércio com o Leste Europeu no passado, um comércio administrado, você exporta cem se você também importar cem. (...) Não se deve buscar mais uma resposta ou caminho na relação com os EUA, mas é preciso que nós mesmos assumamos as nossas responsabilidades e encontremos esse caminho. O Brasil precisa, se quiser mudar este panorama, que é preocupante, colocar as verdadeiras questões sobre a mesa. Nós queremos ser um modelo de decmocracia? Se quisermos, é pre-
Carlos Hugo Vaca/Reuters
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ciso assumirmos com mais convicção este papel. Queremos ter uma posição comum sobre temas novos? Talvez fosse importante em meio ambiente e direitos humanos. Queremos ter um acordo de livre comércio? É hora de retirar as restrições. Queremos ter uma união aduaneira? É hora de completá-la e só depois exigir a negociação conjunta, que neste momento nós certamente não temos condições de fazê-la, porque as disparidades com a Argentina farão com que nós não consigamos concluir qualquer acordo de comércio, se é que haverá esta possibilidade. Queremos ampliar o Mercosul? É hora de discutir algumas questões centrais: as regras claras de adesão, que não foram discutidas, e sobretudo, que nós comecemos a considerar a ponderação de votos, porque nas decisões essenciais nós não podemos ter o mesmo peso do que países que têm 1% do nossa população e do nosso PIB. O Brasil hoje tem a oportunidade de assumir uma posição relevante no cenário internacional. Presença nós temos, mas essa presença não tem resultado em ganhos concretos para o País. Mas se nós quisermos, nós temos antes que equacionar as relações com os nossos vizinhos. Não faz sentido o Brasil se candidatar ao Conselho de Segurança e fazer uma das maiores campanhas diplomáticas que o País já fez sem antes acertar os ponteiros com o seu parceiro estratégico, a Argentina. Não faz sentido nós continuarmos a viver a restrição que vivemos para concluir acordos de comércio. Não é razoável não buscar uma convergência sobre temas da agenda internacional como mencionei, e não é razoável assistirmos a ocupação de uma planta da Petrobras na Bolívia, ameaças de suspensão de pagamento no Equador ou a proliferação de medidas protecionistas na Argentina e termos como única resposta iniciativas casuísticas e concessões. É preciso ter uma visão de médio prazo que busque construir as convergências, promover a prosperidade compartilhada e reduzir as simetrias. Não nos interessa ser uma ilha de prosperidade, numa região de crescentes desigualdades. Não podemos assumir o risco de substituir os EUA no imaginário anti-imperialista do nosso continente. Usamos e abusamos de uma retórica em favor da integração, mas em vez de integração, nós estamos caminhando para uma fragmentação, com potencial de atritos crescentes em relação ao Brasil. As relações com o Mercosul e com a América do Sul tal como se encontram hoje serão certamente o pior legado da diplomacia do governo Lula.
Paulo Pampolin/Hype
Antonio Carlos Pereira Jornalista, editor do jornal O Estado de S. Paulo
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embaixador Rubens Ricúpero definiu com precisão os três eixos da política externa brasileira: um lugar no Conselho de Segurança, negociações comerciais de Doha e a integração ou maior articulação na América do Sul. Em qualquer circunstância, estes três objetivos seriam altamente elogiáveis. Ocorre, no entanto, que a maneira como esses objetivos foram perseguidos se deu da única maneira que o atual governo conhece, que é a da personalização e da partidarização. A esses dois vícios de origem se acrescentam outros dois: o excesso de voluntarismo e a falta de informação do ambiente externo. Quero dizer com isso que uma vez determinado um objetivo e a maneira de alcançá-lo, esse governo e sua política externa se lança como aqueles 12 cavaleiros do poema de Ascêncio Ferreira – "Lançam-se em louca disparada. Para quê? Para nada." Para nada, por quê? Porque não tiveram a mínima preocupação em fazer o trabalho de casa, conhecer o ambiente em que teriam de operar. Alguns exemplo: em relação ao Conselho de Segurança, o governo brasileiro se lança numa campanha de conquista e aliciamento de votos para obter a maioria que lhe desse as-
sento no corpo permanente com absoluta voracidade e inclusive com alguma falta de escrúpulo. Faz de tudo um pouco, sem se preocupar em saber duas coisas: as possibilidades objetivas de o projeto de reforma da ONU ir adiante e portanto, chegar ao ponto em que ela seria uma consequência natural; e em segundo, até onde iriam os seus aliados e seus apoios, e mais importante, quem seriam os adversários fundamentais para que a aventura não fosse concretizada? Não se fez a lição de casa. Tivesse feito a primeira, veriam que mesmo se duplicar o número de embaixadas na África, isso não altera determinados conceitos que orientam o grupo africano. Há coisas mais importantes do que receber uma embaixada do Brasil. Superestimou-se o papel do País. Segundo: você pode armar toda a argumentação teórica, programática para justificar a filiação do Brasil ao Conselho de Segurança, mas nada disso será levado em consideração quando o problema chegar nas chancelarias do México, da Colômbia e da Argentina. Basta estes três lugares para destruir toda aquele arcabouço, que dizia que o Brasil aceitaria ser o porta-voz no Conselho de Segurança de seus países vizinhos. (...) Na reunião de cúpula do atual governo, também se abriram várias oportunidades e delas nunca mais se ouviu falar. Este tipo de política provoca fenômenos curiosos. Em qualquer condição normal, o Mercosul deve-
O presidente Lula posa para a foto oficial da Cúpula dos Presidentes do Mercosul em Montevidéu em dezembro de 2007. O Brasil busca uma maior articulação na América do Sul e deseja ser líder da região.
Fabrio Rodriguez Pozzebom/ABr
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ria ser a preocupação central da política externa brasileira. No entanto, ele foi relegado a terceiro ou quarto plano. Ele deixou de ser um instrumento para integração regional para se tornar uma reunião de amigos "ma non troppo", aqueles amigos que se olham desconfiados, que ficam procurando se alguém está com uma carta na manga, se está com um punhal na cintura, pois no fundo não há confiança. Perdeu-se um tempo enorme sem que se construíssem regras gerais, de convivência, sem que se estabelecessem objetivos comuns e claros. No lugar disso, estabeleceu-se no Itamaraty uma política de "quebração de galhos". A Argentina está com problemas de balança de pagamento? Chama o pessoal, vamos discutir isso no Mercosul e a gente põe Wilton Junior/AE
Lula já tentou ser líder dos pobres, propondo uma solução mágica para o fim da fome. Passou-lhe pela cabeça liderar o processo de combate à devastação ambiental, mas desistiu.
até numa determinada ocasião propor uma solução mágica para o fim da fome, ao longo do tempo foi abandonando essa ideia. Passou-lhe pela cabeça liderar o processo de combate à devastação ambiental, percebeu que não era fácil e ao longo do tempo abandonou e hoje não consegue mais controlar o processo devastação do Brasil – o seu governo é atormentado por dissidências internas nesta área, que é justamente uma área que em matéria de política externa seria mais importante o Brasil ter uma posição séria, coerente com os interesses nacionais, que não é transformar reservas ou a Amazônia num museu vivo. O interesse também não é devastar tudo na suposta ideia de que devastando tudo cresceremos mais rapidamente, isso não é verdade. O interesse nacional é preservarmos produtivamente a nossa herança e nós temos condições políticas de fazer isso, no entanto hoje o Brasil é absolutamente irrelevante na discussão ambiental. Estamos verificando se será possível obter uns trocados em troca da limitação dos gases de efeito estufa. (...)
Marlene Bergamo/Folha Imagem
uma sobretaxa, faz um swap de moedas. Peso por real? Não, peso por dólar. Mas o Brasil não tem dólar. Mas o Brasil pode comprar dólar e repassar para a Argentina. (...) Unasul é outro mostrengo criado por este tipo de política externa cozido num caldeirão partidário. O Brasil foi incapaz de coordenar um bloco de quatro participantes, ele próprio mais três, e de repente se acha capaz de ordenar um bloco de 12 participantes, os quatro que ele não coordena mais oito. E você vai buscar os interesses comuns, as metas recíprocas e não encontra. Você encontra um objetivo, que é o objetivo claro do presidente Lula de se tornar o líder regional inconteste. Ele já tentou ser o líder dos pobres, chegou
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Paulo Pampolin/Hype
Marcos Azambuja Embaixador e ex-secretário geral das Relações Exteriores
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tema que me pediram para falar me leva a uma inevitável fragmentação – diretório de poder, Conselho de Segurança da ONU –, que decorre centralmente do fato de que nunca foi possível reformar a Carta das Nações Unidas. Nós vivemos ainda com toda aquela estrutura que veio de 1945, com a arquitetura do fim da Segunda Guerra Mundial e desde então aconteceram coisas extraordinárias com a ONU, com o mundo e com o Brasil. Então, temos esta defasagem entre a estrutura desta entidade e a realidade. Por isso, foram-se criando sistemas paralelos, linhas acessórias, informalidades, grupos foram sendo criados. Na medida que a ONU não é reformável, não há condições de se rever o Conselho de Segurança. Não há condições porque, como é um tratado encouraçado, é muito difícil mexer em qualquer dessas partes sem gerar uma resistência muito grande. De certa maneira, toda organização internacional busca duas coisas: a universalidade, que é a base da sua legitimidade, e a seletividade, que é a busca de unidades pequenas de alta capacidade de ação. Em toda organização internacional há essas duas coisas – as grandes assembleias plenárias, em que todos têm voto, e os circunrrestritos, que são esses diretórios de poder, onde se conduz o negócio com a velocidade e coesão de que é preciso.
A reforma do Conselho de Segurança é uma impossibilidade, entre outras razões porque, como o conselho tem conceito de presença regional, cada candidato regional tem na sua região dois ou três países cuja posição não é aspirar ao assento, é impedir que o outro chegue a ele. A candidatura alemã na Europa encontra a resistência da Espanha, da Itália e da Suécia. A candidatura brasileira encontra obstáculo do México, Colômbia e da Argentina. Uma candidatura japonesa ou indiana encontra, na Ásia, a oposição da Indonésia e do Paquistão. E o jogo empata, pois é ingênuo achar que algum país vai se fazer representar por outro num foro desta importância. O Conselho de Segurança foi objeto de um dos nossos esforços, é compreensível, mas foi um pouco ingênuo. Sobretudo, a ideia de que o aumento de votos nos levaria ao objetivo, pois não é uma decisão que se faça por critérios puramente numérico. Foram se criando outras entidades, outros polos, em que se joga hoje o jogo do poder internacional. O mais recente é o Bric, que também é o mais tênue, o mais promissor e ao mesmo tempo o mais impossível. É onde está o Brasil. Eu costumo dizer que, como (Luigi) Pirandello escreveu "Seis personagens a procura de um autor", o Bric são quatro grandes países a procura de uma agenda. São grandes países, a dificuldade é saber o que eles podem fazer juntos. Esforços nossos na OMC fracassaram porque a política brasileira não é, a rigor, parecida com a da China ou da Índia, embora este caminho também não seja descartável – sou uma dessas pessoas que não costumam jogar a criança junto com a água do banho. O próprio
O Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) são quatro grandes países à procura de uma agenda. A dificuldade é saber o que eles podem fazer juntos.
Dmitry Kostyukov/AFP
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Mercosul merece ser preservado. Eu sou um conservador de estruturas, atualizando na medida em que ela é necessária. O mundo viveu um engessamento durante 40 anos da Guerra Fria, de 1949 a 1989 , que impediu que o mundo se mexesse, porque havia um bloqueio ideológico e militar das superpotências. Quando surgiu a possibilidade de revisão e reformulação do mundo multilateral, os EUA não optaram pelo multilateralismo renovável, o que era desejável, e nem pelo caminho do bilateralismo, mas inventou o chamado unilateralismo, que não leva a lugar nenhum. Portanto, temos agora que relançar o multilateralismo a luz de novas circunstância. E com a globalização, uma série de temas que se fazem cada vez mais necessariamente parte de uma ação multilateral – meio ambiente, direitos humanos, saúde. Não se pode mais pensar o mundo compartimentalizado na soma de ações bilaterais. Mas não se pode negar que o bilateralismo é o arroz com feijão das relações internacionais, é a mais espontânea e a mais natural. O Brasil é um candidato natural a qualquer ampliação de qualquer diretório de poder. Não vai haver qualquer ampliação se o Brasil não estiver dentro desse processo. Não precisamos ser candidato militante, o Brasil não precisa cavar essa posição, ela virá pelo reconhecimento de seu poder, não é uma questão de busca de voto. O que vai nos fazer sócios naturais dos diretórios de poder é a nossa indispensabilidade ao próprio jogo. O Brasil se colocou agora em uma posição muito interessante. O Brasil é um país que está no limite da admissão de tudo: ou ele entra ou não haverá ampliação dos diretórios, pois estes não terão representatividade.
Lula discursa na Assembleia Geral da ONU
Dida Sampaio/AE
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Sebastião do Rego Barros Embaixador e ex-secretário geral das Relações Exteriores
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om relação à integração en ergé tica regional, os anos 80, que foram muito ruins para a América Latina, ela acabou sendo até positiva, porque houve os regimes militares, principalmente no Brasil e na Argentina; a Guerra das Malvinas, que "latinoamericanizou" a região; e a própria crise das dívidas, que obrigou os países a fazerem um esforço pela abertura comercial. E com isso, tivemos no ano de 1988 o acordo bilateral entre Brasil e Argentina – durante os governo de Sarney e Alfonsin, que conseguiram mudar de forma extraordinária o relacionamento entre os dois países. Até então, havia aquelas teorias de que um país iria invadir o outro e cada um olhava desconfiado para o seu vizinho. Os dois países, através desse acordo de 1988, começaram um mercado comum em setores onde não havia comércio. Parecia absurdo, mas de certa maneira houve progresso. Houve também o acordo entre os dois países na área nuclear, que se tornou exemplo para o mundo. Estes dois fatos tornaram possível um acordo mais amplo, com a criação do Mercosul em 1991. Em 1988, os negociadores brasileiros na Argentina tinham tido cuidado – esse acordo não poderia ter a adesão de outros países antes de cinco anos. Isso porque o Uruguai queria fazer parte desse acordo de 88. Nós tínhamos consciência de que o Uruguai não deveria entrar, por que ele significa meio porcento do PIB do Brasil e da Argentina. Depois, houve a redemocratização do Paraguai, começou o governo Collor e Menen, no Brasil e na Argentina. Criou-se o Mercosul por pressão do presidente uruguaio (Julio Maria) Sanguinetti, muito talentoso e inteligente. Acho o Mercosul uma ideia política inteligente, com resultados muito bons, mas do ponto de vista econômico e comercial foi uma lástima. Essa integração Brasil-Argentina poderia ter progredido muito mais. Nós tínhamos nessa época a ideia do Mercado Comum Europeu, que tinha inicialmente 6 países - Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. Mas, na realidade, eram quatro entidades econômicas, pois Belgica, Holanda e Luxemburgo formavam o Benelux, era uma potência comercial. Tanto que o Mercado Comum Eu-
Robson Fernandjes/AE
ropeu iniciou com quatro parceiros mais ou menos do mesmo porte. Houve muito mais trabalho para que o projeto desse certo por causa de rivalidades históricas. Por mais que haja alguma rivalidade entre Brasil e Argentina, isso não se compara com o que houve entre a França e a Alemanha. O ímpeto e a pressão política aqui era menor. Os problemas do Mercosul advém dos problemas da Argentina, que entrou em um processo de desorganização. Esse crescimento no comércio no início do Mercosul, houve uma ideia do governo brasileiro de se fazer um projeto, chamado Avança Brasil, de integração energética e de telecomunicações na América do Sul. O presidente FHC convocou uma reunião dos presidentes da região e criou-se a IIRSA - Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, com a base em infraestrutura e integração energética. Havia nessa época motivos para otimismo na integração energética na América do Sul, porque nós tínhamos uma boa experiência com o Paraguai (Itaipu), tínhamos construído o gasoduto Bolívia-Brasil. Nessa época a Argentina era supridora de gás do Chile, havia projetos importantes no Peru e na Venezuela, que têm muito gás. O gás dava uma base de integração extraordinária. De lá para cá, a situação mudou muito. Não dá pra dizer que é culpa do nosso atual governo, que poderia ter administrado melhor essa degradação política que houve na América do Sul. A IIRSA virou por um momento Casa (Comunidade Sul-Americana de Nações) e finalmente se transformou em Unasul, que tomou um caráter diferente, que eu não creio que vá levar a alguma coisa. Isso que foi uma ideia forte no governo passado (FHC), esse projeto de integração regional Sul-Americana, por razões reais e também políticas, esse projeto enfraqueceu muito – não digo que está condenado, mas será necessário muito tempo para que se tenha iniciativas mais concretas e objetivas que levem a uma integração regional. Em relação ao petróleo, a Petrobras teve um êxito e ficou patente a necessidade de aporte de outras empresas da área. A Petrobras teve o monopólio do petróleo de 1953 a 1997. Ela foi para o mar, descobriu vários campos e agora há o Pré-sal, com três campos em obra – Carioca, Tupi e Paraty. A Petrobras tinha o monopólio e hoje há mais de 70 empresas nacionais e estrangeiras, algumas estatais. Em relação ao modelo de exploração, um fato curioso é que os países com menor índice de corrupção usam o modelo de conces-
Celso Junior/AE
Acima, hidrelétrica binacional de Itaipu, construída quando se tentava uma integração energética na América Latina. Ao lado, o presidente da Petrobras, Sérgio Gabrielli, apresentando o Pré-sal.
são, o modelo de partilha é usado em países onde esse índice é mais alto. Um dos pontos que é levantado por aqueles que defendem a mudança é que o nível de participação governamental do mundo aumentou muito antes e depois de 2007 – ano que os preços subiram muito. É verdade que aumentou a participação governamental em quase todo o mundo. Até nos EUA a participação do governo mudou, mas no Brasil não. Não mudou porque a Petrobras produz 99,8% do petróleo, se aumentar faria a Petrobras pagar mais imposto. Não aconteceu por causa disso. (...)
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Reprodução
Política Externa
Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990) Senador, chanceler e membro da Academia Brasileira de Letras
Agradecimentos ao Núcleo de Biblioteca e Memória da Associação Comercial de São Paulo
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Digesto Econômico nº 180 Novembro/Dezembro de 1964, págs. 17 a 29
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o saudar a mais recente turma de diplomandos do Instituto Rio Branco, o Presidente da República (Castelo Branco - N. da R.) formulou conceitos, interpretou posições e traçou rumos relativamente à política externa do País. Não foi uma fala convencional ou evasiva, mas, ao contrário, refletida e substanciosa, que denotou, no seu autor, segurança de informação e hábito de estudo e de meditação sobre a matéria. Coisa, aliás, presumida por quem conhece os estudos da Escola Superior de Guerra. A firmeza de certos princípios orientadores aparece ali matizada pela noção da relatividade conjuntural das suas aplicações, o que é, exatamente, a característica de qualquer ação política, tanto no plano interno (a conhecida definição da política como a arte do possível) quanto, e muito especialmente, no plano internacional, porque, se internamente o Estado soberano faz política por via de decisão, externamente o encontro com outras soberanias o leva a só poder agir politicamente por via da composição. É claro que a vida internacional conhece também, e até demais, o espetáculo da imposição, mas aí a ação impositiva de um Estado sobre outro deixa de ser fundada no Direito e elimina, pelo menos no episódio
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Fotos: M
em causa, a soberania do Estado que se deixa impor. Voltando ao discurso inicial eu diria que, tanto quanto me recorde, é a primeira vez que um Chefe de Estado, no Brasil, se manifesta com força e clareza sobre alguns aspectos básicos da política externa, desde o artigo escrito pelo ex-Presidente Jânio Quadros para a revista americana Foreign Affairs. É, portanto, com prazer, que atendo ao convite de comentar os pontos principais do discurso presidencial. Esta oportunidade, aliás, vem ao encontro de uma intenção que eu desde algum tempo abrigava, mas que adiava sempre para um momento que me parecesse mais adequado: a de trazer um testemunho que, ao mesmo tempo, desfizesse as falsidades e os equívocos acumulados, por ignorância, ou má-fé, a respeito da política externa brasileira, a partir do governo Jânio Quadros. A este propósito cumpre reconhecer que nada há de mais fácil – quase se poderia dizer de mais natural – do que incorrer em julgamentos equivocados sobre determinada linha de política externa, desde que correntes interessadas se disponham a levantar falsidades sobre ela. A razão disto é que, atualmente, a política internacional passou a interessar a todo mundo, devido à aproximação forçada que a
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técnica moderna impõe aos mais distantes Estados e ao fato de que os conflitos da era nuclear ameaçam por igual a todos os povos, o que tornam as multidões sensíveis às mais longínquas possibilidades de guerra. Sem esquecer, finalmente, que divisões ideológicas, radicalizando imensas massas humanas, trouxeram novo contingente à carga emotiva hoje inseparável da observação da vida internacional. Mas, se, pelas razões apontadas, o interesse direto de todos os habitantes do globo leva-os acompanhar o desenvolvimento da política mundial, também a verdade sobre os fatos, as intenções e o curso dos entendimentos da vida diplomática ficam muito acima do alcance da opinião média, não só pela natural reserva que os cerca, como pela sua habitual complexidade. Instala-se, em virtude desses fatores antagônicos, uma contradição cujos resultados são frequentemente graves: a opinião pública se apaixona por assuntos que desconhece, e torna-se presa fácil de interpretações errôneas sobre a ação dos governos, interpretações forjadas sobre falsidades partidas de setores nacionais ou estrangeiros, contrariados nos seus interesses. Fatos inverídicos, intenções deturpadas, condutas desfiguradas, ideologias conflitantes, conscientemente articulam-se e compõem-se na formação de uma imagem totalmente infiel da realidade. Às vezes – a História o demonstra – constroem uma realidade diferente. Sentimento de insegurança das elites, paixão jacobina das massas, conforme o caso, são sabiamente despertados e levados à exaltação por um mecanismo de propaganda a serviço de interesses ocultos, sob a capa de pressões democráticas ou nacionalistas, umas e outras tentando impor linhas de ação externa não coincidentes com os interesses nacionais. Só quem já viveu o problema sabe até que ponto estes métodos (aliás copiosamente estudados e conhecidos pelos especialistas) podem ser eficazes. Foi exatamente por ter vivido o problema que nunca dei importância às deturpações voluntárias, feitas em torno da chamada política externa independente. Recusei-me até agora, depois da revolução, a qualquer explicação sobre suas diretrizes e métodos, por duas razões: primeiro porque não encontrava nenhuma autoridade nos que a atacavam e conhecia as razões, muitas vezes pessoais, dos ataques; segundo porque mais recentemente, servindo o assunto de ameaças contra o meu mandato (embora partidas de elementos secundários, e, até, desclassificados), um sentimento elementar de dignidade me impedia dar explicações que poderiam parecer justificativas feitas sob coação. Agora, porém, a situação é diversa. Em primeiro lugar não se trata de ataque a uma orientação que (sem nunca esquecer a relatividade conjuntural) é a única que atende à soberania do Brasil e serve aos interesses do seu povo, mas, ao contrário, na exposição do Presidente, patenteia-se uma concepção da política externa que em nada de substancial se afasta da que tentamos praticar. Iniciando a parte substancial do seu discurso afirma o Presidente: "A formulação de nossa política externa, norteada pelos objetivos nacionais, busca também o robustecimento do poder nacional e, em particular, o dos instrumentos que nos permitam alcançar o pleno desenvolvimento econômico e social. Além desses objetivos visamos a outro
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que os condiciona: a existência da paz mundial. A consistência entre todos os objetivos nacionais só pode ocorrer se houver autodeterminação... A sua legitimidade se origina nos pronunciamentos eleitorais do povo e no votos dos seus representantes". Estas ideias básicas, às vezes com palavras semelhantes, senão as mesmas, constituíam o cerne da orientação do Itamaraty, no entanto tão criticada por motivos de ordem partidária ou pessoal. Política externa visando ao desenvolvimento do País, paz (com ênfase ao desarmamento) e autodeterminação democrática era também o que sempre propomos. Aos afoitos, ou incientes, que quisessem objetar agora com a questão de Cuba, poderemos dar cabal explicação. Vou fazê-lo, pela primeira vez, porque agora não me curvo às ameaças de ninguém. Como toda a América (inclusive os Estados Unidos), o Brasil considerou a revolução cubana como uma das grandes páginas da História continental. Foi um movimento lidimamente popular, sem o habitual caráter militarista das revoluções dos outros países latinos, e, ao mesmo tempo, nacional, porque visava libertar a Ilha da incontestável dominação política e econômica dos Estados Unidos, vinda desde a guerra da independência, em fins do século passado. Por motivos que não compete investigar aqui, mas nos quais aparecem culpas dos dois lados, Cuba começou a se desprender dos laços continentais para se deixar enlear por outros; a princípios políticos; mais tarde claramente ideológicos, com o mundo comunista. Os primeiros sintomas desta evolução já eram sensíveis em 1960, quando, em companhia do então candidato Jânio Quadros, estivemos em Havana, sendo ali Embaixador o atual Chanceler Leitão da Cunha. Depois de um jantar oferecido pelo Presidente Osvaldo Dorticós, em reunião Os primeiros reservada na qual, do lado sintomas desta cubano estavam o Presidenevolução já eram te e o Chanceler Roa, e, do lasensíveis em 1960, do brasileiro, Jânio, Leitão quando, em da Cunha e eu, fui incumbicompanhia do do de responder ao Presientão candidato dente sobre a sugestão, no Jânio Quadros, primeiro ano do Governo estivemos em Quadros, apoiasse uma reuHavana, sendo nião de governos neutralisali Embaixador tas em Cuba, compreendeno Chanceler Leitão do todos os Estados afroda Cunha. asiáticos. Declarei então que o Brasil não concordaria com tal reunião, porque a liderança e até a personalidade de qualquer país latinoamericano se veriam submergidas em uma conferência na qual o nosso Continente seria minoritário, em face dos numerosos Estados da Ásia e da África, cujo recentíssimo processo de independência muito divergia do nosso, e havia determinado a
adoção de uma filosofia política diferente. Lembro-me bem de que Dorticós declarou reconhecer a procedência da objeção, e também me recordo com nitidez de que, ao sairmos, Jânio deu caloroso assentimento ao que eu dissera. Quando ocupei o Itamaraty nossa posição não diferiu. Seguindo instruções do Presidente Quadros preparei, para que ele assinasse, uma carta a Fidel Castro, de que devia ser portador o Embaixador Leitão da Cunha, que viera ocupar, a meu convite, o posto de Secretário Geral. Possuo o rascunho manuscrito desta carta e a cópia datilografada que entreguei ao presidente com notas marginais deste. A carta era uma espécie de advertência amistosa em relação ao desvio totalitário da Revolução Cubana. Porque, com efeito, na sua primeira fase, ela procurou nitidamente tender para a democracia social e a independência nacional, sendo aí, extremamente graves os erros da política norte-americana, francamente influenciada pelos interesses econômicos que dominavam a Ilha e que se julgaram feridos pelos esforços de recuperação nacional do Governo Revolucionário. Chegado havia pouco ao poder, Reprodução/AE
que conquistara por estreita margem de votos, o grande Presidente Kennedy cometeu o erro de se deixar envolver pela aventura da agressão à Ilha, contra a qual, diga-se de passagem, o Presidente Quadros e o seu Ministro haviam advertido diplomatas americanos que dela nos haviam prevenido. Sobre o impacto da agressão repelida, o Governo idealista cometeu por sua vez o grande erro de se deixar envolver pelo jogo da Guerra Fria, aprofundando as suas ligações com a União Soviética, sem perceber que trocava uma dominação, de que se estava libertando, pelo isolacionismo e outra dominação de que seria muito mais difícil libertar-se. Ainda na 15ª Assembleia da ONU, o chanceler Roa fizera um discurso, em sessão plenária, condenando em bloco, em nome da filosofia de seu Governo, tanto o comunismo escravisador, quanto o capitalismo predatório. Quem consultar este discurso verá que Roa apresentava a linha de seu Governo no sentido de que ele chamava humanismo ou humanismo social, designação que procurou definir teoricamente. A agressão da Baia de Cochinos ajudou a tirar a Revolução Cubana para a órbita soviética. Foi no sentido de prevenir isto que preparei o texto acima referido. Nele, o Presidente diria que a Revolução Cubana, expressão autêntica e avançada do processo histórico latino-americano estava-se desfigurando, porque se aproximava visivelmente de uma linha rígida, política e doutrinariamente; linha esta correspondente a uma ideologia fechada e a condições específicas de um imenso país completamente diferente dos nossos. A consequência fatal seria o isolamento de Cuba e a descaracterização da sua Revolução, com grande perda para o nosso Continente. Eis, em resumo, o que continha o texto proposto. O Presidente brasileiro disse-me que concordava plenamente com a colocação da questão, mas que preferia não mais enviar a carta, porque não estava seguro do bom acolhimento dela, e receava que o destinatário a utilizasse contra o nosso Governo, acusandoo de intervencionista e submisso a interesses do capitalismo internacional. De minha parte concordei com essas reflexões e, então, o Presidente determinou que o Embaixador Leitão da Cunha, de volta de uma viagem à Jamaica, fosse a Havana e transmitisse verbalmente ao Governo local nossas apreensões. O Embaixador cumpriu a sua missão. Mais tarde, quando passou pelo Brasil, o Sr. Carlos Olivares, subsecretário das Relações Exteriores de Cuba e, depois, Embaixador em Moscou, na conversa que tivemos, sempre na presença do Em-
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baixador Leitão da Cunha, reiterei, em nome do Governo, minhas advertências e apreensões. Lembro-me de que, ainda naquele momento (meados de 1961), Olivares contestou formalmente que o seu Governo tendesse a tornar-se comunista. Eis porque, quando de meu longo depoimento perante a Comissão de Relações Exteriores da Câmara, sem citar as fontes de informação, eu disse que não era seguro que Cuba viesse a ser comunista, mas que, se tal se desse, seria levada a romper com os Estados do Continente. A exposição está publicada no Diário do Congresso. Depois da lamentável renúncia do Presidente Quadros, estava eu chefiando a delegação do Brasil na 16ª Assembleia da ONU quando, em novembro (creio) de 1961 Fidel proferiu o seu sensacional discurso, afirmando que o seu governo se integrava na linha do marxismo-leninismo. Deve constar dos arquivos do Itamaraty o longo despacho que então enviei, fazendo reparos e sugestões sobre a nova situação criada. No ano seguinte, durante a 17ª Assembleia, na qual também representei o Brasil, tive oportunidade de marcar tão nitidamente quanto me foi possível a posição da nossa política com referência ao problema. No discurso que proferi, na Primeira Comissão, enunciei os seguintes pontos de vista: 1) a Carta de Bogotá, que é o texto constitucional da Organização dos Estados Americanos, determina expressamente que a democracia representativa é o sistema de governo dos Estados do Continente; 2) o marxismo-leninismo, fundado em concepções amplamente conhecidas de Marx e Lenin, é um sistema que não apenas diverge, mas decididamente se opõem aos princípios e métodos da democracia representativa; 3) por conseguinte, o Estado que adota oficialmente esta forma de Governo, afastase ipso facto, da organização que se assenta na prática da democracia representativa; 4) à provável alegação do representante de Cuba (que era o Embaixador Lechugar) de que vários outros países do Continente não praticavam, tampouco, o sistema estabelecido pela Carta de Bogotá, mas viviam sob ditaduras, eu respondia antecipadamente que a situação desses países era diferente da de Cuba, pois eles não condenavam deliberadamente a adoção da democracia representativa, sistema que procuravam sempre estabelecer, senão que não se encontravam em condições históricas ou sociológicas que tornasse possível a aplicação do tipo preferido de governo; 5) que, em consequência, Cuba se excluíra a si mesmo do sistema Continental. Esta, em resumo, a primeira parte do meus discurso. De lá marchei para as necessárias conclusões, cuja síntese passo a expor: 1) o fato de Cuba se haver excluído da OEA, por condenar a adesão a princípios nela considerados básicos, não determina-
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va a exclusão de Cuba das Nações Unidas, e as Nações Unidas, regidas pela Carta de São Francisco, não impõe aos seus membros uma forma determinada de governo, senão que existe precisamente para garantir a paz e a segurança internacionais entre todos os povos e Estados, quaisquer que sejam os regimes internos sob os quais vivam;
(...) estava eu chefiando a delegação do Brasil na 16ª Assembleia da ONU, quando, em novembro (creio) de 1961 Fidel proferiu o seu sensacional discurso, afirmando que o seu governo se integrava na linha do marxismoleninismo.
2) portanto, o dever das Nações Unidas, na situação criada, era de garantir a paz e a segurança na América, e isto só se poderia conseguir por meio dos métodos inerentes às Nações Unidas, ou seja, por meio de fórmulas jurídicas e negociações políticas que resolvessem a questão sem apelo à guerra e sem sacrifício dos princípios de autodeterminação e não intervenção; 3) não se podia aplicar sanções a um país porque ele não havia adotado determinada forma de governo, a não ser que ele próprio vulnerasse, em outros países, os princípios da Carta de São Francisco, que defendem a
soberania de todos. O discurso está publicado nos trabalhos da Primeira Comissão. A Secretaria da Delegação Brasileira fez um relatório especial de que possuo cópia das dezenas de vezes em que a nossa maneira de colocar a questão foi objeto de referência por parte de outros delegados, de países democráticos ou não, no prosseguimento do debate. Em entrevista pessoal com o Presidente Dorticós, então em Nova York, realizada na presença do Ministro Geraldo Silos, da delegação do Brasil, reafirmei ao presidente que o Brasil defendia o sistema democrático representativo da Carta de Bogotá e se esforçaria pela sua consolidação no Continente. Creio que a posição então assumida era a mais correta. A existência de um país insular comunista no Ocidente democrático é um fato da vida internacional, como a existência de países insulares anticomunistas, como Japão e Formosa, no Oriente comunizado. A proximidade geográfica não é aspecto essencial, nem representa risco invencível, numa época em que os foguetes providos de ogivas nucleares podem atingir, em minutos, com precisão, os alvos assinalados além dos mares. Internamente os países democráticos devem combater o comunismo praticando a democracia, o que implica em realizar as reformas necessárias ao bem-estar dos povos, no caso de países do tipo do Brasil, e não comprometendo a democracia com a manutenção de estruturas econômicas e sociais que só podem aprofundar os perigos de luta de classes. Externamente a luta pela democracia é inseparável da luta pela paz. Nada demonstrou isto do que a ação ao mesmo tempo enérgica e prudente do presidente Kennedy no trágico episódio da instalação dos foguetes soviéticos em outubro de 1962. A atuação do Brasil naquele momento, tanto em Nova York, na ONU, quanto em Washington, na reunião de chanceleres à que tive de comparecer à pedido do Governo, foi clara: apoio às medidas de solidariedade Continental contra as mesmas caracterizadas de agressão, defesa da liberdade, de decisão de cada país e porfiado esforço de cooperação por uma solução que evitasse a violência capaz de nos levar ao cataclismo nuclear. Tenho comigo a carta que o ilustre Embaixador Adlai Stevenson, com quem sempre entretive, nas Nações Unidas, às melhores relações de amizade me enviou, agradecendo em nome de seu governo à atuação do Brasil no seio da ONU. A ideia de que se pode eliminar o comunismo na América mediante um ataque armado contra Cuba é igual a de que se pode liquidar a democracia na Ásia por meio de uma agressão comunista à Formosa. Os Estados Unidos sempre recusaram tal solução, desde o episó-
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dio de Cochinos. Hoje a liberdade interna depende da paz guida, neste trecho: "A independência é, portanto, um valor externa e esta do fortalecimento da ONU. Não conheço as terminal. Instrumentalmente é necessário reconher-se um razões mais recentes que terão determinado o nosso rompicerto grau de interdependência". Deixa também claro que a mento com Cuba. Do ponto de vista formal, a decisão tomainterdependência decorre da aplicação do princípio da solida em Washington ajusta-se aos termos do Tratado do Rio de dariedade coletiva. Janeiro; por isso mesmo parece-me que seria mais próprio Nas duas vezes em que chefiei o Itamaraty e nas missões para o nosso País adotar a decisão da reunião de Washingque exerci no exterior, nunca desvinculei a política de indeton, em face dos elementos de fato e de direito apresentados. pendência do reconhecimento da necessidade de interdeA decisão antecipada ficou parecendo uma imposição de pendência de posições. De resto, a aceitação da interdepenalas internas radicais, pois não foram tornados públicos os dência se confunde com a própria existência de uma política atos praticados diretamente contra nós que justificassem a internacional, mesmo antes da formulação do princípio jurídecisão unilateral, que no entanto, poderia ser tomada codico da solidariedade coletiva. Desde a fundação dos Estados letivamente, mediante as provas de ataques ou infiltração nacionais, na época do Renascimento, ficou patente que nem subversiva em outros países, segundo os princísempre um Estado poderia defender sozinho a sua pios da segurança coletiva, estabelecidos no existência soberana, dada a possibilidade de ser Tratado do Rio. De qualquer forma, o Brasil esta posta em risco por forças isoladas ou codeve manter sempre firme seu poder de ligadas, muito mais poderosas. Surgiu, nadecisão e atuar na sua linha tradicional turalmente, então, a instituição da aliança (esta sim, realmente tradicional) de defedefensiva entre governos, aliança que, nos Não se pode, sa da paz e da solução pacífica dos dissítempos das monarquias hereditárias, torcom efeito, dios. Não devemos estimular agressões nava tão importante o casamento de herque arrisquem a catástrofe nuclear, nem deiros das cortes reinantes. O Império Naconceber um muito menos participar dela. Aliás, a parpoleônico fez com que no início do século mundo livre e ticipação do Brasil em movimento desta passado essas políticas procurassem se espacífico na era natureza está condicionada, não só pelos trutura juridicamente. Foi este o papel do nuclear sem ser termos da lei internacional, como pelos Tratado da Santa Aliança, que organizou o composto de da lei interna. Com efeito, o Tratado do equilíbrio de poderes na Europa, até a fase Rio deixa ao arbítrio de cada Estado o uso revolucionário de 1848. Em meados do séEstados que, da Força Armada nos casos em que ele culo 19 esta expressão "equilíbrio de podeembora possa ser necessário. Além disto, uma lei res" (às vezes se dizia "balança de podesoberanos, do Congresso (aliás, de minha autoria) res") se confundiu, mesmo, com a própria reconheçam a submete à aprovação do Legislativo política internacional europeia (e fora da inevitabilidade da qualquer decisão de remessa de forças Europa, naquele tempo, não havia uma aubrasileiras para o exterior, nos cumpritêntica política internacional), mas o certo coexistência. mentos do Tratado do Rio, isto é, nos caé que, tanto as fases das alianças, como da sos em que, sem estarmos diretamente enbalança de poderes, não eram senão o recogajados, se trate aplicar o princípio da sonhecimento da solidariedade coletiva, ou lidariedade coletiva, ou se cuide de manter a seja, da interdependência de interesses e obsegurança internacional. Foi nos termos desta jetivos, embora o princípio não houvesse sido lei que mandamos o nosso contingente a Suez ainda estruturado juridicamente, nem na doutrina nem nos tratados ou convenções. II Essa expressão "solidariedade coletiva" se vulgarizou depois da Primeira Grande Guerra, e, gradativamente, foi soSeguindo a ordem de assuntos adotada no discurso do Prefrendo uma construção jurídica cada vez mais aprimorada, visidente da República, prosseguiremos na análise dos conceisível na série de tratados, em todo mundo, que hoje lhe servem tos nele contidos. de instrumentos. Hoje se reconhece que a interdependência é o propósito final, tanto político quanto jurídico, da comunidade Política de independência internacional. Não se pode, com efeito, conceber um mundo livre e pacífico na era nuclear sem ser composto de Estados Apresenta o Presidente o princípio da autodeterminação que, embora soberanos, reconheçam a inevitabilidade da coenacional dentro da comunidade internacional como submexistência. Assim eu colocaria a questão com o seguinte desentida, na prática, à alternativa seguinte: "Uma política de involvimento: na base, a política de independência, que decorre dependência ou uma posição neutralista". Partindo desta da soberania do Estado; em seguida a prática da solidariedade premissa e da consideração de que o princípio da solidariecoletiva, que deriva da interdependência de interesses e objedade coletiva se impõe especialmente nos dias atuais, o Pretivos; e, enfim, a paz e a segurança internacionais garantidas sidente chega à conclusão de que a política independente "é pela coexistência de todos. Como se vê, no meu modo de penum objetivo e não um método", conclusão enfatizada, em sesar, não é a interdependência (coexistência) um instrumento
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para se atingir a independência, mas sim o contrário, isto é, no mundo nuclear a independência é que se torna um método para melhor se atingir a coexistência, sem a qual a humanidade marcharia para a servidão ou a destruição. Portanto, o Brasil deve praticar a política independente como meio de assegurar a sua liberdade de movimento no quadro móvel da política mundial, e também tornar possível a sua contribuição positiva na manutenção da paz e da segurança internacionais. Não devemos esquecer os princípios da solidariedade coletiva que nos leva a defender certas posições ideológicas que consideramos afinadas à nossa maneira de ser; nem certas posições geográficas ou econômicas, que se identificam com a nossa formação. Mas só nos moveremos com autenticidade, dentro do quadro da solidariedade coletiva, na media em que o fizermos com independência sem subserviência nem aceitação de imposições, porque o fato de um Estado ser o mais forte não significa nem que os seus interesses se coadunem inevitavelmente com os nossos, nem que a sua maneira de conceber a solução de certos problemas gerais não seja errada. A política independente é exatamente aquela que, dentro da solidariedade, assegura o direito de defender interesses básicos nacionais e opinar com franqueza sobre soluções internacionais. Neutralismo
Chegado havia pouco ao poder, que conquistara por estreita margem de votos, o grande presidente Kennedy (foto) cometeu o erro de se deixar envolver pela aventura da agressão à Ilha (...)
A outra alternativa lembrada pelo Presidente para a nossa política, além da independência, seria o neutralismo, que ele considera, com razão, como uma política não condizente com a opção brasileira. Neste ponto estamos de pleno acordo. Para bem dimensionarmos o chamado neutralismo de hoje, devemos ter presente que ele é um conceito fortemente marcado de conteúdo político, e, portanto, bastante diferente da ideia de neutralidade, que era, ainda é, predominantemente jurídica. O caso clássico de neutralidade, que é o da Suíça, foi de fato uma solução senão imposta, pelo menos apresentada à Confederação Helvética, precisamente quando se constituiu, em 1815, com a Santa Aliança, o sistema da balança de poderes da Europa. Depois é que os princípios gerais da neutralidade jurídica foram sendo melhor elaborados, tanto na própria Suíça, quanto em outros países como na Bélgica, também de-
clarada neutra, quando de sua independência da Holanda, em 1831. Só depois da Primeira Guerra Mundial se reconheceu o desaparecimento jurídico de neutralidade belga. Mais modernamente, o direito de neutralidade vem sendo matizado com uma série de noções intermediárias, como, por exemplo, a de não beligerância, outra figura jurídica, forma especial de neutralidade simpatizante com um dos lados em conflito. Foi na base da não beligerância que o presidente Roosevelt pode prestar tão grande auxílio a Churchill, mesmo antes de os EUA entrarem na guerra. Diversamente da neutralidade, o neutralismo não tem nenhuma conceituação jurídica válida. É, de fato, uma forma de oportunismo político que reúne certos Estados contemporâneos no propósito de tirar vantagens dos dois campos da Guerra Fria. Por isto mesmo, o neutralismo não é uma posição política realmente independente e nem se confunde juridicamente com neutralidade. Corresponde mais ao que, há alguns anos se convencionou chamar "terceira posição". Além disso, neutralismo não possui vinculações nem com-
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promissos militares; o que de forma nenhuma repugna a política independente. Quando se verificou, em 1961, a reunião neutralista de Belgrado, o governo brasileiro foi instantemente solicitado a comparecer. No Itamaraty sempre expliquei ao Embaixador da Iugoslávia que não o poderíamos fazer porque, partidários de uma política realmente independente, não nos poderíamos comprometer com teses ou interesses que poderiam não ser nossos. Consultei a respeito o Presidente Quadros, que concordou. Foi por isto que nos fizemos representar por um observador diplomático e não por um delegado. Penso que esta tem sido e deve continuar a ser a nossa atitude, porque, em certos casos, a verdadeira independência só é mantida pela solidariedade contra o opressor, e não pelo neutralismo indiscriminado. Colonialismo Também para termos uma ideia clara do problema colonial, focalizado pelo Presidente, não podemos deixar de fazer um pequeno retrospecto dos pontos mais marcantes da sua evolução. O colonialismo, hoje em agonia, foi o resultado fatal da fase da expansão capitalista conhecida sob nome de imperialismo, ou seja, a criação de novos impérios, no século 19: Lenin, em estudo ainda válido sobre as causas do imperialismo, embora completamente superado quando às previsões que fazia a respeito, mostrou que a expansão colonial imperialista resultou da supersaturação do mercado de capitais e da produção industrial nos países mais avançados, principalmente a Inglaterra, a França e a Alemanha. O Congresso de Berlim, em 1885, foi o reconhecimento oficial da expansão colonialista, que tentou organizar, embora o tenha feito imperfeitamente, de tal forma que hoje, na África, as divisões territoriais decorrentes daquele Congresso ainda provocam lutas, por não se ajustarem às realidades populacionais. De qualquer maneira, entre 1870, que marca o auge da Revolução Industrial, e a Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra se apoderou de 4,5 milhões de milhas quadradas de territórios no além-mar; a França de mais de 3 milhões e a Alemanha, de quase 2 milhões de milhas quadradas. Hoje a Inglaterra deu independência a nove décimos do seu Império. De 600 milhões de pessoas, que em 1939 eram governadas desde Londres, fora da Europa, restam hoje menos de 50 milhões. A França não entendeu quanto era acertada a política de liberação inglesa. Preferiu lutar pela manutenção de seu Império. E sofreu derrotas terríveis desde a Indochina até a Argélia. Foi precisamente um dos maiores soldados da história francesa, o General De Gaulle, que sentiu a necessidade de mudança, liberando a Argélia. Não se pode saber até que ponto os erros do tardio desengajamento francês na Indochina terão contribuído para a dramática situação atual do Vietnã, guerra fluida que os próprios Estados Unidos da América não sabem como vai terminar. O mesmo ocorreu no Congo, adquirido pela Bélgica, comensal retardado do banquete colonial, em virtude do Congresso de Berlim. Até que ponto a negativa belga de seguir oportunamente o exemplo inglês terá ajudado a criar a situação que lá está, não e pode dizer.
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Originariamente a situação de Portugal é distinta, pois ele se encontra em África desde o século 16. Seu império coA foto tirada em lonial não foi contemporâMadri em 24 de neo da expansão imperialisjunho de 1960 ta, nem Portugal, pelas suas mostra o ditador condições internas, poderia espanhol Francisco ser um país imperialista. Franco (à dir.) com o Mas o fato é que, se a situaditador português ção originária do império Antonio de Oliveira português é peculiar, o quaSalazar (à esq.). A dro atual das suas colônias ditadura Salazarista não difere do resto do proteve início em 1932 e blema colonial. Nunca desterminou em 1974, conheci nossas relações escom a Revolução peciais com Portugal. O Emdos Cravos. baixador Negrão de Lima poderá testemunhar sobre o tom das conversas que tive, como Ministro, com meu colega português, e, também, com Salazar, que me sensibilizou com um convite para uma conversa com ele a qual durou hora e meia. Não tive a impressão de ter deixado mal interpretados, pelo velho experiente estadista, os pontos de vista do Brasil. O fato de termos ligações afetivas indestrutíveis com o povo português não pode obrigar o Brasil a seguir a linha da política africana portuguesa nas Nações Unidas; da mesma maneira que o fato de considerarmos Salazar uma marcante figura da História do século 20 não nos obriga a estar de acordo com as suas ideias sobre o Estado e os regimes de governo. Sempre recusei, nas Nações Unidas, aceitar sanções ou avalizar injúrias contra Portugal. Meus discurso, feito em plenário, sobre o problema colonial português, ressaltava nossas afinidades, mas era, ao mesmo tempo, um esforço de cooperação para levar Portugal ao cumprimento dos deveres que assumiu ao entrar nas Nações Unidas. A liquidação do colonialismo é um fato inevitável. Os expedientes do salazarismo para conservá-lo terão a duração que tiver o regime português, o que vem a dizer que corresponde talvez à duração de uma vida humana. O exemplo dos demais países da Europa mostra o erro grosseiro da profecia de Lenin, segundo a qual o fim do colonialismo seria o fim do capitalismo, pelo colapso econômico das metrópoles. Ao contrário, nunca a Europa esteve mais rica e mais próspera quando depois que abandonou as colônias. Inglaterra, França, Holanda, Alemanha, Bélgica e a própria Espanha aí estão como provas irretorquíveis de que o sonho colonial junta a injustiça às dificuldades internas. O exemplo disto é, precisamente, Portugal. Não é só por amor ao povo português que o Brasil deve cumprir o seu dever de membro da ONU, apoiando o fim do colonialismo. É também pelas suas responsabilidades de país novo, e pelo respeito que a sua posição independente e a correção de suas atitudes infundia nos povos africanos e asiáticos. Nossa amizade com Portugal não deve interferir com nossos interesses e respon-
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sabilidades. A comunidade atlântica, de que falou o Presidente, só pode ser erguida tendo como objetivo a democracia e a liberdade para todos os povos dela participante. Só pode ser voltada para o futuro e nunca para o passado, por mais belo que seja este. Leiamos Camões, mas pratiquemos Antônio Vieira, que escreveu uma História do Futuro. Paz e desarmamento Nem sempre a luta pela paz se identifica ao que se chama pacifismo, assim como a independência não se confunde com neutralismo. O pacifismo é uma aparência tópica de neutralismo. Por exemplo, a abstenção neutralista ou pacifista no caso dos foguetes ofensivos soviéticos colocados em Cuba, não conduzia nem a independência e nem a paz. Mas, se as responsabilidades do Brasil não lhe apontam o caminho do neutralismo pacifista, no tocante aos deveres de consolidar a paz e a segurança internacionais, não há dúvida de que tais responsabilidades só poderão ser desempenhadas através de uma posição independente (sempre no sentido aqui atribuído a esta expressão) no Conselho de Segurança das Nações Unidas e na Conferência de Desarmamento de Genebra. A prova do prestígio mundial brasileiro na prática da sua política independente, pode ser apresentada exatamente pela sua eleição, em 1962, para o Conselho, com o maior número de votos do pleito e pela sua escolha para integrar o grupo de potências incumbidas de discutir o desarmamento em Genebra. A ingente tarefa cometida a esta conferência não permite progressos rápidos nas negociações, mas o fato de ela não se ter dissolvido, apesar de tantas dificuldades, mostra que sua existência é uma garantia.
Ora, o aspecto novo trazido pela Conferência, em comparação com o órgão anterior das Nações Unidas que se ocupava com o desarmamento, é exatamente a presença, no seu seio, de países capazes de seguir, quando necessário, uma linha independente. Existem oito, escolhidos pelos dois lados (Ocidente e Bloco Soviético) para tal fim e, entre eles, estava o Brasil. No ano de 1961 e 1962, em que chefiei a delegação brasileira, pude avaliar a importância que impregna nosso papel naquela reunião. Pode-se, mesmo, assegurar que o principal progresso da Conferência, situado no problema da cessação dos ensaios nucleares, não seria atingido se não fosse a participação enérgica e hábil dos oito países: Brasil, Birmânia, Egito, Etiópia, Índia, México, Nigéria e Suécia. E, dentro da ação deste grupo; o trabalho brasileiro pode ser acompanhado com setação objetiva dos arquivos do Itamaraty. Também nos estudos referentes ao tratado geral do desarmamento, que é a segunda tarefa cometida à Conferência (parte mais difícil e de negociação mais demorada) a ação brasileira se fez sentir em várias das decisões já adotadas. O que importa assinalar é que a posição independente dos oito países escolhidos exatamente para este comportamento, se impõe, em benefício dos dois lados e de todo o mundo. Os problemas do desarmamento, tão enormes e complicados, que não é raro a verificação de que as duas superpotências tendem a se aproximar, para evitar soluções que facilitariam a tarefa da Conferência. Nestes momentos é que a colaboração livre dos países não comprometidos, através de entendimentos com os dois lados e sugestões hábeis, se faz sentir e se torna mais útil do que qualquer outra forma de ação. A imprensa mundial, pelos seus representante em Genebra, várias vezes reconheceu isso e quem compulsar as atas dos trabalhos da Conferência não tardará a se convencer do mesmo. Ao longo desta exposição, portanto, podemos verificar que a independência da nossa política externa nos termos afirmados pelo Presidente não difere em nada de substancial daquela que procuramos praticar. Os pontos de divergência situam-se, antes, na técnica de aplicação, a qual, na minha opinião, deve ser revista pelo Governo, nos pontos assinalados. Tal política é uma imposição inexorável das condições atuais do Brasil, e o será cada vez mais, para o futuro a não ser que prefiramos atender a imposições de grupos a serviços de interesses antinacionais ou assaltados pelo furor ditatorial e soldemos nós mesmos as grilhetas da nossa servidão, sem nenhum proveito para o mundo.
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A crise acabou?
Roberto Fendt Economista e colaborador regular do jornal Diário do Comércio
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Austrália elevou a taxa de juros em 0,25% ponto percentual, para 3,25% ao ano. No mundo desenvolvido em recessão, a notícia causou furor, sendo recebida como mais um prenúncio do fim da crise.
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o início deste mês de outubro, o Reserve Bank (Banco Central) da Austrália elevou a taxa de juros em 0,25% ponto percentual, para 3,25% ao ano. No mundo desenvolvido em recessão, a notícia causou furor, sendo recebida como mais um prenúncio do início do fim da crise que atormenta igualmente países desenvolvidos, emergentes e em desenvolvimento. Em decorrência da notícia ocorreu uma nova rodada de elevação dos preços das ações nas principais bolsas de valores mundiais – inclusive na nossa Bovespa. O evento, evidentemente, deveria ter causado um impacto pequeno nos mercados de valores mundiais. Primeiro, porque na distante Austrália ocorreu um aumento pouco expressivo na sua taxa básica de juros, significativo apenas como indicador de uma reversão de política em um país que supostamente estava saindo da recessão para o combate às pressões inflacionárias. Segundo, porque a Austrália
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não estava em recessão, sendo um desses casos raros de países desenvolvidos que não haviam sido contagiados pela recessão que se iniciou nos EUA e se estendeu à maioria dos países. Portanto, em um mercado bem informado, não haveria como causar furor, e servir de indicador de recuperação, a alta da taxa australiana. Finalmente, elevações de taxas de juros geralmente são ruins para as bolsas de valores, já que aumentam a atratividade da renda fixa vis-à-vis as ações. Essa história exemplar mostra a disposição de todos em acreditar que a recuperação está na volta da esquina. E acreditar nisso, ajuda. Não que não haja evidências robustas da recuperação em diversos mercados. A exemplo da Austrália, outros países desenvolvidos escaparam dos piores rigores da recessão, como a Noruega e a França. Outros, como os EUA e a maioria dos países da União Europeia, conseguiram evitar que a queda na produção e no emprego assumisse contornos semelhantes ao da Grande Depressão, como muitos temiam. Recorde-se que, a exemplo da Depressão, a crise iniciou-se no mercado financeiro. Após a débâcle do banco de investimentos Lehman Brothers, bancos centrais e Tesouros dos países desenvolvidos tomaram medidas concretas para prover apoio aos bancos e instituições financeiras de seus países. As medidas postas em prática incluíram tanto ações voltadas para apoiar a liquidez de instituições individuais, como medidas de caráter sistêmico. Entre as principais ações destacamse o fortalecimento da base de capital dos bancos, evitando o aprofundamento do processo de desalavancagem dessas instituições, particularmente após o 15 de setembro do ano passado; a concessão de garantias dos passivos do sistema bancário, de forma a assegurar a continuidade do acesso dos bancos às fontes tradicionais de financiamento; e a compra ou garantia de ativos ilíquidos ou non performing dos bancos, de forma a reduzir a exposição dessas instituições a perdas significativas (que, de resto, começam a aparecer na safra de balanços em publicação). O que estava em risco, na ocasião, era um processo cumulativo de quebras no sistema bancário, o que teria consequências desastrosas para a liquidez e solvência do sistema, o crédito e a atividade econômica. Os resultados dessas intervenções são conhecidos o suficiente para merecer aprofundados comentários aqui. Basta apontar aqui os comentários do Diretor Executivo do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, na reunião anual do FMI em Istambul, que "a coopera-
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Stephen Jaffe/AFP
Dominique StraussKahn: a cooperação global salvou o mundo de uma crise muito pior.
ção global salvou o mundo de uma crise muito pior (que a Grande Depressão)" e que chegou a hora dos líderes mundiais tomarem a iniciativa de conformar um mundo pós-crise. Essa cooperação, como não poderia deixar de ser, deu-se sob o desenrolar da crise e teve caráter informal, tendo em vista os interesses dos países envolvidos de enfrentar os desafios comuns com soluções partilhadas, visando restabelecer o funcionamento sistêmico do mercado financeiro – do que resultaram pacotes de apoio financeiro aos mercados da ordem de 2% do PIB mundial. Sempre em busca de nova identidade, perdida com o longo período de expansão sustentada da economia mundial, o FMI busca agora consolidar seu papel na recuperação apostando em quatro áreas distintas: a revisão do mandato do Fundo; seu papel financeiro; a nova supervisão internacional do sistema financeiro; e a sua própria governança. Em paralelo a esse esforço, reguladores nos EUA e na União Europeia trabalham no novo formato das instituições nacionais sob suas supervisões, em paralelo ao que pretende fazer o FMI. Dessa nova regulamentação poderão resultar menos riscos ao sistema sem tolher exageradamente a criatividade das instituições, ou poderá produzir uma camisa de força que, embora restabelecendo a confiança dos investidores, impeça a rápida criação de novos produtos, adequados à dinâmica da economia mundial. Qualquer que seja o novo formato regulatório e o papel das instituições multilaterais, a percepção hoje é de que a recuperação no mundo desenvolvido será lenta, conforme mostra o World Economic Outlook de outubro do FMI. Nesse quadro, ressalta-se a contribuição positiva dos países asiáticos para a retomada da atividade econômica global, que retomaram o crescimento, juntamente com a estabilização da atividade econômica ou um modesto crescimento em algumas economias. Muitos países emergentes estão a caminho de sair mais rapidamente da recessão que as economias avançadas, em parte ajudadas pelo aumento dos preços das commodities que comandam os valores de suas exportações, e calcadas nas retomadas dos seus mercados internos. Contrariamente, a crise atingiu mais fortemente países endividados em moeda estrangeira, como alguns localizados no Leste Europeu, cuja retomada possivelmente ficará para o fim da fila. Os desafios à recuperação da economia mundial persistem. Os principais se referem ao restabelecimento da saúde do sistema financeiro e à continuidade das medidas ma-
Shannon Stapleton/Reuters
croeconômicas de apoio à atividade econômica. Em algumas das economias avançadas esses desafios foram enfrentados com mais sucesso que em outras, mas de forma geral, para todo o mundo desenvolvido o desafio deverá permanecer além de 2010. Nesse contexto, do ponto de vista monetário, a questão centra-se no momento adequado para encerrar o afrouxamento das políticas monetárias e retirada gradual e progressiva das fortes injeções de recursos praticadas pela maioria dos bancos centrais. Há uma percepção de que os desafios da reversão da política monetária são distintos nos casos dos países desenvolvidos e emergentes, em razão das diferentes pressões inflacionárias que as políticas expansionistas podem provocar nos dois grupos de países. Nos países desenvolvidos essas pressões são menores, permitindo que as políticas postas em prática para acomodar a liquidez podem ter uma sobrevida maior que as mesmas políticas implementadas nos países emergentes. Em síntese, a diferença essencial entre desenvolvidos e emergentes é o tamanho do hiato dos PIBs potenciais dos dois grupos de países. Há uma percepção de que os emergentes estão mais rapidamente recuperando a capacidade ociosa que ocorreu após o início da crise, por oposição aos países desenvolvidos. Se assim é, provavelmente políticas monetárias menos expansionistas farão mais sentido daqui para frente nos países emergentes. Além disso, em muitos desses países está chegando a hora de encerrar os estímulos de natureza fiscal que contribuíram para apressar a fase recessiva do ciclo na maioria dos emergentes. Entre nós, os sinais do fim da crise são ainda mais claros. Estudos com indicadores antecedentes mostram que tivemos dois trimestres de contração na atividade econômica, seguidos de estabilização e início da retomada. Esta provavelmente já se iniciou, tornando talvez positiva – embora muito próxima de zero – a taxa de crescimento do PIB brasileiro em 2009. Outros indicadores corroboram esses exercícios estatísticos. No segundo trimestre, o PIB experimentou crescimento de 1,9%, depois de queda de 3,4% no quarto trimestre de 2008 e de 1% no primeiro trimestre deste ano. A recuperação brasileira no segundo trimestre acompanha a retomada de outros países, como Japão (0,6%), Alemanha (0,3%) e França (0,3%). A despeito desses desenvolvimentos, no primeiro semestre ainda amargamos queda no PIB de 1,5% e na produção industrial, de 13,4%. Na China a recessão passou ao largo, já que em agosto as vendas no varejo cresceram 15,4% em relação a agosto
Na China a recessão passou ao largo, já que em agosto as vendas no varejo cresceram 15,4% em relação a agosto de 2008. Parece prematuro afirmar que a crise acabou tout court. Se a recuperação parece estar se consolidando em muitos países emergentes, mesmo nesse grupo de nações o fenômeno não é generalizado.
Frantzesco Kangaris/AFP
Arquivo/AFP
de 2008 e a produção industrial, 12,3%. Parece prematuro afirmar que a crise acabou tout court. Se a recuperação parece estar se consolidando em muitos países emergentes, mesmo nesse grupo de nações o fenômeno não é generalizado. O México, por exemplo, amargou queda de 1,1% no PIB no segundo trimestre. Entre as economias avançadas, contraíramse no segundo trimestre, entre outros, os PIBs dos EUA (-0,3%), Espanha (-0,5%), Reino Unido (-0,7%) e Itália (-0,5%). Estamos a caminho de um ano eleitoral e com forte expansão fiscal. A capacidade ociosa está se reduzindo e há riscos de pressões inflacionárias no futuro, embora em 2010 sejamos auxiliados pelos baixos reajustes dos preços sujeitos a correção pelo IGPM, como alguns serviços públicos e a maioria dos contratos de aluguel. O desafio brasileiro será sustentar a retomada em curso sem criar pressões inflacionárias desestabilizadoras no futuro.
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OMUNDO AINDA CORRE PERIGO
Cíntia Shimokomaki
Divulgação
Carl Weinberg: o sistema financeiro mal foi consertado, os bancos ainda não estão operando como bancos e os mercados imobiliários nos Estados Unidos e Europa ainda não se recuperaram.
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Bay Ismoyo/AFP
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m ano após a crise financeira que abalou o mundo, os mercados e as empresas retomam o otimismo, os países voltam a apresentar sinais de recuperação, mas ainda é cedo para dizer que o mundo saiu da crise. Até mesmo países que teriam sentido menos o impacto da recessão econômica, como Brasil, não estão ilesos e podem ser prejudicados pelos efeitos do estouro de uma nova bolha, a do mercado de commodities. O alerta foi feito pelo economista-chefe do High Frequency Economics (HFE), Carl Weinberg. Para o economista norte-americano, ainda não é hora de afirmar que a crise foi superada. "O sistema financeiro mal
foi consertado, os bancos ainda não estão operando como bancos e os mercados imobiliários nos Estados Unidos e Europa ainda não se recuperaram", exemplificou o economista, cuja instituição ganhou reconhecimento por prever em 2005 – um ano antes das demais – o colapso do mercado imobiliário norte-americano. Com a recessão, os Estados Unidos tiveram grandes transformações, principalmente entre a população. "Houve uma profunda mudança nos consumidores", analisou Weinberg. Um dos motivos, apontou, é a contração dos créditos domésticos nos EUA. No relatório semanal do HFE de 27 de outubro, o economista revela que a recuperação virá
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Wang Zhao/AFP
Enquanto os lares se ajustam aos níveis de crédito e reduzem o padrão de vida, o gasto do consumidor será limitado pelo ritmo do crescimento de renda.
com pouco ou nenhum crédito aos norte-americanos. "Enquanto os lares se ajustam aos níveis mais elevados de crédito e reduzem seu padrão de vida, o crescimento do gasto do consumidor será limitado pelo ritmo do crescimento de renda real", disse Weinberg. Os norte-americanos passaram de devedores para poupadores, ainda que por uma pequena margem. "Os lares norte-americanos estão pagando suas dívidas", afirmou. Segundo o economista, a taxa de poupança é uma das causas da atual recessão, mas isto não significa que ela seja
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negativa, já que parte dos recursos será destinada a investimentos em setores como tecnologia e produtividade. Retomada lenta Para Weinberg, a recuperação no resto do mundo também será gradativa. A Europa terá uma retomada de crescimento mais lenta do que nos EUA, mesmo com os pacotes de ajuda dos governos. "A reação às políticas foi menor e houve uma retração maior na atividade econômica", justificou.
Bertrams/CWS/NYTS
Divulgação
O ano de 2010 será um período de ajustes na economia. Os EUA crescerão em decorrência do estímulo fiscal, mas o desemprego continuará aumentando.
As economias emergentes, que estavam entre as primeiras a superarem a crise, também devem se manter alertas. O especialista acredita que as commodities amorteceram os efeitos da crise nos países em desenvolvimento. O risco, aponta, ainda existe. "A pergunta que devemos fazer é: por que eles se recuperaram? Houve uma queda na produção e, consequentemente, nos insumos. Portanto, os preços deveriam cair, mas houve uma corrida especulativa dos preços das commodities", ponderou Weinberg, acrescentando que atualmente existe uma "falsa esperança". "A bolha das commodities deve se deteriorar", declarou. Futuro As perspectivas para 2010 ainda são de ajustes na economia. Weinberg não segue as previsões de analistas que
adotam os gráficos em forma de "L" (leve inclinação para cima) ou "W" (recuperação, queda e nova recuperação), mas garante que ainda haverá uma queda no ano que vem. "O ano de 2010 ainda será um ano devagar para os EUA", afirmou, acrescentando que o país crescerá inicialmente em decorrência do estímulo fiscal, mas que o nível de desemprego continuará aumentando. O mercado de trabalho, aliás, é uma fonte de preocupação não só para a maior economia do mundo, como para outros países. "O desemprego crescente é um risco para distúrbios políticos e sociais ao redor do mundo", alertou. De acordo com Weinberg, a recuperação virá somente no início de 2011, depois que as taxas de poupança se estabilizarem e a população retomar seus hábitos de consumo. "Esta foi a primeira crise liderada pelos consumidores, mas ela não vai durar para sempre."
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Fotos: Reprodução
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A revolução globalista Olavo de Carvalho Jornalista, escritor e professor de Filosofia
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ara quem quer que deseje se orientar na política de hoje – ou simplesmente compreender algo da história dos séculos passados –, nada é mais urgente do que obter alguma clareza quanto ao conceito de “revolução”. Tanto entre a opinião pública quanto na esfera dos estudos acadêmicos reina a maior confusão a respeito, pelo simples fato de que a ideia geral de revolução é formada quase sempre na base das analogias fortuitas e do empirismo cego, em vez de buscar os fatores estruturais profundos e permanentes que definem o movimento revolucionário como uma realidade contínua e avassaladora ao longo de pelo menos três séculos. Só para dar um exemplo ilustre, o historiador Crane Brinton, em seu clássico The Anatomy of Revolution, busca extrair um conceito geral de revolução da comparação entre quatro grandes fatos históricos tidos nominalmente como revolucionários: as revoluções inglesa, americana, francesa e russa. O que há de comum entre esses quatro processos é que foram momentos de grande fermentação ideológica, resultando em mudanças substantivas do regime político. Bastaria isso para classificá-los uniformemente como “revoluções”? Só no sentido popular e impressionista da palavra. Embora não podendo, nas dimensões deste escrito, justificar todas as precauções conceptuais e metodológicas que me levaram a esta conclusão, o que tenho a observar é que as diferenças estruturais entre os dois primeiros e os dois últimos fenômenos estudados por Brinton são tão profundas que, apesar das suas aparências igualmente espetaculares e sangrentas, não cabe classificá-los sob o mesmo rótulo. Só se pode falar legitimamente de “revolução” quando uma proposta de mutação integral da sociedade vem acompanhada da exigência da concentração do poder nas mãos de um grupo dirigente como meio de realizar essa mutação. Nesse sentido, jamais houve revoluções no mundo anglo-saxônico, exceto a de Cromwell, que fracassou, e a Reforma Anglicana, um caso muito particular que não cabe comentar aqui. Na Inglaterra, tanto a revolta dos nobres contra o rei em 1215 quanto a Revolução Glo-
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No alto, pintura de Léon Cognet (1794-1880) sobre a Revolução Francesa; acima, foto da Revolução Russa.
riosa de 1688 buscaram antes a limitação do poder central do que a sua concentração. O mesmo aconteceu na América em 1786. E em nenhum desses três casos o grupo revolucionário tentou mudar a estrutura da sociedade ou os costumes estabelecidos, antes forçando o governo a conformar-se às tradições populares e ao direito consuetudinário. Que pode haver de comum entre esses processos, mais restauradores e corretivos do que revolucionários, e os casos da França e da Rússia, onde um grupo de iluminados, imbuídos do projeto de uma sociedade totalmente inédita em radical oposição com a anterior, toma o poder firmemente resolvido a transformar não somente o sistema de governo, mas a moral e a cultura, os usos e costumes, a mentalidade da população e até a natureza humana em geral? Não, não houve revoluções no mundo anglo-saxônico e bastaria esse fato para explicar a preponderância mundial da Ingla-
Lauro Alves/Diário de Santa Maria/Ag. O Globo
MST: movimento quer uma nova ordem mundial socialista.
terra e dos EUA nos últimos séculos. Se, além dos fatores estruturais que as definem – o projeto de mudança radical da sociedade e a concentração do poder como meio de realizá-lo –, algo há de comum entre todas as revoluções, é que elas enfraquecem e destroem as nações onde ocorrem, deixando atrás de si nada mais que um rastro de sangue e a nostalgia psicótica das ambições impossíveis. A França, antes de 1789, era o país mais rico e a potência dominante da Europa. A revolução inaugura o seu longo declínio, que hoje, com a invasão islâmica, alcança dimensões patéticas. A Rússia, após um arremedo de crescimento imperial artificialmente possibilitado pela ajuda americana, desmantelou-se numa terra-de-ninguém dominada por bandidos e pela corrupção irrefreável da sociedade. A China, após realizar o prodígio de matar de fome trinta milhões de pessoas numa só década, só se salvou ao renegar os princípios revolucionários que orientavam a sua economia e entregar-se, gostosamente, às abomináveis delícias do livre mercado. De Cuba, de Angola, do Vietnã e da Coreia do Norte, nem digo nada: são teatros de Grand Guignol, onde a violência estatal crônica não basta para esconder a miséria indescritível. Todos os equívocos em torno da ideia de “revolução” vêm do prestígio associado a essa palavra como sinônimo de renovação e progresso, mas esse prestígio lhe advém precisamente do sucesso alcançado pelas “revoluções” inglesa e americana que, no sentido estrito e técnico com que emprego essa palavra, não foram revoluções de maneira alguma. Essa mesma ilusão semântica impede o observador ingênuo – e incluo nisso boa parte da classe acadêmica especializada – de enxergar a revolução onde ela acontece sob a camuflagem de transmutações lentas e aparentemente pacíficas, como, por exemplo, a implantação do governo mundial que hoje se desenrola ante os olhos cegos das massas atônitas. O critério distintivo suficiente para eliminar todas as hesitações e equívocos é sempre o mesmo: com ou sem transmutações súbitas e espetaculares, com ou sem violência insurrecional ou governamental, com ou sem discursos de acusação histéricos e matança geral dos adversários, uma revolução está presente sempre que esteja em ascensão ou em curso de implantação um projeto de transformação profunda da sociedade, se não da humanidade inteira, por meio da concentração de poder.
É por não compreenderem isso que muitas vezes as correntes liberais e conservadoras, opondo-se aos aspectos mais vistosos e repugnantes de algum processo revolucionário, acabam por fomentá-lo inconscientemente sob algum outro de seus aspectos, cuja periculosidade lhes escape no momento. No Brasil de hoje, a concentração exclusiva nos males do petismo, do MST e similares pode levar liberais e conservadores a cortejar certos “movimentos sociais”, na ilusão de poder explorá-los eleitoralmente. O que aí escapa à visão desses falsos espertos é que tais movimentos, ao menos a longo prazo, desempenham na implantação da nova ordem mundial socialista um papel ainda mais decisivo que o da esquerda nominalmente radical. Outra ilusão perigosa é a de crer que o advento da administração planetária é uma fatalidade histórica inevitável. A facilidade com que a pequena Honduras quebrou as pernas do gigante mundialista mostra que, ao menos por enquanto, o poder desse monstrengo se constitui apenas de um blefe publicitário monumental. É da natureza de todo blefe extrair sua substância vital da crença fictícia que consegue inocular em suas vítimas. Com grande frequência vejo liberais e conservadores repetindo os slogans mais estúpidos do globalismo, como por exemplo o de que certos problemas – narcotráfico, pedofilia etc. – não podem ser enfrentados em escala local, requerendo antes a intervenção de uma autoridade global. O contrasenso dessa afirmativa é tão patente que só um estado geral de sonsice hipnótica pode explicar que ela desfrute de alguma credibilidade. Aristóteles, Descartes e Leibniz ensinavam que, quando você tem um problema grande, a melhor maneira de resolvê-lo é subdividi-lo em unidades menores. A retórica globalista nada pode contra essa regra de método. Ampliar a escala de um problema jamais pode ser um bom meio de enfrentá-lo. A experiência de certas cidades americanas, que praticamente eliminaram a criminalidade de seus territórios usando apenas seus recursos locais, é a melhor prova de que, em vez de ampliar, é preciso diminuir a escala, subdividir o poder, e enfrentar os males na dimensão do contato direto e local em vez de deixar-se embriagar pela grandeza das ambições globais. Que o globalismo é um processo revolucionário, não há como negar. E é o processo mais vasto e ambicioso de todos. Ele abrange a mutação radical não só das estruturas de poder, mas da sociedade, da educação, da moral, e até das reações mais íntimas da alma humana. É um projeto civilizacional completo e sua demanda de poder é a mais alta e voraz que já se viu. Tantos são os aspectos que o compõem, tal a multiplicidade de movimentos que ele abrange, que sua própria unidade escapa ao horizonte de visão de muitos liberais e conservadores, levando-os a tomar decisões desastradas e suicidas no momento mesmo em que se esforçam para deter o avanço da "esquerda". A ideia do livre comércio, por exemplo, que é tão cara ao conservadorismo tradicional (e até a mim mesmo), tem sido usada como instrumento para destruir as soberanias nacionais e construir sobre suas ruínas um onipotente Leviatã universal. Um princípio certo sempre pode ser usado da maneira errada. Se nos apegamos à letra do princípio, sem reparar nas ambiguidades estratégicas e geopolíticas envolvidas na sua aplicação, contribuímos para que a ideia criada para ser instrumento da liberdade se torne uma ferramenta para a construção da tirania.
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Federação brasileira
Christian Knepper/Embratur
Necessidade de Fortalecimento das Competências dos Estados-Membros
Congresso Nacional, em Brasília, é o órgão constitucional que exerce, no âmbito federal, as funções legislativa e fiscalizatória.
A
Patrícia Cruz/Luz
Alexandre de Moraes Professor doutor e livredocente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor titular da Faculdade Presbiteriana Mackenzie. Desde 2007 exerce o cargo de Secretário Municipal de Transportes e as presidências da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e SPTrans. Atualmente, acumula a direção da Secretaria Municipal de Serviços
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Introdução
manutenção do equilíbrio democrático depende do bom entendimento, definição, fixação de funções, deveres e responsabilidades entre os três Poderes, bem como a fiel observância da distribuição de competências, caracterizado do pacto federativo, consagrado constitucionalmente no Brasil desde a nossa primeira Constituição Republicana, em 1891. A luta pela concretização democrática na América Latina e, especialmente no Brasil, que seguiu os modelos federalista e presidencialista norte-americanos, tem gerado grandes debates sobre as difíceis escolhas sobre os modelos institucionais a serem implantados, os poderes e funções presidenciais, os controles e a fiscalização; bem como a divisão de competências entre União, Estados e Municípios. No processo dinâmico da História, o Estado Federal e presidencialista apresentam mudanças, inicialmente caracterizadas por um modelo idealizado fraco (Rei sem Coroa), que nunca chegou a existir ou ser aplicado na prática, logo se tornando, por um processo político autoritário e centralizador, em torno da figura da União e do presidente; e mais modernamente, em uma tentativa de ampliação dos poderes de controles parlamentares e judiciais em relação ao Executivo e à divisão constitucional de compe-
tências, para garantia de maior estabilidade democrática e força aos Estados membros. Para tanto, é necessária a plasticidade indispensável ao mecanismo governamental que acabou por gerar, em todas as organizações políticas modernas, regras de centralização de competências na União e que tornaram forte o Presidente da República e o Congresso Nacional, ao mesmo tempo que se tentou prever controles que não o fizessem absorvente, mas uma força motriz do Estado que não degenerasse para uma verdadeira tirania, resguardando-se, dessa forma, o ideal democrático, a separação de poderes e a autonomia dos Estados-membros (MARCH, James G. OLSEN, Johan P. O novo institucionalismo: fatores organizacionais na vida política. Revisão de Ciência política Americana nº 78. Set. 1984 p. 738; RAE, Douglas. A consequência política de leis eleitorais. New Heaven: Imprensa da Universidade de Yale, 1967. p. 30 ss: SHUGART. Mathew Soberg. CAREY, John. Presidentes e Assembleias. Cambridge: Imprensa da Universidade de Cambridge, 1992, p. 11 ss; MCCUBBIN, Mathews; SULLIVAN, Terry. Congresso: estrutura política. Cambridge: Imprensa da Universidade de Cambridge, 1987. p. 13 ss). Histórico e desenvolvimento do federalismo A história do federalismo inicia-se com a Constituição norte-americana de 1787; a análise de suas características, bem como do desenvolvimento de seus institutos vem sendo realizada desde os escritos de Jay, Madison e Hamilton, nos artigos federalistas, publicados sob o codinome Publius, durante os anos de 1787 - 1788, até os dias de hoje, e mostra que se trata de um sistema baseado principalmente na manutenção de autonomia dos Estados-membros, com a consagração de divisão constitucional de competências (COOLEY, Thomas McIntyre, The general principles of constitutio-
nal in the United States of America. 3 ed. Boston: Little, Brown and Company, 1898. P. 52; ROBISON, Donald L. To the best of my ability: the presidency the constitution. New York: W. W. Norton & Company, 1987. p. 18-19). Em 1887, em seu centenário, o estadista inglês William Gladstone afirmou que a Constituição dos Estados Unidos "era a mais maravilhosa obra jamais concebida num momento dado pelo cérebro e o propósito do Homem". É importante salientar, dentro dessa perspectiva da "mais maravilhosa obra jamais concebida", que as questões do federalismo e do regime presidencialista foram duas das mais discutidas durante a Convenção norte-americana. A Constituição dos Estados Unidos da América foi aprovada por estreita margem de convencionais. Nas convenções de ratificação nos Estados, poucos votos separaram as forças pró-Constituição (os federalistas, como eram chamados) e os opositores derrotados da Constituição (conhecidos acomo antifederalistas). Luca Levi lembra que, "a federação constitui, portanto, a realização mais alta dos princípios do constitucionalismo. Com efeito, a ideia do Estado de direito, o Estado que submete todos os poderes à lei constitucional, parece que pode encontrar sua plena realização somente quando, na fase de uma distribuição substancial das competências, o executivo e o judiciário assumem as características e as funções que têm no Estado Federal" (BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco (Coord.) Dicionário de política. v.1, p. 482. Conferir ainda: DUVERGER, Maurice. Droit constitutionnel et institutions politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1995. p. 265). A Federação americana, portanto, nasceu adotando a necessidade de um poder central com competências suficientes para manter a união e coesão das antigas colônias, garantindo-lhes, como afirmado por Hamilton, a oportunidade máxima para a
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A história do federalismo inicia-se com a Constituição norte-americana de 1787. Trata-se de um sistema baseado principalmente na manutenção de autonomia dos Estados-membros, com a consagração de divisão constitucional de competências.
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consecução da paz e liberdade contra o facciosismo e a insurreição (The Federalist papers, nº IX) e permitindo à União realizar seu papel aglutinador dos diversos Estados-membros e de equilíbrio no exercício das diversas funções constitucionais delegadas aos três poderes de Estado. Como bem descreve Malbin, "a intenção dos elaboradores da Carta Constitucional Americana foi justamente estimular e incentivar a diversidade, transcendendo as facções e trabalhando pelo bem comum" (MALBIN, J. Michel. A ordem constitucional americana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p. 144). A Carta norte-americana consagrou, ainda, a pluralidade de centros locais de poder, com autonomia de autogoverno e auto-administração, coordenado pelo poder central, cujas competências seriam indicadas expressamente pela Constituição Federal. A ideia de preservação da liberdade na elaboração do federalismo não deixou de ser salientada por Alexis de Tocqueville, ao comentar a formação da nação americana (TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América: leis e costumes. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 37 ss). O regime presidencialista e o federalismo dualista nasceram em um mesmo momento, sob o prisma da necessidade de, ao mesmo tempo, garantir as autonomias locais e preservar a união e a coesão de todas as antigas colônias. Carl Friedrich salienta com enorme clareza a ligação do Estado Federal com o presidencialismo, ao colocar como um dos três elementos básicos do federalismo a existência de um órgão executivo que possa aplicar as leis aprovadas pelo Legislativo (FRIEDRICH, Carl J. Gobierno constitucional y democracia. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1975. p. 405). Note-se, porém, que a evolução do federalismo dual, para um modelo de federalismo centrípeto e cooperativo, possibilitou maior centralização de poderes na União, seja no Presidente da República, seja no Congresso Nacional. A característica básica do federalismo dualista, presente nos Estados Unidos nos séculos 18, 19 e início do 20, era a existência de duas esferas de poderes estanques, em que a divisão de poder entre a União e os governos estaduais era prevista diretamente no texto constitucional, baseava-se na ideia de dois campos de poder mutualmente exclusivo e reciprocamente limitadores, pelo qual os Estados e a União teriam suas áreas exclusivas de autoridade (SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norteamericano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 2627. Conferir ainda: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso... Op. cit. p. 52). Após esse primeiro momento do federalismo, as condições da conjuntura política e econômica, principalmente depois da Crise
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A Constituição dos Estados Unidos da América foi aprovada por estreita margem de convencionais.
da Bolsa americana e a partir das medidas adotadas no New Deal, trouxeram grandes alterações ao federalismo norte-americano e acabaram por gerar um novo modelo federal americano (conferir, nesse sentido, diversas decisões da Corte Suprema NorteAmericana: Shechter, Sunshine v. Adkins, Junta Nacional de Relações trabalhistas v. Jones & Lauglin Steel Corp., ambas de 1940, Kirschbaum v. Walling (1946), Martino v. Michigan Window Cleaning Co. (1946), Mabee v. White Plains Pub. Co. (1946), entre outros), mais centrípeto e cooperativo, e caracterizado, principalmente, como salientado por Karl Loewestein, pelo aumento do poder político do Presidente da República, aumetnando sua característica centralizadora e de personificação dos interesses do país (LOEWESTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1962. p. 362). O federalismo clássico, como concebido inicialmente pelos fundadores norte-americanos, foi muito abalado, principalmente, pelas questões econômicas, que exigiram do Poder Central maior unidade decisória e comando; consequentemente, gerou aumento gradativo de poder político ao Congresso Nacional, em detrimento das Assembleias locais ( BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Rio de Janeiro: Forense. 1986. p. 317).
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Dessa forma, à evolução centralizadora do federalismo correspondeu um maior fortalecimento do regime presidencialista de governo e do Legislativo Nacional. A evolução do federalismo e o fortalecimento do presidencialismo, portanto, caminharam conjuntamente, como concorda Bernard Schwartz, ao analisar o fortalecimento do Governo Nacional, ensinando ser o atual federalismo americano caracterizado pelo predomínio da autoridade federal, para concluir que "o sistema social e econômico americano tem estado sujeito cada vez mais à regulamentação e ao controle por Washington. O poder do Governo nacional sobre o comércio é interpretado de modo a sujeitar até mesmo empreendimentos com somente efeito remoto sobre a economia nacional a minuciosas normas federais. E, à medida que a autoridade da Nação a este respeito cresceu, a dos estados sofreu correspondente decréscimo, pois a ação estadual, no sistema americano, é barrada quando é validamente exercido o poder federal incompatível com ela " ( SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1984. p. 74). Prevaleceu, portanto, no federalismo norte-americano, a ideia de fortalecimento do Congresso Nacional e hipertrofia na criação do presidencialismo e da figura central do Presidente da República, tendo salientado Isaac Kramnic, que "há poucos símbolos mais importantes da Revolução de 1787 que o espantoso poder que a Constituição deu ao novo primeiro-magistrado, encarnação do ideal de autoridade, governo e poder. O presidente dos Estados Unidos era um legislador que com um penada estava autorizado a vetar leis congressuais, só podendo ser vencido nesses casos por dois terços do Congresso. Era um líder militar no comando total das forças armadas. Era o supremo magistrado que podia perdoar crimes contra a nação, podia nomear todos os juízes federais, podia fazer todos os tratados, com o conselho e a aprovação do Senado. Se reeleito, podia governar sem limites: a exigida rotatividade no cargo seria apenas uma das vítimas de 1787. Para Edmund Randolph, isso era demais: ali estava o feto da monarquia. Na grande discussão nacional que se seguiu, os antifederalistas proclamaravam que o executivo delineado no artigo 2 da Constituição era presidentegeneral, ou, mais propriamente, nosso rei, que tinha poderes que excediam os dos mais despóticos monarcas de que temos notícia nos tempos modernos (comentários de Isaac Kramnic, na apresentação da obra. MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John. The Federalist papers 1787 - 1788. Edição integral. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 27 Obviamente, essa evolução gerou reflexos importantíssimos na distribuição de competências administrativas e legislativas entre a União e os Estados-Membros em todos os países que seguiram o modelo norte-americano, inclusive no Brasil. No Brasil, apesar dos diversos constituintes, desde 1891 até 1988, terem criado e mantido o modelo de Estado Federal, com união indissolúvel dos entes, que possuem auto-organização,
Constituinte Medeiros Neto assina a Constituição de 1934. Ao lado, imagem da Constituição com as assinaturas de todos os membros que fizeram parte da Assembleia Constituinte.
não resta dúvidas de que houve gradual redução nas competências legislativas dos Estados-membros. A Constituição Republicana de 1891 previu importante sistema de repartição de competências, com matérias taxativas e não tão abrangentes à União e conferindo aos Estados-membros "em geral, todo e qualquer outro poder ou direito, que lhes não for negado por cláusula expressa ou implicitamente contido nas cláusulas expressas da Constituição" (art. 65, §2º). Tal texto bastou para que alguns Estados se declarassem soberanos (Bahia, Goiás, Mato Grosso e Piauí), outros autônomos e soberanos (Paraná) e, ainda, independentes e soberano (Rio de Janeiro). A ideia de ampla autonomia dos Estados-membros na Federação foi detalhada por João Barbalho, ao afirmar que "isso indica que as Constituições dos Estados não estão obrigadas a segui-la (Constituição Federal) inteiramente à risca, a modelarem-se completamente por ela, sem divergir em alguns pontos, contanto que não sejam fundamentais. E bem o compreenderem eles no organizarem seus governos apartandose em alguma cousa do modelo federal" (BARBALHO, João. Constituição Federal Brasileira (1891). Ed. Fac-similar. Brasília: Senado Federal: Conselho Editorial, 2002. p. 267). Igual ideia de autonomia federativa teve seus reflexos políticos no Brasil, com o fortalecimento das estruturas políticas oligárquicas, que contribuíram para a Reforma Constitucional de 1926, com claro fortalecimento e centralização na União. A Constituição de 1934 tentou reequilibrar o sistema, trazendo - pela primeira vez no direito constitucional brasileiro - o modelo da Constituição alemão de 1919, das competências concorrentes. Na Constituição de 1937, houve referência à delegação da União aos Estados-membros da faculdade de legislar. A ruptura democrática e institucional até 1945, fez com que omodelo federativo da Constituição de 1946 se situasse
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como tema central, principalmente a autonomia dos Estados-membros, porém, não houve acentuação da centralização de competências legislativas na União; o mesmo, ocorrendo com a Constituição de 1967. A tradição de centralização das competências legislativas na União corrobora as críticas feitas por Castro Nunes ao analisar as competências legislativas do Estado-membro, caracterizando-o como "mutilado em suas atribuições, sem atenção ao regimen de poderes separados que é da essência das instituições democrático-republicanas" ( NUNES, José de Castro. As constituições estaduaes no Brasil. Rio de Janeiro. Edit. Leite Ribeiro, 1922, t. 1. p. 68). 3 - Federalismo Brasileiro e Distribuição de Competências A Constituição de 1988 manteve a tradição republicana, adotando o federalismo, forma de Estado que gravita em torno do princípio da autonomia e da participação política e pressupõe a consagração de certas regras constitucionais, tendentes não somente à sua configuração, mas também à sua manutenção e indissolubilidade. Como ressaltado por Geraldo Ataliba, "exsurge a Federação como a associação de Estados (foedus, foederis) para formação de novo Estado (o Federal) com repartição rígida de atributos da soberania entre eles. Informa-se seu relacionamento pela ‘autonomia rrecíproca da União e dos Estados, sob a égide da Constituição Federal’ (Sampaio Dória), caracterizadora dessa igualdade jurídica (Ruy Barbosa), dado que ambos extraem suas competências da mesma norma (Kelsen). Daí cada qual ser supremo em sua esfera, tal como disposto no Pacto Federal (Victor Nunes)" (ATALIBA, Geraldo. República e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 10) O mínimo necessário para a caracterização da organização constitucional federalista exige, inicialmente, a decisão do legislador constituinte, por meio da edição de uma constituição, em criar o Estado Federal e suas partes indissociáveis, a Federação ou União, e os Estados-membros, pois a criação de um governo geral supõe a renúncia e o abandono de certas porções de competências administrativas, legislativas e tributárias por parte dos governos locais (BADIA, Juan Fernando. El estado unitário: El federal y El estado regional. Madri: Tecnos, 1978. p. 77). Essa decisão está consubstanciada nos arts. 1º e 18 da Constituição de 1988 (conferir a respeito: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Estado federal brasileiro na Constituição de 1988, Revista de Direito Administrativo, nº 179, p. 1; HORTA, Raul Machado. Tendências atuais da federação brasileira. Cadernos de direito constitucional e ciência política, nº 16. p. 17; e do mesmo autor: Estruturação da Federação, Revista de Direito Público nº 81, p. 53; VELLOSO, Caio Mário. Estado federal e estados federados na Constituição brasileira de 1988: do equilíbrio federati vo . Revista de Direito Administrativo nº 187, p. 1; MARINHO, Josaphat: Rui Barbosa e a federação. Revista de Informação Legislativa, nº 130, p. 40; FAGUNDES, Seabra. Novas perspectivas do federalismo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, nº 99, p. 1).
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Além disso, a Constituição deve estabelecer os seguintes princípios: os cidadãos dos diversos Estados-membros aderentes à Federação devem possuir a nacionalidade única dessa; repartição constitucional de competências entre a União, Estados-membros, Distrito Federal e município; necessidade de que cada ente federativo possua uma esfera de competência tributária que lhe garanta renda própria; poder de auto-organização dos Estados-membros, Distrito Federal e municípios, atribuindo-lhes autonomia constitucional; possibilidade constitucional excepcional e taxativa de intervenção federal, para manutenção do equilíbrio federativo; participação dos Estados no Poder Legislativo Federal, de forma a permitir-se a ingerência de sua vontade na formação da legislação federal; possibilidade de criação de novo Estado ou modificação territorial de Estado existente dependendo da aquiescência da população do Estado afetado; a existência de um órgão de cúpula do Poder Judiciário para interpretação e proteção da Constituição Federal. Note-se que, expressamente, o legislador constituinte determinou a impossibilidade de qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir a Federação (CF. art. 60, §4º, I). A autonomia dos Estados-membros caracteriza-se pela denominada tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e auto-administração. Os Estados-membros se auto-organizam por meio do exercício do exercício de seu poder constituinte derivado-decorrente, consubstanciando-se na edição das respectivas Constituições Estaduais e, posteriormente, através de sua própria legislação (CF, art. 25, caput), sempre, porém, respeitando os princípios constitucionais sensíveis, princípios federais extensíveis e princípios constitucionais estabelecidos (SILVA, José Afonso. O Estado-membro na Constituição Federal. RDP 16/15). Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal, "se é certo que a nova Carta Política contempla um elenco menos abrangente de princípios constitucionais sensíveis, a denotar, com isso, a expansão de poderes jurídicos na esfera das coletividades autônomas locais, o mesmo não se pode afirmar quanto aos princípios federais extensíveis e aos princípios constitucionais estabelecidos, os quais, embora disseminados pelo texto constitucional, posto que não é tópica a sua localização, configuram acervo expressivo de limitações dessa autonomia local, cuja identificação - até mesmo pelos efeitos restritivos que deles decorrem - impõe-se realizar" (STFm Pleno, ADI 216/PB, Rel. Min. Celso de Mello: RTJ 146/388. Os princípios constitucionais sensíveis são assim denominados, pois a sua inobservância pelos Estados-membros no exercício de suas competências legislativas, administrativas ou tributárias, pode acarretar a sanção politicamente mais grave existente em um Estado Federal, a intervenção na autonomia política. Estão previstos no art. 34, VII, da Constituição Federal: forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta e indireta; aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e no desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.
Os princípios federais extensíveis são as normas centrais Em relação ao Poder Executivo estadual, o art. 28 da Conscomuns à União, Estados, Distrito Federal e municípios, portituição Federal com a nova redação dada pela Emenda Constanto, de observância obrigatória no poder de organização titucional nº 16, de 4-6-1997, estabelece que a eleição do Goverdo Estado. Poder-se-iam colocar nessa classificação os chamanador e do vice-Governador de Estado, para mandato de quados por Raul Machado Horta de "Princípios desta Constituitro anos, permitindo-se a reeleição para um único período subção" (por exemplo, arts. 1º, I a V; 3º, I a IV; 4º, I a X; 2º; 5º. I, II, III, sequente, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro, em VI, VIII, IX, XI, XII, XX, XXII, XXIII, XXXVI, LIV e LVII; 6º a 11; primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo 93, I a XI; 95, I, II e III. In: MACHADO, Horta. Estudos de direito turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato de constitucional. p. 391-392). seus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro de janeiro do Por fim, os princípios constitucionais estabelecidos conano subsequente. Além disso, expressamente, determina a sistem em determinadas normas que se encontram espaaplicação das regras previstas para a eleição e posse do Presilhadas pelo texto da Constituição, e, além de organizarem dente da República (CF, art. 77). a própria federação, estabelecem preceitos centrais de obDetermina, também, que perderá o mandato o governador servância obrigatória aos Estados-membros em sua autoque assumir outro cargo ou função na administração pública dio rg an iz a çã o. Subdividem-se em normas de competência reta e indireta, ressalvada a posse em virtude de concurso público (por exemplo: arts. 23; 24; 25, e observado odisposto no art. Andre Dusek/AE 27, § 3º; 75; 96, I, a-f; 96, II, a-d, 38, I, IV e V da própria ConstiIII; 98, I e II; 125, § 4º; 144, § 4º, tuição Federal. Além disso, a 5º e 6º; 145, I, II e III; 155, I, Constituição Federal prevê que a,b,c, II. In. MACHADO, os subsídios do Governador, do Horta. Op. cit. p. 392-393) e vice-Governador e dos Secretán o r m a s d e p re o rd e n a ç ã o rios de Estado serão fixados por )por exemplo: arts. 27; 28; 37, lei de iniciativa da Assembleia I a XI. In: MACHADO, Horta. Legislativa, observando o que Op. cit. p. 393). dispõem os arts. 37, XI; 39, §4º; A autonomia estadual tam150, II. 153, III; e 153, §2º, I.. bém se caracteriza pelo autogoPor fim, completando a tríverno, uma vez que é o próprio plice capacidade garantidora povo do Estado quem escolhe da autonomia dos entes fedediretamente seus representanrados, os Estados-membros O presidente da Câmara dos Deputados, Ulisses tes nos Poderes Legislativo e se auto-administram no exerGuimarães, na última sessão da Assembleia Constituinte. Executivo locais, sem que haja cício de suas competências A nova Constituição foi promulgada em outubro de 1988. qualquer vínculo de subordiadministrativas, legislativas nação ou tutela por parte da e tributárias definidas consUnião. A Constituição Federal titucionalmente. Saliente-se prevê expressamente a existência dos Poderes Legislativo (CF, que, está implícita, no exercício da competência tributária, a art. 27), Executivo (CF, art. 28) e Judiciário (CF, art. 125) estaduais existência de um mínimo de recursos financeiros, obtidos di(conferir: CLÉVE, Clemerson Merlin. Temas de direito constituretamente através de sua própria competência tributária. cional. São Paulo: Acadêmica, 1993. P. 63-63; SILVA, José Afonso. O estado-membro na constituição federal; RDP, 16/15. Na vi4 - Repartição de competências e princípio da gência da Constituição anterior, Paulo Lopo Saraiva, analisando predominância do interesse a correlação entre autonomia dos Estados-membros e Federação, advertia que "a indicação dos governadores dos Estados, a A autonomia das entidades federativas pressupõe repartinomeação de um Senador - CF, art. 41, §2º, alterado pelo EC nº 15, ção de competências legislativas, administrativas e tributáde 19-11-1980 - e a designação dos prefeitos das Capitais e de ourias, sendo, pois, um dos pontos caracterizadores e asseguratras cidades brasileiras atestam a falência do nosso Federalismo dores do convívio no Estado Federal. e a ascensão de um Unitarismo, despido de qualquer formulaA própria Constituição Federal estabelecerá as matérias ção jurídica", in Federalismo regional. Op. cit. p. 55). próprias de cada um dos entes federativos, União, EstadosA própria Constituição Federal (art. 27) estabelece regras na membros, Distrito Federal e municípios, e a partir disse poderá composição do Poder Legislativo Estadual, determinando sua acentuar a centralização de poder, ora na própria Federação, unicameralidade, sua denominação - Assembleia Legislativa ora nos Estados-membros. , a duração do mandato dos deputados (quatro anos - STF, PleO princípio geral que norteia a repartição de competência no, ADI 3825, Rel. Min. Carmen Lúcia) as regras sobre sistema entre as entidades componentes do Estado Federal é o da preeleitoral, inviolabilidade, imunidades (STF, Pleno, RE dominância do interesse. 456679/DF, Rel. Min. Sepúlvida Pertence), remuneração e preAssim, pelo princípio da predominância do interesse, à União visão sobre iniciativa popular de lei; bem como duas regras pacaberá aquelas matérias e questões de predominância do intera fixação do número de deputados estaduais. resse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de
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predominante interesse regional e aos municípios concernem os assuntos de interesse local. Em relação ao Distrito Federal, por expressa disposição constitucional (CF, art,. 32 §1º), acumulam-se, em regra, as competências estaduais e municipais, com exceção prevista no art. 22, XVII, da Constituição. O legislador constituinte, adotando o referido princípio, estabeleceu quatro pontos básicos no regramento constitucional para a divisão de competências administrativas e legislativas: 1) Reserva de campos específicos de competência administrativa e legislativa (União - Poderes enumerados, CF, arts 21 e 22; Estados - Poderes remanescentes, CF, art. 25, § 1º - Município - Poderes enumerados, CF, art. 30; Distrito Federal - Estados + Municípios, CF, art. 32, § 1º); 2) Possibilidade de delegação ( CF, art. 22, parágrafo único; Lei complementar federal poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias de competência privativa da União); 3) Áreas comuns de atuação administrativa paralela (CF, art. 23); 4) Áreas de atuação legislativa concorrente (CF, art. 24) À União, a Constituição Federal enumerou competências administrativas e legislativas. Aos Estados-membros são reservadas as competências administrativas que não lhes sejam vedadas pela Constituição, ou seja, cabem na área administrativa privativamente ao Estado todas as competências que não forem da União (CF, art. 21), dos municípios (CF, art. 30) e comuns (CF, art. 23). É a chamada competência remanescente dos Estados-membros, técnica clássica adotada originalmente pela Constituição norte-americana e por todas as Constituições brasileiras, desde a República, e que presumia o benefício e a preservação de autonomia destes em relação à União, uma vez que a regra é o governo dos Estados, a exceção o Governo Federal, pois o poder reservado ao governo local é mais extenso, por ser indefinido e decorrer da soberania do povo, enquanto o poder geral é limitado e se compõe de certo modo de exceções taxativas. Em seu art. 30, o texto constitucional determina competir aos municípios os assuntos de interesse local. Não poucas vezes, a aplicação do princípio da predominância do interesse é esquecida no Brasil, em detrimento dos Estados-membros e, em benefício da centralização na União 5 - problemas no exercício da distribuição constitucional de competências da Constituição Brasileira Se teoricamente a Constituição republicana de 1988 adotou a clássica repartição de competências federativas, preservando um rol taxativo de competências legislativas para a União e, dessa forma, mantendo os poderes remanescentes dos Estados-membros; na prática não se verifica tal equilíbrio, exatamente, pelas matérias descritas no artigo 22 do texto constitucional e pela interpretação política e jurídica que, tradicionalmente, se dá ao seu artigo 24. Ao verificarmos as matérias do extenso rol de 29 incisos e um parágrafo do artigo 22 da CF/88, é facilmente percep-
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tível o desequilíbrio federativo no tocante à competência legislativa entre União e Estados-membros, uma vez que, há a previsão de quase a totalidade das matérias legislativas de maior importância para a União (direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho, desapropriação, águas, energia, informática, telecomunicações, radiodifusão, serviço postal, comércio exterior e interestadual, diretrizes da política nacional de transportes, regime de portos, navegação lacustre, fluvial, marítima, aérea e aeroespacial, trânsito e transporte, diretrizes e bases da educação nacional, registros públicos etc.) Além disso, a tradicional interpretação política e jurídica que vem sendo dada ao artigo 24 do texto constitucional, no sentido de que nas diversas matérias de competência concorrente entre União e Estados, a União pode discipliná-las quase integralmente, temos o resultado da diminuta competência legislativa dos Estados-membro; gerando a excessiva centralização aos poderes legislativos na União, o que caracteriza um grave desequilíbrio federativo. O reequilíbrio na distribuição das competências federativas pode ser realizado em cinco campos: (1) Alterações constitucionais; (2) Real exercício das competências delegadas (parágrafo único do art. 22 da CF); (3) Efetivo exercício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) entre União e Estados-membros; (4) Maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal no sentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderes remanescentes dos Estados-membros e reequilibre os entes-federativos; e (5) Adoção do princípio da subsidiariedade, em prática na União Europeia. No tocante as (1) Alterações Constitucionais, há a possibilidade, dentro de um grande acordo político que preserve a autonomia dos entres federativos, da edição de emenda constitucional com a migração de algumas competências definidas atualmente como privativas da União para o rol de competências remanescentes dos Estados-membros e outras para as competências concorrentes ente a União e Estados-membros, para que nesses assuntos, as peculiariedades regionais sejam consideradas. Essa alteração constitucional não estaria a ferir a cláusula pétrea prevista no inciso 1, do artigo 60, do texto magno ("Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa do Estado"), uma vez que essa proposta estaria plenamente de acordo com os objetivos fundamentais da República, entre eles, o de reduzir as desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, III) Sem qualquer necessidade de alteração constitucional, o (2) Real Exercício das Competências Delegadas (parágrafo único do art. 22 da CF) poderia encontrar um ponto de equilíbrio federativo entre União e Estados. Em seu parágrafo único, o artigo 22 do texto constitucional prevê que lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo. Dessa forma, todas as importantes matérias de competência da União descritas no artigo 22 do texto constitucional podem ser delegadas aos Estados-membros, desde que: (a) seja apro-
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O art. 24 da Constituição Federal prevê as regras de competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal, estabelecendo quais as matérias que deverão ser regulamentadas de forma geral por aquela e específica por esses.
vada lei complementar pelo Congresso Nacional; (b) sejam indicados os pontos delegados; © a delegação não gere discriminação entre os Estados-membros. Esse instrumento seria importantíssimo, por exemplo, para que cada Estado-membro, atento às suas peculiaridades, pudesse disciplinar pontos específicos das diversas matérias (conferir a respeito: ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991), como por exemplo, relações comerciais, ou ainda, do direito agrário cuja realidade é diferente no Estado do Amazonas e em São Paulo , no direito trabalhista, igualmente de realidades diversas; e, mesmo, no tocante ao direito processual civil e penal. Como exemplo do exercício dessa delegação específica, o Estado de São Paulo editou as leis ordinárias nºs 12.640/07 e 12.967/08 (instituição de pisos salariais para os trabalhadores que especificou), nos termos da delegação contida na lei complementar nº 103, de 14 de julho de 2000. Apesar do tímido exercício desse mecanismo, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei complementar visando a concessão de delegações (PLP nº 272/90, PLP 33/03, PLP 47/03, PLP 136/07 – na Câmara dos Deputados, que autorizam os Estados a legislar sobre a mobilidade urbana, a partir das diretrizes nacional que estabelece; e PLS nº 21/2003, PLS 52/2007 – no Senado Federal, que autorizam Estados a legislar sobre direito penal em questões específicas que define). O (3) efetivo exercício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) entre União e Estados-membros acarretaria substancial recuperação de parcela legislativa dos Estadosmembros em importantes matérias. O art. 24 da Constituição Federal prevê as regras de competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal, estabelecendo quais as matérias que deverão ser regulamentadas de forma geral por aquela e específica por esses.
No âmbito da legislação concorrente, a Constituição brasileira estabeleceu a legislação concorrente não cumulativa, ou seja, a chamada repartição vertical, pois, dentro de um mesmo campo material (concorrência material de competência), reserva-se um nível superior ao ente federativo União, que deve somente fixar os princípios e normas gerais, deixando-se ao Estado-membro a complementação, com a edição de regras complementares e específicas. Como apontou Raul Machado Horta, "a legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais. A Lei Fundamental ou de princípios servirá de molde à legislação local. É a Rahmengesetz, dos alemães; a Legge-cornice dos italianos; a Loi de cadre, dos franceses; são as normas gerais do Direito Constitucional Brasileiro (MACHADO HORTA, Raul. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte. Del Rey, 1995, p. 366). Assim, ao adotar a competência concorrente não cumulativa ou vertical de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e o Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis, o texto constitucional seguiu orientação da Constituição de Weimar (art. 10), consiste em permitir ao governo federal a fixação das normas gerais, sem descer a pormenores, cabendo aos Estados-membros a adequação da legislação às peculiaridades locais. Para exemplificar a importância desse mecanismo, é importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal entendeu no tocante à acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais no transporte coletivo intermunicipal, existir competência concorrente, cabendo aos Estados-membros a competência legislativa plena para normas específicas, como por
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exemplo, exigência de adaptação de veículos (STF, pleno, ficientemente realizados pelos Estados-membros, bem como ADI 903/6, Rel. Min. Celso de Mello). quais serão seu reflexos e efeitos. Ocorre, entretanto, que os Estados-membros são extremaA ideia aplicada à federação brasileira – principalmente no mente tímidos na edição da legislação complementar, aceitanexercício das competências legislativas concorrentes e nas do sem qualquer contestação a legislação federal que – em macompetências administrativas comuns – é prestigiar a atuação téria concorrente – acaba por disciplinar tanto os princípios e preponderante do ente federativo em sua esfera de poder na regras gerais, quanto as normas específicas. proporção de sua maior capacidade para solucionar a matéria Medida de reflexos imediatos, a (4) MAIOR ATUAÇÃO de interesse do cidadão. PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO SENExemplificativamente, há no Congresso Nacional o PLP TIDO DE EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL QUE VALO388/07, de iniciativa presidencial (MSC 37/2007), que prevê a RIZE OS PODERES REMANESCENTES DOS ESTADOSedição de lei complementar que fixará nos termos do parágraMEMBROS poderia, em pouco temfo único do artigo 23 da CF, normas paBruno Stuckert/Folha Imagem po, garantir um maior equilíbrio enra a cooperação entre União, Estadostre os entes-federativos. membros e Municípios nas ações adA doutrina aponta a tendência do ministrativas decorrentes do exercício Supremo Tribunal Federal, principalda competência comum. mente na esfera das competências concorrentes, em dirimir eventuais dúvi6 - Conclusões das a favor da União (conferir a respeito: FERREIRA FILHO, Manoel GonO texto pretendeu demonstrar a ineçalves. Temas de Direito Constitucional xistência de dúvidas sobre a intensa liEstadual e questões sobre o pacto federatigação entre separação de poderes, auvo. São Paulo. Assembleia Legislativa tonomias, liberdades e federalismo, de São Paulo, 2004, p. 166), porém é principalmente, levando-se em conta perceptível que a atual composição que a maior autonomia local para ledo Supremo Tribunal Federal vem regislar, em importantes matérias, sigpensando esse modelo centralizador nifica um maior controle sobre o cenfixado pré-constituição de 1988, o que tralismo e arbítrio estatal (em relação O Supremo Tribunal Federal vem demonstra a necessidade de um trabaa esse tema, consultar importante artirepensando o modelo centralizador lho de conscientização dos Ministros go que analisa detalhadamente a posifixado pré-constituição de 1988. da Corte Suprema nos julgamentos ção dos Juízes da Suprema Corte nortemais importantes. americana O’Connor e Scalia, em defeA título de exemplo, demonstransa da maior autonomia local – GELdo a flexibilização de posicionamento até então arraigado no FAND, M. David, WERHAN, Keith. Federalism and separation of STF, sobre a necessidade dos Estados-membros observarem power on a ‘conservation’ Court: currents and cross-currents rigorosamente princípios estruturais institucionais da União, from judices O’Connor and Scalla. Tulane Law Review. New decidiu a Corte, em relação à investidura ao cargo de Procuorleans, ano 2, v. 64, jun. 1990. P. 1443). rador-Geral do Estado de São Paulo, a possibilidade de a ConsUm dos principais pilares de sustentação do Estado Federal é o tituição Estadual prever a obrigatoriedade da escolha ser reaexercício autônomo, pelos entes federativos, das competências lelizada entre integrantes da carreira, mesmo sendo diferente do gislativas e administrativas constitucionalmente distribuídas. modelo federal de escolha do Advogado-Geral da União (STF, Para atingir essa finalidade, imprescindível a recuperação do Pleno, ADI 2581/SP, Rel. Min. Maurício Correa). exercício de competências legislativas pelos Estados-membros Por fim, o texto constitucional oferece mecanismos para em matérias importantes e adequadas às peculiaridades locais. que, com a edição de leis complementares em importantes maLogicamente, muitos mecanismos políticos, sociais e juríditérias, passe a ser adotado no Brasil, com as devidas adaptacos podem ser apontados para a obtenção desses resultados: ções, o princípio da subsidiariedade, já em prática na União porém, no breve espaço desse estudo, foram destacadas as seEuropeia, por meio de protocolo datado de outubro de 1992. guintes possibilidades: Nessa data, o Conselho Europeu de Birmingham reafir1) Alterações constitucionais; mou que as decisões da União Europeia deveriam ser toma2) Real exercício das competências delegadas (parágrafo das o mais próximo possível do cidadão. Sob essa ótica, o único do art. 22 da CF); Conselho Europeu de Edimburgo, em dezembro de 1992, 3) Efetivo exercício das competências concorrentes (artigo definiu uma abordagem global para a aplicação do princí24 da CF); pio da subsidiariedade, prevendo princípios fundamen4) Maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal no tais, diretrizes e procedimentos; sempre com a finalidade de sentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderes prestigiar as comunidades regionais. remanescentes dos Estados-membros e reequilibre os entesDessa forma, as propostas legislativas da União Europeia federativos; devem analisar se os objetivos da ação proposta podem ser su5) utilização do princípio da subsidiariedade.
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DIGESTO ECONÔMICO SETEMBRO/OUTUBRO 2009
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