Digesto Econômico nº 461

Page 1



AS NOSSAS PROPOSTAS PARA UM BRASIL MELHOR

É

com imenso orgulho que apresentamos o mos do sistema tributário, apresentando disexto e último número da série especial versas medidas simples, que independem de Propostas para o Próximo Presidente, uma reforma constitucional, e que poderiam que a revista Digesto Econômico vem publicancontribuir muito para o aprimoramento da trido desde o início do ano. Dessa forma, cumpributação no Brasil. Nesse sentido, são apremos o compromisso assumido e reunimos 35 essentadas propostas referentes à tributação tudos inéditos, assinados por 38 especialistas de sobre o consumo, à redução das obrigarenome, que durante estas seis edições fizeções acessórias, à definição de responsaram, com exclusividade, uma análise profunbilidade, ao PIS e à Cofins, à guerra fiscal, da das principais deficiências do País, apreaos investimentos brasileiros no exterior e sentando propostas concretas para o próxiaos preços de transferência. Pablo de Sousa/LUZ mo governo. Este trabalho, coordenado pelo Em seu trabalho, o economista André economista Roberto Macedo, será entregue aos candida- Portela Souza analisa os programas de transferência tos à Presidência da República, juntamente com um docu- de renda no Brasil. Segundo afirma, as evidências emmento contendo as propostas que a Associação Comer- píricas dos programas sociais e do Bolsa Família decial de São Paulo está apoiando, fruto de discussões in- monstram que esses programas têm sido efetivos em ternas envolvendo seus órgãos consultivos e decisórios. O focalizar as transferências de renda para as famílias nosso objetivo é contribuir com o processo eleitoral, levan- mais pobres monetariamente, mas não tão efetivo em do para os debates temas relevantes para o desenvolvi- estimular de maneira significativa a acumulação de camento do nosso País. pital humano por parte das novas gerações. Neste número, o ex-ministro da Fazenda, do Meio AmA inserção de empresas de pequeno porte em merbiente e diplomata Rubens Ricupero faz um balanço da cados externos é objeto do estudo do engenheiro civil e política externa do atual governo. Segundo ele, apesar do economista José Cândido Senna. Ele conta que a preoinegável sucesso internacional do presidente Lula, sua cupação com o tema está relacionada ao fato de a inpolítica externa está longe de apresentar a mesma apro- serção ser considerada elemento-chave para o crescivação e consenso. Nas questões cruciais de valores mo- mento sustentado das vendas externas, pois à medida rais e humanísticos – como direitos humanos, democra- que se aumenta a base exportadora com a participacia, a não-proliferação nuclear, o aquecimento global – o ção de pequenos produtores, ampliam-se as perspecgoverno se vê cada vez mais contestado devido às acu- tivas de diversificação, tanto da pauta de produtos exsações de indiferença diante de violações notórias, da portados como de destinos dos mesmos. defesa contraditória de regimes opressivos, do pragmaJá o advogado Alexandre de Moraes, ex-secretário tismo calculista que demonstraria na busca de alianças municipal de Transportes e ex- presidente da CET e da duvidosas em detrimento de interesses universais. SPTrans, argumenta sobre a necessidade de fortaleciO economista Roberto Macedo defende em seu tra- mento das competências dos estados-membros da febalho a reformulação da política macroeconômica. Pa- deração. Para ele, a manutenção do equilíbrio demora ele, o Brasil vive uma situação de "subdesempenho crático depende do bom entendimento, definição, fixasatisfatório", pois o contentamento popular e a euforia ção de funções, deveres e responsabilidades entre os demonstrada e difundida pelo Governo Federal não três Poderes, bem como a fiel observância da distribuicondizem com o status pouco vigoroso do País segun- ção de competências, característica do pacto federado vários indicadores, tanto em termos absolutos como tivo, consagrado constitucionalmente no Brasil desde em comparações internacionais. a primeira Constituição Republicana, em 1891. Em seu artigo, o economista Ulisses Ruiz de Gamboa Por fim, gostaríamos de enfatizar aos que se propõem à faz uma análise do mercado de crédito e apresenta dez árdua tarefa de administrar um Brasil cada vez mais impropostas para reduzir o spread bancário. Para ele, um portante no contexto mundial, que nos seus cem primeimercado financeiro mais desenvolvido está associado ros dias de governo tivessem pronta em mãos uma proa uma maior taxa de crescimento econômico no longo posta de reforma política, na qual a voz da sociedade fosprazo, e o "aprofundamento" do mercado de crédito de- se realmente ouvida e acatada. sempenha papel fundamental nesse processo, pois permite que a taxa de juros funcione como sinalizador Boa leitura! para as decisões de consumo e poupança, possibilitando um uso mais eficiente dos fundos no financiamento do investimento produtivo. Luís Eduardo Schoueri, professor titular de Direito TriAlencar Burti butário da Faculdade de Direito da USP, professor da Presidente da Associação Comercial de Universidade Presbiteriana Mackenzie e vice-presidenSão Paulo e da Federação das Associações te da Associação Comercial de São Paulo, aborda os ruComerciais do Estado de São Paulo

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

3


ÍNDICE

6 Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Alencar Burti Superintendente Institucional Marcel Domingos Solimeo Coordenador da Série Especial Eleições 2010 Roberto Macedo

Divulgação

22

As relações internacionais pós-governo Lula Rubens Ricupero

Fundamentos para a reformulação da política macroeconômica Roberto Macedo Bruno Budrovic/Corbis

38

Mercado de crédito e o novo governo: dez propostas para reduzir o Spread Bancário Ulisses Ruiz de Gamboa

54 ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Chefia de Reportagem José Maria dos Santos Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Ilustrações e Infográficos Alfer, Jair Soares e Paulo Zilberman Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3244-3029

Considerações sobre os rumos do sistema tributário Luís Eduardo Schoueri

Zilberman João Wainer/Folhapress

70

Inserção de produtores de pequeno porte em mercados externos José Cândido Senna

86

A necessidade de fortalecimento das competências dos Estados-Membros da Federação brasileira Alexandre de Moraes

Dida Sampaio/AE

98

Políticas Sociais, Bolsa Família e Emprego no Brasil André Portela Souza

Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Printcrom Gráfica e Editora Ltda. REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.br

Capa impressa em papel Image 150 g/m² da Fibria Celulose S/A e o miolo no papel Kromma Silk 90 g/m² da Suzano Papel e Celulose S/A.

4

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

CAPA Arte: MAX


Nas cinco primeiras edições da série especial Propostas para o Próximo Presidente, da revista Digesto Econômico, trinta e um especialistas apontaram problemas do Brasil e apresentaram suas propostas. Foram eles:

Claudio de Moura Castro Hélio Zylberstajn José Pastore Joaquim Elói Cirne de Toledo Ethevaldo Siqueira Nelson Marconi Clóvis Panzarini José Roberto Afonso José Roberto Mendonça de Barros Geraldo Biasoto Jr. Patricia Marrone Lídia Goldenstein Renato C. Pavan Josef Barat Carlos A. Rocca Gustavo Krause Carlos Melo Maria Teresa Bustamante Nilton Molina João Manoel P. de Mello Vinícius Carrasco Jairo Saddi José Maria Chapina Alcazar Denis Lerrer Rosenfield Wilson Abrahão Rabahy Gustavo Maia Gomes José Raimundo de Oliveira Vergolino José Vicente da Silva Filho Gunther Rudzit Vladimir Fernandes Maciel Virginia Parente Acompanhe no site www.dcomercio.com.br

Neste número, mais sete autores de renome fazem suas análises em outros setores e apontam soluções:

Rubens Ricupero Roberto Macedo Ulisses Ruiz de Gamboa Luís Eduardo Schoueri José Cândido Senna Alexandre de Moraes André Portela Souza Aos leitores: A sua revista Digesto Econômico (bimestral) será mensal até agosto, dedicada a um profundo balanço do Brasil pós-Lula. Chamada de "Propostas para o Próximo Presidente", esta série especial será posteriormente entregue a todos os candidatos à Presidência da República, juntamente com um documento-síntese das propostas que a ACSP irá apoiar.

Apoio:

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

5


Divulgação

AS RELAÇÕES IN PÓS-GOVE


TERNACIONAIS RNO LULA Divulgação

Rubens Ricupero Formado em Direito pela Faculdade de Direito da USP, seguiu a carreira diplomática, foi embaixador do Brasil nos EUA, na Itália e junto à ONU e ao Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT) em Genebra. Foi também ministro da Fazenda, cabendo-lhe o lançamento do Plano Real, em 1/7/1994, e ministro do Meio Ambiente e da Amazônia. Atualmente é diretor da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e presidente do Conselho do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial.


Resumo

Introdução

O

A primeira parte do estudo constitui uma descrição das condições políticas e econômicas internacionais que criaram um espaço favorável à afirmação de atores intermediários, assim como da situação propícia em que se encontrava o Brasil para aproveitar tais oportunidades, graças ao esforço cumulativo de vários governos da Nova República, sobretudo desde a estabilização da economia ocorrida a partir dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Após passar em revista os setores principais de atuação do Brasil – Conselho de Segurança da ONU; Rodada Doha da Organização Mundial de Comércio (OMC); novos agrupamentos: G-20, BRICs, IBAS etc., América do Sul e América Latina – o texto aponta os principais defeitos da atual diplomacia: excesso de protagonismo presidencial; inspiração partidária e ideológica, erosão do anterior consenso em torno de política externa voltada a objetivos nacionais permanentes. A projeção do momento positivo da economia brasileira permitiu à diplomacia acumular prestígio internacional, que não foi, entretanto, suficiente para ajudar a resolver os problemas mais graves do setor externo. Por essa razão, recomendam-se as seguintes propostas de ação futura, entre outras: 1) estilo mais sóbrio e construtivo, menos interessado em reuniões de cúpula ou na criação de novos grupos, mas dirigido ao esforço de fazer funcionar os já existentes; 2) concentração nos países mais próximos da América do Sul e da América Latina, em lugar de iniciativas de duvidosos benefícios em áreas afastadas dos interesses diretos do País, como o Oriente Médio; 3) retorno a uma diplomacia institucional, conduzida pelo Itamaraty, sem interferências indevidas de partidos e ideologias; 4) pragmatismo e senso de realidade, revendo a prioridade exclusiva concedida às negociações multilaterais da Rodada Doha e devotando tempo e empenho comparável a intentos menos ambiciosos, mas capazes de produzirem efeitos palpáveis, concretos e imediatos: negociações para reduzir e/ou eliminar barreiras fitossanitárias a carnes, frutas, vegetais frescos; negociações de acordos bilaterais e regionais; solução definitiva dos constantes atritos comerciais com a Argentina; superação da passividade ante o permanente declínio do Mercosul.

Ricardo Moraes/Reuters

O artigo busca efetuar um balanço completo, mas sintético, da evolução da política externa do Brasil durante os dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (20032010), como base analítica para propostas que corrijam suas deficiências e possibilitem ao futuro governo adotar diplomacia capaz de produzir resultados mais concretos e tangíveis para o país.

Brasil se encontra hoje no ponto mais alto de seu prestígio internacional. Essa posição não se deve a um só governo ou a um fator único. É resultado de uma conjunção excepcional de oportunidades externas favoráveis com uma situação interna de estabilidade política e econômica sem precedentes. Foi preciso, para chegar a este nível, o esforço cumulativo desenvolvido ao longo de muitos anos por sucessivos governos. O presidente Lula potencializou e multiplicou essas condições propícias ao simbolizar de certo modo, pela sua história pessoal, o exemplo de ascensão do País como um todo. Sua identificação com as grandes causas sociais de luta contra a fome e a pobreza, o carisma de personalidade autoconfiante, a vocação inata à negociação foram elementos adicionais para reforçar a percepção externa da emergência do Brasil como ator global. Apesar do inegável sucesso internacional do presidente, sua política externa está longe de comandar internamente grau comparável de aprovação e de consenso àquele que até recentemente encontrava no exterior. À medida que o governo avança para o fim, é possível discernir tendência a uma intensificação das divergências sobre a orientação diplomática oficial. Crescem as críticas, juntamente com a impressão, real ou imaginada, de que a linha internacional se radicaliza, deixando-se contaminar por motivações ideológicas e partidárias com objetivos voltados ao jogo interno do poder. Nas questões cruciais de valores morais e humanísticos – os direitos humanos, a democracia, a não-proliferação nuclear, o aquecimento global –, o governo se vê cada vez mais contestado devido às acusações de indiferença diante de violações notórias, da defesa contraditória de regimes opressivos, do pragmatismo calculista que demonstraria na busca de alianças duvidosas em detrimento de interesses universais. O excesso de protagonismo presidencial, a sensação de que a diplomacia se colou de forma tão inseparável ao carisma do presidente Lula a ponto de se haver tornado intransferível, suscita preocupações em relação ao que se afiguraria para alguns críticos uma política externa personalista, de escasso espírito republicano, sem o desejável caráter institucional e permanente. Na antevéspera da sucessão presidencial, o debate sobre a proposta da orientação internacional que mais convém ao Brasil e não apenas a um projeto de poder pessoal ou de uma facção não pode evitar o exame dessas alegações. É a partir delas que se tentará separar na linha de ação atualmente seguida aquilo que reflete as realidades e os interesses do País como um todo do que


Reprodução

não passaria do efeito real, mas efêmero, da sedução exercida por uma liderança carismática desacompanhada de resultados objetivos e concretos. O primeiro passo nesse exercício de análise deve consistir na captação e exposição dos traços característicos do contexto político e econômico internacional que vêm possibilitando a países como o Brasil adotar e executar uma política externa de crescente afirmação. O contexto político e econômico internacional Ainda não se inventou expressão mais sintética e completa das condições da possibilidade de êxito de um príncipe ou governante, de sua política interna e externa do que a resumida por Maquiavel na fórmula virtù e fortuna. A virtù como ideia que abrange o conjunto das qualidades intrínsecas de um estadista e de sua política, a coerência, a lógica, a adequação Reprodução conceitual à realidade, a proporção entre meios e fins, a clareza e exequibilidade dos objetivos, sua correspondência aos interesses coletivos, seu senso de equilíbrio e medida. A fortuna sinaliza a somatória das circunstâncias mais ou menos favoráveis do meio internacional envolvente, de um entorno que se beneficia de clima de paz e prosperidade ou se veja negativamente mergulhado em guerras e privações. Igualmente de uma conjuntura doméstica pacificada e estimulante em razão da estabilidade interna e da coesão da população ou, ao contrário, prejudicada pela divisão e confronto entre facções. Por fim, as vantagens extraídas de uma economia em expansão ou os obstáculos oriundos de um país em declínio. Nenhuma política exterior, por melhor concebida que seja, escapa do peso desses condicionamentos e a história diplomática brasileira fornece numerosos exemplos da afirmação. A melhor fase da diplomacia do Império, o momento em que o País finalmente consegue sacudir a tutela humilhante dos tratados desiguais com o Reino Unido e se converte em força preponderante nos conflitos na região do Rio da Prata, corresponde aos anos após a proclamação da Maioridade do Imperador D. Pedro II em 1848. Desde então, a política de centralização e pacificação que põe fim às lutas debilitadoras e aos riscos de desagregação da Regência proporcionará ao Estado os instrumentos mínimos para conduzir uma política externa de maior autonomia e eficácia. O oposto dessas condições prevalecerá na turbulenta década de consolidação do regime republicano, entrecortada pela rebelião e os massacres de Canudos, a Revolta da Armada, a Revolução Federalista no sul, os degolamentos e execuções sumárias do governo de Floriano, o Encilhamento e a desorganização da economia. Será preciso esperar pela conclusão da obra de estabilização política e restabelecimento econômico

A política externa independente, inaugurada pelo presidente Jânio Quadros (acima), prosseguiu sob o governo João Goulart através dos chanceleres San Tiago Dantas (ao lado) e Araújo Castro, mas viria a sucumbir vítima das tensões externas da Guerra Fria, magnificadas pela radicalização da política brasileira.

levada a efeito pelos governos de Prudente de Morais e de Campos Sales para que se reencontrem sob os mandatos de Rodrigues Alves, de Afonso Pena e parte de seus dois sucessores as condições de prosperidade e paz que permitirão ao barão do Rio Branco realizar uma diplomacia de extraordinário êxito e projeção, entre 1902 e 1912. Um contra-exemplo de como a soma de fatores adversos internacionais e internos pode fazer naufragar política inteligente e bem concebida é a da chamada Política Externa Independente. Primeiramente inaugurada pelo presidente Jânio Quadros, prosseguida sob João Goulart pelos chanceleres San Tiago Dantas e Araújo Castro, ela sucumbiria vítima das tensões externas da Guerra Fria magnificadas pela crise econômica e pela radicalização da política brasileira, que culminariam no golpe militar de 1964. Uma década depois, muitos de seus pressupostos seriam retomados, quando as circunstâncias se tornaram mais propícias, no governo Geisel e inspirariam a política conduzida pelo ministro Azeredo da Silveira. Estendi-me um pouco sobre os antecedentes históricos brasileiros para ilustrar uma verdade central em todas as épocas e nações: não basta o voluntarismo para assegurar o êxito até mesmo

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

9


da mais inteligente e inspirada das políticas se lhe faltarem míherdeiro de uma Nova República que havia consolidado a denimas condições externas e domésticas para levá-la adiante. A mocracia de massas, a coesão social interna e a estabilidade dos justa aquilatação do mérito da diplomacia de um governo não horizontes econômicos. Em nada lhe diminui o mérito recopode prescindir da consideração do que no êxito ou fracasso da nhecer que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva desfrutou de orientação se deve à fortuna ou à virtù dos governantes. excepcionais vantagens internas e internacionais para viabiliA fim de aplicar esse critério à política externa do governo Luzar uma política exterior de ambiciosa projeção do País. la e projetá-lo para os próximos anos, convém principiar por uma reflexão sobre as características que vem diferenciando a Os eixos principais da primeira década do século, diferenciando-a da fase anterior. diplomacia do presidente Lula Em termos políticos globais, assiste-se ao aparecimento de espaço propício à afirmação de um novo policentrismo, isto é, Embora a diplomacia de Lula desperte considerável controà possibilidade de que atores de poder intermediário (Brasil, vérsia, não chega a ser mudança radical de paradigma como Índia, África do Sul, Turquia) tomem iniciativas autônomas ocorreu quando a Política Externa Independente substituiu de em temas globais antes reservados às potências preponderanforma duradoura o paradigma anterior de Rio Branco, Joates (os cinco membros permanentes do Conselho de Seguranquim Nabuco e Oswaldo Aranha. ça da ONU: EUA, China, Rússia, Reino Unido, França). O poInspirada pelo desejo de aproveitar as oportunidades surlicentrismo se viabiliza aos poucos, à medida gidas, sobretudo em âmbito global, a política que o unilateralismo da estratégia de George externa do governo Lula se desdobrou desde o W. Bush na resposta aos atentados de Onze de início ao longo de quatro eixos principais: Na América Setembro, sobretudo a invasão do Iraque, a 1) A obtenção do reconhecimento do Brasil Latina, registra-se um doutrina do "preemptive attack" e do Eixo do como ator político global de primeira ordem no Mal, se revelam incapazes de concluir com êxisistema internacional policêntrico em formavazio de liderança, to o engajamento militar não apenas no Iraque, ção, o que normalmente se vem traduzindo peprovocado pela mas também no Afeganistão. O consequente la busca de um posto permanente no Conselho acentuação do desvio enfraquecimento relativo do poder e do presde Segurança da ONU, mas pode assumir da atenção dos EUA tígio americanos sofrerá o desgaste adicional eventualmente outras modalidades de realizapara outras regiões da crise econômico-financeira, levando à aceição como a participação nos recém-criados tação pelo próprio governo Obama dessa alteagrupamentos do G-20, BRICs e IBAS; outra prioritárias do ponto ração na realidade internacional. modalidade possível de expressão da tendênde vista de segurança, No domínio econômico, o cenário aparece cia é a de iniciativas autônomas como a do reem particular o Oriente de início (2003-2008) marcado por fase sem cente acordo com o Irã e a Turquia a respeito do Médio e a Ásia precedentes de expansão da economia munprograma nuclear do primeiro. e pelo apagamento dial (preços das commodities, liquidez finan2) A consolidação de condições econômicas ceira, juros baixos), seguida por crise financeiinternacionais que favoreçam o desenvolvitemporário do México ra aguda que desorganizou e debilitou de premento a partir das vantagens comparativas e da Argentina. ferência as economias ocidentais de capitalisbrasileiras concentradas na agricultura, objetimo avançado, reforçando os efeitos da vo que se expressa primordialmente na concluemergência econômica da China e precipitansão da Rodada Doha da OMC, mas que se esdo a aceitação do G-20 como instância substituta do G-7 na cotende também aos temas financeiros sob a égide do G-20. ordenação da economia global. 3) A dimensão reforçada emprestada às relações Sul-Sul, enNa América Latina, registra-se um vazio de liderança, prosejada naturalmente pela forte e visível emergência da China, vocado pela acentuação do desvio da atenção dos EUA para Índia, África do Sul, pela retomada do crescimento africano e outras regiões prioritárias do ponto de vista de segurança, em expressa na proliferação de foros de contactos, alguns superparticular o Oriente Médio e a Ásia e pelo apagamento tempostos aos gerais (IBAS, BRICs em parte), outros originais, porário do México e da Argentina. Ao mesmo tempo, aumen(AFRAS, ASPA, Brasil-CARICOM etc). tam em intensidade as divergências e a heterogeneidade de re4) A edificação de espaço político-estratégico e econômicogimes em decorrência das experiências radicais de refundação comercial de composição exclusiva sul-americana (implicitaencarnadas na Venezuela de Chávez, na Bolívia de Morales e mente de preponderância brasileira no resultado, se não na inno Equador de Correa, complicando as perspectivas de efetiva tenção), a partir da expansão gradual do Mercosul. integração econômica ou de colaboração político-estratégica. Presentes como objetivos gerais, quase permanentes, ainda As duas primeiras tendências se reforçaram uma à outra, que sob forma diversa no passado, os eixos da diplomacia adabrindo possibilidades inéditas para atores intermediários faquiriram ênfase maior ou enfoque diferente no governo atual, vorecidos por condições de estabilidade político-econômica e seja em razão de inovações doutrinárias da política de Lula, seja dotados de capacidade de formulação e iniciativa diplomátiem função da alteração das circunstâncias ou do aparecimento cas como o Brasil no começo de 2003. Superados os solavancos de oportunidades. A prioridade dada à candidatura ao Conseeconômicos iniciais, graças ao equilíbrio com que soube reslho de Segurança seria inconcebível se a tentativa de reforma amtabelecer a confiança abalada, o governo Lula foi o afortunado biciosa da ONU empreendida por Kofi Annan em 2005 não ti-

10

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Divulgação

Na Organização das Nações Unidas e na Organização Mundial do Comércio, ainda que o Brasil faça tudo certo, sua capacidade de influenciar os acontecimentos não é suficiente para resolver os impasses da maneira que desejamos. Na foto, o presidente Lula posa ao lado do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

vesse antes colocado a questão na agenda internacional. De forma similar, a centralidade que se conferiu à Rodada Doha se deveu, em parte, ao calendário: sua conclusão, se tudo corresse bem, teria ocorrido dentro do mandato deste governo. O balanço provisório dos resultados alcançados pela diplomacia mostra que, dependendo do tema, os avanços variam, da mesma forma que varia a distância entre as pretensões brasileiras e a realidade. Em nenhum dos casos se atingiram plenamente os objetivos, mas a frustração não se deve sempre a culpas ou deficiências de nossa parte. De modo simplificado, não seria exagero dizer que, nos dois primeiros eixos, o governo brasileiro quer, mas não pode; no da América do Sul, pode, mas não quer. Passarei em revista a partir deste ponto as principais iniciativas adotadas em cada um dos eixos da política externa, procurando, sempre que for o caso, apontar e realçar com grafia distinta, as críticas que se afigurem justificadas e as propostas ou sugestões a respeito dos temas examinados. Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas Trocando em miúdos, na Organização das Nações Unidas e na Organização Mundial de Comércio, ainda que o Brasil faça tudo certo, sua capacidade de influenciar os acontecimentos não é suficiente para resolver os impasses da maneira que desejamos. Por mais que nos esforcemos, não se logrou até agora produzir consenso para reformar o Conselho de Segurança, nem para concluir a Rodada Doha, quanto mais para fazê-lo de acordo com os interesses do Brasil. Quer dizer: é mais um problema de insuficiência de poder ou vontade política, não só do Brasil, mas dos demais, que de falta de política apropriada de nossa parte.

Isso não significa que não se haja feito nada. Ao contrário, em ambos os foros a atuação brasileira nos havia posicionado até recentemente de maneira favorável a tirar bom partido de eventual retorno de condições propícias a um avanço. Em termos do Conselho de Segurança, a política do atual governo claramente se demarca da do anterior, cuja tendência era de não valorizar tanto a questão ou de conceber a eventual candidatura brasileira numa espécie de condomínio com a Argentina a fim de não prejudicar o relacionamento com o vizinho. É inegável que o Brasil conquistou neste momento uma situação diferenciada em relação a outros aspirantes latino-americanos, como o México e a Argentina, distanciando-se como o favorito para ocupar uma cadeira que vier acaso a ser destinada à América Latina. Reflexo principalmente do próprio crescimento econômico e estabilidade brasileiras, a percepção diferenciada deve ser também creditada ao ativismo e senso de oportunidade da atual política externa. A surpreendente guinada da atitude brasileira em relação a um regime como o iraniano, objeto de várias sanções do Conselho de Segurança, inspira dúvidas sobre a lógica e a consistência da política que o Brasil vinha perseguindo em relação ao Conselho. Ao aceitar a troca de visitas no mais alto nível com nação geralmente acusada de desafiar as sanções, violar a democracia e os direitos humanos, negar o Holocausto e tentar adquirir armas atômicas, contrariando o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, o País tomou decisão de implicações negativas junto a uma parcela importante e influente da opinião pública mundial que seguramente pesará no momento de eventual reforma da composição do Conselho de Segurança. O recente acordo com o Irã, mediado junto com a Turquia, teria sido um passo relevante, talvez até decisivo, para valorizar a postura brasileira (e turca), caso tivesse sido coordenado e harmonizado com o grupo de "Cinco mais Um" (os cinco

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

11


Wilson Pedrosa/AE

A surpreendente guinada da atitude brasileira em relação a um regime como o iraniano, objeto de várias sanções do Conselho de Segurança, inspira dúvidas sobre a lógica e a consistência da política que o Brasil vinha perseguindo em relação ao Conselho. Na foto, os presidentes Lula e Mahmoud Ahmadinejad (Irã), e o primeiro-ministro turco Recep Erdogan.

membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha). Para isso, ele deveria ter sido precedido e acompanhado de consultas a esses países, dos quais teria de depender a implementação do acordo no Conselho. Ficou evidente, contudo, pela reação dos integrantes do grupo, que o resultado das tratativas em Teerã apareceu como um fato consumado a ser imposto aos demais, já que a solução negociada deixou de cobrir pontos vitais para dissipar a desconfiança. Ademais, a própria atmosfera de triunfo desportivo que cercou a assinatura na capital do Irã, com os patrocinadores erguendo os braços em sinal de vitória, realçou no gesto os aspectos de desafio, não de conciliação, não contribuindo naturalmente para fazer apreciar o acordo pelos destinatários da manobra. O episódio revela, ao mesmo tempo, o potencial e os limites hoje existentes para a afirmação de atores intermediários e a lição a extrair do ocorrido é que o potencial terá possibilidades maiores de se traduzir em frutos concretos na medida em que as iniciativas assumirem natureza mais construtiva. O mérito do esforço brasileiro permanece, mas amputado do êxito completo que se poderia haver esperado, deixando até rescaldos de ressentimentos que poderão complicar o atendimento das aspirações nacionais ao Conselho de Segurança. Os resultados indecisos da empresa não devem igualmente desencorajar outras iniciativas do Brasil em favor da paz e da segurança internacionais, até mesmo em regiões onde nossa presença diplomática, capacidade de influência ou conhecimento da realidade sejam relativamente menos intensas. O importante é que o futuro governo saiba escolher com critério cuidadoso as oportunidades de atuar, buscando medir sem ilusões o balanço de custos e benefícios potenciais e esforçando-se, sempre que as circunstâncias o aconselharem, a agir de maneira cooperativa com outros atores, de modo discreto, sem excessos ou jactâncias geradoras de resistências e reações hostis.

12

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Essa, aliás, deve ser a linha de orientação a ser invariavelmente seguida nos trabalhos do Conselho de Segurança, no seio do qual o Brasil deve se impor pelos méritos de uma diplomacia que represente uma força de moderação e equilíbrio, de conciliação e aproximação de adversários, em consonância com a situação de um país como o nosso, que não é potência nuclear nem militar, não possui veleidades hegemônicas nem está comprometido com rivalidades em conflitos regionais. Sem ansiedades ou ativismos desnecessários, o governo terá então a segurança de que o nome do Brasil há de constituir um consenso crescente da comunidade internacional como aspirante irrecusável no processo de ampliação do Conselho a fim de torná-lo mais representativo das novas realidades internacionais. Os novos grupos de coordenação diplomática Os esforços de articular agrupamentos diplomáticos inéditos com a Rússia, a Índia e a China (BRICs) ou com a Índia e a África do Sul (IBAS) oferecem a vantagem do fato consumado: pelo próprio peso específico, sem qualquer necessidade de delegação dos outros, o Brasil tornou-se efetivamente o representante da América Latina nesses grupos. Não por acaso, eles reúnem os membros permanentes do Conselho de Segurança (China e Rússia) e os aspirantes a essa posição que têm em comum a circunstância de não serem aliados dos Estados Unidos na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Seria uma espécie de clube dos "candidatos naturais" ao reconhecimento de um status internacional mais elevado em cada um dos três continentes: Índia (Ásia, a candidatura do Japão ficando por conta dos norte-americanos), África do Sul (África) e Brasil (América Latina). Os foros Sul-Sul servem para realçar que o Brasil é o ator mais "global" entre os latino-americanos, muitos dos quais confinados a uma diplomacia meramente regional.


Sérgio Lima/Folhapress

O desafio que o futuro governo brasileiro terá de superar, junto com os demais membros, consistirá em contribuir para formular uma plataforma de ação conjunta que signifique na prática um verdadeiro valor adicional desses grupos em relação ao que já vem sendo feito pelo G-20. Para isso seria necessário unificar o comportamento internacional de países com interesses tão heterogêneos como os dos dois grupos mencionados. Ambos são como o G-20 expressão do mesmo fenômeno: a procura por instituições e mecanismos de coordenação e de governança global. Diante do bloqueio da possibilidade de criar estruturas globais novas ou de reformar as existentes dentro do processo legitimador por excelência da Carta da ONU, como seria ideal e desejável, a emergência de grupos de geometria variável como esses demonstra que existe espaço para a inventividade diplomática de países como o Brasil, frustrados pelo impasse onusiano. Até o presente, no entanto, esses agrupamentos não se mostraram capazes de ir além de documentos declaratórios genéricos, sem impacto perceptível naquilo que seria sua finalidade natural: conseguir que os quatro BRICs atuem em uníssono, com uma plataforma de ação comum, no aprimoramento da governança global. Essa tarefa tem ficado virtualmente por conta do G-20, cuja emergência como instância política suprema de coordenação macroeconômica foi, sem dúvida, uma das mais impressionantes transformações da ordem internacional dos últimos anos. A incorporação súbita de novos atores a um processo decisório até então ciumentamente guardado com exclusividade pelas grandes economias avançadas representou, ao mesmo tempo, a imposição de uma exigência nascida da crise financeira mundial e o reconhecimento de modificação na correlação das forças econômicas que já estava em curso. Para o Brasil o salto foi ainda mais significativo por nos habilitar a aceder ao âmbito das grandes decisões financeiras e monetárias a que antes só comparecíamos como réus relapsos de moratórias e atrasos de pagamento. Tratou-se também da ampliação da presença e da influência do País em uma área nova, complementar e decisiva em relação à esfera comercial na qual sempre estivemos atuantes. A coincidência do instante mais agudo da crise de 2008 com a presidência rotativa do G-20 pelo ministro Guido Mantega constituiu uma circunstância feliz, que facilitou o esforço brasileiro de evitar que a convocação se limitasse a um episódio de emergência sem continuidade. Tanto o ministro da Fazenda quanto o presidente Lula exerceram influência considerável para que o processo adquirisse muito mais consistência e permanência, convertendo-se no foro mais elevado das lideranças mundiais. Em estreita articulação com os demais BRICs, o Brasil se empenhou em reformar a arquitetura financeira internacional no sentido de proporcionar aos países emergentes maiores poderes e responsabilidades em todas as instâncias deliberativas na área monetária e financeira, não só nas instituições de Bretton Woods, mas também em organismos como o Foro de Estabilidade Financeira (FSF), transformado em Conselho de Estabilidade Financeira (FSB) de Basiléia, com a incorporação dos países emergentes, assim como em outros foros que congregam supervisores e reguladores do sistema financeiro.

Da esquerda para a direita, o presidente russo Dmitri Medvedev, o presidente Lula, o presidente chinês Hu Jintao e o primeiro ministro indiano Manmohan Singh. Brasil, Rússia, Índia e China formam o BRIC, bloco dos países emergentes.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

13


Uma iniciativa de implicações relevantes nos anos vindouros As negociações na Organização foi a decisão deliberada dos BRICs de conquistarem virtual poMundial de Comércio (OMC) der de veto (blocking minority) ao fazerem um aporte de US$ 92 bilhões (US$ 50 bi da China e US$ 14 bi de cada um dos três, BraSe houve, portanto, diferenças inegáveis em relação ao gosil, Índia e Rússia), mais de 15% do total, à nova estrutura criada verno anterior na ênfase dada ao Conselho de Segurança, bem para socorrer as economias em crise, o chamado New Arrangecomo nas oportunidades antes inexistentes sobre agrupamenments to Borrow (NAB). O poder desse modo adquirido ganha tos que só surgiram agora como o G-20, os BRICs, e outros, exisrelevo particular quando se considera que o volume da facilidate nas negociações da OMC muito mais continuidade do que de criada (US$ 590 bi) é mais do que o dobro do que os US$ 250 bi mudança na linha negociadora seguida pelos governos brasidas quotas/capital regular do Fundo Monetário Internacional. leiros ao longo de muitos anos, primeiro no GATT, mais tarde A questão que se coloca para o próximo governo é como asna sua sucessora, a Organização Mundial de Comércio. Messegurar a contínua relevância do G-20 como foro central das mo as eventuais alterações se afiguram quase sempre desdodecisões no momento em que as crises atuais, concentradas na bramentos naturais impostos por novas fases da Rodada Europa, tiverem afinal sido superadas. Isso significa que o BraDoha, originando-se nos governos passados muitas das posisil se deve preparar a contribuir com competência intelectual e ções e alianças utilizadas na OMC. técnica à tarefa de edificar uma economia nova, menos sujeita O recurso à abertura de contenciosos exemplares como o a crises catastróficas periódicas e evitáveis. Para tal objetivo, dos subsídios ao algodão contra os Estados Unidos (postenão bastará ao País se limitar a uma atitude de vigilância e reriormente contra os subsídios da União Europeia ao açúcar) sistência à tendência das maiores economias avançadas no é uma boa ilustração da continuidade de política de Estado, sentido de reverterem os avanços de democrapois havia sido iniciado pelo governo do pretização do processo decisório uma vez se retorsidente Fernando Henrique Cardoso. É tamne à normalidade. Será indispensável que, bém raro exemplo entre nós de coordenação Sem esmorecer além da atitude vigilante, o governo ganhe efecom órgãos competentes na substância, como nos esforços e na tiva capacidade propositiva no debate sobre o Ministério da Agricultura e entidades primacroeconomia mundial e instituições de revadas representativas dos produtores, cuja atenção que temos gulamentação e supervisão. colaboração, inclusive no financiamento da dedicado à OMC, Posso atestar com a experiência que tive no causa, se revelou decisiva. Ademais, data devemos indagar Ministério da Fazenda que teremos de reforçar igualmente da administração do ministro até que ponto se consideravelmente em número de pessoal tecCelso Lafer a decisão de estabelecer na estrujustifica uma nicamente qualificado a área internacional do tura do Itamaraty um setor especializado em ministério, que dispõe de quadros escassos, emcontencioso, provido dos recursos humanos concentração talvez bora de alta qualidade, como é o caso do atual capazes de empreender uma ação de extraorexcessiva nas Secretário de Assuntos Internacionais (SAIN), dinária complexidade técnica e jurídica, coexpectativas criadas embaixador Marcos Galvão, que tem sido o mo foi a dessa indiscutível vitória da diplopela Rodada Doha. principal representante brasileiro nas reuniões macia comercial brasileira. do G-20. Tanto a SAIN como a SPE (Secretaria de Outro exemplo da continuidade básica na Política Econômica) necessitam dispor de capapolítica do Brasil nas negociações comerciais cidade instalada equivalente à dos ministérios de Finanças das multilaterais é o da criação do Grupo dos Vinte da OMC, inomaiores economias do mundo, das quais o Brasil hoje se aprovação tática que se deveu à iniciativa, acolhida pelo chanceler xima. A mesma recomendação tem de ser estendida à área inCelso Amorim, do então embaixador do Brasil na OMC, Luiz ternacional do Banco Central, ao Planejamento (que representa o Felipe de Seixas Corrêa, que havia sido justamente o secretáBrasil nos bancos regionais) e ao setor econômico-financeiro do rio-geral do Itamaraty na gestão anterior, do ministro Lafer. Itamaraty. Em outras palavras, a diplomacia econômico-finanDiante do persistente impasse nas negociações da Rodada ceira era, até recentemente, um campo virgem para o governo, Doha, o próximo governo não poderá deixar de conduzir um que terá de lhe dar atenção à altura de sua importância determiexame criterioso da conveniência de remanejar as prioridades da nante para o futuro de nossa economia. diplomacia comercial do Brasil. Não se trata obviamente de reO futuro presidente deveria igualmente estabelecer, sob a comendar que se desconheça o valor insubstituível da Organiliderança do Ministério da Fazenda, um mecanismo permazação Mundial de Comércio como o foro por excelência para nente de diálogo e consulta com setores da sociedade civil – avanços em temas sistêmicos, como o dos subsídios agrícolas ou lideranças parlamentares, empresariais, universitárias – sobre para a solução quase-judicial de contenciosos. Sem esmorecer temas da agenda da diplomacia econômico-financeira internos esforços e na atenção que temos dedicado à OMC, devemos nacional com implicações para a vida brasileira. Valeria a pena indagar até que ponto se justifica uma concentração talvez extambém propor aos outros membros latino-americanos do Gcessiva nas expectativas criadas pela Rodada Doha. A verdade é 20, o México e a Argentina, que se crie um processo de diálogo que a indústria brasileira, que sofre de problemas crônicos de e informação com os países da região não integrantes do grupo competitividade, revela escasso entusiasmo pelos ganhos poa fim de melhor encaminhar suas aspirações e oferecer-lhes tenciais da Rodada, temendo que os benefícios da eventual reum sentimento de participação e envolvimento nas decisões. dução nos picos tarifários em produtos sensíveis (têxteis, calça-

14

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Jean Pierre Clatot/AFP

dos, artigos de couro) sejam América Latina e praticamente monopolizados América do Sul pelos chineses e outros asiáticos. Receiam ainda que, em Na América do Sul, o Brasil decorrência de tal redução, tenão pode tudo, mas pode alrão o ônus adicional da maior go. Em tese, a diplomacia brapenetração asiática no mercasileira teria tido condições de do doméstico brasileiro. agir mais ou de agir de modo A compensação que espediferente. Por exemplo, entre ramos receber em agricultura o Uruguai e a Argentina, para precisa também ser submetiajudar, como facilitador, dois da a um crivo analítico rigorovizinhos prioritários e memso. Os subsídios agrícolas, é bros do mesmo acordo de inclaro, somente serão reduzitegração a superarem o condos de modo apreciável nas flito em torno da instalação negociações multilaterais, de empresas de papel em solo sendo essa a razão principal uruguaio. Antes da sentença que aconselha nosso contída Corte Internacional de Jusnuo engajamento. Deve-se, tiça, na Haia, os dois govercontudo, examinar até que nos atravessaram anos de ponto assiste razão à Confetensões e desentendimentos, deração Nacional da Agriculcom implicações negativas tura, para a qual o problema para outras áreas (por exemnão viria tanto dos subsídios, plo, o veto uruguaio a Nestor mas sim das barreiras de acesKirchner que paralisou por so aos mercados externos. meses a escolha do secretárioExistem também estudos do geral da Unasul). Em matéria de conquista de acesso, os acordos bilaterais Banco Mundial que chegaO Uruguai e a região do Rio são geralmente mais eficazes que as complicadas ram à mesma conclusão: os da Prata são, incontestavelnegociações na OMC. Na foto, o ministro Celso Amorim. ganhos de acesso seriam mais mente, as áreas do mundo onsubstanciais que a diminuide o Brasil possui mais longa ção dos subsídios. A expetradição de envolvimento, riência recente indica que, em matéria de conquista de acesso, os melhor conhecimento direto das situações e mais numerosas e acordos bilaterais são geralmente mais eficazes que as negocialegítimas razões para desejar um desenvolvimento pacífico. ções longas e complicadas como as da OMC. Agora que o pior passou na crise argentino-uruguaia, o fuRecomenda-se, desse modo, que, paralelamente à contituro governo deveria tentar desempenhar papel construtivo nuação do empenho brasileiro na Rodada Doha, se devote ao de aproximação entre os dois mais íntimos de nossos vizinhos. menos tempo e esforços comparáveis a iniciativas menos amSem necessidade de estimular a proliferação de organizações e biciosas, nas quais é possível alcançar resultados mais imediaburocracias redundantes, bastaria reativar o Tratado da Bacia tos e tangíveis. Se, por exemplo, nos últimos oito anos, em ludo Prata, injustamente esquecido e que possui competência tegar de apostar tudo em Doha, tivéssemos dedicado mais enermática em problemas de vizinhança como os que ainda opõem gia e atenção a remover ou reduzir as barreiras fitossanitárias o Uruguai à Argentina. Existe um potencial rico de projetos a às nossas carnes, frutas e vegetais frescos em alguns mercados serem retomados para a revitalização das áreas de fronteira, específicos, talvez tivéssemos agora resultados mais alentadopara a pesquisa comum em agronegócios, para a proteção do res. Idêntico raciocínio vale para os acordos bilaterais. Quem meio ambiente e das águas dos rios da bacia. Com o Uruguai, sabe se um esforço mais sistemático e intenso de nossa parte por exemplo, seria interessante retomar o exame da viabilidanão nos teria proporcionado acordos de livre comércio mais de dos projetos de obras comuns para a valorização da zona de significativos do que a magra colheita atual, reduzida praticafronteira da bacia da Lagoa Mirim. São ações que nada têm de mente aos acordos com o Peru, o grupo andino e Israel? espetacular, mas que podem ajudar enormemente a aumentar Não deve haver ilusões quanto às dificuldades de obter o sentimento de solidariedade e colaboração com os vizinhos, acordos desse gênero com grandes países por razões que serão combatendo o sentimento de frustração que os afeta em relaexaminadas mais adiante. O que se propugna é apenas uma ção às promessas não-realizadas do Mercosul. atitude de realismo em relação às negociações multilaterais na A mesma abordagem se aplica à necessidade de que o próconjuntura difícil pela qual passa o mundo. A conseqüência a ximo governo brasileiro corrija a parcialidade ocasional e a quaretirar dessa constatação é que temos de explorar todos os case permanente omissão do atual em relação a outros conflitos minhos comerciais possíveis, procurando não concentrar nossul-americanos. O País teria de começar por uma posição de risa diplomacia comercial exclusivamente no âmbito da OMC. gorosa equidistância e de estrita não-ingerência em eleições ou

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

15


processos políticos internos de vizinhos, o que tem sido cada vez menos frequente nestes tempos de diplomacia de afinidades partidárias e ideológicas. O corolário da confiança que decorreria de tal postura seria a credibilidade para um esforço brasileiro de pacificação entre a Venezuela e a Colômbia ou de reconciliação desta última com o Equador, todos vizinhos próximos, com os quais mantemos felizmente relações de colaboração e cordialidade. Aqui também existiria um instrumento idôneo para impulsionar a colaboração de interesse recíproco, o Tratado de Cooperação Amazônica, cujo potencial tem sido sistematicamente desaproveitado. O Tratado reúne todos os países da metade setentrional da América do Sul, inclusive as duas Guianas independentes. Representa a única estrutura que possibilita uma coordenação dos esforços para melhor proteger os complexos e ameaçados biomas dessa gigantesca região e para uma abordagem integrada dos rios amazônicos, a maioria dos quais possuem suas nascentes nos países vizinhos.

Nesse domínio, creio que o futuro governo deveria preocupar-se menos em multiplicar estruturas novas na realidade ou na aparência e mais em tornar efetivas e operacionais as estruturas ou processos já existentes, sobretudo quando estes justificam a existência por razões concretas que permaneçam válidas em nossos dias. É o que me parece ser o caso da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional SulAmericana (IRSA) do governo passado, que tem avançado sem alardes publicitários e conserva toda sua atualidade uma vez que o problema da falta de uma integração das redes de transporte na América do Sul continua a ser um dos maiores obstáculos à efetiva integração das economias. A mesma afirmação se aplica aos tratados já citados acima, o da Bacia do Prata e o de Cooperação Amazônica. Marcello Casal Jr./ABr

Diplomacia gestual A contradição entre a busca incessante de resultados de prestígio nos agrupamentos aparecidos em época recente como o G-20 e os BRICs contrasta com o desempenho sensivelmente mais mitigado no eixo de direta influência brasileira, o imediato entorno da América Latina e do Sul. Não que tenham faltado aqui os exemplos do talento aparentemente inesgotável de criar foros novos (o Conselho de Defesa) ou de rebatizar com nome novo grupos pré-existentes (como a Comunidade de Nações Sul-Americanas ou CASA, transfigurada em União de Nações Sul-Americanas ou Unasul). Não se deixou até de estabelecer uma "OEA sem Estados Unidos ou Canadá", curiosamente iniciativa do México, o primeiro país latino a se associar no Nafta aos dois gigantes desenvolvidos do hemisfério norte num acordo de livre comércio e talvez por isso preocupado em atenuar seu isolamento em relação aos ibero-americanos. Esse tipo de diplomacia (não só do Brasil) merece talvez o qualificativo de "gestual" no sentido de que a ausência de condições objetivas ou de resultados palpáveis é menos importante do que o gesto em si mesmo. Às vezes se assemelha a uma fuite en avant: o aumento da dose de remédio que não está dando certo, um pouco como a anotação feita por célebre orador peruano à margem de parágrafo de um discurso - argumento débil, reforzar el énfasis. Até pouco tempo atrás, a diferença de estilos e resultados entre os eixos globais e regionais chegava a alimentar a versão da existência de uma suposta dualidade de comandos diplomáticos, correspondendo a uma espécie de divisão de áreas de influência entre a Chancelaria e a Assessoria Internacional da Presidência, se não de forma sistemática e permanente, ao menos em alguns assuntos ou determinados momentos. Todavia, nesses últimos dez a doze meses, o padrão de tentar ignorar ou superar a realidade por meio do voluntarismo e da retórica mediática tende a se disseminar do continente para áreas mais distantes como sugere a busca de cenários improváveis para o exercício do protagonismo diplomático entre israelenses e palestinos ou na explosiva questão nuclear do Irã.

16

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

O ingresso da Venezuela no Mercosul é um dos exemplos de decisões de graves implicações na AL sobre os quais até hoje a opinião pública tem dificuldade em compreender a motivação brasileira e o próprio desenrolar do processo decisório.

Venezuela e Mercosul O ingresso da Venezuela no Mercosul é um dos exemplos de decisões de graves implicações na América Latina sobre os quais até hoje a opinião pública tem dificuldade em compreender a motivação brasileira e o próprio desenrolar do processo decisório. A impressão que se colheu no momento do convite formulado por Nestor Kirchner, quando a Argentina exercia a presidência do bloco, foi de que ele não havia sido precedido de consultas entre todos os membros, nem de avaliação cuidadosa das implicações. Uma análise criteriosa teria provavelmente demonstrado a falta de sentido em promover a entrada de país que só poderia aumentar os problemas agudos de que sofre o grupo, entre eles, a ausência de compatibilidade entre orientações macroeconômicas, adicionando um complicador ideológico, o so-


cialismo do século 21, à economia de mercado dos demais. Se já existe impaciência crescente com a pesada máquina decisória da união aduaneira e as dificuldades, supostas ou reais, que ela cria para a negociação de acordos comerciais com terceiros, a adição de governo atritado com inúmeros outros como o venezuelano apenas dificultaria ainda mais os impasses. Detentor do maior peso específico no grupo teria sido normal que o Brasil ponderasse que as adesões a acordos comerciais de extrema ambição como as uniões aduaneiras demandam longo processo prévio de negociação técnico-comercial, como ocorre na Organização Mundial de Comércio até para o simples ingresso na Organização. Não seria necessário antagonizar o regime de Chávez, nem invocar argumentos de ordem ideológica, mas simplesmente lembrar e fazer respeitar

Questões polêmicas Com efeito, os contornos da controvérsia sobre a orientação diplomática atual coincidem em larga medida com esse domínio. As prioridades para a próxima administração terão de coincidir naturalmente com esses problemas e sua efetividade deverá ser avaliada pela capacidade que revele de encaminhar solução para os seguintes problemas: a) a persistente incapacidade de resolver os contínuos atritos e contenciosos com a Argentina em matéria comercial; b) a passividade e falta de iniciativa corretiva frente ao descrédito do Mercosul; c) a incompreensível renúncia a acionar os meios pacíficos do direito internacional em defesa de direitos brasileiros atropelados em incidentes como o da violação boliviana de tratados e contratos sobre o gás; d) a imprudente ingerência nas eleições bolivianas e paraguaias por motivo de simpatias ideológicas; e) a parcialidade na campanha contra o acordo militar entre a Colômbia e os Estados Unidos, em contraste com a omissão diante de iniciativas de compra de armamentos de Chávez ou de suas frequentes provocações aos colombianos; f) a falta de senso de medida e equilíbrio em relação ao golpe hondurenho, ao mesmo tempo em que se mantinha incoerente complacência frente a regime controvertido como o cubano, sem falar no iraniano. Muitas dessas dificuldades nos foram impostas por uma adversa evolução na região nestes últimos anos, que se processou em direção oposta à convergência de valores e modelos de organização político-econômicos registrada na Europa e no mundo após o fim do comunismo. Na América do Sul, ao contrário, a integração e até o bom convívio normal têm sido dificultados por processos radicalizados de refundação e lideranças polarizadoras de tensões e conflitos, internos e externos. Uma leitura realista da situação exigiria reconhecer os limites do que é possível fazer com esses governos. Abriria espaço, por outro lado, nos próximos anos, a uma diplomacia alternativa mais sintonizada com os países que adotam posturas econômicas e políticas centristas mais próximas às nossas. Não por acaso, esses países são aqueles que, pelo tamanho ou desempenho econômico, ofereceriam oportunidades mais promissoras: México, Chile, Colômbia, Peru, Uruguai. Unasul e Conselho de Defesa

um princípio elementar de negociação comercial. O governo poderia ter feito algo nessa linha, mas preferiu não fazer. A questão não seria tanto de falta de poder, mas da falta de vontade para exercer tal poder da forma mais adequada para defender os direitos e promover os interesses do Brasil, utilizando o diferencial em nosso favor. Sendo essa a região do mundo onde a influência brasileira, no passado e no presente, sempre se fez sentir de modo mais forte e imediato, o natural é que o governo futuro concentre nela as maiores realizações da diplomacia. É igualmente nessa área que a diplomacia brasileira terá de demonstrar sua capacidade superior para superar obstáculos, persuadir recalcitrâncias, edificar obra concreta. Paradoxalmente, entretanto, até agora, a maioria das divergências sobre falhas e equívocos da política exterior se refere a assuntos sul ou latino-americanos.

Não obstante a evidente ausência dos requisitos objetivos mínimos, a diplomacia do governo atual insistiu em edificar um espaço político-econômico que utilizasse não o conceito de América Latina, mas apenas o da América do Sul. Em projetos de caráter territorial justifica-se optar por esse gênero de integração exclusiva, como sucede com a referida Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana ou IIRSA. É muito mais difícil estender o critério a áreas mais amplas e complexas como as do comércio e da defesa, que dependem não da contiguidade territorial, mas da compatibilidade de visões políticas e econômicas. Em contexto regional de aumento da divergência de modelos, de desconfianças e animosidades, projetos como o da Unasul ou do Conselho de Defesa correm risco considerável de passarem à história como meras expressões de uma diplomacia

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

17


gestual cujo potencial se esgota em reuniões que constituem do-nos no mercado americano tratamento preferencial equium fim em si mesmo, sem maiores consequências. valente ao dos outros. Na ausência do acordo de livre comérO mínimo que se deveria exigir de tais grupos é que lograssem cio, a prioridade de qualquer governo brasileiro futuro deve o que a Argentina, o Brasil e o Chile tinham consolidado no Acorser a de negociar algum arranjo alternativo que preencha o vádo do A.B.C., há mais de um século, a saber, a reafirmação da mais cuo desvantajoso da falta de preferências em que se encontram estrita observância do princípio de não-ingerência nos assuntos presentemente os produtos brasileiros. Essa prioridade cointernos dos vizinhos e o compromisso de não permitir a presenmercial vale tanto para o mercado dos EUA, no qual estamos ça ou ações de movimentos armados nas zonas fronteiriças. sendo discriminados pelas preferências outorgadas aos proObjetivo como esse teria de constituir a pré-condição básica de dutos oriundos de acordos da ALCA quanto para os mercados qualquer união de países, parecendo, entretanto, fora do alcance dos latinos (como o Chile ou o México), onde enfrentamos a de uma organização que se intitula com alguma pretensão de concorrência favorecida das exportações norte-americanas. "União de Nações Sul-Americanas". Para que serve o Conselho de Defesa se não somos sequer capazes de adotar uma posição Relações com os EUA comum a respeito das guerrilhas das FARCs? Sem esse mínimo dos mínimos, não se concebe que a Colômbia, país que luta há Esse vazio ilustra a persistente incapacidade de alcançar meio século contra guerrilhas e narcotraficantes, aceitasse abrir com os Estados Unidos uma relação madura e construtiva mão da assistência militar dos Estados Unidos. Por desejável que da qual um elemento indispensável teria de ser uma base de seja evitar a presença militar americana no concrescentes vantagens mútuas no comércio e tinente não se vê bem que alternativa existiria pana complementação de cadeias produtivas e ra que Bogotá obtivesse os recursos e o knowexportadoras. Tentou-se durante a adminishow de que necessita. O Brasil, impotente diante tração de George W. Bush revitalizar essas reÉ presumir do controle exercido pelo narcotráfico em morlações, superando o impasse da ALCA com demais da própria ros do Rio de Janeiro e longe de poder oferecer uma colaboração em torno do etanol. Além importância querer assistência militar e policial a quem quer que sede obviamente estreito demais para fundaexigir de um ja, dispõe de escassa autoridade para censurar os mentar uma relação mais vasta, o esforço não vizinho ameaçado colombianos por buscarem quem os ajude. foi capaz de sobrepujar o protecionismo em relação ao etanol de milho americano, cujas por problemas de A questão das preferências comerciais notórias insuficiências ambientais até contaguerrilha e de minaram por associação a reputação do etanarcotráfico que É presumir demais da própria importância nol brasileiro. escolha entre nós e querer exigir de um vizinho ameaçado por proÉ paradoxal que no governo Obama o relaos Estados Unidos blemas de guerrilha e de narcotráfico que escocionamento com Washington principie a delha entre nós e os Estados Unidos em matéria de nunciar sinais de um alargamento das diverem matéria de defesa defesa contra tais flagelos. Situação idêntica pregências em torno de uma agenda negativa em contra tais flagelos. valece no âmbito econômico e comercial no caso expansão: o manejo do golpe de Honduras e daqueles países latinos e sul-americanos – e não agora da situação pós-eleitoral naquele país; são poucos – para os quais o mercado norteo acordo de cooperação militar da Colômbia americano representa 50% ou mais do destino de suas exportacom os EUA; as responsabilidades americanas pelo impasse ções. O Brasil não tem evidentemente condições de rivalizar com da Rodada Doha e ultimamente o complexo de questões reos EUA como mercado importador ou fonte de investimento, lativas ao Irã, a seu programa nuclear e à maneira de tratar uma vez que há décadas acumulamos com quase todos os sulcom o regime iraniano. americanos saldos comerciais crescentes. Nem mesmo dentro Independentemente do mérito das posições que o goverdo Mercosul o País conseguiu desempenhar o papel de mercado no brasileiro sustenta nesses assuntos, é inegável que os impulsionador do crescimento do Uruguai e do Paraguai. americanos têm mantido comportamento mais profissional Não surpreende, assim, que até no âmbito restrito da América e sóbrio que o dos nossos dirigentes, que não se privaram de do Sul, três países médios e talvez não por acaso os de melhores externar críticas gratuitas e pouco construtivas posto que fundamentos e desempenho econômico, o Chile, o Peru e a Cofeitas de público e pela imprensa, fora do contexto do diálolômbia, tenham optado pela fórmula dos acordos de livre comérgo diplomático ou dos foros competentes. A tensão oriunda cio com os EUA. Inviabilizou-se assim a possibilidade de uma da multiplicação de tais desencontros começa a encontrar zona comercial puramente sul-americana, gerando ao mesmo expressão na imprensa e no Congresso dos EUA e só tem sido tempo para as exportações brasileiras o perigo de tratamento disfarçada na área oficial pelo reconhecimento do papel modiscriminatório frente às de procedência americana. derador do Brasil num contexto sul-americano conturbado As negociações da ALCA não conseguiram infelizmente por personalidades mais abrasivas e provocadoras que as produzir um terreno de equilíbrio e entendimento entre as exdos nossos líderes. Pondo de lado o aplauso dos setores hospectativas demasiado ambiciosas de Washington e concessões tis aos americanos, vale indagar: o que ganha o Brasil com norte-americanas, especialmente em agricultura, que atenessas atitudes pouco conducentes à solução serena dos espidessem aos interesses do Brasil e do Mercosul, proporcionannhosos pomos de discórdia evocados?

18

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Os problemas do comércio exterior

cionar e encaminhar os problemas que ora afetam negativamente a taxa cambial e os outros componentes da competitividade. No momento em que escrevo, o comércio exterior brasileiro Suspeito que a complexidade do desafio e os conflitos de posivive uma aguda crise de competitividade, manifestada no aceções inevitáveis nessa matéria exigirão o envolvimento pessoal e lerado declínio do saldo na balança comercial e no alarmante constante do Presidente da República a fim de que se possa de agravamento do déficit em conta corrente. A gravidade da sifato dispor de um mecanismo eficiente de coordenação de todos tuação é acentuada pela tendência aparentemente irreversível os órgãos relevantes dos quais depende uma boa condução do para a erosão das vantagens competitivas dos produtos macomércio exterior. Ainda estamos engatinhando nessa área connufaturados e a crescente concentração das exportações em forme prova o espantoso episódio da decisão (felizmente não número sempre menor de commodities e artigos de baixo níaplicada) em fins de 2007 de impor direitos específicos a calçavel de elaboração derivados de recursos naturais. dos, têxteis e outros produtos. Como terá sido possível que técNão é este o lugar apropriado para discutir os desequilíbrios nicos da Receita Federal tenham obtido a promulgação de tal memacroeconômicos que se encontram na raiz do problema, a condida sem consultas prévias ao Ministério de Desenvolvimento, juntura de crescimento puxado quase exclusivamente pelo conIndústria e Comércio (MDIC) e ao Itamaraty, sem falar na CAsumo do governo e dos particulares, a baixa poupança, o invesMEX, a Câmara de Comércio Exterior? Como a decisão teria pastimento insuficiente e a inelusado pelo filtro da Casa Civil? Itamar Miranda/AE tável contrapartida de todo A nossa patética descoordenaesse quadro, que consiste no ção e fragilidade institucional aumento da dependência em ficaram dramaticamente parelação à poupança externa e tenteadas naquele instante. aos influxos financeiros de foAdmitindo otimisticara. O que não se pode esconmente que o próximo goverder é que a taxa de câmbio reno seja competente ao menos presenta papel fundamental para encaminhar soluções na deterioração das contas exefetivas para a maioria dessas ternas, não sendo possível codeficiências, passaríamos a gitar de solução duradoura ter condições para levar a efeipara os problemas do comérto política comercial menos cio exterior em abstração da marcada por uma postura dequestão cambial. fensiva, legítima, aliás, nas É verdade que, além do circunstâncias correntes, mas A péssima infraestrutura de transportes e portos faz parte câmbio, outras deficiências esque nos priva de quase qualde um conjunto de fatores que formam o "custo Brasil", truturais afetam duramente a quer espaço de manobra para responsável pelo alto custo de transação em nosso País. capacidade brasileira de conconduzir iniciativas ofensicorrer nos mercados mundiais vas dada a impossibilidade com os asiáticos e outras estrede oferecer compensações. las do comércio contemporâneo. O altíssimo custo do capital, a Em tal caso, seria possível encetar negociações de acordos com sufocante carga de tributos, a burocratização e baixa qualidade da atores médios – México, Austrália, Canadá, Egito, sul-africaregulamentação governamental, a péssima infraestrutura de nos, países do Golfo – como preparação para voos mais ambitransportes e portos, enfim, o conjunto dos fatores que formam o ciosos em relação aos grandes mercados: União Europeia, Es"custo Brasil", responsável pelo alto custo de transação em nosso tados Unidos, Japão, Índia, Coreia do Sul, ASEAN. País. Todos esses elementos se situam em área de competência Sem preconceitos, mas atentos ao interesse objetivo nacional, muito além do alcance da política exterior, mas é inegável que seria aconselhável reexaminar a questão dos temas da "nova sem a solução parcial ou completa dessas permanentes causas da agenda" dos acordos de livre comércio: propriedade intelectual, baixa capacidade brasileira de competir não é muito o que a diproteção de investimentos, compras governamentais, cláusulas plomacia comercial poderá fazer deixada a si mesma. ambientais e trabalhistas. Somos geralmente refratários a esses Existem disseminadas entre nós ilusões desmesuradas sotemas e por boas razões, pois quase sempre é essa uma agenda bre a capacidade que têm as negociações comerciais ou os que pouco tem a ver com os interesses brasileiros. Não se deve, acordos bilaterais ou regionais de alterar essa ingrata realicontudo, descartar de saída que haja algum espaço para ser fledade competitiva. Não se percebe o bastante que negociaxível dentro de certos limites, sobretudo quando o crescimento e ções e acordos, mesmo quando bem sucedidos e executados, o amadurecimento da economia brasileira começam a mudar podem no máximo gerar oportunidades de exportação. nossa perspectiva, como ocorre com a proteção dos nossos semAproveitar essas oportunidades vai depender, como sempre mais vultosos investimentos fora do País graças à transnapre, da capacidade de oferta de produtos de qualidade e precionalização de algumas de nossas empresas. ço competitivos nos mercados, o que passa por câmbio favoA questão é, acima de tudo, de equilíbrio. A recusa de prinrável acima de tudo e os demais fatores acima citados. cípio a discutir temas desse tipo acaba nos limitando seriamenPor essa razão, o futuro governo terá de primeiramente equate. Não deveríamos em nenhuma circunstância aceitar em pro-

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

19


priedade intelectual dispositivos que limitem a produção de Neves declarava: "(...) se há um ponto na política brasileira que genéricos. Será, porém, que não haveria espaço e até interesse encontrou consenso em todas as correntes de pensamento, esse próprio para proteger certas patentes na área do agronegócio ponto é a política externa levada a efeito pelo Itamaraty." Transou para combater a pirataria? corridos 25 anos dessas palavras, a simples leitura dos jornais ou No que tange ao futuro do Mercosul, o governo não terá como o acompanhamento dos debates no Congresso são suficientes evitar um reexame da conveniência de manter ou não a União para indicar que esse consenso deixou de existir. Aduaneira e/ou a Tarifa Externa Comum (TEC). Uma decisão a A crise do consenso brasileiro é produto não só das questões respeito deve ser embasada em ampla consulta aos setores indussubstantivas da política externa propriamente dita, mas também triais que se beneficiam da TEC (veículos, autopeças, eletroeleda "política interna" da diplomacia, isto é, a maneira como ela é trônicos, máquinas, químicos) ou que se beneficiariam potencialformulada e apresentada à opinião pública, a seus formadores, mente de uma TEC sem tantas perfurações (bens de capital, inaos políticos e o modo como é percebida por esses últimos. Dessa formática e telecomunicações), principalmente em razão das perspectiva, a responsabilidade maior cabe a comportamentos margens de preferência no mercado argentino. Caso se reconfirconcentrados nos seguintes fatores que afetam a possibilidade me a percepção corrente de que esses setores dependem das marde edificar consensos em política exterior: a ênfase na ruptura, gens de preferência para manter suas em lugar da continuidade; o excesso Jorge Araújo/Folha Imagem exportações diante de concorrentes de protagonismo e glorificação da liextra-zona nos mercados dos viziderança pessoal de Lula; a autossufinhos, haveria um argumento de peso ciência na formulação e condução; a para continuar enfrentando os custos politização partidária e ideologizade preservar uma política comercial ção da política externa. comum frente a terceiros. Mesmo porque a impressão generalizada de que, Ênfase na ruptura sem os parceiros do Mercosul, o Brasil teria maiores facilidades de negociar Os dirigentes atuais, destacandoacordos bilaterais é provavelmente se nisso o presidente, não souberam equivocada, uma vez que boa parte em geral resistir à tentação de se atridos obstáculos nessas negociações é buir o crédito total pelos eventuais proveniente da resistência compreenêxitos que tiveram. Buscaram fazer sível da indústria brasileira. crer que era novo e sem precedentes Talvez seja viável trabalhar com fórtudo o que empreendiam. De maneimula de meio-termo: uma União Tarira geral, Lula e seus colaboradores no fária, formal ou informal (alinhamenItamaraty tiveram a possibilidade de to voluntário como na ASEAN), com admitir e valorizar, nos assuntos que flexibilidade para negociações exterapresentavam autêntica continuidanas em separado, sem a sobrecarga de com o passado, a parcela maior ou burocrática das exigências para uma menor que teriam acaso herdado de efetiva União Aduaneira. Tal situação governos anteriores, mas preferiram não seria radicalmente diferente da apropriar-se todo o mérito em nome Para Tancredo Neves, a política externa realidade atual, faltando apenas a fledo governo atual e de seu partido. brasileira era consenso em todas as correntes. xibilidade para negociações externas Naturalmente é opção sem surpredentro de critérios a definir. sa, mas seguramente não será a meQualquer que seja o caminho, prelhor em termos de construção de concisaremos de liderança política no mais alto nível, pois esses sensos. Há, com efeito, nessa matéria uma espécie de "trade off": temas não se resolverão sem direto envolvimento presidennão é possível monopolizar o crédito para o governo e seu partido cial. Infelizmente as cúpulas do Mercosul se transformaram e esperar, ao mesmo tempo, que os injustamente excluídos do reem espetáculos vazios de mídia, com a presença indevida de conhecimento se sintam partes integrantes dessa política. convidados estrangeiros, longos discursos e virtual ausência de qualquer discussão real e de substância sobre os assuntos Excesso de protagonismo difíceis da agenda de trabalho. São traços indiscutíveis desta fase política brasileira o abuso A crise do consenso em política exterior do protagonismo e o excesso de glorificação personalista, criando a impressão de que se depende cada vez mais das quaNão faltam, por conseguinte, questões de conteúdo na diplolidades de desempenho do líder supremo. Aliás, a política exmacia atual capazes de alimentar diferenças honestas de avaterna não constitui exceção no panorama geral de um governo, liação e julgamento, dissolvendo o relativo consenso multiparcujos ministros são quase anônimos. Da maioria deles se ignotidário que prevalecia na véspera de fundação da Nova Repúra até o nome, quanto mais o que fazem ou deixam de fazer. blica, a julgar pelo discurso de fins de 1984, no qual Tancredo Nenhum desses defeitos costuma facilitar o consenso inter-

20

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


no ou externo em diplomacia. Basta pensar num exemplo contrário, o do presidente Truman, ao lançar o maciço programa de ajuda aos europeus não sob seu nome, mas debaixo da tutela do ex-chefe do Estado-Maior durante a guerra, o general Marshall, considerado então "o maior americano vivo".

visão de "esferas de influência" converteu-se em causa de complicações, de que foram exemplos as incursões na política interna da Venezuela, em momentos de tensões naquele país; a falta de isenção ideológica com que se tem acompanhado a campanha eleitoral em países vizinhos; a parcialidade citada antes em relação ao acordo militar da Colômbia com os EUA; o contraste Autossuficiência entre as reações ao golpe hondurenho e a complacência diante de Cuba ou do Irã e numerosos outros episódios. Quanto à autossuficiência, perceptível na exclusão de muitos Não há evidências de que essas afinidades ou simpatias tedos mais talentosos e experientes diplomatas brasileiros, marginham demonstrado eficácia ou utilidade perceptível para ennalizados das decisões importantes e de sua execução, ela se macaminhar soluções satisfatórias quando surgem questões espinifesta também no isolamento em relação a setores influentes da nhosas como as que opuseram o Brasil à Bolívia. A diplomacia sociedade brasileira. O diálogo com lideranças empresariais e paralela do PT parece, assim, servir mais para contaminar deseconômicas, no que se refere ao comércio exterior, tem se revelado necessariamente a política exterior com suspeitas ideológicas insuficiente. Na questão crude que para qualquer propóRicardo Stuckert/PR cial do aquecimento climátisito prático. co, tema onde a diplomacia Tê m - s e m u l t i p l i c a d o brasileira teria tudo para detambém, da parte de alguns sempenhar papel decisivo, dos diplomatas de carreira caso deixasse de insistir em em postos de comando, tendiscurso defensivo obsoleto, dência a engajar a política é flagrante a falta de sintonia externa no desígnio político com a comunidade científica do governo, mediante a tene ambientalista nacional. tação de se comportarem, Em democracias maduras não como servidores imparsempre se procurou impriciais do Estado, mas como mir à diplomacia um caráter militantes partidários. De aberto à participação efetiva novo ressalta aqui o conmesmo da oposição. Nos Estraste marcante com situatados Unidos, por exemplo, o ções anteriores. O último Quem faz diplomacia de partido mostra modelo ideal de que se tem chanceler de Goulart, por indiferença pelo esforço de converter tais ações nostalgia até nossos dias é o exemplo, embaixador João em causas autenticamente nacionais. do "consenso bipartidário" Augusto de Araújo Castro, com os republicanos no inírecusava invariavelmente cio da Guerra Fria. Na França participar de qualquer ato de Sarkozy, qualquer que tenha sido sua motivação, o presidencom sentido ou aparência de política interna. te foi buscar no partido socialista seu ministro de Assuntos EsMais do que um valor perfeito e absoluto, inatingível na prátrangeiros e numerosas personalidades convidadas a cumpritica, o consenso sobre diplomacia é objetivo desejável sempre rem missões internacionais de relevo. No Brasil de hoje seria dique possível de edificar mediante compromissos razoáveis fícil encontrar algum exemplo dessa tendência salutar. com a oposição, sem sacrifício de valores mais altos. Um grau maior ou menor de honesta divergência pode ser até saudável Interferências partidárias e ideológicas desde que não derive de uma subordinação instrumental da política externa a ganhos partidários ou ideológicos internos. O discurso de Tancredo deixava claro não ser uma política exNesse caso, renuncia-se à possibilidade de assegurar a contiterna qualquer a que mereceria consenso, mas apenas a "levada a nuidade de políticas de Estado que devem, em princípio, fazer efeito pelo Itamaraty." Não se tratava da política dos militares no apelo não a facções, mas ao conjunto dos cidadãos. poder, de um determinado governo ou facção, mas de uma poNesse particular, seria difícil encontrar melhor explicação lítica de Estado, acima das disputas internas e a serviço da nação. das vantagens potenciais da busca do consenso do que as paConvém recordar que a etimologia da palavra "partido" significa lavras com que o barão do Rio Branco explicava porque se afasfragmentado, rompido, quebrado, parte do todo que é a nação. tara em definitivo da política interna e não tinha querido aproQuem faz diplomacia de partido mostra indiferença pelo esforço veitar sua imensa popularidade para lançar-se candidato a de converter tais ações em causas autenticamente nacionais. presidente: "(...) seria discutido, atacado, diminuído, desautoÉ incompatível com esse objetivo a existência de uma "diplorizado (...) e não teria como Presidente a força que hoje tenho macia paralela" do Partido dos Trabalhadores junto a governos (...) para dirigir as relações exteriores. Ocupando-me de assunou movimentos ideologicamente afins, exercida por meio de tos ou causas incontestavelmente nacionais, sentir-me-ia mais contactos fora dos canais diplomáticos e emissários como o asforte e poderia habilitar-me a merecer o concurso da animação sessor de política externa da Presidência da República. Tal dide todos os meus concidadãos" (grifado por mim).

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

21


Andrei Bonamin/LUZ

Roberto Macedo Economista (UFMG, USP e Harvard). Na USP, foi professor titular, chefe do departamento de Economia e diretor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Economia, presidente da Eletros (Assoc. Nacional de Fabricantes de Prods. Eletroeletrônicos) e do Sindigás (Sindicato das Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo). É consultor da Faculdade de Economia da FAAP, vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo e sócio das consultorias MGSP e Websetorial. O autor agradece comentários de Joaquim Toledo, Mariano Macedo, Patrícia Marrone, Ulisses Ruiz de Gamboa e José Roberto Afonso, bem como a colaboração de Carlos Waack no levantamento de dados e outras informações.

22

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Fundamentos para da política macr


Resumo

a reformulação oeconômica

Arte de ALFER sobre foto de Jamil Bittar/Reuters

Este artigo examina inicialmente as diferentes circunstâncias que na economia marcaram os mandatos do atual presidente da República e de seu antecessor. Conclui que circunstâncias mais favoráveis, principalmente as da economia mundial – e não ações governamentais –, foram o elemento predominante do melhor desempenho da economia no período mais recente. Em seguida, constata que o Brasil vive, conforme se argumentará com detalhe, uma situação de "subdesempenho satisfatório" ou de expectativas não ampliadas, pois o contentamento popular e a euforia demonstrada e difundida pelo Governo Federal não condizem com o status pouco vigoroso do País segundo vários indicadores, tanto em termos absolutos como em comparações internacionais. Na sequência, argumenta-se que essa percepção deve fundamentar a ação política para reverter esse subdesempenho, e alcançar bem-estar econômico-social maior e solidamente assentado em seus fundamentos. Para tanto, propõe uma reformulação da política macroeconômica que deixa de lado conceitos ultrapassados, como ajuste fiscal e superávits primários, e na qual a aferição do esforço governamental seja realizada principalmente pelo seu efetivo engajamento em ampliar a poupança e os investimentos públicos, sem aumento da carga tributária, ao lado de estimular também empenho da sociedade como um todo em poupar e investir. A ação política deve ser holística, incremental e ágil.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

23


Introdução

C

om o título acima, este artigo assenta-se necessariamente numa reflexão sobre o passado, abordada na primeira seção, que trata do desempenho da economia sob os presidentes da República que o Brasil teve depois de 1994, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, a seguir referidos como FHC e Lula. A análise enfatiza diferentes circunstâncias com que se defrontaram, ao contrário de avaliações que predominam no mundo político e midiático, que enaltecem mais os sujeitos de ações do que essas circunstâncias. A segunda seção examina o presente, e daí emerge a percepção de que na economia e em outros aspectos o País vive um "subdesempenho satisfatório". Trata-se de disfunção organizacional e institucional cuja percepção deve fundamentar e provocar a ação política no sentido de superá-la. Isto, para alcançar um desempenho econômico bem melhor, e capaz de assegurar satisfação econômico-social maior, e solidamente assentada nos seus fundamentos. Noutra visão, a satisfação com o subdesempenho pode ser indicativo de expectativas não ampliadas. A terceira seção aponta os traços da reformulação preconizada para a política macroeconômica. É uma reconstrução ou reestruturação apoiada na política fiscal, mas bem além de conceitos comuns em análises desse tipo, como ajuste fiscal e superávits primários, vistos como inadequados e ultrapassados, tanto na sua lógica como pela forma com que foram utilizados no Brasil, em particular como eufemismos para o "esforço" fiscal do governo. Na realidade, esforço mesmo foi o dos contribuintes, que passaram a arcar com carga tributária crescente a partir de um ponto já elevado, sustentando não só superávits primários, mas também uma continuada e distorcida política de mais gastos correntes do Governo Federal, que dispõe de mais recursos, e não tem as mesmas limitações ao endividamento de estados e municípios. Além de uma indispensável contenção desse processo, a política fiscal deve ser pautada pelo objetivo principal da reformulação proposta, o de redirecionar o orçamento público e a política macroeconômica em geral para a ampliação da poupança nacional e dos investimentos públicos e privados como proporção do Produto Interno Bruto (PIB), para que este cresça a taxas maiores e mais sustentáveis. Na quarta seção, a reformulação proposta se desdobra na forma de ver a inflação e dois preços macroeconômicos, a taxa de juros e a taxa de câmbio. Estas taxas têm seus valores há tempos distorcidos, a primeira ainda muito alta tanto por si como

24

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

em comparações internacionais, numa análise que se estende também ao spread bancário. A segunda assumiu valores que comprometem a competitividade da economia no plano internacional, trazendo sérias, mas pouco enfrentadas, dificuldades para os exportadores brasileiros. Junto com a inflação, espera-se que essas taxas venham a sofrer impactos favoráveis da reorientação fiscal proposta. Contudo, ao lado da inflação essas taxas devem receber atenções adicionais e específicas dada a multiplicidade de fatores que as afetam. 1. O Passado: a Desprezada Força das Circunstâncias Observando-se a economia brasileira nos últimos 16 anos, a diferença principal entre as administrações FHC e Lula foi que encontraram o Brasil em diferentes circunstâncias. Dados desse período estão na Tabela 1 que, em cada mandato desses presidentes, mostra, salvo exceções registradas em notas à tabela ou neste texto, médias anuais dos valores das variáveis nela listadas, que analisaremos na sequência em que constam dessa tabela. No final, ela inclui o status da economia mundial, medido pelo valor total de suas exportações. Os dados também cobrem os quatro anos anteriores a FHC, para situar condições iniciais que encontrou. Circunstâncias e ações mais importantes são destacadas com tarja amarela nos respectivos dados. Começando pela inflação, a forte queda no primeiro mandato de FHC resultou de ação que iniciou no goMAX verno anterior, quando liderou o Plano Real. FHC, contudo, não conseguiu levantar as taxas de crescimento do PIB, em larga medida como resultado das difíceis circunstâncias que enfrentou, como a sequência de um plano de estabilização, as dificuldades fiscais e as crises externas. As taxas de crescimento aumentaram no governo Lula, mas principalmente em decorrência das circunstâncias muitíssimo melhores que teve no plano externo, as quais realçaremos mais à frente. Ambos fracassaram em elevar as taxas de poupança e de investimento de modo a alcançar um crescimento maior e mais sustentado. Dadas também as circunstâncias externas, Lula teve melhores condições de elevar essas taxas, mas escapou-lhe a oportunidade, que poderia ter assegurado um crescimento nessa linha, ao lado de uma queda não tão forte do PIB em 2009. O volume de crédito cresceu destacadamente no segundo mandato de Lula. Aí, houve engenho e arte do seu governo, que merecem destaque, como na expansão do crédito consignado, ainda que facilitados por circunstâncias que se consolidaram ao longo do governo anterior, como a queda da inflação e o saneamento do sistema financeiro. E, cabe notar novamente


a melhoria do setor externo, que facilitou a captação de recursos e reduziu riscos em geral. A taxa básica de juros seguiu tendência de queda que acompanhou a da inflação e aprimoramentos nas políticas fiscal e monetárias, no final ainda permanecendo alta relativamente à inflação, e também em termos internacionais, conforme se esclarecerá na seção seguinte. Passando às variáveis fiscais, fica claro porque o superávit primário é enganoso para medir o esforço fiscal do governo, e mais enganoso ainda na forma pela qual costuma ser divulgado na mídia, que a ele se refere como "a economia que o governo faz para pagar os juros da sua dívida". O conceito de resultado primário, em geral um superávit, ganhou destaque no primeiro mandato de FHC, quando houve até déficit desse tipo em 1997, mostrando então a gravidade do problema fiscal,

e servindo também para justificar aumentos da carga tributária para gerar superávits desse tipo. Contudo, a partir dos dados anuais que geraram a tabela, nota-se que a carga tributária federal aumentou 6,3 pontos percentuais (p.p.) do PIB entre 1993 e 2008 (de 17,7% para 24%), enquanto o superávit primário federal ficou perto de 2% do PIB depois de superado o período de maior dificuldade. Assim, a grosso modo entraram mais quatro p.p. do PIB de carga tributária adicional usados para mais gastos primários, pois não há redução relevante do déficit nominal. Dentre os gastos, dois merecem destaque, incluídos nas linhas 14 e 15 da tabela. Primeiro, praticamente nada foi para a formação bruta de capital fixo da União, sacrificando assim seus investimentos. Segundo, ocorre forte expansão dos já elevados gastos de previdência e assistência social. Como estes gastos ou transferências cresceram em to-

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

25


Lula Marques/Folhapress

Ressalvados esses aspectos do do o período, e particularmente no procedimento, inclusive seu altíssigoverno Lula, as médias quadrienais mo valor, deve-se reconhecer que no subestimam essa evolução. Assim, seu início ele se apoiou na necessidadados anuais mostram que em 1991 de de atuação mais contundente do esses gastos eram de 4,1% do PIB; em BNDES por ocasião da crise que veio 2009, chegaram a 8,9%, um aumento em 2008, o que é defensável. Ainda de quase cinco p.p.. que esse argumento tenha perdido Em síntese, quem de fato faz esforça com a superação da crise, e forço fiscal é o contribuinte, e onde o com novos suprimentos do mesmo governo economizou mesmo foi ao tipo ao BNDES, também não se pode conter investimentos, em prejuízo ignorar que historicamente os bando crescimento da economia. Tamcos privados brasileiros têm se revepouco foi aproveitado para ampliálado incapazes de prover recursos los o espaço dado pela menor taxa de de longo prazo para investimentos. juros sobre a dívida pública. Há, assim, a necessidade de buscar Quanto a esta, que se concentra soluções para essa dificuldade, e no Governo Federal, há longo temque não impliquem numa forte depo sempre foi analisada pela dívida pendência de recursos externos e do líquida que, como se percebe pela Tesouro. Como alternativa, vemos o tabela, atingiu seu ápice no final do maior desenvolvimento do mercagoverno FHC, e depois caiu, espedo de capitais no sentido lato, incialmente depois da expansão das cluindo o mercado de ações e o de díreservas internacionais, que a revida privada, e também para aladuziu. A dívida bruta acompanhaA forte queda da inflação no primeiro vancar a ação do próprio BNDES. Isva a líquida chegando, em bases mandato de Fernando Henrique Cardoso to, mediante colocações, nesses dois anuais, a ficar aproximadamente resultou de ação que se iniciou no governo mercados, "... de ações e títulos de díigual a ela em 2002. anterior, quando ele liderou o Plano Real. vida de empresas que viessem a ter Recentemente, entretanto, os ecoseus projetos aprovados..." por esse nomistas voltaram sua atenção para banco, conforme sugeriu Rocca a dívida bruta, que cresceu bastante (2010), noutro artigo integrante desta série, e que também foca relativamente à líquida. Também atraiu atenção uma inovação na necessidade de aumento da poupança nacional para acodo governo Lula, de aumentar fortemente essa dívida para gemodar a permanente necessidade de mais financiamentos. rar fundos para o BNDES. Como os créditos correspondentes Passando ao setor externo, FHC encontrou inicialmente que o Tesouro passa a ter nesse banco são deduzidos da dívida uma conjuntura internacional favorável, que permitiu a renebruta para chegar à líquida, esta não sofre alterações com a inogociação da dívida externa e favoreceu também a sustentação vação, ressalvados efeitos do custo da dívida bruta adicional do real pelo lado de sua âncora cambial. Contudo, a consesobre o déficit nominal que amplia a dívida. quente e continuada valorização do real adicionou um comNa tabela, novamente os dados de médias quadrienais são ponente adicional de vulnerabilidade ao setor externo, conforinadequados para evidenciar o forte crescimento dessa prátime evidenciado pelos déficits em conta corrente que se agraca. Assim, com base nos dados anuais originais, e também nos varam fortemente no seu governo, ainda que aliviados por inmensais relativos a 2010, constata-se que o aumento foi ainda vestimentos diretos, em particular os trazidos para seu mais forte, pois os créditos ao BNDES tinham o valor de 1% do programa de privatização. PIB no final de 2008. Passaram a 4% no final de 2009 e a 6% (!) Em contraste, no seu segundo mandato, a força de circunsem maio de 2010. Levando-se em conta um PIB próximo de tâncias particularmente desfavoráveis no plano externo culR$ 3 trilhões, o valor desse financiamento ao BNDES alcançou minou com as crises de 1997 e 1998, e a tradicional vulnerabiuma cifra perto de R$ 200 bilhões em menos de dois anos. lidade do País se evidenciou novamente pela queda das reserA prática é equivalente a um enorme orçamento para-fiscal vas, que rapidamente voltaram à sua tradição de baixas a ironde o BNDES aplica recursos sem dar satisfação ao Congresrisórias, e levando mais uma vez o País ao FMI. so Nacional, fazendo apenas relatórios a posteriori, que não reTambém em contraste, circunstâncias externas marcaram e cebem a divulgação adequada. Ademais, a dívida bruta é a beneficiaram claramente o governo Lula, principalmente a considerada internacionalmente mais importante para avapartir de meados do seu primeiro mandato. No início deste liar o risco da dívida soberana, e a continuar nessa linha, e nesainda enfrentou dificuldades no setor externo, criadas inclusa velocidade de expansão, lá na frente o País poderá ver-se resive por ele mesmo, ao aventar, no período eleitoral, com mubaixado nessas avaliações. E, noutro aspecto vulnerável, não danças radicais na política econômica, gerando estresse camhá transparência quanto ao que faz o BNDES, em particular bial em 2002, e que se prolongou em 2003. quanto é aplicado efetivamente em formação bruta de capital e Desde então foi favorecido por um longo e intenso ciclo de quanto vai para fusões e aquisições de empresas (1).

26

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Dida Sampaio/AE

crescimento da economia Aqui, na ausência dessa mundial, evidenciado na nova situação externa, a conúltima linha de dados da tatinuidade do crédito e sua exbela, o qual mudou radicalpansão anticrise não só temente o quadro das contas riam sido insuficientes para externas nacionais. Este, garantir o mesmo resultado, claramente revelado, na licomo teriam sido prejudicanha anterior, pelo forte das por pelo menos duas racrescimento das reservas zões. Primeiro, porque na criinternacionais. se a taxa de câmbio teria auE não houve ganhos dementado muito mais e a inflarivados apenas do maior ção teria sido bem maior, o volume físico de exportaque poderia levar o Banco ções, mas também de preCentral (BC) a aumentar a taços, em particular de comxa de juros. Segundo, por modities, cujo volume exmais tempo e com maior inportado aumentou muito, tensidade, o crédito permadirecionando a estrutura neceria escasso para o País no produtiva para maior preexterior, com reflexos contrasença de produtos primácionistas também sobre o crérios. E ganhos não vieram dito interno. Recorde-se que apenas de melhores termos as próprias reservas foram de troca. Como o Brasil tiutilizadas em socorro ao fiO conceito de resultado primário, em geral nha, e continuou tendo sunanciamento de exportações um superávit, ganhou destaque no primeiro perávits comerciais, houve por bancos privados, que temandato de FHC, quando houve déficit em um ganho líquido derivave forte queda na crise. 1997, mostrando o problema fiscal. do desses preços maiores, e Em conclusão, as muito que se manifestaria mesmo melhores e diferentes cirna presença de termos de cunstâncias externas que troca constantes, dada a ampliação desses superávits. Além marcaram o governo Lula foram o fator fundamental que lhe disso, em que pesem suas distorções, a apreciação cambial, asseguraram os meios para desenvolver sua política econômique veio com a melhoria do quadro externo, contribuiu para ca de forte conteúdo populista. Essas circunstâncias, contudo, ampliar os salários reais, e facilitou a manutenção de taxas não são lembradas por ele e seus seguidores, como se tudo de de inflação relativamente baixas. bom que veio com essa onda se devesse à sua ação. SomandoMais recentemente, voltaram os déficits em transações corse a esse quadro a desinformação e a falta de percepção dos cirentes e em volumes consideráveis, acendendo luz amarela dadãos em geral, isso termina por levar a um culto de persoquanto a renovados riscos no setor externo, outro aspecto a jusnalidade que beira a idolatria, a ponto de seus adversários potificar nossa ênfase na ampliação da poupança nacional e de líticos também deixarem de lado as mesmas circunstâncias, e mais investimentos na estrutura produtiva do País. quaisquer outros elementos que impliquem em criticá-lo. Como síntese desta seção, no governo Lula os estímulos à economia vieram principalmente da ampliação do crédito, do 2. O presente: Brasil em expansionismo fiscal – mas não na forma de investimentos –, e Subdesempenho Satisfatório do crescimento da economia mundial. Qual o fator mais importante? Claramente as circunstâncias externas, pois geraGhoshal e Tanure (2004) e Tanure (2010) identificam o subram crescimento maior, mais impostos para expandir gastos – desempenho satisfatório como doença que internacionalmeninclusive a forte expansão dos programas de transferência de te ataca empresas e outras instituições. Trata-se de patologia renda, que também trouxeram estímulo –, e em larga medida em que condutores de uma organização, muitas vezes tomacontiveram com vigor a instabilidade externa crônica e recordos por ilusões quanto ao sucesso dela, não percebem problerente na história econômica do País. Quando sobreveio a crise mas que a acometem, os quais respondem por seu subdesemexterna de 2008, com forte impacto que praticamente zerou o penho no presente, e podem levá-la a desastres futuros. Ou, encrescimento do PIB em 2009, esse efeito teria sido muito maior tão, são percebidos, mas menosprezados. Esses autores conse encontrasse o País externamente tão vulnerável como no gocentram-se no impacto da doença em empresas, onde verno FHC. A nova situação das contas externas também gaexecutivos freneticamente buscam resultados, e vangloriamrantiu recuperação rápida, mas taxas de investimento bem se deles, muitas vezes iludindo-se com números de balanços e maiores asseguraram a países como a China e a Ìndia uma uloutros indicadores de rentabilidade. trapassagem da crise com danos mínimos às suas taxas de cresTanure (2010) se refere especificamente à acomodação ao cimento, que permaneceram elevadas. subdesempenho satisfatório do Brasil, este acometido por

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

27


"profundos problemas", pelos quais as empresas costumam exigido pelas medidas que deveríamos adotar se fôssemos sémostrar preocupação, mas sem se ocupar, "... efetivamente, darios em fazer uma diferença."(3) As dificuldades que Krugman apontou permaneceram, queles que não receberam a devida atenção...". Nessa linha, tanto assim é que o País acabou em crise. Esta não se limita à aponta uma situação inversa ao chamado "custo Brasil", o "gaquestão econômico-financeira, como se pode perceber pelas nho Brasil", em que o desempenho acima da média mundial, dificuldades que o presidente Obama encontrou para aprovar sobretudo relativamente a competidores de países europeus e um novo plano nacional de saúde, um dos pontos mais impornorte-americanos, mais afetados pela crise econômico-finantantes de sua plataforma de governo, e assim mesmo tendo ceira que veio em 2008, serve para enaltecer apenas "... o papel, que recuar em vários pontos de seu projeto original. o ego dos executivos...", que deixam de colocar esse ganho nas Há alguma similaridade entre o que Krugman aponta e o suas contas, sem se preocupar com um crescimento que vá que se passa no Brasil, e também diferenças, em particular o além dele, especialmente via maior produtividade. fato de os EUA serem um país rico, sendo assim compreenInteressados no que diz respeito ao Brasil e ao seu governo sível certa acomodação. Esse autor fala também de expectacentral, entendemos que a análise desses autores aqui também tivas diminuídas, enquanto que aqui entendemos ser um case aplica, pois são evidentes os sintomas de um subdesempenho so de não ampliadas. Em outras palavras, no Brasil, em média satisfatório que acomete o País e seu governo federal, onde nosainda pobre, talvez elas venham de uma condição de pobreza so presidente se comporta como um desses executivos que não que inegavelmente foi aliviada para parcela importante da reconhece o fortíssimo "ganho Brasil" ensejado pelos ventos fapopulação, com outras também tendo gavoráveis que a economia mundial trouxe ao nhos de renda, fazendo com que as pessoas se País em quase toda a sua gestão, conforme assintam, como se diz popularmente, "no lusinalado na seção anterior. cro", mas sem avançar além disso em suas exCombinada com o menosprezo dos graves Tanure se refere pectativas. O tema mereceria um livro no caproblemas nacionais, como alguns já apontaespecificamente so brasileiro. Sem essa pretensão, seguiremos dos na Tabela 1 e outros que serão objeto da à acomodação ao Krugman no seu entendimento de que "... o subseção seguinte, a ilusão de sucesso – censubdesempenho começo de ação está, entretanto, em entender trada no conformismo com uma taxa anual satisfatório do Brasil, o que se passa." (4) Cabe assim mostrar a verde crescimento do PIB próxima de 5% e, na dadeira situação em que o País se encontra. É crise recente, em comparações com os países este acometido por o que faremos a seguir, numa contribuição que se saíram pior ainda do que o Brasil –, 'profundos problemas', para acordá-lo da letargia que o domina, amcontamina não apenas seus dirigentes, em pelos quais as empresas pliar suas expectativas na direção de um meparticular o maior. Estende-se também à costumam mostrar lhor desempenho, e cobrar isto de seus govermaioria da população por meio da dissemipreocupação, mas sem se nantes, presentes e futuros, num contexto em nação sistemática de análises que exageram que cabe o ditado de que "quem não sabe onsucessos e ignoram fracassos e dificuldades. ocupar, '... efetivamente, de está não tem condições de definir a direção Uma afirmação recente do presidente Lula daqueles que não que seguirá." É o que faremos a seguir. revela até onde alcança esse exagero. Ele assireceberam a nou texto onde, ao falar de sua intenção, no devida atenção...'. 2.1. A Realidade do Subdesempenho plano internacional, "...de após deixar a presidência... concentrar sua atenção em iniciativas Começaremos por uma referência ao subpara beneficiar os (grifo nosso) países da Amédesempenho da economia na sequência da crise econômicorica Latina e do Caribe e o continente (idem) africano", afirfinanceira internacional que eclodiu em 2008. Em seguida, remou: "Não podemos ser uma ilha de prosperidade cercada por correremos a indicadores que examinam o País sob vários asum mar de injustiça social" (2). O "nunca antes neste País" é emblemático de uma visão que, pectos quando comparado a outras nações. além de quase nunca comprovada, volta-se para o passado de Na seção anterior vimos que tanto FHC como Lula não conum país ainda em construção e já carente de reformas. Mas, o seguiram acelerar significativamente a taxa de crescimento no que realmente interessa é seu futuro, e comparações com naque poderia ter crescido pela expansão dos investimentos púções que de fato foram e são efetivamente bem sucedidas, um blicos e em geral. Além de bem assentada na teoria econômica grupo a que não pertencemos. e na experiência internacional, a relevância da taxa de invesUma visão semelhante a essa do subdesempenho satisfatótimentos para ampliar o crescimento do PIB encontra respaldo rio é de Krugman (1994), num livro sobre os EUA, cujo título na história econômica do País, com destaque para o período traduzimos como A Era das Expectativas Diminuídas. Ele a 1968-1973, marcado por taxas de crescimento do PIB próximas definiu como: de 10% ao ano e taxas de investimento como proporção do PIB "...uma era em que nossa economia não tem se desempenhabem acima dos valores registrados na Tabela 1. do bem, mas na qual a demanda política para melhorá-la é peQuanto a comparações internacionais a esse respeito, um quena ... procuro explicar porque não estamos realizando um período particularmente interessante foi o da referida crise, esforço maior para fazer alguma coisa sobre a economia que com seu maior impacto em 2009. Nesse ano, conforme já vinos desaponta – o que em grande parte decorre do sacrifício mos, dois países se destacaram na manutenção de taxas ainda

28

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Marri Nogueira/Folhapress

bem elevadas de crescimenque fazer para o País alcanto. Mais precisamente, a Chiçar desempenho efetivana, cuja taxa caiu de cerca de mente satisfatório. 10% em 2008 para perto de A lista começa com indi8% em 2009, e a Índia, onde cadores de tamanho, que essa taxa caiu de cerca de 8% colocam o Brasil como um para um valor próximo de país grande. Contudo, esse 6% no mesmo período. tamanho só é documento Se olhada as taxas de inpara finalidades específivestimento desses dois paícas, que muitas vezes não ses, elas mostram valores alcançam sua população, próximos de 40% do PIB, no como a influência regional primeiro caso, e 30% no see internacional, o poder de gundo, e durante a crise eles ajudar países como o Haiti fizeram um grande esforço e vários africanos, diminupara sustentar taxas próxitos e paupérrimos. Uma exmas a esses valores. Um ceção está no que esses inexemplo flagrante do esfordicadores significam em ço da China e da sua preocutermos de tamanho do merpação com a infraestrutura, cado nacional, e o que isso veio em recente manchete de enseja de economias de esjornal: "China constrói mais cala e atratividade para in2.000 km de metrô até 2015" vestimentos, favorecendo (5). Enquanto isso, no Brasil, também o desenvolvimenSão Paulo tem 66 km de lito científico e tecnológico. nhas e o Rio tem 47 km, conEm seguida, há um conO (bordão) "nunca antes neste forme a mesma matéria. junto em que a posição do País" é emblemático de uma Em porcentagem do PIB, a Brasil vem de listagens que visão que, além de quase taxa de investimentos do ordenam os países dos menunca comprovada, volta-se Brasil, que chegou a ridículhores para os piores, e os para o passado de um país los 15,3% em 2003, cresceu indicadores apresentados ainda em construção até 18,7% em 2008, mas caiu começam com o PIB "per e já carente de reformas. para 16,7% em 2009. Com tacapita", e terminam com os xas tão pequenas como esde educação e saúde. De sas, o País foi fortemente afeum modo geral, revelam tado pela crise, e sua taxa de crescimento caiu de 5,5% em 2008 que na sua média os brasileiros estão na segunda divisão do – um ano já parcialmente afetado, pois nele a crise veio em sejogo mundial de bem-estar. Sabe-se, ademais, que essa métembro –, para -0,2% em 2009. Quando surgiu esse número o dia esconde muita miséria. governo, em mais uma demonstração de contágio pelo subdeAo final da tabela há indicadores concebidos de tal forma que sempenho satisfatório, em lugar de comparar o Brasil com paísua ordenação coloca nos primeiros lugares os países em pior sises como os citados, enveredou pelo caminho de fazê-lo com os tuação. De um modo geral, aí o Brasil aparece nas primeiras poque tiveram desempenho ainda pior que o nosso. sições, e alguns dos indicadores tratam de condições particularPara diagnosticar o subdesempenho nacional, recorreremente detestáveis, como taxas de homicídios. mos a uma análise tradicional, mas que, de tanto repetida a De todos os indicadores listados e olhando como econopartir de indicadores isolados costuma cair na trivialidade. Esmista, os que mais se destacam são as reduzidas taxas de insa análise se desenvolveu depois da 2ª Guerra com a percepção vestimento, tanto a total como a da administração pública, do problema do subdesenvolvimento e com o surgimento de nas quais, e particularmente na última, o Brasil está claravários indicadores nacionais de desempenho elaborados por mente no final da fila. A ênfase na necessidade de elevá-las instituições criadas com a finalidade de produzi-los. Para fugir não é, contudo, uma visão economicista. Tem alcance abranà trivialidade, recorreremos a um amplo conjunto de indicagente, senão o mais abrangente de todos esses indicadores. dores, tanto de natureza econômica como de outros tipos. Sem mais investimentos não haverá como resolver ou aliAssim, a Tabela 2 apresenta a posição internacional do viar problemas de um PIB "per capita" ainda baixo, de saúBrasil sob vários critérios. Entre economistas e cientistas sode, de educação, de segurança, institucionais e de gestão, ciais em geral, a maioria deles é conhecida em análises em sendo que os dois últimos também permeiam estes e os degeral voltadas para um ou outro do conjunto. A ideia aqui mais problemas apontados foi apresentar esse conjunto abrangente a um público mais Na contramão dessa percepção, o Brasil, particularmente amplo para disseminar a percepção de que há muitíssimo no período mais recente, optou por um modelo de (sub)de-

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

29


senvolvimento em que o atendimento de necessidades cruciais é postergado pelo apego ao consumo imediato. Isto, sem perceber que uma das lições básicas de Economia vem do seu próprio nome, ou seja, é preciso economizar ou poupar, pois esta é a chave da prosperidade, desde que investido o que foi poupado.

30

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

3. A Política Macroeconômica e sua Reformulação: um enfoque holístico, incremental e ágil Holístico é termo pouco usado, inclusive na análise econômica usual, onde seu equivalente seriam as visões de equilíbrio geral, muito abstratas para não-economistas. Mas, é mui-


to adequado para problemas como os apontados, pois uma Suponhamos uma família envolvida na produção de um úniabordagem holística é a que "...no campo das ciências humaco cereal, o milho, e que esteja interessada em aumentar a pronas e naturais, ... prioriza o entendimento integral dos fenômedução, seu PIB. A mais importante força, porque dependente de nos, em oposição ao procedimento analítico em que seus comsua decisão e com resultados imediatos, seria aumentar sua ponentes são tomados isoladamente"(6). poupança e investimento, consumindo menos milho para ter Ilustrativa desse procedimento isolacionista é, por exemplo, mais sementes para ampliar a colheita. Essas sementes constia política de metas de inflação, praticada pelo BC sem o apoio tuem um bem de capital, pois atuam como máquinas de producoerente da política fiscal e da política de crédito, entre outros zir milho. Quanto mais sementes, maior a produção adicional. aspectos. Com isso, a taxa Selic se apresenta como a única arma Outra força importante seria o desenvolvimento tecnológiutilizada no combate à inflação e o BC, o único combatente. co, se essa família conseguisse, por exemplo, selecionar ou busQuanto ao caráter incrementalista, a lógica está no instinto car sementes mais produtivas, com o que a produção também dos políticos e dos eleitores, explicável entre outros fatores por aumentaria. Na mesma linha, se fossem encontradas formas uma predominante aversão ao risco, e também pela necesside tornar mais rápida a atividade produtiva, isso também redade de respeitar contratos e direitos adquiridos. Segundo repercutiria sobre a produção ou sobre a disponibilidade de temcente editorial da revista The Economist, po para outras atividades, entre elas a educação. "Os políticos são por instinto incrementalistas. Esta merece destaque como um terceiro fator. AsAbraçam a retórica do radicalismo, mas na reasim, se os membros dessa família se tornasHélvio Romero/AE lidade tendem a cortar um pedacinho da hesem mais educados, e isso permitisse o rança de seus antecessores aqui, e adicioacesso a maiores conhecimentos liganar um pedacinho ali; arrastam-se pados à produção de milho, esta aura a direita ou andam vagarosamenmentaria pelo domínio de novas te para a esquerda. Tanto eles como técnicas de produção, tanto no seus eleitores evitam mudança radical quando possível (7)." Atualmente, é moda falar de Finalmente, à reformulação crescimento sustentável, em da política econômica cabe adiparticular com respeito a cionar o imperativo da agilidaquestões ambientais. Mas é de. As duas características antepreciso ter em mente o estágio riores não devem ser tomadas de subdesempenho do Brasil, como formas de contemporizar. cuja superação trará São tantos os problemas a resolinevitáveis danos ambientais. ver, e muitos se agravando com o passar do tempo, que a agilidade é indispensável, sem o que a eficácia da ação governamental permanecerá que diz respeito às sementes, mas comprometida. Na linguagem dos ecotambém se estendendo a espaçamennomistas, o PIB é produto por unidade de to, época de plantio, cuidados adequados tempo; pode ser ampliado nessa unidade, ou e tudo mais. buscando-se o mesmo PIB ou um maior num menor esUma quarta força dependeria da estrutura demopaço de tempo. A agilidade leva assim à produtividade amgráfica da família. Se tivesse uma proporção alta de crianças pliada e também favorece o crescimento econômico. e de idosos, a força de trabalho engajada no processo produtivo seria menor, além de ter que arcar com a manutenção 3.1. O crescimento econômico como objetivo central dessas pessoas e dificultar o esforço de poupança e de investimento da família. Até hoje não se inventou outra maneira de aprimorar o bemPassando à comercialização da produção, para alcançar estar de uma nação. Atualmente, é moda falar de crescimento bons resultados seria indispensável o acesso a um bom sissustentável, em particular com respeito a questões ambientais. tema de transporte e de infraestrutura em geral (energia e Tudo bem, mas novamente é preciso ter em mente o estágio de telecomunicações, entre outros itens). E, ainda, um ambiensubdesempenho do Brasil, cuja superação trará inevitáveis date de negócios em que estes pudessem prosperar sem obsnos ambientais. A solução não está em dificultar obras como hitáculos capazes de comprometê-los como, por exemplo, drelétricas e estradas, mas em fazê-las compensando-se os ineuma alta taxa de tributação e dificuldades institucionais na vitáveis danos com correspondentes reparações ambientais. E sustentação de contratos. Nesse ambiente também seria netudo decidido de forma rápida, como já argumentado. cessário que a inflação estivesse sob controle, pois caso conAntes de prosseguir faremos aqui uma breve digressão a trário os preços do milho poderiam ficar defasados, os cálrespeito das forças capazes de induzir o crescimento econômiculos econômico-financeiros ficariam prejudicados e tomaco, apresentadas de forma descomplicada, para alcançar noriam mais tempo, com a inflação acrescentando incertezas vamente um público mais amplo. ao processo decisório.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

31


Essa família também teria problemas se pretendesse recorrer a financiamentos e seu custo fosse alto relativamente a seu benefício. Além disso, se seu produto fosse exportável, variações da taxa de câmbio poderiam beneficiar ou prejudicar a atividade produtiva. Dado esse quadro, fica claro que a promoção do desenvolvimento exige um enfoque holístico. Transpondo esse microcosmo familiar para a economia como um todo, dadas as restrições de espaço limitaremos a análise que se segue à estrutura demográfica, à carga tributária, e aos investimentos públicos e privados. A inflação e as taxas de câmbio ficarão para a seção seguinte. 3.2. A estrutura demográfica e o bônus que (ainda) oferece

rem colocadas para expandir a produção, ao lado de investimentos em educação geral e profissional, em saúde, em inovação e progresso tecnológico. E também criar um ambiente favorável aos negócios ligados à atividade produtiva. É também fundamental impedir que o envelhecimento da população se torne um ônus muito grande, de difícil sustentação, com esquemas de aposentadorias e pensões mal assentados na sua lógica atuarial. Para tanto, cabe uma reforma das regras da previdência oficial, a do funcionalismo e do INSS, mas esta é medida que também exige enfoque incrementalista, afetando apenas os novos ingressantes no mercado de trabalho, para que a reforma não sucumba aos interesses e direitos dos já integrados no sistema atual (9). 3.3. Do lado da carga tributária

Usualmente a carga tributária no Brasil é criticada pelo seu Quanto à natalidade, essa estrutura depende de decisões tamanho global e, microeconomicamente, pelo seu impacto pessoais, tomadas no âmbito familiar ou mesmo fora dele. no chamado "custo Brasil". Também aqui proNas últimas quatro décadas, brasileiros e bracuraremos dar um enfoque holístico, no caso sileiras agiram de tal forma que a taxa de fechamando a atenção para um aspecto da anácundidade feminina, medida pelo número de lise microeconômica do impacto dos tributos. filhos que em média as mulheres têm na sua É fundamental Esse aspecto é trivial na literatura econômica, idade fértil, se reduziu consideravelmente, impedir que o mas, até só ocasionalmente mencionado no com o que vem caindo a proporção de crianenvelhecimento da debate no Brasil. ças na população. Ao mesmo tempo, há a tenpopulação se torne Trata-se de olhar a chamada perda de "pedência de envelhecimento, mas a fecundidaso morto" da carga tributária brasileira. É sade ainda cai mais do que aumenta a longevium ônus muito bido que esta se sustenta principalmente em dade, pois esta depende de avanços na medigrande, de difícil impostos indiretos que gravam o valor dos cina e nas condições de vida, como na sustentação, com bens e serviços com alíquotas distintas. Ora, qualidade da alimentação e no saneamento esquemas de a uma tributação baseada em impostos desse básico, que evoluem com menor velocidade. aposentadorias tipo corresponde uma perda dada pelo que Como resultado, a proporção de pessoas em se sacrifica de produção e consumo como idade ativa (entre 15 e 65 anos de idade) vem e pensões mal efeito desses impostos que incidem sobre crescendo relativamente aos dois outros gruassentados na sua ambos. Ou seja, se não existissem esses impos que se situam no extremos da estrutura lógica atuarial. postos, haveria maior produção e consumo, etária (0-14 e 65 ou mais). o que também poderia ocorrer caso as alíquoDado esse quadro, considera-se como bôtas não fossem diferenciadas, com o que o imnus demográfico o ensejado pelo momento posto indireto equivaleria a um imposto direto e neutro em que a estrutura etária da população atua no sentido de faquanto a efeitos desse tipo. cilitar o crescimento da produção, e também da escolaridade Não precisamos ir longe para buscar evidências desse "pede seus jovens, entre outros aspectos. Isso acontece neste moso morto" tributário. Com a crise econômico-financeira demento por que passa o Brasil, em que há um grande continsencadeada em 2008, o governo tomou medidas de incentivo gente da população em idade produtiva, cai o percentual dos à economia, entre elas a redução da carga tributária incidente mais jovens no total da população e o sobe o dos idosos, mas sobre bens duráveis de consumo, como automóveis e gelaeste ainda sem constituir um grande peso. deiras. E o que aconteceu? Como amplamente noticiado, a Segundo o demógrafo Diniz Alves, o Brasil tem ainda enprodução e as vendas responderam positivamente aliviando tre 10 a 20 anos, ou seja, até perto de 2025 para ampliar a quaassim a perda de "peso morto". É possível que tenha havido lidade de vida da população aproveitando este momento, e apenas antecipação do consumo em face do caráter transitódemonstrando que não está condenado a envelhecer antes de rio da medida, mas se ela fosse permanente os efeitos teriam a "enriquecer". Se não fizer isso, depois ficará mais difícil, pois mesma direção (10). Outra evidência está no fato de que a percomeçará a ser atropelado, como no Japão e na Europa, por da aqui costuma levar a ganhos em países onde turistas brauma grande e crescente proporção de idosos na população, sileiros gastam seu dinheiro (11). com todos os custos correspondentes(8). Para aproveitar esse bônus, contudo, o Brasil precisará amPara reduzir o conjunto dessa perda, não é viável, contudo, pliar a proporção ocupada – e bem ocupada –, de sua população uma redução forte e imediata dos impostos que a produzem, aí em idade produtiva. Essa ampliação depende essencialmente também cabendo o enfoque incremental. Há evidentes exageda taxa de investimentos ou das sementes ou máquinas que foros a prejudicar o desempenho da economia como na forte tri-

32

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Masao Goto Filho/e-SIM

Com a crise econômicofinanceira desencadeada em 2008, o governo tomou medidas de incentivo à economia, entre elas a redução da carga tributária incidente sobre bens duráveis de consumo, como automóveis e geladeiras. Como amplamente noticiado, a produção e as vendas responderam positivamente, aliviando assim a perda de "peso morto", que se sustenta com impostos indiretos.

butação de alimentos, de bens de capital, de bens de consumo durável, de telecomunicações e de energia. Portanto impõe-se, com o enfoque proposto, que em primeiro lugar o governo evite o crescimento da carga tributária, pois ela tende a aumentar com o crescimento da economia, dado o forte gravame de produtos e serviços que se destacam nesse crescimento, como os acima citados, exceto os alimentos. Na mesma linha, caberia, em seguida ou ao mesmo tempo, reduzir alíquotas de impostos começando pelos produtos e serviços citados, e sem essa exceção. 3.4. Do Lado das Despesas: mais Investimentos Desse lado, dado o que já foi argumentado ao longo do texto, pode-se ser sucinto quanto ao que a reformulação deve incluir, ao lado de algumas s considerações adicionais, como segue: G a baixa taxa de investimentos como proporção do PIB, particularmente a da administração pública, é o "calcanhar de Aquiles" da economia brasileira, respondendo por taxas de crescimento menores do que as que poderiam ser alcançadas; G ela também responde pelo resultado ruim, no caso brasileiro, de vários indicadores apresentados na Seção 2, pois seu alívio depende crucialmente da ampliação dos investimentos, em particular os da administração pública; G dada a inconveniência de ampliar a carga tributária com esse objetivo, é indispensável a contenção das despesas correntes da máquina governamental; G quanto a estas cabe também o enfoque analítico proposto, pois há que examiná-las no seu todo e perseguir esse objetivo de forma incremental;

G como

exemplo, há as despesas de pessoal, que não oferecem margem para compressão em termos absolutos, mas podem ser incrementalmente reduzidas como proporção do PIB contendo-se reajustes salariais e o quadro funcional, dado que foram muito liberalmente ampliados nos anos recentes (12); o mesmo vale para os gastos a título de previdência e assistência social; G um espaço também identificado, ainda que não na sua dimensão, é o dado por um reexame minucioso várias outras despesas de custeio, reexaminando-se a sua relevância, os procedimentos de licitação e os termos de seus contratos; diversos estados e municípios, inclusive com recurso a consultorias especializadas, vêm obtendo consideráveis resultados com essa política de "pente-fino", não se tendo notícia de procedimento semelhante no Governo Federal, em razão do que aí se pode esperar resultados relativamente maiores em termos absolutos e relativos; mesmo que não seja preenchida essa expectativa, será um passo importante na direção de uma administração pública mais eficaz e eficiente; G a política de "funding" e de empréstimos do BNDES deve ser reformulada, conforme as linhas sugeridas anteriormente; G na reformulação fiscal, o governo deve optar por esse ou outro nome que demonstre um rompimento com conceitos ultrapassados, como ajuste fiscal e superávit primário, enfatizando particularmente a sua taxa de investimentos, o déficit nominal e também a dívida bruta do setor público; G do ponto de vista financeiro, a divulgação mensal de um superávit primário que se revela abaixo do valor dos juros da dívida pública adiciona a esta um elemento de risco; ademais, as sucessivas divulgações desses superávits,

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

33


com o noticiário às vezes omitindo que se tratam de prizendo com que a primeira perna tenha que recorrer a uma Semários, e negligenciando os recorrentes déficits nominais, lic maior para esse controle. Ademais, o governo atua com contribui para transmitir uma falsa imagem de contas púbancos oficiais, e vem desenvolvendo uma política de crédito blicas superavitárias; também não condizente com a política monetária, principalG assim, uma nova forma de avaliar a eficácia da ação govermente no BNDES, em face do tamanho de suas operações. Asnamental deveria ser pela sua taxa de investimentos, juntasim, seria necessário harmonizar esses componentes da pomente com a regra de que o déficit nominal não poderá ser lítica macroeconômica, de modo a garantir a eficácia do conmaior que ela, e também contido por seu próprio limite, em junto e, em particular, retomar o caminho de uma Selic menor. princípio numa faixa de 2 a 3% do PIB; Isto ocorrendo, poderiam ser esperados efeitos favoráveis G com isso, a visão dada pelas finanças públicas seria uma sobre a taxa de câmbio, pois essa queda atuaria no sentido de em que se passaria a cobrir integralmente os juros da dídesestimular ou pelo menos não atrair tanto os capitais que vida em lugar de, como hoje, mostrá-los como se jubilosamente vêm ao Brasil para se parte deles fosse a causa do déficit nominal, o qual beneficiar dos altos juros que paga. passaria a ser relacionado com os investimentos Outro aspecto interessante do redo governo, adicionando assim um elemento ferido tripé diz respeito ao papel esde confiança na sua saúde financeira, dimipecífico de cada um de seus apoios. A nuindo a percepção de seu risco e abrindo política monetária tem o propósito também espaço para uma redução da taxa de controlar a inflação, em particular de juros que paga; baixando-a quando foge à trajetória G quanto aos investimentos, como permada meta perseguida pelo BC. Quanto necerá a carência de recursos públicos, aos juros, o BC em tese concorda que cabe contemplar com muito maior ênfaidealmente a Selic deveria ser menor. se as parcerias público-privadas e a parNa prática, atua de forma concentraticipação também isolada do setor privada nas oscilações dessa variável, do via concessão de serviços públicos, pouco se preocupando com o seu alto bem como o fortalecimento dos mecanisvalor em termos absolutos. Além dismos de financiamento dos investimentos so, retoricamente também toca nos do setor privado em geral, na linha altos spreads cobrados no Brasil, mas apontada quando discutido o papel pouco faz no sentido de reduzi-los, do BNDES, na Seção 1; um dos casos sendo quando acompaG ainda quanto aos investimentos, é nham um movimento de mesma natambém imperioso que sejam tureza da Selic (13). No tripé, a taxa de câmbio tem um criteriosamente definidos, e aspecto peculiar, e também probleainda recentemente houve mas de gestão, como nas duas outras dois casos claros em que a neO BC em tese concorda que pernas do tripé. Conceitualmente, o cessidade e a prioridade foidealmente a Selic deveria ser menor. BC se aferra à noção de uma taxa fluram atropeladas no processo Na prática, pouco se preocupa com o tuante. Assim, ao contrário da inflade escolha, o do trem-bala liseu alto valor em termos absolutos. ção onde o objetivo é mantê-la congando os estados de São Pauforme a meta perseguida pelo BC, e lo e Rio de Janeiro, com custo da Selic, que oscila conforme a a inflaestimado em R$ 33 bilhões, e ção se comporta diante dessa meta, como regra o câmbio é o de uma uma estatal de seguros, com capital de R$ 18 bideixado a flutuar sem nenhum propósito de direção. lhões, sendo que no primeiro caso há claramente projetos Contudo, tais flutuações trazem problemas para a econode muito maior prioridade, como outras ferrovias, ou romia, tanto quando a taxa de câmbio em reais por dólar sobe e dovias e metrôs, e no segundo não foi demonstrada a neimpacta a inflação, como quando cai, acentuando uma sobrecessidade de uma estatal para essa finalidade. valorização do real e causando problemas ao setor produtivo, o que tem sido o movimento predominante. Reconhecendo o 4. Inflação, câmbio e juros problema da inflação, o BC atua indiretamente sobre a taxa de câmbio quando ela sobe, e leva consigo a inflação, fazendo isso A política macroeconômica brasileira tem como base um via taxa de juros, e também algumas vezes quando a taxa cai, tripé em tese apoiado na política de metas de inflação, asneste caso num movimento típico da chamada flutuação "susentada na taxa Selic, numa gestão fiscal condizente com esja". Sem a grande acumulação de reservas, feita inclusive com sa política e no câmbio flutuante. O problema não está no triintervenções ocasionais, a valorização do real seria muito mais pé em si, mas na sua administração que no Brasil apresenta grave do que a verificada. várias distorções. Há, assim, vários problemas específicos à gestão das poEm particular, há uma administração fiscal de alto risco e líticas de juros em geral e da taxa de câmbio, que continuade contribuição até deletéria para o controle inflacionário, fa-

34

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


remos a abordar nas duas subseções seguintes. 4.1. As taxas de juros

Divulgação

Quanto ao que se pode fazer nessa área, já foi assinalado que uma gestão fiscal conservadora e uma política de crédito coerente com a monetária repercutiriam favoravelmente sobre a Selic, de modo a trazê-la para valores mais baixos. Mas, é preciso voltar decisivamente a atenção para os altíssimos níveis do spread bancário. Para a maioria que não tem acesso ao crédito subsidiado e direcionado bancado pelo governo, como este faz no setor agrícola e, principalmente, no BNDES, as taxas de juros no Brasil constituem uma calamidade, sobretudo para as micro, pequenas e médias empresas. Essas taxas ou oneram excessivamente os tomadores de crédito ou excluem do acesso a ele muitos dos interessados. Quanto ao que fazer para reduzir o spread, dois artigos desta coleção se debruçaram sobre o assunto, Toledo (2010) e Ruiz de Gamboa (2010). Ambos também enfatizam a necessidade de uma política fiscal que contribua para o sucesso da política monetária na sua atuação sobre a Selic, e também têm propostas comuns para reduzir o spread bancário, como a implantação de sistemas de cadastro positivo, a agilização de processos judiciais relacionados a créditos inadimplentes, e medidas para assegurar maior grau de concorrência dentro do sistema financeiro. Também sugerem várias medidas que vão além do que normalmente se discute sobre o assunto. Ruiz de Gamboa (2010), por exemplo, após constatar forte correlação positiva entre a taxa Selic e a taxa de spread bancário pré-fixado, propõe ação específica com potencial de reduzir a primeira taxa e repercutir sobre a segunda, mediante "eliminação da subvalorização e alongamento de passivos públicos internos e externos e reconhecimento de 'esqueletos fiscais' existentes (14)." Toledo (2010) menciona a "imposição de limites (razoáveis) para taxas de juros para consumidores", referindo-se à sua existência no caso dos EUA para cartões de crédito, por exemplo (15), e " a ação do BC para coibir (através de persuasão) spreads excessivos".

O câmbio flutuante foi adotado em 1999 na esteira de grave crise externa, na qual o Brasil era o epicentro, quando a flutuação abriu espaço para uma inevitável desvalorização do real, que se mantinha fortemente apreciado.

O leitor interessado deve consultar esses autores, pois são muitas as idéias que apresentam. A complexidade do assunto e o fato de que análises como essas chegam a tantas propostas, mostram novamente a necessidade de um enfoque holístico. Demonstram também que se trata de assunto cujo tratamento extrapola a esfera do BC, seja no caso da Selic, seja no caso do spread. 4.2. A taxa de câmbio Como já assinalado, um aspecto peculiar dessa taxa é que ao contrário das suas duas companheiras no tripé que compõe, ela é deixada a flutuar sem nenhum critério a balizar essa flutuação. Entretanto, pratica-se esporadicamente a flutuação "suja", mas o BC faz isso com envergonhada discrição, sempre se dizendo apegado ao câmbio flutuante, ao lado de não reconhecer explicitamente as distorções que um real valorizado traz para a economia, particularmente ao afetar seu setor produtivo. A propósito, vale lembrar que o câmbio flutuante foi adotado em 1999 na esteira de grave crise externa, na qual o Brasil era o epicentro, quando a flutuação abriu espaço para uma inevitável desvalorização do real, que se mantinha fortemente apreciado. Há tempos o contexto internacional é radicalmente diferente, mas a política cambial foi mantida essencialmente a mesma, inclusive no que diz respeito à sua dimensão monetária, com juros altos que no início do flutuante tinham também o papel de atrair recursos externos. E aqui esse câmbio virou sinônimo de real apreciado. Entendemos que como tudo que é deixado a flutuar enquanto não traz problemas, de barcos a banhistas, quando a taxa cambial se afunda, deve receber resgate ou suporte, para aliviar as distorções que implica para a economia do País, mas sem que isso implique em sustentar atividades não competitivas por si mesmas. Em outras palavras, não há nenhuma heresia em que a po-

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

35


ução

Reprod

lítica econômica tenha essa preocupação, desde que não avance para uma intervenção "imunda". Quanto à "suja", usual, um exemplo interessante vem do Reserve Bank of Australia (RBA), o banco central daquele país, cujos problemas e políticas o Brasil deveria acompanhar mais de perto, pois é também um grande exportador de produtos primários, alguns dos quais também típicos de nossa pauta nessa atividade, como minério de ferro e carnes. O RBA optou também pelo câmbio dito flutuante, mas pratica e sem volteios uma política de intervenção, ainda recentemente objeto de um extenso artigo publicado no seu portal, que explica com detalhes seu papel no mercado de câmbio (16). Desse artigo, há esta síntese dos fundamentos da intervenção: "A decisão de flutuar o dólar Australiano permitiu que forças de mercado determinassem o valor da moeda. Entretanto, isto não significou que o RBA ficasse indiferente tanto quanto ao nível ou ao movimento da taxa de câmbio, dado que podem ter influência poderosa sobre aspectos importantes da economia, particularmente o crescimento econômico e a inflação. Por esta razão, o RBA ocasionalmente intervém no mercado de câmbio. Este enfoque quanto à intervenção veio da constatação, pelo Comitê Campbell, de que uma flutuação 'limpa" era irrealista, e que intervenções ocasionais pelas autoridades podem ser desejáveis."(17) Como se percebe, o assunto é encarado com naturalidade, e no mesmo portal podem ser encontrados vários outros textos tratan-

O Banco Central Australiano optou pelo câmbio dito flutuante, mas pratica uma política de intervenção.

do explícita e transparentemente da questão cambial, enquanto que para o nosso BC ela é quase uma maldição. Assim, é preciso assim adotar explicitamente uma política de intervenção que claramente dê ao mercado a percepção de sua presença, e ao BC permita praticar e aprender no processo, pois sua visão atual prejudica inclusive esse aprendizado.

Referências Bibliográficas AFONSO, José Roberto. "O nó dos investimentos públicos", Digesto Econômico LXV: 457 (abril 2010).

Disponível em http://www.rba.gov.au/mkt-operations/foreignexchg-mkt.html.

DINIZ ALVES, José Eustáquio. "Estrutura etária, bônus demográfico e população economicamente ativa (PEA): cenários de longo prazo para o Brasil". Apresentação em pdf. 2/6/10.

ROCCA, Carlos A. Financiamento da economia brasileira. Digesto Econômico LXV: 458 (maio 2010).

GOSHAL, Sumantra e Betania Tanure. Estratégia e Gestão Empresarial. São Paulo: Elsevier-Campus, 2004.

RUIZ DE GAMBOA, Ulisses. "Mercado de crédito e o novo governo: Dez propostas para reduzir o spread bancário", Digesto Econômico LXV: 461 (agosto 2010).

KRUGMAN, Paul. The Age of Diminished Expectations - U.S. Economic Policy in the 1990s. Cambridge: MIT Press, 1994.

TANURE, Betania. O Subdesempenho Satisfatório. Jornal Valor, 19/3/10.

MARCONI, Nelson. "A Gestão de Recursos Humanos no Governo Federal - Diagnóstico e Proposta". Digesto Econômico LXV: 458 (abril, 2010).

TOLEDO, Joaquim E. C. "Câmbio, juros e spreads - propostas de políticas econômicas", Digesto Econômico LXV: 456 (março 2010).

MENDONÇA DE BARROS, Luiz Carlos. "O ovo da serpente". Jornal Valor, 5/7/10, p. A11. NOBREGA, Maílson da. "Finanças federais: a volta às trevas". Veja 43: 29 (21/7/10), p.106. RBA (Reserve Bank of Australia). The Exchange Rate and the Reserve Bank´s Role in the Foreign Exchange Market (2009).

36

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

WAISELFISZ, Julio J., Mapa da Violência 2010 - Anatomia dos Homicídios no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2010. WAISELFISZ, Julio J., Mapa da Violência: os Jovens da América Latina - 2008. São Paulo: Instituto Sangari, 2010. ZYLBERSTAJN, Hélio. "Por uma Previdência Social justa e sustentável no Brasil: ir em frente sem olhar para trás", Digesto Econômico LXV: 456 (março 2010).


Quanto ao que mais que se pode fazer, é já pensando em medidas claramente contra a valorização do real, Toledo (2010) também apresenta várias alternativas, como um aumento da volatilidade da taxa no processo de intervenção – para ampliar o risco de passivos externos –, a tributação de entradas de capitais pelo Imposto de Operações Financeiras (IOF), "com atenção para as formas em que essa entrada pode ser disfarçada de modo a contornar a tributação", períodos de quarentena para o ingresso de recursos externos, sem remuneração, incidência do Imposto de Renda (IR) sobre toda e qualquer remuneração, inclusive e particularmente ganhos de capital, maior liberalização das regras cambiais viabilizando maiores investimentos de brasileiros no exterior, e várias outras que podem ser consultadas no seu texto. Quanto à tributação pelo IOF cabe acrescentar que foi reforçada recentemente no Brasil pelo decreto federal nº 6.983, que passou a vigorar em 20/10/2009, à taxa de 2%, "...nas liquidações de operações de câmbio para ingresso de recursos no País, realizada por investidor estrangeiro, para aplicação no mercado financeiro e de capitais." Na ocasião houve protestos de muitos analistas do mercado financeiro, inclusive com referência ao caráter inócuo da medida. Tudo indica que ela foi assimilada, pois não se fala mais do assunto, inclusive porque o próprio FMI, que abominava medidas desse tipo, passou a admiti-las (18). Adicionaríamos, na linha de também ver esse assunto como multifacetado e a exigir um enfoque holístico, que além de in-

tervenções do BC para evitar o "afundamento" da taxa, esta também pode ser apoiada por medidas raramente trazidas à discussão do assunto. Por exemplo, dada uma taxa de câmbio, um produtor de soja mato-grossense terá melhores condições de enfrentá-la se dispuser de melhor infraestrutura de logística, da fronteira de sua fazenda ao porto e também nele. Inovações tecnológicas que aumentassem sua produtividade também teriam efeito similar. Concluímos com uma lição de quem extrai muito minério no Brasil, vende sua produção a dezenas de países, e consegue lucrar com isso, mesmo em situações de câmbio adversas. Recentemente, Roger Agnelli, presidente da Vale, assim se expressou sobre o papel da taxa de câmbio: "O nome do jogo não é desvalorização cambial, é inovação... cada mina ... é um ser diferente ... tem que ter um processo específico ... e bilhões de dólares para investir em logística também. O sucesso da Vale está nos portos mais eficientes do mundo ..."(19) Para muitos exportadores, jogo é também a questão cambial. A Vale é enorme e diferenciada. De qualquer forma, muitos exportadores brasileiros devem ter superado as dificuldades cambiais com procedimentos semelhantes, mesmo operando com menor escala e em outros mercados. E poderiam ser muitos mais se houvesse maior e significativo empenho governamental em dar a todos melhores condições de logística e estímulos à inovação e ao aprimoramento tecnológico.

Notas (1) Em artigos recentes, Mendonça de Barros (2010) e Nóbrega

(2010) criticaram esse relacionamento entre o Tesouro e o BNDES, afirmando que o mesmo traz a má lembrança da finada "conta de movimento" que envolvia o Banco Central e o Banco do Brasil. (2) Financial Times, 28/6/10, em caderno especial sobre o Brasil. (3) Tradução livre de Krugman (2004), pp. xi-xii. (4) Idem, p. xii. (5) Folha de S. Paulo, 4/7/10, p. B10. (6) Dicionário Houaiss da língua portuguesa, edição de 2005. (7) The Economist, 19/6/10, p. 14. (8) Diniz Alves (2010) e esclarecimentos pessoais. (9) Sobre o assunto, veja-se a proposta de Zylberstajn (2010). (10) Uma análise mais abrangente deveria se estender, entre outros aspectos, à maneira pela qual o governo gasta os recursos arrecadados, em particular na produção de bens como a saúde pública, produzindo externalidades que ampliam o valor do que produz, e acima de alternativas oferecidas pelo setor privado. (11) A evidência está no fato de que nos EUA, um país onde os impostos indiretos são menores que no Brasil nas suas alíquotas e na sua arrecadação relativamente aos impostos diretos, turistas brasileiros declararam ter como atividade mais importante as compras, numa porcentagem de respostas próxima do dobro das

atribuídas a parques temáticos, e do triplo das recebidas por visitas a museus e frequência a concertos e shows. Trata-se de outro tipo de paraíso fiscal, ao qual se leva a renda menos tributada aqui para gastar lá em bens e serviços menos tributados lá. Conforme pesquisa Market Profile, de 2008, do Office of Travel and Tourism Industries (OTTI), citada pelo Diário do Comércio, 21/5/10, p. 5, seção de Economia. (12) Sobre o assunto e outras propostas nessa área, veja-se Marconi (2010), também integrante desta série especial. (13) Sobre a correlação entre a Selic e o spread bancário, veja-se Ruiz de Gamboa (2010). (14) O artigo de Ruiz de Gamboa (2010) está neste mesmo número da Digesto Econômico. (15) No Brasil, há limites desse tipo no crédito direcionado, e o estabelecido para operações de crédito consignado. (16) RBA (2009). Ver especialmente a Seção 6, que explica as razões da intervenção, e a Seção 7, sobre como ela é realizada. (17) Idem, tradução primeiro parágrafo da Seção 6. (18) Valor Econômico, 15/4/10, quanto à posição do FMI. E a medida citada não foi inócua no sentido de existir espaço para escapar a ela. Teve algum efeito, a julgar pelo forte crescimento da arrecadação do IOF sobre as referidas operações cambiais, conforme o jornal Valor Econômico, de 16/7/2010. (19) Folha de S. Paulo, 6/7/10.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

37


Mercado de crédito e o novo governo: dez propostas para reduzir o Spread Bancário

Paulo Pampolin/Hype

Ulisses Ruiz de Gamboa Doutor em Economia pela FEA-USP, economista da Associação Comercial de São Paulo e professor da FIA-USP e da FIPEUSP. Ex-consultor do Banco Mundial e pós-doutorando em História Econômica, Universidade da California, Los Angeles. Visiting Scholar da mesma universidade. O autor agradece os comentários e sugestões de Marcel Solimeo e Nicola Tingas a versões anteriores deste estudo, e o excelente trabalho de assistência de pesquisa de Giuliana Boccalato, responsabilizando-se por qualquer erro ou omissão cometidos. uruizdegamboa@acsp.com.br

Resumo O presente trabalho tem por objetivo propor para o próximo governo um conjunto de medidas capazes de provocar uma diminuição permanente dos elevados spreads bancários brasileiros, a partir de um diagnóstico prévio dos fatores econômicos e institucionais que o determinam. As dez medidas propostas são as seguintes: 1) aplicação de uma política fiscal menos expansionista; 2) eliminação da subvalorização e alongamento de passivos públicos internos e externos e reconhecimento dos "esqueletos fiscais" existentes; 3) aumento da independência da política monetária; 4) estabelecimento de um programa de

38

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

conversibilidade plena do real; 5) redução da duração de processos judiciais relacionados a créditos inadimplentes e implementação de modificações no sistema judicial que simplifiquem e barateiem a recuperação de garantias; 6) criação de um cadastro positivo de crédito; 7) diminuição gradual do direcionamento obrigatório de recursos; 8) redução gradual dos recolhimentos compulsórios e eliminação da remuneração das reservas e da exigibilidade de manter títulos públicos; 9) desoneração tributária das transações financeiras; e 10) aumento das condições competitivas do mercado bancário.


Bruno Budrovic/Corbis

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

39


Introdução

A

economia brasileira passou nas últimas duas décadas por transformações estruturais, que hoje lhe garantem posição de destaque entre as economias emergentes mais promissoras do planeta. O fim da era inflacionária possibilitou a expansão do setor financeiro, resgatando sua natural vocação de intermediação de recursos entre os que poupam e aqueles que demandam crédito. Existe farta evidência de que um mercado financeiro mais desenvolvido está associado a uma maior taxa de crescimento econômico no longo prazo. Levine (1997), em um dos estudos clássicos sobre o tema, mostra que um aumento do crédito privado equivalente a 30% do PIB significaria elevar em 1% a taxa anual de expansão da atividade econômica, além de aumentar a produtividade e o incremento anual do estoque de bens de capital em 0,75%. O "aprofundamento" do mercado de crédito desempenha papel fundamental nesse processo, pois permite que a taxa de juros funcione como sinalizador para as decisões de consumo e poupança, possibilitando um uso mais eficiente dos fundos no financiamento do investimento produtivo. Além desses efeitos positivos, o crédito também pode desempenhar o papel de indutor do desenvolvimento econômico, ao reduzir as desigualdades distributivas. Em pesquisa mais recente, Beck, Demirgüç-Kunt e Levine (2007) concluem que a expansão do crédito está associada à redução nas desigualdades sociais, pois permite financiar a aquisição de educação e capacitação por parte das classes de baixa renda e a realização de pequenos negócios que, na prática, num contexto de restrição de liquidez, tendem a utilizar crédito pessoal. O acesso a esse tipo de financiamento é crucial para retirar de forma definitiva a população carente do chamado "círculo vicioso da pobreza". No caso brasileiro, a expansão do crédito tem se convertido em um dos fatores fundamentais para o crescimento econômico, ao financiar tanto o consumo das famílias quanto a aquisição de bens de capital por parte das empresas. De fato, tal como se pode ver no Gráfico 1, a tendência crescente da concessão total de crédito ao setor privado (pessoa física e jurídica) coincide com a

40

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

trajetória ascendente do PIB durante o período 2001-2009. Também é interessante notar que a redução da atividade econômica observada durante o ano passado ocorreu em paralelo à contração da concessão de crédito. É comum afirmar que, comparado a outras economias emergentes, o Brasil ainda apresenta um mercado de crédito reduzido, o que é mostrado no Gráfico 2, que contrasta a relação crédito-PIB medida para o caso brasileiro com outros países emergentes. Como pode ser notado, em termos desse indicador, durante 2008, nosso país ocupava a última posição do ranking. Contudo, tal como sugere um extenso estudo do Banco Mundial (2006), se tomamos a proporção do saldo total de empréstimos em relação à renda por habitante (1), levando em consideração, assim, o grau de desenvolvimento de cada país, nosso mercado de crédito, embora continue sendo de menor tamanho em relação às nações desenvolvidas, não difere dos outros países com renda semelhante, situandose, inclusive, acima da média geral (Gráfico 3). De qualquer forma, as restrições de liquidez ainda são uma realidade para um contingente importante de famílias e empresas, principalmente nos casos de lares de baixa renda e para as firmas de pequeno e médio porte. Onde o mercado de crédito brasileiro realmente apresenta comportamento anômalo é nos níveis de taxas de juros cobrados pelo sistema financeiro. Assim, em termos de spread bancário (diferença entre a taxa de juros cobrada ao tomador de crédito e a taxa de juros paga pelas aplicações) e de taxas de ju-


AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

41


ros reais, o Brasil se situa no primeiro lugar do ranking mundial, conforme pode ser apreciado nos Gráficos 4 e 5. Ta x a s d e j u r o s e spreads elevados geralmente estão vinculados a altas taxas de inflação, onde a taxa de juros nominal deve embutir, além da taxa real, a taxa de inflação esperada. Além disso, os juros altos podem ser o resultado de políticas monetárias que busquem reduzir a própria inflação, ao restringir a expansão da demanda agregada, ou simplesmente uma forma de manter, com o mesmo objetivo, uma certa paridade com o dólar, frente à maior volatilidade dos fluxos externos. Nosso país teve uma longa tradição de altas taxas de inflação, o que explicaria a existência de taxas historicamente elevadas, num contexto em que os depósitos de curtíssimo prazo (overnight) serviam de escape para a contínua deterioração do poder de compra da moeda. Entretanto, após o Plano Real, que promoveu uma significativa redução da inflação, parece paradoxal que a economia brasileira continue apresentando spreads bancários tão elevados. O "enigma" dos juros altos brasileiros tem motivado muitas análises e estudos de especialistas nacionais e internacionais. De qualquer forma, o maior custo de capital das empresas, reduz o investimento produtivo e, portanto, diminui nossas possibilidades de crescimento sustentável do produto, único caminho para que o Brasil futuramente passe a fazer parte das nações desenvolvidas. De fato, estima-se que a capacidade máxima de expansão de nossa economia, sem criar graves desequilíbrios inflacionários ou nas contas externas (crescimento potencial) situase ao redor de 4,5%. Para que nos tornássemos um país desenvolvido nas próximas duas décadas deveríamos ser capazes de crescer, em média, acima de 7% (2), o que demanda-

42

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

ria uma importante elevação do investimento produtivo dos quase 17% do PIB atuais para o patamar de 25 a 30% do PIB. Essa elevação, entre outras reformas estruturais, demandaria uma drástica redução do custo de capital das empresas, além do aumento do acesso ao crédito por parte das pequenas e médias empresas. O presente trabalho, na mesma linha do citado estudo do Banco Mundial (op. cit.) e do recente artigo de Loyola (2009), pretende identificar as causas que explicariam os elevados spreads bancários e, a partir disso, propor um conjunto de medidas que viabilizariam sua redução. Assim, na próxima seção identificaremos e analisaremos os fatores microeconô-


micos que determinam os spreads; na Seção 3 serão apontados seus determinantes macroeconômicos e institucionais, e na Seção 4 exporemos as dez medidas sugeridas para reduzir as taxas de juros. A Seção 5 conclui o texto.

O referido estudo do Banco Mundial também realiza decomposição similar, embora apresente uma diferença metodológica importante: ao contrário do Banco Central, utiliza as taxas de juros efetivamente praticadas pelo mercado financeiro, o que permite considerar de forma explícita a importância do custo de financiamento e dos lucros das instituições financeiras. Essa diferença metodológica se reveste de maior importância ainda, se considerarmos que existe uma grande dispersão entre as taxas efetivamente cobradas pelos bancos para diferentes tipos de clientes e linhas de crédito. De qualquer forma, as duas abordagens se complementam em indicar os caminhos que devem ser trilhados para reduzir o spread bancário. Como pode ser visualizado na Tabela 1, embora as estimativas da importância dos fatores anteriormente mencionados variem de acordo com cada enfoque metodológico, coincidem na importância da taxação, dos compulsórios, dos créditos direcionados, dos custos administrativos e da inadimplência como explicações para o nível elevado das taxas de juros cobradas (3). i) Custos Administrativos do Setor Bancário

2. Fatores Microeconômicos Desde 1999, o Banco Central tem estimado a importância de vários fatores relativos às operações de crédito com recursos livres e taxas prefixadas, que ao afetar o custo de funding dos bancos e instituições financeiras, terminam por determinar o spread bancário. De acordo com o último relatório do Banco Central (2008), os fatores microeconômicos que influiriam na determinação do spread seriam: i) custos administrativos dos bancos; ii) inadimplência; iii) custos dos direcionamentos de recursos (créditos direcionados e recolhimentos compulsórios); iv) encargos fiscais (impostos e Fundo Garantidor do Crédito - FGC) e v) margem de lucro (bruta e líquida) das instituições financeiras.

Os custos administrativos correspondem às despesas relacionadas à operação de intermediação financeira, inclusive custos da mão de obra (salários, honorários, treinamentos, encargos e benefícios) e operacionais (água, energia, comunicações, material de escritório, processamento de dados, propaganda e publicidade, seguro, vigilância, transporte, entre outros). Maiores custos administrativos seriam, claramente, repassados, em alguma medida, para as taxas de juros cobradas dos tomadores de crédito. O sistema bancário brasileiro, perfeitamente comparável com aqueles de países desenvolvidos, apresenta custos administrativos bem acima da média internacional, situando-se como a sétima maior razão custos administrativos/ativos totais do mundo (Gráfico 6).

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

43


O citado estudo do Banco Mundial sugere duas hipóteses para explicar essa situação. A primeira hipótese está relacionada com o menor grau de concorrência no sistema bancário, que levaria os bancos privados, com maior participação de mercado, a seguir as margens elevadas que os bancos públicos cobram, devido a que são mais ineficientes e mais prejudicados por exigências governamentais, tais como o crédito direcionado, entre outras. A segunda hipótese relaciona os altos custos administrativos com o custo da intermediação no Brasil, que apresenta custos contratuais mais elevados que a média mundial, particularmente no que diz respeito à recuperação do crédito inadimplente. Com relação à primeira hipótese, elevadas participações de mercado não necessariamente implicam em poder monopólico, frente a um contexto de ganhos de escala e de rede, característico do setor financeiro. Além disso, Staub, Souza e Tabak (2009) concluem que os bancos públicos foram mais eficientes que seus pares privados durante o período 2000-2007, possivelmente devido ao efeito de programas governamentais que injetaram liquidez ou liquidaram instituições públicas com problemas de carteira (PROES e PROEF), e ao fato de que estes podem obter vantagens no financiamento de suas operações, ao contar com depósitos de baixo custo de administração (FGTS, FAT, depósitos judiciais). Dessa forma, a segunda hipótese parece cobrar mais importância. De fato, outra publicação do Banco Mundial ("Doing Business", 2010) mostra que nosso país se situa muito abaixo num ranking que inclui 183 países em termos de custos e procedimentos de obtenção de crédito (107º lugar) e no cumprimento dos contratos (101º lugar). Para explicar os maiores custos administrativos do mercado financeiro brasileiro, também devem ser considerados os elevados encargos trabalhistas que o setor enfrenta, além das maiores despesas operacionais inerentes ao varejo (grandes requerimentos de infra-estrutura de T.I., sistema de compensação fragmentado, uso predominante de dinheiro e cheques como meios de pagamento). ii) Inadimplência Os custos decorrentes da inadimplência do crédito são apontados pela decomposição do Banco Central (op. cit.) como o determinante microeconômico mais importante do spread bancário brasileiro. O trabalho de Bignotto e Rodriguez (2006) também ressalta a importância do default sobre

44

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

as margens financeiras cobradas, enquanto Staub, Souza e Tabak (op. cit.) encontram que um aumento deste reduz a eficiência operacional dos bancos. Apesar da diminuição observada ao longo dos últimos anos, pode-se dizer que a taxa de inadimplência do crédito no Brasil continua elevada para os padrões mundiais, devido, como lembra Loyola (op. cit.), à proteção deficiente dos direitos dos credores e à existência de assimetrias de informação no mercado do crédito. No primeiro caso, e apesar das importantes reformas efetuadas nos últimos anos, o processo judicial de recuperação de garantias ainda apresenta elevada lentidão, incrementando as perdas e incentivando comportamentos oportunistas, que podem se utilizar dessa morosidade e do viés pró-devedor do judiciário para protelar o pagamento das dívidas. Além disso, em muitos casos, o custo associado à cobrança e à recuperação das garantias supera seu valor de mercado, o que, na prática, elimina a possibilidade de reaver, de forma efetiva, o bem alienado. Nessa mesma linha, segundo o Banco Mundial (op. cit.), os aspectos contratuais associadas às diferentes linhas de crédito poderiam explicar a apreciável dispersão de spreads, via variação do risco de inadimplência, observada no caso brasileiro. A assimetria de informação é uma falha de mercado, onde o vendedor possui mais informação sobre a qualidade de um produto ou serviço do que o consumidor, ou, alternativamente, esse último sabe melhor do que o primeiro sobre sua real qualidade como cliente. No caso do mercado do crédito, tipicamente é o tomador que detém mais informação sobre sua capacidade e vontade de pagar as dívidas. Sendo assim, se os bancos e instituições financeiras têm dificuldade em diferenciar os "bons" dos "maus" pagadores, subirão a taxa de juros como forma de compensar o maior risco de default (4). Por sua vez, taxas de juros mais altas tenderão a atrair devedores com perfil de alto risco, deteriorando a qualidade da carteira de clientes das instituições financeiras, configuran-


do uma situação denominada seleção adversa: os clientes "bons" vão sendo "expulsos" do mercado pelos clientes "ruins". Tudo isso, evidentemente, aumentaria a taxa de inadimplência, realimentando todo o processo (5). Um exemplo prático desse fenômeno pode ser visualizado no Gráfico 7, que apresenta as taxas de juros e de inadimplência (acima de 90 dias) médias em 2009 do cartão de crédito, cheque especial, crédito pessoal e financiamento de veículos. Pode-se perceber que justamente aquelas operações que cobram as maiores taxas de juros são, ao mesmo tempo, as que apresentam o maior percentual de carteira com atraso. Em geral, estima-se que, no caso brasileiro, a seleção adversa deva estar relativamente mais concentrada nos segmentos de créditos destinados ao varejo e ao setor coorporativo médio. Outro problema que pode derivar-se da presença de informação assimétrica no mercado de crédito é o comportamento oportunista (moral hazard) onde, ao amparo da inexistência de informação consolidada de crédito, os tomadores possam endividar-se simultaneamente em várias instituições financeiras. Pesquisas internas realizadas no Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) da Associação Comercial de São Paulo, parecem indicar que o grau de inadimplência aumenta conjuntamente com o número de consultas de CPF para a concessão de crédito (Gráfico 8) (6). Estima-se que esse tipo de comportamento poderia ser mais freqüentemente encontrado nos segmentos médios do mercado de crédito brasileiro. iii) Custos dos Direcionamentos de Recursos Outra característica que faz do mercado de crédito brasileiro "um ponto fora da curva" na comparação internacional é a elevada presença de direcionamentos de recursos, tanto

na forma de créditos obrigatoriamente destinados aos financiamentos de longo prazo (BNDES), rural e habitacional, como na forma de recolhimentos compulsórios. Com relação aos créditos direcionados, trata-se de uma intervenção direta do governo no setor bancário, que regula sua concessão e fixa as taxas de juros cobradas abaixo dos valores de mercado, beneficiando a grupos e setores específicos, o que, evidentemente, gera uma distorção na distribuição dos recursos financeiros. Apesar de praticamente haver sido abandonado pelos outros países latino-americanos, e de haver mostrado tendência decrescente de sua participação a partir de 2004, essa modalidade ainda representa cerca de 32,5% das operações de crédito totais (Gráfico 9). A incidência desse tipo de operações no spread se explicaria pela necessidade dos bancos aumentarem o valor dos juros cobrados na concessão de créditos com recursos livres para compensar as perdas geradas pelas operações direcionadas. Apesar do mencionado estudo do Banco Mundial (op. cit.) questionar a validade dessa hipótese, devido à dificuldade em separar os custos de cada tipo de operação, e pelo fato de grande parte do funding do direcionamento poder ser obtido a taxas também abaixo do mercado (PIS, COFINS, FGTS, FAT e caderneta de poupança), reconhece que, de qualquer forma, esse esquema de financiamento impõe um custo para o setor bancário, que perde a oportunidade de colocar esses recursos à taxa de mercado. De fato, esse estudo encontra evidência de que o custo de direcionamento é uma das causas do elevado tamanho do spread no caso brasileiro, fato também comprovado pela decomposição realizada pelo Banco Central (op. cit.). O sistema de recolhimentos compulsórios praticado no Brasil também é um dos elementos que fazem do mercado financeiro brasileiro uma peça única no mundo. Tradicionalmente, o requerimento de reservas obrigatórias costuma ser um instrumento da política monetária, utilizado para afetar a quantidade de dinheiro existente na economia, e, com isso, a inflação. Quando o Banco Central, com a finalidade de combater os aumentos de preços, visava reduzir a quantidade de moeda, ordenava um aumento da proporção de reservas mínimas que os bancos deveriam guardar, diminuindo assim o crédito, o que aumentava a taxa de juros, reduzindo consumo e investimento.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

45


Contudo, esse tipo de instrumento de política monetária passou a ser praticamente abandonado na medida em que os mercados financeiros se desenvolveram mundo afora, e os bancos centrais passaram a utilizar a taxa de juros como ferramenta principal da política monetária. Atualmente, vários países, e inclusive o Brasil, adotam o sistema de metas de inflação, que é operacionalizado a partir da definição de uma taxa bás i c a d e j u ro s . E f e t i v a mente, como lembra Garcia (1995), as economias avançadas têm mostrado uma tendência de redução de suas reservas compulsórias, que para vários países, tais como México, Canadá, Austrália e Nova Zelândia foram eliminadas completamente. Recentemente, Ben Bernanke (2010), o presidente do Banco Central Americano, propôs a eliminação completa das reservas compulsórias, que "impõem custos e d i s t o rç õ e s a o s i s t e m a bancário" (7). O caso brasileiro se diferencia dos demais, em primeiro lugar pelo nível do compulsório que, como pode ser visto no Gráfico 10, supera amplamente as taxas de reservas obrigatórias impostas pelos Bancos Centrais de vários países emergentes e desenvolvidos. Historicamente, como lembra Loyola (op. cit.), o elevado nível de recolhimentos obrigatórios era uma realidade condizente com uma economia altamente inflacionária como a nossa, servindo para extrair ganhos inflacionários dos depósitos bancários, e também como forma de criar um mercado cativo para a dívida pública. Em outras palavras, na prática, tal como reconhecem Car-

46

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

valho e Azevedo (2008) em um documento de trabalho do próprio Banco Central, "...(as) considerações fiscais ainda têm influenciado as decisões de requerimento de reservas, mesmo sob um regime de metas de inflação" (8 ) , transformando o compulsório em instrumento de rolagem artificial da dívida pública brasileira.


Também chama a atenção o fato de que, de acordo com dados do Banco Central, 75% dos recolhimentos totais sejam remunerados à taxa SELIC, o que não é prática usual dos Bancos Centrais, que, segundo Borio e Disyatat (2009) remuneram unicamente o excesso de reservas a uma taxa igual ou inferior à taxa de juros utilizada para implementar a política monetária (9). Além disso, no caso brasileiro, essa taxa é, ao mesmo tempo, a principal taxa que remunera os títulos da dívida pública, havendo, inclusive, regras de exigibilidade que obrigam os bancos a manter parte das reservas diretamente em papéis do governo. Na decomposição do spread realizada pelo Banco Central (op. cit.), a incidência do compulsório e do direcionamento de crédito é basJim Young/Reuters tante reduzida (1,86%), afirmando-se que Recentemente, "...(como) a maior parte Ben Bernanke, dos recolhimentos compresidente do pulsórios é remunerada, Banco Central portanto, ao contrário americano, do que aparentemente propôs a p re v a l e c e e m m u i t a s eliminação análises, não se deve escompleta das perar contribuição exreservas p re s s i v a d o s re c o l h icompulsórias. mentos obrigatórios na formação do spread bancário..." (10). Entretanto, essas estimativas tratam o direcionamento de crédito como uma espécie de imposto implícito à intermediação financeira, não considerando, portanto, o efeito dos elevados requerimentos de reserva sobre a oferta de crédito, e, portanto, sobre o próprio spread cobrado. Se os bancos estão obrigados a manter recolhimentos mínimos muito altos, tendem a reduzir o risco de encontrar-se com reservas efetivas abaixo desse limite, o que os levaria a endividar-se com outros pares à taxa interbancária, diminuindo a quantidade de crédito. Esse efeito é potencializado pelo fato da maior parte dessas reservas serem remuneradas a uma taxa tão elevada quanto a SELIC, o que desincentiva ainda mais a concessão de empréstimos. A menor liquidez resultante, portanto, deverá provocar aumentos nas taxas de juros de mercado. Com efeito, o referido estudo do Banco Mundial (op. cit.) mostra que o impacto do compulsório e do direcionamento do crédito na determinação do spread brasileiro está longe de ser trivial. Do mesmo modo, Souza-Sobrinho (2009) conclui que cerca de um terço do spread pode ser atribuído a esses dois fatores de direcionamento de recursos, enquanto Rodrigues e Takeda (2005), além de chegarem a resultados similares, ressaltam a influência do compulsório sobre a dispersão de taxas de juros entre os bancos de menor porte.

É fato que a existência de níveis tão elevados de compulsório possibilitou que em 2008 o Banco Central injetasse de forma rápida grande liquidez na economia, a partir de reduções das exigências de recolhimento obrigatório sobre os depósitos e do adiamento de sua aplicação sobre as operações de leasing, o que se constituiu em um dos fatores que permitiram minimizar os impactos da crise financeira internacional no Brasil. Entretanto, o fato de que essas reservas possam funcionar como uma espécie de "colchão" de liquidez pronto a amenizar volatilidades do sistema financeiro, o "seguro prudencial" na visão do Banco Central, não implica que seu nível deva ser tantas vezes superior ao padrão mundial, reduzindo as possibilidades de "aprofundamento" do mercado financeiro e de crescimento sustentável da economia. iv) Encargos Fiscais O mercado financeiro é, sem dúvida, um dos setores mais taxados da economia brasileira, tanto do ponto de vista dos impostos diretos, tais como o Imposto de Renda (IR) e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), como também dos impostos indiretos, com destaque para a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), o Programa de Integração Social (PIS) e o Imposto Sobre as Operações Financeiras (IOF). Como foi visto, em sua decomposição, o Banco Central estima que a participação dos impostos diretos e indiretos, incluindo o FGC, no spread bancário alcança a 23,3%. Como lembra Loyola (op. cit.), a cobrança de IOF sobre as operações de crédito, que inicialmente foi instituída para fins eminentemente regulatórios, tem sido utilizada como instrumento de arrecadação, substituindo a extinta Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF). Esse tipo de tributação, além de cumulativa, adquire caráter regressivo, ao significar maior carga tributária relativa para pequenas e médias empresas e famílias de menor renda, que dispõem de um número menor de alternativas de financiamento. O mesmo ocorre com a cobrança do PIS/COFINS, que taxa as receitas do setor financeiro. A carga tributária que incide sobre o setor financeiro brasileiro, relativamente alta, de acordo com padrões internacionais, também contribui para aumentar o custo do crédito, além de incentivar a maior informalidade em sua concessão. De fato, vários estudos mostram a importância dos impostos na determinação do tamanho médio dos spreads bancários (11).

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

47


v) Margem de Lucro (Bruta e Líquida) das Instituições Financeiras Nas estimativas do Banco Central, a margem de lucro das instituições financeiras é um dos determinantes mais importantes do spread bancário, alcançando o segundo lugar em relevância no caso da margem líquida, e o primeiro lugar no caso da bruta. Essa importância relativa da margem de lucro poderia ser indicativa da existência de elevado poder monopólico por parte dos principais players do setor financeiro. Com efeito, durante os últimos anos, as fusões e aquisições ocorridas no mercado bancário brasileiro tem aumentado seu grau de concentração. No ano passado, frente à maior dificuldade de obtenção de funding dos bancos pequenos e médios, o Banco Central autorizou a compra de suas carteiras por parte de instituições de maior porte com recursos oriundos de suas reservas compulsórias, o que aumentou ainda mais a concentração no setor. Dados do Banco Central para junho de 2009 indicam que os cinco maiores bancos detinham aproximadamente 77,4% dos ativos totais do setor, com mais da metade desse total representada pelos bancos estatais. Se incluirmos o BNDES como o sexto maior banco, a participação anterior se eleva a 87,9%, mantendo-se a importância relativa das instituições financeiras governamentais. Contudo, dados de Beck e Demirgüç-Kunt (op. cit.) para 2008 mostram que o grau de concentração do sistema bancário brasileiro, medido pela participação dos três maiores bancos nos ativos totais, é inferior ao encontrado em vários países desenvolvidos e emergentes, muitos dos quais não vinculam esse fato à existência de elevado poder de mercado por parte das

48

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

instituições financeiras (Gráfico 11) (12). Além disso, Urdapilleta e Stephanou (2009) concluem que, no caso do Brasil, o grau de concorrência no setor bancário varia de acordo com o segmento, sendo bastante competitivo no crédito corporativo (principalmente no caso das grandes empresas) e menos disputável no caso do varejo. Em síntese, aparentemente, a concentração do setor bancário brasileiro não estaria associada ao exercício de poder monopólico, e, portanto, à geração de significativas margens de lucro para seus principais players, seguindo a tendência mundial de um setor caracterizado por economias de escala e de rede. Com efeito, recente apresentação da FEBRABAN (2010) mostra que, durante 2008, a rentabilidade sobre o patrimônio dos bancos brasileiros se situa dentro da média internacional, incluindo alguns países latino-americanos (Gráfico 12). Por último, mas não menos importante, convém lembrar que na estimativa do Banco Central, os itens margem bruta e margem líquida de lucro das instituições financeiras também incorporam o resíduo do modelo, ou seja, eventuais erros de estimação e mensuração. Em todo caso, não existe nenhuma indicação da importância relativa desse resíduo na porcentagem total desses dois últimos itens. 3. Fatores Macroeconômicos e Institucionais i) Taxa SELIC O sempre citado estudo do Banco Mundial (op. cit.) e um trabalho do próprio Banco Central, de autoria de Bignotto e Rodrigues (op. cit.), trazem evidência estatística da relação estreita en-


tre o spread bancário e a taxa SELIC, como é mostrado no Gráfico 13, que considera dados relativos a operações de crédito prefixadas entre julho de 1994 e maio de 2010. Essa forte relação se explica pelo fato de que a SELIC, além de ser o principal instrumento da política monetária desde que o sistema de metas de

inflação foi implementado, constitui a verdadeira taxa básica, o "piso" que determina o custo do funding bancário. Os autores do trabalho, inclusive, vão mais além, e postulam que a taxa de juros básica seria o principal determinante dos altos custos de intermediação bancária no nosso país, ficando o

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

49


conjunto de fatores microeconômicos anteriores em segundo uma taxa SELIC relativamente alta para assegurar o cumpriplano, aumentando sua importância relativa, à medida que semento da meta de inflação. ja possível reduzir de forma significativa a taxa SELIC. Por último, está a hipótese da reduzida eficácia da política Sendo essa taxa de juros básica tão importante para a determonetária, devido à excessiva importância dos preços admiminação dos spreads, a questão relevante é porque, num connistrados no IPCA (cerca de 33%), imunes às taxas de juros, cutexto de redução e normalização das taxas de inflação, seu níjos aumentos exigiriam um represamento maior dos preços livel ainda continua tão elevado, colocando-a, em termos reais, vres para poder cumprir com a meta de inflação. Sendo assim, como a mais alta do mundo. o Banco Central se veria obrigado a manter taxas básicas maioPodemos enumerar hipóteses, não necessariamente exclures do que seriam necessários em uma economia menos indedentes, que se propõem a explicar essa anomalia. A primeira é a xada. A falta de acesso ao crédito por grande parte das famílias "hipótese da vulnerabilidade fiscal", segundo a qual a SELIC é albrasileiras também implicaria em enfraquecimento do canal ta devido à existência de uma elevada dívida pública, muito conde transmissão da política monetária, pois os movimentos das centrada no curto prazo, combinada com uma política fiscal poutaxas de juros não produziriam efeitos sobre seu consumo. co flexível em termos de gastos. Nesse sentido, os spreads elevados refletiriam, entre outros fatores, o risco da dívida pública. ii) Outros Fatores Outra causa de vulnerabilidade fiscal é a composição da dívida pública, onde a maior parte dos títulos está remunerada Além dos efeitos diretos da taxa SELIC, outros fatores mapela taxa SELIC. Assim, quando, frente a choques externos, o croeconômicos podem ser identificados como causadores Banco Central aplica política monetária dos elevados spreads bancários. A utilizacontracionista, incrementando a taxa básição das reservas compulsórias como insca, automaticamente provoca crescimento trumento de alongamento artificial da dída dívida pública, deteriorando seu perfil. vida pública, além de reduzir a oferta de A falta de acesso ao A maior percepção de risco-país exerceria, crédito, conforme descrito anteriormencrédito por grande desse modo, pressão adicional sobre o câmte, aumenta a percepção de risco dos inparte das famílias bio, obrigando a autoridade monetária a vestidores externos, que passam a requeimplicaria em aumentar ainda mais os juros, realimentanrer altas taxas de juros de curto prazo. enfraquecimento do do todo o processo. Esse "círculo vicioso" Outro elemento que contribui para aucanal de transmissão restringe a capacidade do Banco Central de mentar o risco-país é a insistência por da política realizar política monetária, gerando um parte do governo em alongar e subvalomonetária, pois os contexto em que taxas de inflação reduzirizar artificialmente uma série de passimovimentos das das convivem com taxas básicas desproporvos externos e internos, que se convertem taxas de juros não cionais, o chamado "equilíbrio ruim" da seem "esqueletos fiscais". No caso dos priproduziriam efeitos gunda hipótese, que postula a existência de meiros, destacam-se os títulos da dívida sobre seu consumo. "equilíbrios múltiplos". De acordo com essa externa emitidos em libras por estados, visão, a única possibilidade de sair dessa municípios e pelo governo brasileiro en"armadilha" de juros altos seria uma drástitre 1883 e 1931, federalizados e renegoca redução da taxa básica por um ato volunciados em 1943 por Getúlio Vargas, a partarista do Banco Central. tir do Decreto-Lei 6019/43, que ainda A terceira hipótese, denominada "incerteza jurisdicional", não foram pagos. O site do Tesouro Nacional apresenta uma elaborada por Arida, Bacha e Lara-Rezende (2003), está relalista dos títulos reconhecidos como vigentes pelo governo cionada com fatores institucionais, que dizem respeito à incerbrasileiro, que se propõe a pagar unicamente o valor de face teza sobre a estabilidade e a segurança dos contratos financeidas apólices, sem nenhum ajuste por conceito de juros e corros, que podem ter seu valor alterado por intervenções arbireção monetária. Com relação à dívida interna, podem-se citrárias das autoridades, sempre prejudicando os credores. Em tar como exemplos os precatórios, que representam dívidas outras palavras, a incerteza sobre a estabilidade e a segurança da União, estados e municípios referentes a desapropriado contrato financeiro firmado sob jurisdição brasileira redunções, salários e indenizações, com casos de atraso de até 25 da tanto em juros mais altos no curto prazo como em ausência anos, cuja recente modificação legal implica em alongamende financiamento de longo prazo. Assim, toda essa instabilitos ainda maiores e elevados deságios. dade político-legal, além de afetar a inadimplência, tal como foi mencionado, pode ser transferida para os papéis do gover4. Recomendações de Política no, resultando em maiores taxas SELIC e na relutância dos investidores privados em manter ativos financeiros de longo Frente ao diagnóstico anterior, a seguir sugerem-se um conprazo, públicos ou privados. junto de medidas a serem aplicadas a partir do próximo goverOutro fator que contribuiria para elevar o spread bancário é no, cujo objetivo é reduzir o spread bancário, e, portanto, o cuso reduzido produto potencial da economia brasileira, que imto de financiamento da economia brasileira. As medidas indiplica em menor capacidade dos produtores de responder aos cadas podem incidir sobre mais de um dos fatores que deteraumentos da demanda, o que obriga o Banco Central a manter minam o nível de juros cobrados pelo setor bancário:

50

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Eduardo Knapp/Folha Imagem

No caso brasileiro, a expansão do crédito tem se convertido em um dos fatores fundamentais para o crescimento econômico.

1) Aplicação de uma política fiscal menos expansionista, o que contribuiria para diminuir o endividamento público, o risco de solvência fiscal, e o risco-país, reduzindo a taxa SELIC, e, em geral, as taxas de juros de curto prazo. A maior austeridade fiscal também implicaria na menor necessidade de aplicação de políticas monetárias contracionistas por parte do Banco Central, frente a uma demanda agregada mais aquecida. Evitar-se-iam, assim, incoerências da política econômica atual, tais como, por exemplo, financiar as operações do BNDES com endividamento público, o que possivelmente obrigará o Banco Central a uma elevação da SELIC além do necessário, para compensar a expansão de liquidez. Delfim Netto e Fábio Giambiagi propuseram, inclusive, que a obtenção de um déficit fiscal nominal zero seria a pré-condição básica para diminuir a taxa SELIC. 2) Eliminação das práticas de subvalorização e alongamento de passivos públicos internos e externos e reconhecimento de todos os "esqueletos fiscais". Essa medida produziria um verdadeiro "choque de credibilidade", viabilizando a redução do prêmio de risco dos papéis de governo, diminuindo o nível da taxa SELIC, sem comprometer a capacidade de rolagem da dívida pública. No caso dos títulos de dívida externa do DL 6019/43, Ruiz de Gamboa e Summerhill (2009) estimam que seu valor atualizado alcançaria a aproximadamente R$ 152,1 bilhões, enquanto o valor dos precatórios em circulação chegaria a R$ 100 bilhões. O reconhecimento desses "esqueletos" não significaria uma diminuição

da solvência do governo, podendo, inclusive, a partir da redução dos juros dos títulos públicos, decorrente do "choque de credibilidade", contribuir para a obtenção de uma menor razão dívida pública-PIB, além de melhorar seu perfil, em termos de prazo e duration. 3) Aumento da independência da política monetária, a partir da atribuição de autonomia formal do Banco Central e mandato fixo a seus diretores, além da proibição de emissão de títulos públicos indexados à taxa SELIC. Essas medidas permitiriam desvincular definitivamente a política fiscal da política monetária, eliminando a atual situação de "dominância fiscal", o que diminuiria as expectativas de inflação e o risco-país, possibilitando a saída do "equilíbrio ruim" de altas taxas de juros, minimizando, ao mesmo tempo, a incerteza jurisdicional. 4) Estabelecimento de um programa de conversibilidade plena do real, eliminando-se gradualmente os controles cambiais, o que serviria para reduzir significativamente a incidência da incerteza jurisdicional sobre o risco soberano, por meio da eliminação do componente de conversão de moeda, obtendo-se taxas de juros domésticas mais baixas. 5) Redução do tempo necessário para conclusão de processos judiciais relacionados a créditos inadimplentes e implementação de modificações no sistema judicial que simplifiquem e barateiem a recuperação de garantias. Nesse sentido, tal como sugerem Arida, Bacha e Lara-Rezende (op. cit.), poderia ser recomendável a integração com uma jurisdição de qualidade superior, como ocorreu com os novos membros da

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

51


Comunidade Europeia, ou com o México, ao ingressar ao Nafta. Essas mudanças possibilitariam reduzir os custos administrativos dos bancos, aumentar os custos do comportamento inadimplente e diminuir a "incerteza jurisdicional". 6) Criação de um cadastro positivo de crédito, que inclua informação sobre comportamento de pagamento de compromissos não bancários (luz, gás, telefone, etc), consolidando, ao mesmo tempo, as informações de crédito dos participantes do sistema. Essa medida possibilitaria reduzir os problemas de assimetria de informação do mercado de crédito, melhorando a qualidade da carteira de clientes e reduzindo o comportamento oportunista de endividamento simultâneo. Estudo de Powell, Mylenko, Miller e Majnoni (2004) para o mercado de crédito brasileiro conclui que a inclusão de informação positiva diminuiria o risco de inadimplência e aumentaria o acesso ao crédito. 7) Diminuição gradual do direcionamento obrigatório de recursos, o que reduziria a necessidade de compensar as perdas bancárias decorrentes, a partir da elevação das taxas de juros cobradas em operações de crédito com recursos livres. Essa medida afetaria principalmente as instituições privadas, que não dispõem dos recursos provenientes das poupanças compulsórias, cujo custo de captação é relativamente inferior. 8) Redução gradual dos recolhimentos compulsórios, aproximando-os a níveis mais condizentes com os padrões internacionais e com as preocupações prudenciais, e eliminação da remuneração das reservas e da exigibilidade de manter títulos públicos. A ideia seria aumentar a oferta disponível de crédito, sem descuidar da possibilidade de utilizar

as reservas obrigatórias em casos de maior volatilidade no mercado financeiro, mas, evitando-se transformá-las em instrumentos de alongamento artificial da dívida pública. Evidentemente, para evitar um aumento de liquidez excessivo, incompatível com a manutenção de uma inflação baixa, essa redução deveria ser gradual, e, em muitos casos, direcionada a operações ligadas ao setor produtivo, tais como financiamento de exportações, de empresas pequenas e médias e de aquisição de máquinas e equipamentos, entre outros. 9) Desoneração tributária das transações financeiras, a partir da eliminação das alíquotas do IOF sobre operações financeiras e diminuição das alíquotas do PIS/COFINS sobre as receitas dos intermediários financeiros. Essa medida reduziria a cunha fiscal que termina por elevar o custo da intermediação financeira, tanto para famílias como para empresas. Nesse sentido, também seria importante evitar a "tentação" de criar novos tributos indiretos de baixo custo de arrecadação, tais como aqueles que incidem sobre as operações financeiras, cuja extinta CPMF representa um exemplo. 10) Aumento das condições competitivas do mercado bancário, principalmente no segmento do varejo, onde parece existir um menor grau de concorrência. Nesse sentido, a regulação poderia atuar no sentido de permitir a livre escolha de intermediário financeiro por parte do trabalhador, aprofundando os resultados positivos alcançados pela criação da conta-salário. Além disso, a implementação do cadastro positivo deverá atuar no sentido de aumentar a portabilidade cadastral dos tomadores de crédito, facilitando sua migração para as instituições financeiras que ofereçam melhores condições.

Notas (1) Utilizou-se a renda per capita de cada país ajustada por

diferenças no custo de vida e na taxa de câmbio para cada caso (paridade do poder de compra). O índice foi obtido a partir do cálculo da razão entre o logaritmo natural das operações totais de crédito e o logaritmo natural da renda por habitante. (2) Essa estimativa tomou por base a comparação entre a renda por habitante atual da economia brasileira e a renda per capita média de países europeus desenvolvidos, ajustando-se por diferenças do poder de compra e pelas flutuações das moedas locais em relação ao dólar (paridade do poder de compra). (3) No caso da decomposição do Banco Mundial, a margem líquida obtida pelas instituições financeiras corresponde ao retorno sobre o patrimônio. Além disso, na comparação não se incluiu o custo de funding, que é o principal determinante dos spreads, segundo essa abordagem. (4) Como a maior parte do crédito no Brasil é concedido a taxas de juros prefixadas, a maior incerteza associada à informação assimétrica deverá aumentar o custo do financiamento dos novos contratos de crédito. (5) Os trabalhos de Nakane (2003) e de Blum e Costa (2007) parecem refutar o argumento de que as taxas de juros mais altas implicarão em maior taxa de inadimplência, clara evidência da existência de seleção adversa no mercado de crédito. Contudo, os

52

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

resultados preliminares de um recente artigo de Ruiz de Gamboa e Fava (2010), parecem sugerir a existência de uma relação de causalidade entre as taxas de juros e a taxa de inadimplência bruta, medida pelo número total de CPFs que ingressam como inadimplentes no banco de dados do SCPC. (6) O Gráfico 8 mostra a taxa de inadimplência observada até seis meses à frente da data de consulta. Assim, com relação à primeira variável, registraram-se os dados observados até fevereiro de 2010, e com relação à segunda a amostra termina em agosto de 2009. (7) Nota de rodapé, página 10. A tradução é nossa. (8) Pág. 9. A tradução é nossa. (9) A remuneração de reservas compulsórias dentro dos limites mínimos também é aplicada pelos Bancos Centrais dos Estados Unidos e da Colômbia, ainda que a taxas muito inferiores às respectivas taxas básicas de política monetária, que também são bastante menores que a SELIC . (10) Pág. 27. (11) Veja-se Banco Central (1999), Cardoso (2002), Afanasief (2002), Rodrigues e Takeda (Op. Cit.) e Demirgüç-Kunt e Huizinga (1999), entre outros. (12) No caso brasileiro, os dados foram extraídos do Banco Central na data-base de junho de 2009.


5. Conclusões Como pode ser visto, a existência de elevados spreads de crédito bancário se deve a um conjunto de fatores, de natureza econômica e institucional, e por isso sua convergência para patamares condizentes com os novos fundamentos da economia brasileira não será tarefa fácil para o próximo governo. A preocupação com a manutenção dos equilíbrios macroeconômicos, em todo caso, deverá estar sempre presente, e as medidas sugeridas nesse trabalho vão dirigidas a fortalecer a coerência entre as políticas monetária e a fiscal,

além de mitigar as inúmeras falhas de mercado do sistema financeiro brasileiro. Evidentemente, contar com um custo de capital mais baixo seria condição necessária, embora não suficiente para um "aprofundamento" real do mercado de crédito no Brasil. Nesse sentido, o desenvolvimento de um mercado de capitais de longo prazo também seria crucial para aumentar as possibilidades de crescimento econômico de longo prazo e reduzir de forma permanente e consistente as desigualdades sociais, transformando em realidade a eterna promessa de um país desenvolvido.

Referências Bibliográficas Afanasieff, T.; Lhacer, P. e Nakane, M. (2002): "Determinants of Bank Interest Spread in Brazil", Working Paper Series, Agosto.

Seminário Juros e Câmbio, Câmara dos Deputados, Comissão de Finanças e Tributação, Brasília, 4 de Maio.

Arida, P.; Bacha, E. e Lara-Resende (2003): "Credit, Interest and Jurisdictional Uncertainty: Conjectures on the Case of Brazil", in: Giavazzi, F.; Goldfajn, I. e Herrera, S. (orgs.). Inflation Targeting, Debt and the Brazilian Experience:1999 to 2003. Cambridge: MIT Press.

Garcia, M. (1995): "Política Monetária, Depósitos Compulsórios e Inflação", Revista de Economia Política, vol. 15, nº 2 (58), Abril-Junho.

Banco Central (1999): "Juros e Spread Bancário". 2008): "Decomposição do Spread Bancário e Apresentação de Nova Metodologia", Economia Bancária e Crédito, 25. Banco Mundial (2006): "Brazil: Interest Rates and Intermediation Spreads", Economic Sector Work Report, n. 36628-BR, June. (2009): World Development Indicators. (2010): Doing Business: Reforming Through Difficult Times. Beck, T.; Demirgüç-Kunt, A. e Levine, R. (2007): "Finance, Inequality and the Poor", Journal of Economic Growth, Vol. 12, Nº 1, March.

Heston, A.; Summers, R.; Aten, B. (2009): Penn World Table Version 6.3, Center for International Comparisons of Production, Income and Prices at the University of Pennsylvania, August. Levine, R. (1997): "Financial Development and Economic Growth: Views and Agenda", Journal of Economic Literature, Vol. XXXV, pp. 688-726, June. Loyola, G. (2009): "A Redução do Custo do Capital", in: Giambiagi, F. e Barros, O. (orgs.). Brasil Pós-Crise: Agenda para a Próxima Década, Cap. 12. Nakane, M. (2003): "Taxa de Empréstimos e Inadimplência", Informações FIPE, nº 273, pp. 15-17.

Beck, T.; Demirgüç-Kunt, A. (2009): "Financial Institutions and Markets Across Countries and Over Time: Data and Analysis", World Bank Policy Research Working Paper, nº 4943, May.

Powell, A.; Mylenko, N.; Miller, M.; e Majnoni, G. (2004): "Improving Credit Information, Bank Regulation and Supervision: On the Role and Design of Public Credit Registries", Policy Research Working Paper, nº 3443, World Bank.

Bernanke, B. (2010): Statement, Committee on Financial Services, U.S. House of Representatives, February 10.

Rodrigues, E. e Takeda, T. (2005): "Reserve Requirements and Bank Interest Rate Distribution in Brazil", CEMLA, Mexico.

Bignotto, F.; Rodrigues, E. (2006): "Fatores de Risco e o Spread Bancário no Brasil", Trabalhos Para Discussão, nº 110, Banco Central, Julho.

Ruiz de Gamboa, U. e Fava, V. (2010): "Nova Evidência sobre a Existência de Seleção Adversa no Mercado de Crédito Brasileiro", mimeo.

Blum, D. e Costa, A. C. (2007): "Inadimplência no Setor Bancário Brasileiro: Uma Medida Alternativa", Relatório Especial, Tendências Consultoria Integrada, 25 de Outubro.

Ruiz de Gamboa, U. e Summerhill, W. (2009): "Reestimating the Brazilian Public Debt/GDP Ratio: the State's "Fiscal Skeletons", Latin American Economies: History and Globalization, UCLA International Institute, April.

Borio, C. e Disyatat (2009): "Unconventional Monetary Policies: an Appraisal", BIS Working Papers, nº 292, November. Carvalho, F. e Azevedo, C. (2008): "The Incidence of Reserve Requirements in Brazil: Do Bank Stockholders Share the Burden?", Working Paper Series, nº 160, Banco Central, Fevereiro. Demirguc-Kunt, A. e Huizinga, H. (1999): "Determinants of Commercial Bank Interest Margins and Profitability: Some International Evidence", World Bank Economic Review, 13, pp. 379-408. FEBRABAN (2010): Apresentação de Rubens Sardenberg no

Souza-Sobrinho, N. (2009): "Macroeconomics of Bank Interest Spreads: Evidence from Brazil", Annals of Finance, vol. 6, nº 1, January. Staub, R.; Souza, G. e Tabak, B. (2009): "Evolution of Bank Efficiency in Brazil: A DEA Approach", Working Paper Series, nº 200, Banco Central, Dezembro. Urdapilleta, E. e Stephanou, C. (2009): "Banking in Brazil: Structure, Performance, Drivers and Policy Implications", Policy Research Working Paper, nº 4809, World Bank, January.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

53


Patrícia Cruz/Luz

Considerações sobre os

Luís Eduardo Schoueri Pofessor titular de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo.

54

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


rumos do sistema tributário

Resumo

ZILB

ERM

AN

A necessidade de reforma do sistema tributário brasileiro é praticamente um consenso, mas não se pode dizer o mesmo com relação ao conteúdo de tal reforma. Muitas emendas à Constituição foram elaboradas com tal finalidade, mas ainda permanecem problemas estruturais no sistema tributário, dificultando a competitividade do País no cenário econômico internacional. No presente estudo, são apontadas diversas medidas simples, que independem de uma reforma constitucional, e que poderiam contribuir muito para o aprimoramento da tributação no Brasil. Nesse sentido, são apresentadas aqui sugestões de propostas referentes à tributação sobre o consumo, à redução das obrigações acessórias, à definição de responsabilidade, ao PIS e à Cofins, à guerra fiscal, aos investimentos brasileiros no exterior e aos preços de transferência.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

55


Arquivo/AE

Introdução

A

discussão acerca dos rumos do sistema tributário brasileiro costuma centrar-se na questão da carga tributária, muitas vezes comparada com a de outros países, quando se põe em relevo o alto custo da máquina estatal brasileira e sua ineficiência. O tema é de todo pertinente e merece, sem dúvida atenção da sociedade. O fato, porém, é que desde o último quarto do século passado o País experimentou um agigantamento do Estado, primeiramente comprometido com ideais desenvolvimentistas e, após 1988, com a opção pelo Estado Social de Direito, que abriu espaço para políticas redistributivas de renda que, conquanto não tenham iniciado no governo Lula, sem dúvida tiveram neste um papel de destaque. Mesmo que se admitisse que das eleições do final do ano viesse a ser eleito governo com metas diversas, não é possível contemplar, mesmo a médio prazo, que os comprometimentos da receita pública venham a ser drasticamente reduzidos. Qualquer estudo sobre o sistema tributário deve, destarte, partir de um cenário no qual o Estado necessita de recursos vultosos. Realisticamente, a atual carga tributária não deve ser reduzida nos próximos anos. Se parar de crescer, já será um ganho. Esta realidade não impede que se discutam alternativas para o sistema tributário. Este estudo propõe-se a rever a evolução desse sistema, identificando medidas possíveis para seu aprimoramento, no plano infraconstitucional. Com este objetivo, o texto a seguir foi organizado em quatro seções. A Seção 1 discute a função alocativa da norma tributária e a seção seguinte a reforma tributária e seus objetivos. A Seção 3 volta-se para o que pode ser feito em termos de medidas infraconstitucionais e a seção seguinte resume a conclusão do texto. 1. A função alocativa da norma tributária

Afastados os temas concernentes à arrecadação, resta ver que a norma tributária, ao lado de sua função arrecadadora, apresenta papel alocativo, estabilizador e simplificador (1). Acentuar a função alocativa da norma tributária é rejeitar o mito do tributo neutro. Há muito foi superado o mito da neutralidade da tributação (2): na medida em que já não se admite a tributação indistinta ("per capita"), qualquer que seja a hipótese de incidência tributária, haverá a possibilidade de contribuintes verem-se motivados a enquadrarem-se, ou não, no modelo concebido pelo legislador. O tributo, noutras palavras, será um fator que influenciará o comportamento dos agentes econômicos. O Estado intervencionista afasta-se da neutralidade axiológica que caracterizara a intervenção na fase liberal, veiculando valores, permeável a conteúdos socioeconômicos (3). Nesse sentido, o Estado preconizado pelo constituinte de 1988 não é neutro. O texto constitucional revela um legislador inconformado com a ordem social e econômica que encontrara, enumerando uma série de valores sobre os quais se deveria firmar o Estado, o qual, ao mesmo tempo, se dotaria de ferramentas hábeis a concretizar a ordem desejada.

56

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Em novembro de 1988, Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, exibiu a nova Constituição.

No lugar de se ter um ordenamento dado, que deve ser apenas mantido ou adaptado, o Constituinte preconizou uma realidade social nova, ainda inexistente, cuja concretização, por medidas legais, passa a ser de interesse público. Em termos gerais, esta nova realidade se traduz no desenvolvimento econômico, prestigiado pela Constituição de 1988, que inclui, no artigo 3º, entre os "objetivos fundamentais da República", o da garantia do "desenvolvimento nacional", o que, entretanto, não se compreende isoladamente de outros objetivos, como o da construção de uma "sociedade livre, justa e solidária", onde se erradicarão "a pobreza e a marginalização" e se reduzirão "as desigualdades sociais e regionais", promovendo, enfim, "o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O artigo 170 indica uma finalidade para a ordem econômica: "assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social". Este objetivo maior, entretanto, não se há de fazer a qualquer custo, já que deverá alicerçar-se "na valorização do trabalho e na livre iniciativa". Eis um elemento relevante para a compreensão do papel da tributação. Afinal, conforme o que se venha a entender por "existência digna", enquanto finalidade, será diversa a forma como poderá ser alcançada. Mesmo o tributo poderia ser um instrumento relevante, enquanto ferramenta para a redistribuição de rique-


zas. Poder-se-ia, mesmo, adotar um discurso de ponderação entre meios e fins para justificar a tributação como forma de gerar uma igualdade, no sentido da Floresta de Sherwood: tirar de quem tem, dando a quem não tem. Esta ideia se desfaz, entretanto, quando se retoma o texto constitucional e se vê que o constituinte não limitou a ideia de dignidade da pessoa humana ao mero aspecto financeiro: valorizando o trabalho e a livre iniciativa, o texto do artigo 170 não deixou dúvidas sobre o que se há de entender, no ordenamento jurídico brasileiro, por "existência digna". Não tem "existência digna" aquele que vive de favor. Ao contrário, a dignidade é o resultado de uma atuação (trabalho e livre iniciativa) socialmente valorizada. Trata-se de modelo que supera a visão que preponderou no início do século 20, na qual o Estado do bem-estar social de-

permitindo que aquela construa, por meios próprios (conquanto sob a supervisão do último), a sociedade justa, objetivo prestigiado pelo artigo 3º do texto constitucional (6). O tributo exerce, no presente, como sempre o fez, o papel de "preço da liberdade", mas se esta se compreende com novas cores, também a ideia da tributação exige nova postura. Afinal, nem sempre a arrecadação justificará a tributação. O "bom tributo" não é mais aquele que melhor arrecada, se o enxugamento de recursos da sociedade pode impedi-la de exercer seu papel na construção da liberdade coletiva. Sintomáticos, neste sentido, os movimentos da sociedade contrários ao aumento da tributação. Seja o episódio do levante cívico contrário à aprovação da Medida Provisória 232, seja a mais recente rejeição à prorrogação da CPMF, tem-se em comum a afirmação, sustentada por lideranças empresariais e re-

Luludi/Luz

Ato público no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo, reuniu manifestantes contra a cobrança da CPMF.

veria ser o provedor do bem comum. O final do século 20 revelou uma estrutura estatal de proporções gigantescas a qual, justamente em virtude de seu tamanho, já não mais era hábil para atingir seu desiderato. O Estado, no lugar de utilizar os recursos captados de modo a assegurar o bem comum, passa a valer-se deles para sua própria manutenção. Tem-se, assim, como síntese um texto constitucional que não se finca nem no liberalismo do século 19, nem no modelo interventor próprio de boa parte do século 20. O resultado é que "em nossa mentalidade vigora um 'sincretismo' bem à brasileira: encontramos liberais intervencionistas e intervencionistas liberais com mais frequência do que puros liberais ou puros intervencionistas" (4). A sociedade do século 21(5) mantém a busca de uma liberdade coletiva, já que não se pode considerar uma sociedade livre quando elevada parcela de seus integrantes não tem condições de dela gozar. Entretanto, a busca da liberdade não mais é papel confiado exclusivamente ao Estado. Dada a incapacidade deste, passa a sociedade a clamar por seu afastamento,

percutida pela imprensa, de que o aumento da carga tributária implicaria prejuízo aos empregos oferecidos pelo setor privado. Por trás de tal discurso, tem-se a ideia de que recursos mantidos nas mãos da iniciativa privada geram "empregos produtivos", enquanto os mesmos valores, quando transferidos às mãos públicas, implicam indesejado desperdício. De igual modo, o efeito confiscatório (7) do tributo (artigo 150, IV da Constituição Federal) ganha nova perspectiva, de índole econômica, sendo adequada a expressão germânica "imposto sufocante" (Erdrosselungssteuer) quando a ameaça da tributação torna, de fato, impossível incorrer no fato gerador (8). Esse conceito corresponde ao que a jurisprudência suíça definiu como um imposto proibitivo: este surge quando se vê anulada, em geral, a possibilidade de obtenção de um "lucro razoável" num determinado ramo, em virtude da alta carga tributária(9). Impõe-se, pois, que o tributo seja limitado, já que se prestigia a atividade empresarial como caminho para a construção da "sociedade livre, justa e solidária" a que se refere a dicção do artigo 3º da Constituição Federal.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

57


Como o regime de 1964 via no governo federal o principal responsável pelo desenvolvimento do País, uma política tributária uniforme parecia estar em conformidade com essa finalidade. Na foto à esquerda, o general Humberto de Alencar Castelo Branco (com a mão ao peito), primeiro presidente do regime militar (1964 a 1967). Na foto à direita, Castelo Branco ao lado do marechal Arthur da Costa e Silva (de binóculo), que assumiu a Presidência da República entre 1967 e 1969.

AE

É desse modo que a Ordem Econômica há de ser pautada na "valorização do trabalho humano e n a l i v re i n i c i a t i v a " . Ademais, o mesmo artigo 170 cuida de arrolar critérios ("princípios") para a ordem econômica: esta haverá de ser guiada pela busca da soberania econômica, pela proteção à propriedade privada, nos contornos de sua função social, num ambiente de livre concorrência com a defesa do consumidor e do meio ambiente, sempre tendo em vista a busca da redução de desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte. Cada um desses princípios, vale lembrar, será influenciado pelos demais, em interessante dinâmica de ponderação, gravitando em torno da finalidade comum acima acentuada: a dignidade humana, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa. A partir daí, decorre a ideia de que a norma tributária, por induzir comportamentos dos agentes econômicos, deve ter em conta seus efeitos. Não tem mais lugar, pois, a análise tributária que se limite a considerar o "bom" ou "mau" efeito arrecadatório. Meritória não será a tributação exclusivamente por seus excelentes reflexos nas burras governamentais. Destarte, não há que se tolerar que os objetivos de arrecadação e indução econômica sejam postos em contraposição, numa situação de "ou um, ou outro". Ao contrário, do confronto entre ambas é que surgirá o equilíbrio esperado da norma tributária. Cai bem a propósito, no caso, o raciocínio próprio da ponderação, quando se impõe que valores igualmente prestigiados pelo ordenamento jurídico sejam contrapostos de modo a se construir a norma jurídica: qual corpo movido por forças com vetores e intensidades diversos, a tributação dar-se-á atendendo, de maneira ótima, ambos os objetivos. 2. A reforma tributária e seus objetivos É voz corrente a necessidade de uma reforma tributária. A ela se referem políticos de todas as matizes. Concretamente, o que se verifica é que são dados passos tímidos, muito aquém daquilo que se esperaria de um sistema tributário moderno.

58

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

2.1. A construção do sistema tributário brasileiro A Constituição de 1946 foi uma síntese do seu próprio momento político, não só no Brasil, mas no mundo ocidental inteiro. Por ter sido elaborada depois de uma ditadura e significando o retorno à normalidade institucional, a Constituição de 1946 foi encarada como uma conquista, o que, consequentemente, reduziu a quantidade de poder (político, econômico e social) do governo federal. Este arranjo político explica o sistema tributário que então se desenhou, com natureza centrípeta (vários tributos atribuídos a Estados e Municípios) e liberal (com um conjunto de imunidades tributárias). Não se pode dizer que a tributação tenha sido uma questão decisiva na Constituição de 1946. Havia poucos artigos sobre o assunto em seu texto. Seu maior foco foi a discriminação da competência tributária, bem como as redistribuições de receitas tributárias entre União, Estados e Municípios. A Constituição de 1946 criou três sistemas de tributação separados e praticamente desligados: um para a União, outro para os Estados e um terceiro para os Municípios. Seu artigo 5º, no entanto, trouxe uma ferramenta concebida para a coordenação dos sistemas tributários, que seria uma lei federal que traria normas gerais em matéria de legislação tributária, a ser aplicadas por todos os poderes tributários. Com base nisso, Ru-


Domicio Pinheiro/AE

bens Gomes de Sousa, professor da Universidade de São Paulo, elaborou um projeto para um Código Tributário, em nível nacional, que, entretanto, não chegou a ser votado pelo Congresso durante o regime da Constituição de 1946, uma vez que tal Código Tributário representava um risco para a autonomia dos Estados e Municípios. Quanto aos Municípios, a Constituição de 1946 deu-lhes uma quantidade de autonomia que eles nunca tiveram antes, tanto no sentido fiscal quanto no sentido político (10). Críticas razoáveis podem ser introduzidas no sistema fiscal da Constituição de 1946. Os impostos foram distribuídos entre as subdivisões federais com base em razões históricas e considerando algumas distinções jurídicas. Impostos equivalentes economicamente foram cometidos a diferentes poderes tributários, com base em peculiaridades jurídicas. Em resumo, os impostos não foram concebidos e distribuídos com base em preocupações lógicas ou econômicas. No entanto, a principal crítica que se pode fazer ao texto de 1946, que o condenou à extinção depois de apenas vinte anos, é que, em vez de ser um projeto que olhasse para o futuro, ele virouse para o passado (11). O incentivo à poupança e à capitalização, a necessidade de planejamento econômico e muitas outras carências sociais e políticas da época exigiam um sistema mais centralizado e unificado do que o concebido pela Constituição. Com o movimento militar de 1964, o País viveu uma mudança de paradigma, já que o novo regime acreditava que o desenvolvimento poderia ser alcançado por meio de uma forte intervenção do Estado. Refletindo a crença do governo federal em seu papel central no desenvolvimento do País, logo entrou em vigor a Emenda Constitucional 18/1965, pela qual o sistema tributário foi todo revisto. Devido às peculiaridades desse período, foi possível alcançar um sistema fiscal que se acreditava ser racional, com tributos come-

tidos à União, Estados e Municípios, segundo uma lógica econômica. Embora isto possa ser visto como uma garantia para os governos locais, um breve exame do rol dos tributos já aponta que foi concedida à União a maior parte das competências tributárias, seguida dos Estados. A reforma tributária de 1965 foi aprovada logo após a assunção do poder pelos militares. Foi este o c e n á r i o d a j á re f e r i d a Emenda 18 à Constituição de 1946, que correspondeu a uma alteração substancial no regime tributário anterior. Este, essencialmente, repetia a política tributária já existente na Constituição de 1891. Alterando a lógica do sistema antigo, a Emenda 18 projetou uma nova discriminação de competência fiscal entre os entes federais, preocupando-se em desenhar uma discriminação de competências fundada em critérios econômicos. Como já foi mencionado, desde 1946 havia um dispositivo constitucional prevendo um Código Tributário a ser aprovado pela União. Tal Código não chegou a ser votado no regime de 1946, por seu caráter centralizador, incompatível com o regime descentralizado então vigente. Como o regime de 1964 via no Governo Federal o principal responsável pelo desenvolvimento do País, uma política tributária uniforme parecia estar em conformidade com essa finalidade. O Professor Rubens Gomes de Sousa, que tinha elaborado um projeto para um Código Tributário Nacional, foi chamado para ser relator da Comissão Especial de Reforma Tributária. Segundo suas palavras, a premissa principal da mudança a ser feita era conceber um sistema tributário integrado, do ponto de vista econômico e jurídico, em substituição ao histórico, essencialmente histórico, até então existente. A reforma fiscal 1965 introduziu no Brasil o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias, ICM, um pioneiro imposto não cumulativo sobre vendas. Isso é suficiente para mostrar quão audacioso o projeto foi concebido. Deve-se considerar que por essa altura, os impostos de valor acrescentado eram muito raros. No entanto, devido ao fato de que o seu antecessor fora o Imposto sobre Vendas e Consignações, na jurisdição dos Estados, a Reforma Tributária de 1965 decidiu manter o novo imposto não-cumulativo de vendas dentro da mesma jurisdição, enquanto os serviços eram tributados pelos municípios. Deve-se dizer que manter a tributação das vendas na competência dos Estados foi provavelmente o maior erro da reforma. Considerando o ambiente político da época, esta teria sido

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

59


uma grande oportunidade de ter em escala nacional imposto O sinal mais evidente da centralização foi a promulgação do de vendas não-cumulativo de caráter abrangente. Código Tributário, pouco depois da Emenda 18, segundo o Como o ICM foi mantido na competência estadual, fazia-se qual não apenas as regras gerais sobre legislação tributária, necessário criar medidas para o referido imposto funcionar mas também fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes em uma forma não-cumulativa. Isto implicaria que os imposde todos os impostos (Federal, Estado e os Municípios) foram tos pagos a um Estado deveriam ser reconhecidos por outros definidos. O Código Tributário Nacional é datado de 1966 e Estados para fins de compensação de tais impostos contra o ainda está em vigor. Como já foi explicado, o Código foi eladevido ao primeiro. borado durante a Constituição de 1946, mas não foi aprovado, Posteriormente, o Decreto 34, no regime constitucional de devido ao seu caráter centralizador (12). Os primórdios do Código podem ser encontrados já na con1967, e a Emenda 1 de 1969 previram a obrigatoriedade de celevocação de uma Comissão Especial, efetuada pelo Ministro da bração de convênios entre Estados que pertencem à mesma reFazenda, em agosto de 1953. O professor Rubens Gomes de gião geoeconômica, a fim de adotar a mesma alíquota do ICM, Sousa já tinha preparado um projeto que, naturalmente, seria a bem como para estabelecer políticas comuns relacionadas com a base para esse trabalho. Não é de estranhar que o professor isenção do imposto. Apesar desta proibição, isenções eram dadas Sousa tenha participado da Comissão. A Comissão reuniu-se de forma unilateral por muitos Estados, mesmo sendo tolerada. setenta vezes em um período de oito meses de trabalho. Como A Emenda 18/1965, em síntese, buscou conceber um sistema foi anos antes da Emenda 18, um dos principais tributário nacional, no sentido de que tributos problemas enfrentados pela Comissão foi a federais, estaduais e municipais teriam alguma busca de um fundamento constitucional para o coerência. Isso exigiu uma revisão completa tricódigo que poderia dar-lhe um caráter obrigabutos já existentes: não só a discriminação de A reforma fiscal tório. A Constituição de 1946 previra a compecompetências foi revista, mas todo o Sistema de 1965 introduziu tência da União para legislar sobre normas geTributário Nacional foi redesenhado. no Brasil o Imposto rais de finanças públicas e essa foi a base consConsiderando a preocupação com uma classobre Operações titucional então encontrada para o Código que sificação econômica, como dito, os impostos foRelativas à então se projetava. ram nomeados por seu respectivo fundamento Em vez de olhar para um conceito de "norma econômico, com a finalidade de eliminar a mulCirculação de geral", a Comissão adotou como seu método de tiplicidade e a cumulatividade dos tributos que Mercadorias, ICM, trabalho do processo de uma análise indivioneravam a produção e indústria. um pioneiro imposto dual de cada situação concreta, a fim de veriNão obstante, a tentativa de eliminar a dupla não cumulativo ficar a possibilidade da sua regulamentação carga sobre o mesmo substrato econômico foi por uma norma que fosse aplicável aos três níem vão, uma vez que qualquer que seja a apasobre vendas. Isso veis de governo (13). rência que um tributo possa assumir, sua essêné suficiente para A Comissão de Reforma sempre procurou cia será sempre sobre uma incidência econômimostrar quão observar a legislação fiscal em vigor, a fim de ca sobre a renda auferida, poupada ou consumiaudacioso o projeto combinar seu trabalho com "sentimento trida. Na Emenda 18, pode-se observar a incidênfoi concebido. butário" do País, bem como para fazer o mícia cumulativa, se observa que, embora nimo impacto possível. O Código seria uma houvesse um imposto federal sobre produtos lei ordinária e, como tal, poderia ser modifiindustrializados (IPI), os Estados foram agracado por qualquer outra lei ordinária. Então, visando à preciados com o ICM: em caso de venda de produtos industriais, os servação de sua integridade, a Comissão trabalhou de forma impostos eram devidos simultaneamente. Além disso, enquana refletir o máximo possível com as disposições do direito trito as vendas de mercadorias estavam dentro da competência esbutário então vigentes (14). tadual, os Municípios podiam tributar os serviços. Assim, os Inseriram-se no Código a definição dos institutos jurídicos serviços prestados à indústria eram tributados pelos Municítributários e dos principais aspectos impostos federais, estapios e o imposto não seria considerado pela União como crédito duais e municipais. Considerou-se que, apesar da impropriecontra o IPI ou pelos Estados, para abater o ICM. dade da inclusão de conceitos doutrinários no texto da lei, a fiA ideia principal da Emenda 18 foi trazer uma análise racional, xação de determinados conceitos básicos seria essencial para que considerasse a natureza do imposto e sua relação com cada garantir a eficácia do Código. subdivisão federal e suas respectivas atribuições constitucionais. Como já foi dito, o projeto não foi aprovado pelo CongresA competência tributária foi repartida entre os Municípios, Esso. Apesar de concluído em 1954, não havia condições potados e União e, idealmente, deve prevalecer a centralização dos líticas para uma tal centralização. Isso só aconteceria após a impostos nacionais na competência da União e impostos locais reforma de 1965. seriam devidos localmente. O ICM foi a maior exceção a essa fiVisando a dar uma aparência legal aos atos arbitrários tomanalidade, cujas consequências são sofridas até hoje. Apesar do dos desde 1964, o governo militar elaborou uma nova Constigrande número de impostos federais, as receitas não seriam contuição em 1967. Apesar de ter sido votada pelo Congresso Nacentradas em mãos da União, uma vez que os mecanismos de recional (que foi convertido em Assembleia Nacional Constituinpartição foram muito flexíveis e a União figurou como a principal te, quando a Constituição foi elaborada por juristas encarregaperdedora em termos de competência tributária.

60

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Jorge Araoejo/Folha Imagem

dos pelo regime), muitas tendo nascido de uma redas propostas legislativas forma racional, que perforam ignoradas pelo gomitiu ao governo a sua utiverno e, além disso, em lização como instrumento 1967, a maioria dos mempara a implementação dos bros da oposição havia siplanos econômicos e polído banida do Congresso. ticos. Além disso, aumenVisando a dar continuitou a receita fiscal para a dade às reformas do sisteUnião. Por outro lado, a ma tributário feitas em centralização menciona1965, os militares incorpoda de impostos de comperaram as disposições da tência da União deixou EsEmenda 18 à Constituição tados e Municípios sem de 1967. O sistema tributárecursos para enfrentar rio na Constituição de suas próprias despesas, 1967 refletia, quase intefato que foi agravado pela gralmente, o que fora defifalha no sistema de partinido pela Emenda lha causado pelo atraso da 18/1965. A discriminação União em dar a outras de competências foi mansubdivisões sua parte no tida, bem como a centralibolo arrecadado. zação da competência – Concebido para o seu que era do interesse do próprio tempo e contexto, próprio governo militar. o sistema fiscal de 1965 foi A ú n i c a d i f e re n ç a é sofrendo muitas críticas que, embora a Emenda 18 na década de 1980. O sisteTancredo Neves, no Congresso Nacional, após ser proclamado pretendesse ter criado ma desenhado décadas Presidente da República pelo Colégio Eleitoral em 1985. um sistema de competênantes, apesar de ter a sua cias exaustivo, a Constiimportância e pioneirismo tuição de 1967 reconhereconhecidos, não mais receu que os novos impostos poderiam ser criados pela União, fletia o desenvolvimento social e econômico brasileiro. criando a competência residual. A política econômica do governo militar mostrava sinais A Constituição de 1967, em seu texto original, durou apenas indubitáveis de esgotamento, e, com isso, a repressão polídois anos. Em 1969, a junta militar no comando do governo elatica foi se enfraquecendo. As eleições diretas para Governaborou um projeto de Emenda à Constituição, a Emenda dor do Estado voltaram em 1982, assim como se autorizaram 1/1969. Desta vez, não havia mais o Congresso para votar ou novos partidos de oposição. Emergia uma profunda crise discutir o assunto, visto que o Senado e a Câmara dos Depueconômica, com uma inflação galopante e taxas de desemtados haviam sido fechados, juntamente com o banimento de prego elevadas, com o que Governadores de oposição foram muitos direitos civis. eleitos nos principais Estados, iniciando-se uma pressão poDevido às alterações que procedeu, a Emenda 1/1969 é pular pela democratização. considerada por muitos como uma Constituição nova e imVisando a aumentar a receita e melhorar o sistema tributário, o portante, sendo sua peculiaridade, o mecanismo pelo qual governo elaborou emendas à Constituição 23 de 1984 e 27 de ele foi elaborado. A atribuição do Poder Executivo foi am1985, lidando com a questão centralização das receitas, as quotas pliada, sendo a duração do mandato presidencial prorrogados Estados e Municípios, além de dar aos Estados a competência do e as eleições para governador do Estado se fizeram indisobre o imposto sobre veículos. No entanto, a fase de desenvolreta, juntamente com a extinção das imunidades dadas aos vimento do Brasil e do clima político e social da época estavam legisladores como privilégio de sua posição. pedindo uma melhora mais profunda no sistema tributário. No que diz respeito ao sistema fiscal, aconteceu exatamente o Apesar da pressão popular e da campanha feita para as eleimesmo que com a Constituição de 1967. Interessados em preções presidenciais diretas, a eleição permaneceu indireta, feita servar as reformas adotadas em 1965 e acreditando em sua efipor um colégio eleitoral composto pelos congressistas. No encácia e adequação ao seu projeto político para a nação, o governo tanto, o destino do regime militar já estava selado. Assim, na manteve quase todas as disposições da Emenda 18 à Constituieleição presidencial de 1985, o candidato da oposição, Tancredo ção de 1946. Nenhuma alteração substancial foi feita. Neves, venceu sem surpresa. Este seria o primeiro civil a ocupar Na década de 1980, os efeitos da reforma tributária, que teve a presidência desde o golpe militar de 1964. O presidente Tanlugar em 1965 e foi seguida pelos textos posteriores já podiam credo Neves morreu e seu vice-presidente, José Sarney foi noser visto. Foi como foi dito, o primeiro sistema tributário vermeado. Coube ao presidente Sarney, por conseguinte, tomar as dadeiramente nacional, integrado nos três níveis de governo e medidas que dariam um ponto final à ditadura militar e insti-

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

61


tucionalizar a democracia. Entre outras medidas, ele convocou, em 1985 por meio da promulgação da Emenda 26, uma Assembleia Constituinte para redigir uma nova Constituição para o País. Havia a sensação de que a Constituição em vigor fora elaborada de forma autoritária e não poderia ser compatibilizada com o regime democrático. Enquanto a Assembleia estava trabalhando, a crise econômica foi ficando mais profunda e a inflação aumentava dia a dia, fato que foi seguido pelo desaparecimento dos investidores internacionais. 2.2. O sistema tributário de 1988 A Assembleia Constituinte, instalada em fevereiro de 1987, não tinha dúvidas sobre a adequação e a importância da reforma fiscal de 1965 seu tempo, mas também ficou clara para ela a necessidade da sua adaptação a fim de ser coerente com as necessidades da realidade atual e suas expectativas. Assim, a Constituição de 1988 é muito diferente das anteriores, mas não é isenta de críticas. Costuma-se dizer que não reflete um projeto político uniforme, além de possuir diversas contradições em termos de princípios e normas. Ademais, a presença de apenas alguns juristas na Assembleia se reflete na falta de um sentido técnico em seu texto. A Constituição diz-se estar longe do jurídico e muito próximo da política, o que torna a prolixa e extensa na abordagem de vários assuntos. A comparação com o texto alemão de Weimar é inevitável. No que diz respeito aos tributos, a Constituição de 1988 dedicou-lhes o primeiro capítulo inteiro do seu quinto título. Diante das alterações feitas no sistema tributário, a Constituição não pode ser considerada uma reforma ao projeto elaborado pela Emenda 18/1965. Houve um acerto estrutural no sistema, com a melhoria na configuração de alguns impostos e respectivas bases de cálculo. A Constituição de 1988 tentou enfrentar a questão da centralização fiscal. Não obstante, a competência tributária manteve-se centralizada nas mãos da União, mesmo com a supressão de cinco de seus impostos. A competência residual da União foi mantida. Impostos foram criados e outros foram redesenhados pela Constituição de 1988. O Imposto sobre grandes fortunas, por exemplo, mostra que a Constituição não se preocupou com o aspecto econômico na definição do imposto. A própria expressão "grandes fortunas" evidencia a falta de uma concepção orientada economicamente. O ICM foi substituído pelo ICMS, incluindo-se nele a seletividade. Uma questão relevante no sistema fiscal de 1988 é o papel das contribuições sociais: estes tributos, destinados a financiar a seguridade social no Brasil, não estão dentro do capítulo relativo ao sistema tributário. De um ponto de vista prático, entretanto, podem ser considerados impostos sobre os lucros e receitas das empresas, salários e outras bases. Essas contribuições, no entanto, não estão sujeitas a partição com Estados e Municípios: uma vez que a seguridade social é uma questão federal, a União pode prever, recolher e guardar esses fundos. Como resultado, desde 1988, o número e a importância das contribuições sociais têm aumentado significativamente, enquanto os impostos normais (sujeitos a partição) se mantiveram estáveis.

62

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

2.3. As reformas do sistema tributário desde 1988 Assim que entrou em vigor o sistema tributário de 1988, começaram suas críticas. Logo se viu que ele era complexo e, por ter quase dois terços dos seus impostos indiretos, injustos para com o contribuinte. A configuração do ICMS, principal imposto de competência dos Estados, permitiu o recrudescimento da "guerra fiscal" entre os Estados. Como a descentralização fiscal foi o espírito dos debates relacionados com o sistema fiscal durante a Assembléia Constituinte, a guerra fiscal tornou-se uma questão relevante nas discussões de reforma tributária pós-1988, uma vez que vários Estados decidiram atrair investimentos através de benefícios no ICMS, em vez de adotar políticas de longo prazo. Como um sinal da complexidade do sistema fiscal brasileiro, o Brasil foi classificado pelo Banco Mundial e pela Price Waterhouse Coopers, como o país onde as empresas gastam mais tempo para cumprir suas obrigações fiscais. O sistema tributário do Brasil não é neutro, e há uma multiplicidade indesejável dos impostos sobre bens e serviços. É o reflexo da discriminação de competências tributárias: União tem o IPI, PIS e COFINS; os Estados, o ICMS e os municípios, o ISS. Estes impostos sobre o consumo são cumulativos entre si e, portanto, não geram cré-


Dida Sampaio/AE

Andrei Bonamin/Luz

Prefeitos participam da Marcha de Mobilização Nacional de Defesa dos Municípios, em 2003, contra a reforma tributária (esq.). Acima, André Spinola (Sebrae) e Marcel Solimeo (dir.), economista da Associação Comercial de São Paulo.

ditos recíprocos. Esta questão da cumulatividade dificilmente pode ser resolvida no sistema tributário brasileiro, devido, como dito, à necessidade da distribuição de competência tributária entre os três níveis de governo. Além da cumulatividade dos impostos de consumo, o sistema tributário brasileiro enfrenta o problema da sua elevada carga fiscal, que corre lado a lado com os gastos ineficientes do governo. Já em 1995, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso apresentou a PEC 175, que tentou lidar com a questão dos impostos de consumo, bem como pretendia cessar a guerra fiscal. A extinção do imposto da União sobre produtos industrializados foi sugerida, que seria incorporado pelo ICMS, no IVA estadual. Por sua vez, o IVA teria sua alíquota determinada de maneira uniforme pela legislação federal. Depois de ter sido discutida há anos no Congresso, foi retirada em 2003 por iniciativa do governo. Em 2003, houve a Emenda 42 à Constituição, que introduziu alterações no sistema tributário. Foi estendida a anterioridade nonagesimal à generalidade dos tributos. No entanto, a Emenda 42 não enfrentou a guerra fiscal dos Estados. O tema da cumulatividade dos impostos sobre consumo também foi deixado para uma reforma posterior. A dis-

cussão que gira em torno destas questões é muito delicada, uma vez que toca à repartição de competências entre os níveis de governo em que se materializa a federação brasileira. A este respeito, uma reforma tributária ideal deve apaziguar os conflitos de interesse vertical entre União, Estados e Municípios, bem como o conflito horizontal de interesse entre as subdivisões no mesmo nível de governo. A reforma tributária não vai reduzir a carga fiscal, mas deve procurar reduzir a complexidade do sistema, a multiplicidade de impostos sobre bens e serviços (consumo), e também os custos de cumprimento. 2.4. Os recentes debates sobre a reforma tributária As mudanças no sistema tributário não ousaram tocar no ponto mais delicado, fruto do trabalho de 1965: a tributação do consumo em âmbito estadual. Em 2008, o governo elaborou a PEC 233. De acordo com o próprio governo, a reforma tributária proposta visava ao fim da guerra fiscal, juntamente com a simplificação do sistema e redução equitativa da carga fiscal. Ele também tentava melhorar a política de desenvolvimento regional, bem como a qualidade das relações federativas entre as subdivisões.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

63


Alan Marques/Folhapress

Na proposta do Senador Dornelles, a maior parte dos impostos da União seria reunida em um Imposto sobre o Valor Acrescentado, regido por lei federal, apesar de que seria cobrado pelos Estados e sua receita seria partilhada entre os Estados e União.

Além da guerra fiscal, por meio da qual os Estados procuram reduzir a alíquota de ICMS para trazer investimentos para seu território, há a questão das exportações. A Constituição prevê o reembolso dos impostos pagos em etapas anteriores da produção, ou seja, os impostos pagos na aquisição de matérias-primas, por exemplo, são reembolsados ao exportador de produtos acabados. Se a matéria-prima é adquirida de outro Estado, o imposto terá sido pago ao Estado produtor. Não é surpreendente que os Estados consumidores não queiram reembolsar os créditos acumulados pelos exportadores, uma vez que esses impostos nunca foram coletados por eles, mas sim os Estados onde a matéria-prima foi originalmente produzida. Além disso, o fato de que, no caso da produção inter-estatais, parte do imposto é devida ao Estado de produção, os Estados consumidores tendem a preferir que seus contribuintes importem produtos do exterior, em vez de comprar de outros Estados. Assim, no caso de importação o Estado consumidor não tem de partilhar os seus impostos com qualquer outro Estado. Preocupada com todas essas repercussões negativas, a PEC 233 apresenta um novo perfil para o ICMS. Em vez de ser regulamentado por 27 leis diferentes do Estado, o novo imposto seria regido por uma única lei federal, não obstante a sua imposição e receitas permanecessem na jurisdição dos Estados. As alíquotas do ICMS seriam nacionalmente uniformes, o que traria, supostamente, a guerra fiscal ao fim. Isenções ou benefícios seriam decididos pelo Conselho Nacional de Política Fiscal. Apesar das mudanças que foram propostas para o ICMS, o IPI e o ISS continuariam da mesma forma como são hoje. A manutenção do imposto da União sobre os bens industrializados e do imposto municipal sobre serviços pode ser considerada uma fragilidade da reforma tributária prevista pela PEC 233. Também é enfraquecida pelo fato de que uma parte considerável da reforma não será feita na Constituição, mas vai ser deixada nas mãos do legislador ordinário. Os

64

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

conceitos vagos e indeterminados também são perniciosos para o contribuinte, uma vez que causam incerteza e insegurança. A reforma a ser apoiada deve realizar uma verdadeira simplificação do sistema. Além da PEC 233, apoiada pelo governo e que ainda está pendente no Congresso Nacional, há uma outra proposta de reforma tributária, na forma de um relatório preliminar, de autoria do senador Francisco Dornelles, vice-repórter da Comissão Temporária de Reforma Tributária. Dornelles, como exministro da Economia e ex-presidente da Receita Federal do Brasil, tem bastante experiência para que se leve a sério sua tentativa de reformar o sistema tributário. A Constituição, no projeto Dornelles, deverá conter uma nova distribuição da competência tributária entre as subdivisões federais, bem como a partição de novas receitas entre elas. Na proposta do senador Dornelles, a maior parte dos impostos da União seria reunida em um Imposto sobre o Valor Acrescentado, regido por lei federal, apesar de que seria cobrado pelos Estados e sua receita seria partilhada entre os Estados e União. O ICMS estadual seria extinto e substituído pelo referido imposto federal. Segundo o senador, este novo regime eliminaria a guerra fiscal, bem como que favoreceria as exportações e os investimentos na produção. No entanto, a extinção do ICMS é apontada como o principal obstáculo político enfrentado pela proposta do senador Dornelles, uma vez que reduz substancialmente a competência tributária dos Estados. 2.5. A reforma tributária: uma visão crítica Conhecidos os debates acerca da reforma tributária e suas principais propostas, o que se nota é que por trás de um consenso acerca da necessidade de uma reforma (não há quem ouse opor-se a uma reforma), encontra-se um dissenso quanto a seu conteúdo.


Patrícia Cruz/Luz

Em 1988, a nação brasileira fez a opção por um Estado Democrático Social, o que implica um agigantamento de gastos. Some-se a isso a decisão por um Estado federal, com 27 estados.

De um lado, é notório o conflito entre as esferas pública e particular: enquanto esta espera da reforma uma redução em sua carga tributária, os crescentes gastos estatais revelam que não há qualquer movimento que possa indicar, mesmo que no médio prazo, menor tributação. Dentro da esfera pública tampouco se encontra algum tipo de consenso, já que todos os entes estatais apenas aceitam discutir uma reforma se ficar assegurado que não terão qualquer redução em sua arrecadação atual. Ora, é óbvio que se houver uma mudança, sem que haja redução, i.e., se cada agente ingressa na negociação colocando seu atual nível de receitas como piso para a negociação, o resultado, fatalmente, será um aumento da carga tributária total. Apenas essas circunstâncias são suficientes para que veja que a esperada reforma tributária não tem condições de prosperar. Afinal, se o Estado depende de suas receitas tributárias, não há como cogitar de sua redução, sem que antes se discuta o tamanho do Estado. Em 1988, a nação brasileira fez a opção por um Estado Democrático Social, o que implica um agigantamento de gastos. Some-se a isso a decisão por um Estado federal, com 27 Estados e 5.565 Municípios e logo se torna evidente que uma reforma tributária que possa levar a uma redu-

ção de tributos exige que antes a nação discuta o Estado que deseja ter. Importa que os brasileiros estejam dispostos a questionar se o País, de proporções continentais, deve adotar soluções idênticas em todas as suas regiões. Afinal, se uma federação implica custos, por outro lado pode ser um excelente meio para permitir que se tomem decisões segundo as realidades locais. O que não faz sentido é assumir-se o custo de uma federação e manter-se uma aspiração de tratamento idêntico a situações díspares. Se o País continuar confiando à União a tarefa de homogeneizar realidades diferentes, então cabe questionar para que serve a federação. Mesmo a divisão da federação em três esferas acaba por incluir na mesma categoria verdadeiras metrópoles, de um lado e, de outro, municípios que mal passam de distritos. Não é a toa que enquanto para alguns municípios, o ISS é importante fonte de receita, outros municípios sequer possuem estrutura para cobrar o imposto. Para estes, não faria diferença se o imposto fosse cobrado pelos Estados-Membros, desde que se lhes assegurasse uma participação na arrecadação os impostos estaduais. Também importa enfrentar o tema da qualidade dos tributos: o sistema tributário brasileiro atual é altamente regressivo,

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

65


Patrícia Cruz/Luz

já que baseado em tributos sobre o consumo. Não se defende a progressividade dos impostos, mas tampouco se pode aceitar a sejam eles regressivos. O tributo sobre consumo tende a ser regressivo, já que atinge mais fortemente aqueles que têm pequena capacidade de poupança. 3. Medidas infraconstitucionais: o que pode ser feito As dificuldades acima expostas são suficientes para tornar improvável uma reforma tributária. As propostas de emenda constitucional não chegam a enfrentar os problemas mais relevantes e aquelas que se aproximam logo são taxadas de inviáveis. Esta constatação é suficiente para tornar premente a identificação de medidas que, se não suficientes para atingir o ideal, podem pontualmente levar a um aprimoramento do sistema tributário. Têm elas em comum a característica de independerem de uma reforma constitucional, tornando-se, portanto, de adoção relativamente simples para um governo em início de mandato, com maioria parlamentar. 3.1. Melhora da tributação do consumo Tanto para o IPI (obrigatoriamente) quanto para o ICMS (opcionalmente) é prevista a adoção do princípio da seletividade: esses impostos devem (ou podem) ter alíquotas variadas, conforme a essencialidade do produto.

66

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Basta uma mera leitura da Tabela do Imposto sobre Produtos Industrializados para se constatar (i) a alta complexidade e (ii) a falta de transparência com relação aos critérios adotados. A complexidade surge pelas múltiplas posições e subposições, cada qual com sua alíquota; abre-se espaço para enormes divergências com relação às classificações, não sendo raro que produtos concorrentes tenham tributação diversa decorrente de divergência nas classificações. A falta de transparência dá-se porque as alíquotas do IPI se fixam por ato do Poder Executivo, sem qualquer intervenção do Congresso Nacional. Desaparecido o processo político, abre-se espaço para os grupos de interesse, em discussões a portas fechadas. A jurisprudência jamais cobrou alguma motivação, por parte do Chefe do Poder Executivo, com relação às alíquotas adotadas. Basta dar o exemplo que até há pouco, o papel higiênico era tributado a 12%, enquanto o creme "rinse" tinha alíquota de 6%; mais grave, encontravam-se pedras preciosas lapidadas com alíquota zero. Ambos os problemas poderiam ser facilmente resolvidos se a tributação pelo IPI se tornasse a exceção, não a regra: em nome da seletividade, selecionar-se-iam (com o perdão da redundância) os produtos a serem tributados. Ou seja: via de regra, o imposto teria alíquota zero; apenas seriam tributados alguns produtos – estes sim menos essenciais. Segundo dados da Receita Federal do Brasil (15), dos US$ 19.798 milhões arrecadados com o IPI em 2002, fumo, bebidas e automóveis responderam


Newton Santos/Hype

por US$ 6.382 milhões; este é um indicativo suficiente para que 3.2. Redução das "obrigações acessórias" o IPI passe a cumprir a função de um excise tax, incidindo apenas sobre aqueles três produtos. Fruto indireto da informatização do conhecimento, boa parNo que concerne ao ICMS, a situação é igualmente gritante das atividades da fiscalização foram transferidas para inte, já que a possibilidade de adoção de alíquotas diversas cumbências dos contribuintes, que se vêem ao redor do cumnão se baseia na essencialidade do produto para o contriprimento de "agendas tributárias". De instrumento essencial buinte, mas para o ente arrecadador: basta citar a alíquota para o controle da atividade do contribuinte, as "obrigações de 25% que cada consumidor encontra em suas contas de acessórias" tornaram-se hoje encargo equivalente ao próprio energia elétrica. tributo. As pesadas multas por seu descumprimento assustam Não deixa de merecer nota que combustíveis, telecomuos contribuintes, que se vêem forçados a contratar consultorias nicações e energia elétrica são, exatamente, os setores que, especializadas, apenas para dar tais informações ao fisco. até 1988, eram tributados pelos "impostos únicos" da União e A cumulação de tais informações tem, por certo, a seu favor, que passaram a ser alvo do ICMS. São setores altamente ora possibilidade de maior controle, por meio do cruzamento de ganizados e de facílima arrecadação. Ao que se vê, a seletiinformações. Por outro lado, seu excesso exige que se questiovidade pregada pelo constituinte foi substituída pela convene acerca de sua necessidade, principalmente tendo em vista niência arrecadatória. que, afinal, em caso de suspeiOutro elemento relevante ta, poderiam as autoridades acerca do ICMS é a questão aí sim - solicitar as informado crédito financeiro, que ções necessárias. admitirá, sem restrições, o Por trás de tal exigência esaproveitamento do imposto conde-se um problema de incidente sobre ativo perfundo, que há de ser enfrenmanente. Trata-se de aspectado: o da falta de confiança. to que já era relevante quanO relacionamento entre fisco do da edição da Lei Complee contribuinte é baseado em mentar 87/1991 e que até o desconfiança mútua, implimomento vem sendo adiado cando o apelo a formalidapelos Estados. Veja-se que des, para regozijo dos buronão se faz reforma constitucratas. Embora se possa crer cional para correção de tal que haja resultados positivos distorção. em termos de arrecadação Problema que igualmente algo que não se comprova se resolveria por mera lei afastam-se investimentos A ACSP defende a proposta de complementar é o do efeito produtivos, contribuindo que a nota fiscal informe ao cumulativo no meio da capara o atraso da nação. consumidor o quanto de imposto deia produtiva: quando se ele paga por cada produto. concede uma isenção mas se 3.3. Definição de veda o crédito do montante responsabilidade pago em etapas anteriores, perde-se o imposto anterior e novas incidências não podem O Código Tributário Nacional é bastante restritivo com reconsiderar o montante já pago. O resultado é uma tributalação ao tema da responsabilidade; a jurisprudência também ção excessiva e a isenção, pensada como favor, torna-se pevem reafirmando que é necessária a existência de culpa para sado ônus contra o contribuinte. que se possa tornar o administrador ou o sócio responsáveis Ainda, deve ser revisto o sistema de substituição tributápelos débitos da empresa; a mera insolvência da empresa não é ria: criado como regime excepcional, vem se tornando regra, razão suficiente para que se possa cobrar daqueles o valor dede modo que o ICMS, de imposto que deveria incidir sobre vido pela última. Não obstante, as autoridades fazendárias toda a cadeia de consumo, acaba se tornando mero imposto continuam a inserir seus nomes entre os devedores, inclusive sobre a produção, à semelhança do IPI. O efeito é que se tem promovendo execuções fiscais fadadas ao insucesso mas suum mesmo montante cobrado, independentemente do preficientes para gerar altos custos para os envolvidos. ço final ao consumidor. Se o imposto é sobre o consumo, soOs abusos muitas vezes se abrigam sob a alegação de que bressai o efeito regressivo da substituição tributária, já que não há clareza quanto à responsabilidade: diante do risco de quanto maior o preço pago pelo consumidor, menor será o verem prescritos créditos tributários, preferem as autoridapercentual do imposto sobre tal preço. Ou seja: inverte-se o des inserir no procedimento fiscal e nas execuções todos os princípio da capacidade contributiva, já que há menor carga nomes que possam de qualquer modo ser contemplados, deitributária sobre aqueles de maior poder relativo. Melhor sexando para o Judiciário a tarefa de excluir os inocentes. Inverria se retornasse ao sistema original, com poucos tributos sute-se, com isso, a presunção de inocência, tão cara aos ordejeitos ao regime de substituição tributária. namentos jurídicos civilizados.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

67


Não é necessária qualquer reforma tributária nem ao menos alteração na lei para que se modifique tal quadro: basta uma ordem dos superiores hierárquicos a seus subordinados (mera instrução Normativa), disciplinando com clareza quem deve ser incluído no procedimento administrativo e nas execuções fiscais. O tema já foi suficientemente explorado pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo mais justificativa para que não se tome tal medida.

Estados de origem e não conseguem recuperar o valor do imposto perante seus Estados, quando das exportações. 3.6. Investimentos brasileiros no exterior

Por meio do artigo 74 da Medida Provisória 2.158-35, o País passou a tributar os lucros auferidos por empresas brasileiras por meio de suas subsidiárias, controladas ou coligadas, no exterior. É a tributação em bases mundiais. 3.4. PIS/Cofins Independentemente do mérito de tal tributação, é criticável o fato de que a tributação brasileira se dá mesmo nos casos em que É hora de reconhecer que a inserção da não cumulatividade não ocorre qualquer distribuição dos lucros; portanto, a empresa na legislação das contribuições PIS/Cofins foi um desastre. brasileira paga o imposto no País mesmo que não tenha direito a Aclamada pelo empresariado, logo se viu alvo de uma série de qualquer centavo, porque os lucros não foram distribuídos. Ainexceções e privilégios, de modo que já não há um mínimo de da que ocorra a capitalização dos lucros na empresa no exterior sistematização possível em suas regras. Formou-se um ema(e, portanto esteja afastada sua distribuição), a tributação autoranhado, no qual uma mesma empresa pode ter parte de suas mática no Brasil ocorre. atividades sujeitas ao regime cumulativo e outras no não-cuTal regime de transparência fiscal apenas encontra paralelo na mulativo, sem contar com as siNova Zelândia. No restante do Moacyr Lopes Jr./Folha Imagem tuações de isenção ou de incimundo, excetuados os casos de dência monofásica. abusos (paraísos fiscais, por Tamanha diversidade de reexemplo), lucros só se tributam gimes abre, de um lado, insese distribuídos (em muitos paígurança para o contribuinte e, ses europeus, não se tributam lude outro, evidente espaço para cros auferidos no exterior). Esta o planejamento tributário. A circunstância é suficiente para capacidade contributiva, corodemonstrar como a legislação lário da igualdade, não se vê brasileira pouco contribui para a atendida, não servindo de competitividade das empresas alento sequer a praticidade e brasileiras com atuação no extesimplicidade. Ou seja: abre-se rior: são elas as únicas que pamão de um direito básico em gam o imposto em seu Estado de Diversas medidas independem de emendas matéria tributária sem que, paorigem, mesmo competindo no constitucionais para o aprimoramento da tributação. ra tanto, se tenha pelo menos a exterior com outras empresas compensação de maior efique não têm tal ônus. ciência na arrecadação. A constitucionalidade de tal Cabe decidir se as contribuições devem ser sobre o consumo tributação é discutível e está sendo examinada pelo Supremo Triou sobre a renda das empresas; feita tal decisão e caso sejam sobre bunal Federal. Independentemente do resultado de tal julgameno consumo, importa decidir se serão cumulativas ou não; dandoto, é hora de se revogar tal aberração jurídica, adotando-se, no se preferência pela primeira hipótese, devem ser simples o suPaís, o padrão seguido pelos países onde se situam as empresas ficiente para justificar suas distorções; sendo não cumulativas, a que concorrem com as brasileiras, dando às últimas o mínimo de complexidade que surgirá há de ser compensada pela igualdade condições de concorrência. de tratamento, afastando, daí, privilégios odiosos. 3.7. Preços de transferência 3.5. Guerra fiscal A Lei 9.430/1996, ao introduzir no País normas de preços A adoção do regime de destino é apontada como solução pade transferência, adotou um padrão que diverge daquele sera a guerra fiscal. Havendo consenso para tanto, não se explica guido por outros países. Este posicionamento brasileiro que se espere uma reforma constitucional para sua adoção. A vem trazendo enormes dificuldades ao setor privado, já que Constituição Federal reserva ao Senado Federal a incumbênda divergência de legislações de preços de transferência recia de definir as alíquotas do ICMS em operações interestasulta a impossibilidade de se fixar um preço aceitável tanto duais (artigo 155, § 2º, IV). Assim, basta o Senado fixar uma alípara o país exportador quanto ao importador. Quanto mais quota baixíssima para tais operações (apenas suficiente para a legislação brasileira se aproximar das práticas comuns inremunerar a fiscalização), e o regime de destino estará impleternacionais, tanto mais fácil se torna a inserção do País no mentado, sem qualquer reforma. comércio exterior. A medida teria ainda o efeito de dar um fim no drama dos Conquanto as peculiaridades do Brasil, enquanto país em exportadores, que vêm suas matérias primas tributadas nos desenvolvimento, expliquem não se possam simplesmente

68

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


copiar as práticas internacionais, não é aceitável, tampouco, que o País desconsidere o que se faz noutras praias. Lá e cá, o princípio arm's length há de ser o denominador comum. Especialmente, não parece aceitável que por conta da (necessária) adoção de margens predeterminadas de lucros, o legislador brasileiro imponha que uma empresa que se disponha a industrializar um produto no País tenha um lucro de 150% sobre seus custos. Tal margem, irreal, acaba por afastar investimentos produtivos no País. Mais sensato é o empresário que importa produtos acabados já que, nesse caso, a margem que se exigirá é substancialmente menor. O efeito desastroso de tal medida é notório. Curiosamente, a referida margem de lucro é fruto de uma interpretação canhestra da Lei 9.430/1996, por meio da Instrução Normativa 243/2002. Antes dela, a Instrução Normativa 32/2001 interpretara a mesma lei, de modo muito mais razoável, incentivando a produção local. Dado que se trata de mera interpretação administrativa, é urgente a revogação da referida Instrução Normativa 243/2002, retomando-se a interpretação primeiramente adotada.

4. Conclusão O sistema tributário contribui decisivamente para o progresso do País. Afastada a neutralidade da tributação, a qualidade do sistema tributário deve ser examinada criticamente, já que muito do atraso ou desenvolvimento de uma nação se explica por tal fator. Ao longo da história, constata-se a busca do aprimoramento do sistema tributário brasileiro. A expressão "reforma tributária" ganhou, no País, um apelo político, tornando-se sinônima de emendas constitucionais. Muitas emendas se fizeram com tal mote, mas ainda permanecem problemas estruturais no sistema tributário, dificultando a competitividade do País. Este estudo aponta diversas medidas que independem de emendas constitucionais as quais, posto que simples, poderiam contribuir muito para o aprimoramento da tributação no País. É urgente que se desfaça o mito da reforma constitucional e que se tomem medidas que contribuam para o efetivo progresso do País.

Notas (1) Cf. Roberto Quiroga Mosquera, "Tributação e Política

Fiscal", in SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.), Segurança Jurídica na Tributação e Estado de Direito. II Congresso Nacional de Estudos Tributários, São Paulo, Noeses, 2005, pp. 557-579 (576-578). (2) Sobre a utopia da neutralidade (Neutralitätsutopie), cf. Konrad Littmann, "Ein Valet dem Leistungsfähigkeitsprinzip", in HALLER, Heinz; KULLMER, L.; SHOUP, Carl S.; TIMM, Herbert (orgs.), Theorie und Praxis des finanzpolitischen Interventionismus, Tübingen, J.C. B. Moohr (Paul Siebeck), 1970, pp. 113-134 (128). Cf. tb. Fernando Aurelio Zilveti, "Variações sobre o Princípio da Neutralidade no Direito Tributário Internacional", in Direito Tributário Atual, v. 19, 2005, pp. 24-40 (25-30). (3) Cf. Luís S. Cabral de Moncada, Direito Econômico, 3ª ed., Coimbra, Coimbra, 2000, pp. 27-28. (4) Cf. Roberto Catalano Ferraz, "Intervenção do Estado na Economia por Meio da Tributação - a Necessária Motivação dos Textos Legais", in Revista Direito Tributário Atual, v. 20, 2006, pp. 238-252 (240). (5) Sobre o assunto, cf. Luís Eduardo Schoueri, "Tributação e Liberdade", in PIRES, Adilson Rodrigues; TÔRRES, Heleno Taveira (orgs.), Princípios de Direito Financeiro e Tributário. Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres, Rio de Janeiro, Renovar, 2006, pp. 431-471 (463 e ss.). (6) Em tal sentido, é próprio da sociedade do século XXI o movimento que fortalece as privatizações, conferindo ao Estado o papel de regulador. Daí a proliferação das agências reguladoras que passam a supervisionar áreas outrora ocupadas pela intervenção direta do Estado. Também marca este início do século XXI a multiplicação de organizações não governamentais (ONGs), igualmente meio de construção, pela sociedade, da

liberdade coletiva. Ao Estado, resta o dever de não impor barreiras a seu desenvolvimento, o que se reflete, na órbita tributária, na garantia constitucional da imunidade a impostos e contribuições sociais. (7) Cf. Fernando Aurelio Zilveti e Mônica Pereira Coelho, "Ensaio sobre o Princípio do Não-Confisco", in Revista Direito Tributário Atual, v. 20, 2006, pp. 45-57. (8) Cf. Erik Gawel, "Steuerinterventionismus und Fiskalzweck der Besteuerung. Lenkung und Finanzierung als Problem Lenkender (umwelt-)Steuern", in Steuer und Wirtschaft, n. 1, fevereiro de 2001, pp. 26-41 (29). (9) Cf. Peter Böckli, Indirekte Steuern und Lenkungssteuern, Basel/Stuttgart, Helbing & Lichtenhahn, 1975, p. 108. (10) Cf. Alcides Jorge Costa, "História da Tributação no Brasil", in FERRAZ, Roberto (coord.), Princípios e limites da tributação, São Paulo, Quartier Latin, 2005, pp. 78-79. (11) Cf. Antônio Roberto Sampaio Dória, Discriminação de Rendas Tributárias, São Paulo, José Bushatsky, 1972, p. 103. (12) Cf. Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, Rio de Janeiro, Ministério da Fazenda, 1954, p. 4. (13) Cf. Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional, op. cit. (nota 12), p. 8 (14) Em seu trabalho, Comissão Especial do Código considerou não apenas a legislação tributária interna, mas também foi inspirada na experiência internacional em matéria de codificação. A maior influência foi da Reichsabgabenordnung alemã de 1919, o seu texto original. Também foram considerados pela Comissão o Código Tributário Mexicano de 1938 e Código Tributário de 1948, da Província de Buenos Aires. (15) Cf. <http://www.receita.fazenda.gov.br/Historico/ Arrecadacao/Historico85a2001.htm>. Acesso em junho de 2010.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

69


Cesar Diniz/Hype

Inserção de produtores de pequeno porte em mercados externos

Andrei Bonamin/Luz

José Cândido Senna

70

Engenheiro civil e pós-graduado em Engenharia Industrial pela PUCRJ, economista pela UERJ e mestre em Administração Pública pela Kennedy School of Government da Harvard University. Foi coordenador de projetos portuários e de marinha mercante para o Ministério dos Transportes/GEIPOT e coordenador do Programa de Transporte Intermodal de Carga, focado nos "Corredores de Exportação", supervisionados pelo

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

mesmo ministério. Desenvolve negócios e projetos de comércio internacional pela ConTrader Comércio Exterior, destacando-se, entre outros, o Programa de Internacionalização da Empresa Brasileira - Caminhos para os Anos 2000, criado, em 1994, pela Associação Comercial de São Paulo. Desde 1993, coordena, na entidade, as atividades do Comitê de Usuários dos Portos e Aeroportos do Estado de São Paulo - COMUS e desde 2004 o Projeto EXPORTA, SÃO PAULO pela FACESP e São Paulo Chamber of Commerce da ACSP. É Conselheiro da ACSP e sócio-fundador do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC.


Resumo Este trabalho discute condicionantes da competitividade de micro, pequenos e médios produtores, genericamente considerados de "pequeno porte", com destaque para os industriais, e apresenta propostas para a inserção competitiva dos mesmos em mercados externos, com o suporte de trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras.

João Wainer/Folhapress

Entre as sugestões, destacam-se a ampliação para outros estados do escopo do Sistema de Informações de Apoio às Exportações do Estado de São Paulo - SIAEXP, em desenvolvimento pelo Projeto Exporta, São Paulo, com o intuito de fomentar ganhos de escala daqueles produtores, explorando-se o compartilhamento de atividades de produção, comercialização externa e logística internacional. Com maior abrangência,

Conforme dados do SECEX/MDIC elaborados pela ConTrader Comércio Exterior, de 2007 a 2008, as vendas externas totais brasileiras cresceram 23,2% e as industriais evoluíram 22,0%.

o SIAEXP será um forte indutor de Arranjos Produtivos Virtuais - APVs, cujos negócios de importação e exportação serão explorados e gerenciados por aquelas empresas. O trabalho também propõe o fortalecimento do papel de trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras, para que possam promover reduções de custos de acesso a mercados para produtores de pequeno porte, reconhecidos como um dos fatores mais inibidores de suas vendas ao exterior. Nesse contexto e com o objetivo de melhorar a imagem daquelas empresas, sugere-se a criação de uma categoria especial das mesmas, denominada Export Development Company - EDC, cuja certificação será outorgada pelo Conselho Brasileiro de Empresas Comerciais Importadoras e Exportadoras - CECIEx.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

71


Introdução

Q

uestões referentes à inserção competitiva de pequenos produtores em mercados externos têm merecido a atenção de instituições governamentais e entidades empresariais. Entre as primeiras, destacam-se o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e a Agência de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX), vinculada ao MDIC. No segundo grupo, a Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (Facesp) e a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) são entidades que têm dado importantes contribuições à almejada inserção. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), em nível nacional e através de suas unidades estaduais, e a Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex) vêm, também, colaborando nesse sentido. A preocupação com o tema está relacionada ao fato de a inserção ser considerada elemento-chave para o crescimento sustentado das vendas externas, pois à medida que se aumenta a base exportadora com a participação de pequenos produtores (denominação genérica para, neste trabalho, designar os de micro, pequeno e médio portes), ampliam-se as perspectivas de diversificação tanto da pauta de produtos exportados como de destinos dos mesmos. As condições de mercado para certos produtos não sendo favoráveis em determinados países, poderão ser compensadas por outras em diferentes locais, criando-se, assim, ambiente para o tão desejado crescimento sustentado das exportações brasileiras. Na ACSP, a mencionada inserção recebe atenção há muitos anos, pelos chamados órgãos de consulta da entidade, como a antiga CIOI (Câmara Interssetorial de Operações Internacionais), a antiga Comissão de Empresas Comerciais Exportadoras e o Comitê de Usuários de Portos e Aeroportos do Estado de São Paulo (COMUS). As alterações recentemente introduzidas na estrutura desses órgãos, com a criação do Conselho de Comércio Exterior (CCOMEx) e do Conselho Brasileiro de Empresas Comerciais Importadoras e Exportadoras (CECIEx), mantiveram o foco na inserção competitiva de pequenos produtores no comércio internacional, analisando e debatendo, essencialmente, questões de natureza institucional-normativa. No que concerne a serviços de apoio a produtores, exportadores e importadores, a experiência acumulada da ACSP, concentrada na recepção de missões e empresários estrangeiros, foi reforçada e ampliada com o lançamento do Programa de Internacionalização da Empresa Brasileira - Caminhos para os anos 2000, que facilitou o intercâmbio da Associação com instituições congêneres e profissionais estrangeiros. Em 1999, após o encerramento do Programa, a ACSP passou a emitir Certificados de Origem, consolidando, assim, o papel de prestador de serviços aos exportadores do Estado de São Paulo. As trading companies e comerciais importadoras e expor-

72

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

tadoras, como se sabe, prestam serviços a produtores e comerciantes interessados em adquirir produtos estrangeiros e em vender bens ao exterior. Atuam, também, de maneira puramente mercantilista comprando e revendendo produtos no Brasil e em outros países. As mais especializadas e de maior porte oferecem serviços de engenharia financeira (trade finance) e de logística, com o intuito de aumentar a competitividade dos produtos com os quais fazem negócios. Em setembro de 2004, com a instituição do Projeto Exporta, São Paulo, fruto de acordo de cooperação entre o Governo do Estado, através da então Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico, a Facesp e a São Paulo Chamber of Commerce (SP-Chamber)/ACSP, os trabalhos com vistas àquela inserção foram, formalmente, estruturados e organizados. À época, a recém criada SP-Chamber, abrigada na ACSP com a missão de constituir o braço de desenvolvimento de negócios internacionais de Associações Comerciais paulistas, aportou ao projeto um banco de dados com registros de cerca de 17.500 micro, pequenas e médias empresas do Estado, notadamente industriais, que passaram a constituir o foco e o público-alvo dos trabalhos dessas entidades. De 2007 a 2008, Conquanto não se tenha a as exportações pretensão de afirmar que esindustriais realizadas ses trabalhos tenham sido depor microempresas terminantes na conversão, até brasileiras meados de 2009, de 134 proaumentaram 0,3%, dutores em novos exportadoenquanto as de res do Estado, admite-se que pequenas e médias contribuíram bastante para a empresas declinaram, consecução desse objetivo, respectivamente, uma vez que esses produto3,6% e 0,4%, segundo res, além de terem tido a opordados do SECEX/MDIC. tunidade de participar de eventos Exportar para Crescer e oficinas técnicas de capacitação, puderam, também, se aproximar de empresas comerciais importadoras e exportadoras. Estas, por sua vez, vêm desenvolvendo as suas exportações com o apoio, inclusive, da SP-Chamber que, em 2008 e 2009, realizou importantes missões empresariais ao exterior, respectivamente, a Angola e à África do Sul, numa iniciatica conjunta com a APEX, sob os auspícios do Projeto Tradings, lançado pela Agência em maio de 2008. A propósito da última missão, é importante ressaltar que cada comercial exportadora participante da comitiva representou, em média, 12 produtores brasileiros, reafirmando o papel dessas empresas como agentes multiplicadores de esforços para a pretendida inserção. Para prosseguir na análise do tema proposto, o texto a seguir foi organizado em cinco seções. A Seção 1 analisa o desempenho exportador por porte de empresa e a Seção 2 aborda os aspectos básicos de competitividade, tanto os gerais como os relativos a produtores de pequeno porte. A Seção 3 ocupa-se da experiência do projeto "Exporta São Paulo". A Seção 4 analisa o papel de trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras. A Seção 5 apresenta conclusões e recomendações.


1. Desempenho Exportador Por Porte de Empresa

sas aumentaram 0,3%, enquanto as de pequenas e médias empresas declinaram, respectivamente, 3,6% e 0,4%. Outro aspecto importante a ser realçado refere-se ao valor médio exportado por empresas industriais de cada porte nesse ano. O da micro foi de US$ 68,1 mil/empresa, o da pequena foi de US$ 363,0 mil/empresa, o da média foi de US$ 1,5 milhões/empresa e o da grande foi de 34,8 milhões/empresa. Em 2008, as comerciais exportadoras e as trading companies venderam ao exterior um montante médio, respectivamente, de US$ 3,4 milhões e US$ 8,0 milhões, valores estes muito superiores aos médios exportados por indústrias de micro, pequeno e médio portes.

totalizando 16.913 empresas, responderam por 5,6 % do montante exportado no mesmo ano. A enorme concentração de exportações em poucas empresas é uma fortíssima restrição ao tão almejado crescimento sustentado das vendas externas do País. No tocante aos destinos das vendas ao exterior, os EUA e a Argentina absorveram pouco mais de 23% do valor das exportações das empresas brasileiras de todos os portes, cabendo destacar que 23,6% das micro, 27,4% das pequenas, 32,6% das médias e 42,7% das grandes empresas venderam para os EUA em 2008. A ampliação da base exportadora brasileira é fundamental para a consecução do objetivo de crescimento sustentado das vendas externas. O trabalho do IPEA (1) "Perfil das Exportações, Pro-

Silva Júnior/Folhapress.

Conforme dados do SECEX/MDIC elaborados pela ConTrader Comércio Exterior, de 2007 a 2008, as vendas externas totais brasileiras cresceram 23,2% e as industriais evoluíram 22,0%. O crescimento das exportações totais foi fortemente influenciado pelo aumento das vendas de grandes empresas, de 26,3%, cabendo observar que as vendas ao exterior de micro, pequenas e médias empresas diminuíram no período. No caso das exportações industriais, as realizadas por grandes empresas cresceram 23,8% contribuindo para o incremento de 22,0% das vendas totais. As realizadas por micro empre-

De 2007 a 2008, de acordo com a SECEX, as vendas ao exterior de comerciais exportadoras e trading companies cresceram, respectivamente, 27,0% e 19,7%. Embora os dados de desempenho refiram-se apenas a dois anos, a situação por eles revelada é, certamente, indicativa de maior dinamismo exportador dessas empresas comparativamente ao de exportadoras de micro, pequeno e médio portes.. Quanto ao desempenho exportador e aos principais destinos das vendas externas, por porte de empresa, observados em 2008, um ponto importante a destacar é a concentração de 94,4% das exportações brasileiras em 5.508 empresas, representando pouco menos de 25% da base exportadora do País. Os restantes 75%, compostos por exportadores de micro, pequeno e médio portes,

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

73


dutividade e Tamanho das Firmas no Brasil", de autoria de Victor Gomes e Roberto Ellery Jr., divulgado em 2005, deu importantes contribuições para a formulação de políticas públicas voltadas ao fomento das exportações, com o aumento da quantidade de exportadores. Entre as suas conclusões, cabe ressaltar: G O número de empresas exportadoras é pequeno em relação ao total de empresas estabelecidas no País, observando-se que a quantidade de firmas que exportam para vários mercados decresce com o número de mercados. Esse padrão não depende do setor em que a empresa atua; G O aumento da participação brasileira em mercados externos está muito mais associado ao crescimento do número de empresas que exportam para determinado mercado do que ao aumento das vendas médias das firmas exportadoras; G Empresas exportadoras possuem produtividade do trabalho maior do que as não-exportadoras, devendo-se observar que firmas que vendem para muitos mercados externos são mais produtivas do que as que vendem para poucos mercados; G Empresas exportadoras são maiores do que as não-exportadoras, cabendo ressaltar que quanto maior a empresa a mais mercados ela atende. 2. Aspectos Básicos de Competitividade - gerais e relativos a produtores de pequeno porte Os aspectos de competitividade, relacionados, sobretudo, a produtores de pequeno porte, dizem respeito ao ambiente competitivo em que eles atuam, à estrutura interna das suas empresas, bem como às condições de acesso a mercados no exterior. Quando avaliados em conjunto, revelam a capacidade de o produtor ganhar mercados no exterior e de suplantar a concorrência de produtos importados no mercado doméstico em que atua. 2.1. Aspectos relacionados ao ambiente competitivo Resultados da pesquisa feita pela CNI (2) "Os Problemas da Empresa Exportadora Brasileira 2008" com 855 empresas exportadoras de todos os portes, destacaram a taxa de câmbio, a infraestrutura de transportes e a logística entre os principais entraves à expansão das exportações brasileiras. Questões relacionadas à carga tributária, compensação ou ressarcimento de créditos tributários, encargos sociais, facilidades e custos de financiamentos, por serem objeto de análises e discussões para a formulação de outras Propostas para o Próximo Presidente, serão desconsideradas neste trabalho. Ressalte-se, no entando, que todos esses fatores diminuem a rentabilidade média das vendas externas, reduzindo-lhes a competitividade. No que concerne ao câmbio, a taxa efetiva, de acordo com as avaliações daquela entidade, indicou uma valorização do real de 22%, entre 1995, logo após a criação da nova moeda, e 2007. Na fase mais aguda da crise econômica global, em 2008, o real perdeu 25% do seu valor em relação ao dólar. Entretanto, entre março e dezembro de 2009, o real se valorizou 33%, devolvendo, praticamente, a desvalorização anteriormente observada. O estado da infraestrutura de transportes, em especial a rodoviária, de suporte ao escoamento de produtos básicos e in-

74

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

dustrializados, é precário, acarretando elevados custos a exportadores e importadores. Deve-se ressaltar as exceções no Estado de São Paulo, onde as rodovias Anhanguera, Bandeirantes, Castelo Branco e Washington Luís, operando com elevados níveis de serviço, não representam maiores ônus à competitividade desses 'atores". No caso de produtos comercializados em contêineres marítimos, tratados nos portos como "carga geral" e envolvendo, entre outros, a quase totalidade de manufaturados, de maior valor agregado, as ineficiências logísticas são bastante acentuadas, estando, fortemente, associadas aos tempos de trânsito dos mesmos, componentes dos lead times e formadores de custos de estoques de exportadores e importadores. A frágil articulação das suas relações com transportadores rodoviários, operadores de depots de contêineres vazios, permissionários de recintos alfandegados, operadores portuários de contêineres e armadores, entre outros prestadores de serviços, é uma das razões dos elevados tempos de trânsito atualmente observados, principalmente no Porto de Santos (ver (3) "THE 24-HOUR PROJECT FOR THE SANTOS PORT COMPLEX Improving the Productivity at A redução do the Largest Container Port in investimento privado South America"). foi uma das principais Outra causa das ineficêncausas da perda de cias diz respeito à atuação de ritmo de ganhos d i v e r s o s ó rg ã o s p ú b l i c o s de produtividade da anuentes de despachos de exindústria brasileira, portação e importação, tais coobservada, mo a Agência Nacional de Viprincipalmente, no gilância Sanitária - Anvisa, o período 1997/2004, Ministério da Agricultura, Pede acordo com a cuária e Abastecimento - MApesquisa da CNI. PA, a Polícia Federal e a SRF, entre outros Além da falta de coordenação de suas atividades, essas instituições mantêm horários de funcionamento incompatíveis com a dinâmica do comércio internacional, alegando, freqüentemente, que têm falta de pessoal qualificado para os processos de despachos e trânsitos aduaneiros de mercadorias. Os tempos de operações em sistemas logísticos constituem elemento fundamental na formação de estoques de matériasprimas, insumos e produtos acabados e, por conseguinte, nos custos logísticos totais. Vale notar que, para uma mesma tonelagem de carga deslocada num determinado período, há uma tendência de os embarques tornarem-se mais frequentes, com lotes menores. Nos fluxos de contêineres, observa-se, também, um fracionamento de cargas, com a migração de unidades do tipo FCL (full container load), com carga de um embarcador para um único consignatário, para unidades LCL (less than container load), com carga de um ou mais embarcadores para mais de um consignatário. À medida que os tempos totais (lead times) de entrega de produtos aos consumidores diminuem, estes podem trabalhar com menores níveis de estoques de reserva ou segurança, o que significa menores exigências de capital de giro e menores


geralmente, reunidos para completar, pelo menos, um contêiner de 20', operam como agentes consolidadores de cargas, cujos fretes marítimos são menores do que os que seriam observados na situação em que cada lote fosse transportado como carga solta (break bulk), exigindo do armador a sua consolidação com cargas de outros embarcadores (ship's convenience). Admitindo-se um valor médio de US$ 56 mil por TEU (twenty foot equivalent unit) movimentado no Porto de Santos, com oito lotes de cargas, chega-se a um valor médio de US$ 7 mil por lote consolidado e transportado em contêiner. Por atuarem nas vertentes tanto de importação como de exportação, aquelas empresas podem, portanto, contribuir

externos de competitividade. O fator "câmbio" que influencia a receita de exportações é o mesmo que define os custos de importações. Parcela expressiva de exportadores de manufaturados, em situações de valorização do real frente à cesta de moedas de países com os quais comercializam seus produtos, busca diminuir os custos de insumos e componentes adquirindo-os no exterior, reduzindo os custos médios de produção e tornando-se, assim, mais competitivos. Na racionalização da logística de importações e exportações por via marítima, em especial as realizadas com o uso de contêineres, as comerciais importadoras e exportadoras, por trabalharem com famílias de produtos, cujos lotes são,

para o fortalecimento da competitividade de fornecedores com os quais trabalham, facilitando-lhes, também, o acesso a mercados no exterior.

Pablo de Sousa/Luz

custos de estoques (administração, juros, armazenagem e outros). Nessa situação, abrem-se oportunidades para vendedores cobrarem mais pelos produtos, tornando-os, assim, mais competitivos. Quando os tempos totais aumentam, os custos logísticos crescem e os produtos ficam menos competitivos. Acresça-se a esses fatores a imprevisibilidade de entregas de mercadorias por via marítima, em virtude da frágil articulação já mencionada, tanto em nível de atores privados como públicos, fazendo com que os exportadores trabalhem com estoques de segurança maiores, subtraindo-lhes parte da combalida competitividade em mercados externos. Empresas comerciais importadoras e exportadoras podem dar contribuições efetivas para a superação de condicionantes

2.2. Aspectos relacionados à estrutura interna das empresas A redução do investimento privado foi uma das principais causas da perda de ritmo de ganhos de produtividade da indústria brasileira, observada, principalmente, no período 1997/2004, de acordo com a citada pesquisa da CNI (2). Entre as causas da redução do investimento, destacam-se as altas taxas

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

75


de juros e as incertezas associadas a crescimento econômico de padrão stop and go, a elevados gastos de custeio do governo e a baixos investimentos públicos, indispensáveis para a viabilidade econômico-financeira de empreendimentos privados. Outros entraves à expansão das exportações, referentes à estrutura interna da empresa exportadora, notadamente a de pequeno porte, envolvem: G O baixo nível de qualificação da mão-de-obra; G A falta de profissional qualificado para cuidar exclusivamente de exportações; G Produto não atende a especificações técnicas exigidas no exterior; G Tecnologia inadequada; G Os custos de produção elevados formam preços não competitivos. Os fatores relacionados à formação e à qualificação de mão-de-obra são objeto de análises e discussões específicas nas Propostas para o Próximo Presidente. Vale, no entanto, ressaltar as experiências recentes do Projeto Exporta, São Paulo, adiante discutidas, no trato dessas deficiências, cujos trabalhos são, também, desenvolvidos com a participação de empresas comerciais importadoras e exportadoras. Estas, por terem um estoque de capital humano com experiência comprovada em negócios de importação e exportação, constituem, em diversas situações, opção para a superação das deficiências. O cumprimento de normas e especificações técnicas exigidas no exterior, há mais de dez anos, vem sendo competentemente tratado pelo Programa de Apoio Tecnológico à Exportação (Progex), desenvolvido no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). A divulgação das linhas de ação do Programa, focadas na adequação de produtos a mercados externos, é uma das atividades mais importantes do referido Projeto, integrando o conjunto de oficinas técnicas, desenvolvidas na forma de workshops, para a capacitação de produtores interessados em exportar, em expandir as suas vendas ao exterior e em substituir produtos importados. Questões atinentes à inovação tecnológica e ao compartilhamento de atividades produtivas voltadas a ganhos de escala, proporcionando, por conseguinte, reduções de custos médios de produção, são examinadas a seguir. 2.2.1. Inovação tecnológica Por inovação tecnológica entende-se toda a novidade implantada pela empresa, por meio de pesquisas ou investimentos, que aumenta a eficiência do processo produtivo ou que resulta em um novo ou aprimorado produto. Trata-se de um conceito amplo, envolvendo produtos e processos, cujo entendimento pode ser melhor percebido com os seguintes exemplos: G A implantação de códigos de barras em empresas que não os usavam contribui para o melhor gerenciamento de estoques e para a racionalização da logística das empresas; G A introdução de um determinado insumo ou componente que otimiza ou barateia a produção, no todo ou em parte;

76

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

G A adequação de produtos a exigências de leis e outras nor-

mas reguladoras, consideradas barreiras não-tarifárias para acesso a mercados no exterior, G A aplicação de novos softwares que demande, também, mudanças no hardware pode contribuir para a otimização de importantes fases do processo produtivo; G Numa indústria alimentícia, o lançamento de uma versão light ou diet pode significar a introdução de novo produto à variação de outro já existente; G A criação de uma linha voltada para um segmento de mercado não explorado anteriormente. Por exemplo, uma indústria têxtil de artigos infantis lança uma linha de roupas para adolescentes. O trabalho do IPEA (4) "Inovação, via internacionalização, faz bem para as exportações brasileiras", de autoria de Glauco Arbix, Mário Sérgio Salerno e João Alberto De Nigri, divulgado em 2004, encontrou evidências de que inovação tecnológica e eficiência de escala são, entre outros, fatores determinantes do desempenho exportador de empresas industriais brasileiras. Se a escolarização da Entre os resultados do estuforça de trabalho por si do (4), destaca-se a constatação só não vai induzir de que o aumento na eficiênautomaticamente as cia de escala média das firmas empresas à inovação e da indústria brasileira amà internacionalização, pliaria a probabilidade de os dados indicam que uma firma tornar-se exportaas empresas que se dora. Outro aspecto imporinternacionalizaram tante relacionado à inovação e com foco na inovação ao aumento de exportações empregam mão de obra diz respeito à internacionalimais escolarizada. zação de empresas, por meio, por exemplo, da abertura de subsidiária no exterior. Esta pode ser a fonte principal de informação para a inovação tecnológica, contribuindo para melhor desempenho exportador da empresa-mãe, em virtude de maiores facilidades para: G Acessar canais de comercialização; G Adaptar produtos a demandas de mercados específicos; G Criar mercados,; G Ter acesso a recursos financeiros mais baratos; e G Apropriar tecnologias não disponíveis no mercado doméstico. A análise desenvolvida revelou que existem diversos benefícios associados à internacionalização de firma com foco na inovação tecnológica. Entre eles, cabe destacar: G Melhor remuneração da mão-de-obra, com emprego de pessoal de maior escolaridade; G Maior percentual de dispêndio em treinamento em relação ao faturamento total da empresa, o que impulsionaria, de alguma maneira, a qualificação da mão-de-obra doméstica; G Maior volume de exportações de empresas internacionalizadas com foco em inovação do que as não-internacionalizadas.


ração é relevante, há espaço para ações compartilhadas entre grupos empresariais, voltadas à busca de informações sobre oportunidades de negócios associados à internacionalização com foco na inovação. Em face da importância crescente de trading companies e comerciais importadoras e exportadoras na inserção competitiva em mercados externos de produtores interessados em exportar e exportadores com experiência em alguns deles e levando-se em conta a ação multiplicadora de negócios dessas empresas, estas podem ter o seu papel valorizado na medida em que operem como fomentadoras de internacionalização

firma ser inovadora, duas delas estão diretamente vinculadas à mão de obra: treinamento e escolaridade. Nesse aspecto, há um parâmetro importante para a política pública de longo prazo. Se a escolarização da força de trabalho por si só não vai induzir automaticamente as empresas à inovação e à internacionalização, os dados indicam que as empresas que se internacionalizaram com foco na inovação empregam mão de obra mais escolarizada. Assim, uma política de incentivo à inovação na indústria passa por políticas de aumento da escolaridade da população." O referido estudo ressalta, também, a evidência de que a cooperação é, possivelmente, um elemento importante para as firmas realizarem inovações, havendo, para tanto, interesse na busca conjunta de indicações sobre as mesmas. Se tal coope-

com foco na inovação tecnológica. Os seus fornecedores ou clientes seriam, dessa forma, amplamente beneficiados com o acesso a informações e a padrões de inovação tecnológica.

Edson Silva/Folhapress

O mesmo estudo (4) concluiu, ainda, que o aumento de competitividade das empresas é influenciado positivamente pelas inovações tecnológicas resultantes do processo de internacionalização e que tal competitividade auxilia nas exportações. "A abertura de mercados externos ocasionaria maior potencial de expansão e crescimento da firma e, também, a própria internacionalização geraria mecanismos de retroalimentação da sua capacitação tecnológica". Os resultados da análise chamam a atenção para a importância da qualificação da mão de obra nas chances de a firma inovar. "Das quatro variáveis que afetam a probabilidade de a

2.2.2. Compartilhamento de atividades e operações A motivação fundamental para o compartilhamento de atividades e operações desenvolvidas por produtores de pequeno porte é a realização contínua de ganhos de escala, trazendo, em consequência, reduções permanentes de custos médios de produção, tornando mais competitivos os participantes de grupos com interesses afins. Entre eles, cabe destacar os formadores de Arranjos Produtivos Locais APLs e de cooperativas, cujas vendas ao exterior são, geral-

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

77


mente, viabilizadas por empresas comerciais importadoras e exportadoras. 2.2.2.1. Arranjos Produtivos Locais - APLs Os Arranjos Produtivos Locais - APLs se caracterizam por uma concentração geográfica ou territorial de um número significativo de empresas, notadamente de micro, pequeno e médio portes, de um mesmo setor ou mesma cadeia produtiva, que mantêm algum vínculo de cooperação entre si e com outros agentes públicos e privados. Os estímulos e a orientação para a formação de APLs foram promovidos pelo Governo Federal, através do MDIC, no início dos anos 2000, no contexto da Política Industrial, com o objetivo de fomentar a modernização e a competitividade de micro, pequenas e médias empresas. Mapeamento recentemente concluído pelo BNDES revela que existem 806 APLs ativos no País, dos quais 756 já foram objeto de políticas públicas ou privadas, sendo, por isso, considerados "priorizados". Destes, 287 estão na agropecuária, 114 no comércio e serviços e 355 em indústrias. O MDIC criou um programa específico para apoiar as exportações de Arranjos, denominado Projeto Extensão Industrial Exportadora (PEIEx), que é um sistema de resolução de problemas técnico-gerenciais e tecnológicos voltado ao incremento da competitividade e à promoção de cultura exportadora empresarial e estrutural em APLs selecionados. Os resultados do Programa de Desenvolvimento de Distritos Industriais, executado pelo Sebrae no período 2002/2007, no contexto de Projetos de Integração Produtiva, apoiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), revelaram que houve experiências exitosas de vendas para novos mercados da Ásia, Europa e EUA de móveis de Paragominas (PA), confecções de Nova Friburgo (RJ), calçados de Campina Grande (PB), artesanato e confecções de Tobias Barreto (SE). Há, também, registros importantes de exportações do Polo Moveleiro catarinense, cujos integrantes estão reunidos na Associação dos Madeireiros e Moveleiros do Oeste de Santa Catarina (Amoesc). A quantidade de exportadores na região passou de seis empresas, em 1998, para 47 em 2009. Deste total, 96% são micro e pequenas empresas. De 2002 a 2008, as exportações evoluíram 637%, passando de US$ 3,4 milhões para US$ 25,0 milhões do início ao fim do período. 2.2.2.2. Cooperativas De acordo com a SECEX/MDIC, existem, atualmente, 217 cooperativas exportadoras em todo o País, cujas vendas ao exterior cresceram 21,5% de 2007 a 2008, passando de US$ 3,3 bilhões para US$ 4,0 bilhões do início ao fim do período. Elas vendem produtos das mais diversas naturezas, como as commodities açúcar, café, milho e soja. Exportam calçados, mel, camisetas, geleias, cachaças, entre inúmeros itens. É importante destacar que as cooperativas exportadoras reúnem produtores de todos os portes. No meio rural, a formação de cooperatrivas e associações

78

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

de produtores de pequeno porte transforma a atuação individual e familiar em atuação grupal e comunitária, acrescentando capacidade produtiva e comercial aos associados, contribuindo, assim, para a viabilidade econômico-financeira de seus negócios. A troca de experiências e a utilização de uma estrutura comum são ingredientes básicos para o sucesso dos grupos, que se unem para adquirir insumos e equipamentos com menores preços e melhores prazos de financiamentos. O uso comum de tratores, colheitadeiras, caminhões para transporte, entre outros itens, proporciona a realização de atividades produtivas e de comercialização a custos mais baixos do que os observados na atuação individual de cada associado ou cooperativado. Há, ainda, o compartilhamento da asssitência técnica de agrônomo e veterinário, de tecnologias e de capacitação profissional. 2.3. Aspectos relacionados a acessos a mercados externos Os aspectos relacionados a acessos a mercados no exterior Em face da experiência que condicionam a competitide negócios acumulada vidade de produtores brasileipor trading companies e ros, notadamente os de pequecomerciais importadoras no porte, dizem respeito a: G Dificuldade de encontrar e exportadoras em canais de distribuição de um parceiro para apoiar as países estrangeiros, vendas nos países; G Exigências burocráticas; essas empresas G Dificuldade de obter inforrepresentam opções para a redução de custos mações sobre as necessidade acesso a mercados, des e as preferências dos facilitando e agilizando compradores; G Elevadas tarifas de importaas vendas externas de pequenos produtores. ções; G Dificuldade de obter informações sobre as exigências técnicas e burocráticas nos países; G Desconhecimento do mercado de destino; G Dificuldade de fornecer assistência técnica pós-venda; G Barreiras técnicas; G Barreiras sanitárias. Esses aspectos determinam os chamados "custos de acesso a mercados", considerados grandes barreiras à entrada de pequenos produtores em mercados externos e à diversificação de mercados de exportadores com experiência consolidada em alguns deles. As dificuldades para a absorção desses custos ficam evidentes quando se organizam ações de promoção comercial no exterior, envolvendo eventos internacionais, como feiras, seminários e encontros de negócios, para os quais se exige a elaboração de material promocional de produtos no idioma do país-alvo das vendas externas. Após a realização dos mesmos, o envio e o reenvio de amostras a potenciais compradores; a seleção de agentes, representantes ou distribuidores e a formalização jurídica da relação com eles representam despesas frequentemente insuportáveis por aqueles produtores.


O Sebrae, em nível nacional e por meio de suas unidades estaduais, e a APEX, através de Projetos Setoriais Integrados PSIs, têm trabalhado para a superação dessas barreiras, apoiando a participação de produtores e exportadores em feiras internacionais e missões empresariais ao exterior, com encontros de negócios pré-agendados com potenciais importadores. No Brasil, a Agência tem promovido "projetos compradores", trazendo empresários estrangeiros potencialmente interessados em produtos de determinados setores, durante feiras e outros eventos realizados em diferentes estados. Em face da experiência de negócios acumulada por trading

valor ao produto exportado. O efeito combinado das mesmas proporcionam o aumento da rentabilidade média das exportações, conferindo-lhes ganhos de competitividade. Equivalem a um "câmbio adicional" para o exportador.

companies e comerciais importadoras e exportadoras em canais de distribuição de países estrangeiros, essas empresas representam opções para a redução de custos de acesso a mercados, facilitando e agilizando as vendas externas de pequenos produtores e exportadores.

rurais de pequeno porte (pessoas jurídica e física), que lidam com itens exportáveis ou potencialmente exportáveis. O Sistema é um instrumento para trabalhos associativos, explorando-se opções de compartilhamento de contratos de manufatura, de exportação, de compras, de logística, entre outras operações. O Sistema é, também, de grande utilidade para operadores logísticos e empresas comerciais importadoras e exportadoras, interessados em montar ou diversificar as suas "cestas" de produtores e produtos com os quais trabalham. O SIAEXP, por permitir a busca de produtos a partir de suas especificações técnicas, com base na classificação fiscal da Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), é um forte indutor da formação de Arranjos Produtivos Virtuais (APVs), que vêm sendo discutidos nos eventos Exportar para Crescer, caracte-

3.1. Sistema de Informações de Apoio às Exportações do Estado de São Paulo - SIAEXP

Fábio D'Castro/Hype

O SIAEXP é o sistema de informações do Projeto Exporta, São Paulo, elaborado a partir do Perfil do Produtor Paulista, com o objetivo de dar visibilidade aos produtores industriais e

3. A Experiência do "Exporta, São Paulo" A experiência do Projeto Exporta São Paulo envolve ações que induzem ganhos de escala aos processos produtivos e de comercialização externa de pequenos produtores interessados em exportar e de exportadores com experiência de negócios consolidada em determinados mercados. As atividades visam a reduzir os seus custos médios de vendas ao exterior e a agregar

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

79


rizados a seguir. Eles flexibilizam os conceitos de APLs, clusters e distritos industriais, caracterizados pela proximidade física de seus integrantes em determinado espaço ou território produtivo, permitindo que empresas comerciais importadoras e exportadoras desenvolvam agrupamentos de produtores da maneira que lhes seja conveniente para a viabilidade de negócios no exterior. No caso de produtos industriais que envolvem montagens, o SIAEXP é um instrumento útil para viabilizá-las, inclusive com insumos e componentes importados. Essas operações podem ser realizadas em portos, aeroportos e portos secos industriais, de acordo com a legislação aduaneira em vigor. As comerciais importadoras e exportadoras, por atuarem nas pontas de importação e exportação, têm condições de desenvolver a "engenharia comercial" para viabilizar essas operações. As consultas ao SIAEXP são feitas através dos websites da SP-Chamber e de algumas associações comerciais vinculadas à Facesp. 3.2. Eventos Exportar para Crescer Trata-se da principal atividade de mobilização e sensibilização de produtores paulistas de pequeno porte para negócios de exportação, desenvolvida pelo Projeto Exporta, São Paulo. Os eventos, itinerantes por todo o Estado, são compostos de seminário, encontros de negócios e despachos executivos (ver (5) "Exportar para crescer, Diário do Comércio, 3 de abril de 2003). No seminário, são apresentadas as linhas de ação do Projeto e debatidas questões relativas a duas áreas-problema das exportações brasileiras, quais sejam logística e financiamentos. Em seguida, discutem-se aspectos da adequação de produtos a mercados externos e da formação de consórcios de exportação. Os depoimentos, prestados por empresários de pequeno porte, acerca de experiências e negócios envolvendo vendas ao exterior, finalizam o roteiro de conceitos e informações básicas necessários à sensibilização do produtor para a exportação, Os encontros de negócios visam a dar ao evento um caráter prático, ressaltando o compromisso do projeto com a realização efetiva de novos negócios de comércio internacional e a ampliação da base exportadora paulista. Com base no Perfil do Produtor Paulista, elaborado com antecedência ao evento, cruzam-se as informações do respectivo formulário com as que estão cadastradas na SP-Chamber, no banco de dados de traders, empresas comerciais importadoras e exportadoras e outros prestadores de serviços de importação e exportação, para que os profissionais que lidam com os mesmos produtos identificados no Perfil possam ser convocados a participar dos encontros com produtores e exportadores com experiência de negócios consolidada em determinados mercados. A partir de 2008, com o lançamento do Projeto Tradings, da APEX, o cruzamento passou a ser feito, também, com as informações e dados disponíveis no Diretório Tradings do Brasil (DTB). Os encontros têm-se mostrado efetivos para a consecução dos objetivos do Projeto, pois as empresas e profissionais especializados, por já terem experiência comprovada em negó-

80

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

cios de exportação e, freqüentemente, estarem com canais de distribuição abertos em diversos países, podem agilizar a concretização de novas vendas externas, contribuindo, também, para a redução de custos de prospecção de negócios e de acesso a mercados no exterior. Por outro lado, os despachos executivos têm o propósito de apresentar os potenciais exportadores e os que estão iniciando suas vendas externas a entidades e empresas com interesses comuns aos do Projeto, cujas atividades integram importantes etapas do processo de exportação e importação. Bancos que atuam no comércio exterior, com linhas de financiamento a exportadores e importadores têm, também, participado dos Despachos Executivos. 3.3. Inteligência comercial Os trabalhos de inteligência comercial do Projeto são elaborados pela equipe da SP-Chamber, sendo caracterizados por um conjunto de informações e análises necessárias à formação de competidores globais. Nos eventos Exportar para Cescer, A experiência do Projeto cada produtor recebe o seu reExporta, São Paulo latório preliminar "Ameaças e envolve ações que Oportunidades no Mercado induzem ganhos de Global", fortalecendo-se, asescala aos processos sim, a interação com o projeto. produtivos e de Com base nas classificações comercialização externa fiscais de produtos pela Node pequenos produtores menclatura Comum do Merinteressados em cosul (NCM) indicadas pelo exportar e de produtor, ao fazer sua inscriexportadores com ção no evento, informam-se experiência de negócios dados recentes de importaconsolidada em ções, ilustrativas das "ameadeterminados mercados. ças" que ele está sofrendo com a concorrência de produtos importados, em especial os provenientes da China. Por outro lado, os dados sobre exportações visam a chamar a atenção do produtor para as "oportunidades" existentes no exterior, em particular nos EUA e em países da América Latina. O relatório é complementado por uma relação de potenciais importadores, estabelecidos em diversos países. Durante a fase mais aguda da crise econômica global, de agosto de 2008 a abril de 2009, com o intuito de verificar possíveis regiões para a expansão das vendas externas brasileiras, foram introduzidas análises sobre as desvalorizações cambiais em relação ao dólar em diversos países. Na medida em que o real seja mais desvalorizado do que outras moedas, abre-se espaço para o produto brasileiro ganhar fatias de mercados com preços na moeda local menores do que os praticados antes da crise. Apesar da queda do ritmo de atividade econômica desses países, com a consequente diminuição do volume de importações, a prática de menores preços poderá ser exitosa na medida em que os concorrentes estrangeiros de exportadores brasileiros não tenham margem para redução de preços.


3.4. Workshops sobre temas específicos

Ricardo Nogueira/Folhapress

Na sequência dos eventos Exportar para Crescer, o Projeto promove uma série de workshops em áreas do comércio internacional onde existe potencial para a racionalização de procedimentos, com perspectivas de reduções de custos ou aumentos de receitas. O somatório dos resultados desses trabalhos deverá representar um vetor resultante equivalente a um "câmbio adicional" para o produtor interessado em exportar e o exportador com experiência de negócios em determinados mercados, tornando-os, assim, mais competitivos.

pectivamente, em 2008 e 2009, pela entidade em conjunto com a APEX, sob os auspícios do Projeto Tradings. Considerando-se que cada comercial exportadora participante das missões representou, em média, 12 produtores e que boa parte destes se aproximou de dirigentes e representantes de comerciais exportadoras em encontros de negócios dos eventos Exportar para Crescer, o Exporta, São Paulo, com as ações de promoção comercial no exterior desenvolvidas pela SP-Chamber, pode tratar o produtor paulista de pequeno porte interessado em exportar numa perspectiva sistêmica, em que se desenvolve todo o ciclo de negócios de exportação.

Os workshops, além de manterem aquecida a mobilização proporcionada pelos Exportar para Crescer, visam a capacitar os produtores para os desafios da competição global. 3.5. Ações de promoção comercial (São Paulo Chamber of Commerce) As ações de promoção comercial do Exporta, São Paulo estão fortemente associadas às desenvolvidas pela área de Relações Internacionais da SP-Chamber e pelo CECIEx para as empresas comerciais importadoras e exportadoras. Nesse contexto, é importante ressaltar os promissores resultados das missões a Angola e à África do Sul, realizadas, res-

3.6. Prêmio Exporta, São Paulo A outorga do Prêmio Exporta, São Paulo a empresários e municípios do Estado foi instituída, em 2005, com o propósito de estimular produtores paulistas de pequeno porte a se engajarem em operações de exportação e de reconhecer o esforço de muitos, cujas vendas externas estão com tendência de crescimento. A partir de avaliações do desempenho exportador das 18 Regionais Administrativas da Facesp, obtem-se a relação de empresas elegíveis, ou seja, em condições de serem agraciadas. Os critérios de seleção das mesmas valorizam as que mais ampliaram a pauta de produtos e os destinos das suas

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

81


exportações. Para essa análise, a Comissão Organizadora do Prêmio conta com o valiosíssimo apoio da Coordenação de Estatística do Departamento de Planejamento e Desenvolvimento do Comércio Exterior, da Secretaria de Comércio Exterior, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (DEPLA/SECEX/MDIC). As indicações finais das empresas premiadas são feitas pelos vice-presidentes regionais da Facesp, com base, também, em critérios de responsabilidade social demonstrada por elas. As entidades promotoras do Prêmio objetivam, com essa iniciativa, dar mais uma contribuição ao processo de mobilização e sensibilização de produtores de pequeno porte para o enorme esforço que o País e o Estado de São Paulo deverão fazer nos próximos anos, de expandir vigorosa e continuamente suas vendas ao exterior, propiciando, assim, o aumento da renda e a geração de novos empregos, objetivo maior do Projeto Exporta, São Paulo. 4. O Papel de Trading Companies e Empresas Comerciais Importadoras e Exportadoras

4.1. Características de trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras

Os resultados do trabalho (7) "Estudo da evolução do setor de tradings no Brasil - Diagnóstico da situação atual e proposições para o seu desenvolvimento", realizado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2009, revelaram: G As comercias exportadoras e as trading companies não são mais apenas intermediários comerciais, atuando, também, como consultorias de exportação, atividade na qual podem supervisionar o processo de exportação de uma empresa. Garantia de qualidade, entrega no prazo, adequação do produto a demandas específicas do cliente são fatores determinantes da competitividade que nem sempre as pequenas e médias empresas estão cientes da sua importância; G Do lado da oferta de bens por produtores de pequeno porte, há problemas envolvendo operações de crédito, requisitos para a habiEm termos litação no Siscomex, exigência de consolidaoperacionais, a ção de cargas em armazéns alfandegados, dificuldades de os produtores manterem adeprincipal diferença quadamente o fluxo de fornecimento de proentre as tradings e dutos e a dificuldade de os produtores as comerciais atenderem corretamente os padrões de quaimportadoras e lidade exigidos pelos importadores; G Do lado da demanda, existem a falta de culexportadoras é a tura exportadora de produtores de pequeno exigência feita porte, poucas informações sobre comerciais a estas para que exportadoras e a visão negativa que eles têm recebam em recintos dessas empresas, consideradas mais atraalfandegados vessadoras do que parceiras."

As trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras estão aptas a desenvolver, praticamente, os mesmos negócios de comércio internacional. As primeiras são constituídas sob a forma de sociedades por ações, com capital mínimo superior a pouco mais de 700 mil UFIRs, possuindo Certificados Especiais emitidos pela SRF os produtos que e pela SECEX/MDIC. Os problemas apontados pelo trabalho da Não há requisitos específicos para a abercompram no FGV poderão ser contornados com a intensifitura e funcionamento das comerciais impormercado doméstico cação de encontros de negócios de produtores tadoras e exportadoras, cabendo destacar para fins de interessados em exportar e exportadores com que os benefícios da Lei 87/96 ("Lei Kandir") exportação. experiência em determinados mercados com foram estendidos a essas empresas, embora tradings e comerciais e importadoras e exportatenham sido, de início, concedidos apenas às doras, no padrão dos que têm sido organizados trading companies. nos eventos Exportar para Crescer, já mencionados. Ambas as categorias de empresas usufruem de benefícios Em nível institucional, o CECIEx, citado anteriormente, tem fiscais na aquisição de bens no mercado interno com o um papel extraordinariamente relevante a desempenhar junto fim específico de exportação, envolvendo a suspensão de a órgãos de governo, como o MDIC, a SRF e a Câmara de CoIPI, não-incidência de ICMS, isenção de PIS e Cofins e mamércio Exterior (CAMEX), na remoção de obstáculos para a nutenção de créditos fiscais de IPI e ICMS, originários de ampliação da oferta de produtos por aquelas empresas, em escompras de matérias-primas , produtos intermediários e treita articulação com o Projeto Tradings da APEX. materiais de embalagem. Vendas de produtos a essas emA superação de dificuldades existentes em nível da oferta e presas são equiparadas a exportações diretas para todos os da demanda de produtos por comerciais exportadoras passa, fins (ver (6) "Dobrando a exportação", Diário do Comércio, 14 de março de 2003). também, pelo desenvolvimento de um amplo programa de caEm termos operacionais, a principal diferença entre as trapacitação de produtores, exportadores e e das próprias tradings e as comerciais importadoras e exportadoras é a exigêndings e comerciais importadoras e exportadoras. Os temas pocia feita a estas para que recebam em recintos alfandegados os derão ser os abordados em workshops específicos promoviprodutos que compram no mercado doméstico para fins de exdos pelo Exporta, São Paulo e outros que proporcionem aos portação. As tradings podem recebê-los e mantê-los por praprodutores uma visão dessas empresas como parceiras de nezos não superiores a 90 dias no seu próprio domicílio. As norgócios, tendo como referência (benchmarking) as Export Demas para a operacionalização do Siscomex (Radar) devem ser velopment Companies (EDCs), cujas características estão observadas por ambas as categorias. apresentadas a seguir.

82

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


4.2. Funções de uma Export Development Company - EDC A ideia de incluir as Export Development Companies EDCs na estrutura deste trabalho, conceituando-as como "empresas de desenvolvimento de exportações", está associada à necessidade de mudança da imagem das tradings e comerciais importadoras e exportadoras e de atualização do papel que elas devem desempenhar, de inserir competitivamente pequenos produtores em mercados externos. Na trabalho realizado pela FGV (7), essas empresas foram consideradas "mais atravessadoras do que parceiras" por alguns produtores entrevistados, conceito totalmente incompatível com o importante e nobre papel a elas reservado. Para os objetivos deste trabalho, de formulação de Propostas para o próximo Presidente, as EDCs serão consideradas uma classe especial de tradings e comerciais importadoras e exportadoras para as quais serão definidos papéis específicos no contexto daquela inserção. As EDCs serão empresas especializadas em desenvolvimento de negócios de longo prazo de exportações, importações e operações com terceiros países, envolvendo produtos e serviços. Essas empresas comprarão itens localmente e para vendê-los internacionalmente. Elas adquirirão produtos internacionalmente para vendê-los localmente e elas comprarão e venderão internacionalmente. Negócios internacionais serão o escopo das EDCs. Elas terão flexibilidade e agilidade para atuar em vários mercados com diversos produtos ao mesmo tempo. Elas serão intermediários comerciais entre fornecedores e compradores estabelecidos em diferentes países, envolvendo-se profundamente em comercialização de produtos e com serviços que lhes agregam valor. As EDCs serão catalisadoras da competitividade de produtores de pequeno porte, contribuindo para a formação de grupos com interesses afins, como APLs e APVs. Serão, também, responsáveis por fluxos de informações e outras ações voltadas à inovação tecnológica desses produtores, valendo-se, para tanto,

das suas subsidiárias, filiais ou coligadas no exterior. No Brasil, as EDCs deverão ser certificadas pelo CECIEx, com o apoio do Projeto Tradings da APEX, que ratificará o papel a ser desempenhado por essas empresas e avaliará o desempenho das mesmas. Dadas as características de atuação de trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras no Brasil, comprando e revendendo produtos e prestando serviços a produtores interessados em exportar e a exportadores dispostos a diversificar canais de distribuição no exterior, uma típica EDC oferecerá a seus potenciais clientes os serviços descritos na Tabela acima. 5. Conclusões e Recomendações O aumento da base exportadora, com maior participação de produtores de micro, pequeno e médio portes, considerados genericamente de "pequeno porte" neste trabalho, contribuirá para a consecução do tão almejado crescimento sustentado das vendas externas brasileiras, ensejando a geração de renda e empregos, objetivos maiores de políticas públicas de desenvolvimento econômico do País. Para tanto, é fundamental que as mesmas estejam voltadas, precipuamente, ao fomento de ganhos contínuos de competitividade desses produtores em mercados externos e no mercado doméstico, onde a concorrência com fornecedores estrangeiros é, cada vez, mais acirrada. Nesse contexto, as diretrizes de políticas públicas deverão estimular a inovação tecnológica, a capacitação e ganhos de escala daqueles produtores, por meio de ações associativistas que envolvam o compartilhamento de atividades produtivas, de comercialização externa e de logística internacional. A aquisição de matérias-primas e insumos, a divisão de contratos de manufatura referentes a pedidos maiores do que os produtores são capazes de atender isoladamente, a prospecção de canais de distribuição no exterior e o acesso aos mesmos são exemplos de atividades a serem compartilhadas.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

83


As trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras operarão como catalisadoras do associativismo. Em face do enorme efeito multiplicador de negócios internacionais por elas proporcionado, o papel dessas empresas deve ser intensamente reforçado, inclusive com a eliminação de entraves de natureza burocrática, tributária e alfandegária, notadamente os que estão associados a normas da SRF . Essas empresas deverão merecer forte e permanente atenção por parte da SRF e dos demais órgãos anuentes de despachos de importação e exportação, tais como a Anavisa e o MAPA, no sentido da racionalização e simplificação de processos e procedimentos, para que elas possam atuar com mais liberdade e desenvoltura. As compras externas realizadas por trading companies e comerciais importadoras e exportadoras com movimento anual mínimo de US$ 5 milhões de importações deverão ter tratamento alfandegário prioritário equivalente ao que é, atualmente, oferecido a grandes exportadores e importadores no regime denominado de "Linha Azul", desde que tragam do exterior insumos e componentes destinados a fluxos produtivos de pequenos produtores envolvidos em negócios de exportação. O cruzamento de dados e informações que circulam por sistemas totalmente informatizados gerenciados por instituições públicas federais, como a própria SRF, a SECEX, o Banco Central do Brasil, o INSS e o Serpro, permite o monitoramento permanente de negócios e atividades daquelas empresas. A intensificação do uso de técnicas de amostragem para avaliá-los deverá ter preferência em relação a análises elaboradas antes da realização dos mesmos, prevendo-se a punição exemplar de empresas e seus dirigentes que transgredirem as normas e os regulamentos em vigor. No campo da inovação tecnológica de pequenos produtores, as trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras deverão, também, ter um papel de fundamental importância no fluxo de informações e de ações de inovação para pequenos produtores que façam parte da sua "cesta de fornecedores". A criação de filiais, subsidiárias ou coligadas dessas empresas no exterior, fortalecendo o processo de internacionalização das mesmas, deverá ser incentivada com linhas de financiamento de projetos pela Finep e de operações pelo BNDES. O processo deverá focar, prioritariamente, os mercados dos EUA, UE e da China, aproveitando-se as estruturas de embaixadas e consulados brasileiros, bem como de Centros de Negócios da APEX. Dado o caráter totalmente inovador dessa proposta, ela poderá, inicialmente, contemplar, apenas, aquelas empresas que atingirem a certificação de Export Development Company EDC, a ser outorgada pelo CECIEx. A primeira lista de empresas com o selo "EDC" poderá ser elaborada a partir das relações de agraciadas com o Prêmio Exporta, São Paulo, no período 2006/2009, que mostraram forte dinamismo exportador com a diversificação tanto da pauta de produtos exportados como de países de destino dos mesmos. Na área de capacitação de pequenos produtores para aproveitar as oportunidades e enfrentar as ameaças associadas à contínua globalização da economia, dever-se-á desenvolver módulos de treinamento presencial e virtual voltados, entre

84

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

outros, a temas específicos de inovação tecnológica, exportações, importações e internacionalização de negócios, destacando-se as perspectivas de permanente racionalização de processos e procedimentos, que se traduzam por reduções contínuas de custos, bem como de agregação de valor a produtos de tal forma que o vetor resultante desses esforços represente um "câmbio adicional" ao exportador. Nesse contexto, as experiências do Projeto Exporta, São Paulo, tratando de temas como consórcios de exportação, adequação de produtos a mercados externos, mecanismos de financiamento a exportações e importações, logística de exportações e importações e design, deverão ser estendidas a outros estados sob os auspícios do próprio CECIEx. Para tanto, propõe-se a instituição do Projeto Exporta, Brasil, Na área de capacitação com atividades em diversas de pequenos produtores, unidades da Federação. para aproveitar as A capacitação profissional oportunidades e de equipes de trading compaenfrentar as ameaças nies e empresas comerciais associadas à contínua importadoras e exportadoras globalização da deverá, também, ser reforçaeconomia, dever-se-á da não apenas com os módudesenvolver módulos de los já discutidos como, tamtreinamento presencial e bém, com temas relacionados virtual voltados, entre à plena operação de EDCs, outros, a temas que passarão a ser o benchespecíficos de inovação marking do setor. A particitecnológica (...) pação do International Trade Center, ligado à Unctad e à OMC, deverá ser requisitada pelo CECIEx, para que as experiênias internacionais mais recentes sejam conhecidas, analisadas e disseminadas junto àquelas empresas. No que concerne aos ganhos de escala, deve-se fomentar os agrupamentos de produtores na forma de Arranjos Produtivos Locais (APLs) e de Arranjos Produtivos Virtuais (APVs), com o suporte do SIAEXP, cujo escopo deve ser estendido a todo o território nacional. A expansão desse sistema de informações deverá incorporar dados de todos os produtores participantes dos APLs "priorizados" no País, dando visibilidade aos mesmos por meio de "vitrines virtuais" de seus produtos, a serem classificados por arranjo, por cadeia produtiva, por Unidade da Federação, entre outras categorias. Tal iniciativa deverá facilitar o trabalho de trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras na montagem das suas "cestas de fornecedores", a partir das NCMs dos bens com os quais elas trabalham. Dessa forma, essas empresas serão catalisadoras do processo de ganhos contínuos de competitividade de produtores de pequeno porte, participando, também, da inserção dos mesmos em negócios internacionais, pelas vertentes tanto de importação como de exportação. Nas questões atinentes à racionalização de sistemas logísticos, em especial os que envolvem agrupamentos de cargas por empresas comerciais importadoras e exportadoras, propõe-se a eliminação da exigência de recinto alfandegado para


competitivas, ficando os seus recintos de estocagem e os produtos por elas adquiridos no mercado doméstico para revenda no exterior sujeitos à fiscalização pela SRF e à comprovação de embarques. Tais procedimentos assegurarão as condições de equiparação de vendas diretas às feitas a trading companies e empresas comerciais importadoras e exportadoras.

Patrícia Cruz/Luz

os mesmos serem organizados, equiparando-se essas empresas, dessa forma, às trading companies. Em face da predominância do uso de contêineres na exportação de produtos manufaturados e de fortes ineficiências logísticas associadas a deslocamentos de unidades vazias, é fundamental que aquelas empresas tenham liberdade operacional para serem mais

Referências Bibliográficas (1) "Perfil das exportações, produtividade e tamanho das firmas no

(5) "Exportar para crescer", José Cândido Senna, Diário do Comércio,

Brasil", Victor Gomes e Roberto Ellery Jr., IPEA, Texto para discussão No. 1.087, abril de 2005.

(6)

(2) "Os problemas da empresa exportadora brasileira", CNI, 2008. (3) "THE 24-HOUR PROJECT FOR THE SANTOS PORT COMPLEX -

Improving the Productivity at the Largest Container Port in South America", José Cândido Senna, 2nd. Annual Harris County International Trade & Transportation Conference, Houston, USA, janeiro de 2010. (4)

"Inovação, via internacionalização, faz bem para as exportações brasileiras", Glauco Arbix, Mário Sérgio Salerno e João Alberto De Nigri, IPEA, Texto para Discussão No. 1.023, junho de 2004.

3 de abril de 2003. "Dobrando a exportação", José Cândido Senna, Diário do Comércio, 14 de março de 2003.

(7)

"Estudo da evolução do setor de tradings no Brasil - Diagnóstico da situação atual e proposições para o seu desenvolvimento", Fundação Getúlio Vargas - FGV, 2009.

(8) "DOBRANDO AS VENDAS EXTERNAS COM AS COMERCIAIS

EXPORTADORAS - Como conseguir US$ 100 bilhões de exportações", FACESP/ACSP, Diretrizes elaboradas pela ConTrader Comércio Exterior, Março de 2.000.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

85


Dida Sampaio/AE

A necessidade de fortaleci dos Estados-Membros d


mento das competências a Federação brasileira


Patrícia Cruz/Luz

Resumo O texto argumenta que um dos principais pilares de sustentação do Estado Federal é o exercício autônomo, pelos entes federativos, das competências legislativas e administrativas constitucionalmente distribuídas. Para atingir essa finalidade, é imprescindível a recuperação do exercício de competências legislativas pelos Estados-membros em matérias importantes e adequadas às peculiaridades locais.

Alexandre de Moraes É Professor Doutor e Livre-docente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado e Consultor Jurídico. Foi Promotor de Justiça em São Paulo (19912002), Secretário de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania (2002-2005) e membro da primeira composição do Conselho Nacional de Justiça (biênio 2005-2007). De 2007 a 2010 foi secretário municipal de Transportes, presidente da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) e da SPTrans (São Paulo Transportes Companhia de Gerenciamento e Fiscalização do Transporte Público na Capital), e também secretário municipal de Serviços. Este artigo constitui versão reformulada e ampliada de outro publicado nesta mesma revista (nº 455, setembro/outubro de 2009).

88

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Muitos mecanismos políticos, sociais e jurídicos podem ser apontados para alcançar esses resultados. No breve espaço desse estudo, foram destacados os seguintes: (1) alterações constitucionais; (2) real exercício das competências delegadas (parágrafo único, do art. 22 da CF); (3) efetivo exercício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) entre União e Estados-membros; (4) maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal no sentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderes remanescentes dos Estados-membros e reequilibre os entes-federativos; (5) utilização do princípio da subsidiariedade, em prática na União Europeia.

Introdução

A

manutenção do equilíbrio democrático depende do bom entendimento, definição, fixação de funções, deveres e responsabilidades entre os três Poderes, bem como a fiel observância da distribuição de competências, característica do pacto federativo, consagrado constitucionalmente no Brasil, desde a primeira Constituição Republicana, em 1891. A luta pela concretização democrática na América Latina, e, especialmente no Brasil, que seguiu os modelos federalista e presidencialista norte-americanos, tem gerado grandes debates sobre as difíceis escolhas sobre os modelos institucionais a serem implantados, os poderes e funções presidenciais, os controles e a fiscalização; bem como a divisão de competências entre União, Estados e Municípios. No processo dinâmico da História, o Estado Federal e presidencialista apresenta mudanças, inicialmente caracterizadas por um modelo idealizado fraco (Rei sem Coroa), que nunca chegou a existir ou ser aplicado na prática, logo se tornando, por um processo político autoritário e centralizador, em torno da figura da União e do presidente; e mais modernamente, em uma tentativa de ampliação dos poderes de controles parlamentares e judiciais em relação ao Executivo e à divisão constitucional de competências, para garantia de maior estabilidade democrática e força aos Estados-membros. Para tanto, é necessária a plasticidade indispensável ao mecanismo governamental que acabou por gerar, em todas as organizações políticas modernas, regras de centralização de competências na União e que tornaram forte o Presidente da República e o Congresso Nacional, ao mesmo tempo que se tentou prever controles que não o fizessem absorvente, mas uma força motriz do Estado que não degenerasse para uma verdadeira tirania, resguardando-se, dessa forma, o ideal democrático, a separação de poderes e a autonomia dos Estados-membros (1). Para argumentar pela distribuição de competências da União, este artigo foi organizado em quatro seções. A Seção 1 faz uma breve retrospectiva histórica do desenvolvimento do federalismo. A Seção 2 aborda o federalismo brasileiro e sua distribuição de competências e a seção seguinte ocupa-se da repartição de competências e o princípio da predominância do interesse. A Seção 4 é voltada para problemas no exercício da distribuição constitucional de competências da Constituição Brasileira. A Seção 5 apresenta conclusões da análise realizada.


1. Histórico e desenvolvimento do Federalismo

centros locais de poder, com autonomia de autogoverno e autoadministração, coordenado pelo poder central, cujas competências seriam indicadas expressamente pela Constituição FedeA história do federalismo inicia-se com a Constituição norral. A ideia de preservação da liberdade na elaboração do fedete-americana de 1787; a análise de suas características, bem coralismo não deixou de ser salientada por Alexis de Tocqueville, mo do desenvolvimento de seus institutos vem sendo realizaao comentar a formação da nação americana. (5) da desde os escritos de Jay, Madison e Hamilton, nos artigos O regime presidencialista e o federalismo dualista nascefederalistas, publicados sob o codinome Publius, durante os ram em um mesmo momento, sob o prisma da necessidade de, anos de 1787-1788, até os dias de hoje, e mostra que se trata de ao mesmo tempo, garantir as autonomias locais e preservar a um sistema baseado principalmente na manutenção de auunião e a coesão de todas as antigas colônias. Carl Friedrich tonomia dos Estados-membros, com a consagração de divisalienta com enorme clareza a ligação do Estado Federal com o são constitucional de competências (2). Em 1887, em seu centenário, o estadista inglês William presidencialismo, ao colocar como um dos três elementos báGladstone afirmou que a Constituição dos Estados Unidos sicos do federalismo a existência de um órgão executivo que "era a mais maravilhosa obra jamais concebida num momento possa aplicar as leis aprovadas pelo Legislativo. (6) Note-se, porém, que a evolução do federalismo dual, para dado pelo cérebro e o propósito do homem". um modelo de federalismo centrípeto e cooperativo, possibiÉ importante salientar, dentro dessa perspectiva da "mais litou maior centralização de poderes na União, seja no Presimaravilhosa obra jamais concebida", que as questões do fededente da República, seja no ralismo e do regime presiCongresso Nacional. dencialista foram duas das Reprodução A característica básica do mais discutidas durante a federalismo dualista, presenConvenção norte-americate nos Estados Unidos nos séna. Assim, a Constituição culos 18, 19 e início do 20, era a dos Estados Unidos da Améexistência de duas esferas de rica foi aprovada por estreita poderes estanques, em que a margem de convencionais. divisão de poder entre a Nas convenções de ratificaUnião e os governos estação nos Estados, poucos voduais era prevista diretamentos separaram as forças próte no texto constitucional; baConstituição (os federalistas, seava-se na ideia de dois como eram chamados) e os campos de poder mutuaopositores derrotados da mente exclusivos e reciproConstituição (conhecidos camente limitadores, pelo como antifederalistas). A história do federalismo inicia-se com a qual os Estados e a União teLuca Levi lembra que, "a Constituição norte-americana de 1787. riam suas áreas exclusivas de federação constitui, portanautoridade.(7) to, a realização mais alta dos Após esse primeiro moprincípios do constitucionamento do federalismo, as condições da conjuntura política e ecolismo. Com efeito, a ideia do Estado de direito, o Estado que nômica, principalmente depois da crise econômica dos anos de submete todos os poderes à lei constitucional, parece que pode 1930 e a partir das medidas adotadas no New Deal, trouxeram encontrar sua plena realização somente quando, na fase de grandes alterações ao federalismo norte-americano e acabaram uma distribuição substancial das competências, o Executivo por gerar um novo modelo federal americano (8), mais centrípeto e o Judiciário assumem as características e as funções que têm (3) e cooperativo, e caracterizado, principalmente, como salientado no Estado Federal." A Federação americana, portanto, nasceu adotando a necespor Karl Loewestein, pelo aumento do poder político do Presisidade de um poder central com competências suficientes para dente da República, aumentando sua característica centralizamanter a união e coesão das antigas colônias, garantindo-lhes, dora e de personificação dos interesses do país. (9) O federalismo clássico, como concebido inicialmente pelos como afirmado por Hamilton, a oportunidade máxima para a fundadores norte-americanos, foi muito abalado, principalconsecução da paz e liberdade contra o facciosismo e a insurmente, pelas questões econômicas, que exigiram do Poder reição (The Federalist papers, nº IX) e permitindo à União reaCentral maior unidade decisória e comando. Consequentelizar seu papel aglutinador dos diversos Estados-membros e mente, gerou aumento gradativo de poder político ao Conde equilíbrio no exercício das diversas funções constituciogresso Nacional, em detrimento das Assembleias locais (10). nais delegadas aos três poderes de Estado. Dessa forma, à evolução centralizadora do federalismo corresComo bem descreve Malbin, "a intenção dos elaboradores pondeu um maior fortalecimento do regime presidencialista da Carta Constitucional Americana foi justamente estimular e de governo e do Legislativo Nacional. incentivar a diversidade, transcendendo as facções e trabaA evolução do federalismo e o fortalecimento do presidencialhando pelo bem comum". (4) A Carta norte-americana consagrou, ainda, a pluralidade de lismo, portanto, caminharam conjuntamente, como concorda

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

89


Bernard Schwartz, ao analisar o fortalecimento do Governo Nacional, ensinando ser o atual federalismo americano caracterizado pelo predomínio da autoridade federal, para concluir que "o sistema social e econômico americano tem estado sujeito cada vez mais à regulamentação e ao controle por Washington. O poder do Governo Nacional sobre o comércio é interpretado de modo a sujeitar até mesmo empreendimentos com somente efeito remoto sobre a economia nacional a minuciosas normas federais. E, à medida que a autoridade da Nação a este respeito cresceu, a dos estados sofreu correspondente decréscimo, pois a ação estadual, no sistema americano, é barrada quando é validamente exercido o poder federal incompatível com ela" (11). Prevaleceu, portanto, no federalismo norte-americano, a ideia de fortalecimento do Congresso Nacional e hipertrofia na criação do presidencialismo e da figura central do Presidente da República, tendo salientado Isaac Kramnic, que há poucos símbolos mais importantes da Revolução de 1787 que o espantoso poder que a Constituição deu ao novo primeiromagistrado, encarnação do ideal de autoridade, governo e poder. O presidente dos Estados Unidos era um legislador que com uma penada estava autorizado a vetar leis congressuais, só podendo ser vencido nesses casos por dois terços do Congresso. Era um líder militar no comando total das forças armadas. Era o supremo magistrado que podia perdoar crimes contra a nação, podia nomear todos os juízes federais, podia fazer todos os tratados, com o conselho e a aprovação do Senado. Se reeleito, podia governar sem limites: a exigida rotatividade no cargo seria apenas uma das vítimas de 1787. Para Edmund Randolph, isso era demais: ali estava o feto da monarquia. Na grande discussão nacional que se seguiu, os antifederalistas proclamavam que o executivo delineado no artigo 2 da Constituição era presidente-general, ou, mais propriamente, nosso rei, que tinha poderes que excediam os dos mais despóticos monarcas de que temos notícia nos tempos modernos (12). Alan Schein/Folhapress

O federalismo clássico, como concebido inicialmente pelos fundadores norte-americanos, foi muito abalado, principalmente, pelas questões econômicas, que exigiram do Poder Central maior unidade decisória e comando.

90

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Obviamente, essa evolução gerou reflexos importantíssimos na distribuição de competências administrativas e legislativas entre a União e os Estados Membros em todos os países que seguiram o modelo norte-americano, inclusive, no Brasil. Aqui, apesar dos diversos constituintes, desde 1891 até 1988, terem criado e mantido o modelo de Estado Federal, com união indissolúvel dos entes, que possuem auto-organização, autogoverno e auto-administração, no modelo proposto pelos norte-americanos, não resta dúvidas de que houve gradual redução nas competências legislativas dos Estados-membros. A Constituição Republicana de 1891 previu importante sistema de repartição de competências, com matérias taxativas e não tão abrangentes à União e conferindo aos Estados-membros "em geral, todo e qualquer outro poder ou direito, que lhes não for negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição" (art. 65, §2º). Tal texto bastou para que alguns Estados se declarassem soberanos (Bahia, Goiás, Mato Grosso e Piauí), outros autônomos e soberanos (Paraná) e, ainda, independente e soberano (Rio de Janeiro). A ideia de ampla autonomia dos Estados-membros na Federação foi detalhada por João Barbalho, ao afirmar que "isto indica que as Constituições dos Estados não estão obrigadas a segui-la (Constituição Federal) inteiramente à risca, a modelarem-se completamente por ela, sem divergir em alguns pontos, contanto que não sejam fundamentais. E bem o compreenderem eles no organizarem seus governos apartando-se em alguma cousa do modelo federal" (13). Igual ideia de autonomia federativa teve seus reflexos políticos no Brasil, com o fortalecimento das estruturas políticas oligárquicas, que contribuíram para a Reforma Constitucional de 1926, com claro fortalecimento e centralização na União. A Constituição de 1934 tentou reequilibrar o sistema, trazendo - pela primeira vez no direito constitucional brasileiro - o modelo


da Constituição alemã de 1919, das competências concorrentes. Na Constituição de 1937, houve referência à delegação da União aos Estados-membros da faculdade de legislar. A ruptura democrática e institucional até 1945, fez com que o modelo federativo da Constituição de 1946 se situasse como tema central, principalmente a autonomia dos Estados-membros, porém não houve acentuação da centralização de competências legislativas na União; o mesmo, ocorrendo com a Constituição de 1967. A tradição de centralização das competências legislativas na União corrobora as críticas feitas por Castro Nunes ao analisar as competências legislativas do Estado-membro, caracterizando-o como "mutilado em suas atribuições, sem atenção ao regimen de poderes separados que é da essência das instituições democrático-republicanas"(14).

taxativa de intervenção federal, para manutenção do equilíbrio federativo; participação dos Estados no Poder Legislativo Federal, de forma a permitir-se a ingerência de sua vontade na formação da legislação federal; possibilidade de criação de novo Estado ou modificação territorial de Estado existente dependendo da aquiescência da população do Estado afetado; a existência de um órgão de cúpula do Poder Judiciário para interpretação e proteção da Constituição Federal. Note-se que, expressamente, o legislador constituinte determinou a impossibilidade de qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir a Federação (CF, art. 60, § 4o, I). Assim, a autonomia dos Estados-membros caracterizase pela denominada tríplice capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno Reprodução e auto-administração. 2. Federalismo brasileiro e Os Estados-membros se auto-organizam distribuição de competências por meio do exercício de seu poder constituinte derivado-decorrente, consubstanciando-se A Constituição de 1988 manteve a tradição na edição das respectivas Constituições Estarepublicana, adotando o federalismo, forma duais e, posteriormente, através de sua próde Estado que gravita em torno do princípio pria legislação (CF, art. 25, caput), sempre, poda autonomia e da participação política e rém, respeitando os princípios constituciopressupõe a consagração de certas regras nais sensíveis, princípios federais extensíveis constitucionais, tendentes não somente à sua e princípios constitucionais estabelecidos (17). Como já decidiu o Supremo Tribunal configuração, mas também à sua manutenFederal, "se é certo que a nova Carta Políção e indissolubilidade. tica contempla um elenco menos abranComo ressaltado por Geraldo Ataliba, "exgente de princípios constitucionais sensísurge a Federação como a associação de Esveis, a denotar, com isso, a expansão de potados (foedus, foederis) para formação de noNo Brasil, a Constituição deres jurídicos na esfera das coletividavo Estado (o federal) com repartição rígida de Republicana de 1891 des autônomas locais, o mesmo não se atributos da soberania entre eles. Informa-se previu ampla autonomia pode afirmar quanto aos princípios fedeseu relacionamento pela 'autonomia recíproaos Estados-membros. rais extensíveis e aos princípios constituca da União e dos Estados, sob a égide da cionais estabelecidos, os quais, embora Constituição Federal' (Sampaio Dória), cadisseminados pelo texto constitucional, racterizadora dessa igualdade jurídica (Ruy posto que não é tópica a sua localização, configuram acervo Barbosa), dado que ambos extraem suas competências da mesexpressivo de limitações dessa autonomia local, cuja idenma norma (Kelsen). Daí cada qual ser supremo em sua esfera, tificação - até mesmo pelos efeitos restritivos que deles detal como disposto no Pacto Federal (Victor Nunes)"(15). O mínimo necessário para a caracterização da organização correm - impõe-se realizar" (18) . Os princípios constitucionais sensíveis são assim denoconstitucional federalista exige, inicialmente, a decisão do leminados, pois a sua inobservância pelos Estados-memgislador constituinte, por meio da edição de uma constituição, bros no exercício de suas competências legislativas, admiem criar o Estado Federal e suas partes indissociáveis, a Fedenistrativas ou tributárias, pode acarretar a sanção politicaração ou União, e os Estados-membros, pois a criação de um mente mais grave existente em um Estado Federal, a intergoverno geral supõe a renúncia e o abandono de certas porções venção na autonomia política. Estão previstos no art. 34, de competências administrativas, legislativas e tributárias por VII, da Constituição Federal: forma republicana, sistema reparte dos governos locais (16). Além disso, a Constituição deve estabelecer os seguintes presentativo e regime democrático; direitos da pessoa huprincípios: os cidadãos dos diversos Estados-membros ademana; autonomia municipal; prestação de contas da admirentes à Federação devem possuir a nacionalidade única nistração pública, direta e indireta; aplicação do mínimo dessa; repartição constitucional de competências entre a exigido da receita resultante de impostos estaduais, comUnião, Estados-membros, Distrito Federal e município; preendida a proveniente de transferências, na manutenção necessidade de que cada ente federativo possua uma ese no desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços púfera de competência tributária que lhe garanta renda próblicos de saúde. pria; poder de auto-organização dos Estados-membros, Os princípios federais extensíveis são as normas centrais Distrito Federal e municípios, atribuindo-lhes autonomia comuns à União, Estados, Distrito Federal e municípios, constitucional; possibilidade constitucional excepcional e portanto, de observância obrigatória no poder de organi-

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

91


zação do Estado. Poder-se-iam colocar nessa classificação os chamados por Raul Machado Horta de "Princípios desta Constituição" (19). Por fim, os princípios constitucionais estabelecidos consistem em determinadas normas que se encontram espalhadas pelo texto da Constituição, e, além de organizarem a própria federação, estabelecem preceitos centrais de observância obrigatória aos Estados-membros em sua auto-organização. Subdividem-se em normas de competência (20). A autonomia estadual também se caracteriza pelo autogoverno, uma vez que é o próprio povo do Estado quem escolhe diretamente seus representantes nos Poderes Legislativo e Executivo locais, sem que haja qualquer vínculo de subordinação ou tutela por parte da União. A Constituição Federal prevê expressamente a existência dos Poderes Legislativo (CF, art. 27), Executivo (CF, art. 28) e Judiciário (CF, art. 125) estaduais(21). A própria Constituição Federal (art. 27) estabelece regras na composição do Poder Legislativo Estadual, determinando sua unicameralidade, sua denominação - Assembléia Legislativa , a duração do mandato dos deputados (quatro anos - STF, Pleno, ADI ³825, Rel. Min. Carmen Lúcia) as regras sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades (STF,"Pleno, RE 456679/DF- rel. Min. Sepúlveda Pertence), remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas; as regras sobre remuneração e previsão sobre iniciativa popular de lei, bem como duas regras para fixação do número de deputados estaduais. Em relação ao Poder Executivo estadual, o art. 28 da Constituição Federal com a nova redação dada (pela Emenda constitucional no 16, de 4-6-1997, estabelece que á0elåição do Governador e do Vice-governador de Estado, pira mandato de quatro anos, permitindo-se a reeleição para um único período subseqüente, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e"no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato de seus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro de janeiro do ano subseqüente. Além disso, expressamente determina a aplicação das regras previstas pare a eleição e posse do Presidente da República (CF, art. 77). Determina, também, que perderá o mandato o governador que assumir outro cargo ou função na administração pública direta ou indireta, ressalvada a posse em virtude de concurso público e observado o disposto no art. 38, I, IV e V da própria Constituição Federal. Além disso, a Constituição Federal prevê que os subsídios do Governador, do Vice-governador e dos Secretários de Estado serão fixados por lei de iniciativa da Assembléia Legislativa, observando o que dispõem os arts. 37, XI, 39, § 4o, 150, II, 153, III, e 153, § 2o, I. Por fim, completando a tríplice capacidade garantidora da autonomia dos entes federados, os Estados-membros se autoadministram no exercício de suas competências administrativas, legislativas e tributárias definidas constitucionalmente. Saliente-se que, está implícita, no exercício da competência tributária, a existência de um mínimo de recursos financeiros, obtidos diretamente através de sua própria competência tributária.

92

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

3. Repartição de competências e o princípio da predominância do interesse A autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências legislativas, administrativas e tributárias sendo, pois um dos pontos caracterizadores e asseguradores do convívio no Estado Federal. A própria Constituição Federal estabelecerá as matérias próprias de cada um dos entes federativos, União, Estadosmembros, Distrito Federal e municípios, e a partir disso poderá acentuar a centralização de poder, ora na própria Federação, ora nos Estados-membros. O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse. Assim, pelo princípio da predominância do interesse, à União caberá aquelas matérias e questões de predominância do interesse geral, ao passo que aos Estados referem-se as matérias de predominante interesse regional e aos municípios concernem os assuntos de interesse local. Em relação ao Distrito Federal, por expressa disposição constitucional (CF,


Luiz Novaes/Folhapress

A Constituição de 1988 manteve a tradição republicana, adotando o federalismo, forma de Estado que gravita em torno do princípio da autonomia e da participação política e pressupõe a consagração de certas regras constitucionais, tendentes não somente à sua configuração, mas também à sua manutenção e indissolubilidade.

art. 32, § 1o), acumulam-se, em regra, as competências estaduais e municipais, com a exceção prevista no art. 22, XVII, da Constituição. O legislador constituinte, adotando o referido princípio, estabeleceu quatro pontos básicos no regramento constitucional para a divisão de competências administrativas e legislativas: (1) Reserva de campos específicos de competência administrativa e legislativa (União - Poderes enumerados, CF, arts. 21 e 22; Estados - Poderes remanescentes, CF, art. 27 §1º, Município - Poderes enumerados, CF, art. 30; Distrito Federal - Estados + Municípios, CF, art. 32. § 1o); (2) Possibilidade de delegação (CF, art. 22, parágrafo único; Lei complementar federal poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias de competência privativa da União); (3) Áreas comuns de atuação administrativa paralela (CF, art. 23); (4) Áreas de atuação legislativa concorrente (CF, art. 24) À União, a Constituição Federal enumerou competências

administrativas e legislativas. Aos Estados-membros são reservadas as competências administrativas que não lhes sejam vedadas pela Constituição, ou seja, cabem na área administrativa privativamente ao Estado todas as competências que não forem da União (CF< art. 21), dos municípios (CF, art. 30) e comuns (CF, art. 23). É a chamada competência remanescente dos Estadosmembros, técnica clássica adotada originariamente pela Constituição norte-americana e por todas as Constituições brasileiras, desde a República, e que presumia o benefício e a preservação de autonomia destes em relação à União, uma vez que a regra é o governo dos Estados, a exceção o Governo Federal, pois o poder reservado ao governo local é mais extenso, por ser indefinido e decorrer da soberania do povo, enquanto o poder geral é limitado e se compõe de certo modo de exceções taxativas. Em seu art. 30, o texto constitucional determina competir aos municípios os assuntos de interesse local. Não poucas vezes, a aplicação do princípio da predominância do interesse é esquecida no Brasil, em detrimento dos Estados-membros e, em benefício da centralização na União.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

93


4. Problemas no exercício da distribuição constitucional de competências da Constituição Brasileira

taria a ferir a cláusula pétrea prevista no inciso I, do artigo 60, do texto magno ("Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado"), uma vez que, essa proposta estaria plenamente de acordo com os Se teoricamente, a Constituição Republicana de 1988 adotou objetivos fundamentais da República, entre eles, o de reduzir a clássica repartição de competências federativas, prevendo as desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, III). um rol taxativo de competências legislativas para a União e, Sem qualquer necessidade de alteração constitucional, o dessa forma, mantendo os poderes remanescentes dos EstaREAL EXERCÍCIO DAS COMPETÊNCIAS DELEGADAS dos-membros; na prática não se verifica tal equilíbrio, exata(PARÁGRAFO ÚNICO, DO ART. 22 DA CF) poderia encontrar mente, pelas matérias descritas no artigo 22 do texto constituum ponto de equilíbrio federativo entre UNIÃO e ESTADOS. cional e pela interpretação política e jurídica que, tradicionalEm seu parágrafo único, o artigo 22 do texto constituciomente, se dá ao seu artigo 24. nal prevê que lei complementar poderá autorizar os Estados Ao verificarmos as matérias do extenso rol de 69 incisos e a legislar sobre questões específicas das matérias relacionaum parágrafo do artigo 22 da CF/88, é facilmente perceptível das neste artigo. o desequilíbrio federativo no tocante à competência legislaDessa forma, todas as importantes matérias de competência tiva entre União e Estados-membros, uma vez que, há a preda União descritas no artigo 22 do texto constitucional podem visão de quase a totalidade das matérias legislativas de ser delegadas aos Estados-membros, desde que: (a) seja apromaior importância para a União (direito civil, vada lei complementar pelo Congresso Naciocomercial, penal, processual, eleitoral, agránal; (b) sejam indicados os pontos delegados; rio, marítimo, aeronáutico, espacial e do tra(c) a delegação não gere discriminação entre os Em seu balho, desapropriação, águas, energia, inforEstados-membros. mática, telecomunicações, radiodifusão, serEsse instrumento seria importantíssimo, parágrafo único, o viço posta, comércio exterior e interestadual, por exemplo, para que cada Estado-membro, artigo 22 do texto diretrizes da política nacional de transportes, atento às suas peculiaridades, pudesse disciconstitucional regime de portos, navegação lacustre, fluvial, plinar pontos específicos das diversas matéprevê que lei marítima, aérea e aeroespacial, trânsito e rias (22), como por exemplo, relações comercomplementar ciais, ou ainda, do direito agrário – cuja realitransporte, diretrizes e bases da educação nadade é diferente no Estado do Amazonas e em cional, registros públicos etc.). poderá autorizar São Paulo –, no direito trabalhista, igualmente Além disso, a tradicional interpretação políos Estados a de realidades diversas; e, mesmo, no tocante ao tica e jurídica que vem sendo dada ao artigo 24 legislar sobre direito processual civil e penal. do texto constitucional, no sentido de que nas questões Como exemplo do exercício dessa delegação diversas matérias de competência concorrente específicas das específica, o Estado de São Paulo editou as leis orentre União e Estados, a União pode disciplinádinárias nºs 12.640/07 e 12.967/08 (instituição de las quase integralmente, temos o resultado da matérias pisos salariais para os trabalhadores que especidiminuta competência legislativa dos Estadosrelacionadas ficou), nos termos da delegação contida na Lei membros; gerando a excessiva centralização neste artigo. complementar nº 103, de 14 de julho de 2000. nos poderes legislativos na União, o que caracAinda, no campo das competências concorteriza um grave desequilíbrio federativo. rentes, especificamente ao Direito Agrário, em O reequilíbrio na distribuição das compeconjunto com a possibilidade de delegação administrativa, é tências federativas pode ser realizado em cinco campos: (1) Alpossível por intermédio de convênios uma maior atuação dos terações constitucionais; (2) Real exercício das competências Estados-Membros em assunto de vital importância para o delegadas (parágrafo único, do art. 22 da CF); (3) Efetivo exerPaís, como a reforma agrária. cício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) entre A Constituição Federal concedeu à União a competência priUnião e Estados-membros; (4) Maior atuação perante o Suprevativa para desapropriar por interesse social, para fins de reforma mo Tribunal Federal no sentido de evolução jurisprudencial agrária, o imóvel rural, entendendo-se reforma agrária como o que valorize os poderes remanescentes dos Estados-membros conjunto de notas e planejamentos estatais mediante intervenção e reequilibre os entes-federativos e (5) Adoção do princípio da do Poder Público na economia agrícola com a finalidade de prosubsidiariedade, em prática na União Europeia. mover a repartição da propriedade e renda fundiária. No tocante as ALTERAÇÕES CONSTITUCIONAIS, há a O Governo do Estado de São Paulo, porém, durante os úlpossibilidade, dentro de um grande acordo político que pretimos 10 anos, vem realizando, em convênio com o INCRA, a serve a autonomia dos entes federativos, da edição de emenda maior programa de reforma agrária já visto nesse Estado, tenconstitucional com a migração de algumas competências dedo entregado mais de 10.000 títulos referentes à regularização finidas atualmente como privativas da União para o rol de fundiária; bem como encaminhado à Procuradoria-Geral do competências remanescentes dos Estados-membros e outras Estado o correspondente a mais de 400.000 hectares para o ajuipara as competências concorrentes entre União e Estadoszamento de ações discriminatórias (discussão de áreas devomembros, para que nesses assuntos, as peculiaridades regiolutas), para a realização de futuros assentamentos. nais sejam consideradas. Essa alteração constitucional não es-

94

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


O Estado atua mediante a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), cuja função precípua é propiciar a democratização do acesso a terra, planejando e executando as políticas agrárias e fundiárias no âmbito do Estado de São Paulo. A Fundação ITESP, que resulta da fusão de vários órgãos estatais cuja atuação nas questões agrárias e fundiárias existe desde a década de 60 do século passado, mantém mais de 700 profissionais (entre técnicos agrícolas, engenheiros agrônomos, assistentes sociais, veterinários, zootecnistas e apoio administrativo) para o atendimento direto a mais de 10.000 famílias assentadas no Estado. O Estado de São Paulo vem cumprindo, dentro de seu rol de atribuições, a missão constitucional de promoção e repartição da propriedade e renda fundiária, mediante os requisitos constitucionais previstos, demonstrando a importância da descentralização em atividades de tamanha importância e a valorização da atuação dos Estados-membros. Apesar do tímido exercício desse mecanismo, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei complementar visando a concessão de delegações (PLP n. 272/90; PLP 33/03; PLP 47/03; PLP 136/07 - na Câmara dos Deputados, que autorizam os Estados a legislar sobre a mobilidade urbana, a partir das diretrizes nacional que estabelece; e PLS n. 21/2005; PLS 52/2007 - no Senado Federal, que autorizam os Estados a legislar sobre direito penal em questões específicas que define). Para o efetivo exercício das competências concorrentes (artigo 24 da CF) entre União e Estados-membros, o art. 24 da Constituição Federal prevê as regras de competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal, estabelecendo quais matérias deverão ser regulamentadas de forma geral por aquela e específica por esses. No âmbito da legislação concorrente, a Constituição brasileira estabeleceu a legislação concorrente não cumulativa, ou seja, a chamada repartição vertical, pois, dentro de um mesmo

campo material (concorrência material de competência), reserva-se um nível superior ao ente federativo União, que deve somente fixar os princípios e normas gerais, deixando-se ao Estado-membro a complementação, com a edição de regras complementares e específicas. Como apontou Raul Machado Horta, "a legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais. A Lei Fundamental ou de princípios servirá de molde à legislação local. É a Rahmengesetz, dos alemães; a Legge-cornice, dos italianos; a Loi de cadre, dos franceses; são as normas gerais do Direito Constitucional Brasileiro (23). Assim, ao adotar a competência concorrente não-cumulativa ou vertical, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais, devendo os Estados e o Distrito Federal especificá-las, através de suas respectivas leis, o texto constitucional seguiu orientação da Constituição de Weimar (art. 10), que consiste em permitir ao governo federal a fixação das normas gerais, sem descer a pormenores, cabendo aos Estados-membros a adequação da legislação às peculiaridades locais. Para exemplificar a importância desse mecanismo, é importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal entendeu no tocante à acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais no transporte coletivo intermunicipal, existir competência concorrente, cabendo aos Estados-membros a competência legislativa plena para normas específicas, como por exemplo, exigência de adaptação de veículos (24). Ocorre, entretanto, que os Estados-membros são extremamente tímidos na edição da legislação complementar, aceitando sem qualquer contestação a legislação federal que - em matéria concorrente - acaba por disciplinar tanto os princípios e regras gerais, quanto as normas específicas.

Sergio Lima/Folhapress

A legislação federal é reveladora das linhas essenciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exigências estaduais. A Lei Fundamental ou de princípios servirá de molde à legislação local.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

95


Medida de reflexos imediatos, a MAIOR ATUAÇÃO PEexercício das competências legislativas concorrentes e nas RANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO SENTIDO competências administrativas comuns – , seja prestigiar a DE EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL QUE VALORIZE OS atuação preponderante do ente federativo em sua esfera de poPODERES REMANESCENTES DOS ESTADOS-MEMBROS der na proporção de sua maior capacidade para solucionar a poderia, em pouco tempo, garantir um maior equilíbrio entre matéria de interesse do cidadão. os entes-federativos. Exemplificativamente, há no Congresso Nacional, o PLP A doutrina aponta a tendência do Supremo Tribunal Fede388/07, de iniciativa presidencial (MSC 37/2007), que prevê a ral, principalmente na esfera das competências concorrentes, edição de lei complementar que fixará, nos termos do parágraem dirimir eventuais dúvidas a favor da União (25). Porém, é fo único do artigo 23 da CF, normas para a cooperação entre perceptível que a atual composição do Supremo Tribunal FeUnião, Estados-membros e Municípios nas ações administraderal vem repensando esse modelo centralizador fixado prétivas decorrentes do exercício da competência comum. constituição de 1988, o que demonstra a necessidade de um trabalho de conscientização dos Ministros da Corte Suprema 5. Conclusões nos julgamentos mais importantes. A título de exemplo, demonstrando a flexibilização de poO texto pretendeu demonstrar a inexistência de dúvidas sosicionamento até então arraigado no STF, sobre a necessidade bre a intensa ligação entre separação de poderes, autonomias, dos Estados-memliberdades e federaSergio Lima/Folha Imagem bros observarem ril i s m o , p r i n c i p a lgorosamente princímente, levando-se pios estruturais insem conta que a titucionais da maior autonomia União, decidiu a local para legislar, Corte, em relação à em importantes mainvestidura ao cargo térias, significa um de Procurador-Gemaior controle soral do Estado de São bre o centralismo e Paulo, a possibilidaarbítrio estatal (27). U m d o s p r i n c ide de a Constituição pais pilares de susEstadual prever a tentação do Estado obrigatoriedade da Federal é o exercíescolha ser realizada cio autônomo, peentre integrantes da los entes federaticarreira, mesmo senvos, das competêndo diferente do mocias legislativas e delo federal de escoÉ perceptível que a atual composição do Supremo Tribunal Federal vem administrativas lha do Advogadorepensando esse modelo centralizador fixado pré-constituição de 1988. c o n s t i t u c i o n a lGeral da União (26). Por fim, o texto mente distribuídas. constitucional ofePara atingir essa firece mecanismos para que, com a edição de leis complemennalidade, é imprescindível a recuperação do exercício de tares em importantes matérias, passe a ser adotado no Brasil, competências legislativas pelos Estados-membros em macom as devidas adaptações, o princípio da subsidiariedatérias importantes e adequadas às peculiaridades locais. de, já em prática na União Européia, por meio de protocolo Logicamente, muitos mecanismos políticos, sociais e jurídidatado de outubro de 1992. cos podem ser apontados para a obtenção desses resultados; Nessa data, o Conselho Europeu de Birminghan reafirmou porém, no breve espaço desse estudo, foram destacadas as que as decisões da União Europeia deveriam ser tomadas o seguintes possibilidades: mais próximo possível do cidadão. Sob essa ótica, o Conselho (1) Alterações constitucionais; Europeu de Edimburgo, em Dezembro de 1992, definiu uma (2) Real exercício das competências delegadas (parágrafo abordagem global para a aplicação do princípio da subsidiaúnico, do art. 22 da CF); riedade, prevendo princípios fundamentais, diretrizes e pro(3) Efetivo exercício das competências concorrentes (artigo cedimentos; sempre com a finalidade de prestigiar as comu24 da CF) entre União e Estados-membros; nidades regionais. (4) Maior atuação perante o Supremo Tribunal Federal no Dessa forma, as propostas legislativas da União Européia sentido de evolução jurisprudencial que valorize os poderes devem analisar se os objetivos da ação proposta podem ser suremanescentes dos Estados-membros e reequilibre os entesficientemente realizados pelos Estados-membros, bem como federativos; quais serão seus reflexos e efeitos. (5) Utilização do princípio da subsidiariedade, em prática A ideia aplicada à federação brasileira – principalmente, no na União Europeia.

96

DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


Notas (1) Conferir a esse respeito: MARCH, James G., OLSEN, Johan p.

O novo institucionalismo: fatores organizacionais na vida política. Revisão de Ciência política Americana nº 78, set. 1984 p. 738; RAE, Douglas. A conseqüência política de leis eleitorais. New Heaven: Imprensa da Universidade de Yale, 1967. p. 30 ss; SHUGART, Mathew Soberg, CAREY, John. Presidentes e Assembléias. Cambridge: Imprensa da Universidade de Cambridge, 1992, p. 11 ss; MCCUB- BIN, Mathew, SULLIVAN, Terry. Congresso: estrutura e política. Cambridge: Imprensa da Universidade de Cambridge, 1987, p. 13 ss. (2) COOLEY, Thomas McIntyre. The general principles of constitutional law in the United States of America. 3ª ed. Boston: Little, Brown and Company, 1898. p. 52; ROBISON, Donald L. To the best of my ability: the presidency the constitution. New York: W. W. Norton & Company, 1987. p. 18-19. (3) BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco (Coord.) Dicionário de política. v. I, p. 482. Conferir, ainda: DUVERGER, Maurice. Droit constitutionnel et institutions politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. p. 265. (4) MALBIN, J. Michel. A ordem constitucional americana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 144. (5) TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América: leis e costumes. São Paulo : Martins Fontes, 1988. p. 37 ss. (6) FRIEDRICH, Carl J. Gobierno constitucional y democracia. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1975. p. 405. (7) SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 26-27. Conferir ainda: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso...Op. cit. p. 52. (8) Conferir, nesse sentido, diversas decisões da Corte Suprema Norte-Ame- ricana: Shechter, Sunshine v. Adkins, Junta Nacional de Relações trabalhistas v. Jones & Lauglin Steel Corp, ambas de 1940, Kirschbaum v. Walling (1946), Martino v. Michigan Window Cleaning Co. (1946), Mabee v. White Plains Pub. Co. (1946), entre outros. (9) LOEWESTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1962. p. 362. (10) BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral do federalismo. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 317. (11) SCHWARTZ, Bernard. O federalismo norte-americano. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1984. p. 74. (12) Comentários de Isaac Kramnic, na apresentação da obra. MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John. The Federalist papers 1787 - 1788. Edição integral. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 27. (13) BARBALHO, João. Constituição Federal Brasileira (1891). Ed. fac-similar. Brasília: Senado Federal: Conselho Editorial, 2002. p. 267. (14) NUNES, José de Castro. As constituições estaduaes no Brasil. Rio de Janeiro: Edit. Leite Ribeiro, 1922, t. 1, p. 68. (15) ATALIBA, Geraldo. República e constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985. p. 10. (16) BADIA, Juan Fernando. El estado unitário: El federal y El estado reginal. Madri: Tecnos, 1978, p. 77). Essa decisão está consubstanciada nos arts. 1o e 18 da Constituição de 1988 (conferir, a respeito: (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Estado

federal brasileiro na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo, no 179, p. 1; HORTA, Raul Machado. Tendências atuais da federação brasileira. Cadernos de direito constitucional e ciência política, no 16, p. 17; e, do mesmo autor: Estruturação da federação. Revista de Direito Público, no 81, p. 53; VELLOSO, Caio Mário. Estado federal e estados federados na Constituição brasileira de 1988: do equilíbrio federativo. Revista de Direito Administrativo, no 187, p. 1; MARINHO, Josaphat. Rui Barbosa e a federação. Revista de Informação Legislativa, no 130, p. 40; FAGUNDES, Seabra. Novas perspectivas do federalismo brasileiro. Revista de Direito Administrativo, no 99, p. 1. (17) SILVA, José Afonso. O Estado-membro na Constituição Federal. RDP 16/15. (18) STF, Pleno, ADI 216/PB, Rel. Min. Celso de Mello; RTJ 146/388. (19) Por exemplo, arts. 1o, I a V; 3o, I a IV; 4o, I a X; 2o; 5o, I, II, III, VI, VIII, IX, XI, XII, XX, XXII, XXIII, XXXVI, LIV e LVII; 6o a 11; 93, I a XI; 95, I, II e III. In: MACHADO, Horta. Estudos de direito constitucional. p. 391-392. (20) Por exemplo: arts. 23; 24; 25, 27, § 3o; 75; 96, I, a-f; 96, II, a-d, III; 98, I e II; 125, § 4o; 144, § 4o, 5o e 6o; 145, I, II e III; 155, I, a,b, c, II. In: MACHADO, Horta. Op. cit., p. 392-393) e normas de preordenação (por exemplo: arts. 27; 28; 37, I a XXI, §§ 1o a 6o; 39 a 41; 42, §§ 1o a 11; 75; 95, I,II e III; 95, parágrafo; 235, I a XI. In: MACHADO, Horta. Op. cit. p. 393. (21) Conferir: CLÉVE, Clèmerson Merlin. Temas de direito constitucional. São Paulo: Acadêmica, 1993. p. 62-63; SILVA, José Afonso. O estado-membro na constituição federal; RDP, 16/15. Na vigência da Constituição anterior, Paulo Lopo Saraiva, analisando a correlação entre autonomia dos Estados-membros e Federação, advertia que "a indicação dos governadores dos Estados, a nomeação de um Senador - CF, art. 41, § 2o, alterado pela EC no 15, de 19-11-1980-, e a designação dos prefeitos das Capitais e de outras cidades brasileiras atestam a falência do nosso Federalismo e a ascensão de um Unitarismo, despido de qualquer formulação jurídica", in Federalismo regional. Op. cit. p. 55. (22) Conferir a respeito: ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988I. São Paulo: Atlas, 1991. (23) MACHADO HORTA, Raul. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 366. (24) STF, Pleno, ADI 903/6, Rel. Min. Celso de Mello. 25) CF. a respeito: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Temas de Direito Constitucional Estadual e questões sobre o pacto federativo. São Paulo: Assembléia Legislativa de São Paulo, 2004. p. 160; TAVARES, André Ramos. Temas de Direito Constitucional estadual e questões sobre o Pacto Federativo. São Paulo: Assembléia Legislativa de São Paulo, 2004, p. 166. (26) STF, Pleno, ADI 2581/SP, Rel. Min. Maurício Correa. (27) Em relação a esse tema, consultar importante artigo que analisa detalhadamente a posição dos Juízes da Suprema Corte norteamericana O'Connor e Scalia, em defesa da maior autonomia local GELFAND, M. David, WERHAN, Keith. Federalism and separation of powers on a 'conservation' Court: currents and crosscurrents from justices O'connor and Scalla. Tulane Law Review. New Orleans, ano 2, v. 64, jun. 1990, p. 1443.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

97


O Bolsa Família foi criado em 2003 pelo Governo Federal como resultado da fusão dos programas Auxílio Gás, Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação.

Andrea Felizolla/Luz


Políticas Sociais, Bolsa Família e Emprego no Brasil Divulgação

André Portela Souza Doutor em Economia pela Universidade de Cornell (EUA) e professor da Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (EESP/FGV). O autor agradece os excelentes comentários e sugestões de Roberto Macedo.

Resumo Este artigo analisa os programas de transferência de renda no Brasil, e ao seu final aborda também a questão do emprego, esta de forma sucinta. As evidências empíricas dos programas sociais e do Bolsa Família demonstram que esses programas têm sido efetivos em focalizar as transferências de renda para as famílias mais pobres monetariamente, mas não tão efetivo em estimular de maneira significativa a acumulação de capital humano por parte das novas gerações. De alguma maneira criouse no Brasil uma tecnologia de políticas públicas de alcance aos mais pobres. O desafio está em aproveitar

essa tecnologia para aumentar a eficácia e a eficiência das políticas sociais de modo a eliminar consistentemente a pobreza no Brasil. Idealmente, o que se deve buscar é promover as pessoas da condição de beneficiários dos programas para sua inserção no mercado de trabalho e com rendimentos bem maiores, sejam como empregadas, trabalhadoras por conta própria ou empresárias. Para isso, propõe-se uma série de medidas gerenciais e de desenhos dos programas para atender a este objetivo, listadas nas duas seções finais do texto.

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO

99


Introdução

mente para financiá-lo ou sem alguma forma de contrapartida. No Brasil, os maiores programas assistenciais de transferência Brasil possui sistema de política social bastante de renda são o Benefício de Prestação Continuada da lei orgâamplo e complexo, que envolve diversos atores, nica da Assistência Social (BPC-LOAS), o benefício da aposeninstituições e programas. Estabelecido em larga tadoria rural e o BF. medida a partir da Constituição de 1988 com a O BPC é uma transferência de renda sem condicionalidades, pretensão de atendimento universal às necessidades e aspiradirecionadas aos indivíduos inválidos ou idosos de 65 anos de ções da população, esse sistema se coloca em constante tensão idade ou mais, cuja renda per capita familiar seja inferior a ¼ do com as limitações orçamentárias, gerenciais e legais do setor púsalário mínimo vigente no País. O benefício corresponde ao blico. Os sistemas públicos previdenciários, de saúde, de edupagamento mensal de um salário mínimo. Antes do BPC havia cação e de políticas de proteção social alcançaram níveis de o programa Renda Mensal Vitalícia (RMV) para idosos e inváatendimento quase universais da população de interesse nas úllidos. O BPC foi um direito garantido na Constituição de 1988 timas duas décadas, mas convivem com baixos níveis de quae implementado a partir de 1995, incorporando o RMV. Hoje a lidade dos serviços e com baixa efisua gestão, acompanhamento e avaLuludi/Luz ciência e produtividade nas proviliação estão a cargo do Ministério do sões desses serviços. Ou seja, de alguDesenvolvimento Social (MDS), enma maneira criou-se no Brasil uma quanto a sua operacionalização tecnologia de políticas públicas de alcompete ao Instituto Nacional do Secance à maioria da população brasiguro Social (INSS). leira e, em particular, aos mais pobres, A aposentadoria rural é uma mas que ainda deixa a desejar em sua transferência de renda para trabaqualidade e eficiência. O desafio está lhadores rurais idosos, instituída em aproveitar essa tecnologia para dentro da legislação da seguridade aumentar a eficácia e a eficiência das social brasileira. Anterior à Constipolíticas sociais de modo a eliminar tuição de 1988, a legislação garantia consistentemente as múltiplas dio pagamento de meio salário mínimensões de pobreza no Brasil. mo ao trabalhador rural idoso que Sem a pretensão de abarcar todas fosse chefe de família. A Constituias políticas sociais, este estudo disção de 1988 e as Leis Ordinárias cute as políticas assistenciais de dis8212 e 8213, de 1991, estenderam o tribuições de renda no Brasil, e tece benefício para outros membros da algumas considerações sobre polífamília, reduziram a idade mínima ticas de emprego. Para tanto, além requerida de 65 para 60 anos para desta introdução, ele se divide em homens e de 60 para 55 anos para as quatro seções. A Seção 1 apresenta mulheres, e aumentaram o valor do os programas assistenciais no Brabenefício para um salário mínimo O BPC é uma transferência de renda sil, os seus custos, cobertura e immensal. Para ter direito a tal benedirecionada aos indivíduos inválidos ou pactos distributivos. A Seção 2 anafício, basta o indivíduo comprovar idosos, cuja renda per capita familiar lisa mais detidamente o Bolsa Famíque exerceu atividade rural por peseja inferior a ¼ do salário mínimo. lia (BF) com ênfase em suas capacilo menos 15 anos. Embora o termo dades de redução de pobreza e seja aposentadoria rural, ela é um desigualdade de renda no curto benefício assistencial, pois não se prazo e de estímulo à acumulação de capital humano no lonexige do beneficiário nenhuma contribuição ao sistema de go prazo. A Seção 3 apresenta propostas de políticas públicas seguridade para ter direito ao benefício. A sua gestão e opevoltadas para o aprimoramento das políticas assistenciais. O racionalização também estão a cargo do INSS. trabalho conclui com a Seção 4, que apresenta uma breve disO BF foi criado em 2003 pelo Governo Federal como resulcussão sobre o emprego no Brasil e propostas de associar potado da fusão de quatro programas até então existentes: Aulíticas de redução de pobreza com melhorias de condições de xílio Gás, Bolsa Escola (BE), Bolsa Alimentação e Cartão Aliempregabilidade do trabalhador brasileiro. mentação. Diferentemente dos dois anteriores, ele é um programa de transferência direta de renda com condicionalida1. Os Programas Assistenciais de des, que beneficia famílias em situação de pobreza (com Distribuição de Renda no Brasil renda mensal por pessoa de R$ 70 a R$ 140) e extrema pobreza (com renda mensal por pessoa de até R$ 70). Qualquer família Entende-se por programas assistenciais de distribuição de na extrema pobreza pode participar do programa, enquanto renda aqueles programas de transferências de renda em que o as famílias em situação de pobreza somente participam do beneficiário recebe um valor monetário em forma de transfeprograma caso tenham algum filho na idade de zero a 17 rências diretas governamentais sem ter contribuído diretaanos. Os valores dos benefícios variam com a condição de po-

O

100 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010


breza e a composição familiar. Desde 2003 o programa passou por mudanças nos critérios de elegibilidade e de transferência. A Tabela 1 apresenta os valores estabelecidos para estes critérios ao longo dos anos. Atualmente, as famílias em extrema pobreza recebem um valor mensal de R$ 68,00 na forma de benefício básico. Além deste benefício básico, as famílias extremamente pobres têm direito a um benefício variável no valor mensal de R$ 22,00 por criança ou adolescente até 15 anos de idade, pago no máximo até três crianças e adolescentes. Por fim, existe também variável vinculada ao adolescente, que corresponde ao pagamento mensal de R$ 33,00 por pessoa de idade entre 16 e 17 anos até duas pessoas. As famílias pobres (com renda mensal por pessoa de R$ 70 a R$ 140), não recebem o benefício básico, mas apenas os benefícios variáveis. Todas devem cumprir as seguintes condicionalidades: manter as crianças e adolescentes em idade escolar frequentando a escola, e cumprir os cuidados básicos em saúde, que é seguir o calendário de vacinação para as crianças entre 0 e 6 anos, e a agenda pré e pós-natal para as gestantes e mães em amamentação. 1.1. Custos, Cobertura e Focalização dos Programas Os três programas de transferências de renda envolvem um número grande de beneficiários e utilizam volume considerável de recursos. O BPC com o antigo RMV cobrem hoje cerca de 3,5 milhões de beneficiários. O valor dos gastos em benefícios no ano de 2009 foi de R$ 18,7 bilhões, o que corresponde a 0,6% do PIB de 2009. O programa de aposentadoria rural tinha cerca de 8,1 milhões de beneficiários em dezembro de 2009, e o valor total dos benefícios era de cerca da R$ 3,5 bilhões, o que corresponde a 0,1% do PIB de 2009. Por fim, o

BF envolve cerca de 13 milhões de famílias beneficiadas, cujos valores de benefícios ultrapassam os R$ 10 bilhões por ano, o que corresponde a cerca de 0,4% do PIB. Dados os critérios de elegibilidade dos programas, eles atingem relativamente mais os mais pobres com um razoável grau de focalização. Por exemplo, o estudo de Medeiros et al. (2007), com base na PNAD de 2006 estimou as incidências dos programas BPC e BF por decis de renda per capita familiar, conforme o Gráfico 1. Ele mostra o percentual acumulado de indivíduos beneficiários dos programas BPC e BF por decis dessa renda. Assim, do total dos beneficiários, mais de 80% daqueles dos programas BPC e BF estão nos primeiros quatro decis da distribuição de renda per capita familiar no Brasil. Em outras palavras, entre todos os beneficiários desses programas, a grande maioria deles se encontra entre os relativamente mais pobres. AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 101


Andrea Felizolla/Luz

Muitos estudos apontam para a importância dos programas de transferência de renda para a redução da pobreza no Brasil. De fato, se eles têm algum grau de focalização nos mais pobres e se baseiam em transferências de renda, o impacto sobre a redução da pobreza não deve ser desprezível.

1.2. Impactos Distributivos dos Programas

2. O Programa Bolsa Família

Muitos estudos apontam para a importância dos programas de transferência de renda para a redução da pobreza como insuficiência de renda no Brasil. De fato, se eles têm algum grau de focalização nos mais pobres e se baseiam em transferências de renda, o impacto sobre a redução da pobreza não deve ser desprezível. Por exemplo, estudo de Assunção e Chein (2007) estima que cerca de 300 mil famílias saíram da pobreza entre 1991 e 1995 devido ao programa de aposentadoria rural, um total equivalente a cerca de 40% das famílias potencialmente beneficiadas pelo programa. Outros estudos apontam resultados semelhantes para os demais programas. A questão aqui não é apenas a de capacidade de redução da pobreza via transferência de renda aos mais pobres. É também de eficiência destas políticas para alcançar o resultado pretendido. Dos três programas de transferências de renda, dois, o BPC e a aposentadoria rural, têm como critério de elegibilidade a idade mais avançada dos beneficiários, envolvem um relativamente menor número de beneficiários e um valor médio maior dos benefícios. Os valores dos benefícios desses programas estão vinculados ao salário mínimo e, por conseguinte, aumento deste tem impacto direto nos benefícios dos programas. Por outro lado, o BF alcança um número maior de beneficiários, tem como um dos critérios de elegibilidade a presença de crianças e adolescentes na família, mas transfere um valor médio menor por benefício. Como existem relativamente mais crianças entre as famílias pobres e relativamente mais pessoas idosas entre as famílias não pobres, do ponto de vista de eficiência de um real gasto, o BF parece ser a forma mais indicada para políticas de transferência de renda com o intuito de reduzir a pobreza.

2.1. O Custo Fiscal do Bolsa Família

102 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

A seção anterior apresentou os números para os valores totais gastos em benefícios e o total de famílias beneficiárias. Contudo, o custo fiscal de uma política social envolve, além dos valores das transferências diretas, dois outros tipos de gastos. Primeiro, os diretos utilizados para a implementação do programa (estrutura burocrática, funcionários, equipamentos, custeio em geral etc.). Segundo, a forma de financiamento pode gerar custos adicionais. Os programas assistenciais são financiados, em parte, por impostos indiretos, seja através da incidência sobre o custo do trabalho (impostos e contribuições sobre a folha salarial), seja através de impostos indiretos sobre bens de consumo. Notoriamente sabe-se que impostos indiretos provocam ineficiência na alocação de recursos, no caso fazendo com que a produção e o consumo fiquem abaixo do que ocorreria na ausência dos impostos. Em particular, emprego e produto deixam de ser gerados por conta disso. Este fenômeno é conhecido na literatura como perda de peso morto. Ela pode ser de tal magnitude que mais que compense negativamente o ganho direto de bem estar das transferências mesmas. Mensurar com precisão a perda de peso morto é muito difícil e seu exercício requer uma série de hipóteses sobre o funcionamento dos mercados. No caso do BF, cerca de 80% do valor do programa é financiado por recursos do PIS/COFINS e da CSLL. Cury et al. (2009) simularam o impacto da expansão do BF entre 2003 e 2005 sobre a pobreza e desigualdade, levando em conta impactos devidos à perda de peso morto gerados pelo financiamento desta expansão. Entre 2003 e 2005 houve um in-


Jarbas Oliveira/Folhapress

Embora os primeiros programas de transferências condicionais no País, o Bolsa Escola e o Renda Mínima, existam desde 1995, não há informações disponíveis para saber o estado atual dos beneficiados nos primeiros anos do programa e assim avaliar impactos de longo prazo sobre alguma dimensão de capital.

cremento de R$ 6,3 bilhões no programa, dos quais cerca de 60% foram financiados por impostos indiretos. Nas simulações destes autores, esta expansão do programa na forma como foi financiada acarretou uma queda do PIB de 0,46% (tendo como base o ano de 2003) e um declínio do nível de emprego de 0,48%. Em consequência disso, a queda do nível de pobreza no período seria de 0,84% e não haveria impacto sobre o nível de extrema pobreza. Por outro lado, ainda assim haveria uma queda da desigualdade em 0,48%. Embora os resultados de Cury et al. possam ser sensíveis às especificações do modelo adotado, eles levantam um ponto importante na discussão dos custos e benefícios do BF. Programas assistenciais precisam ser financiados, e a forma de fazê-lo pode gerar impactos negativos que mitigam os efeitos sobre resultados que são objetivos dos programas. 2.2. Impactos de Curto Prazo Sobre Pobreza e Desigualdade O primeiro objetivo dos programas condicionais de transferências de renda é reduzir a incidência da pobreza como insuficiência de renda. Dado o alto grau de focalização do BF entre os mais pobres, este objetivo parece estar razoavelmente alcançado. De fato, embora difiram em suas magnitudes, muitos estudos mostram os impactos positivos que o programa tem sobre as reduções de pobreza e desigualdade. Por exemplo, Barros et al. (2006a, 2006b) analisaram o impacto do BF sobre a redução da desigualdade de renda observada entre 2001 e 2005. Neste período, o coeficiente de desigualdade de Gini aplicado à renda per capita familiar, decresceu 4,5%. Deste total, metade da queda foi devida às mudanças observadas na distribuição da renda não trabalho. Destes, as aposentadorias e pensões contri-

buíram 26% com a queda, o BF com 12% e o BPC com 11%. Assim, o fator preponderante foi a expansão destes programas. Como o BF foi o que mais se expandiu focalizadamente entre o mais pobres, este parece ter sido o programa mais eficiente para a redução da desigualdade. Por sua vez, Soares e Sátyro (2009) calculam que BF contribuiu para reduzir a proporção de pobres e a intensidade da pobreza. Por intensidade ou hiato da pobreza se entende a diferença em termos percentuais da renda média dos pobres em relação ao valor da linha de pobreza. Através de exercícios de simulação com dados de pesquisas domiciliares de 2006 esses autores concluem que a presença do BF reduz a proporção de pobres de 21,7% para 20%, uma redução de 8% de pobres. Já a intensidade da pobreza passa de 9,4% para 7,8%. Ou seja, a renda média dos pobres passa a ser 92,2% da linha da pobreza, o que corresponde a uma redução de 18% do hiato. O fato de o BF ter um impacto relativamente maior sobre a intensidade da pobreza do que sobre a proporção dos pobres se deve à combinação de uma boa focalização entre os pobres com um valor da transferência mais baixo que outros programas. 2.3. Impactos de Longo Prazo na Formação do Capital Humano: Educação e Saúde O segundo objetivo dos programas de transferências condicionais de renda, e a sua novidade, é impactar a formação do capital humano das futuras gerações através de condicionalidades impostas sobre o comportamento das famílias. No caso do BF, a transferência é condicional à frequência regular à escola das crianças e jovens de 6 a 17 anos de idade e às visitas das crianças de 0 a 5 anos de idade a postos de saúde e vacinação. AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 103


Celso Pupo/Folhapress

Inexistem para o Brasil estudos sobre o impacto dos programas de transferências de renda no aprendizado do aluno. Na foto, o presidente Lula participa da cerimônia de formatura dos alunos do Plano Setorial de Qualificação dos Beneficiários do Bolsa Família, em setembro de 2009, no Maracanãzinho, Rio de Janeiro.

Embora os primeiros programas de transferências condicionais no País, o Bolsa Escola e o Renda Mínima, existam desde 1995, não há informações disponíveis para saber o estado atual dos beneficiados nos primeiros anos do programa e assim avaliar impactos de longo prazo sobre alguma dimensão de capital. Desta maneira, os estudos se baseiam em informações contemporâneas que indiquem de alguma forma trajetórias de melhorias potenciais na formação do capital humano e/ou fazem simulações que extrapolem estas trajetórias. Uma série de estudos de impacto dos programas de transferências condicionais no Brasil conclui que as evidências sobre o efeito na acumulação de capital são muito tênues ou de pouca magnitude. 2.3.1. Educação Os estudos sobre o impacto do BF sobre a educação apresentam em geral efeitos positivos, embora marginais. Por exemplo, Souza (2006) utiliza os dados do Censo 2000 para medir os impactos das transferências do antigo BE, então atuante, sobre a probabilidade de o indivíduo frequentar a escola e a probabilidade de estar defasado na relação idade-série. Já naquela época se observava que os beneficiários do BE tinham uma probabilidade maior de frequentar a escola em comparação aos não beneficiários, bem como uma menor probabilidade de estarem atrasados (ao menos entre os mais jovens). Embora estas diferenças fossem favoráveis aos recipientes do programa, o efeito era marginalmente superior, pois mesmo entre as crianças em famílias pobres a probabilidade de frequentar a escola é alta, sendo em média 95% entre os indivíduos de 7 a 14 anos de idade. O mesmo vale para atraso escolar. Tomando estes resultados como parâmetros estáveis, Souza (2006) faz a seguinte simulação: caso uma criança recebesse a

104 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

transferência mensal do BE nos valores do ano 2000 por oito anos consecutivos conforme a regra da época (7 a 14 anos), quantos anos de escolaridade o indivíduo teria a mais em comparação a um não recipiente? Aos 15 anos de idade o beneficiário teria 0,2 anos de escolaridade a mais. Um resultado positivo mas de pequena magnitude. Outros trabalhos mais recentes apresentam resultados em relação à freqüência e atraso escolar (p.ex., Ferro e Kassouf (2003); Ferro e Nicolella (2007)). Inexistem para o Brasil estudos sobre o impacto no aprendizado do aluno. 2.3.2. Saúde O outro conjunto de variáveis que estão associados à acumulação do capital humano dos adultos são os indicadores antropométricos das crianças e jovens. Em geral, maiores valores nas relações altura/idade, peso/altura e altura/ peso quando criança estão associados a maiores valores destes indicadores quando adultos e a maiores salários. Intervenções realizadas mais cedo na vida das pessoas podem ter efeitos duradouros, principalmente no que se refere a condições gerais de saúde e nutrição. Tanto o aumento da renda familiar via transferências quanto a imposição das condicionalidades de visitas aos postos de saúde e vacinação regular podem impactar positivamente os indicadores de saúde das crianças. Contudo, as avaliações existentes tanto do BE quanto do BF não encontram efeitos positivos sobre esses indicadores. Por exemplo, Machado e Souza (2008) estimam o impacto do BE sobre indicadores antropométricos de crianças e adolescentes para o Brasil e para a região nordeste. Em geral, os efeitos não são significativos. Andrade, Chein e Ribas (2006a e 2006b), utilizando as informações dos cadastros do BF encontram resultados semelhantes para nutrição e imunização.


Sergio Pedreira/AE

Os estudos que avaliam o impacto dos programas de transferências condicionais de renda no Brasil sobre o trabalho infantil concluem, em geral, que eles têm pouco ou mesmo nenhum efeito sobre a incidência do trabalho infantil. Embora o BE aumente a probabilidade de o indivíduo frequentar a escola, ele não afeta a probabilidade dele trabalhar.

2.4. Impactos de Segunda Ordem: Trabalho Infantil, Fecundidade e Oferta de Trabalho Embora o BF tenha como objetivos o combate a pobreza no curto prazo via transferências de renda aos mais pobres e o incentivo à acumulação de capital humano das gerações adultas futuras via condicionalidades de frequência a escola e visitas a postos de saúde, o programa pode ter impactos sobre outros resultados que estão relacionados com a renda familiar e a alocação do tempo das crianças e jovens. Esta seção apresenta os resultados das pesquisas que tratam dos impactos dos programas de transferências de renda no Brasil sobre a incidência do trabalho infantil, a fecundidade das mulheres e a oferta de trabalho dos adultos. 2.4.1. Trabalho Infantil Os estudos que avaliam o impacto dos programas de transferências condicionais de renda no Brasil sobre o trabalho infantil concluem, em geral, que eles têm pouco ou mesmo nenhum efeito sobre a incidência do trabalho infantil. Em um dos primeiros estudos sobre o tema, Cardoso e Souza (2009) analisam o efeito do BE sobre o trabalho infantil dos indivíduos de 10 a 15 anos de idade. Eles constataram que embora o BE aumente a probabilidade de o indivíduo frequentar a escola, ele não afeta a probabilidade dele trabalhar no mercado de trabalho. Na verdade, o BE provoca uma realocação de tempo dos jovens entre diversas atividades. O estudo mostra que de um lado ocorre um aumento na proporção dos indivíduos que estudam e trabalham e diminuem a proporção dos indivíduos que somente trabalham ou que não estudam nem trabalham. Este efeito é mais acentuado entre as meninas. Os resultados parecem indicar que o programa faz com

que meninos e meninas que somente trabalham ou não estão na escola nem no mercado de trabalho (possivelmente dedicam seu tempo em atividades de produção doméstica), passam a frequentar a escola e trabalhar. É por isso que em média a incidência do trabalho infantil permanece inalterada. Isto ocorre porque o tempo na escola é de apenas 4 horas diárias, o que permite a conciliação das duas atividades. Estudos mais recentes apontam efeitos semelhantes ou algum impacto negativo, mas pequeno, sobre o trabalho infantil, p.ex. Ferro e Kassouf (2003); Ferro e Nicolella (2007)). 2.4.2. Fecundidade Um dos critérios para definir o valor da transferência do BF é o número de filhos que a família elegível tem. O valor da transferência aumenta em conformidade com o número de filhos até o máximo de três filhos. Este desenho pode gerar incentivos para que a família elegível e com menos de três filhos queira ter mais filhos. Obviamente que para estar no programa ela tem que levá-los à escola, o que aumenta o custo do investimento nos filhos o que, portanto, pode estimular as famílias a não terem mais filhos. Assim, o desenho do BF cria incentivos favoráveis e desfavoráveis para o aumento do tamanho da família. Rocha (2009) apresenta estimativas do impacto do BF sobre a fecundidade das mães em famílias do programa. Compara famílias potencialmente elegíveis com dois filhos e famílias potencialmente elegíveis com três filhos em períodos antes e depois da implementação do BF. A ideia é que famílias com três filhos não têm incentivos monetários adicionais do programa para ter mais filhos enquanto famílias com dois filhos teriam esse incentivo. Assim se tivesse efeitos significativos, haveria maior probabilidade de as famílias de dois filhos terem um terAGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 105


Tavares (2008) analisou a oferta de trabalho das mães pertencentes às famílias beneficiadas pelo Bolsa Família e obteve um resultado negativo para o efeito renda, ou seja, há uma redução das horas de trabalho em razão do aumento da renda.

ceiro filho depois do advento do Bolsa Família em comparação às famílias com três filhos. O autor não encontrou qualquer diferença nas mudanças das probabilidades dos dois tipos de famílias terem um filho adicional, o que sugere que, ao menos para essas famílias e nesse período, o BF não induz as famílias a terem mais filhos. 2.4.3. Oferta de Trabalho dos Adultos Os programas de transferências condicionais de renda geram incentivos em diferentes direções no que concerne a oferta de trabalho dos adultos em famílias beneficiárias. De um lado, a transferência de renda em si gera um efeito renda que, se lazer for um bem normal, induz os indivíduos a reduzir a oferta de trabalho. Por outro lado, a imposição da condicionalidade de frequência a escola dos filhos pode fazer com que os adultos tenham que substituir as tarefas dos filhos em casa ou no mercado de trabalho. Caso adultos e filhos sejam substitutos na produção doméstica, a condicionalidade induz a uma redução da oferta de trabalho dos adultos. Por outro lado, caso eles sejam substitutos no mercado de trabalho, a condicionalidade pode induzir a uma maior oferta de trabalho dos adultos. Dessa maneira o resultado líquido é uma questão empírica. Já existem alguns trabalhos no Brasil sobre o impacto do BF sobre a oferta de trabalho dos adultos. Os resultados são variados, mas em geral não existem impactos significativos ou são levemente negativos. Os resultados da avaliação de impacto do BF mostraram um efeito positivo do programa sobre a taxa de participação no mercado de trabalho para ambos os gêneros, sobretudo para as mulheres. Já Ferro e Nicollela (2007) estimaram que o efeito de programas de transferência vinculados à educação dos filhos

106 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

teve impacto insignificante na taxa de participação dos adultos e um efeito negativo e significativo nas horas trabalhadas das mulheres domiciliadas em áreas rurais. Teixeira (2008), por outro lado, mostrou que o BF provoca redução de pequena magnitude, embora significativa em termos estatísticos, nas horas trabalhadas. Tal reação, contudo, apresenta impactos variados entre os diversos grupos demográficos, sendo que as mulheres são as mais sensíveis ao incremento de renda proporcionado pelo BF. Tavares (2008) analisou a oferta de trabalho das mães pertencentes às famílias beneficiadas pelo BF e obteve um resultado negativo para o efeito renda, ou seja, há uma redução das horas de trabalho em razão do aumento da renda. No entanto, tal efeito é superado por um efeito substituição positivo, ou seja, há aumento das horas trabalhadas das mães para compensar a redução da oferta de trabalho dos filhos. Fogel e Barros (2008) não obtiveram efeitos significativos dos programas de transferência condicional de renda sobre a taxa de participação dos adultos, tanto estatisticamente quanto em termos de magnitude. Em relação à oferta de horas, os autores encontram um pequeno efeito negativo, porém não significante estatisticamente, para as mulheres pertencentes aos estratos mais baixos de renda familiar per capita. Pedrozo (2010) encontrou algum efeito negativo sobre a oferta de trabalho dos adultos, principalmente das mulheres. O autor compara famílias logo abaixo da linha de corte da renda per capita familiar que define a participação do programa com famílias logo acima dela. Ele mostra que as famílias, principalmente as mulheres, logo abaixo da linha de corte do BF em 2006 trabalham menos que os adultos em famílias logo acima da linha de corte. O autor também apresenta resultados econométricos onde demais variáveis de controle são utilizadas e encontram um efeito negativo da participação do BF sobre a oferta de trabalho dos adultos.


Leonardo Wen/Folhapress

Criou-se no Brasil uma tecnologia de políticas públicas de alcance aos mais pobres embora, obviamente, com variações regionais. O desafio está em aproveitar esta tecnologia para aumentar a eficácia e a eficiência das políticas sociais, de modo a eliminar a pobreza.

Em síntese, as evidências sugerem que o BF reduz a oferta de trabalho dos adultos, principalmente entre as mulheres. Como parte delas são as mães de filhos em primeira infância, esse efeito pode ser positivo para o desenvolvimento saudável da criança. Mais problemático é o impacto sobre a oferta de trabalho dos demais adultos do domicílio. Isto pode ter repercussões negativas sobre o funcionamento do mercado de trabalho e bem estar de longo prazo das e famílias. 3. Os Programas Sociais em Geral e o Bolsa Família daqui Para Frente – Propostas Com base nessas evidências empíricas dos programas sociais e do BF, pode-se concluir que o programa tem sido efetivo em focalizar as transferências de renda para as famílias mais pobres monetariamente mas, por outro lado, não tão efetivo em estimular de maneira significativa a acumulação de capital humano das novas gerações. Talvez o maior mérito do programa até agora tenha sido fazer com que as políticas sociais de transferências cheguem aos mais pobres. De alguma maneira criou-se no Brasil uma tecnologia de po-

líticas públicas de alcance aos mais pobres embora, obviamente, com variações regionais. O desafio está em aproveitar esta tecnologia para aumentar a eficácia e a eficiência das políticas sociais de modo a eliminar consistentemente a pobreza no Brasil. Para isso, antes de tudo é importante reconhecer que a pobreza é um fenômeno multidimensional. Em uma perspectiva mais abrangente, pobreza pode ser definida como privação de capacidades. A privação de capacidades envolve uma série de restrições que podem significar não ter renda monetária suficiente para obter bens e serviços desejados, não ter capacidade física para desenvolver certas atividades, não ter acesso à educação e saúde, não ter livre acesso à troca de bens e serviços, não ter direitos civis e políticos respeitados etc. Vista sob o ângulo de privação de capacidades, a pobreza passa a envolver múltiplas dimensões além da simples carência de renda monetária (Sen, 1981; 1984). Tendo isto em mente, propõem-se dois conjuntos de ações. O primeiro, voltado para os aspectos de implementação e gestão das políticas sociais, e o segundo para o aprimoramento e aperfeiçoamento do desenho dos programas atuais. AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 107


Jefferson Coppola/Folhapress

Para haver um sistema unificado de proteção social é necessário estabelecer quais são os seus objetivos e metas, como também quais os instrumentos de políticas públicas a serem utilizados. A formulação de metas implica, de saída, a criação de um conjunto de indicadores sociais capazes de mensurar estas metas.

Ações de Implementação e Gestão Além dos programas de transferências de renda como o BF e o BPC, existem programas sociais nos estados e municípios, bem como de programas em diversos ministérios como Educação, Saúde e Trabalho que atuam diretamente no combate a alguma dimensão da pobreza. Esses programas são descentralizados e descoordenados e em muitos casos envolvem sobreposições. Talvez não seja mais o caso de criar novos programas ou reformular inteiramente programas existentes. Talvez seja mais importante saber que programas de fato alcançam seus objetivos, quais não são efetivos e organizá-los e geri-los de maneira coordenada a fim de aumentar sua efetividade e eficácia. Podese buscar um sistema coordenado de proteção social aos moldes do Sistema Chile Solidário onde se institucionalizou a intersetorialidade e integralidade dos programas sociais. Seu programa de transferências de renda, o Puente, é a porta de entrada ao sistema mais geral de proteção social (Draibe, 2010). Para haver um sistema unificado de proteção social é necessário estabelecer quais são os seus objetivos e metas como também quais os instrumentos de políticas públicas a serem utilizados. A formulação de metas implica de saída a criação de um conjunto de indicadores sociais capazes de mensurar quantitativamente estas metas, daí a primeira proposta de política pública. Proposta Um: Formulação de Metas de Redução da Pobreza A formulação de políticas de redução de pobreza deve ter objetivos claros e estratégias de implementação que devem ser constantemente avaliadas e revistas e, para isso, a construção de indicadores sociais é fundamental. A fim de se formular uma política de redução da pobreza, é

108 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

possível selecionar e construir um conjunto de indicadores sociais que servem tanto como metas como instrumento de aferição e avaliação das políticas adotadas. Muitos indicadores já são elaborados por diversos institutos brasileiros e outros poderiam ser criados, dependendo das necessidades e dos objetivos. O importante é criar um conjunto de metas de redução de pobreza que tornem as políticas nacionais e locais consistentes. Obviamente os indicadores selecionados devem atender a alguns princípios que são aceitos e compartilhados por todos. Atkinson et al. (2002) propõem os seguintes critérios e princípios para a construção de indicadores de inclusão social na Comunidade Europeia (Atkinson et al., 2002, p. 190), os quais parecem ser uma boa lista para organizar o debate brasileiro. Para o conjunto dos indicadores sociais, os autores estabelecem três princípios: (i) o conjunto de indicadores deve ser balanceado pelas diferentes dimensões; (ii) os indicadores devem ser mutuamente consistentes e o peso de um indicador particular no conjunto deve respeitar alguma proporcionalidade; (iii) o conjunto de indicadores deve ser transparente e acessível a todos os cidadãos. Os princípios para cada indicador são: (i) um indicador deve representar a essência do problema e ter uma interpretação normativa clara e reconhecida por todos; (ii) deve ser robusto e estatisticamente válido; (iii) deve ser sensível para captar intervenções de políticas públicas, mas não sujeito à manipulação; (iv) deve ser mensurável e comparável entre as diferentes regiões e, na medida do possível, comparável com os padrões internacionais das Nações Unidas; (v) deve ser suscetível de revisão; (vi) a mensuração de um indicador não deve impor muito custo sobre os cidadãos e os estados e municípios. Ademais, os autores recomendam uma estrutura de indicadores sociais em três níveis. O primeiro consiste num número restrito de indicadores líderes e amplos que reflitam os elemen-


Os municípios são responsáveis pelo cadastramento, acompanhamento das famílias e pela manutenção da base de dados. Eles devem planejar e organizar a coleta de dados, compilar e atualizar as informações e remetê-las ao Governo Federal.

tos considerados mais importantes no combate à exclusão social. O segundo compreende indicadores que descrevam outras dimensões do problema e que sirvam de apoio aos indicadores líderes. O terceiro nível, por fim, consiste em indicadores considerados relevantes pelos estados, regiões ou municípios que enfatizem aspectos regionais específicos e que ajudem a interpretar os indicadores dos níveis superiores. Assim, seria possível pensar numa política de combate à pobreza na qual os diversos aspectos do problema seriam refletidos nesse conjunto de indicadores. A política social estabeleceria metas abertas a serem perseguidas e conhecidas por todos. Tais metas seriam diferenciadas por esses três níveis e refletiriam as especificidades e heterogeneidades regionais. Essa política seria periodicamente avaliada num processo público. Obviamente a construção de um sistema público de metas com indicadores sociais requer bases de informações capazes de gerar estes indicadores. Por sorte, já existem. Além dos órgãos tradicionais de coletas de informações como o IBGE e SEADE, os próprios ministérios e órgãos públicos levantam informações sobre seus beneficiários e famílias. Em particular, o Cadastro Único para Programas Sociais do Ministério do Desenvolvimento Social é uma fonte valiosa de informações para tais objetivos. Proposta Dois: Utilização do Cadastro Único e Unificação com Demais Cadastros de Programas Sociais para Elaboração de Indicadores Sociais, Permitir a Integração de Políticas Sociais e a Avaliação do seu Impacto O Cadastro Único para Programas Sociais do MDS cadastra e atualiza informações das famílias pobres brasileiras com o objetivo de selecionar os beneficiários do BF. Ele conta atualmente com cerca de 16 milhões de famílias em todos os municípios bra-

sileiros, das quais 15 milhões têm renda per capita familiar mensal declarada inferior a R$ 120. Para se ter uma ideia do alcance deste cadastro, estima-se pela PNAD (2006) que cerca de 10 milhões de famílias tenham renda per capita inferior a R$ 120. Os municípios são responsáveis pelo cadastramento, pelo acompanhamento das famílias e pela manutenção da base de dados. Eles devem planejar e organizar a coleta de dados, compilar e atualizar as informações e remetê-las ao Governo Federal. Compete ao Governo Federal a organização e supervisão do sistema, bem como o pagamento direto das transferências paras as famílias via a Caixa Econômica Federal. O Cadastro Único levanta várias informações sobre as condições de vida destas famílias pobres. Coletam-se informações sobre diversas dimensões, tais como: (i) vulnerabilidade (composição demográfica, presença de mulheres gestantes e amamentado, presença de indivíduos com necessidades especiais); (ii) educação (analfabetismo e escolaridade); (iii) mercado de trabalho (participação no mercado de trabalho, rendimento do trabalho, formalização); (iv) disponibilidade de recursos (rendimento e despesa familiar per capita); (v) bem estar infantil (trabalho infantil, frequência e progressão escolar); e (vi) condições habitacionais (acesso à água, esgoto e energia elétrica). Como demonstra Barros et al. (2009), dado o alcance do Cadastro Único que praticamente o torna um censo demográfico das famílias pobres brasileiras e dada a abrangência das informações obtidas, ele pode ser utilizado de várias maneiras de modo a potencializar o combate à pobreza no Brasil. Pode servir não somente para a seleção de famílias beneficiadas pelo BF, como também pode servir para selecionar beneficiários para outros programas sociais, para definir cotas e graus de focalização de programas sociais, para elaboração de diagnósticos e adequação de intervenções sociais sejam a níveis locais, estaduais ou nacionais, entre outros. AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 109


Leonardo Rodrigues/Hype

agências reguladoras onde quem avalia as políticas não as implementa. Esta agência seria responsável pela gestão e confiabilidade do Cadastro Único e avaliações dos programas implementados pelos formuladores de políticas públicas nacionais, estaduais ou locais. Proposta Quatro: Redução ou Eliminação de Impostos sobre Alimentos e outros Bens e Serviços de Primeira Necessidade

A redução dos impostos sobre alimentos de primeiras necessidades talvez fosse mais efetivo do que programas sociais.

Se se conseguir a unificação do Cadastro Único entre os níveis federais, estaduais e municipais, bem como com outras bases de dados de programas de políticas públicas como, por exemplo, as informações por crianças e jovens dos censos escolares do Ministério da Educação, dos programas de treinamento e qualificação do Ministério do Trabalho etc., obtem-se com isto o primeiro passo indispensável para uma verdadeira integração das políticas sociais do país. Com estas informações, podem-se construir os indicadores sociais em seus três níveis de abrangência e com base neles estabelecer metas de redução de pobreza em suas diferentes dimensões. Uma das vantagens desta unificação e ampliação do Cadastro Único é que se tem com ele um diagnóstico localizado das demandas e carências sociais e a possibilidade de avaliar as intervenções sociais e o desempenho das administrações locais. É importante enfatizar aqui o papel das avaliações. Antes de julgar normativamente uma política, a avaliação busca analisar sua efetividade (ela alcança o resultado desejado?) e a sua eficiência (poder-se-ia obter o mesmo resultado com menor custo?). Em outras palavras, a avaliação significa aprender com os próprios erros e acertos. A fim de organizar o cadastro único e elaborar avaliações dos programas socais com base nas informações cadastrais numa escala grande como essa, é importante haver alguma instituição capaz de gerir tudo isso de maneira transparente e eficaz. Proposta Três: Instituição de Agência Independente de Gestão do Cadastro Único e de Avaliação dos Programas Sociais Existem ainda poucas avaliações de políticas públicas no Brasil. Muitos programas são implementados nacional ou localmente sem que se saiba de seu verdadeiro alcance e impacto. A unificação do Cadastro Único permite que muitos programas sociais sejam factíveis de avaliação. Obviamente quem implementa uma política não deve avaliá-la por naturais conflitos de interesse. Propõe-se aqui a institucionalização de uma gestão dos programas sociais aos moldes das

110 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

A forma de financiamento dos programas sociais se baseia em recursos tributários sobre a folha salarial ou impostos indiretos que têm importantes consequências sobre a perda de produto e emprego e geração de informalidade. Se por um lado fazem-se programas de proteção social para reduzir as desigualdades, por outro esses mesmos programas são financiados de maneira que afetam negativamente os objetivos dos programas. Um maior cuidado na elaboração desses programas levaria em conta formas de financiamento que não produzam efeitos indiretos negativos muito significativos. Em vez de expansão dos programas via aumento dos benefícios, talvez mais efetivo fosse estabelecer um programa de eliminação ou redução dos impostos sobre os bens alimentares e de primeiras necessidades. Não somente esses bens ficariam mais baratos como também aumentariam as quantidades produzidas e consumidas. Ações de Aprimoramento dos Programas Atuais Estando bem informado com as avaliações dos programas sociais, pode-se estabelecer novos desenhos e reformulações de programas específicos. No caso do nosso programa social de maior alcance, o BF, as avaliações existentes sugerem que ele não parece cumprir o objetivo maior de ampliação do investimento em capital humano das crianças e jovens pobres. Existem espaços e dimensões no desenho do programa que podem potencializar estes efeitos. Esta seção trata de algumas propostas para isso. A primeira proposta trata de criação de novos incentivos para o aluno estudar. Proposta Cinco: Adicional por Ano de Estudo Completado em Forma de Poupança Acumulada Sabe-se que a maioria dos alunos de 6 a 15 anos de idade frequenta a escola. Mesmo entre as crianças e jovens em famílias mais vulneráveis, cerca de 95% deles tem acesso à escola. Portanto, a condicionalidade de frequência à escola imposta pelo BF hoje é redundante. Os problemas da educação básica atualmente são dois: a baixa qualidade da educação e a relativa baixa frequência ao ensino médio. Para criar incentivos aos estudantes de famílias vulneráveis para estudar e completar o ensino médio propõe-se aqui criar um adicional no valor da transferência paga ao aluno em função da aprovação por ano de estudo. Contudo esta transferência não seria paga imediatamente. Criar-se-ia uma conta poupança para este aluno (a rigor um crédito) cujo valor se acumularia ao longo dos anos escolares do aluno e que somente tenha direito a retirada do valor


quando completar o ensino médio. Desenho semelhante existe no México com o Programa Oportunidades com resultados bastante satisfatórios.

plementação do BF, mas também se os resultados finais dos beneficiários apresentam maiores mudanças positivas. 4. A Questão do Emprego e outras Propostas

Proposta Seis: Maiores Recursos aos Municípios que Apresentarem Maiores Ganhos nos Desempenhos Médios dos Alunos Menos Favorecidos A seleção e monitoramento das famílias beneficiárias do BF são feitos pelos municípios mas a elaboração do programa, gestão e transferência de recursos são feitas diretamente pelo Governo Federal. A fim de incentivar os municípios a desempenharem bem as suas atribuições na gestão do BF, o governo federal criou em 2006 o IGD (Índice de Gestão Descentralizada) que mede o desempenho dos municípios na gestão do programa e do Cadastro Único, levando em conta a qualidade dos registros cadastrais (validade e atualização) e acompanhamento das condicionalidades de educação e saúde. Com base neste indicador, os municípios que apresentam bom desempenho recebem mensalmente recursos para investir em atividades voltadas à gestão do BF. Propõe-se aqui a utilização de recursos por parte dos municípios para a melhoria da qualidade da educação pública municipal onde o critério de distribuição dos recursos dependa dos ganhos médios do aprendizado dos alunos beneficiários do BF. A idéia é atrelar os incentivos dos alunos aos incentivos dos gestores municipais em melhorar a qualidade da educação municipal. Assim, não somente os municípios ganham mais recursos se estão gerindo melhor a im-

Idealmente, o que se deve buscar é promover as pessoas da condição de beneficiários do BF para sua inserção no mercado de trabalho e com rendimentos bem maiores, sejam como empregadas, trabalhadoras por conta-própria ou empresárias. Esta seção trata dos caminhos dessa promoção, dentro da temática geral do emprego e cobrindo tanto esses bolsistas como outros carentes de oportunidades de trabalho. Na questão do emprego, as propostas cinco e seis elencadas acima se referem a políticas que potencializem a melhor inserção no mercado de trabalho de futuros trabalhadores emergentes de famílias beneficiadas com o BF. Esta seção trata de políticas de emprego em geral. Taxa de investimento e emprego Do ponto de vista macroeconômico, o que mais contribui para a geração de empregos é a aceleração da taxa de crescimento da economia. Quanto ao que eleva essa taxa, o fator mais importante é o investimento, cujo efeito sobre o emprego e o crescimento também depende do aumento de produtividade. Os Gráficos 2.1 e 2.2, cedidos por Roberto Macedo, mostram que há uma nítida correlação inversa entre investimento e desemprego, apesar de todas as oscilações que a economia teve no período 1992-2009. Esses gráficos abrangem os períodos 1991-2002 e 2002-2009 e foram separados porque a taxa de AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 111


desemprego passou a ser medida de modo diferente em 2002. Por conta dessa data, a separação acaba distinguindo os períodos de outra forma: no primeiro o investimento cai e o desemprego aumenta; no segundo, ocorre o contrário. Ou seja, no atacado a questão do emprego precisa ser tratada com a ampliação da taxa de investimentos da economia, cabendo assim uma proposta nesse sentido. Proposta Sete: Ampliar sensivelmente a taxa de investimento da economia, com o objetivo de acelerar o crescimento do PIB e a criação de empregos.

7%. A maior incidência do desemprego ocorre entre os indivíduos de escolaridade mediana (nível médio) e entre os mais jovens (Gráficos 4.1 e 4.2). Embora estes fatos correspondam a um período recente, ocorreu uma acentuação deles ainda mais recentemente. Ou seja, um aumento do desemprego entre os indivíduos de escolaridade média e os mais jovens. Estes movimentos não estão dissociados. São exatamente os mais jovens que se tornam mais escolarizados. Cruzando estas variáveis em outros estudos percebe-se que o desemprego se deve mais ao fato da pessoa ser jovem do que ser mais escolarizada. Ocupação e Salários Relativos

Fatos Estilizados: A evolução dos indicadores do mercado de trabalho Taxa de Participação A oferta de trabalho no Brasil sofreu uma mudança qualitativa ao longo dos últimos anos. Desde o início dos anos 90 a taxa de participação da população em idade ativa (15 anos ou mais) tem crescido ao longo dos anos alcançando cerca de 63% nos anos recentes. Este movimento se deveu principalmente à maior inserção das mulheres no mercado de trabalho. Adicionalmente, acompanhando as mudanças demográficas da população brasileira, a PEA tem ficado mais adulta (Gráficos 3.1 e 3.2), e mais escolarizada. Desemprego Por sua vez, a taxa de desemprego no Brasil cresceu nos anos 90 e caiu nos anos 2000. Em 1992, era de cerca de 8% do total da população economicamente ativa. Em 2001 atingiu 12%, e em 2007 voltou ao nível do início dos anos 90, cerca de

112 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010

Embora o nível da taxa de ocupação tenha voltado àquele do início dos anos 90, ocorreu uma mudança qualitativa na sua composição. Os ocupados se tornaram relativamente mais escolarizados. Entre 1992 e 2008 ocorreu uma redução da participação relativa dos menos escolarizados e um aumento da participação relativa dos mais escolarizados. Concomitantemente, ocorreu um aumento do salário relativo dos mais escolarizados (Gráficos 5.1 e 5.2). Uma Interpretação Que sentido dar a estes movimentos conjuntamente? Se levarmos em conta o que vem ocorrendo nos países mais industrializados e os resultados de estudos para o Brasil, esses movimentos podem ser explicados por mudanças estruturais da economia. Devido a mudanças tecnológicas na produção que requerem cada vez mais trabalhadores mais qualificados, ocorreu no Brasil e no mundo um aumento da demanda relativa por trabalhadores desse tipo. O Brasil respondeu a isto com um aumento da oferta relativa desses trabalhadores


(mesmo os mais jovens). Contudo, esse aumento não é suficiente para acompanhar o aumento da demanda, refletindo este descompasso no aumento do salário relativo dos mais qualificados. Assim como nos EUA Claudia Goldin e Lawrence Katz (2008) explicam as mudanças no mercado de trabalho de lá como uma corrida entre educação e tecnologia, esta imagem cabe razoavelmente bem no nosso caso, com os devidos ajustes às nossas particularidades. Entre elas se destacam as distorções geradas pelo alto custo da folha salarial e

pela política de subsídios ao capital. Assim, para atacar ao mesmo tempo os problemas dos desincentivos ao trabalho e da baixa qualificação da mão de obra propõe-se associar ao BF programas de qualificação. Proposta Oito: Extensão e Manutenção do Benefício a Trabalhadores Formais Condicionadas a Programas de Educação e de Treinamento

AGOSTO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 113


Da maneira com está desenhado o programa atualmente, não oferece incentivo para trabalhador se formalizar como empregado. Como o programa utiliza a informação da carteira assinada para fazer o monitoramento sobre os elegíveis do programa, não ter a carteira de trabalho passa a ser um elemento importante para a sua elegibilidade. Se de um lado o programa consegue chegar aos mais pobres, por outro ainda não tem elementos de fazê-lo entrar no sistema mais geral de proteção social que vem com a carteira de trabalho assinada. Dessa maneira, propõe-se que trabalhadores com carteira assinada também sejam elegí-

veis ao BF e, caso aumentem a sua renda de modo a ultrapassar a linha de corte do programa, mesmo assim continuam a receber o benefício com a contrapartida de fazer parte de programas de educação (p.ex., alfabetização de adultos) ou programas de treinamento de mão de obra, com o objetivo de solidificar sua posição como trabalhadores desse mercado. Isto ocorreria por um período de tempo a ser definido, e seria necessário acumular experiência em verificar se a conseqüente suspensão do BF levaria à opção pelo abandono do emprego formal, com o objetivo de avaliar o resultado dessa política.

Referências Bibliográficas ANDRADE, M ; CHEIN, F e RIBAS, R.., (2006a). "Políticas de Transferência de Renda e Condição Nutricional de Crianças: uma avaliação do Bolsa Família". CEDEPLAR/UFMG.

http://paa2007.princeton.edu/download.aspx?submissionId=71442.

ANDRADE, M ; CHEIN, F e RIBAS, R., (2006b). " Política de Transferência de renda e impactos na imunização das crianças: o programa BolsaFamília. CEDEPLAR/UFMG.

FOGUEL, M. N.; BARROS, R. P. de (2008). The Efects of Conditional Cash Transfer Programmes on Adult Labour Supply: An Empirical Analysis Using a Time-Series-Cross-Section Sample of Brazilian Municipalities. ANPEC. Disponível em http://www.anpec.org.br/ encontro2008/artigos/200807211655420-.pdf.

ASSUNÇÃO, J.; CHEIN, F. (2009). Social Security and Rural Poverty in Brazil. Mimeo.

GOLDIN, C.; KATZ, L. (2008). The Race Between Education and Technology. Boston: Harvard University Press.

ATKINSON, T.; CANTILLON, B.; MARLIER, E.; NOLAN, B. Social Indicators. The E.U. and Social Inclusion. Oxford: Oxford University Press, 2002. p. 240.

MACHADO, R. F. T.; SOUZA, A. PORTELA. (2008). Efeito do Bolsa Escola sobre Saúde. Efeitos de Alocação Intrafamiliar. Fundação Getúlio Vargas, Escola de Economia de São Paulo. Mimeo.

BARROS, R. P. de; CARVALHO, M.; MENDONÇA, R. (2009). Sobre As utilidades do Cadastro Único. IPEA - Texto Para Discussão n. 1414. BARROS, R. P. de; CARVALHO, M.; FRANCO, S.; MENDONÇA, R. (2006a). A Queda Recente da Desigualdade de Renda no Brasil. In: BARROS, R. P. de; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. Desigualdade de Renda no Brasil: Uma Análise da Queda Recente - Vol. 1. Brasília: IPEA. BARROS, R. P. de; CARVALHO, M.; FRANCO, S. (2006b). O Papel das Transferências Públicas na Queda Recente da Desigualdade de Renda Brasileira. In: BARROS, R. P. de; FOGUEL, M. N.; ULYSSEA, G. Desigualdade de Renda no Brasil: Uma Análise da Queda Recente - Vol. 2. Brasília: IPEA. CARDOSO, E.; SOUZA, A. PORTELA. 2009. "The Impact of Cash Transfer Programs on Child labor and School Attendance in Brazil", in: Peter Orazem; Guilherme Sedlacek; Zafiris Tzannatos. (Org.). Child Labor and Education in Latin America. An Economic Perspective. Palgrave Macmillan. CURY, S.; PEDROZO, E.; COELHO, A.M.; CALLEGARI,I. (2010). The Impacts of Income Transfer Programs on Income Distribution and Poverty in Brazil: An Integrated Microsimulation and Computable General Equilibrium Analysis. São Paulo: FGV, mimeo.

MEDEIROS, M.; BRITTO, T.; SOARES, F. (2007). Target Cash Transfer Programmes in Brazil: BPC and Bolsa Família. Working Paper, nº. 46. Brasília: International Poverty Centre. PEDROZO, E; (2010). Efeitos de Elegibilidade e Condicionalidade do Programa Bolsa Família sobre a Alocação de Tempo dos Membros do Domicílio. Tese de Doutorado. Escola de Economia de São Paulo, EESP/FGV. ROCHA, S. (2005). Impacto sobre a pobreza dos novos programas federais de transferência de renda. Rio de Janeiro: Revista Economia Contemporânea, 9(1): 153-185. SEN, A. (2000). Development as Freedom. New York: Anchor Books. SEN, A. (1984). Resources, Values and Development. Oxford: Basil Blackwell. SOARES, S.; SÁTYRO, N. (2009). O Programa Bolsa Família: Desenho Institucional, Impactos e Possibilidades Futuras. Texto para Discussão, nº. 1424. Brasília: Ipea.

DRAIBE, S. (2010). Programas de Transferências Condicionadas de Renda. Mimeo.

SOUZA, A. PORTELA. (2006). Fighting Long-Run Poverty in Brazil: Are Conditional Cash Transfer Program Making a Difference? LAMES/LACEA 2006.

FERRO, A. R.; KASSOUF, A. N. (2003). Avaliação do Impacto dos Programas de Bolsa Escola na Incidência de Trabalho Infantil no Brasil. ANPEC. Disponível em http://www.anpec.org.br/ encontro2003/artigos/F32.pdf.

TAVARES, P. A. (2008). Efeito do Programa Bolsa Família sobre a Oferta de Trabalho das Mães. ANPEC. Disponível em http://www.anpec.org.br/encontro2008/artigos/ 200807211028050-.pdf.

FERRO, A. R.; NICOLLELA, A. C. (2007). The impact of conditional cash transfer programs on Household work decisions in Brazil. In: Population Association of America 2007 Annual Meeting. Disponível em

TEIXEIRA, C. G. (2008). Análise do Impacto do Programa Bolsa Família na Oferta de Trabalho dos Homens e Mulheres. UNDP/IPC. Disponível em http://www.ipc-undp.org/publications/mds/27P.pdf.

114 DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO 2010




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.