Rosário, a irmandade negra de Santa Maria

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Rosรกrio, a irmandade negra de Santa Maria

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Ao ouvir sobre a existência de uma irmandade de negros em Santa Maria durante uma aula de graduação do curso de História da Universidade Federal (UFSM), em 1998, o então aluno Ênio Grigio se interessou pelo tema. Quase duas décadas depois – e muito garimpo de informações em documentos da Igreja Católica e de pesquisadores, em jornais no Arquivo Municipal de Santa Maria e em processos do arquivo do Fórum –, o professor Grigio deu forma a sua tese de doutorado. Ela resgata a história da Irmandade do Rosário, um grupo de negros que se organizou com uma finalidade: religiosiodade. A descoberta da irmandade joga luz em uma polêmica. A pesquisa de Grigio comprova que foi esse grupo que ergueu a capela que deu origem à Igreja do Rosário. A polêmica gira em torno de como, anos mais tarde, o Rosário acabou sob o comando da Igreja Católica. Neste domingo, data em que se comemora o Dia da Consciência Negra, o MIX traz o resgate da origem da Irmandade do Rosário, seus personagens e sua importância na construção da identidade de Santa Maria.



` O primeiro registro que o professor de História do Instituto Federal Farroupilha Ênio Grigio encontrou em sua pesquisa sobre a existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Santa Maria, curiosamente, é da dissolução dela, em 1875. O documento é assinado pelo padre José Marcelino de Souza Bittencourt, o mesmo que a criou, dois anos antes. Essa é a primeira fase da irmandade na cidade. Provavelmente, ela já existisse antes, mas, em 1873, passou a atuar de forma organizada, com diretoria e associados. À época, Santa Maria era habitada por estancieiros, militares e imigrantes alemães e italianos, muitos dos quais senhores de escravos. – Santa Maria tinha uma população negra muito significativa. Tivemos uma escravidão consistente. Ao contrário do que diziam os viajantes que passavam por aqui, de que viam uma aldeia alemã ou suíça, o censo de 1872 mostra que quase a metade da população não era branca – conta o historiador.


MAIARA BERSCH

Há cerca de 10 anos, o professor de História Ênio Grigio pesquisa sobre a Irmandade do Rosário em documentos e jornais, como este exemplar de O Diário do Interior, de 1º de maio de 1915, do Arquivo Histórico Municipal


E foi justamente para “conquistar” essa população negra que o então vigário criou a irmandade, ligada à paróquia. Um breve relato é encontrado no livro Tombo – espécie de diário de registros – da atual Igreja do Rosário: “Os vigários mais zelosos procuravam fundar a Irmandade, a fim de conservar os pretos à sombra da Igreja, principalmente, devido ao descaso dos patrões em instruir os escravos e peões na verdade da fé.” – Temos, então, duas irmandades na cidade, uma branca, a de Nossa Senhora da Conceição e do Santíssimo Sacramento, onde a elite da cidade participa; e a de Nossa Senhora do Rosário, com a população negra integrada, entre eles, por escravos e negros livres – descreve Grigio. A irmandade funcionou com o pagamento de uma joia para ingresso e de mensalidades. Além do aspecto de devoção, a instituição organizava festas, bens e sepultamentos dos associados. Mesmo assim, a irmandade não tinha uma sede, funcionava junto à paróquia. Supõe-se que a imagem de Nossa Senhora do Rosário ocupasse um altar lateral, secundário ao da padroeira da cidade, Nossa Senhora da Conceição.


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~ Ocorre que as festas das irmandades negras misturavam aspectos cristãos com elementos africanos: dança, música, tambor e desfiles. – Naquele momento, em que a igreja tentou disciplinar as festas religiosas, tudo que fugia ao controle do padre era motivo para que ele tomasse uma atitude. E foi isso que ele fez, em 1875, dissolvendo a irmandade – conta o historiador.

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´ Após a dissolução, em 1875, a Irmandade do Rosário foi recriada em Santa Maria no ano seguinte à abolição. Um relato desse momento é encontrado no livro da Igreja do Rosário: “Após a abolição da escravatura, os morenos quiseram novamente se agrupar e formar a Irmandade. O pároco, padre Aquilles Parrella Catalano, selecionou os melhores elementos e, em 1889, pediu a aprovação da mesma ao vigário capitular da Diocese do Rio Grande do Sul, Monsenhor Vicente Ferreira da Costa Pinheiro, que anuiu ao pedido.” Em seguida, os negros fizeram um abaixo-assinado e pediram à Câmara Municipal a doação dos terrenos onde havia o Cemitério da Santa Cruz, nessa época, desocupado. No local, hoje, está a Igreja do Rosário. Em 1890, foi feito o lançamento da pedra fundamental da capela. A estrutura foi erguida pelos irmãos, com tijolos do cemitério e doações, e inaugurada em 1900. No mesmo ano, a irmandade se tornou Sociedade Beneficente Irmandade do Rosário como pessoa jurídica. Quatorze anos depois, um fato de grande repercussão colocou a irmandade e a Cúria em lados opostos. Documentos e jornais remetem a um processo movido pela irmandade contra o padre Caetano Pagliuca, em 1914 e 1915. – Os jornais falavam que os negros se rebelaram contra a hie-


Revista do Centenário de Santa Maria de 1914, Reprodução

rarquia da igreja, que havia uma seita anticlerical que influenciou essa população, que eles eram mal formados religiosamente. Esta era a versão que se tinha da irmandade – conta o historiador. O professor encontrou uma versão diferente sobre o assunto: – A igreja viveu um momento em que o controle da paróquia e de todas as associações eram do vigário. A única instituição que o padre Caetano Pagliuca não controlava era a Irmandade do Rosário. Então, ele entrou para a irmandade e se tornou tesoureiro. Em 1914, pegou as chaves da capela, disse que ela foi construída com os esforços de toda a população e, portanto, tinha que pertencer à comunidade. Ele não aceitou que a capela e os terrenos do entorno estivessem sob a propriedade de um grupo de negros. Os irmãos do Rosário contrataram


um advogado e deu-se um conflito judicial pela posse da capela e dos terrenos. O juiz em primeira instância, Walter Jobim, deu ganho de causa para a irmandade e mandou o padre devolver as chaves da capela. Porém, o padre recorreu à segunda instância, e a irmandade perdeu o domínio sobre a área. Atual arcebispo de Santa Maria, dom Hélio Adelar Rubert reafirma o posicionamento adotado à época e diz que as obras são da comunidade e não podem pertencer a determinado grupo.

Com o passar do tempo, os organizadores da associação foram sendo substituídos. – Começou um processo de apagamento daquela história e do que foi conquistado ali – analisa o historiador. Em 1942, a capela foi demolida. Dez anos depois, foi inaugurada a nova igreja da paróquia do Rosário. Os outros locais construídos pelos irmãos do Rosário (a Sociedade Treze de Maio e o Clube União Familiar) continuaram muito atuantes.


– A igreja era uma primeira forma de organização. O aspecto religioso era importante, mas o aspecto social também era. Então, talvez, eles não tenham resistido ao fim da irmandade porque tinham esses outros espaços estruturados – avalia Grigio. Para o pesquisador, a Igreja do Rosário, pela origem, é um marco fundamental na história da população negra e da cidade: – Se tem a ideia de que os negros, após a abolição, ficaram completamente desestruturados, sem capacidade de organização. Não é isso. Em Santa Maria, tivemos uma profusão de associações negras que foram criadas imediatamente após a abolição. Saíram de um período horrível de cativeiro, e logo construíram seus espaços de religiosidade e de sociabilidade. Santa Maria não pode esquecer dessa história e dessa contribuição.

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O bairro que hoje conhecemos como Nossa Senhora do Rosário, na época de formação da cidade, chamava-se Vila Rica. As primeiras casas surgiram em meados de 1840. A população negra se estabeleceu aos poucos no local. Até 1870, o terreno onde, hoje, fica a Igreja do Rosário abrigava o Cemitério da Santa Cruz. Entre os últimos anos de 1870 e o início de 1880, alguns negros integrantes da irmandade começaram a solicitar a posse de terrenos no bairro, mediante aforamento (pagamento de um valor anual). A procura pelo lugar se deu por ser uma área periférica da cidade, já que as áreas centrais estavam ocupadas. – Mais tarde, até 1900, já tínhamos a Vila Rica como um bairro negro. Os jornais da época fazem referência a isso: “ao povo moreno da Vila Rica”. Eles estavam espalhados pela cidade, mas tínhamos, ali, uma maior concentração de negros – diz o pesquisador Ênio Grigio. No bairro também ficava o tanque das lavadeiras, numa área onde, atualmente, localizaríamos como os fundos do Colégio Sant’Anna. No lugar ficava uma fonte pública usada pelas mulheres para lavar roupas. Várias associações negras foram criadas no bairro ou nas redondezas. Entre elas, a Sociedade Treze de Maio e o Clube União Familiar. – Como eles (negros) não tinham acesso aos clubes e associações da cidade em função do racismo, se organizaram para criar seus próprios espaços – analisa Grigio.


germano rorato


Clube União familiar – Fundado em 1896, era um clube negro como o Treze de Maio e com a mesma finalidade Capela de Nossa Senhora do Rosário – Inaugurada pela irmandade, em 1900, com objetivo religioso. Ali eram realizadas missas, quermesses e procissões Sociedade Treze de Maio – Fundada em 1903, como local de lazer e de reunião de público, onde eram feitas festas e bailes dos negros. O objetivo era de ser um local de diversão, mas também foram realizadas aulas noturnas


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´ Não se sabe quantas pessoas integraram a Irmandade do Rosário em Santa Maria. Os documentos não foram localizados. – Todas as irmandades têm um livro de entrada de irmãos, um livro de atas e um livro-caixa. Mas não sabemos onde estão os livros da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Santa Maria. Os jornais falam em mais de mil pessoas nas festas do Rosário, contando também os que não eram da irmandade – lamenta o professor de História Ênio Grigio. A pesquisa do historiador revelou que eram praticamente todos trabalhadores manuais – jornaleiros, carroceiros (transportadores das mercadorias que chegavam ao município por meio da viação férrea), pintores e pedreiros – analfabetos e marginalizados. Havia alguns integrantes que eram brancos, principalmente, nas funções de tesoureiro e escrivão, atividades que necessitavam de certo grau de estudo. Na segunda geração, formada pelos filhos dos fundadores da irmandade e da Sociedade Treze de Maio, já aparecem ferroviários, militares, pessoas com trabalhos mais estáveis. Mas, ainda poucos alfabetizados.


Arquivo, DIVULGAÇÃO

Entre os integrantes da Irmandade do Rosário, havia carroceiros que transportavam as mercadorias que chegavam à cidade por meio da ferrovia

José Marcelino de Souza Bittencourt – Padre baiano que veio para o Rio Grande do Sul ainda seminarista. Foi ordenado em Porto Alegre, passou um tempo em São Gabriel e se tornou vigário de Santa Maria. Criou a irmandade em 1873 e a dissolveu em 1875


Sisnando Antônio de Oliveira – Ex-escravo. Era carroceiro, integrante da irmandade. A reunião que marca a fundação da Sociedade Treze de Maio, em 13 de maio de 1903, foi realizada na casa dele, na antiga Rua 24 de Maio, atual Silva Jardim José Francisco do Nascimento – Nasceu escravo em 20 de dezembro de 1859, em São Leopoldo. Em 1890, já estava em Santa Maria da Boca do Monte. Também carroceiro. A partir de 1924, teve a atividade registrada, como outros, na Intendência Municipal (prefeitura da época) Adão Gabriel Haeffner e Antônio Gabriel Haeffner – Gêmeos nascidos em 1848, filhos de uma africana chamada Maria. Depois do fim da escravidão, eles adotaram o sobrenome do senhor de escravos, o imigrante alemão Gabriel Haeffner. Fizeram parte das duas fases da Irmandade do Rosário. Na segunda, eram da diretoria e protagonistas no processo contra o padre Caetano Pagliuca. Adão, pedreiro e jornaleiro, também trabalhou na limpeza da Intendência (prefeitura da época) de 1913 até 1925. Morreu em 1938, com 90 anos


´ Os negros têm devoção a vários santos negros, como São Benedito, Santo Isidro e Santa Efigênia. Então, por que a população negra da Europa e do Brasil cultiva devoção à Nossa Senhora do Rosário, que não é negra? Segundo o historiador Ênio Grigio, há diferentes correntes de pesquisadores para explicar. A devoção a Nossa Senhora do Rosário surgiu na Europa no século 12, mas foi nos séculos 15 e 16 que se intensificou e ganhou proporção na América e na África, como “uma devoção contra os inimigos da Igreja Católica”. Segundo Grigio, em Lisboa, a igreja da padroeira era mais democrática do que as demais, frequentadas pelos brancos. Ela permitia que a população negra participasse dos eventos e das celebrações. Além disso, a Coroa Portuguesa possibilitava que os escravos integrantes da Irmandade do Rosário comprassem sua liberdade pelo “preço justo”. – A população negra de Lisboa viu na irmandade uma possibilidade de acesso à liberdade. A partir disso, a devoção se espalhou – analisa Grigio. Outras correntes de pensamento associam a devoção ao fato de o rosário lembrar os cordões com contas usados pelos africanos. Quando os padres jesuítas, franciscanos e dominicanos vieram para o Brasil, trouxeram a devoção com eles e a utilizaram para catequizar os negros. O intuito era mudar a religiosidade original dos africanos, tornando-os católicos.


germano rorato


o Reportagem e ediçã Lizie Antonello Design Manuela Balzan


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