Kiss: 2 anos depois

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TERÇA-FEIRA 27 JANEIRO 2015 ANO 13 Nº 3.903 R$ 1,00

diariosm.com.br

KISS

2 ANOS DEPOIS RONALD MENDES

GABRIEL HAESBAERT, ESPECIAL

FERNANDO RAMOS

FERNANDO RAMOS

GABRIEL HAESBAERT, ESPECIAL

Nunca passará

em branco HOMENAGENS

REFLEXÕES

COBRANÇAS

“Neste dia, o importante é homenagear nossos filhos e não deixar que a tragédia caia no esquecimento.” Adherbal Ferreira, presidente da AVTSM

“Lembrar para não repetir. Eis a razão, Santa Maria Cidade, pela qual deves sair de branco hoje, e ocupar a praça...” Marcelo Canellas, cronista

“Enquanto as famílias não presenciarem mudanças e não obtiverem uma resposta por justiça, não pararão.” Melissa Haigert Couto, psicóloga e socorrista da Cruz Vermelha

Páginas 7 a 10


TERÇA-FEIRA, 27 DE JANEIRO DE 2015

ESPECIAL

AS HOMENAGENS

KISS

2 ANOS

DEPOIS

Dia de abraça

Santa Mari

Associações pedem que santa-m


ESPECIAL 7

TERÇA-FEIRA, 27 DE JANEIRO DE 2015

KISS

2 ANOS

DEPOIS

AS HOMENAGENS

AS HOMENAGENS

Dia de abraçar

❚ Caminhada – O Movimento Santa Maria do Luto à Luta promove uma caminhada, com saída da frente da boate Kiss, a partir das 7h. Até o fechamento desta edição, não havia sido definido o percurso.

Santa Maria

Associações pedem que santa-marienses vistam uma peça de roupa branca hoje GABRIEL HAESBAERT, ESPECIAL

Acompanhe, no site, a cobertura do dia de homenagens às vítimas

MAURÍCIO ARAUJO Especial

A SÉRIE 22/01 ❙ A cidade 23/01 ❙ A legislação Sábado e domingo ❙ A noite Ontem ❙ O comportamento Hoje ❙ O dia de homenagens

H

á exatos dois anos, Santa Maria acordou em meio à dor. A tristeza foi uma constante e os pedidos de justiça ecoaram ao longo destes 24 meses no Coração do Rio Grande. Hoje, várias programações foram organizadas para homenagear as 242 pessoas que perderam a vida no incêndio da boate Kiss. Mas, sobretudo, neste 27 de janeiro, o que todas as associações querem é que os santa-marienses vistam branco em homenagem às vítimas. Desde as primeiras horas do dia, uma vigília tomaria a frente da boate. Integrantes do Movimento Santa Maria do Luto à Luta levariam velas, pintariam a fachada da boate e promoveriam um ato às 3h, para marcar o horário do início do incêndio.

As Mães de Janeiro pregariam balões iluminados em frente à Kiss, soltando-os ao amanhecer. Outros protestos, caminhadas e até uma festa em uma casa noturna devem marcar os dois anos da tragédia. Tudo envolto em branco que, na visão dos integrantes das associações, representa a paz e a pureza. Ainda ontem, faixas brancas foram colocadas nas fachadas dos prédios da SUCV, do Shopping Independência e do Theatro Treze de Maio. Empresários e lojistas devem fazer o mesmo hoje. Também ontem, alguns ônibus de transporte coletivo urbano já circulavam com fitas brancas nos retrovisores, e a bandeira de Santa Maria, que fica em frente ao Centro Administrativo da prefeitura, estava a meio-mastro. Além disso, um outdoor na Rua André Marques relembrava as 242 pessoas que morreram na tragédia.

❚ UFSM – Às 10h, representantes da AVTSM e do Movimento Santa Maria do Luto à Luta vão participar de uma homenagem ao lado de uma árvore que foi plantada no campus da UFSM no ano passado. ❚ Documentário – Às 15h e às 21h, o documentário “Janeiro 27” será transmitido pela internet, no canal Multiweb da UFSM (multiweb. ufsm.br/aovivo/canal1 ). Na TV Campus, o documentário vai ao ar às 20h, pelo canal 15 da Net, e pelo site da emissora (ufsm.br/tvcampus). ❚ Evento – A partir das 18h, no ginásio Franciscão (anexo ao colégio Sant’Anna, na Rua Silva Jardim), a AVTSM promove homenagens com apresentações musicais, leitura do nome das vítimas acompanhada pelo toque de tambores, soltura de 242 balões ao som de violinos, momento de oração ecumênica e o tradicional minuto de barulho. ❚ Pela paz – A partir das 19h, a Associação Ah, Muleke! promove a Caminhada Pela Paz, que sai da gare e vai até a praça Saldanha Marinho, onde será feita uma oração. ❚ Festa – A partir da 23h30min, a boate Muzeo Pub, com o apoio da associação Ah, Muleke!, promove a festa I Love Funk – White Peace. Conforme a associação, o apoio à festa visa conscientizar os jovens sobre segurança nas casas noturnas. Metade da renda arrecadada no evento será destinada a duas instituições: Lar das Vovozinhas e Casa Maria.

Dois anos depois... Passados 24 meses da tragédia que abalou Santa Maria e o mundo, familiares, sobreviventes e amigos das vítimas prometem seguir atuando para que dias como o 27 de janeiro de 2013 nunca mais se repitam. Conforme o presidente da AVTSM, Adherbal Ferreira, a dor segue a mesma, e o luto persistirá enquanto não houver justiça: – A ferida ainda está aberta e continua sangrando. A saudade não passa, pois o amor não acaba. Infelizmente, há impunidade. Mas precisamos andar, seguir em frente, carregando nossa dor. Para Kelen Ferreira, 21 anos, sobrevivente da tragédia, a valorização da vida foi uma das lições aprendidas nestes dois anos. – Há dias em que estamos entre altos e baixos. Vou tocando em frente, pois sei que tenho Deus, meus pais, minha família, amigos

e pessoas que, mesmo não me conhecendo, querem o meu bem e me confortam com abraços, palavras, carinho e afeto – diz a jovem. O psicanalista e coordenador do Acolhe Santa Maria,Volnei Antonio Dassoler, divide a cidade em dois grupos. O primeiro é o das pessoas que vivem a tragédia de acordo com o tempo cronológico: essas acreditam que dois anos é tempo suficiente para aceitar o fato. Já o segundo grupo é o das pessoas expostas à tragédia, que vivem o tempo lógico, que corre de acordo com cada um e que, sobretudo, deve ser respeitado. –Todos sofreram, e todos temos tempos distintos. Um dos braços de identificação de Santa Maria, que são os jovens, foi abalado com essa tragédia, pois aconteceu justamente com eles. O incêndio foi no âmago da cidade. Todos precisamos respeitar o próximo – finaliza Dassoler.


ESPECIA

TERÇA-FEIRA, 27 DE JANEIRO DE 2015

ENTREVISTA

KISS

O líder cede Q

2 ANOS

seu lugar

DEPOIS

uase dois anos depois de ter ajudado a fundar a Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Adherbal Alves Ferreira está prestes a deixar a presidência da entidade, segundo ele, para se voltar à família e aos negócios – ele é dono de uma loja de materiais para escritório.

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Adherbal Alves Ferreira, presidente da Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM)

“Vou lutar de outra forma” Diário – Por que o senhor vai deixar a presidência? Adherbal Alves Ferreira – Entendo que meu tempo na presidência já acabou. Precisamos de outra pessoa com mais disposição para uma nova caminhada. Acho que fiz o que precisava fazer. Segurei os maiores problemas do início. Peguei o período mais crítico. Consegui levar a fé a todos. Posso não ter agradado a todos, mas isso é difícil mesmo. Diário – Há algum fator específico que tenha motivado sua saída? Adherbal – Minha vida pessoal pesou bastante. De 2013 até abril de 2014, eu era 90% associação e 10% família e empresa. Realmente, me dediquei muito. Era uma necessidade minha. Queria abraçar todo mundo, mas, com o tempo, isso foi afetando um pouco a minha saúde. Diário – Há possibilidade de retorno? Adherbal – Preciso de um tempo para respirar e, depois, voltar. Talvez, com muito mais força. Não descarto retorno. Diário – Qual o legado do seu mandato? Adherbal – A associação é do conjunto. Desde o princípio, queríamos a união de todos. Conseguimos. Embora apenas um grupo de 40 ou 50 participe ativamente, todos estão conosco,

e isso é importante. Com algumas divergências daqui e dali, uns seguiram uma maneira de caminhar diferente. Mas o que importa é que todos entendem que estão ligados a um único fato, que foi o massacre. A associação é forte, reconhecida no país. Prima pela justiça, pela paz, pela ordem e pelo correto e para que a tragédia não caia no esquecimento. Na parte social, a associação tem papel muito importante e, se não fosse ela, muitos estariam desassistidos. Se houve falhas, tentamos corrigi-las. Foi fundamental na parte de saúde, social e da justiça, com os advogados acompanhando os casos. Plantei uma semente. Vamos deixar que ela germine. Diário – Deixa a presidência, mas pretende continuar atuante? Adherbal – Pretendo continuar coordenando os cultos ecumênicos, se me permitirem. Mas, se acharem que tem de ser outra pessoa, vou aceitar. Vou lutar de outra forma. Eles não vão me perder. Não vou abandonar o grupo.

Não vou abandonar o grupo. Não descarto retorno

Pretendo usar a experiência que tive e passar minhas ideias para outra pessoa. Diário – Pensou em reeleição ou em entrar em uma chapa em outra função? Adherbal – Não. Depois que eu sair, vou retomar minhas atividades, meu trabalho. As pessoas precisam andar com as próprias pernas. Será bom para quem assumir. Vou ficar na retaguarda. Não vou me desligar nunca, porque estou dentro disso. Vou continuar sendo sócio. Mas pretendo dar uma aliviada. Uma reeleição pesa para quem é reeleito. A renovação é boa, desde que haja continuidade do bom trabalho e eliminação do que é ruim. Diário – Depois de dois anos, o senhor está cansado? Adherbal – De certa forma. A presidência é um cargo muito importante, que exige bastante.

Fiquei muito ativo nesses dois anos, viajei muito em função da associação. Preciso de um tempo para mim, preciso dar uma respirada. Consegui abraçar todos, só que a gente vai cansando.Não no sentido de desistir da luta. Isso, jamais. A justiça, quero que seja feita. Lutei muito para isso.

A gente vai cansando. Não no sentido de desistir da luta. Isso, jamais.

Diário – O senhor se sente sozinho nessa luta? Adherbal – Não sozinho. A equipe atual é boa, parceira, está junto comigo. Mas acho que poderia ter mais apoio. Espero que o próximo presidente siga na mesma linha e tenha uma diretoria que ajude.

É necessário que haja manifestações. Cada um fala por si, mas todos estão juntos na associação. Todos são pais.

Diário – Muitos acham que os grupos diferentes de pais representam uma divisão. O que acha disso? Adherbal – Os grupos diversificados que surgiram são bastante ativos e se complementam.

Diário – O senhor se arrepende de algum posicionamento ou decisão? Adherbal – Estou tranquilo. Acho que fiz o correto. Muitos acham que eu poderia ter feito mais. Mas acho que, no primeiro momento, tínhamos que cuidar da alma das pessoas, do sentimento, do coração para ter equilíbrio. A parte contundente foi feita pelos movimentos. É possível que


AL 8 E 9 LIZIE ANTONELLO lizie.antonello@diariosm.com.br

empresário perdeu a filha Jenne22 anos, no incêndio que resultou morte de mais outras 241 pessoas. ca de seis meses depois, passou a resentar familiares e sobrevivene ajudou a criar a entidade que na busca por atendimento à saúpor justiça e em ações sociais. m 7 de março, a associação realizará assembleia para escolher a nova

diretoria. A partir de fevereiro, os candidatos já poderão montar os seus grupos do conselho diretor. São seis integrantes: presidente, vice-presidente, 1º secretário, 2º secretário, 1º tesoureiro e 2º tesoureiro. Qualquer um que seja sócio da entidade pode concorrer e votar. Prestes a se despedir do cargo, Adherbal faz uma avaliação do tempo em que esteve à frente da entidade. CARLOS MACEDO, 13/01/2014

manter a conversação. Quanto aos culpados, a Justiça tem de fazer a sua parte, não somente em relação aos quatro réus, mas dos outros tantos que têm responsabilidade. Diário – Sobre a responsabilização de agentes públicos, o senhor tem esperança? Adherbal – A responsabilidade tem de ser apurada em todas as instâncias. Diário – O que sua família, mulher e filho, acham disso? Adherbal – Sempre me apoiaram e trabalharam na empresa por mim. Mas, a partir de agosto (de 2014), quando percebi que precisava retomar minhas atividades, concordaram. Diário – Ficam ações não realizadas? Adherbal – Sim. O memorial. Tínhamos três projetos, mas houve divergência no grupo, pisei no freio e não consegui efetivar. Saí com a asa quebrada. Queria ter feito. O que não pode é aquele prédio ficar um mausoléu. Tem que ser feito algo ali. eu tenha deixado de fazer algum protesto, mas eles não deixaram de existir. Diário – O pai Adherbal foi impedido pela função que exercia de ser mais combativo? Adherbal – Isso pesou sim, porque represento uma entidade. Não posso fazer o que bem entendo. Diário – O senhor acha que foi mal compreendido por isso? Adherbal – Talvez tenham me confundido com alguém que queria se promover, que quer ser político ou se dar bem. Mas, se fosse, não estaria saindo da presidência. Pelo contrário. Quero voltar a ser o cidadão normal que eu era, com o conhecimento que veio da forma que ninguém gostaria de adquirir. Infelizmente, ganhei por causa de um massacre. Nunca tive interesse em andar de avião. Nunca quis nada disso. Só queria minha filha de volta. Mas,

pelo cargo que ocupava, tive que fazer, levar a associação para muitos lugares. Saio para dar oportunidade para os que acham que não agi direito, que o façam. Diário – E agora, como fica o Adherbal sem a entidade? Adherbal – Sou mais combativo nas palavras do que nos atos. Acho que as palavras certas, no lugar certo, conseguem atingir muito mais que atitudes. Uma palavra bem dita pode salvar, dar saúde, curar. Eu sei que a associação poderia ter causado um estrondo na cidade. Tenho consciência do poder que temos, mas preferi manter a cidade como está, mesmo tendo sido mal compreendido por muitos. Diário – O senhor acredita na conciliação? Adherbal – O foco foi manter o equilíbrio. Não quer dizer que concorde com tudo, mas tive que

Diário – O senhor deixa a presidência, sem um resultado do processo criminal por homicídio. Isso é uma frustração? Adherbal – Com certeza. Era um sonho meu. É o que todos almejamos. Esse processo não precisava demorar todo esse tempo. Queria que ainda na minha gestão houvesse justiça, infelizmente não será. Talvez na próxima. Diário – Que recado o senhor deixa para as famílias e para os santa-marienses? Adherbal – Que não deixem a luta, nem a fé que leva alívio aos nossos corações.

Nunca quis nada disso. Só queria a minha filha de volta.


ESPECIAL 10

TERÇA-FEIRA, 27 DE JANEIRO DE 2015

HOMENAGENS

KISS

2 ANOS

DEPOIS

Para nunca

esquecer

“Diário” pediu a jornalista, psicóloga e quadrinista que se manifestassem sobre os dois anos da tragédia

Oração a Santa Maria Cidade Santa Maria Cidade, és mãe. Rogo-te que acolhas, no aconchego de teu colo imenso, o pranto dos enlutados. Os filhos dos teus filhos, Santa Maria Cidade, nasceram da fertilidade do teu ventre, ou foram adotados por ti, por tua índole maternal, generosa e abundante. Deste a eles o afago de teus morros, a carícia dos teus ventos, e ganhaste em troca o viço da mocidade. Rejuvenesceste vendo o desabrochar dos sonhos, o despertar das aspirações, a descoberta do mundo, e testemunhaste a urdidura do universo individual que há dentro de cada rapaz, de cada garota. Tens a forma de uma boca risonha, ornada pela mata de tuas encostas, como se te pusesses a gargalhar com as peripécias da rapaziada. Os filhos dos teus filhos, Santa Maria Cidade, perambulavam pelos bares, bebericavam com os amigos, flertavam no Calçadão, estendiam toalhas no Itaimbé em ruidosos piqueniques, vestiam bonés com as abas para trás, dançavam funk, pagode, vanerão. Essa bagunça benigna, prenhe do ânimo hormonal dos moços, repletos da curiosidade e da inquietude que levam ao conhecimento, te fez alegre e única. Ganhaste vida, Santa Maria Cidade, pela mão dos filhos dos teus filhos. Ao veres a contradição te golpear, com a morte obscurecendo tua face luminosa, não te deixes levar pelos es-

Alexandre Beck, quadrinista

Marcelo Canellas, cronista

túpidos, pelos tolos que tentam esconder, sob o tapete roto da indiferença, 242 pessoas, como se elas fossem apenas números de uma estatística incômoda que deve ser apagada da planilha de um burocrata. Não há tapete algum no mundo, Santa Maria Cidade, que oculte os filhos dos teus filhos, pois cada vida é imensa, descomunal, e não cabe debaixo da desfaçatez. O que estás esperando, Santa Maria Cidade, para tomar o espaço da morte e transformá-lo em luz? O que falta para desapropriares aquele lugar, firmando o compromisso público de lançar a pedra fundamental de um Memorial assim que a Justiça liberar o local? Imagina o mundo olhando para ti, ao lançares um concurso internacional que escolherá o melhor projeto a lembrar os filhos dos teus filhos? E deixar de te ver como estigma do terror, para te exaltar como símbolo de superação? Lembrar para não repetir. Eis a razão, Santa Maria Cidade, pela qual deves sair de branco hoje, e ocupar a praça, e render homenagens, e pedir uma vez mais que cada responsável pague o preço justo de sua falta. És mãe, não te omitas. Não te cales. Não te apequenes. És grande demais. Tens o tamanho dos filhos dos teus filhos. O esquecimento é o trunfo dos omissos. O tesouro dos justos é o aprendizado que a memória lega.

H

oje é dia de reviver a maior tragédia que Santa Maria já e o Rio Grande do Sul já viram. Já faz 2 anos que fomos sacudidos pela dor da perda de 242 pessoas mortas no incêndio da boate Kiss. Em uma data que traz à tona lembranças dolorosas e memórias tristes, o “Diário” pediu a três pessoas que falassem sobre o que houve naquela madrugada, sobre como estamos hoje e sobre o que esse acontecimento de proporções imensamente lamentáveis afeta a todos nós. Nesta página, você confere a oração escrita pelo jornalista Marcelo Canellas, as impressões de Melissa Haigert Couto, psicóloga socorrista da Cruz Vermelha que, há 2 anos, trabalha com sobreviventes e seus familiares, e os traços de Alexandre Beck, autor do querido personagem Armandinho.

Uma noite que ainda não terminou Estávamos voltando de férias no sábado à noite, pois haveria menos movimento e viajaríamos mais tranquilos. Às 5h da manhã, quando passávamos por Santa Cruz do Sul, o meu telefone tocou. Pensei: “Que estranho! A Cruz Vermelha Brasileira Santa Maria (CVBSM) ligando essa hora. Alguma coisa aconteceu!”. Logo que atendi, o presidente da CVBSM disse: “Está em Santa Maria? Houve um incêndio em uma boate aqui, e a previsão é de 50 mortos. Precisamos de ti. Vá direto ao CDM (Centro Desportivo Municipal, para onde os corpos foram levados).”. E a ligação caiu.“Meu Deus! E agora?”, pensei. Desde 2004, estudo e trabalho com Psicologia das Emergências e Desastres na CVBSM, uma área nova na psicologia no Brasil. Então, você se vê em uma situação triste dessas e pensa: “Esse é o meu trabalho: auxiliar em situações como estas.”. Enviei mensagens de texto para todos psicólogos e psiquiatras da minha lista telefônica, explicando o fato e solicitando ajuda. Quando cheguei ao CDM, por volta das 7h da manhã, uma colega estava a minha espera. A situação era caótica. Várias instituições estavam reunidas, e havia muito muito a se fazer. Todos estavam tomados de angústia e de tristeza. As perdas são inerentes à vida. Tragédias, não. Foram as 36 horas mais longas da minha vida. Vivenciei a pior dor que poderia e presenciei o quão solidárias as pessoas foram frente à dor. Momentos que jamais se apagarão de mim e de minha memória. O ano de 2013, vivi ao lado dessas famílias, conhecendo suas histórias, compartilhando suas dores. Foi um ano difícil para todos. Santa Maria estava em luto. A comunidade foi solidária a essas famílias, respeitando a dor, clamando por justiça, lutando junto e entendendo que nossa cidade nunca mais seria a mesma, que não existia uma maneira de retomar a normalidade e, sim, construir uma “nova normalidade”. Em 27 de janeiro de 2014, tinha certeza de que viveríamos um momento angustiante, pois, naquele dia, um ciclo se encerrava. Todos teriam passado por todos os

Melissa Haigert Couto, psicóloga clínica e socorrista da Cruz Vermelha Brasileira

momentos ao longo do ano de ausências. Durante o ano, conversamos sobre essa falta da presença dos que amavam. Dali em diante, já saberiam como seriam seus dias em todas as datas. Mas isso, de forma alguma, ameniza a dor. Apenas traz uma maior compreensão para o sofrimento, pois o processo de luto ainda está em andamento. E foi como viver tudo de novo. Eu estava lá em 2013 e estava novamente em 2014. Se, para mim, um filme passou, imagina para essas famílias? Foi um momento em que revivemos a dor. Mas, agora, já era possível dar um nome a ela: saudade. Durante 2014, familiares de vítimas e sobreviventes encontraram muitas maneiras para conceber essa “nova normalidade” para suas vidas, trabalhando em ações sociais, no alerta e na prevenção, e buscando justiça. Ao mesmo tempo, algo aconteceu com a população, que dividiu opiniões e não foi mais tão solidária à dor dessas famílias. Diferente do que muitos pensam, nem todos agem por descaso. Mas, para o ser humano, é muito difícil lidar com a dor, e essa é uma dor que não tem fim. Então, para muitos que não trabalham suas perdas, ficaria complicado ter que lidar com o dor do outro, pois teriam que pensar nas suas próprias dores. Por outro lado, enquanto essas famílias não presenciarem mudanças na sociedade e não obtiverem uma resposta por justiça, não pararão, pois como eles mesmo dizem, não lutam pelos que foram e, sim, pelos que ficaram. Como especialista, posso dizer que cada ser humano sente, defende-se e elabora seu luto de forma diferente. O tempo é o recurso para cada rompimento que vivemos. Só ele nos permite ressignificar nossas dores. Não podemos fazer julgamentos, pois cada um de nós tem uma forma de sofrer e de representar isso. Como pessoa, posso garantir: essas famílias, em meio a toda essa perda e essa dor, permitiram-me estar ao lado delas e me ensinaram que o amor sempre pode ser maior. Com certeza, todos me fizeram repensar na vida. Hoje, sou uma psicóloga melhor, uma mãe melhor, um ser humano melhor.


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