O medo na cidade através das lentes do cinema Trabalho de conclusão de curso por Juliana Dias Orientação de Werther Holzer Supervisionado por Andrea Sampaio EAU - UFF - 2021.1
a g ra d e c i m e nt o s Depois desse ano tão difícil, terminar uma etapa tão importante da minha vida de uma maneira inesperada é confuso mas, ao mesmo tempo, é uma conquista. É muita sorte da minha parte ter uma frente de apoio tão forte que faz com que esse processo seja o mais leve possível. Tenho que agradecer à minha família, principalmente à minha mãe, que sempre me ensinou a importância do pensamento crítico e me fez crescer em um ambiente cheio de arte e cultura, me incentivando a descobrir meus gostos com todo o afeto. Meu pai, que me levava ao cinema todos os fins de semana e transformou essa experiência em algo especial pra mim, e mesmo sem que ele possa ler essa dedicatória, ele está presente nesse trabalho. Meu padrasto, Fernando, meu irmão, Heitor, e minha irmã, Marina, por sempre serem o contraponto da minha ansiedade e preocupação, deixando todos os momentos mais leves. Não poderia deixar de agradecer à Doralina, a mais protetora e ciumenta da casa, sempre atenta a como estou me sentindo, me fazendo companhia nos momentos difíceis e sendo minha fonte de alegria diária.
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Aos meus amigos, não só os que fiz na faculdade, mas os da vida também. Não conseguiria mencionar todos aqui, mas a eles tenho a agradecer por todo o companheirismo, toda a ajuda e todas as risadas que fizeram dos meus dias sempre mais felizes. Aos que estavam presentes em todos os momentos do processo desse trabalho, sendo meus companheiros de surtos e alegrias, Sophia e João Paulo. Ao meu namorado, Raffael, agradeço por ser sempre a pessoa que mais torce por mim e por fazer meus dias melhores, independente da situação. Agradeço também ao meu orientador, por topar embarcar nesse tema comigo e pela paciência. Esse trabalho não seria possível sem o apoio e a presença de cada um de vocês.
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resumo Neste trabalho foram abordadas as relações entre cidade, medo e cinema. Inicialmente, propôs-se a pergunta sobre a possibilidade de identificar os elementos causadores de medo nas cidades através de obras do cinema, entendendo que essa arte pode trazer reflexões relevantes sobre o assunto. Os conceitos teóricos para que se possa entender melhor os fundamentos do medo no cenário urbano foram mobilizados para entender que ele não advém apenas de aspectos físicos da cidade, mas também dos sociais, culturais e emocionais. A partir disso, foi feito um panorama histórico com filmes icônicos de horror e as relações que eles apresentam com os temores apresentados pelas cidades apresentadas neles, relacionando-OS aos acontecimentos histórico-sociais da época que se localizam, servindo não só para o enriquecimento da discussão proposta neste trabalho, mas também como forma de oferecer contorno às análises. Foram analisados quatro filmes: Os pássaros (1963) de Alfred Hitchcock; A vila (2004) de M. Ni-
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ght Shyamalan; Uma noite de crime (2013), de James DeMonaco; e Viveiro (2019) de Lorcan Finnegan. As películas apresentam diferentes vertentes do medo no espaço urbano, e ajudaram a encaminhar a discussão, unindo os conceitos arquitetônicos e urbanísticos aos temores tanto do espaço dentro das telas quanto fora delas. Palavras chaves: Cidade; Medo; Cinema; Arquitetura; Urbanismo; Horror.
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Introdução
01. Medo na Cidade
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02. Cidade e cinema
62 03. Análises dos filmes
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Considerações finais
Referências, filmografia e catálogo de imagens
introdução
Para melhor projetar cidades, é preciso compreender o que as torna convidativas, mas também que aspectos as tornam amedrontadoras. Nelas encontramos diversas realidades, tipos de pessoas, habitações, classes sociais e emoções decorrentes da forma como o indivíduo lida com essa variedade. Em meio a esta experiência emocional e sensorial, pode-se destacar o medo, que tem a cidade ora como cenário, ora como protagonista de situações que fazem seus habitantes experimentarem esse sentimento. Mas quais elementos da polis contribuem para que isso aconteça? Como são vistos pelas câmeras dos artistas e pelos olhos de seus espectadores? Um bom encaminhamento para pensar sobre isso é investigar como a cidade se apresenta em alguns filmes de suspense ou terror para refletir de que modo a composição urbana contribui para esse imaginário. A arte não reproduz o real mas, na realidade criada no universo cinematográfico, por exemplo, podemos tecer algumas reflexões sobre a configuração do espaço urbano. É comum pensar principalmente em violência quando se trata de medo em núcleos urbanos, mas este não é o único motivador desse sentimento quando se trata desses espaços. Existem
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outros fatores que podem passar despercebidos como causa da sensação de insegurança, mas que afetam a experiência dos habitantes. Nessa pesquisa, além de analisar o contexto da violência na cidade em algumas películas também tento identificar outras facetas do medo no espaço urbano. Kevin Lynch (1981) aponta como, muitas vezes, consideramos alguns locais como bons ou ruins objetivamente, sem pensar sobre os elementos que levam aqueles espaços a provocar essas sensações, mas que, para melhor entender o núcleo urbano deve-se pensar nos elementos que fazem com que as pessoas que o habitam se sintam de tal maneira. Acredito que a análise de obras cinematográficas é uma boa forma de pensar e identificar esses elementos tanto dentro do universo do cinema quanto fora. Este trabalho procura explorar a relação entre o medo, a cidade e o cinema, tratando de um recorte temporal por amostragem de filmes entre 1963 e 2019. Para melhor contextualizá-los, é necessário traçar um breve panorama histórico utilizando filmes icônicos, que podem dialogar com os medos apresentados nas cidades fictícias, e considerar a relação que estabelecem com a época de suas produções. A metodologia da pesquisa é de base
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bibliográfica e estudo de documento audiovisual, para que possam ser pensados caminhos para fazer a relação entre cidade, medo e cinema. O critério para a escolha dos filmes foi trazer uma variedade de medos que se relacionam à cidade, com o objetivo de identificar os elementos causadores dessa sensação dentro do universo de cada filme, tomando como base a leitura de bibliografias que se relacionem ao tema. O primeiro capítulo procura apresentar conceitos e ideias importantes sobre a configuração da cidade e sua relação com o medo, que servirão de base para os próximos capítulos. Trago os autores que compõem a bibliografia de base deste trabalho, a fim de pensar as cidades e seus medos, relacionando-os a um ponto de vista arquitetônico e urbanístico, como o urbanista Kevin Lynch, o geógrafo Yi-Fu Tuan, o arquiteto Juhani Pallasmaa, o filósofo Byung-Chul Han, a arquiteta Sônia Ferraz e outros teóricos que contribuem para a temática do trabalho. O segundo capítulo pretende localizar e contextualizar filmes através das décadas, suas cidades e seu contexto histórico, para dar contorno às análises dos objetos de estudo escolhidos neste traba-
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lho. Trata-se de um panorama histórico que destaca filmes de horror icônicos de algumas décadas para contextualizar as películas escolhidas para análise no terceiro capítulo, indicando os eventos ocorridos no mundo, e o motivo da escolha de alguns temas como amedrontadores. Esse panorama também ajuda na percepção da mudança do conceito de terror para cada época, dependendo das mudanças histórico-sociais nas quais suas cidades estão inseridas. Por fim, o terceiro e último capítulo é composto das análises dos quatro filmes que compõem uma amostragem do recorte temporal de 1963 a 2019, e trazem importantes reflexões sobre as cidades dentro de seu universo que podemos relacionar às nossas. As películas escolhidas foram: Os pássaros (1963), dirigido por Alfred Hitchcock; A vila (2004), dirigido por M. Night Shyamalan; Uma Noite de Crime (2013), dirigido por James DeMonaco; Viveiro (2019), dirigido por Lorcan Finnegan. A partir deste estudo, procuro entender melhor as relações de medo na cidade através do viés da sétima arte, que acredito que possa trazer uma perspectiva interessante sobre o tema, e refletir sobre como a configuração das cidades contribuem para o temor de seus habitantes. 19
medo na cidade
01.
O medo pode ser considerado um sentimento bem íntimo aos seres humanos. Desde o nascimento até o momento da morte, nós o experimentamos, mesmo que de formas variadas: do desconhecido, do escuro, uns dos outros. No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o medo é definido como: “Perturbação psicológica diante de ameaça ou perigo, real ou imaginário.”. Na infância, ele se configura mais no campo do imaginário, de situações ligadas a criaturas fantásticas, bruxas e monstros, provenientes das histórias ouvidas, filmes assistidos e da própria imaginação. Na fase adulta, os medos se tornam mais realistas e mais baseados em vivências próprias ou de outros, e é quando o temor dos semelhantes passa a ser tão intenso que sentimos necessidade de elaborar estratégias de proteção contra a ameaça mais provável: o outro. Embora não seja exclusivo à espécie humana, talvez possamos afirmar que a elaboração de sua complexidade faz com que modifiquemos o espaço à nossa volta para evitá-lo. Segundo a psicanalista Maria Rita Kehl (2007), o que há de pior no mundo não é a presença do medo em si, mas sim como ele se configura na atualidade, em que perde suas nuances e é encoberto por sua mais terrível forma: o sentimento de ameaça
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vindo de seus semelhantes. Um grande exemplo a ser dado como agravador desse sentimento é a pandemia da Covid-19, que fez com que se visse no outro uma ameaça concreta, o que obrigou o distanciamento social como forma de sobrevivência. Locais que antes representavam confraternização e troca, hoje representam perigo, e a prática mais saudável passa a ser a do não-encontro. Os seres humanos são por natureza sociais, e esse temor modificou a forma como se comunicam, se transportam, se comportam e, por consequência, terminou por impactar a cidade. Através dos tempos, os temores se modificaram e moldaram a cidade, que não era como hoje a conhecemos. Segundo o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan (2013), a cidade é uma aspiração da humanidade por ordem e harmonia, tanto na constituição da arquitetura quanto na dos relacionamentos sociais, mas dificilmente esse ideal se sustenta por muito tempo. Apesar das tentativas de controle, seja por meio de força ou limitando as atividades de alguns grupos a apenas uma parte da cidade, o resultado sempre foi a criação de um subúrbio heterogêneo e livre de controle. Mesmo que a cidade tenha mudado através dos tempos, o conflito continua entre a vontade de
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uma ordem sócio-estética imposta e a realidade das massas dos seres humanos que vivem em um mundo dinâmico porém confuso. É profundamente irônico que a cidade possa muitas vezes parecer um lugar amedrontador. Construída para retificar a aparente confusão e caos da natureza, ela se torna um ambiente físico desorientador (...) (2013, p. 146 - tradução nossa) ¹
Em sua análise, Tuan também menciona os diferentes fatores que costumavam causar espanto e desconforto em outras épocas, como a quantidade de barulho no início do tráfego de veículos no século XVIII; a falta de iluminação na Roma de Augustus e Trajano, que fazia com que as noites sem lua fossem a própria representação do perigo; seja por assaltos e violência ou até mesmo pelo medo de perder-se na escuridão. Nos tempos da Renascença, os prédios eram construídos de forma instável, com lajes pesadas e estruturas que não as sustentavam, o que também causava insegurança por medo de desmoronamento, evento similarmente comum na Londres do século XVIII.
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A irregularidade das apertadas ruas medievais é considerada por ele também agente da sensação de caos e desordem. Mesmo que esses elementos afetassem a todos da polis, atingiam principalmente a população mais pobre, como acontece
até hoje. Tradicionalmente, os mais pobres, muito mais que os membros da classe média e da classe alta, foram afetados negativamente pelo barulho. Mas um perigo confronta os mais pobres que faz com que o barulho pareça um sofrimento relativamente pequeno. O fato é que, na cidade, as próprias estruturas construídas para abrigar pessoas podem ser uma ameaça para a vida. Casas para inquilinos eram apressadamente construídas para acomodar a população menos abastada, ou eles se mudavam para casas antigas em variados estados de ruína. (2013, p. 149 - tradução nossa) ²
Tuan adiciona que, num ponto de vista sociológico e aristotélico, a cidade é “uma complexa sociedade de heterogeneidade vivendo muito próxima” (2013, p. 157 - tradução nossa)³, o que pode significar que todos utilizam seus diferentes talentos para compor uma comunidade completa e harmônica, mas também que pode ser geradora de conflitos oriundos da tensão gerada por essas diversidades. Segue afirmando que essa temática merece atenção especial: (...) Conflitos violentos entre os magnatas urbanos e a criação de uma paisagem do medo fortificada; perigo e ansiedade em relação a estranhos no cenário urbano; medo de anarquia e revolução, ou seja, do desmonte de uma ordem
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estabelecida por massas inassimiláveis e incontroláveis; aversão por e medo da população mais pobre como uma potencial fonte de corrupção moral e doença; e medos urbanos na vida de imigrantes pouco abastados. (2013, p. 157 - tradução nossa) ⁴
Mesmo que as adversidades apresentadas por Tuan sejam situadas num tempo muito anterior ao das cidades modernas, alguns traços delas permanecem até nossos dias. Esses temores tomaram novas formas e, com a evolução da tecnologia, os modos de lidar com eles também se modificaram. O modo como a arquitetura se modificou para lidar com as intempéries da natureza é uma forma de lidar com as inseguranças. Apesar das novas maneiras de tornar a casa mais segura, os fenômenos naturais continuam proporcionando medo, entretanto esse refúgio faz com que se tenha uma percepção diferente dos acontecimentos, como indica Pallasmaa (2013) “A Arquitetura confere significado especial para os fenômenos da natureza e o clima da mesma maneira que estrutura as instituições, relações e comportamentos. Quando se trata de violência, a paisagem do medo fortificada hoje pode ser traduzida por conceitos como Arquitetura do Medo ou Arquitetura da Vio28
lência, que nada mais é do que a forma com que a cidade é modificada para abrigar estratégias de segurança e proteção. É importante destacar o recorte de classe que acontece por conta de uma divisão territorial em prol da segurança, que se manifesta na arquitetura nas partes de classe alta da cidade, em que majoritariamente esse fenômeno acontece. Segundo Ferraz (2005), esse processo de divisão espacial tem provocado mudanças significativas na relação dos cidadãos uns com os outros e com a cidade, por meio da “individualização e anulação do OUTRO, a desconsideração, ou o desrespeito, pelo direito coletivo sob os espaços públicos” (2005, p. 2). Os conceitos de Arquitetura do Medo ou Arquitetura da Violência podem colaborar para o entendimento das relações entre medo e necessidade humana de criar artifícios para dominá-lo. O cientista social Diogo Amador Tavares (2012) afirma que estes conceitos contemplam não só as modificações físicas incorporadas ao espaço, como grades, cercas e muros, mas principalmente a relação delas com a segregação social e a violência. A grande questão que se instala em relação a essa configuração do espaço em busca de controle e proteção é que, como é feito por meio de segre-
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gação e divisão da metrópole em zonas seguras e inseguras, acaba por gerar o efeito oposto. Os geógrafos Moura e Borém (2014) afirmam que esse processo de segregação afeta ambos os lados: os que levantam esse tipo de arquitetura e as vítimas dela. Byung-Chul Han apresenta outro ponto de vista sobre a individualização que acontece na sociedade contemporânea pós-globalização. A partir de Han (2015) podemos reiterar que quando muda o paradigma do coletivo para o individual com a globalização, acontece uma uniformização da sociedade pelo consumo. Acrescenta, porém, que a quebra de fronteiras passa a ser uma ampliação do público consumidor, as singularidades culturais são suprimidas pela ideia de que somos todos iguais e as diferenças que permanecem são vistas como exóticas. A potência positiva do indivíduo retira o medo do outro e passa para si, já que o fenômeno investe na premissa de que o sucesso é alcançável em qualquer realidade; então, se esse ideal não é atingido, acreditamos que o problema esteja em nós mesmos, somos divididos entre fracassados e bem sucedidos, ou seja, nesse sentido, frustração vira sinônimo de derrota. A polarização do resultado dos esforços a partir de fracasso e sucesso
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não considera o movimento pendular característico da vida, feita de momentos bons e ruins, e faz com que a grande violência que sofremos seja o que ele chama de violência neuronal, ou seja, é desenvolvida em nós mesmos. A ameaça passa a não ser mais imunológica, em que o outro era a variável que não se podia controlar e, portanto, era temido, mas torna-se mais silenciosa e menos óbvia, está dentro dos sujeitos e responde a sombras com as quais ele não se preparou para lidar: os problemas psicológicos. Isso confirma essa nova configuração do medo, no qual o eu pode ser o ser mais amedrontador. É possível identificar ainda outras ordens de medos além dos já mencionados. Assim como ruas mal iluminadas e ruas barulhentas, a não identificação com o local também pode gerar insegurança. Kevin Lynch (1981) em seu livro A Boa Forma da Cidade, fala sobre como, muitas vezes, pensa-se que os espaços urbanos fazem seus habitantes se sentirem bem ou mal, como algo absoluto, mas que deve-se pensar mais nos elementos que geram essas sensações. Com a análise de utopias e cacotopias, Lynch percebe que as cacotopias tendem a ser desdobramentos de medos e problemas já existentes no presente, sendo “pesadelos do
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futuro, são escritas para expor a injustiça do presente” (1981, p. 69) ⁵. Através desses e de outros fatores, ele chega em uma lista de “Dimensões de performance”, as quais são mais genéricas e mais fáceis de aplicar, dependendo das características locais, ao projeto da cidade. As dimensões são, principalmente: vitalidade, que diz respeito a quão bem o local suporta as necessidades vitais do ser humano; sentido, que diz respeito à possibilidade de identificação e diferenciação mental de um espaço por seus habitantes, “o encaixe entre ambiente, nossas capacidades sensoriais e mentais, e nossa construção cultural” (p.118); encaixe, que diz respeito aos equipamentos e espaços do local e como eles atende as atividades dos habitantes; acesso que diz respeito à possibilidade de acesso à outros lugares e pessoas, avaliando também a diversidade diversidade e quantidade desses elementos; controle que diz respeito ao controle de uso e acesso aos locais pelos seus habitantes. Quando um ou mais elementos dessa lista se encontram desequilibrados, pode ser que o espaço se torne desconfortável ou inseguro para os que o habitam. As cidades não se constituem apenas de estruturas que cumprem função pragmática ou estética;
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seus componentes podem conter simbolismo e valor sentimental. Pallasmaa (2013) afirma que a experiência da arquitetura não pode ser somente algo formalmente conceitualizado e abstrato: “Uma experiência de arquitetura comovente e revigorante surge da reativação das imagens ocultas em nossa historicidade como seres biológicos e culturais” (p.127). Essa afirmação vai ao encontro das ideias de Lynch sobre a arquitetura das cidades e como ela deve dialogar com seus moradores e criar identificação, cuja falta pode ser um dispositivo para a sensação de insegurança dos cidadãos. Neste breve incurso, refletimos sobre as possibilidades de configuração dos espaços e sua relação com o medo, que transita ora apontando o outro como fator de risco ora a si mesmo diante das dificuldades de se enquadrar em determinados padrões. Nos próximos capítulos, refletiremos sobre como esses medos são traduzidos pelos cineastas às grandes telas.
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notas do capítulo 1 “However much the city has changed in the course of time, the conflict persists between the desire for an imposed socio-asthetic order and the reality of masses of human beigns living in a dynamic but confused world. It is deeply ironic that the city can often seem a frightnening place. Build to rectify the aparent confusion and caos of nature, the city itself becomes a desorienting physical envoirement (...)” 2 “Traditionally, the poor, far more than members of the middle or upper classes, have been assalted by noise. But a danger confronts the poor compared to which noise must seem a relatively minor affliction. The fact is that, in the city, the structures built to shelter people can be a theat to life and limb. Tenement houses are hastily put up to accomodate the poor, or the poor move into houses in varying stages of ruin” 3 “a complex society of heterogenous people livind close together” 4 “(...) Violent conflicts among urban magnates and the creation of a fortified landscape of fear; danger from and anxiety about strangers in the urban milieu; fear of anarchy and revolution, that is, the overthrhow of an established order by unassimilable masses; distaste for and fear of the poor as a potential source of moral corruption and desease; and urban fears in the life of poor imigrants.” 5 ”nightmares of the future, are written to expose the injustice of the present”
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cidade e cinema
02.
A relação entre cidade e cinema remonta às origens do próprio cinema. O professor especialista em cinema João Luiz Vieira fala um pouco sobre essa aproximação, associando os avanços urbanísticos da cidade com a sétima arte, trabalhando com a ideia de que o cinema está atrelado à modernidade e que muitos elementos da cidade são determinantes para sua constituição, principalmente na noção de espaço-tempo. A partir da ideia de experiência subjetiva, o autor aponta relevância na noção de circulação como ponto central da argumentação, sustentada nos exemplos das estruturas de circulação, os bulevares, ao ritmo do trabalho nas fábricas e à sofisticação dos meios de transportes: Por meio daqueles novos sistemas de circulação mais eficazes e rápidos, encenava-se um drama da modernidade: o colapso das noções prévias de espaço e tempo através da velocidade Nesse cenário, o cinema sintetizava, simultaneamente, tecnologia e indústria, ao mesmo tempo que construía também novas formas de experiência visual como expressão de vivências tipicamente modernas, marcadas por estímulos e sensações físico-psicológicas de sucessão rápida, da alternância frenética espaço—tempo.” (VIEIRA, 2007)
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Inicialmente a cinematografia fez parte de uma gama de formas de entretenimento das grandes cidades, juntamente com atrações como teatro, circo e exibições do que era chamado lanterna mágica. O pesquisador e professor Fernando Mascarello explica como funcionavam essas exibições e como a invenção do cinema derivou delas: A história do cinema faz parte de uma história mais ampla, que engloba não apenas a história das práticas de projeção de imagens, mas também a dos divertimentos populares, dos instrumentos óticos e das pesquisas com imagens fotográficas. Os filmes são uma continuação na tradição das projeções de lanterna mágica, nas quais, já desde o século XVII, um apresentador mostrava ao público imagens coloridas projetadas numa tela, através do foco de luz gerado pela chama de querosene, com acompanhamento de vozes, música e efeitos sonoros. Muitas placas de lanterna mágica possuíam pequenas engrenagens que permitiam movimento nas imagens projetadas. O uso de mais de um foco de luz nas apresentações mais sofisticadas permitia ainda que, com a manipulação dos obturadores, se produzisse o apagar e o surgir de imagens ou sua fusão. O cinema tem sua origem também em práticas de representação visual pictórica, tais como os panoramas e os dioramas, bem como nos “brinquedos ópticos” do século XIX, como o
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taumatrópio (1825), o fenaquistiscópio (1832) e o zootrópio (1833). (2006, p.17-18)
Mascarello afirma ainda que essa invenção não pode ser atribuída a um inventor ou aparelhos específicos isoladamente, mas a um conjunto de fatores técnicos. As primeiras exibições de filmes foram feitas por Thomas Edison em 1893 e pelos irmãos Lumière em 1895. O horror, gênero cinematográfico, apesar de não ganhar essa nomenclatura até os anos 1930, derivou do teatro de horror, que fazia sucesso como entretenimento na mesma época. Locais como o teatro Grand Guignol, inaugurado na França em 1894, que foi um dos mais famosos teatros dedicados exclusivamente ao horror, eram altamente frequentados. Apesar de inicialmente todas as imagens causarem um pouco de espanto às audiências por serem algo novo, em pouco tempo começaram a ser demandadas histórias que causassem o mesmo sentimento. Rapidamente, a partir da manipulação de filmes, efeitos especiais foram tomando forma e adicionou-se um novo elemento à sétima arte. Temas sobrenaturais como espíritos e esqueletos dançantes ganharam espaço nas projeções cinematográficas a partir daí e, embora hoje tenham ganhado contornos sofisticados de 42
produção técnica, continuam aparecendo até hoje. É importante pensar que a temática do horror se modifica constantemente dependendo de seu contexto, e a cidade desempenha papel importante nessas modificações, sendo mais do que apenas um cenário para os acontecimentos. Um breve panorama histórico sobre a relação entre medo e cidade, vistos pelas lentes do cinema, pode contribuir para situar o recorte de análise pretendido neste trabalho. Além do embasamento teórico, esse panorama foi feito com grande ajuda do site de Karina Wilson, escritora e especialista em mídias, que relaciona as história mundial com as tramas dos filmes de horror. O expressionismo alemão foi um movimento que surgiu depois da Primeira Guerra Mundial, em cujo decorrer aconteceu ainda a proibição da exibição de filmes estrangeiros no país. O movimento pretendia trazer a expressão de sentimentos, ou seja, no caso do cinema, os sets também deveriam representar o estado interior dos personagens. Karina Wilson trata da mudança sofrida pelos filmes de horror devido à Guerra: Os filmes de horror dos anos 1920 não podiam mais contar com artifícios ultrapassados do tea-
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tro para causar medo. A Grande Guerra reinventou a linguagem visual do horror para um mundo recentemente traumatizado. Sumidos estavam os esqueletos dançantes e os atores que somem em nuvens de fumaça. Em vez disso, cineastas de horror tiveram que mirar por um terror mais imediatamente ressonante. (2005, tradução nossa) ¹
Muitos soldados voltaram feridos da guerra, mental e fisicamente e, com os tamanhos horrores presenciados no combate, os filmes passam a trabalhar com uma nova representação do medo, tratando de assuntos como a insanidade e os traumas dos veteranos através de símbolos e metáforas. O Gabinete do Doutor Caligari (1920) representa a cidade como um lugar sombrio e surreal, com paredes tortas e ruas sinuosas, passando para o espectador a forma com a qual o personagem experienciava a cidade. A trama é construída de forma que o público nunca tenha certeza da sanidade dos personagens, e a configuração da polis a transforma em parte fundamental do sentimento de medo causado.
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A Alemanha ainda vivia os efeitos pós Primeira Guerra Mundial, era um país economicamente frágil e instável, no qual o fascismo tomava forças se utilizando de um discurso de superioridade da nação e recuperação econômica. Nesse contexto, ainda fazendo parte do movimento expressionista, o filme Metrópolis (1927, dirigido por Fritz Lang), apresenta uma cidade que funciona pela força de seus trabalhadores em condições que os desumanizam, fazendo com que, muitas vezes, eles pareçam parte do cenário, como engrenagens da máquina.
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A configuração daquele espaço é uma representação das classes sociais de seus habitantes: os trabalhadores estavam embaixo e os mais ricos, em cima, de forma que não ocorresse comunicação entre eles. A cidade é um dos personagens principais da história, muitas vezes tomando formas humanóides que traduzem os seus sentimentos.
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É importante perceber que, nessa época, a tecnologia estava avançando rapidamente, e havia o medo de que esses avanços pudessem ser maléficos à sociedade - como um clone mal intencionado interferindo no funcionamento de uma polis consolidada. Essa insegurança passou a ser explorada pelo cinema. Com suas nuances de ficção científica, o medo na cidade do filme é esse avanço tecnológico que levaria à desordem e ao caos de uma revolta de trabalhadores, que a fariam parar completamente de funcionar. A resolução da trama se dá através de um acordo sobre a existência de um mediador entre as duas partes, para que todos sejam atendidos. Essa ideia de união, independente das condições de exploração, em prol de uma cidade melhor e mais funcional apesar de poucos poderem usufruir verdadeiramente dela, é considerada por alguns como uma aproximação ao ideal nazista de que a Alemanha estava acima de tudo, e todos deveriam se unir para alcançar esse ideal. Por mais que o diretor, Fritz Lang, não fosse simpatizante da ideologia nazista, uma parte da crítica considerou que seu filme dialogava com os acontecimentos e o crescimento do fascismo. Nos anos 1930, o som foi introduzido às películas, trazendo uma nova nuance à arte de fazer filmes.
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Com o novo recurso, foram feitas adaptações cinematográficas dos clássicos livros Drácula, de Bram Stocker e Frankenstein, de Mary Shelley. As duas adaptações foram lançadas pela Universal Studios em 1931. Esse marco também significou uma diminuição considerável na demanda pelo teatro, já que agora o cinema oferecia um novo formato e uma nova ideia. Após a Segunda Guerra Mundial, surge nos Estados Unidos o “American Way of Life”, traduzido como “Jeito americano de viver”, que é a ideia de um modelo perfeito de vida. Esse modelo é constituído por uma família branca, heterossexual, a mulher da família exerce o papel de dona de casa, eles moradores do subúrbio, donos de um ou mais automóveis. Esse ideal parte do pressuposto de que o poder de compra é sinônimo de felicidade. Segundo Nicolaides e Weise (2006), no livro The Suburb Reader, a demanda por casas e as políticas pró-subúrbio do governo americano fizeram com que essa configuração de moradia aumentasse de forma muito significativa, o que levou construtoras a optarem pela construção em massa de casas da forma mais rápida e barata possível. Ou seja, esse fato levava à construção de casas muito parecidas, sem grande valor arquitetônico.
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Foi uma época de monstros no cinema, criaturas sobrenaturais e cientistas malucos. Era um momento em que o medo não estava nos humanos, e sim em outras criaturas. O crescente medo de um desastre nuclear, devido ao início da Guerra Fria, fazia com que as ficções científicas e os filmes de mutações nucleares tomassem espaço. Neste trabalho, é analisado o filme Os Pássaros, de 1964, de Alfred Hitchcock, o qual se encaixa nesse período em que o medo não está necessariamente em outra pessoa, mas em um acontecimento sobrenatural: pássaros que começam a atacar os humanos sem explicação. É também acentuado no filme o medo de desastres da natureza, devido à sua imprevisibilidade. O lugar seguro, no contexto dessa película, passa a ser a grande cidade. Os anos 1960 foram conhecidos por muitos progressos em vários campos, sendo um deles, o dos direitos das mulheres. Com a invenção da pílula anticoncepcional, em 1960, e a legalização do aborto em todos os estados norte americanos, em 1973, os papéis antes designados às mulheres passaram a ser questionados. Segundo Karina Wilson (2005), essa mudança de dinâmica, gerou um
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medo e uma falta de confiança nesta instituição da família, fazendo com que os filmes dos anos 70 passassem a tratar de temores de pessoas mais próximas: Consequentemente, em muitos filmes de horror dos anos 1970, o Outro não é mais um alienígena metamorfo aterrissando vindo de outro planeta. Ao invés disso, o Outro está à espreita dentro de sua própria casa: É sua mãe (The Brood); irmã (Alice, Sweet Alice); marido (The Stepford Wives); recém nascido (It’s Alive); Menino (The Omen); pré adolescente (The Exorcist); as pessoas da sua vida que você vê com tanta frequência que acaba não vendo mais (Carrie). (2005)²
Com essa decadência do ideal de família, muitos desses filmes agora representavam os medos dentro dos locais antes considerados seguros, fazendo-os habitar as ruas do subúrbio.
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Em 1971, Stanley Kubrick lança o filme Laranja Mecânica, no qual consegue apresentar a cidade mesmo sem introduzir muitas cenas externas. Os acontecimentos e o estado dos espaços internos consegue introduzir bem a dinâmica daquele núcleo urbano. O filme se passa em um futuro próximo, na Inglaterra, e conta a história de Alex, o chefe de uma gangue que aterroriza as ruas (e as residências) do lugar, em uma realidade em que as prisões estão lotadas e o governo começou a testar um método de reinserir prisioneiros na sociedade depois de uma terapia de conversão contra a violência. Em uma das noites, o protagonista é capturado e enviado para uma dessas prisões, passando por esse procedimento. Os espaços públicos coletivos que aparecem no filme sempre dão a sensação de desordem e caos, com iluminação precária, grande quantidade de lixo espalhado e gangues que tomam a cidade. O medo daquela cidade é a violência, ou a ultraviolência, como dizem os membros da gangue, e ali nenhum lugar é seguro, nem mesmo dentro de casa ou afastado do centro. Os pais de Alex não têm nenhuma ideia dos horrores feitos por seu filho, então, para eles, ainda existe o medo e a percepção de que o perigo está dentro de casa e foi criado por eles. 52
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Em 1978, acontece o lançamento de Halloween, filme de John Carpenter, que se ambienta em um típico subúrbio norte americano, no qual o antagonista é um homem chamado Michael Myers. Michael assassina sua irmã na noite de halloween 15 anos antes do momento em que se passa o filme, o que o torna ainda mais aterrorizante. Após escapar de uma instituição psiquiátrica, ele retorna ao local onde morava e aterroriza as babás que trabalhavam na região naquele fatídico feriado. O subtítulo do filme “A noite que ELE voltou para casa” reforça o medo do Outro que está próximo, dentro da própria casa. O medo sai do porão e habita a residência. A ideia de um assassino mascarado que, desde criança, habita um local supostamente seguro e homogêneo, é a fonte dos pesadelos dos moradores. A construção da obra ainda faz com que o espectador tenha a visão de Michael, em diversas cenas, utilizando a técnica de visão subjetiva, que traz a sensação de estar dentro do corpo do assassino, parecendo imprimir uma obrigação de ver o que não quer e não deveria. Halloween marca o momento em que o subúrbio se torna amedrontador e parte crucial de muitas outras películas que os sucedem até hoje. Alguns exemplos das décadas seguintes são: Blue Velvet (1986), de David Lynch; A Hora do Pesadelo (1984) e Pânico (1996), de Wes Craven. 54
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Já o filme Se7en (1995, dirigido por David Fincher), trata de uma narrativa de dois detetives, um prestes a se aposentar e outro recém chegado ao departamento de polícia da cidade, que começam a investigar crimes de um serial killer com um modus operandi peculiar: matar suas vítimas de acordo com os sete pecados capitais, acreditando fazê-las pagar por cometê-los e estar servindo a Deus. Pelas referências religiosas do filme, sua ambientação é feita como uma releitura do que seria o purgatório, em uma cidade que personifica todas as coisas ruins que acontecem nela. É uma cidade decadente, sem cor e sempre com clima chuvoso ou nublado. Desde o início, já é dito pelo policial mais velho que nada de bom acontecia naquele lugar, conferindo àquela polis uma ocupação de personagem ativo nos males acontecidos ali. É possível perceber que a trama traduz o medo da violência na cidade contemporânea, através dos muitos sinais dados pelos personagens de que o melhor lugar para se viver era bem longe dali, já que a maldade habitava naquele local. As próximas décadas contam com algumas narrativas que tratam do mesmo medo, sendo uma delas o filme A vila (2004), de M. Night Shyamalan, que é analisado neste trabalho, e que apresenta também uma visão de que a cidade é um lugar extremamente violento, acreditando que a melhor alternativa é retirar-se dela. 56
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Nos anos 2010, há um crescimento das discussões sobre questões sociais como racismo e desigualdade, e os filmes de terror e suspense passam a dialogar com essas problematizações. A urbanização das cidades pode agir como segregadora e atenuadora dessas problemáticas, fazendo com que elas tenham papel importante nas histórias tratadas nessas películas. O subúrbio passa a não ser mais visto uma ilha isolada, segura e homogênea, pois o diferente entra em cena. Ocorre uma decadência das cidades industriais americanas por se tornarem mais inseguras, valorizando novamente os grandes núcleos urbanos. Filmes como Corra! (2017) e Nós (2019), do diretor Jordan Peele, que mostram uma visão importantante do terror através dos olhos um diretor negro, e Uma Noite de Crime (2013), do diretor James DeMonaco, que é analisado neste trabalho, trazem essas questões à tona.
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notas do capítulo 1 “1920s horror movies could no longer rely on old fashioned theatrics to elicit a thrill. The Great War reinvented the visual language of horror for a newly traumatized world. Gone were the cute dancing skeletons and actors who vanished in puffs of smoke. Instead, horror filmmakers had to reach for more immediately resonant terrors. (2005)” 2 “Consequently, in many 1970s horror movies, the Other isn’t a shapeshifting alien crash landing from another planet. Instead, the Other lurks inside your own home: it’s your Mum (The Brood); Dad (The Shining); brother (Halloween); sister (Alice, Sweet Alice); husband (The Stepford Wives); newborn (It’s Alive); little boy (The Omen); pre-teen (The Exorcist); the people in your life you see so often you don’t really see them any more (Carrie).” (2005)
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análise de filmes
03.
Melanie Daniels, uma mulher rica e conhecida por suas pegadinhas, conhece o advogado Mitch Brenner de forma inusitada numa pet shop em São Francisco. Ela resolve ir à pequena cidade em que ele passa os fins de semana com a família, algumas horas ao norte da metrópole, esperando pregar-lhe uma peça. Mas, ao chegar lá, descobre uma face do medo que nunca havia visto antes, com pássaros atacando os habitantes e tomando posse do que, supostamente, seria território humano.
Filme: Os Pássaros Ano: 1963 Direção: Alfred Hitchcock
A primeira cena é situada na cidade de São Francisco, um grande núcleo urbano litorâneo e agitado. Acompanhamos a protagonista, Melanie Daniels, em seu caminho a uma pet shop, passando por uma rua bastante movimentada. Um grupo de muitos pássaros sobrevoando o céu chama sua atenção. Essa é a primeira referência que temos em relação ao enredo que tomará forma mais tarde. A grande quantidade de aves é perceptível e causa um pequeno estranhamento, dando a impressão de que por estar no centro de uma grande cidade, mesmo que litorânea, as aves não pertencem ao cenário cotidiano. Numa paisagem tão consolidada como urbana, o “excesso” de natureza causa estranhamento. Chegando ao petshop, conversa com a dona da loja sobre o pássaro que havia encomendado. Falam sobre o atraso na entrega, e a proprietária acaba indo aos fundos ligar para seus fornecedores para saber o paradeiro da entrega. Enquanto Melanie espera a senhora voltar, um homem adentra a loja e a confunde com uma funcionária, pedindo-lhe informações sobre uma espécie de ave, e ela começa a pregar-lhe uma peça e fingir que
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de fato trabalha no estabelecimento mas, em pouco tempo, o homem demonstra que na verdade já a conhecia, e não havia caído em seu truque. Depois disso ele vai embora sem ter dito seu nome à Melanie, ela usa de seus artifícios para descobrir quem era o homem, e compra um casal de periquitos. Após descobrir o nome e o endereço do homem que havia conhecido, Mitch Brenner, e acaba descobrindo que ele passa seus finais de semana em uma pequena cidade próxima à São Francisco, Bodega Bay, com sua família. Decidida a fazer sua entrega, ela segue para o norte em direção à pequena cidade. Bodega Bay é uma típica cidade pequena, parece ter um ritmo mais tranquilo. O fato de todos se conhecerem já dá uma sensação diferente da outra cidade que apareceu anteriormente no filme, São Francisco. Lá, para descobrir o endereço do homem, precisou buscar a partir da placa de seu veículo, enquanto em Botega, bastou perguntar à primeira pessoa com quem teve contato se o conhecia. O dono da mercearia local lhe informa o endereço que desejava assim que chegou à cidade. A confiança de entregar o endereço de uma
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pessoa conhecida a uma estranha dá a sensação de que as pessoas se sentem seguras naquele lugar, que não há motivo de medo ou insegurança. Ela também pede para que o dono da loja providencie um barco para chegar à residência dos Brenner, para que ela não tenha que chegar pela estrada, para surpreendê-los. Vai até as docas e pega o barco que havia alugado, para chegar ao seu destino. Ao chegar, sorrateiramente entra na residência, que se encontrava destrancada, e posiciona os pássaros na sala com uma carta a Cathy. Volta ao seu barco e fica espiando para ver qual seria a reação do homem que, quando vê a gaiola, sai correndo e a avista na baía indo embora. Ele corre de carro para encontrá-la no outro lado. Quando está quase atracando nas docas novamente Melanie é, inexplicavelmente, atacada por uma gaivota. Nesse diálogo percebemos claramente que não é algo costumeiro, e os que testemunharam a cena se impressionaram. Agora, mesmo que em outra localização, vemos que mais um fenômeno incomum envolvendo pássaros acontece e, mesmo que numa cidade pequena e à beira de uma baía, ainda é considerada incomum a intervenção da natureza no ambiente que temos como humano, principalmente quando de forma hostil. 70
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Mitch a convida para jantar e, quando chega na casa dos Brenner, a família está voltando do galinheiro porque, segundo eles, as galinhas não estavam se alimentando. Depois de algumas ligações, a mãe de Mitch descobre que as galinhas dela não eram as únicas com problemas. O fato lhes parece estranho e suspeito, mas acabam por seguir suas atividades. Depois de outros comportamentos suspeitos das aves, na festa de aniversário de Cathy, eles fazem seu primeiro grande ataque, machucando várias crianças que estavam brincando no quintal da casa dos Brenner. Desesperados, os adultos correm para botar as crianças para dentro. Nessa cena, a casa cumpre o importante papel de abrigo, constitui-se como o local que os protegerá do mal que está ocorrendo do lado de fora. A casa como uma barreira que a natureza não consegue passar, indestrutível. Ou seja, apesar de todo o perigo do lado de fora, ainda consideram o lado de dentro um local seguro. A tensão do filme passa a se construir cada vez mais a partir daí. O ataque abriu os olhos de todas as suas pessoas presentes, fazendo com que a sensação agora não seja de estranhamento e sim de medo. 72
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Mais tarde, no mesmo dia, depois de todos os convidados da festa irem embora, exceto Melanie, acontece o segundo ataque, só que dessa vez, dentro da casa da família Brenner. Apesar de estarem com todas as janelas fechadas, os pássaros entram aos montes pela chaminé, surgindo pela lareira. Para contê-los, Mitch bloqueia a lareira com uma mesa e abre as janelas para criar uma saída. A situação é desesperadora e agora os personagens foram atacados no local que mais consideravam estar seguros, o interior da casa.
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No dia seguinte, a mãe de Mitchell, Lydia, vai visitar um amigo e o encontra morto dentro de casa, tendo tido seus olhos arrancados por pássaros. O fator que mais a assustou foi que todas as janelas da casa da vítima estavam quebradas, dando a entender que as aves entraram por lá, ou seja, mesmo quando não há nenhum vão aberto, ninguém está a salvo. As janelas, mesmo que fechadas, passam também a ser motivo de preocupação e risco.
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Após esse ataque, o mais brutal até então, a cidade inteira passa a comentar os acontecimentos e o pânico se generaliza. Por precaução, Lydia pede a Melanie que busque sua filha na escola, e lá fica evidente que mais um ataque está prestes a acontecer, com corvos se acumulando do lado de fora, dando a entender que estavam apenas esperando a saída das crianças. Os adultos planejam uma fuga com as crianças, mas no meio do plano o caos é instaurado e eles são perseguidos até conseguirem se esconder e os animais se acalmarem. Melanie vai ao restaurante da cidade para fazer uma ligação a seu pai, para contar os acontecimentos. Uma ornitóloga acaba ouvindo a conversa dela ao telefone e argumenta que não é culpa dos pássaros, e sim dos humanos. A partir daí outras pessoas passam a dividir experiências de ataques que tiveram nos últimos dias, incluindo um homem que acredita que todas as pessoas deviam ter armas para matar todos os pássaros, as chamando de “animais nojentos”. Algumas pessoas começam a fugir para São Francisco, temendo que mais ataques aconteçam.
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Minutos depois, mais um ataque começa a tomar forma, dessa vez com proporções maiores, no centro da cidade, causando um vazamento de gasolina seguido por algumas explosões, mortes e pânico dos cidadãos. Depois de a situação tranquilizar um pouco, os protagonistas retornam à casa dos Brenner e utilizam tábuas de madeira para bloquear o que parece ser mais uma arremetida iminente dos animais, que estão se agrupando nas proximidades. Depois de se recolherem dentro do centro da residência, todos ficam muito tensos esperando algum sinal. A investida das aves começa, parecendo mais forte que todas as outras. Nesse momento o filme utiliza muito do “espaço fora da tela”, já que o telespectador só consegue ter noção da gravidade
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através dos sons emitidos pelos animais e as batidas nas madeiras que cobrem as aberturas. Algumas das barreiras se mostram não muito eficazes contra o ataque, mas os personagens conseguem controlar as entradas adicionando mais barreiras. Quando os sons cessaram, todos estavam dormindo, exceto Melanie, então ela resolve investigar no andar de cima conferir o estado da situação, e acaba sendo severamente atacada, já que uma parte do telhado havia colapsado e permitido a entrada das criaturas. Depois disso, Mitch resolve que devem levá-la a São Francisco a um Hospital e se deparam com uma cena chocante: as aves espalhadas por todo o território em volta da casa. Por fim conseguem pegar o carro, com muito cuidado, e ir embora para a grande cidade.
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O absurdo da trama passa por um ponto importante da realidade: a imprevisibilidade da natureza e a inabilidade humana de controlá-la completamente. E esse é o aspecto que mais a torna amedrontadora. Segundo o sociólogo e pesquisador francês Robert Castel, vivemos hoje numa das sociedades mais seguras que já existiram, e mesmo assim construímos vários artifícios para nos protegermos dessa “nebulosidade”, sem um objetivo concreto. A realidade é que construímos casas e cidades como abrigos a essa insegurança, mesmo que saibamos que elas não são indestrutíveis. O filme nos dá essa perspectiva de a casa não ser o suficiente para a proteção como os personagens acreditavam, principalmente no ataque ao homem que perdeu os olhos, que foi morto dentro de sua residência. Outra crítica importante apontada pelo longa diz respeito à apropriação do espaço. Como seres humanos, vemos a cidade como território humano e permitimos que a natureza participe dele, mas não que o tome. Quando os ataques dos pássaros começam a acontecer, as pessoas não conseguem dar explicações lógicas a eles, até que a ornitóloga oferece outra perspectiva: as aves estavam no planeta muito antes dos seres humanos então,
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não teríamos nós roubado deles o território? Estariam eles retomando algo que era deles? E é essa a impressão que temos ao fim do filme, quando os animais ocupam a terra por completo e os Brenner de casa. No início, diz-se que Mitch Brenner gosta mais de Bodega Bay que de São Francisco, por comparar a cidade com um formigueiro, muito cheia de pessoas e coisas acontecendo. Na pequena cidade encontrava paz, tranquilidade e refúgio próximo à natureza, vivendo a vida tranquila que ela proporciona. Mas, ao final, seu refúgio passa a ser a cidade grande, local urbano e o que seria mais próximo do que podemos chamar de território humano, já que a grande ameaça passa a ser a imprevisibilidade da natureza. Um dos maiores refúgios que temos enquanto pessoas é a arquitetura, que funciona como uma barreira física às intempéries quanto como conforto psicológico da sensação de estar protegido, mesmo quando essa proteção é ilusória. Pallasmaa (2013) fala sobre a sensação reconfortante de assistir os acontecimentos da natureza, como chuvas, de dentro do abrigo, e esse filme se torna amedrontador por quebrar essa sensação, não se
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está a salvo do lado de dentro. Principalmente no momento atual, estamos cada vez mais tendo choques de realidade em relação à impotência humana diante dos desastres da natureza. O aumento significativo desses acontecimentos, como queimadas e enchentes pela agravação da crise climática mundial, fazem com que muitos percam seus abrigos, na maioria das vezes por consequência de ações humanas em detrimento da preservação do planeta.
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Em uma pequena vila isolada, seus moradores vivem em harmonia, exceto pelo medo constante das criaturas misteriosas que ali vivem. Diz-se existir um pacto, no qual desde que os os habitantes não se aproximem da floresta que circunda a comunidade, nada de ruim aconteceria. Quando uma pessoa adoece, seu amante resolve enfrentar os temores e sair em busca de remédios, que supostamente existiam fora dali nos locais que eles chamam de cidades.
Filme: A Vila Ano: 2004 Direção: M. Night Shymalan
No início do filme, o espectador conhece uma pequena vila, em meio a uma floresta, com poucos habitantes. Apesar de não ser localizada geográfica e temporalmente, assume-se, através do estilo de arquitetura e vestimenta dos personagens, que se trata de uma sociedade de tempos antigos: são pequenas cabanas de madeira ou pedra, sem eletricidade e aparentemente os moradores vivem de uma produção de alimentos de subsistência, e não há nenhum tipo de comércio. Com a morte de um menino, toda a população se reúne em seu enterro. Um homem, com papel de liderança na comunidade, faz um discurso com o objetivo de confortar as pessoas presentes. Nesse discurso, menciona como em momentos difíceis as pessoas da cidade podem se perguntar se fizeram uma decisão errada de se estabelecer naquele local, dando a entender que existiam outros lugares que poderiam ter oferecido um suporte maior à doença do da criança que faleceu. Ou seja, um lugar onde os recursos de saúde são mais desenvolvidos. Depois do incidente, Lucius, um dos moradores, vai ao conselho da Vila, que conta com seus fundadores, e faz um pedido para atravessar a flores-
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ta até as cidades para coletar medicamentos que pudessem prevenir futuras mortes. Os habitantes do local acreditam que devem ficar contidos no espaço onde moram e nunca atravessar as florestas, pela crença de que foi feito um acordo com criaturas violentas de que, se eles não saíssem daquele espaço, não seriam atacados pelos misteriosos seres. É interessante notar que o filme traz a inversão da ideia de floresta, comum em outros enredos, especialmente os que são releituras de contos de fadas, em que o espaço da floresta representa o inominável, o desconhecido e, portanto, o perigo. Das primeiras vezes que “as cidades” são mencionadas em A vila, percebe-se que se tratam de locais os quais aos habitantes da vila nunca tiveram acesso e acreditam que não devem ter.
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Existem dois motivos pelos quais os personagens não acreditam que devam ir até as cidades: acreditam que é um lugar de pessoas más e a travessia da floresta, que implicaria em perturbar as criaturas que lá vivem. O fator do isolamento se mostra uma faca de dois gumes àqueles personagens, significa segurança e proteção dos males que mencionam, mas também a não possibilidade de encontrar alguns recursos, como medicamentos. Neste filme, podemos perceber a falta de dois elementos teorizados por Kevin Lynch em A boa forma da cidade: acesso e controle. O acesso a outras pessoas, recursos e realidades é limitado, e o medo realiza a tarefa de controlá-lo. Por mais que, à primeira vista, o controle pareça ser feito pelas criaturas da floresta, percebe-se que, a maioria das pessoas nunca de fato as viu ou comprovou sua existência, então o medo de algo desconhecido, construído pelo discurso no cotidiano, é o que as mantêm isoladas. No desenrolar da história, Lucius é ferido por um amigo que possui uma deficiência mental, Noah, e fica à beira da morte, não realizando seu desejo de ir às cidades. Segurando-se à última esperança de salvar a vida de Lucius, Ivy, sua noiva, pede per-
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missão para cumprir aquela missão, mesmo tendo uma deficiência visual. Normalmente, nada poderia fazer com que os habitantes saíssem da vila, mas devido ao caráter da situação, o pai dela permite sua ida e conta-lhe um segredo: O conselho da vila é formado por pessoas que vieram das cidades e tiveram algum tipo de trauma com situações de violência, por isso decidiram criar uma comunidade isolada utilizando lendas que existiam sobre a floresta e fantasias como forma de controle da saída dos que lá nasceram e residem. Acreditam que o isolamento e a eliminação de fatores de conflito, como dinheiro e poder, os faria criar uma sociedade mais justa e pacífica na qual incidentes traumáticos, como os que eles sofreram nas cidades, não aconteceriam, e isso só poderia se tornar realidade em outro ambiente. Ivy começa sua jornada em direção às cidades mas, devido à sua condição visual, o caminho parece ainda mais perigoso e incerto. Depois de muito tempo de caminhada, ela é atacada pelo que acredita ser um dos monstros que vivem na floresta, mas escapa o fazendo cair em um burado feito por uma árvore caída. Nesse ponto, ela passa a acreditar novamente que as lendas são verdadeiras, já que, por sua condição, não consegue ver que era
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apenas seu amigo Noah, tentando amedrontá-la. Ivy passa pela jornada do herói, que neste caso é o desbravamento do desconhecido e a insegurança vinda dele. A menina precisa desbravar o local perigoso por uma causa maior, mesmo passando por várias adversidades no caminho. Nesse momento é possível refletir sobre a arquitetura como forma de organização e ordem do caos, quando o perigo é o local sem a presença dela, a floresta. Quando ela finalmente chega a um muro e consegue escalá-lo para chegar ao outro lado, encontra um guarda florestal que passava com seu carro. Nesse ponto temos mais uma grande revelação: a do recorte temporal. O filme se passa nos tempos atuais mas, com o isolamento, nem o espectador fica sabendo disso até esse momento. Após o guarda florestal entregar os remédios, Ivy volta à vila e conta a todos que matou uma criatura na floresta. A partir do relato, o conselho consegue manter a narrativa, e consequentemente o controle, dos outros moradores. Mesmo a realização de que as cidades são muito mais avançadas em questão de tecnologia e recursos sendo clara para o público, a visão de Ivy não a permitiu ter a mesma compreensão, o que foi ainda mais benéfico para a manutenção da fantasia e da ignorância dos moradores em relação ao resto do mundo. 93
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A Vila apresenta, em questão de espaços, a própria vila onde mora a comunidade e a ideia do que são as misteriosas cidades. O único acesso que é permitido ao público sobre elas é o jornal que um dos guardas florestais estava lendo em uma das cenas finais, que dava uma noção do nível de violência que lá ocorre através de suas manchetes. Apesar dessas matérias violentas no jornal parecerem uma confirmação do ponto de vista do conselho em relação ao ambiente urbano, o encontro de Ivy com o guarda florestal a surpreende, por achar impossível encontrar uma pessoa gentil em meio a um espaço onde só há maldade, como sempre foi dito a ela. É possível tirar da película algumas reflexões sobre a cidade e a relação dos personagens com ela. A Vila é um local harmonioso, no qual os habitantes vivem em paz, mas desconhecem a realidade de fora dela. Os que a comandam acreditam que o preço a pagar por esse isolamento, como a falta de contato com outras pessoas e recursos, é a única forma de estabelecimento de uma comunidade que, em suas concepções, não sofreria da violência urbana contemporânea. Esse pensamento também está ligado a uma fixidez em um tempo anterior, ou seja, a crença de que os tempos anti-
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gos eram melhores que os atuais. Passa por uma ideia de que as coisas no passado eram mais simples, mas também mais controláveis. Sem acesso a tecnologias, a manutenção da ignorância é mais facilmente possibilitada, juntamente aos outros instrumentos criados com esse propósito, como os monstros. A sociedade de controle estabelece uma visão dicotômica do mundo: dentro está o bem e fora está o mau. A violência e a maldade são atreladas diretamente à cidade pelo conselho, como um espaço que as incita, e eles transmitem essa noção aos moradores, explicando a surpresa da menina ao encontrar, naquele local, uma pessoa bondosa que se prontificou a ajudá-la. No fim das contas, para os habitantes da vila, a cidade contemporânea não só é personagem da trama, como também é a vilã clássica, que é exclusivamente destrutiva. Ou seja, exclui-se qualquer possibilidade de benefício que possa vir de lá, apesar de que, em momentos como casos de doença que seriam facilmente tratados na cidade, essa crença seja posta à prova até aos mais fiéis
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Um país com baixas taxas de desemprego e violência têm um preço: 12h de crimes liberados para que a população expurgue o ímpeto de cometê-los durante o resto do ano. Para alguns, uma noite de se recolher em suas fortalezas: casas luxuosas e belas que, durante essa noite, se tornam impenetráveis. Para outros, o desespero de viver onde é considerado um campo de batalha e possivelmente se tornar alvo. Acompanhamos o evento na casa de uma família rica, que se considerava inatingível até o momento. Uma reviravolta os faz questionar tudo que costumavam defender.
Filme: Uma Noite de Crime Ano: 2013 Direção: James DeMonaco
Já no início do filme, a realidade apresentada traz dados dos Estados Unidos do ano de 2022, referentes às taxas de violência e desemprego, as quais se encontram mais baixas do que nunca, com exceção de uma única noite no ano: a noite do expurgo. A partir daí, começamos a ter uma ideia do que significa essa noite, por meio de imagens de câmeras de segurança, com cenas gráficas de violência, ao som da composição de Claude Debussy, Clair de Lune, uma música instrumental calma, que contrasta com as imagens de caos e desespero. A forma como as imagens são apresentadas - pi-
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xeladas, com datas e horários - faz com que tenhamos a sensação de assistir a algo que não é destinado ao público: é, em sua essência, uma imagem utilitária, restrita a uma finalidade (geralmente de segurança), não usual na linguagem cinematográfica. Esse aspecto confere ao espectador um papel de quase voyeurista, numa sensação de estar assistindo a cenas que não são destinadas a ele e, juntamente à trilha sonora, cria-se um desconforto ainda maior. As cenas brutais são tratadas com naturalidade, trazem uma reflexão sobre a normalização daqueles atos extremos e até da visão dos apoiadores do evento: configuram-se assim como uma bênção e uma limpeza de alma no ponto de vista deles.
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Em seguida, conhecemos o protagonista, James Sandin, que trabalha vendendo aparelhos de segurança para a referida noite, e recebe a notícia de que ganhou o primeiro lugar em vendas naquele ano. Com a câmera localizada no carro do personagem, a visão que temos é de um lugar com casas grandes e, em seguida, um grande portão, o que nos leva a concluir que o lugar onde reside é uma espécie de condomínio, isolado e protegido. Enquanto isso, numa conversa de programa de rádio transmitida no carro, nos confrontamos pela primeira vez com a visão de alguém que é contra o evento, afirmando que os pobres não podem pagar para se proteger e, por isso, acabam sendo as verdadeiras vítimas da noite. Em resposta ao contraponto à prática do expurgo, outra voz afirma: “Cada um tem sua opinião, é isso que faz deste um país maravilhoso!”. O fenômeno de medievalização da arquitetura (Ferraz, 2009), que consiste resgatar elementos do período medieval e trazer para a modernidade, não só como forma de proteção mas também como demonstração de poder, é muito claro neste ponto do filme principalmente quando, mais tarde, todos começam a se fechar em suas casas e ativar os sistemas de segurança. A imponência e a
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proteção das casas sinalizando poder, como na era medieval, mas com os adventos da modernidade: não é necessário que as aberturas sejam pequenas e elevadas, os equipamentos são acionados quando necessário e criam essas barreiras automaticamente, passando de uma casa aberta e livre, com muitas janelas e portas para uma fortaleza fechada. A fortificação da casa com o fechamento das janelas e portas, as câmeras e até mesmo as armas que os personagens guardam, segundo eles por prevenção, além de a casa já ser localizada dentro de um condomínio murado em uma parte da cidade considerada segura, passam a mensagem de que aquela família pode se dar o luxo de ter uma noite tranquila em meio do caos instaurado no resto do país.
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Mais tarde, numa virada inesperada de eventos, um homem negro e ensanguentado entra no condomínio, diz estar sendo perseguido, e pede que alguém o ajude, e o filho da família Sandin abre a casa ao estranho e lhe oferecendo abrigo, sem ter o aval dos pais. A família não se sente segura com o abrigado, mas acaba o perdendo dentro da enorme residência, após um confronto inicial. Posteriormente conhecemos o grupo perseguidor, constituído por pessoas brancas e bem vestidas, munidas de armas e máscaras. O homem que lidera o grupo entra em contato com os protagonistas, afirmando saber que sua “presa” está com a família e demandando que a entreguem, com um discurso extremamente preconceituoso e classista. A fala do jovem líder se inicia como um pedido amigável e vai se tornando ameaçadora, afirmando que a família deveria entregar ao grupo o homem pelo qual buscavam porque, segundo ele, teriam o direito de matá-lo. Caso contrário a família não obedecesse, a casa seria invadida pelo bando assassino e eles mesmos encontrariam seu perseguido, matando não só ele como todos os residentes da casa. O que pode ser percebido no conflito instalado entre os moradores da casa e os “caçadores” é que o direito sobre a “presa” acon-
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tece quando não há equidade social. Em se tratando dos moradores da casa luxuosa, como pertencem à mesma classe dos invasores, só serão reservadas ações violentas a eles caso tirem dos reclamantes a oportunidade de expurgar seu ódio naquele que é alvo por direito - um homem negro, ensanguentado e socialmente desfavorecido. O tom de crueldade do jovem loiro, colocado no mesmo patamar da diversão é, no mínimo, desconfortável de assistir, e ajuda na construção da tensão da narrativa, uma vez que estão justapostos valores eticamente incompatíveis no contexto. Nesse trecho percebemos exatamente do que se trata a noite do expurgo: solucionar o problema de violência na cidade através de aniquilação e segregação da diferença. Uma pessoa em situação de rua e negra, como o homem abrigado, é tratado como um animal que precisa ser eliminado, numa lógica de assepsia social exigida para o conforto dos privilegiados economicamente. A ênfase no não pertencimento do fugitivo traz a reflexão de direito à cidade, que é definido pelo teórico da geografia David Harvey como:
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O direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual, já que essa transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização. (2012, p. 4 - tradução nossa)¹
No contexto do filme, as pessoas que possuem condições mais precárias de vida não só não têm direito à cidade como, nessa noite, não têm direito à vida, são vistas como um peso para o resto para a sociedade, e a solução para o conflito social é transformá-las na matéria de prazer do expurgo. Ou seja, a lógica é que o valor das pessoas se dá pela quantidade de capital e bens que elas acumulam, materializados na casa que podem comprar e nos aparatos de segurança que conseguem adquirir. A partir daí, os Sandins entram num dilema: o pai quer tomar parte no ato cruel em nome da própria proteção e de seus familiares, enquanto o filho tenta convencê-lo do contrário, e ajuda o fugitivo a não ser capturado. Por fim, a família chega a um acordo de não entregar o homem, aceitando que teriam que lutar por suas vidas. Quando o tempo dado pelo grupo assassino chega ao fim sem que o fugitivo tenha sido entregue, percebemos que 111
o sistema de segurança não era tão impenetrável como prometia, servindo mais como uma forma de intimidar quem estava fora do que de proteger quem estava dentro. Logo antes de entrar na casa, o líder do grupo invasor esbanja mais uma vez seu discurso autoritário e seu sentimento de superioridade em relação ao seu alvo, legitimados socialmente, baseando-se novamente em preceitos racistas e classistas, que são os distintivos que lhes garantem o direito à caça predatória a outro humano. Com isso, conseguimos ver que, para garantir o direito ao expurgo dos mais favorecidos, o homem negro menos abastado é visto como um corpo passível de ser abatido, um objeto servil às classes mais altas, que precisam suprir seu desejo de violência. A naturalização da brutalidade acontece quando a culpa é transferida ao outro e isenta o agressor. Esse discurso apresenta a visão de que é direito das classes mais altas fazer das mais baixas suas presas, e que ainda assim, as vítimas são as responsáveis e estão cumprindo seu destino de saciar a sede de violência, cuja prática está circunscrita a um dia do ano, “limpando a alma dos mais ricos”, como anunciado pelos personagens.
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O grupo consegue entrar na casa e inicia sua caçada, munido de armas, usando suas máscaras macabras e agindo como se tudo fosse um grande jogo. A arquitetura da casa participa da construção de tensão das cenas que se seguem, por seu aspecto espaçoso e cheio de corredores e quartos, juntamente à escuridão e aos sons provenientes de ações que acontecem dentro e fora do campo de visão do espectador, aquilo que o cinema nomeia como “espaço fora da tela”, e contribui para a intensificação da tensão porque os ruídos mostram que para além das ações exibidas há outros acontecimentos que não estão sendo vistos e possivelmente também representam ameaça. O medo e a sensação de insegurança aumentam a cada virada nos corredores labirínticos da enorme residência. O tamanho da casa, nesse contexto, pode ser visto como uma faca de dois gumes: representa luxo, conforto, abrigo e, no contexto, mais espaços que servem de esconderijo tanto para os residentes quanto para os inimigos. As pessoas que compõem o grupo de invasores lidam com o caos instaurado na casa com tanta banalização da violência que a estratégia de caça
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como jogo parece inicialmente oferecer um aspecto de brincadeira e leveza que contrasta com o ambiente pesado e crimes que estão sendo cometidos, como nessa cena em que um homem carrega uma mulher em suas costas enquanto ela segura um machado. A sensação que passam é a de prazer com a situação, uma excitação com o perigo, tanto o que eles oferecem quanto o que correm.
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Depois de diversos confrontos e algumas mortes de integrantes do grupo invasor, os vizinhos dos Sandins chegam, aparentemente com o objetivo de ajudá-los, e matam o resto dos agressores. Por fim Zoey, a filha da família, mata o líder enquanto ele ameaça o resto de seus familiares. Seu pai, que já havia sido gravemente ferido, acaba falecendo logo em seguida. Quando temos a sensação de que a história havia chegado ao fim com a derrota dos invasores, os vizinhos revelam que suas verdadeiras intenções eram as de eles mesmos matarem os Sandins, por um sentimento de vingança pela quantidade de dinheiro que o protagonista tinha ganhado na venda de sistemas de segurança para a vizinhança. Então, em outra virada de eventos, o homem negro abrigado pela família aparece e os salva, deixando os vizinhos como reféns até que o sinal que indica o fim do expurgo tocasse. Está em jogo um acerto de contas por algo que parecia, aos olhos dos vizinhos, estar fora da regra, que era a superioridade da casa dos Sandins. Ou seja, havia entre eles a concepção de apenas duas ordens possíveis: a dos que não possuíam casas e se tornavam presas por isso - e a dos que tinham
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residências de padrão homogêneo. Essa “normalidade” não pode ser quebrada, nem pelos que não fazem parte dela, nem pelos que destoam por terem mais. No fim, o que está em jogo é a sede de poder, materializada nas casas. Em um final bastante hollywoodiano, cria-se um herói que, apesar de tudo que passou, ainda faz o que é considerado correto na dicotomia entre bem e mal. Depois disso, ele vai embora e deseja boa sorte a Mary, a matriarca, e o filho, Charlie, o observa ir embora por entre os corpos ensanguentados, resquícios da noite anterior.
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Após a análise do longa conseguimos concluir que a noite do expurgo serve a uma parte da população, em detrimento de outra. Primeiramente, se estabelecem as categorias de classes sociais, ou seja, as classes mais altas podem escolher entre fazer parte da noite ou se recolher em suas casas, enquanto às classes mais baixas compete a tarefa de se invisibilizar para não se tornar alvo, já que não têm possibilidade de ter um refúgio com o equipamento necessário para sua proteção. Outra questão importante é o racismo, que é parte presente da configuração de subúrbios nos Estados Unidos, e é explorada pela película a partir da ideia de que o diferente não só é desfavorecido financeiramente, mas também é de outra etnia. A garantia do direito à moradia não interessa ao Estado porque a desigualdade faz com que duas ações aconteçam: a criação de presas para os que controlaram suas vontades violentas durante o ano e se sentem no direito de expurgar, e a assepsia da cidade, gerando a sensação de segurança e harmonia no resto do ano aos que tiveram condições financeiras para se proteger. A configuração da cidade e de suas residências têm parte importante nessa divisão, já que, dependendo do local ou até da própria arquitetura
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da casa, as pessoas são separadas entre merecedoras ou não de viver e pertencer àquele local. A imponência das residências e a indicação da existência de um sistema de segurança já servem como fator intimidador, independente de oferecerem ou não proteção de fato, como no caso dos Sandins. Não são só as classes sociais influenciam nas decisões violentas das pessoas nessa noite, mas também outras diferenças no geral, incluindo opinião e raça. A frieza em relação aos atos cruéis se dá pela validação dos atos, o evento, visto como benéfico por parte do país, é destinado para esse tipo de atividade, e faz com que a sensação de culpa seja transferida do agressor para o agredido. Como no caso dos vizinhos, por exemplo, que puseram a culpa de sua dita “necessidade de expurgar” na família protagonista por sentir que ostentaram sua riqueza provinda da venda de equipamentos à vizinhança, ou seja, sentiam que os Sandins conseguiram seus bens materiais às custas da vizinhança. Essa riqueza passa a ser óbvia e ser considerada um exibicionismo através da casa, que havia sido recentemente renovada, ou seja, a arquitetura dá rosto à desigualdade, como um cartão de visitas que representa o nível de posse dos moradores. 119
O filme traz a crítica sobre a violência como controle da violência, e as moradias, e até a falta delas, são os fatores que determinam todas as relações e conflitos do filme: a relação do homem negro e o grupo que o persegue, que justificava a perseguição pelo homem ser uma pessoa em situação de rua, sem moradia; a relação do grupo perseguidor com os Sandins, que inicialmente foi de respeito por tratá-los como iguais pelo porte da casa dos protagonistas; a relação dos Sandins com seus vizinhos, que gera comentários no início e conflitos ao final do filme, pela residência da família ser considerada superior e mais luxuosa que as do resto do condomínio no qual se situava.
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notas
da
análise
1 “It is a right to change ourselves by changing the city. It is, moreover, a common rather than an individual right since this transformation inevitably depends upon the exercise of a collective power to reshape the processes of urbanization.”
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Em busca de uma casa para comprar, Jemma e Tom visitam uma imobiliária que está anunciando um novo empreendimento: Younder. Durante a visita ao local, o estranho agente imobiliário tenta vender o sonho da moradia ideal, da qual nunca mais precisarão se mudar. E então, sorrateiramente, some. Quando o casal tenta ir embora, não consegue encontrar o caminho de saída do mar de casas perfeitamente iguais, sem um ponto de referência nem ninguém à vista, sempre voltando ao ponto de início, a casa número 9. Então resolvem esperar nela por uma resposta lógica para seus problemas e, ao invés disso, se encontram presos numa série de eventos aparentemente inexplicáveis.
Filme: Viveiro Ano: 2019 Direção: Lorcan Finnegan
No filme, somos apresentados a duas diferentes localidades de uma mesma cidade. A primeira é um local aparentemente mais central e movimentado, onde se localiza uma escola; e a segunda é o que pode ser considerado um clássico subúrbio norte americano, apesar de termos alguns sinais de que não se localiza nos Estados Unidos e sim no Reino Unido, como o sotaque dos personagens e o lado em que dirigem no carro. A primeira espacialidade é pouco explorada, servindo mais como forma de contextualização da história das personagens, construindo a ideia de uma vida de um casal ordinário. Apresenta a escola, espaço no qual o casal de protagonistas trabalha, Gemma e Tom, e depois uma pequena imobiliária, que visitam por estar procurando um novo local para morarem juntos. A procura por uma residência se mostra urgente quando, em uma das primeiras cenas, uma mãe da escola conversa com Gemma sobre o assunto e fala que o preço do mercado imobiliário está subindo. Ou seja, no contexto do filme, a busca por uma casa que possibilitasse que o casal expandisse sua família se mostra complicada, possivelmente por questões de alta demanda.
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Ao chegar à imobiliária, o corretor apresenta o empreendimento que está vendendo: Yonder. Clama ser um local perfeito que teria tudo que precisassem. Ao ver que o casal não parece se interessar muito, ele assume que é pelo fato de que a configuração do local é um clássico subúrbio. A arquiteta, urbanista e doutora em planejamento urbano Joseli Macedo, trata sobre o espraiamento e apresenta as características do subúrbio americano clássico: “De acordo com o Bureau do Censo dos Estados Unidos, espraiamento é definido como a redução de áreas rurais devido ao aumento da área urbanizada de uma cidade e seus subúrbios num determinado período de tempo. (...) A tipologia é de baixíssima densidade, com habitações unifamiliares e segregação de usos, o que resulta em bairros homogêneos, sem acesso a comércio e serviços vicinais, e sem um ponto focal, um centro agregador, ou lugar de encontro.” (2011, p. 285)
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Com o passar do tempo, essas características têm sido cada vez mais vistas de forma crítica e não são mais o sonho da maioria da população. Os assuntos de diversidade e sustentabilidade na cidade ganharam mais força e criaram uma reflexão sobre o modelo antes considerado “o sonho americano”. A partir daí Martin, o corretor, começa a listar os motivos pelos quais aquele não é um subúrbio comum, começando pela diversidade de pessoas. É interessante perceber que, nessa perspectiva mais atual, a diversidade é um ponto positivo e não mais negativo, com o aumento de discussões e problematizações sobre desigualdades e ocupação do espaço urbano de modo assimétrico. A homogeneidade, antes tão apreciada no subúrbio, agora passa a ser um ponto polêmico, que muitas pessoas não desejam viver. O próximo ponto é a localização que, segundo Martin, é “perto o suficiente e longe o suficiente, apenas a distância perfeita”, que apresenta outro aspecto da configuração desse tipo de empreendimento, a distância do centro da cidade, que se diz perto o suficiente para ter acesso aos serviços do centro, mas longe o suficiente para não viver o ritmo acelerado de lá.
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Essa definição ainda implica que, para chegar em Yonder, é necessário que se utilize um automóvel e que não há ligação direta com a malha de transporte urbano. Após a insistência do corretor e o sentimento de urgência do casal para conseguir uma casa antes que os preços do mercado subam ainda mais, eles acabam por entrar no carro e ir em direção a Yonder para fazer uma visita, mesmo sabendo que aquele não era o tipo de imóvel que procuravam, segundo os comentários que fazem no caminho para lá. Ao chegar, a primeira coisa que chama atenção é a repetição da tipologia das residências e todas as ruas absolutamente idênticas, o que traz desconforto ao espectador. O incômodo que é transmitido ao público pode ser atribuído à falta de alguns elementos que contribuem para uma boa leitura das cidades, como os descritos no livro A boa forma da cidade por Kevin Lynch. Dentre os sete critérios, os de sentido e acesso se destacam pela ausência. Segundo Lynch, o sentido se dá pela possibilidade de diferenciar e localizar no tempo os assentamentos, criando uma estrutura mental juntamente aos valores e culturas dos residentes.
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Enquanto o acesso é a possibilidade de acessar outras pessoas, serviços, atividades, e a variedade de elementos acessíveis. O local apresentado no filme tem um teor tão excessivamente planejado para seguir um padrão do que para alguns seria considerado ideal, que passa a sensação de cenário, um ambiente sem vida, identificação e sentido. Gemma e Tom são abandonados sem aviso prévio pelo corretor e, quando tentam ir embora, não conseguem. No dia seguinte, recebem uma caixa com um bebê e uma nota: “criem-no e libertem-se”. A partir desse ponto do filme, por estarem presos ali, os personagens vivem a realidade daquele local intensamente. A questão do sentido, elaborada por Lynch, fica muito clara e é apontada diversas vezes. Não é possível diferenciar as casas da vizinhança, as ruas e criar um vínculo com o local, tornando-o extremamente impessoal e sem sentido para os personagens. Eles apontam o fato de a comida não ter gosto, dos lugares não possuírem som ou cheiro e a falta de referências no espaço para conseguirem se localizar, tirando o número 9 da porta da casa a qual passam a habitar. Isto é, a falta de sentido não está apenas na arquitetura, mas em todos os elementos daquele ambiente.
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O único ponto de identificação que os protagonistas têm é algo que veio de fora, o próprio carro. O veículo representa casa, acolhimento e identificação em meio à paisagem cenográfica do lugar. A partir dessa visão do ambiente como cenário, é possível refletir sobre a importância da cidade também como personagem. A cidade não é só sua materialidade, como acontece no filme, é também suas pessoas, eventos, cheiros e sons. Esse é um exemplo de como esses aspectos são importantes para os habitantes, porque constituem a vida do espaço.
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Em um momento, deitada no jardim com a criança, Gemma expressa seu descontentamento com as nuvens do céu, por serem perfeitas demais e, de onde ela vem, as nuvens têm diferentes tamanhos e formatos. Essa passagem é uma extensão de sua infelicidade com a extrema plasticidade do lugar como um todo. A repetição da tipologia, as cores, a falta de cheiros e até mesmo, as nuvens. Nem o céu, que deveria ser um elemento comum entre o local que estão e o local onde moravam, transmite a sensação de pertencimento àqueles personagens, ou seja, a homogeneidade é estendida à natureza, não apenas ao aspecto arquitetônico da cidade. À medida que o filme passa e a criança misteriosa cresce, mais passa a sensação aos espectadores de que é um ser programado e que faz parte do motivo de estarem ali isolados. Ao final do filme é revelado que tudo não passa de uma espécie de viveiro, criado por criaturas que possuem similaridades com aves, com o que seria considerado o ambiente perfeito para entender como se constitui a instituição família para os seres humanos, os enviando uma criatura que imita um humano para que criem e ensinem seus costumes. Todos os fatores foram pensados para funcionar como um vi-
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veiro, criando condições “ideais” para o desenvolvimento daquela espécie: tipologia de residência imitando uma casa padrão, condições climáticas constantes e dentro de temperaturas confortáveis e todos os outros fatores considerados imprescindíveis à vida como hidratação e alimentação. Mas, as criaturas não compreendem que uma casa não é constituída apenas de quatro paredes, e uma cidade não é apenas um conjunto de edificações. Lynch afirma que a qualidade do espaço pode afetar a saúde, tanto física quanto mental, dos que o habitam, a película demonstra com clareza como se reverbera esse aspecto. Até que por fim, após a morte dos protagonistas, o menino, que na verdade faz parte das criaturas que estão por trás de todo o esquema, se torna o próximo corretor de imóveis, que irá atrair mais um casal para o experimento. O retorno à imobiliária, indicando que o experimento acontecerá mais vezes, traz também a sensação de que o empreendimento foi extremamente calculado: a indicação inicial de dificuldade no encontro de imóveis por motivos de preços e demanda, faz com que um local que oferece a promessa de uma boa residência a um preço justo atrai muitas famílias e, com isso, mais cobaias. Ou seja, sujeitos da experiên-
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cia conhecem as necessidades de seus objetos de estudo. O pássaro ao qual o filme faz referência é o Cuco, que procura espécies de aves que possuem ovos parecidos com os seus e, quando os hospedeiros saem do ninho, deposita lá os seus próprios. Após a eclosão dos ovos, é possível que o Cuco recém nascido derrube os outros ovos do ninho para que não haja concorrência por comida e pela atenção do pássaro parasitado. Nesse sentido, o espectador pode estabelecer uma relação entre essa característica das referidas aves e o motivo de todo o conflito da narrativa, talvez as criaturas estivessem aos poucos inserindo sua espécie em meio aos humanos e aprendendo seus comportamentos para, eventualmente, expulsá-los de seus “ninhos”. Vivarium mostra uma outra faceta do medo na cidade, que não se relaciona com a violência. Ele trabalha com o medo do isolamento, do não pertencimento e da não identificação, no qual o habitat “perfeito” é o maior pesadelo. Isso ocorre porque a materialidade sozinha não vai dar conta de preencher todas as necessidades humanas. Cidades, assim como as pessoas, não funcionam apenas
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em função de seus aspectos físicos, mas também de outros elementos que as dão alma e alegria. É possível traçar uma comparação entre a alimentação, sem gosto e sem cheiro, que os personagens consumiam e a cidade, sem pessoas, pontos de identificação, pertencimento e, segundo Lynch, sentido. Por mais que os corpos estejam recebendo o básico para sua manutenção ou, no caso da cidade, as casas estejam em bom estado de conservação, isso não é suficiente para a qualidade de vida dos personagens.
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considerações finais
Após percorrer a trajetória deste trabalho, percebi que quando retiramos a arquitetura do lugar de pragmatismo e cumprimento de função utilitarista, ela assume uma dimensão mais simbólica e sensorial, fazendo com que o diálogo com o cinema seja muito fértil. A ideia da cidade como personagem pode ser percebida tanto nos filmes quanto fora deles, sendo precursoras de sentimentos e sensações em seus habitantes. Kevin Lynch (1981), explicita as relações dos elementos da cidade com a qualidade do espaço, que puderam ser também identificadas nas cidades dos filmes analisados no terceiro capítulo, principalmente quando relacionados aos outros autores. O critério de sentido, descrito por Lynch, que trata da habilidade de distinguir assentamentos e identificá-los por meio de figuras mentais e identificação com os elementos do espaço, se relaciona à Pallasmaa (2013), na visão da importância do lado mais subjetivo e sensorial do espaço, retirando a arquitetura de um papel apenas utilitário e a colocando como algo sentimental. Essa dimensão menos objetiva e mais sensorial pode ser percebida em Viveiro, que elucida a falta de identificação e o não pertencimento à arquitetura impessoal do local onde se passa a película. O subúrbio do filme
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proporciona as condições necessárias para manter seus habitantes vivos, mas não proporciona a sensação de acolhimento e pertencimento, que traz familiaridade e segurança a quem o habita. O critério de acesso, também descrito por Lynch, que trata da possibilidade de acessar outras pessoas e recursos, pode ser trazido para dialogar com esse filme, uma vez que a construção das casas foi pensada exatamente para que não houvesse possibilidade de saída, fazendo com que a experiência no local fosse de isolamento e distanciamento da vida fora de lá, como em outra dimensão, e contribuindo para o temor dos moradores, que se percebem aprisionados. Em Os pássaros, o medo da imprevisibilidade da natureza e da destrutibilidade do abrigo e do núcleo urbano como um todo pode ser relacionado ao critério de vitalidade proposto por Lynch, em que o espaço precisa atender às necessidades vitais dos moradores e, no referido filme, o ataque das aves coloca em xeque a segurança, pelo medo de aquele local não ser mais adequado à ocupação pelas pessoas, que temem por sua sobrevivência. Não mais o urbano e a arquitetura são capazes de dar conta da proteção da espécie humana, como antes acreditavam, e a natureza passa a não mais
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ser vista como algo que envolve a cidade de forma controlada e separada de nossa espécie. Pallasmaa, na construção do conceitos de significados da arquitetura, trata da possibilidade de conforto de apenas assistir aos fenômenos naturais de forma protegida de seus efeitos, como em relação à chuva, por exemplo; a arquitetura proporciona a sensação de acolhimento dos habitantes, constitui forças que corroboram para o sentimento de segurança, mas, no caso de Os pássaros, acontece a subversão dessa ideia de separação da natureza e da humanidade por meio da proteção do abrigo, uma vez que as fronteiras entre o espaço natural e o construído arquitetonicamente para oferecer conforto e segurança aos sujeitos são quebradas. De certo modo, podemos perceber a falência do protagonismo da cidade que protege, e conseguimos inferir uma crítica ao processo civilizatório, que por vezes, ignora as possibilidades da natureza que ele mesmo ocupa. Em Uma Noite de Crime, a cidade utiliza a violência como antídoto da violência, e a segregação urbana traz a sensação de segurança e proteção do medo que acomete os habitantes daquele subúrbio: o outro. A ameaça que se apresenta é o outro, o que é diferente em um espaço homogêneo, que normalmente é controlado para não autorizar 146
a entrada daqueles que não têm condições de se colocarem como pares dos habitantes. Ferraz (2009) reflete sobre os efeitos de um tipo de arquitetura que dá a sensação de proteção, mas é segregadora, como é o exemplo do filme. Nesse sentido, a arquitetura que proporciona a sensação de segurança tem como parâmetro a fortaleza e seu consequente isolamento em relação ao que está fora. Apresenta-se nesse filme, cujo contexto é o subúrbio americano de classe alta, uma realidade em que o direito à cidade, tratada por Harvey (2012), é apenas para alguns. Ou seja, poucos podem de fato usufruir, modificar e se sentir parte daquele núcleo urbano, em que a assepsia social se faz muito presente. Enquanto o medo dos que possuem esse direito à cidade é a diferença do outro, os que não possuem temem a falta das condições básicas de sobrevivência, o que podemos associar ao conceito de vitalidade, proposto por Lynch - na noite do expurgo, o temor dos expropriados é a possibilidade de serem exterminados. A Vila também trata de violência e medo do outro, mas soluciona-os de forma diferente, com uma proposta de completa retirada e afastamento do núcleo urbano e a criação de uma nova sociedade independente da cidade, que é narrada, a partir de uma visão maniqueísta, como espaço que repre147
senta algo intrinsecamente mau e sem solução. Esse isolamento faz com que seja necessária uma forma de controle para que não haja possibilidade de contato com um local considerado corrompido pelos habitantes da vila, o que gera a criação de mitos e histórias de monstros como forma de conseguir esse controle. A vila sofre não só com o medo da violência contemporânea, mas principalmente com o medo dos seres que compõem essa narrativa, criada pelo controle feito pelos que fundaram aquela sociedade; na verdade, a falta de acesso é feita por meio de uma barreira invisível, construída pelo discurso dos criadores. O controle, assim como o acesso, também é teorizado por Lynch, quando trata do controle do uso de locais por seus habitantes, que nesse filme é feito pelos monstros imaginários, os quais, além de conter a população nesse espaço, impede o acesso a outros recursos que podem ser encontrados fora de lá. A insegurança, portanto, vem do controle, da falta de acesso e da crença de que qualquer local fora dali representa algo ruim ou mau. A partir do embasamento teórico e a consulta aos materiais de contexto histórico-sociais relacionados a filmes de horror de Karina Wilson (2005), ficou clara a possibilidade de relação entre o medo,
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a cidade e o cinema, servindo não só como moldura para as análises realizadas, mas também como uma forma de perceber que essa relação está presente em outras películas além das que serviram como objeto de estudo neste trabalho. Tratando-se de medo na cidade, noto que ele pode se apresentar de diversas maneiras, e o estudo feito aqui não pretendeu esgotar o tema, mas apontar alguns caminhos para estabelecer esse diálogo. A análise das cidades apresentadas nas telas explicitou a importância da arquitetura para além do ponto de vista pragmático. Ela precisa ser também humanizada, o que permite sua modificação e evolução juntamente aos seus moradores. É necessário que se compreenda que a configuração da arquitetura urbana pode ser agente da segregação, potencialmente contribuindo para violência, mas também pode ser pensada para o contrário. Pode ser utilizada como forma de diminuição das diferenças sociais, como locais que acomodam e proporcionam acolhimento e identificação aos que ali habitam. Uma cidade acolhedora se configura de forma que funcione não apenas para o aspecto físico e estético, mas também para o imaginário, emocional e o sensorial, afinal, as cidades não são apenas compostas por suas paredes e edificações, mas também por pessoas. 149
referências
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catálogo de imagens As imagens serão organizadas por páginas, recebendo seus devidos créditos. p. 14 Edição própria sobre captura de tela de apliação em streaming do filme Uma Noite de crime, de 2013 (feita em 2021) p. 22 Edição própria sobre captura de tela de apliação em streaming do filme Viveiro, de 2019 (feita em 2021) p. 38 Edição própria sobre captura de tela de apliação em streaming do filme Gabinete do Doutor Caligari, de 1920 (feita em 2021) p. 45 Captura de tela de apliação em streaming do filme Gabinete do Doutor Caligari, de 1920 (feita em 2021) p. 46 e p. 47 Capturas de tela de apliação em streaming do filme Metropolis, de 1927 (feita em 2021) 159
p. 53 Capturas de tela de apliação em streaming do filme Laranja Mecânica, de 1971 (feitas em 2021) p. 55 Capturas de tela de apliação em streaming do filme Halloween, de 1978 (feitas em 2021) p. 57 Capturas de tela de apliação em streaming do filme Se7en, de 1995 (feitas em 2021) p. 62 Edição própria sobre captura de tela de apliação em streaming do filme Os pássaros, de 1963 (feita em 2021) p. 64 Pôster alternativo do filme Os pássaros, de 1963, da artista Flore Maquin. Disponível em: <https://alternativemovieposters.com/amp/birds-flore-maquin/> Acessado em 13/09/2019 p. 67 à p. 79 Todas as imagens deste intervalo de páginas são capturas de tela de apliação em streaming do filme Os pássaros, de 1963 (feitas em 2021) p. 86 Pôster alternativo do filme A vila, de 2004. Disponível em: <https://www.redbubble.com/i/sticker/The-Village-Movie-fan-art-by-candiekain/46658988.EJUG5> Acessado em 13/09/2019 160
p. 90 à p. 94 Todas as imagens deste intervalo de páginas são capturas de tela de apliação em streaming do filme A Vila, de 2004 (feitas em 2021) p. 100 Pôster do filme Uma Noite de Crime, de 2013. Disponível em: <https://www.commonsensemedia.org/movie-reviews/the-purge> Acessado em 13/09/2019 p. 102 à p. 117 Todas as imagens deste intervalo de páginas são capturas de tela de apliação em streaming do filme Uma Noite de Crime, de 2013 (feitas em 2021) p. 124 Pôster do filme Viveiro, de 2013. Disponível em: <https://www.adorocinema.com/filmes/filme-256558/> Acessado em 13/09/2019 p. 128 à p. 135 Todas as imagens deste intervalo de páginas são capturas de tela de apliação em streaming do filme Viveiro, de 2019 (feitas em 2021) p. 142 Edição própria sobre captura de tela de apliação em streaming do filme A vila, de 2019 (feita em 2021) p. 152 Edição própria sobre captura de tela de apliação em streaming do filme Viveiro, de 2019 (feita em 2021)
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INGRESSO ADMITE UMA PESSOA
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