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Miguel Alejo Spivacow
O CASAL EM CONFLITO CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS
Prólogo René Kaës Tradução e Edição Adriana May Mendonça Denise Martinez Souza Marcia Zart
Terra de Areia, RS Triangullo Gráfica e Editora LTDA. 2018
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Miguel Alejo Spivacow
O CASAL EM CONFLITO CONTRIBUIÇÕES PSICANALÍTICAS
Prólogo René Kaës Tradução e Edição Adriana May Mendonça Denise Martinez Souza Marcia Zart
Terra de Areia, RS Triangullo Gráfica e Editora LTDA. 2018
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Spivacow, Miguel Alejo O casal em conflito : contribuições psicanalíticas / Miguel Alejo Spivacow; tradução de Adriana May Mendonça, Denise Martinez Souza, Marcia Zart. – Terra de Areia RS] : Triângulo Graf. Ed. , 2018. 202 p. ; 23 cm. Tradução de: La pareja em conflito: aportes psicoanalíticos, c2011. ISBN 978-00-00000-00-0 1. Psicologia I. Mendonça, Adriana. II. Souza, Denise Martinez. III. Zart, Marcia. IV. Título. CDU 159.9 Catalogação na fonte: Patrícia Guariglia Sousa Cerezer CRB –10/1592
Autor Miguel Alejo Spivacow Tradução e Produção Editorial Adriana May Mendonça (adriana.may.mendonca@hotmail.com) Denise Martinez Souza (denisemtzsouza@gmail.com) Marcia Zart (marcia@zart.com.br) Revisão de Português Maria da Graça Azevedo Bortoli Capa: Tête de femme au chapeau bleu à ruban rouge . Pablo Picasso, 1939. Vendas Bybook – Livraria virtual Triangullo Gráfica e Editora Ltda. Rua Osmani Veras, 6998 – Centro – Terra de Areia – RS CEP 95535-000 atendimento.capao@graficatriangulo.com.br – www.graficatriangulo.com.br CNPJ07104434/0001-80
Proibida a reprodução total ou parcial deste livro por meios gráficos, fotostáticos, eletrônicos ou qualquer outro sem permissão do editorial.
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Sumário
Editorial - Adriana May Mendonça, Denise Martinez Souza, Marcia Zart .................................................................................................. 11 Prólogo pelo Prof. René Kaës ........................................................ 15 Introdução .............................................................................................. 29 Capítulo I
Amor e o casal em psicanálise. ........................................................... 33 1. Amor e amor de casal 2. O amor na obra de Freud 3. Lacan: não há proporção sexual. A queda do Outro 4. O natural, o cultural no amor 5. O intersubjetivo no casal 6. A "identidade" psíquica do casal 7. Masculino - feminino. Homens e mulheres 8. A Valorização na abordagem clínica e na teoria. "Como deve ser" a relação do casal. Capítulo II
O sujeito e o outro. O inconsciente e o parcial .............................. 55 1. Os outros e o psiquismo 2. Os outros e o inconsciente. Interdeterminação e alianças inconscientes 3. O intrassubjetivo e o intersubjetivo 4. Propriedades do inconsciente à luz do intersubjetivo 5. Uma nova teoria do psiquismo Capítulo III
Discurso conjunto, transferência intracasal, intervenção vincular. Conceitos distintivos da clínica com casais ............... 69 1. A associação livre e o discurso conjunto
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2. As transferências intracasais 3. Intervenções vinculares. O processo de mudança 4. Sobre o trabalho do analista no dispositivo de casal
Capítulo IV
O casal, no mais aqui do inconsciente. A superfície do discurso conjunto .................................................. 81 1. Algumas interações típicas 1.1 Polarização 1.2. Magnificação 1.3. A pseudocomplementariedade ou identidade pseudocomplementar 1.4. Discordância conteúdo / relação 1.5. Discordância verbal / gestual 1.6. Mal-entendido ou ilusão de entendimento 1.7. A esterilização da palavra 1.8. A confirmação e a desconfirmação 1.9. A conspiração 1.10. A ilusão 1.11. Depositação 1.12. A posição insustentável 2. Da interação ao inconsciente 3. O que os parceiros chamam de "comunicação»
Capítulo V
Da demanda à construção de uma posição analítica na clínica com casais .......................................................... 95 1. Algumas formas da demanda. Modos de chegar a consulta 1.1. O filho / filha como motivo da consulta 1.2. Quando o problema é a violência 1.3. Quando o casal se sustenta em normas de um establishment 1.4. Quando as palavras são estéreis 1.5. "Vincularismo" e "solipsismo": duas situações a evitar 2. A construção de uma posição analítica 3. O trabalho da intersubjetividade. Sintonia 4. Do lado do analista: eficácia e penetração na clínica do intersubjetivo
Capítulo VI
Sintonia e validação. Trabalhos psíquicos na relação de casal .............................................................................. 107
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1. A situação clínica 2. Da demanda ao projeto terapêutico 3. A sintonia e seus diferentes aspectos 4. Validação 5. Sintonia e validação, sintonia validante 5.1. Antecedentes na vida infantil 5.2. A sintonia e a polaridade. Desejo sensual<- ->amor 6. Percursos clínicos
Capítulo VII
O divórcio, entre a fantasia e a decisão ......................................... 123 1. O divórcio é diferente para cada parceiro 2. O divórcio implica luto 3. Sentimentos de fracasso. O amor não é eterno 4. Discriminação e divórcio 5. Questões práticas 6. Os profissionais que intervêm 7. Repercussões no somático 8. Os filhos na guerra divorcista 9. Uma vinheta 9.1 Comentário sobre a vinheta
Capítulo VIII
O casal em segundos matrimônios e nas famílias reconstruídas ............................................................... 133 1. Algumas situações que trazem para a consulta 2. A montagem do dispositivo 3. Da superfície espinhosa ao fundamento amoroso
Capítulo IX
As relações extramatrimoniais na terapia de casais. "Infidelidade". .................................................. 139 1. Uma velha instituição 2. Terminologia e significados 3. Quando se configura uma situação traumática 4. A violência é um perigo sempre presente 5. Freud e as relações extraconjugais 6. Apreciação da hostilidade 7. Equilíbrios que o analista não deve desajustar 8. A sinceridade e a franqueza
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9. O melhor arranjo possível 10. As diferentes necessidades sexuais de cada um 11. Em que consiste a traição 12. Uma poesia 13. Um caso clínico 14. Comentários 15. As mudanças na sociedade
Capítulo X
Violência emocional no casal ........................................................... 151 1. Modos de apresentação 2. Os dinamismos latentes 3. A intervenção do analista
Capítulo XI
Os casais de amanhã. O futuro a partir de uma clínica de casais. ..................................................................... 161 1. O crescimento da violência conjugal e familiar 2. Os efeitos da ciência e a tecnologia 2.1. A reprodução se tornou independente da sexualidade 2.2. A polaridade masculina e feminina tem perdido a vigência na formação de casais. 2.3. A família não é o que era 3. Efeitos das mudanças nas teorias da saúde mental e da psiquiatria 4. O que não muda 5. O que a psicanálise ensina 6. O que a psicanálise não sabe. Os paradigmas que caem 7. A família tradicional não era tão boa, o que está vindo não é tão mau. As ideologias sobre o amor de casal 8. O lugar e função do analista de casais. Referências para um projeto terapêutico
Capítulo XII
Uma sessão comentada a partir de diferentes perspectivas ....................................................................... 173 1. Alguns dados sobre a evolução do tratamento 2. Sessão do segundo ano de tratamento (1993) 3. Comentário de Gloria Barros de Mendilaharzu 4. Comentário de María Rosa Glasserman 5. Comentário de Stella Maris Rivadero
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Referências Bibliográficas ............................................................... 193 Tradução e produção editorial ....................................................... 201
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Editorial
O “casal em conflito” é um livro que trabalha com novos paradigmas que desafiam a psicanálise tradicional e ampliam seu campo de ação. O corpo teórico da psicanálise demonstrou estar aquém quando o propósito terapêutico é o trabalho com casais e o objeto de análise são os vínculos e a intersubjetividade. Assim sendo, foi necessário repensar os conceitos clássicos, tanto teóricos como teórico técnicos, para que essa demanda pudesse ser atendida. Nesse sentido, o psiquismo como sistema aberto que articula os espaços intra e intersubjetivos, teve que ser considerado, por Miguel Spivacow, para que as identificações e relações de objeto que formam o espaço intrapsíquico dos casais pudesse ser compreendido. O autor propõe conceitos originais como “interdeterminação” que abarca os investimentos recíprocos entre os integrantes do vínculo, bem como o conceito de “transferência intracasal”, que permite a utilização do método freudiano no campo vincular e perceber, in loco, como um contexto intersubjetivo afeta o funcionamento e constituição do inconsciente dos sujeitos em questão pela repetição de padrões de funcionamento de casal no setting analítico. A intervenção vincular do analista sobre a transferência intracasal seria o correlato da interpretação freudiana da transferência individual, que permitiria o trabalho de desvelamento das aliança inconscientes, já que o intersubjetivo, espaço aberto interdeterminado, é uma faceta do funcionamento regido pela lógica irredutível do “não é um sem o outro”. Outra ideia inovadora que nos apresenta Spivacow é a equivalência entre a associação livre, dispositivo do tratamento individual, e o discurso conjunto, dispositivo do tratamento de casais, onde há um protagonismo de um membro sobre o outro, provocando respostas intersubjetivas que insistem em se repetir e que podem vir a gerar modificações, quando analisadas, no funcionamento da dupla, pois o intersubjetivo ativa o intrassubjetivo. Queremos ressaltar, também, as contribuições do autor sobre a posição do analista nos tratamentos vinculares, no que tange a neutralidade. Spivacow refere que o analista não opera num campo neutro nem é um per-
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Editorial
sonagem neutro, está sempre implicado, pois a subjetividade do analista, sua ideologia e seu pertencimento tem influência no tratamento de casais. Requer uma participação mais ativa do analista, pois as intervenções vinculares assinalam o efeito de um sobre o outro ao qual o analista não escapa. Salienta que cabe ao analista não apenas comunicar conhecimentos ou interpretações, mas abordar diferentes pontos de vista aos problemas que surgem na sessão, desenvolvendo no casal “um saber fazer com um, com o outro e com o vínculo”. Pois trabalhar as diferenças e colocar-se no lugar do outro implica num importante aspecto da sintonia. A sintonia permite aos parceiros o intercâmbio subjetivo, com imaginação e receptividade sugerindo uma transformação recíproca. Os casais em crise manifestam fantasias de divórcio e de refazer uma vida mais prazerosa com outro parceiro. O tema do divórcio é abordado frequentemente na clínica, quando o casal está em conflito, seja como fantasia ou decisão. Podendo gerar dificuldades no analista de escutar estas reflexões por sua crença pessoal de que o casamento é para “toda vida”, ou por sua angústia de perder os pacientes que decidem pela separação e o consequente término do tratamento. O autor salienta que, além da ativação de problemáticas inconscientes, que o material dos pacientes pode produzir no analista, deve-se atentar por não tomar partido por um dos membros do casal, não se identificar com o paciente do mesmo gênero, enfim não “envolver-se”, respeitando suas individualidades. Muitos “casais em conflito” vivenciam violência emocional e/ou física em sua relação sendo frequentemente estes fatos os motivadores da consulta. Apesar de não ser uma nova circunstância, o crescimento da violência, na contemporaneidade, tornou-se mais evidente. E cabe ao analista descrever e registrar a intensidade deste enfrentamento transmitindo a importância da capacidade de desenvolver uma discussão em nível mais sadio. Citando Miguel Spivacow: “As mudanças são tantas e tão grandes, quanto se tem potencializado a capacidade destrutiva do ser humano. Muitos temem pelo lugar do amor no mundo, porém nada indica que o amor de casal vá desaparecer, embora suas características mudem apressadamente em nossa época. Vai continuar existindo o amor, embora pareça tolice dizer isto”. Por último, mas não menos importante, desejamos chamar a atenção para a desconstrução de preconceitos vigentes no que tange as novas configurações vinculares. Miguel Spivacow faz uma reflexão sobre as falsas concepções que fazem da família tradicional o modelo ideal, demonstrando claramente que esse modelo pode não ser tão bom quanto imaginamos. Outrossim, faz-nos ponderar que esses pensamentos mais tradicionais esta-
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riam baseados na dificuldade cultural de assimilar o novo, e nos convoca a considerar que as famílias monoparentais ou reconstituídas possam ser melhor do que gostaríamos de acreditar! Adriana May Mendonça Denise Martinez Souza Marcia Zart
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Prólogo
Prof. René Kaës
Quando Miguel Spivacow me propôs redigir este prefácio, a ideia de escrevê-lo me despertou, acima de tudo, uma dúvida e um escrúpulo. Como psicanalista, não tenho efetivamente uma prática da terapia com casais, mas apenas com sujeitos tratados, um por um, mediante a psicanálise chamada "individual"; e tenho também a experiência do trabalho psicanalítico com sujeitos reunidos em um dispositivo de grupo. No entanto, além da estima que sinto por M. Spivacow, aceitei sua proposta por várias razões. A primeira é que supunha que o autor tinha algum motivo sólido para me convocar como um leitor próximo às suas preocupações, mas ao mesmo tempo, com uma distância suficiente de sua prática psicanalítica com casais, de modo que fosse possível um espaço de interrogação. A segunda razão é que, conhecendo o trabalho anterior de M. Spivacow, estava seguro da qualidade de sua investigação clínica e teórica e ainda curioso para conhecer os novos desenvolvimentos que contribuíram para a sua reflexão cinco anos após a publicação da “Clínica psicanalítica com casais”. Ao lê-lo, descobri na verdade outro registro de pensamento, e me vi questionado pelas referências criativas que faço aos meus próprios trabalhos. Logo descobri uma terceira razão para escrever para ele este prefácio para seu próprio texto. Seu livro me confrontou uma vez mais com o uso que se pode fazer dos conceitos ou de modelos construídos, com as hipóteses que as sustentam e que eles exploram, em um campo diferente ao da cura individual. O que já é problemático nesta extensão da prática e da teorização da psicanálise a situações plurissubjetivas segue sendo, quando se confrontam as práticas e as conceitualizações estabelecidas em uma outra configuração vincular: no trabalho psicanalítico com os casais, os grupos, as famílias, as instituições; nas vicissitudes do encontro com o outro, com mais de um outro. Esta terceira razão é finalmente a que manteve minha atenção ao ler o seu belo livro: apesar da minha inexperiência na sua clínica, encontrei nesta obra uma interrogação vigorosa sobre o que sustenta o exercício e a conceitualização da psicanálise.
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Prólogo
*** Chegado a este momento de minha experiência com a psicanálise, de minha pesquisa e de minha vida, valorizo o trabalho de M. Spivacow na medida em que expõe ao menos três problemas que me parecem essenciais. O primeiro interroga, principalmente através da clínica, a prática da psicanálise através da diversidade de seus dispositivos; o segundo diz respeito à dimensão epistemológica do conhecimento do inconsciente e de seus efeitos de subjetividade; a terceira preocupação se atêm ao método pelo qual temos acesso a esse conhecimento e aos recursos para tratar o sofrimento psíquico e as formas contemporâneas da psicopatologia. Este livro contribui para levantar estes três problemas e um de seus grandes méritos é, a meu modo de ver, perceber suas articulações. Ao longo de sua obra, M. Spivacow questiona sua clínica, ou seja, seu encontro cada vez mais singular com um casal. Porque o expõe e com ele se expõe, nos convoca a repensar nossa própria maneira de ser psicanalistas, nos convida a compreender em que condições, em dispositivos diferentes ao da cura individual e diferentes entre si, somos e permanecemos psicanalistas. Nós somos psicanalistas quando, nos dispositivos plurissubjetivos, a escuta do inconsciente e das formas de subjetividade que gera nos sujeitos, ouvimos os discursos de cada um deles e do conjunto que formam no processo associativo. Nós somos quando podemos descobrir como se configura o campo e os conteúdos dos movimentos transfero-contratransferênciais, e como nos situamos nesse espaço. Nós somos, finalmente, quando pensamos os processos psíquicos que se desdobram e que requerem que elaboremos e possamos dar uma interpretação do que, sem que os sujeitos saibam, se tenha aderido entre eles e neles, tanto em seus sofrimentos como em suas realizações do desejo. O segundo conjunto de questões a que recorre este livro se refere a um problema epistemológico ao que hoje, mais do que nunca, devemos contribuir com elementos de resposta. Por que hoje? Durante alguns anos, e em todo o mundo, experimentamos uma dupla prova para a psicanálise: uma delas procede do entorno político e econômico, consiste na ameaça que pesa sobre a própria existência da psicanálise em favor de práticas normativas que despossuem o sujeito de sua subjetividade. Esta prova é política, e está subtendida pelo ódio ao inconsciente. Outra prova nos confronta, desta vez dentro do mesmo campo da psicanálise com a extensão de suas práticas e com os modelos pelos quais damos conta dos efeitos do inconsciente e das subjetividades geradas por
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suas diversas configurações, não apenas no próprio sujeito, mas em seus vínculos com os diversos tipos de conjuntos e nestes próprios conjuntos. Esta prova é epistemológica. Seguramente, estes dois tipos de provas não são da mesma ordem e, no entanto, por certos pontos, se comunicam e, em todo caso, algo podemos fazer para dar a este problema toda a sua importância. Trata-se, nada menos, de compreender por que meios e modos de pensar conhecemos o que conhecemos e como damos conta disso, não só entre nós, mas também frente ao debate social. O que nós conhecemos, esses novos espaços da vida e da morte psíquica, são também os meios, - o método - que usamos para tratá-los quando esses espaços e esses vínculos são fonte de sofrimento, até então não focado nos dispositivos clássicos centrados só no sujeito. O que devemos interrogar é o que já conhecemos e que organiza nosso pensamento e nossa ação, abrindo-os ou fechando-os a novos campos da prática e da teorização psicanalítica. Este problema epistemológico elementar deve ser afrontado permanentemente, mas só pode ser depois de ser estabelecida, suficientemente, a experiência de novas práticas, uma vez reconhecidas sua fecundidade e sua aptidão para perturbar as certezas. É aí que se deve centrar nosso esforço, de dentro do espaço psicanalítico, para afrontar a primeira prova com os frutos da segunda. Dentro do espaço psicanalítico, tal como construiu a única prática da cura, podemos já descartar uma objeção que é feita para nós a priori: essas práticas deixariam de ser freudianas pelo fato em si de afastar-se do dispositivo da cura 'indivídual'. Esta objeção revela a posição conservadora que a sustenta: esquecendo, na realidade, que o próprio Freud considerava a cura como uma aplicação da psicanálise, e que imaginava, pela via especulativa - a única que tinha à sua disposição. Estes dispositivos plurissubjetivos submeteram à prova uma clínica cada vez mais rigorosa. Permanecer no movimento do pensamento freudiano é, então, ao contrário, continuar descobrindo os efeitos do inconsciente quando se manifestam em outros dispositivos que o da cura individual, por forças diferentes em seu objeto e seus objetivos, mas regidos pelos mesmos princípios básicos do método psicanalítico. Nestas condições, é verdade que algumas declarações (não todas) da teoria, formuladas a partir da experiência da cura individual partem, portanto, das conceitualizações que os novos dispositivos tornam possíveis e necessários, enquanto à organização da realidade psíquica inconsciente, enquanto a manifestação de processos e formação psíquicas até então inacessíveis.
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Prólogo
Outros dispositivos psicanalíticos, outras configurações psíquicas, outras organizações das transferências, dos processos associativos, da interpretação e outras teorizações: estamos aqui diante de um terceiro conjunto de questões. Centram-se no método, em seus princípios gerais, os mesmos que comandam a via de acesso ao objeto de nossa investigação e de nosso tratamento do inconsciente (o inconsciente), nas particularidades do dispositivo. Nesta questão do método, articulam-se intimamente o encontro clínico e a construção dos saberes. Aqui, novamente, o trabalho de Miguel Spivacow se inscreve nesse questionamento do método e dos dispositivos que gera. É a obra de um psicanalista que se atreve a argumentar que a cura individual, embora siga sendo insubstituível, não poderia bastar para tratar formas de sofrimento psíquico e de psicopatologia que não tem como trabalhar. Comparto com ele este ponto de vista. A exposição que M. Spivacow faz no capítulo I da concepção do amor na obra de Freud já é exemplar desta proximidade com a obra freudiana, que possibilita a detecção das diferenças entre as contribuições psicanalíticas da cura individual e o dispositivo de trabalho com um casal. Retoma o pensamento freudiano sobre o paralelismo entre o desejo, caracterizado pelo investimento inconsciente das experiências de satisfação fundadoras do psiquismo; e o amor, que requer a participação das instâncias conscientes da personalidade. Mas as mais precisas e fecundas distinções que introduz entre o amor, a sexualidade, o desejo, o sentimento amoroso, fundam-se nas investigações pós-freudianas, na de Lacan principalmente1, nos levam mais além da oposição clássica entre prevalência narcisista e prevalência objetal. Quando M. Spivacow enfatiza, que em toda relação fundada no sentimento amoroso, há "uma luta pelo poder entre o eu e o parceiro de modo tal que a prevalência de um ameaça a existência do outro e ambos estão em perigo de apagamento", destaca que este aspecto da relação amorosa - o poder e a submissão, o controle e a subordinação, - é com frequência muito difícil de evoluir nos tratamentos individuais, e que pelo contrário, põe-se em evidência nos dispositivos de casal.
*** A psicanálise muitas vezes fica aquém em sua conceitualização quando se trata de pensar sobre a consistência de um vínculo intersubjetivo de outro modo que nos termos das identificações e das relações de objeto que 1. Na França, outros autores também contribuíram para renovar a questão do amor: entre eles, Ch. David, J. G. Lemaire, J. MacDougall, J. Kristeva, F. Perrier.
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formaram o espaço intrapsíquico de um dos sujeitos constitutivos de um casal ou de um grupo. A prática e a teoria de cura individual nos ensinaram a centrar a vida psíquica no espaço interno de um único sujeito, mas, com a maior frequência, aplicamos esses conceitos a um espaço psíquico cuja consistência se apresenta com características diferentes. É o que ocorre quando pensamos o vínculo amoroso só em termos de escolha de objeto e não o que liga os sujeitos, fazendo neles um casal em uma aliança inconsciente, em seu espaço comum e compartilhado nas suas diferenças. Há muito tempo propus a ideia de que o vínculo é, às vezes, a experiência e a lógica do "um não é sem o outro e sem o conjunto que formam e os une”. Apesar de nossos pontos de vista não se sobreporem inteiramente, esta fórmula me parece bastante próxima das perspectivas desenvolvidas nesta obra. A ideia de que o psiquismo é um sistema aberto está no centro de investigação de M. Spivacow. Para ele, trata-se do psiquismo do sujeito, posição com que concordo, mas que estendo a espaços intersubjetivos, também eles dotados de consistência e de qualidades psíquicas. O ponto de vista do autor centra-se, com um rigor e uma coerência constantes, na articulação entre funcionamentos intrassubjetivos e intersubjetivos, escreve: "Trata-se de ter uma capacitação dos dois sujeitos [do casal] individualmente considerados, assim como também do vínculo em questão". Porém ainda que se reconheça o vínculo como uma dimensão própria do casal, se o considerarmos do ponto de vista dos sujeitos em ambos, a relação se produz pela ligação de um com o outro - , com mais de um outro - , e se inscreve na psique dos sujeitos. A questão central é, portanto, compreender "de que modo participam o outro / os outros no funcionamento psíquico de um sujeito". Esta posição marca uma mudança fundamental na concepção dos objetos práticos e teóricos da psicanálise na medida em que o psiquismo de um sujeito singular é considerado, no entanto, como "também inclui produtos de pessoas que se localizam no mundo exterior" (ibid.). M. Spivacow retoma a metáfora da banda de Moebius para significar esta ausência de oposição entre o interior e o exterior: dois espaços contínuos, onde um remete ao outro, sem fronteira clara. Mas, ao final, o objeto da preocupação deste livro é o intrapsíquico. O autor aborda este espaço com matizes quando escreve que "no psíquico há espaços de diferentes permeabilidade ao exterior, de modo que em alguns, a interinfluência do contexto intersubjetivo tende a ser mínima e em outros tende a ser máxima." (Ibid.) Aí nos encontramos numa problemática dos 2. Esses sentido das nuances, por outro lado é uma característica do pensamento do autor, como atestado, por exemplo, em uma análise da dupla face destrutiva e conservadora do tempo no casal.
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gradientes da abertura do psiquismo ao exterior. Isto levanta a questão da natureza das intensidades das investiduras recíprocas do sujeito sobre o outro.
*** Este ponto de vista organiza a pertinência dos principais conceitos construídos ou adaptados por M. Spivacow. Gostaria de destacar alguns deles por sua consistência e seu interesse. O conceito de Interdeterminação tem um alcance que supera a análise do casal quando M. Spivacow o concebe para designar "as influências recíprocas que sofrem as investiduras dos integrantes de um vínculo". Poderíamos utilizá-lo para descrever um processo de grupo. "A interdeterminação [...] abrange tanto as modificações transitórias e circunstanciais que implica a vida de relação social como as remodelações de maior profundidade que se produzem no inconsciente" (ibid.). Salienta que estes fenômenos de interinfluência recíproca são uma propriedade do funcionamento global da trama intersubjetiva, na qual existem formações relativamente estáveis e consolidadas, as alianças inconscientes. Interessou-me particularmente a maneira de apresentar esses processos como articulações entre os sujeitos. Utilizo frequentemente esta noção de encontro fecundo relacionando-a a uma analogia pertinente, a função das articulações na anatomia: estas " decidem, escreve Spivacow, as possíveis posições na trama dos membros participantes (...): dois segmentos anatômicos se determinam reciprocamente nas posições que adotam e é a articulação como totalidade complexa que decide que movimentos cabem a cada falange em seu funcionamento com a outra e quais não ". O que destaco como pertinente é precisamente essa ideia de que a articulação é um sistema, uma totalidade complexa e que o que governa é a estrutura. Assim, as alianças inconscientes" decidem" posições subjetivas e implicam remodelações nos processos defensivos dos sujeitos e constitutivos da aliança. Reciprocamente, os processos inconscientes no intrassubjetivo são a base das alianças inconscientes. Neste ponto estamos de acordo e também na proposição segundo a qual "a correlação recíproca não se verifica ponto a ponto e o excluído no intersubjetivo não se corresponde calcograficamente com o excluído no intrassubjetivo". É o que relativiza, como o que precisarei mais adiante, a metáfora da faixa de Moebius. Outros dois conceitos me parecem particularmente eficazes. Os con3. Técnica de impressão.
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ceitos de sintonia e de validação, propostos como ferramentas teóricas construídas para "pensar alguns trabalhos psíquicos que são característicos da relação de casal e nos quais desempenha um papel de liderança a diferença outro / objeto." M. Spivacow não limita a sintonia à identificação com o outro, porque esse conceito exclui a possibilidade de imaginar uma diferença com o que é próprio do sujeito. Fundando-se numa identificação 'discriminada', a sintonia permite situar-se no lugar de outro, mediante uma receptividade ativa e imaginativa a respeito do outro, estabelecendo no casal "uma forma diferente de troca tanto para a guerra, o desprezo, a indiferença ou troca de clichê como a idealização rígida". Implica um trabalho elaborativo "sobre a opacidade do companheiro / a" e sobre as diferenças. Entendo assim como a sintonia é um modo particular de realização do trabalho psíquico da Intersubjetividade. A sintonia pode -ou não- estar acompanhada da validação, que M. Spivacow descreve como "um funcionamento de aceitação e legitimação do que se capta no outro tal como é, sem pretender mudá-lo", não implica não supor nem a coincidência nem o acordo e, menos ainda, a submissão. É frente ao outro, um funcionamento diferente à violência, ao desprezo, ao desdém, ao desconhecimento de sua singularidade. "Quando sintonia e validação estão presentes, pode se falar de sintonia validante, funcionamento que constitui um fator de pacificação e amortização da violência". Reflito que estes dois conceitos, pensados com a psicanálise, têm uma pertinência que se estende mais além da análise do casal. De forma útil, vou me beneficiar deles para a análise em grupo e, com maior amplitude e ainda para qualquer trabalho em configurações vinculares. Desde já, encontram um campo de aplicação particularmente favorável na análise do casal, sem dúvida, porque o dispositivo, ainda que mais complexo que o da cura, o é muito menos do que o tratamento psicanalítico da família ou do trabalho psicanalítico em situação de grupo. Mas a constante é sempre o trabalho de e na intersubjetividade. Como bom clínico, M. Spivacow relacionou com justa razão estes três processos com a questão da demanda formulada pelos parceiros ao iniciar a psicoterapia do casal: o enunciado desta demanda seria "ser melhor” e em consequência, como para toda a demanda, o psicanalista se faz eco dela, interrogando mente pertinente para avançar na construção epistemológico à maneira como a recebe e a escuta, a trabalha e a organiza em uma situação terapêutica. Assinala a questão essencial: "A pergunta é como pode ajudar um analista a "se dar melhor" sem assumir um vértice diretivo ou pedagógico e sem também tentar impor alguma visão do problema. Não se trata de que ele diga se convém uma coisa ou outra, mas que ajude o casal, se possível, a
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realizar um trabalho psíquico que permita alguma metabolização não violenta do conflito em questão. Ele evoca as modalidades que se apresentam, sem impô-la como uma regra: em substância, desvendar as raízes inconscientes dos funcionamentos que determinam o sofrimento no vínculo e impulsionar um trabalho psíquico em sintonia entre os parceiros. Inicia-se então o processo que põe em evidência, na transferência e mediante o discurso conjunto, a interdeterminação e as alianças inconscientes.
*** O clínico aparece sempre nas elaborações conceituais de M. Spivacow. O leitor notará que o ponto de vista que adota sobre textos da clínica convulsiona muitas das ideias recebidas: nas primeiras páginas de seu livro, adverte que "transmitir de maneira confiável o que acontece em uma sessão é uma tarefa impossível, definitivamente impossível. O leitor, então, deve ler as vinhetas clínicas como ficções que aspiram a descrever uma cena inatingível. Este é o limite e a enorme utilidade de transcrever / reconstruir / inventar sequências clínicas ". Ressoa bastante com esta ideia de que os exemplos clínicos não pretendem ilustrar, não trazem de fato uma "prova", mas um caminho para essa cena inalcançável, sempre incompleta e repensável. Fiz deste um elemento do método em minhas próprias investigações, praticando a retomada de situações clínicas que dão lugar a várias versões, a relatos retrabalhados para efeitos de après-coup, por percepções e associações que revelam novas sensibilidades à escuta, suscitam recordações e criam surpresas. Outra originalidade: o trabalho a várias vozes sobre uma sessão comentada a partir de perspectivas diferentes. Esse trabalho comparativo, embora apresente algumas dificuldades na prática que começa a ser feita no trabalho sobre as curas individuais, é um elemento particularmente pertinente para avançar na construção epistemológico crítica. Parece que os psicanalistas formados na prática grupal admitem melhor seu princípio e sua experiência.
*** Lendo esta obra compreendemos como o método se define pelo objetivo que persegue o analista, e como esse objetivo encontra sua significação na própria concepção que o analista tem do espaço psíquico, de seus processos e de suas formações. M. Spivacow não deixa de assinalar que" conduzir um tratamento de casal requer do analista não só uma teoria de sua produ-
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ção e funcionamento, mas também certa habilidade em seu manejo clínico, este último da ordem da teckné”. É importante, pois, manter o princípio de que a transferência (em suas modalidades e seus conteúdos transferidos), os movimentos regressivos, a associação livre e a interpretação se desdobram e se manifestam de um modo diferente na cura individual -paradigma de referência -, e no dispositivo de casal. O mesmo postulado pertence ao dispositivo de trabalho com a família e o dispositivo de grupo. Mas talvez deveríamos fazer aqui uma diferença - é o que proponho - , entre os dispositivos que integram sujeitos já ligados entre sí por vínculos intersubjetivos "reais", como os casais e as famílias, e os dispositivos baseados em um artefato mais radical, como os dispositivos de grupo. A suspensão metodológica e a abstinência de qualquer outra relação que a exigida pelo trabalho psicanalítico é uma regra que se torna inaplicável nos dispositivos de casal e de família. Neste ponto, esta característica do dispositivo de grupo se assemelha mais que outros, neste ponto, ao dispositivo de cura individual. Evidentemente, um casal não está formado como um grupo reunido artificialmente para um trabalho psicanalítico. Um casal se constitui em uma relação amorosa, os parceiros estão unidos por investiduras à predominância erótica, mas também narcisistas e destrutivas; realiza-se em satisfações sexuais e, com a maior frequência, em um projeto de procriação. Baseia-se nas diferenças sexuais e de geracional e, sem dúvida, também em outras variáveis que registram o casal na realidade tempo real e do vínculo. Mas pode ser interessante perguntarmos se uma psicoterapia psicanalítica do casal com psicanalista não constitui uma estrutura que já não é completamente a de um casal, mas de um 2 + 1 que introduz no casal um terceiro termo, o psicanalista, heterogêneo a esse casal no estatuto e na função que ocupa no dispositivo. Spivacow destaca, com muita razão, que a transferência sobre o outro, tal como Freud a descreve, de maneira unidirecional, não leva em conta nem as transferências intracasais e sobre o analista, nem a presença das alianças inconscientes, nem a interdeterminação que a afetam. "A transferência intracasal tem uma determinação bilateral de forma tal que as investiduras transferênciais vão sendo modeladas pelas regulações que se estabelecem entre ambos polos e em ambos polos. A transferência intracasais, vale esclarecer, não é do vínculo já que em nossa terminologia não dizemos que um grupo ou vínculo "transferem", a transferência intracasal é de cada um dos 4. E. Granjon propôs, para o dispositivo da terapia psicanalítica da família, o conceito de neo-grupo a fim de caracterizar a transformação introduzida na família pela presença em seu seio de um ou dois psicoterapeutas.
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parceiros para o outro, mas está também determinada pelo outro e o intersubjetivo". Seguramente, nos diz o autor, as outras formas de transferência estão presentes e têm efeitos, mas se desdobram de maneira muito mais limitada. Pelas mesmas razões, as especificidades do dispositivo do casal caracterizam discursos diferentes aos da associação livre, tal como Freud os revelou na cura. Esses discursos são qualificados aqui como discursos conjuntos: a produção de um vínculo de casal, que abre o acesso aos funcionamentos intersubjetivos inconscientes dos parceiros, sobre os quais o clínico poderá intervir. Apesar de este objetivo da escuta ser comum a todos os dispositivos analíticos, a questão que se coloca é a de suas diferenças. Nas análises individuais, a associação livre estabelece a transferência e o trabalho psíquico na sessão, descobrindo numa e noutro dos funcionamentos inconscientes do analisando; da interpretação desses funcionamentos resultam as transformações psíquicas subjetivas. Num dispositivo de casal, a proposição é diferente: o trabalho psíquico é analisar os problemas da relação de casal entre os sujeitos que a constituem; eu agrego: e na presença do analista. O discurso conjunto se funda nesse trabalho da intersubjetividade e na interdiscursividade que o manifesta: é através desse trabalho que se estabelecem as transferências intracasais. Outra diferença capital assinalada por M. Spivacow é a que corresponde à presença no dispositivo de casal de outros sujeitos além do analista. Eu tinha levantado esta diferença e esta especificidade desde as minhas primeiras investigações sobre os processos associativos nos grupos, no início da década de 1980. Mantenho este ponto de vista segundo o qual, não a dificuldade e a aposta, mas apenas uma característica do processo que desenvolve em situação psicanalítica de grupo, encontra-se no fato de que os outros mais de um outro - "respondem", enquanto que esse "outro" que é o psicanalista não responde, ou não da mesma maneira. Hoje insisto mais em todas as implicações do trabalho da intersubjetividade e na especificidade do processo associativo. Por isso estou de acordo com M. Spivacow em pensar que "no discurso conjunto o que é produzido por um, dá sentido ao que é produzido pelo outro, de tal modo que deve ser entendido como um produto de dois em todos os sentidos”. Mas é também neste ponto que me afasto de sua posição ao considerar que, embora o processo associativo não funcione da mesma maneira nos dispositivos plurisubjetivos e na cura, neles nos encontramos com um verdadeiro trabalho associativo. Penso que esse processo segue sendo regido pelos processos primários da associação, e que as induções que supõem as associações interferentes dos outros sujeitos estão sempre sub-
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metidas ao regime da percepção dos enunciados por parte do inconsciente. A metáfora freudiana do interruptor elétrico é também aqui pertinente: cada enunciado do discurso associativo conjunto, ou bem facilita as vias do retorno do reprimido, ou bem reforça a repressão e a resistência. De todo modo, qualquer que seja a formulação da regra que encoraja a que se fale do que vem à mente ou do que "se queira", sempre nos encontramos com o paradoxo que consiste no que um psicanalista se propõe a dizer, a sujeitos que vão falhar no cumprimento desse processo, sob o efeito conjunto da transferência e de suas resistências. Com a consideração da transferência e do processo associativo, a interpretação é o terceiro pilar sobre o qual repousa o trabalho psicanalítico. Sobre a interpretação, ou melhor, o que M. Spivacow prefere chamar as intervenções vinculares, para diferenciá-las da interpretação freudiana, M. Spivacow nos diz que "não se dirigem a um sujeito ou a um aparelho psíquico individual, mas aos dois sujeitos e tentam esclarecer [...] as transferências intracasais e os funcionamentos responsáveis pelo sofrimento, considerando-os como construídos por ambos ". Se focam principalmente na análise de discordâncias e dos mal-entendidos, na "esterilização da palavra". Dito de outro modo, a noção de intervenções vinculares indica que se focam nos processos e nas formações que resultam do vínculo intersubjetivo: a interdeterminação, as alianças inconscientes, as transferências intracasais, o discurso conjunto. No entanto, de minha parte, entendo que estas intervenções, além da singularidade de seu objeto, cumprem as mesmas funções interpretativas que qualquer outra função interpretativa no trabalho psicanalítico. Trata-se sempre de apoiar o processo de transformação que Freud tinha formulado mediante o célebre aforismo: "Wo Es war, soll Ich werden", o que, em todas as situações de trabalho psicanalítico no dispositivo plurissubjetivo, completase com este outro enunciado: "Ali onde eram as alianças inconscientes, que o Eu as desate ".
*** Gostaria de destacar ainda outras contribuições que esta obra aborda para a renovação do pensamento psicanalítico contemporâneo. Prestei atenção à sensibilidade de muitos psicanalistas argentinos aos efeitos do contexto social, cultural, político sobre a organização e o funcionamento da vida psíquica mesmo em seus fundamentos no inconsciente. É do que se trata quando M. Spivacow assinala, com sutileza, nos capítulos 8 e 11, as transformações que interviram na relação de casal, sob o efeito da queda ou do escurecimento das referências que há muito tempo organizavam a cultura e a socie-
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dade, e que prescreviam sua vida sexual e psíquica. A questão não tem apenas um interesse clínico, representa também um problema epistemológico que retém a atenção de nosso autor, neste ponto: como pensar com a psicanálise as categorias do natural e do cultural, quando se trata de amor? Outra contribuição importante é a introdução de uma abordagem metodológica comparada entre o trabalho psicanalítico em situações de cura individual e o dispositivo de trabalho psicanalítico com um psicanalista e um casal. A pergunta percorre todo o livro, é introduzida com rigor, sendo assinalada em várias oportunidades, sugerindo prestar uma atenção mais precisa às características diferenciais no próprio interior dos dispositivos que fazem trabalhar as configurações vinculares, entre o dispositivo de grupo e os dispositivos de casal e da família. Compreenderíamos melhor a especificidade da associação livre, das transferências e da interpretação.
*** Chego nas considerações finais. O livro de M. Spivacow mostra que o emprego do método e da problemática freudiana em outro campo que o de cura individual faz evoluir a prática e a teoria da psicanálise, que abre assim um campo absolutamente novo ao tratamento psicanalítico. Estas extensões foram determinadas pelas necessidades da clínica, tanto como pelo desejo de saber: não são tranquilas aplicações. Antes de tudo, porque exigem definir as condições metodológicas de uma prática que deve responder às exigências do objeto fundamental da psicanálise, e obrigam, ao mesmo tempo, a reposicionar este objeto, já modificado pela "aplicação" da psicanálise às crianças, aos pacientes que estão sofrendo de psicoses ou transtornos que designamos com a noção de estados limites. Estes momentos de reinvenção da psicanálise são momentos críticos, aos quais se agregam, aos temores justificados de desvios epistemológicos e éticos, incertezas em relação aos riscos envolvidos em empreendimentos às vezes liberados da arbitrariedade da "Wilde Analyse⁵". O trabalho psicanalítico com casais, como o realizado com famílias e com os pacientes reunidos em grupo, nunca deixou de levantar estas questões, inclusive deve-se notar que, mesmo que em raras ocasiões, a desaprovação, a rejeição e o silêncio ocuparam o lugar de debates certamente muito carregadas de apostas ideológicas iluminadas, saturadas de narcisismo. Sem dúvida, um prefácio não é o lugar para mencionar divergências com um autor cujo trabalho apreciamos. No entanto, as referências que M. 5. Análise Selvagem.
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Spivacow faz a minhas próprias investigações, (e cuja relevância só posso subscrever!), autorizam-me a indicar algumas diferenças em nossas abordagens. O ponto essencial é o seguinte: tratando-se do grupo, penso como Freud que existe uma "psique" específica e como o Bion que existe uma mentalidade e uma cultura de grupo. Penso que a psicanálise de que M. Bernard denominou das configurações vinculares implica três espaços psíquicos, o do sujeito, o dos vínculos entre sujeitos e o do conjunto que estes formam. Os dispositivos que utilizamos fazem trabalhar as correlações entre esses três espaços, sua continuidade e sua descontinuidade. Por isso a metáfora da faixa de Moebius me parece satisfatória para expressar a continuidade, mas inadequada para dar conta da descontinuidade e da heterogeneidade destes três espaços. Estou muito de acordo em considerar que o psiquismo, por estar aberto a outros psiquismos, não resulta de facto grupal ou "coletivo" e aceito a ideia de que, considerado desde o ponto de vista do sujeito singular, é "no mais alto grau individual” em sua estrutura pulsional e semântica inconsciente e em seus efeitos, como o sono, o sintoma, o lapso e a fantasia. Mas não é do todo, estritamente "individual", se consideramos que os espaços do vínculo e do conjunto, nos processos e as formações específicas que fabricam, conforme o espaço próprio do sujeito, até em seus fundamentos no inconsciente. O que confere a realidade psíquica, sua dimensão especificamente grupal, familiar ou própria de um casal, supera a noção de identidade de grupo, do casal ou da família: esta identidade se forma nesses espaços comuns e compartilhados, mas não se reduz a eles. In fine, é nas concepções do inconsciente, de suas tópicas, de suas economias e de suas dinâmicas onde existe matéria de debate, e agradeço a Miguel Spivacow por havê-lo nutrido e sustentado. René Kaës, 29 de julho de 2010.
6. Tradução do inglês para o espanhol de Mirta Segoviano.
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Nesta obra continuam algumas investigações que iniciei em meu livro "Clínica psicanalítica com casais. Entre a teoria e a intervenção”. O interesse central em ambos textos é entender os mecanismos psíquicos envolvidos na vida amorosa e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar as ferramentas teóricoclínicas com que abordamos os sofrimentos pelos quais nos consultam. O livro refere-se a casais em que predominam, de alguma maneira, as pulsões eróticas sobre as destrutivas; quando predominam estas últimas, e o casal está basicamente unido pelo ódio. A abordagem clínica levanta problemas que neste texto apenas são mencionados. O leitor familiarizado com meus escritos anteriores, observará que tenho deixado de utilizar alguns conceitos, dado que hoje me parecem dispensáveis, e ao mesmo tempo verificará a influência neste volume das contribuições teóricas de René Kaës. Embora sua obra não se refira fundamentalmente ao trabalho clínico com casais, alguns de seus conceitos têm me parecido muito pertinentes para entender muitas das questões intersubjetivas que ocorrem nesse grupo tão particular que é o casal. Assim, por exemplo, deixei de utilizar o conceito de conjuntos inconscientes e adotei o conceito kaësiano de alianças inconscientes, por considerá-lo mais adequado. Enquanto os primeiros capítulos se concentram em questões de natureza teórica, os últimos se referem às problemáticas clínicas. Tenho tentado, como sempre, relatar no escrito o que acontece nas sessões de casal, mas também - como sempre ocorre - transmitir de maneira literal o que acontece em uma sessão, é uma tarefa impossível, definitivamente impossível. O leitor, então, deve ler as vinhetas clínicas como ficções que aspiram descrever uma cena incompreensível. Este é o limite e a enorme utilidade de transcrever/reconstruir/inventar sequências clínicas. O capítulo XII reconstrói uma sessão com comentários de terapeutas de diferentes orientações: Glória Barros de Mendilaharzu, Maria Rosa Glas-
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serman e Stella Maris Rivadero. Estou muito agradecido a elas por terem aceito meu convite para fazer o comentário e também pelo compromisso e a seriedade com que encararam a tarefa. A leitura deste capítulo confirma, acredito, a dificuldade anteriormente assinalada de transmitir o que em uma sessão de casal acontece vivencialmente. Estamos aqui diante de um enorme desafio: devemos poder discutir sobre as diferentes abordagens clínicas possíveis, mas torna-se difícil fazê-lo quando não é fácil estabelecer com precisão o que aconteceu em uma sessão. A questão é difícil, mas estamos no caminho e creio que a leitura dos três comentários mostra que é possível um intercâmbio produtivo, que não se fica preso em diálogo de surdos. Agradar-me-ia extremamente que este texto fosse compreensível para os analistas que não trabalham com casais, mas em cujos consultórios, certamente, os pacientes individuais levam seus conflitos amorosos. Ter uma ideia do que acontece nos consultórios de casal pode ajudar aos analistas, ualquer que seja a clínica na qual trabalham, para incluir em sua prática, uma perspectiva intersubjetiva. As terapias vinculares, acredito, demonstram que a clínica psicanalítica deve considerar o outro real e exterior e não unicamente o outro como objeto interno. Como diz Kaës, na psicanálise, trata-se também de considerar o outro no objeto e algo parecido diz Green quando assinala que se trata de localizar ao outro do objeto. Está aqui em jogo uma questão prática fundamental e que faz o futuro da psicanálise. A vida psíquica não se esclarece unicamente com objetos internos senão também com outros exteriores que devem encontrar um lugar claro na teoria e nas práticas psicanalíticas. Encantar-me-ia pensar que este livro tenha contribuído com algo para a formulação de uma nova teoria psicanalítica na qual os processos de formação e funcionamento do inconsciente se expliquem com um modelo de sistema aberto, em que o outro exterior tenha o lugar de protagonista que, a meu juízo, a ele corresponde. Enfim, a ajuda que um analista pode fornecer a um casal é limitado e espero que a limitação se reflita nestas páginas. Há pessoas que levam para seu vínculo amoroso funcionamentos neuróticos que produzem grandes sofrimentos e torná-los conscientes, elaborá-los e construir alternativas, pode ser de grande ajuda. Mas o terapeuta de casais deve sempre lembrar que não está dentro de nossas possibilidades ressuscitar os mortos, nem eliminar a destrutividade do ser humano, nem tão pouco, como diria o Quixote, "corrigir erros".
Miguel Alejo Spivacow
Para terminar, então, espero que este livro, seja uma contribuição para aqueles que trabalham psicanaliticamente com casais, mas que também recordem o quanto Freud assinalou que o amor constitui um trabalho psíquico árduo e o quanto descrente das visões adoçadas das relações humanas ele encerra. Miguel Alejo Spivacow Buenos Aires, setembro 2010 miguelspiva@gmail.com
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I Amor e o casal em psicanálise
Os sofrimentos originados nas relações amorosas ocupam um lugar importante na vida das pessoas e constituem uma temática habitual na prática psicanalítica. Mas ainda que trata-se de problemáticas muito frequentes, existem, na psicanálise, muitas diferentes concepções do amor e do casal e, por consequência, também, muitos diferentes modos de abordar os conflitos amorosos na clínica. Há controvérsias referentes a possível ou impossível harmonia entre os sexos, aos traços próprios do masculino e do feminino, e mesmo a natureza do que se chama amor. Outra discussão de importância se levanta em relação aos protagonistas que participam do cenário amoroso. Trata-se de dois atores principais ou há também outros participantes fundamentais a considerar? Como intervém a cultura e a biologia no amor? Deve se considerar a relação que os sujeitos constroem como outro personagem principal? Esta última pergunta se refere ao protagonismo do vínculo em si mesmo, se é que o aceitam como uma estrutura que agrega um plus aos funcionamentos individuais de cada parte. As controvérsias nestes terrenos são muitas, e longe de apaziguaremse, crescem dia a dia, já que mudanças vertiginosas em matéria de casal e sexualidade estão sobressaindo em nossa civilização, fazendo que apareçam novas discussões e que a clínica da relação de casal e dos vínculos amorosos se torne mais complexas.
1. Amor e amor de casal A palavra amor, tanto em psicanálise como na vida cotidiana, cobre significações muito diversas. Há amores e amores: o amor de casal não é o mesmo que o amor de filhos aos pais, ou de pais para filhos ou que o amor a Deus ou à amizade. Mas ainda é uma questão a discutir em que sentido a relação de casal humano é “amorosa”, já que a possessividade, o ciúme e o egoísmo são nela um componente fundamental, traços todos opostos aos que se pode atribuir ao amor. Há, é bom recordar, amores que matam.
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Capítulo I
Quando Jesus disse: “Amaos los unos a los otros”⁷, é evidente que não se referia ao amor de casal. O mesmo ocorre quando São Paulo, na Epistola aos Coríntios (I,13) diz: “El amor es magnánimo, es servicial; el amor no tiene celos, no hace alarde, no se envanece, no procede con bajeza, no es interesado, no se irrita, no tiene en cuenta el mal recibido, no se alegra de la injusticia sino que se regocija con la verdad.”⁸. Sem dúvida, Paulo não se refere ao amor de casal e, de fato, algumas versões traduzem caridade em vez de amor. Tanto Jesus como Paulo designam com a palavra amor a uma disposição ao bem e ao compromisso com o próximo, práticas semelhantes às que discute Antônio Machado quando opina: O bom é o que guarda quando venta no caminho para o sedento a água para o borracho o vinho Disponibilidade, generosidade, bondade, caridade... O universo de questões que abrange a palavra amor é muito grande. Agora, se nos centramos no amor de casal, deve observar-se que, em muitos aspectos, este não é generoso nem desprendido, mas, pelo contrário, é possessivo. Não se caracteriza tampouco por adaptar-se às necessidades do outro e, enquanto o amor lhe dá, poder-se-ia dizer como Lacan que “se dá o que não se tem”. Amor de casal e amor, então, não são sinônimos e, mais ainda, em muitos aspectos, o amor de casal entra em contradição com algumas definições do amor como as de Antonio Machado e São Paulo. O termo amor inclui realidades muito diferentes: o sagrado e o profano; a ternura e o sensual. Freud teve uma posição a respeito da polissemia do termo: estabeleceu uma continuidade entre o carnal e o espiritual, o sagrado e o profano e incluiu este espectro de sucessões numa única categoria. Disse em Psicología de las masas (pag.86 – 87) “… opinamos que en la palabra 'amor', con sus múltiples acepciones, el lenguaje ha creado una síntesis enteramente justificada, y no podemos hacer nada mejor que tomarla por base 7. “Amai-vos uns aos outros” 8. “O amor é magnânimo, é serviçal; o amor não tem ciúmes, não faz alarde, não se envaidece , não procede com baixeza, não é interessado, não se irrita, não leva em conta o mal recebido, não se alegra da injustiça se não que se regozija com a Verdade”.
Amor e o casal em psicanálise
también de nuestras elucidaciones y exposiciones científicas”
2. O amor na obra de Freud O amor constitui um eixo de reflexão ao longo de toda a obra de Freud. Em Pulsiones y destinos de la pulsión ⁰ propõe o amor como uma relação do ego com seus objetos de prazer. Em sua perspectiva, o que ama é o ego, as pulsões não amam e o primeiro amor é de raiz narcisista, de onde passa aos objetos que são incorporados ao ego ampliado. Dado que Pulsiones y destinos de la pulsión é um escrito anterior à 2ª tópica, ao colocar Freud o amor do lado do ego, isto implica que toma como referência central o consciente – pré-consciente, não o inconsciente. No inconsciente, com efeito, o amor não vai mais além de um formato onipotente e narcisista. A meu juízo, então, refletiria melhor o pensamento freudiano posterior a Pulsiones y destinos de la pulsión que diz que o amor é uma relação não do ego senão do sujeito ou do aparelho psíquico. O amor compromete ao sujeito em sua totalidade, e por fim, cabe insistir, é um fenômeno cujas características são parcialmente estabelecidas na órbita do inconsciente, porém fundamentalmente no terreno da consciência e no princípio da realidade. Se bem o amor é um fenômeno complexo, o embasamento primeiro e primitivo do amor, o núcleo básico do sentimento amoroso, procede do sexual e se origina em uma investidura proveniente das pulsões sexuais, a raiz da satisfação. Como sentimento duradouro, Freud sugere que o amor nasce de um cálculo de conveniência. Em Psicología de las masas (pag.105), sugere que a necessidade de contar com o desejo satisfeito no momento em que volta a surgir, deve ter sido o motivo mais imediato para realizar, sobre o objeto sexual, um investimento permanente e amá-lo também nos intervalos livres de desejo. O amor, então, é um funcionamento complexo do sujeito que envolve protagonisticamente o ego, a consciência e o princípio da realidade e, em cujo núcleo básico, palpita a sexualidade e o inconsciente. Embora o amor seja narcisista em suas origens – e, portanto, aspire à
9. Psicologia das massas (pag.86-87) “opinamos que na palavra 'amor', com suas múltiplas significações, a linguagem tem criado uma síntese inteiramente justificada, e não podemos fazer nada melhor que tomá-la por base também de nossas elucidações e exposições científicas”. 10. Pulsões e destinos da pulsão. 11. Pulsões e destinos da pulsão. 12. Pulsões e destinos da pulsão. 13. Psicologia das massas e análise do eu.
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Capítulo I
dominação do objeto -, na incandescência do enamoramento, o namorado é humilde com seu objeto, ao qual se rende. Esta dinâmica - dominação/rendição – explica que, em toda relação baseada no enamoramento, desenrola-se uma luta pelo poder entre o eu e o parceiro de modo tal que a prevalência de um ameaça a existência do outro, e ambos estão em perigo de desaparecer. Quando se fala de paixão aludindo a uma exaltação perigosa do amor, geralmente o que ocorre é que, nesta ondulação, um ou ambos parceiros pareciam tragados pelo outro. Piera Aulagnier (1979) trabalhou estas questões e havia retomado, em uma linguagem contemporânea, um tema já presente na obra de Freud, como é a inevitável luta pelo poder no casal amoroso. Estas lutas se referem a todas as ações que envolvem a ambos – desde como divertirem-se até com que valores educar os filhos – e também a respeito das semantizações (como são as coisas?) que derivam fundamentalmente do narcisístico que na relação atua. Com efeito, em um vínculo amoroso, deve considerar-se um equilíbrio Eu-outro assumindo –com as modificações que correspondam – a perspectiva que Freud sugerir na dinâmica do narcisismo. O eu, em alguns casais, tem um modo de submissão e diluição no parceiro. Em outras relações, o eu se coloca em posições de controle extremo do parceiro como Outro absoluto e tirânico. O analista deveria propiciar algum ponto intermediário neste espectro, dado que, de outra maneira, são ameaçadas as possibilidade de desenvolvimento de algum dos dois sujeitos, e o gozo que se desenvolve resulta mortífero para um deles, senão para ambos. Como logo se verá, este aspecto da relação amorosa resulta muitas vezes mais difícil de avaliar nos tratamentos individuais, e está mais à vista no tratamento de casal. A base pulsional do amor é sexual e, como se sabe, a pulsão sexual abrange múltiplos componentes ou correntes da vida psíquica. Estas – segundo afirma Freud – podem unificar-se ou não no desenvolvimento libidinal e no investimento em outro, o que sugere a questão da unificação ou independência entre componentes psíquicos heterogêneos, problemática tradicionalmente aludida com o conceito de dissociação. A mais assinalada das dissociações no vínculo amoroso é entre a corrente de ternura e a corrente sensual, em que uma se independiza da outra. Freud sugeria como um ganho evolutivo que as correntes de sensualidade e de ternura confluíssem sobre um mesmo objeto: a unificação era para ele uma meta, o que pode vincular-se aos ideais românticos de sua época, pelo qual um único outro capta a totalidade das investiduras. O amor romântico, ao propor a unificação, é monogâmico, monogamia que Jones e Lacan (1960, pag 36) tem assinalado como uma exigência de Freud, com todo o que semanticamente arrasta o termo “exigência” de mandato superegoico e rígido. Com efeito,
Amor e o casal em psicanálise
qualificar a monogamia de “exigência”, tem a sugerir que Jones e Lacan veem nesta modalidade de vínculo amoroso, um desenho difícil de sustentar. As dissociações que caracterizam o polimorfismo sexual aparecem na clínica com frequência, enquanto que as conveniências da integração, em um único objeto, pareceriam evidentes, mas difíceis de alcançar e frágeis enquanto a possibilidade de estender-se no tempo. Desde o momento em que todos os objetos tornam-se substitutos de um original perdido na experiência de satisfação, nenhum é do todo satisfatório, já que não corresponde ao originalmente desejado e, neste sentido, só há reencontros falidos. Os problemas que originam as dissociações que Freud refere em “La degradación de la vida amorosa”, sobrepõem-se e agregam-se a outros funcionamentos que não dão uma confluência das investiduras para um único objeto... talvez seja Lacan o autor pós-freudiano que mais recupera a vertente cética de Freud a respeito das possibilidades de harmonia e integração no terreno da vida amorosa e sexual. É uma ideia popular que o amor, quando é verdadeiro, é eterno e não é afetado pela passagem do tempo. Porém tudo muda ao longo dos anos e muito do que é atribuído ao tempo como agente de desgaste parece ser válido para o amor. Os casais amorosos não se caracterizam por uma vitalidade longeva e Freud se pergunta por quê, frente à passagem do tempo, o adicto volta incansavelmente para a mesma droga, enquanto os amantes se sentem atraídos para outro objeto. Há algo na pulsão sexual - diz Freud (1912, p 182) - desfavorável para alcançar a satisfação plena. Isto explica o habitual da já mencionada série interminável de objetos substitutivos. Tão certo é que a passagem do tempo pode desvitalizar e burocratizar a vida de casal, quando a relação se preenche de experiências vitais, como pode ir se constituindo, para muitas pessoas, precisamente pelo o que o tempo contribui, num capital valorizado por sua solidez e antiguidade. A questão depende de cada caso individual; há pessoas que vivem a habitualidade como uma vantagem, enquanto outros a vivem como uma rotinização desvantajosa. Assim, a partir da perspectiva da operação do desejo, como pensava Freud, a qualidade de uma experiência como "prescrita" tende a promover o declínio das moções do desejo, ao mesmo tempo que a qualidade de "proibido" constitui um ingrediente que a valoriza. Neste sentido, o desejo tende a debilitar-se numa estrutura como o casal duradoura, no qual estão prescritas as relações sexuais. É tão válido dizer que algo da vida pulsional atenta contra o "matrimônio feliz no terreno do desejo" (Freud 1912, p. 182), como afirmar que, pelo contrário, o amor pode fortalecer-se com o passar do tempo. Na lógica freudiana, o amor e o desejo não percorrem caminhos paralelos.
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Capítulo I
A complexidade da experiência amorosa, muitas vezes, não deixa claro a que se referem as palavras utilizadas no vocabulário psicanalítico: amor, desejo, excitação, enamoramento, paixão são todos termos que têm significados diferentes, mas entre eles nem sempre é clara a diferença. A obscuridade conceitual não deve nos surpreender, já que, como foi dito, a palavra amor é polissêmica e abrange experiências diferentes. Telegraficamente, pode-se dizer que os propósitos da pulsão sexual são diferentes das propostas do eu para a relação com o outro e que esta distinção entre o eu e a pulsão ilumina a diferença entre o que, em uma linguagem atual e cotidiana, chama-se excitação - o que Freud chama de sensualidade - e amor. O amor está do lado do eu - sujeito; a sensualidade do lado da pulsão. Trata-se, em ambos os casos, de investimentos libidinais, mas, quando no investimento predomina o sensual despojado de outros componentes, trata-se de excitação, o que Freud chama de “amor sensual, común” (Freud 1921, p. 105). O amor - tal como em nosso idioma se usa a palavra atualmente - implica um fantasma no qual se desenrola um roteiro de encontro sujeito-outro que vai mais além do prazer momentâneo do coito. A palavra desejo é geralmente usada de diferentes maneiras, em ocasiões restringidamente como excitação ou desejo sensual, em outras como desejo sexual em seu mais amplo espectro, mas - à diferença do amor - refere-se a uma investidura que pode prescindir da participação do préconsciente ("Te desejo, embora não o saiba"). O desejo é, basicamente, uma investidura inconsciente, em cujo coração pulsam as experiências de satisfação fundantes do psiquismo; para Freud, pode tornar-se consciente ou não, porém, no fundamental, é inconsciente, enquanto que o amor requer a participação das instâncias conscientes da personalidade. Quando as pessoas falam de paixão geralmente referem-se a um desejo pontual em que um outro captura o sujeito. Se a paixão - elemento parcial transborda e descentraliza o sujeito que o sofre, constitui-se um enamoramento. A massividade e o descentramento são os elementos que diferenciam a paixão do enamoramento, sendo este último, tal como o descreve Freud, basicamente um reencontro (Freud 1912, p. 182). A insistência no fracasso do reencontro leva a pensar que Freud não idealizava o amor, nem tão pouco o casal, ao contrário de muitos outros autores.
3. Lacan: Não há proporção sexual. A queda do Outro. As ideias que Freud desenvolve em seu artigo sobre a degradação da 14. "amor sensual, comum".
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vida amorosa (1912) marcam fortemente o pensamento de Lacan. "Não há proporção sexual" - traduzido frequentemente para o espanhol como "não há relação sexual" - é talvez uma das frases mais representativas do pensamento lacaniano e quer dizer, junto a outras coisas, que, entre dois seres humanos, quando se trata de sexo, o encontro não poderá constituir um ajuste proporcional e harmônico. Não há "meias laranjas" e tudo o que é proposto nesta direção será sempre matéria de suspeita para um analista. Assim como o que Freud chama de degradação da vida amorosa é tão antigo como o ser humano, o mesmo vale para a falta de proporção sexual, com a adição de que a época atual agrega a estes antigos problemas a perda das referências mais sólidas que ordenavam a cultura e a sociedade em épocas anteriores. Até certa altura do século XX, caso se queira colocar uma data um tanto arbitrária, havia referências claras, na cultura ocidental, a respeito de como deveria ser a vida sexual e a relação de casal. Essas referências já não têm a univocidade que tinham. Desde a cultura e suas instituições, valer tanto se homossexual como heterossexual, ter filhos biológico ou com material genético de outras pessoas, a família conjugal ocupa uma pequena porcentagem entre as formas de parentalidade. Nos terrenos do casal e do amor quase poderia ser dito que o "Outro não existe" ou, pelo menos, que têm perdido força e univocidade as leis que antes ordenavam o amor e o casal. A queda do Outro leva a novas questões na clínica, dado que a busca de amor e de uma relação amorosa satisfatória seguem sendo problemas que afligem aos pacientes. Como pensar o encontro amoroso em uma época como a nossa, que carece das normativas que regulavam anteriormente o encontro entre os sexos? É possível "curar-se" dos sofrimentos do amor? É pensável um encontro no amor que não está emoldurado pelos funcionamentos da neurose? Para Lacan, há encontros, mas desarmônicos ... os quais podem ser lidos com desesperança e dramatismo ou com a mesma atitude com que se aceita que a destrutividade é inerente ao ser humano e haverá que ver o que se faz com este elemento sempre presente. Mas ainda pode contemplar-se este desencontro insuperável com os mesmos olhos de uma paciente que costumava ler Lacan: "É tranquilizador saber que a culpa não é minha, não sou eu ..." Contudo, a tranquilidade que se obtém pela via do raciocínio, como o desta paciente, não é o que mais habitualmente se apresenta na clínica: a não inscrição da complementaridade sexual, o que não tem proporção sexual leva a que uma das formas de compensação, que se localiza no local da proporção sexual que não existe, seja o amor. Pelo mesmo fato de que a complementaridade sexual que não tem inscrição, é que sempre tenta se inscrever e, ao mesmo tempo, "não cessa de não se inscrever".
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4. O natural, o cultural no amor Uma discussão sempre aberta é algo natural, intrínseco à espécie humana e, portanto, esperado no amor entre um homem e uma mulher. Os investigadores que sustentam a existência de comportamentos naturais, de determinação biológica, aspiram a encontrar uma bússola na floresta espessa, onde não há proporção sexual e a pulsão atenta contra os matrimônios felizes, esse emaranhado sem Outro e sem referência ... A busca por algo natural que se refere ao relacionamento de casais tem procurado sustentação na anatomia, na biologia e, mais recentemente, nas neurociências e na genética. Nesta orientação, tem-se afirmado que o natural é a heterossexualidade, que a mulher deseja ter filhos e formar uma família. Esta posição tem antecedentes em alguns desenvolvimentos de Freud, por exemplo, nos textos em que nos afirma que, na fase genital adulta, a pulsão sexual está subordinada à função biológica de reprodução. Nos tipos de funcionamentos de que nós analistas nos ocupamos, não é fácil estabelecer algo natural e próprio do amor entre homens e mulheres se é que existe -; da mesma maneira que não são fáceis de estabelecer - se é que existem - as condutas naturais próprias do feminino e do masculino. E o natural que existe, chama-se biologia ou neurociências, está subordinado ao social. Nos conta Stoller: “…dos varones púberes son entusiastas adeptos de la fellatio. Cada uno, durante la realización del acto, está eróticamente excitado en un nivel conciente. La sensación de un pene erecto en la boca es algo sensualmente placentero para estos jóvenes… […] Pero uno de estos chicos está en camino de convertirse en un peluquero homosexual y afeminado de Los Angeles, mientras que el otro será un guerrero cazador, masculino y heterosexual en Nueva Guinea” (1997, pag 22). Sem dúvida, a biologia, a genética e a anatomia influenciam no psíquico, mas não se constituem nem no campo de atuação do analista, nem onde o analista opera diretamente, nem são - fundamentalmente - uma bússola na neblina que oriente a direção do analista. Constituem, isso sim, uma realidade cuja inscrição no psíquico tem mediações de diversas índoles que o reestruturam na singularidade de cada caso. De modo que, para um psicanalista, o natural não pode ser uma referência de prioridade em nenhum sentido. 15. " ... dois varões púberes são entusiastas adeptos da felação. Cada um, durante a realização do ato, está eroticamente excitado em um nível consciente. A sensação de um pênis eret o na boca é algo sensualmente agradável para estes jovens ... [...] Mas um desses meninos está a caminho de se tornar um cabeleireiro homossexual e afeminado de Los Angeles, enquanto que o outro será um caça dor guerreiro, masculino e heterossexuais em Nova Guiné" (1997,p22).
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Mas ainda, se voltamos à citação de Stoller, é claro que o "natural" não leva a sexualidade a orientações unívocas. O cultural, sem dúvida, ocupa um lugar central na análise de qualquer fato da vida de casal e, é útil recordar que forma parte da estratégia de todas as culturas proclamar suas propostas como «naturais", tratando de condenar a homossexualidade na cultura ocidental ou da mutilação do clitóris em tribos africanas. Mas, o que uma cultura prescreve não pode ser adotado pela teoria psicanalítica, nem ser uma bússola para o analista. As propostas de uma cultura não são "científicas", nem cumprem com nenhum dos requisitos exigíveis a um pensamento que aspira ser psicanalítico; são simplesmente "propostas de uma cultura". Quando se inclui, na abordagem clínica, as normas e propostas da cultura, o que esta propõe a um sujeito é internalizado por este de várias maneiras e, portanto, pode ou não construir um elemento constituinte e interior a sua subjetividade; mas a tarefa analítica é analisar os mandatos da cultura de uma maneira comparável àquela com que se analisam os mandatos do superego; posteriormente o sujeito verá se os faz próprios ou os descarta. E vem muito ao caso recordar que todo tratamento psicanalítico alcançado implica, para o analisando, assumir pontos de ruptura com a cultura a que pertence. As questões culturais constituem um terreno que gera confusões na prática clínica, porque o que cada cultura sanciona ou permite, condiciona não só os parceiros, mas também os analistas. Sabemos que, como parte do coletivo cultural, os analistas têm avaliado as mesmas coisas de maneira radicalmente oposta segundo épocas e sociedades (suficiente como exemplo a homossexualidade). Concluí-se, então, que, na prática psicanalítica, os pontos de referência de uma cultura não podem ser os do psicanalista e vale repetir que o espírito freudiano nunca foi promover uma adaptação às normas culturais ou sociais.
5. O intersubjetivo no casal. O casal é o resultado de um encontro de dois sujeitos ou devemos considerar, na cena amorosa, outros protagonistas menos evidentes, mas com uma grande influência? A consideração da relação amorosa como vínculo é uma perspectiva que tem aparecido na psicanálise, na segunda metade do século XX, e que reconhece a sua pedra fundacional nos trabalhos de Dicks, com seu livro “Tensiones matrimoniales” O fundamental neste ponto de vista é que 16. "Tensões matrimoniais"(1967).
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recíprocos conscientes e não conscientes entre os parceiros, de modo tal que a relação, desde o ponto de vista psíquico, constitui um plus não totalmente explicável pelas individualidades em jogo. O casal não é apenas a soma de dois sujeitos, mas o que importa fundamentalmente é o que reciprocamente ativam ou desativam um no outro e / ou em conjunto produzem o "entre" os dois. Conceder ao vínculo o protagonismo que lhe corresponde na vida do casal, não deve conduzir a antropomorfizar e imaginar um terceiro homúnculo que se soma a ambos parceiros em algum lugar do psiquismo. Não há uma "mente" do casal, ainda que haja um terceiro espaço de determinação psíquica que venha a somar-se aos dois psiquismos individuais. Marcos Bernard tem opinado neste campo: “No hay nada que puede pensarse como un psiquismo supraindividual, una mentalidad grupal o una fantasía de conjunto”. (2006, pag 123). “No existe un psicoanálisis “del” grupo, “de la” pareja, “de la” institución. Lo patognomónico del psicoanálisis de las configuraciones vinculares no es el análisis del conjunto como tal, si no de sus miembros en tanto pertenecientes a él” (comillas de Bernard, 2006, pag 144). Ao longo do livro voltará sobre esta questão, especialmente mais adiante neste capítulo, ao falar da "identidade" do casal. Os funcionamentos psíquicos que ocorrem em um vínculo, vale a pena referir, dependem tanto das características dos indivíduos - o que não é uma novidade -, como das características do encontro e das interinfluências recíprocas, das interdeterminações ou bidirecionalidade que nele existam. Numa relação amorosa, quanto mais prolongada, as características que se adquirem no intercambio derivam de uma seleção bilateral em parte consciente e em parte não consciente, do que é possível e não perturbador para esse encontro singular. "Disto, não se fala", "disto, sim se fala", "isto sim se faz", "isto não se faz", "nos encontramos desta maneira", "não nos encontramos desta outra maneira", "a relação sexual é assim", "a relação sexual não inclui isto”. Estas questões se vão pautando na interação com a mesma força e estabilidade com que a repressão e os mecanismos de defesa vão pautando, em uma história pessoal, os modos de funcionamento intersubjetivos. No espaço vincular, um conceito que esclarece as trocas que se produzem conscientemente e as que conscientemente não têm lugar é o de alianças 17. "Não há nada que possa ser pensado como um psiquismo supra individual, uma mentalidade grupal ou uma fantasia de conjunto" (2006, p 123). "Não existe uma psicanálise "do" grupo, "do" casal, "da" instituição. O patognomônico da psicanálise das configurações vinculares não é a análise do conjunto com o tal, mas de seus membros enquanto pertencentes a ele" (“comillas” de Bernard, 2006, página 144).
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inconscientes (Kaës). De fato, os funcionamentos de cada parceiro ao se envolver com o outro para levar a cabo os objetivos conscientes que o casal aspira desenvolver, vão definindo como possíveis, permitidos e habituais alguns modos de interação, enquanto que outros ficam impossíveis, proibidos ou erráticos. Assim vão se estabelecendo na relação as posições subjetivas de cada parceiro, cada posição sustentando a outra, e se organiza bilateralmente o compartilhar de papéis e participações. As alianças inconscientes são investiduras entre os sujeitos que dão conta do nível de ajuste e estabilização no intercâmbio, e da relativa homeostase narcisista de cada polo, elemento fundamental no casal. Não se deve pensar nelas como convênios conscientemente estipulados porque não o são. Trata-se de articulações entre os sujeitos, facilitações e inibições inconscientes que configuram o mapa do permitido e o proibido, o facilitado e o impedido no vínculo. Dão conta do que inercialmente acontece na troca e constituem o correlato intersubjetivo da organização defensiva intrassubjetiva. As alianças inconscientes e os fenômenos de interinfluência recíproca - que se englobam com o termo interdeterminação (ver cap.II) -, não obstante operar ativamente no casal, podem não expressar-se com suficiente evidência no dispositivo individual. Ronald e Lucia realizam tratamentos individuais por vários anos com analistas de reconhecida competência. Ambos profissionais lhes sugerem realizar tratamento de casal, dada a imobilidade atual dos conflitos entre eles. Estes conflitos foram uma parte importante dos motivos de consulta e melhoraram no curso dos tratamentos individuais, mas logo a melhora se deteve, o que motivou a sugestão dos analistas individuais de realizar um tratamento de casal. Em uma conversa telefônica com o terapeuta de casal, a analista de Lucía diz que ela é "corajosa" e transmite a imagem de uma mulher que resolve seus conflitos com seu parceiro em escaladas de rivalidade fálica. O analista de Ronald diz que ele é um homem "difícil". Ronald diz de si mesmo que é um "fodido". Ambos analistas transmitem a impressão de não ter uma ideia suficientemente clara dos problemas atuais do casal, porque eles não podem obter dos pacientes uma informação confiável. Depois de alguns meses de uma análise de casal, com
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uma frequência de uma vez por semana e em paralelo aos tratamentos individuais, com uma frequência de duas vezes por semana, diminuem as escaladas de violência entre eles. Em uma sessão, surge a pergunta sobre o que aconteceu nestes meses para a contribuição do tratamento de casal fosse diferente do que contribuíram os tratamentos individuais - pelos quais se manifestam muito agradecidos. Ronald diz que foi importante poder falar algumas coisas: Lucia está mais permeável. Ela diz que Ronald tem mudado e que, em algumas divergências, não a persegue com insistência para impor suas opiniões (as de Ronald). Ambos atribuem importância ao fato de terem falado em tratamento: falar - dizem - tem efeitos mágicos, ou talvez abranda violências. O analista pensa que não se trata somente de "falar", mas do que falar entre eles num contexto terapêutico, o que permitiu uma análise das interinfluências operantes, e não acontecia nas análises individuais. Também enfatizam que tem diminuído um circuito de retroalimentação hostil: a insegurança de Lucia (que ela chama de "bondade") a faz primeiro colocar-se em posições de submissão e logo, reativamente, em atitudes de desafio e rivalidade, ao qual Ronald responde com escaladas espetaculares de matiz fálico. Ronald diz que é certo que muitas vezes é violento porque se "incha os ovos". Dizem que estes estereótipos têm diminuído na relação entre eles. Por que configurações vinculares como a anterior, que têm uma abordagem exitosa em outros tratamentos individuais, não podiam ser modificadas nas terapias de Ronald e Lucia? Em seus respectivos tratamentos individuais ambos escindiam e desmentiam sua participação desafiante e provocadora nas interações de rivalidade fálica. Desmentida que não impedia o diagnóstico - foi o primeiro que referiram seus analistas individuais -, mas sim o trabalho terapêutico, já que a forma cristalizada da desmentida trouxe dificuldades insuperáveis para trabalhá-la nos tratamentos individuais. No tratamento de casais, cada parceiro questionou a desmentida do outro "denunciando-o" e confrontando-o fortemente com a cisão e desmentida ("As coisas não foram como você diz, na realidade foram assim ou assim"). E correr a cortina de desmentidas e cisões permitiu acessar a um diferente material clínico, de modo tal que pôde ser implantado, num âmbito terapêutico, a
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interdeterminação que, nos dispositivos individuais, estava escapando a um trabalho clínico suficiente. Isto habilitou o processo de mudança procurado ambos desejavam um relacionamento melhor - e puderam corrigir circuitos de interdeterminação agressiva. Nos tratamentos individuais de Ronald e Lucia, fundamentalmente ocorria que a interdeterminação se expressava insuficientemente, entre outras coisas, porque aparecia a queixa pelo outro e do outro, mas pouca informação além da queixa (algo disto transmitiram seus analistas nas conversas telefônicas). Os trabalhos terapêuticos que ambos dispositivos promoveram foram concorrentes de modo tal que a terapia de casal encontrou um solo fértil para as terapias individuais e, ao mesmo tempo, relançou trabalhos psíquicos paralisados nas terapias individuais. No caso de Ronald e Lucia, o trabalho clínico sobre as rivalidades fálicas levou a ver que, para Ronald, sair deste tipo de competição com Lucia equivalia a uma maior união com ela, o que era vivido como uma traição a um filho enfermo de um matrimônio anterior. No caso de Lúcia, sair das disputas de rivalidade, significava uma espécie de rendição absoluta a Ronald, o que debilitava seu vínculo com a mãe. As alianças inconscientes, tal como vinham funcionando, respeitavam estas lealdades cuja revisão era vivida por Ronald como uma traição ao filho enfermo e, por Lucia, como um abandono à mãe. Este "entre" ambos era o que não podia adequadamente analisar-se em seus respectivos tratamentos individuais. O conceito de aliança inconsciente implica reformulações na teoria e na clínica psicanalítica e, muito especialmente, na maneira de entender a transferência: a transferência que investe o analista está condicionada pelas alianças inconscientes, onde parte é formada pelo paciente, e há casos em que o modo como estas funcionam entre os parceiros faz com que o analista não seja investido em um dispositivo individual com uma transferência que permita o necessário trabalho clínico. Claro, situações deste tipo também podem atribuir-se à imperícia do profissional, mas, independentemente da perícia ou imperícia do analista individual - é fundamental que, na teoria psicanalítica, esteja claramente estabelecido que, por efeito das alianças inconscientes, o vínculo de um sujeito com um parceiro tenha caracteres únicos que podem não se repetir, nem expressar-se suficientemente na transferência que aparece em um dispositivo individual. A noção de aliança inconsciente constitui uma ferramenta teórico clínica necessária em todos os dispositivos. Dado que em psicanálise se trata de levantar repressões e desenvolver a consciência a respeito do psíquico, o analista deve saber que, para um sujeito, o sabido e o não sabido, o lícito e o ilícito dependem não apenas dos funcionamentos intrassubjetivos, senão também
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das alianças inconscientes que operam nos contextos intersubjetivos que habita o sujeito considerado.
6. A "identidade" psíquica do casal “Tengo que amarte amor tengo que amarte aunque esta herida duela como dos aunque te busque y no te encuentre y aunque la noche pase y yo te tenga y no”
Escreve Mario Benedetti, em "Corazón Coraza,", dando conta do clima emocional que caracteriza a um vínculo de casal. Outro poeta, Miguel Hernández, descreve um clima diferente em outro vínculo: “Daré sobre tu cuerpo cuando la noche arroje su avaricioso anhelo de imán y poderío. un astral sentimiento febril me sobrecoge incendia mi osamenta con un escalofrío”. (Hijo de la luz y de la sombra) Dois vínculos de casal, dois climas emocionais. É uma opinião, possivelmente universal que cada relação de casal tem uma identidade única e que, na vida de um mesmo sujeito, os sucessivos relacionamentos tenham tido diferentes características e um diferente clima emocional. De acordo com o que se vem expondo, este clima depende das séries complementares de cada sujeito e da interdeterminação e das alianças inconscientes que se estabelecem. Em outras palavras, os funcionamentos intrassubjetivos e os intersubjetivos se articulam de um modo característico em cada casal, resultando, assim, que cada relação tem um tipo de identidade, ou seja, um conjunto de características que a definem. Disse Kaës referindo-se aos grupos 18. "Tenho que amar-te amor tenho que amar-te embora esta ferida doa como duas embora te busque e não te encontre e ainda a noite passe e eu te tenha e não". 19. "Darei sobre teu corpo quando a noite jogar seu voraz desejo de ímã e poder. Um astral sentimento febril me invade incendeia meu s ossos com um arrepio." (Filho daluze da sombra).
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(1994, página 90): “El acoplamiento implica que algunas funciones psíquicas se vean inhibidas o reducidas y que otras, en cambio, resulten electivamente movilizadas, manifestadas y transformadas…”. A identidade ou modo de ser de um casal, como a de um sujeito, não deve ser pensada como uma essência, já que muda ao longo do tempo e não está pronta de uma vez e para sempre. Por outro lado, no casal, como no caso dos indivíduos, não deve-se confundir o que uma pessoa "acredita que é" com o que o analista encontra nela de característico. Cada casal tem uma identidade que articula elementos imaginários com o simbólico e o real. A questão que surge é que grau de consistência, estabilidade e autonomia pode ser atribuído à identidade do casal e aos traços que a caracterizam. Alguns autores falam da "realidade psíquica" do casal, mas esta denominação tem o problema de estabelecer um paralelo inadequado com o termo freudiano. Não há dúvida de que cada casal tem certos traços e uma espécie de “identidade” que o caracteriza, porém não é conveniente falar de realidade psíquica do casal, já que tal denominação pode trazer a consequência de dar à identidade do casal a mesma entidade e quase materialidade daquilo a que Freud chamou de realidade psíquica.
7. Masculino - feminino. Homens e mulheres. Um dos terrenos onde mais se tem tentado estabelecer o "natural" no funcionamento psíquico tem sido a respeito do masculino e o feminino. Seria, por exemplo, um parâmetro claro e definido que as mulheres "naturalmente" queiram ter filhos, o qual permitiria ter alguma referência na abordagem clínica, como também seria "natural" que os meninos brinquem de soldados, mas...as coisas não pareciam ser "naturalmente" assim. Como já foi dito, o natural é para a psicanálise um real cuja inscrição no psíquico tem mediações sociais que o reestruturam. Por um longo período da sua obra, Freud situa a atividade do lado masculino e a passividade ao lado do feminino, posição que logo modifica. No ano de 1933, na conferência sobre La feminidad (1933, página 106 e seguintes), mostra uma mudança de opinião e estabelece fortes críticas a respeito do ponto de vista que até o momento sustentava, desaconselhandoo categoricamente: “Me parece inadecuado y no aporta ningún discernimi21. "Me parece inadequada e não fornece nenhum novo discernimento". "A mãe é, em todo sentido, ativa para o filho...[...]. 20. "O acoplamento implica que algumas funções psíquicas s e vejam inibidas ou reduzidas e que outras, por outro lado, resultem eletivamente mobilizadas, manifestadas e transformadas...".
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ento nuevo”. “La madre es en todo sentido activa hacia el hijo…[…]. As mulheres podem apresentar grande atividade em diversas direções e os homens não podem conviver com os seus iguais, se não desenvolvem um alto grau de docilidade passiva". Tão pouco é demasiado convincente assinalar que na mulher não há uma predileção para a passividade, mas por metas passivas, já que é demasiada a influência das normas sociais como a proposta de metas passivas para a mulher. A questão central é que a passividade e metas passivas são duas coisas radicalmente diferentes, já que pode ser necessária uma grande dose de atividade para alcançar uma meta passiva. Podemos concluir, então, que a passividade não corresponde ao feminino, exceto no campo de prescrições sociais. Freud ordena o campo do masculino feminino com uma lógica fálica e pensa que as mulheres, como os homens, giram em torno do falo. Os três caminhos possíveis que assinala para a sexualidade feminina (1933, p 117) ordenam-se em relação ao falo: na alteração do caráter, no sentido da masculinidade, a mulher se identifica com o homem, embora na inibição sexual e na neurose, também o fálico é o componente reprimido protagônico. A terceira saída, a mais saudável no desenvolvimento feminino, é a maternidade, em que a equação criança = pênis também aborda esta opção no terreno do falo. A feminilidade normal, para Freud, não supera a inveja do pênis, o feminino é uma masculinidade modificada. Seguramente que tal posição devia produzir algum mal estar em Freud e que foi por isto que repetidamente afirmou que não tinha conseguido desvendar o enigma da feminilidade. Em relação ao falo, Lacan postula que, no Édipo, haveria um primeiro momento para ambos os sexos serem o falo; um segundo momento de passagem pela castração e um terceiro tempo em que se refletem as diferenças. A posição masculina implica a crença ilusória de ter o falo a condição de não ser, e a feminina a de ser o falo a condição de não o ter. Assim, uma leitura do aforismo que diz "Amar é dar o que não se tem a quem não o é", quer dizer, entre outras coisas, que o amor é dar o falo que não se tem a alguém que tão pouco é. A mulher no amor, na medida em que sua posição é ser o falo, o é num disfarce que é máscara e véu do que não é. Levando em conta, então, que quem tem nem o é, as características fenomenais em um casal - se ele está na cozinha e ela maneja o caminhão equivalem para o analista a um conteúdo manifesto. O que importa é que circule entre eles o falo no sentido que ambos sintam que o outro/a o completa. Para isto é necessário que ambos registrem em si uma falta e, ao mesmo tempo, que ambos entrelacem de alguma forma a suas faltas respectivas. Disto depende o amor entre dois parceiros, o que articula duas faltas em ser. Se não se dá algo do registro da falta, o que com o outro se obtém é da
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ordem do gozo. Na relação entre a sexualidade feminina e a inveja do pênis, Freud e Lacan partem de diferentes perguntas. Enquanto Freud se pergunta o que quer ou o que deseja uma mulher, Lacan se interroga como ou onde goza. Do lado de Freud, podemos situar o enigma sobre o desejo e sua resposta fálica, e do lado de Lacan, a pergunta pelo gozo. As mulheres, propõe Lacan, têm acesso a um gozo mais além do fálico, o que estabelece um contraponto entre a continuidade do gozo feminino e o descontinuo do gozo fálico; assim, uma mulher pode instalar-se mais perto do gozo que os homens, atacado pela descontinuidade, um gozo não-fálico, especificamente feminino. A posição feminina se caracteriza pela tolerância frente ao não-tudo e uma capacidade para sustentar a falta como tal, sem tentar obturá-la; o desejo não se circunscreve a realizações fálicas, porque também procura ser amada. Em consonância com isso, Lacan assinala a forma erotomaníaca de amor para as mulher e para o homem fetichista. Lacan postula - como se disse - que as mulheres têm acesso a um gozo mais além do fálico. É por isto que o gozo feminino pode provocar angústia, tanto nos homens como nas mulheres, já que ao não estar preso à medida fálica, poderia ser sem medida. Para ambos sexos, o sexo "outro" - o que não possui as referências claras do tipo das que constituem as referências fálicas é sempre o feminino e está localizado do lado da mulher. Por sua natureza indefinida, então, o gozo feminino não permite à mulher uma identificação. Os homens buscam a identificação por meio do gozo fálico, porém as mulheres, ao não consegui-la nem pelo falo, nem pelo gozo feminino, procuram buscá-la pela via do amor. Assim, as mulheres geralmente buscam ser, nos casais e na clínica, as que mais se assumem como porta- vozes do amor, enquanto os homens geralmente localizam-se ao lado de alguma realização fálica (Uma paciente dizia: "A mulher tem que cuidar do casal, porque se for pelos homens, não se mantém o amor"). Na posição feminina busca-se a articulação entre o desejo e o amor, diferentemente da posição masculina que tende à separação entre ambos. Em algo há coincidência absoluta entre todos os analistas: a polaridade homem/mulher não se sobrepõe à polaridade masculino/feminino. Em termos lacanianos, homens e mulheres são um real enigmático e único. Os modos de ser masculino ou feminino não apagam este real. Para Freud, entretanto, somos todos alguma ligação singular resultante da bissexualidade, inerente tanto a homens como a mulheres. Considerar isto na clínica leva a desentender-se de como devem ser homens e mulheres. Nem os homens devem coincidir com o masculino nem as mulheres com o feminino. Devemos ter cuidado, portanto, com algumas categorias psicopatológicas enga-
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nosas e ter presente, como se diz, que as mulheres fálicas e os homens passivo-dependentes são tão patológicos como os homens fálicos e as mulheres passivo-dependentes, já que, em qualquer destas categorias, há uma elaboração neurótica da castração. Estas categorias tradicionais têm uma consistência duvidosa, já que, estabelecida a circulação do falo, num modo de ser em que ela é fálica e passivo dependente, não tem, em princípio, mais problemas de se ser neurotiforme. A questão é que se opere, entre ambos, a falta e a circulação do falo com independência do que prescrevem as culturas.
8. A valorização na abordagem clínica e na teoria. "Como deve ser" a relação do casal. A complexidade da experiência amorosa faz com que na psicanálise coexistam diferentes posições a respeito de "como deve" funcionar um casal e seus integrantes. Por momentos, em uma atitude pretendidamente científica, Freud disse ocupar-se unicamente de estabelecer relações entre o manifesto e o latente, enquanto que, em outros momentos, assinala etapas "inferiores" ou "superiores" do desenvolvimento libidinal. Nesta última posição, de conotação evolutiva, suas opiniões adquirem muitas vezes um viés valorativo: "as coisas deveriam ser assim." O valor, sem dúvida, está presente na visão freudiana do amor, mas pode ser entendido de diversas maneiras. Freud fala de alcançar "uma conduta amorosa plenamente normal" e de uma "conformação normal definitiva" da vida sexual. Associa esta "normalidade" - tendo o termo "norma" no sentido de norma ideal ou norma modelo, não norma estatística - com a chegada a uma fase libidinal definitiva: a organização genital adulta, caracterizada pelo ordenamento das pulsões parciais sob a primazia genital, o advento da vagina como zona erógena e a subordinação do instinto sexual à função reprodutiva. Também, na genitalidade adulta, o objeto sensual recaptura a corrente de ternura. Como em outros problemas, Freud dá um panorama variado e diz coisas diferentes, mas não há dúvida de que, em muitos textos toma uma posição na qual o esperado do desenvolvimento psicossexual é chegar a uma fase heterossexual com uma hipótese da função reprodutora.Freud considera, como adequado, um perfil de funcionamento coincidente com o lugar que, em sua época, ocupavam homens e mulheres nas famílias burguesas. Entretanto, ainda que os valores que sustentavam Freud estejam desatualizados e que a sociedade hoje seja outra, mantém-se que a operação analítica, no terreno de uma relação de casal amoroso, sempre envolve questões de valores e levanta questões éticas. O que é prazer para um sujeito pode
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significar dor para o outro e se há filhos no meio, o que é bom para as crianças pode não ser para os adultos ou vice-versa. Os conflitos de casal configuram clínicas nas quais é difícil conservar uma perspectiva que os considere muito e opostos a fatores que operam. As diferentes facetas, sempre em jogo, devem ser uma das causas de que hajam tão diferentes perspectivas e atitudes na análise das relações amorosas: enquanto alguns autores, como Kernberg, diferenciam entre "normalidade e patologia" na relação de casal, outros como Stoller, propõem 100% de "anormalidades" na vida erótica. Na primeira abordagem, o analista estabelece dois universos clínicos e de valores: o recomendável é não ser patológico. Na segunda, as fronteiras são mais flexíveis e não é possível ser "normal", nem tão pouco incorporar alguma outra variante de "o que corresponde". As questões de avaliação são sempre complexas e, por isso, têm invocado a neutralidade como parte da posição do analista. Mas a psicanálise não propõe uma clínica neutra: estabelece valores em algumas áreas, enquanto que, em outros não o faz. Por exemplo, é preferível que um sujeito conheça sua realidade psíquica e tenda a um tratamento analítico. Também é preferível que atinja um certo nível de satisfações pulsionais, porque a sublimação tem os seus limites. Pelo contrário, a psicanálise não se pronuncia a respeito de que se deva casar ou ficar solteiro, progressista ou conservador. Sendo assim, o psicanalista está sempre em uma atitude ativa e comprometida que pode aparentar ser neutra quando a técnica aconselha, mas isso não diminui sua implicação. A clínica nos confronta sempre com formas diferentes e singulares de relação amorosa, que confrontam nosso fazer com nossa ética e as questões de avaliação não podem ser evitadas. A postulação de modos superiores e, portanto, preferíveis no amor de casal tem muitos antecedentes em nossa disciplina. Sustentando esta perspectiva, Otto Kernberg levanta sua posição no livro “Relaciones amorosas. Normalidad y patologia”. Kernberg (1995, pag.69-70) propõe que “…el amor sexual maduro es una disposición emocional compleja que integra 1) la excitación sexual transformada en deseo erótico de otra persona; 2) la ternura que deriva de la integración de las representaciones del objeto y el self cargadas libidinal y agresivamente, con predominio del amor sobre la agresión y tolerancia a la 22. "Relações amorosas. Normalidade e patologia”. 23. "...o amor sexual maduro é uma disposição emocional complexa que integra: 1) A excitação sexual transformada em desejo erótico de outra pessoa; 2) A ternura que deriva da integração das representaçõe s de objeto e o self carregadas libidinal e agressivamente, com predomínio do amor sobre a agressão e tolerância, a ambivalência normal que caracteriza a todas as relações humanas; 3) Uma identificação
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ambivalencia normal que caracteriza a todas las relaciones humanas; 3) una identificación con el otro que incluye la identificación genital recíproca y una profunda empatía con la identidad genérica del otro; 4) una forma madura de idealización, junto con un profundo compromiso con el otro y con la relación, y 5) el carácter apasionado de la relación amorosa en tres aspectos: la relación sexual, la relación objetal y la investidura del superyó de la pareja.” O espírito que anima Kernberg em sua busca por fronteiras nítidas e precisas entre a normalidade e a patologia nas relações amorosas é diferente do que anima outros autores. Stoller, por exemplo, diz: “Puede ser que nos acerquemos más a la verdad si en relación a la conducta erótica, asumimos que la mayoría de la gente es anormal” (1997) pag. 25). E acrescenta: “…no encuentro a los heterosexuales como siendo más normales que los homosexuales” (1997 pag. 23). Mais categórico ainda, afirma referindo-se às técnicas de amostragem na análise estatística para avaliar as condutas heterossexual e homossexual: “Hasta ahora, si el conteo se hace a partir de casos y datos publicados, los heterosexuales y los homosexuales están muy cerca de un empate: 100% de anormales”. Um espírito semelhante animava Whitaker, quando disse que “el matrimonio es un estado alterado de la conciencia”. A meu ver, o casal é sempre uma experiência "anormal" - é dizer que está além de qualquer norma "modelo" - dado que nela se desdobram altas doses de regressão, afirmação especialmente válida para as relações originadas em um enamoramento. Estas, de fato, se iniciam em uma experiência que, nas palavras de Freud, constituem "o arquétipo da psicose na normalidade", e não é de estranhar que, em sua evolução posterior, voltem a desdobrar os riscos das experiências regressivas e regressivantes: projeções massivas, dificuldades de simbolização, etc, etc. Ao correr dos anos, as coisas não
com o outro que inclui a identificação genital recíproca e uma profunda empatia com a identidade genérica do outro; 4) Uma forma madura de idealização, junto com um profundo compromisso com o outro e com a relação e 5) O caráter apaixonado da relação amoros a em três aspectos: a relação sexual, a relação objeta l e as investiduras do superego do casal". 24. "Pode ser que no s aproximemo s mais da verdade se, em relação ao comportamento erótico, assumimos que a maioria das pessoas são anormais" (1997p25). 25. "... no encontro, os heterossexuais como sendo mais normais que os homossexuais " (1997p.23).
26. "Até agora, se a contagem se faz a partir de casos e dado s publicados, os heterossexuais e homossexuais estão muito perto de um empate: 100% anormais". 27. "o matrimonio é um estado alterado de consciência".
Amor e o casal em psicanálise
parecem ser muito diferentes e é habitual encontrar, na vida conjugal as mesmas investiduras que, no momento inicial, talvez temperadas mas regressivantes e com frequência em luta com os requerimentos de discriminação e individuação próprias dos funcionamentos da idade adulta. Normal ou anormal, na clínica de vínculo de casal, importa fundamentalmente o que Käes chama o trabalho da intersubjetividade (1999, p 133), denominando assim a maneira que as pessoas têm de processar a experiência de relação com o outro e seus conflitos. Se os parceiros entendem que a vida amorosa inclui um trabalho psíquico referido ao outro e à relação, é diferente quando se tem uma visão que não considera esta exigência de trabalho psíquico. Há, em um casal, elaborações psíquicas a realizar referidas ao outro e ao vínculo, de modo tal que expressões habituais como "isso é um problema meu", "esse é um problema teu" tem um viés pelo menos suspeito. Lamentavelmente este viés tem sido muitas vezes promovido por tratamentos analíticos que não consideram as alianças inconscientes, a interdeterminação e o muito que um sujeito condiciona algumas condutas do parceiro em uma relação amorosa, ou seja, a importância do trabalho sobre o intersubjetivo.
*** As relações de casal são sucederes complexos a respeito dos quais a psicanálise tem muito a dizer, mas, sem dúvida, há, em nossa disciplina, profundas polêmicas a respeito do lugar do biológico, do cultural, do intersubjetivo e muitas outras questões. Sem dúvida, o desprezo do intersubjetivo é um déficit histórico a superar. O intrassubjetivo, que constitui até nossos dias o ponto de vista predominante na psicanálise, explica muitos dos sucederes num vínculo, mas não todos. As polêmicas no campo do casal e do amor derivam da complexidade em jogo. Um vínculo de casal envolve equilíbrios que se alcançam, perdem e reconquistam e inclui várias doses de egoísmo e humildade com o objeto, loucuras pessoais e alterações do eu, trabalho do intersubjetivo e da destrutividade. Não existe um modelo de amor de casal que possa ser considerado ideal ou saudável, não há amor “conquistado” nem há ponto de chegada e, portanto, a clínica será sempre um problema único, caso por caso.
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Las investigaciones seguramente deben continuar, bajo el doble aguijón de la clínica y de la crítica. Pero un campo teórico se ha constituido [...], la investigación de los efectos de los procesos intersubjetivos sobre la organización de la vida psíquica del sujeto considerado en su singularidad. R. Kaës (1999, pag. 138) A condução de uma intervenção psicanalítica com um casal requer a realização de diferentes avaliações referente a diferentes áreas do psiquismo: os funcionamentos intrassubjetivos, os intersubjetivos e a articulação entre ambos. Trata-se de ter uma captação dos dois sujeitos individualmente considerados, assim como também do vínculo em questão. Contudo, o estudo da articulação entre o intra e o intersubjetivo leva a circunscrever uma pergunta: De que maneira participa/influi o outro no funcionamento de um sujeito? Esta pergunta, assim como as avaliações levantadas no parágrafo anterior, exigem respostas que abarquem os funcionamentos inconscientes, dado que, em psicanálise, os processos psíquicos começam nesta estrato da subjetividade. Em consequência, a resposta que se dá a respeito do modo de participação dos outros no psiquismo de um sujeito, deverá ser articulada a teoria do inconsciente que se maneje. Cabe aqui um esclarecimento terminológico sobre o "subjetivo" nos termos intrassubjetivos e intersubjetivos. O subjetivo é o referente ao sujeito, entendendo a este último como um indivíduo, tendo por base as filosofias 28.
As investigações seguramente devem continuar, sob o duplo incentivo da clínica e da crítica. Mas um campo teórico se constitui [...], a investigação dos efeitos dos processos intersubjetivos sobre a organização da vida psíquica do sujeito considerado na sua individualidade. Kaës R.(1999,p.138).
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clássicas. Assim, o intersubjetivo é, em termos gerais, o que produz dois ou mais sujeitos ou indivíduos, enquanto o intrassubjetivo é aquele que mantém o essencial de suas características em um indivíduo isolado do outro ou do grupo. Tanto o intra como o inter são produtos psíquicos e, portanto, intrapsíquicos. É por isso que opor o intrapsíquico ao interpessoal, como se opta em outras terminologias, parece-nos confuso, na medida em que todo o psíquico é sempre, e por definição, intrapsíquico. Outros autores opõem o relacional ao individual. As diferentes terminologias apresentam problemas e talvez fosse melhor falar do intra e do inter, sem mais agregados.
1. Os outros e o psiquismo De que modo - vale repetir - participam o outro/os outros no funcionamento psíquico de um sujeito? A questão não deve limitar-se ao que acontece em um casal. A subjetividade é um sistema cujos funcionamentos se produzem em relação direta ao outro, aos outros e ao exterior; o homem é um ser social e assim se entendeu sempre, em nossa disciplina, os funcionamentos psíquicos. Mas não se trata unicamente de que o homem seja um ser social, com as infinitas e fundamentais questões que isto implica. O psiquismo de um único sujeito também inclui produtos de pessoas que estão no mundo exterior, sejam estes, a mãe, o parceiro do casal ou um outro significativo. O psiquismo constitui-se como um sistema aberto, que inclui produtos do exterior e não é exclusivo e totalmente "intra" pessoal ou intrassubjetivo. O que acontece na infância claramente ilustra a maneira como a subjetividade inclui, em seu interior, inscrições ou registros que mantêm um caráter de "corpos estranhos", produções do outro tomadas em bruto não de todo transformadas pelos processos de internalização. De fato, a mãe é um ente externo à criança e, ao mesmo tempo, o psiquismo materno produz "incrustações" no psiquismo infantil. Estas são em parte distorcidas pelos processos de metabolização da criança e, portanto, não são 100% produtos psíquicos da mãe, mas não vem a ser uma internalização completa e, portanto, não são 100% da criança. "O outro, presente no objeto, diz Kaës - é irredutível a sua internalização como objeto" (Kaës R. 1999 p.132). Os produtos psíquicos maternos têm o caráter intermediário de "corpos estranhos", "estilhaços subcutâneos", "incrustações" e funcionam com uma lógica não contemplada na obra de Freud. Esta lógica reformula a clássica oposição exter-
29. Para uma definição do intra e do intersubjetivo ver mais adiante, pág. 60 e ss.
O sujeito e o outro. O inconsciente e o parcial.
na/interna e se vincula com a conhecida afirmação de que o menino funciona com as palavras e códigos que lhe "emprestam" os adultos. As crianças repetem, "sem entender", frases e palavras que, não obstante, os determinam. Estes funcionamentos, em que produtos externos estão incluídos no aparelho psíquico de um sujeito, não desaparecem ao terminar a infância e se mantêm, em parte, ao longo da vida. A banda de Moëbius apresenta-se como uma maneira de metaforizar esta complexa relação entre o interior e o exterior. Nela, um ponto pode ser localizado na faceta interior ou exterior, mas, ao percorrer-se a totalidade da banda, apaga-se esta oposição e o interior aparece em continuidade com o exterior. A banda de Moëbius subverte a tradicional maneira freudiana de conceber o externo e o interno como dois espaços com uma fronteira nítida; nela, pelo contrário, configuram-se dois espaços contínuos, um dos quais leva ao outro: ambos se diferenciam ao mesmo tempo que um se funde no outro. Tomar a banda de Moëbius como um modelo do psíquico implica que o psiquismo inclui produtos de outros e está aberto, mas nem por isso é grupo, nem coletivo. É "no seu mais alto ponto individual", em cada sujeito (Freud 1915) enquanto, ao mesmo tempo, alguns processos psíquicos de uma pessoa incluem outro/outros. No psiquismo, existem espaços de diferente permeabilidade para o exterior, de tal forma que, em alguns, a interinfluência do contexto intersubjetivo tende a ser mínima e, em outros, tende a ser máxima.
2. Os outros e o inconsciente. Interdeterminação e alianças inconscientes A questão proposta em relação aos outros e ao psiquismo leva à problemática dos outros e do inconsciente, na qual se faz central a forma como a reunião de vários sujeitos em um contexto intersubjetivo afeta as condições de funcionamento e a constituição do inconsciente destes sujeitos. Deixar-se-á de lado a questão que se refere à constituição do inconsciente, para discutir unicamente o problema que se refere ao funcionamento atual do inconsciente em um contexto intersubjetivo. Com efeito, a respeito da constituição, Freud mostrou com clareza como esta se produz na interação do intersubjetivo com o intrassubjetivo. Uma primeira questão a ser levada em conta, então, é que, em um contexto intersubjetivo, a investidura do sujeito ao outro é modificada, remodelada pela investidura do outro ao sujeito. As investiduras não são sucederes unidirecionadas e descontextualizadas. Por exemplo, em uma mulher que
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idealiza no parceiro o objeto edípico, a investidura se remodelará de acordo com a resposta do companheiro que confirmará ou não esta idealização. Para dar outro exemplo, em um grupo, a investidura dos outros fará com que um novo integrante não fale e eventualmente reprimirá aqueles conteúdos dos quais nesse grupo “não se fala”. Em um contexto intersubjetivo, então, a interdeterminação – chamada às vezes de “bidirecionalidade”, quando nos referimos a um casal, explica algumas das muitas modificações que sofrem os funcionamentos conscientes e inconscientes dos sujeitos que nele se incluem. A interdeterminação, como veremos, abarca tanto as modificações transitórias e circunstanciais que supõe a vida de relação social, como as remodelações de maior profundidade que se produzem no inconsciente. No fundamental, a interdeterminação é o conceito que designa as influências recíprocas que sofrem as investiduras dos integrantes de um vínculo; é o aspecto do funcionamento psíquico em um vínculo, em razão do qual não se pode entender o funcionamento de um polo, sem levar em conta o funcionamento do outro. É a expressão clínica de uma lógica que Kaës considera nuclear no vínculo: “No lo uno sin lo otro” (Kaës, 2009, pag. 111). A interdeterminação é uma propriedade do funcionamento global da trama intersubjetiva e, como descrevemos no capítulo I, no interior desta, há formações de relativa estabilidade e consolidação, as chamadas alianças inconscientes (R. Kaës), que pautam o funcionamento da trama em questão, na medida em que organizam as posições dos sujeitos e as interações possíveis. Propondo uma metáfora hídrica, enquanto a interdeterminação alude ao modo em que as águas fluem, modo pleno de influências recíprocas; as alianças inconscientes constituiriam alguns diques que permitem ou obstruem, facilitam ou inibem. As alianças inconscientes estão constituídas pelas investiduras estáveis entre os integrantes do vínculo e definem as vias habituais do intercâmbio. São os elementos estruturantes do permitido e do proibido em um contexto particular, de modo tal que organizam as condutas e as relações possíveis. Também podem ser reprimidas. Alguns exemplos podem esclarecer no que consistem as alianças inconscientes. Numa família, uma aliança inconsciente pode consistir no nível da argumentação em que “papai nunca trabalhou e nada se diz e mamãe tampouco trabalha e nada se diz e todos dizemos que papai trabalha muito, e ele mantém a todos”. Desta maneira, com este argumento conscien-
30. “Não há um sem o outro”(Kaës, 2009, pag. 111).
O sujeito e o outro. O inconsciente e o parcial.
te/inconsciente, mescla de sabido/não sabido, ninguém registra que são todos parasitas em uma estrutura familiar feudal, dado que o registro consciente deste elemento da realidade romperia a homeostase estabelecida na família. Em um casal, uma aliança inconsciente pode adotar formas tais como “você me admira, eu não vejo teu alcoolismo” – de modo tal que ambos registram em nível consciente a admiração circulante e desconhecem, no consciente, o alcoolismo de um e a cegueira do outro - . Outros exemplos: “você me deixa crer que eu trabalho, eu te deixo crer que te ocupas do nosso filho” ou “serei incondicional sempre que me faças de mamãe”. Como pode-se ver, a base representacional das alianças é inconsciente e, no consciente tem uma representação mais ou menos distorcida. Todas cumprem com a característica de retirar certas representações do intercâmbio consciente entre os sujeitos, em benefício de suas respectivas homeostases narcisistas. As alianças inconscientes configuram articulações entre os sujeitos e, tal como ocorre com as articulações na anatomia, decidem as possíveis posições na trama dos membros participantes. Ao considerar, a partir da perspectiva destas formações a um sujeito, este aparece como a falange de um dedo em relação a outra falange: ambos segmentos anatômicos se determinam reciprocamente nas posições que adotam, e é a articulação, como totalidade complexa, a que decide que movimentos cabem a cada falange em seu funcionamento com a outra e qual não. As alianças inconscientes constituem-se como uma produção conjunta daqueles que integram um contexto intersubjetivo e dão lugar a “procesos de formación de inconciente” (Kaës 1999, pag 139) não descritos na obra de Freud. Não se trata meramente da “acomodação” de um indivíduo a outro, mas sim que a aliança gera novos e diferentes processos de funcionamento e formação do inconsciente em cada membro do vínculo. A este respeito, diz Kaës (1999, pags. 115-116): “Este acuerdo inconciente sobre lo inconciente es impuesto o consumado mutuamente para que el vínculo se organice y se mantenga en su complementariedad de interés, para que se garantice la continuidad de las investiduras...”. As investiduras que conformam uma aliança abarcam diferentes estratos do psiquismo, desde o que faz o laço social e a interação consciente e pré-consciente até o inconsciente. As alianças inconscientes organizam o inconsciente no que se refere ao que une o casal sob a forma de aspirações e intenções conscientes: objetivos familiares, econômi31. “processos de formação do inconsciente” (Kaës 1999, pag 139) 32. “Este acordo inconsciente sobre o inconsciente é imposto ou consumado mutuamente para que o vínculo se organize e se mantenha em sua complementariedade de interesse, para que se garantisse a continuidade das investiduras...”.
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cos, filhos, lugar, amigos, sexualidade e outros múltiplos interesses. As alianças inconscientes, ao decidir as posições subjetivas, influem na estipulação do que é inconsciente nos sujeitos que as constituem e implicam, no intrassubjetivo, remodelações e influências na repressão e nos processos defensivos dos participantes da aliança. Reciprocamente os processos que, no intrassubjetivo, configuram-se como repressões, desmentidas, cisões e outras modalidades defensivas, são a base para as diferentes alianças inconscientes. Agora a correlação recíproca não se verifica ponto a ponto, e o excluído no intersubjetivo não corresponde calcograficamente com o excluído no intrassubjetivo. Os conteúdos e representações que estão desalojados do intercâmbio intersubjetivo explícito não são obrigatoriamente desalojados do intrassubjetivo consciente –preconsciente. As alianças inconscientes irradiam sobre os processos defensivos intrassubjetivos e os condicionam, e vice-versa, as defesas intrassubjetivos irradiam e condicionam as alianças inconscientes nas quais está incluído o sujeito. Porém, trata-se de uma irradiação, não de um condicionamento férreo entre o intersubjetivo e o intrassubjetivo, que tem margens de autonomia e independência.
3. O intrassubjetivo e o intersubjetivo. O funcionamento psíquico de um sujeito está sempre afetado pela situação social em que se encontra. Sabemos que o ser humano é um ser social e que há implicações nisso, assim como sabemos também da grande quantidade de conceitos psicanalíticos que aspiram a dar conta de como a situação social afeta o funcionamento do sujeito: "realidade externa", "psicologia das massas" e "mal estar na cultura" são alguns dos conceitos com que Freud abordou estes temas. Quando se trata de teorizar sobre o sujeito no particular contexto intersubjetivo, que constitui o casal, aparece como útil o conceito de vínculo para descrever as características deste contexto. Um vínculo pode ser definido como um espaço constituído pelos investimentos de dois ou mais sujeitos, investimentos que têm certa intensidade e duração no tempo e configuram um modo de encontro com algumas características duradouras. A inclusão de um sujeito em um vínculo passa a determinar, em parte, seu funcionamento individual, em virtude da interdeterminação e das alianças inconscientes que caracterizam esse vínculo. O vínculo passa a ser um novo espaço de determinação psíquica, que funciona como tal, junto ao que Freud 33. Técnica de impressão.
O sujeito e o outro. O inconsciente e o parcial.
chamava de aparelho psíquico de tal modo que o estudo do psíquico requer abarcar estas duas facetas: a que Freud abarcou com o conceito de aparelho psíquico e o vincular. De fato, o aparelho psíquico é, na obra de Freud, um espaço de determinação em que, a grosso modo, pode-se dizer que abarca o individual, junto com outros espaços de determinação como o sóciocultural, o biológico e outros. Cada espaço tem uma autonomia relativa a respeito dos outros. A observação do psíquico em um assunto, então, permite distinguir duas facetas: o intersubjetivo e o intrassubjetivo. O intrassubjetivo é essa dimensão do psíquico que é regida predominantemente por determinações interiores ao sujeito. A grande ferramenta e referência para apreender esta dimensão é a associação livre. Na verdade, Freud desenhou seu dispositivo com sua regra fundamental de associação livre, e a regra de abstinência com a intenção de dar lugar à implementação de um espaço no qual minimiza ao máximo tudo o que não é interior ao sujeito. É por esta razão, entre outras, que o analista como propõe Freud, deve funcionar como uma tela em branco. As descrições de Freud sobre a transferência, teorizando-a como um clichê infantil que tende a desconhecer a realidade e a autonomia do outro exterior, referem-se ao componente intrassubjetivo de transferência. O intrassubjetivo, quer consideremos no psíquico em geral ou o inconsciente em particular, aproxima-se para funcionar como um espaço fechado que assimila o mundo interno aos outros externos e independentes. Esta "assimilação" se realiza fundamentalmente a partir de funcionamentos projetivos e narcisistas e não devemos nos enganar a respeito das características do psiquismo em sua totalidade, que nunca funciona como um sistema fechado. A faceta intrassubjetiva de um funcionamento psíquico é aquela em que o outro e o mundo exterior são reduzidos assintoticamente à condição de objetos internos. Os funcionamentos psíquicos, no intrassubjetivo, desenvolvem-se sem a participação protagonista de um outro externo autônomo e é este o aspecto do funcionamento psíquico que predomina, por exemplo, no sono e nos sintomas clássicos das neuroses de transferência. Um exemplo possível é um ritual obsessivo de lavar as mãos: independentemente das causas e dos efeitos que a obsessão tenha na vida de relação do sujeito, os funcionamentos que explicam o ritual de lavar as mãos, se produzem-se em virtude de circuitos autoalimentados de repetição no mundo interno do paciente e sem uma participação relevante de outros externos. No que diz respeito ao processo psíquico, que suporta o ritual, os outros aparecem como objetos internos. O intersubjetivo, entretanto, constitui essa faceta de um funcionamento
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psíquico em que este é influenciado fundamentalmente pelo outro/outros de forma tal que este outro é irredutível a sua internalização como objeto interno. Ao considerar o intersubjetivo, o funcionamento do psiquismo e do inconsciente devem modelar-se como um espaço aberto regido pela lógica do "não é um sem o outro" (Kaës R.). Clínica e metodologicamente, para acessar ao intersubjetivo, deve considerar-se o discurso conjunto. Neste, a diferença do que acontece na associação livre, onde a resposta do outro desempenha um papel de protagonista, e se desenvolvem transferências que unicamente se expressam em função da resposta do outro. A interação põe a descoberto, no discurso conjunto, funcionamentos, induções, desmentidas e cisões que aparecem diferentemente e/ou podem passar despercebidas na associação livre. É um fato habitual que, em uma sessão vincular, um membro diga "Não, isto não é assim" e traga em cena funcionamentos cindidos e/ou desmentidos pelo parceiro. No discurso conjunto, o outro se rebela contra a sua colocação como um mero objeto interno. Este tipo de interação não aparece na associação livre, e por essa razão, Freud assinalou que, no tratamento por ele concebido - a cura individual - não se poderia aceitar ocultamentos, já que, ao instalarse a associação livre desaparecida, configurava-se uma situação de ocultamento que a comparava a uma área libertada em uma cidade, onde se refugiavam todos os delinquentes e as resistências. Seria um "reduto" resistencial. As coisas são diferentes no discurso conjunto, e nele tem lugar o aparecimento de um diferente suceder psíquico em que se ocultam e/ou saem à luz outros bolsões resistenciais, com uma mais ampla expressão do intersubjetivo e da interação com o outro. A presença do outro não deve conduzir à ingenuidades: Sempre em qualquer discurso há "redutos" ou ocultamentos. Em todo discurso, há uma zona suprimida que varia de acordo com o funcionamento mental e o dispositivo que se utilize, pela própria natureza de todo discurso. Quando se diz que o intersubjetivo desempenha um papel a destacar no funcionamento psíquico, a intenção é assinalar a participação relevante de um outro externo, mas em nenhum sentido que o intrassubjetivo possa ser desprezado na análise do funcionamento em questão. Nenhuma das duas dimensões pode ser deixada de lado e ambos sempre desempenham algum papel no psíquico. A distinção de uma faceta intrassubjetiva e outra intersubjetiva no seio de um funcionamento psíquico é uma distinção que não se encontra na obra freudiana e se refere ao modo como funciona um sujeito em um vínculo. Na situação de dormir, o sonho diurno, e em alguns estados patológicos, o intersubjetivo tende a sua menor expressão: enquanto a interdeterminação
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desaparece, as alianças inconscientes perdem algo de seu investimento, como corresponde a debilitação do atual e o reforço dos investimentos do passado inconsciente. O psiquismo, vale a pena repetir, tende a funcionar como um sistema fechado. A diferenciação intra/inter tem seu fundamento nos problemas de abordagem terapêutica, impasses e detenções no processo de mudança psíquica na clínica psicanalítica e configura um par de categorias especialmente válidas para projetar a intervenção analítica. Com o enquadre freudiano, são acessíveis muitas problemáticas, mas algumas não são acessíveis com eficácia, aquelas em que o intersubjetivo desempenha um papel principal, como por exemplo, certas problemáticas adolescentes, de crianças, do grupo familiar ou de casal. Com efeito, no dispositivo freudiano, aborda-se o sujeito separado do contexto e se aspira a que o intersubjetivo se presentifique no espaço terapêutico por via da transferência com o analista ou através da transferência com outros personagens (tal como Freud refere no epílogo de Dora). Mas a experiência de hoje, depois de 100 anos de prática analítica, permite-nos saber que muitos funcionamentos intersubjetivos não chegam a ter uma adequada expressão no dispositivo freudiano. O inter não tem, nestes casos, uma suficiente evidência transferencial. É, em alguns destes casos, quando os dispositivos de grupo, família e casal, os chamados dispositivos vinculares, facilitam a abordagem clínica de funcionamentos psíquicos que não puderam ser abordados com eficácia no dispositivo freudiano. Contudo, embora historicamente a distinção entre o intra e o intersubjetivo tenha se originado em questões terapêuticas, já que cada um destes aspectos de um funcionamento psíquico se evidencia de diferente maneira nos diferentes dispositivos, atualmente a situação é outra e excede o âmbito limitado da terapêutica. O estudo do psiquismo deve agregar aos conceitos freudianos as ferramentas que permitam teorizar o intersubjetivo com a complexidade que possui e em suas múltiplas influências, que já denominei como alianças inconscientes e interdeterminação, ou bem com outra terminologia. Em um funcionamento psíquico, o que é o intrassubjetivo e o que é o intersubjetivo, é uma questão a trabalhar e há entre ambas facetas do suceder psíquico, uma fronteira móvel. Móvel porque o intrassubjetivo no funcionamento psíquico não constitui um feito previsível nem imutável: sua implantação depende do que o intersubjetivo ative. Vice-versa, tão pouco o intersubjetivo é um jeito imutável, pelo qual afeta o outro, que me produz, o que nós produzimos, ou seja, suas induções, por exemplo, dependem em muito do intrassubjetivo.
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A avaliação desta fronteira tem importantes consequências na clínica e pode levar a propor que em um tratamento, durante um certo tempo, realize-se uma série de sessões em um dispositivo diferente do que se vinha utilizando. Se tomarmos a banda de Moëbius para modelar o funcionamento psíquico, qualquer funcionamento, ao longo do tempo, tem um desenvolvimento de acordo com a forma da banda e o intrassubjetivo torna-se intersubjetivo e vice-versa. Uma dimensão não existe sem a outra, e as diferenças entre ambas não são absolutas. O intersubjetivo e o intrassubjetivo configuram registros ordenadores do complexo e indivisível suceder psíquico, um par de eixos complementares, úteis para diferenciar modos de funcionamento psíquico, aos moldes de outros eixos ordenadores, tais como o princípio do prazer/princípio de realidade e princípio do prazer/além do princípio do prazer. Trata-se de duas facetas sem fronteiras nítidas entre elas; cada uma recorta uma parcialidade, permitindo assim um melhor entendimento de alguns funcionamentos e um melhor projeto de abordagem clínica. Nos extratos mais profundos do psiquismo, ambas dimensões se indiferenciam e entranham suas raízes uma na outra, assemelhando-se à situação das zonas de torção na banda de Moëbius. Quando se levanta uma diferenciação terminante entre intersubjetivo e intrassubjetivo, ignora-se que, ao recorrer-se à totalidade da banda (o que equivale a implantar em sua amplitude um funcionamento psíquico), apaga-se a polaridade interna/externa e o interior aparece em continuidade com o exterior.
4. Propriedades do inconsciente à luz do intersubjetivo O que contribui para a teorização do inconsciente desenvolvida até aqui? O inconsciente, como o psiquismo em seu conjunto, configura-se como um espaço heterogêneo, com funcionamentos abertos e fechados, mas não se constitui nunca uma cápsula hermética. No inconsciente, junto aos processos que, tal como Freud descreve, tem tendência à repetição e à retroalimentação autônoma ao modo de um sistema fechado, estão os que são abertos e se produzem em articulação com o outro da atualidade. Coexistem no inconsciente diferentes graus de abertura, o que dá origem a diferentes formas de funcionamento. Há modos relativamente fechados - refratários à influência do outro - junto a modos de funcionamento aberto. O inconsciente, de acordo ao que se vem propondo, é um espaço psíquico exterior e interior e, portanto, superficial e profundo, ectópico e politópico (Kaës R.). De fato, se o inconsciente é exterior e interior, é também,
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em parte, ectópico, já que algo está fora do aparelho psíquico descrito por Freud e politópico, já que está em vários lugares ao mesmo tempo. Acontece também que o inconsciente deixa de coincidir com o mais profundo do psiquismo individual, tal como acontece no esquema de o Eu e o Isso. Modificam-se as metáforas espaciais com que se representa ao inconsciente. Em que sentido o inconsciente é exterior e interior? Isto é assim porque constitui um produto único e individual, como postulou Freud ao descrever a repressão (1915), mas - e aqui reside uma diferença com Freud - é a sua vez plural, na medida em que inclui produtos psíquicos de outros. Não só de outros, no sentido de próximos significativos, mas também de produtos da cultura, do exterior que o sujeito habita, da linguagem, daquele que Lacan designa como o grande Outro. As produções do inconsciente surgem em algumas ocasiões de um capital psíquico preexistentes, ou seja, que, tal como se emprega a palavra na velha fotografia analógica, "revelam-se" e aparece em positivo um preexistente que estava em outro estado no negativo (o rolo fotográfico); enquanto que, em outras circunstâncias, constituem uma produção - mais correto seria dizer uma neoprodução - que não registra existência previa na subjetividade. Neste último caso, trata-se de funcionamentos produzidos por um estímulo atual, produtos da interação com o outro ou consigo mesmo. O inconsciente, então, é, às vezes, revelado e neoproduzido.
5. Uma nova teoria do psiquismo A importância do intersubjetivo leva a autores como Kaës a propor uma nova teoria geral da psicanálise que inclui tanto o referido ao psiquismo individual como também conceitualizações e práticas referidas a grupos, casais, famílias e instituições. Deve observar-se que esta postura implica diferenças com a posição freudiana no que diz respeito ao que se aspira incluir no campo da teoria e da clínica psicanalítica. Diz Kaës: “Las investigaciones que hemos expuesto reclaman la invención de una nueva metapsicología y esto por dos razones: la primera es que, a partir del momento en que el aparato psíquico ya no es concebido como una mónada sino que es pensable como abierto, de base, sobre los espacios intersubjetivos, ya no podemos entender exactamente de la misma manera los procesos de formación del inconsciente. [...]” 34. “As investigações que temos exposto reinvidicam a investigação de uma nova meta psicologia e isto por algumas razões: a primeira é que, a partir do momento em que o aparelho psíquico já não é concebido como uma mônada, mas que é pensável como aberto, de base, sobre os espaços intersubjetivos, já não podemos entender exatamente da mesma maneira os processos de formação do inconsciente.[...]”
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“Existe una segunda razón para producir una nueva metapsicología: las investigaciones psicoanalíticas sobre los grupos abren otra dimensión al concepto de realidad psíquica. Desde el momento en que la hipótesis de una psique compartida – se la llame grupal, familiar, o colectiva – deviene probable, se vuelve necesario construir modelos de inteligibilidad de esta realidad, de su consistencia, sus estructuras y sus leyes de transformación. Así pues, al transformarse nuestro conocimiento del aparato psíquico, debe modificarse también la metapsicología” (1999, pag 139). O intersubjetivo constitui um eixo fundamental de analises assumido por escolas e autores contemporâneos como Stolorow, Mitchell, Stern, Kaës e outros. Com distintos vocabulários, isto também ocorre com analistas como Pichon Rivière, Winnicott ou Piera Aulagnier, em cuja obra o intersubjetivo é protagonista, ainda que utilizem outra terminologia. O modelo de psiquismo na obra destes autores é tal que processos psíquicos centrais em sua teoria psicanalítica consideram-se, não só em relação a algo equivalente ao que chamamos intrassubjetivo ou mundo interno, senão também em relação aos outros, o que neste livro se denomina intersubjetivo. A concepção que neste texto se aborda a respeito do intersubjetivo, implica a utilização de dispositivos vinculares em algumas situações clínicas, mas não implica, de nenhuma maneira, que um dispositivo vincular seja, em princípio, mais recomendável que o dispositivo chamado individual. Pelo contrário, na maior parte dos casos que vem ao consultório psicanalítico, a indicação mais conveniente segue sendo o dispositivo freudiano, sempre e quando a intervenção do analistas levar em conta tanto o intrassubjetivo como o intersubjetivo. Mas ainda, em algumas problemáticas em que o intersubjetivo é central, sem embargo, o dispositivo mais conveniente para a abordagem clínica é o individual. O que mais interessa assinalar é que o reconhecimento da intersubjetividade tem consequências importantes na clínica psicanalítica, em especial nos tratamentos com crianças, adolescentes, pacientes regressivos, problemas de família e de casal.
35. “Existe uma segunda razão para produzir uma nova metapsicologia: as investigações psicanalíticas sobre os grupos abrem outra dimensão ao conceito de realidade psíquica. Desde o momento em que a hipótese de uma psique compartilhada – chame-se de grupal, familiar, ou coletivo – devem, provavelmente, se fazer necessário construir modelos de inteligibilidade, desta realidade, de sua consciência, suas estrutura s e suas leis de transformação. Assim pois, ao transformar-se noutro conhecimento do aparelho psíquico, deve modificar-se também a meta psicologia” (1999, pag 139).
O sujeito e o outro. O inconsciente e o parcial.
Desde as mais diversas concepções, próximas ou distantes, a terminologia aqui empregada se firma em psicanálise numa maneira de pensar o psiquismo em que o intersubjetivo ocupa um lugar central: “La vida psíquica está inmersa en el mundo del otro, en el mundo de aquellos a quienes estamos ligados por el lenguaje, por nuestros fantasmas y nuestros afectos. Nuestro psiquismo prolonga necesariamente el psiquismo de ese otro con quien estamos relacionados.” (J. D. Nasio, 1999, pags 51- 52)
36. “A vida psíquica está imersa no mundo do outro, no mundo daquelas a quem estamos ligados pela linguagem, por nossos fantasmas e nossos afetos. Nosso psiquismo prolonga necessariamente o psiquismo desse outro com quem estamos relacionados”. (J. D.Nasio, 1999, pags 51-52).
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III Discurso conjunto, transferência intracasal, intervenção vincular. Conceitos distintivos da clínica com casais.
A possibilidade de uma clínica de orientação psicanalítica com casais exige a discussão de várias questões, algumas das quais serão abordadas nas páginas que seguem. Primeira questão: se – de acordo com Freud – a associação livre é a produção de um sujeito que permite o acesso a seus funcionamentos inconscientes, qual é a produção de um vínculo de casal que nos permite acesso aos funcionamentos intersubjetivos inconscientes dos parceiros? Segunda questão: se conseguimos definir e descrever a produção que, em um vínculo de casal, permite entender os funcionamentos intersubjetivos inconscientes de seus integrantes, qual seria a ferramenta adequada para uma intervenção psicanalítica sobre estes? Esta pergunta – mutatis mutandis – se refere a qual seria, em um dispositivo de casal, o equivalente da interpretação freudiana. Enfim, uma terceira questão que se abordará neste capítulo é como um analista escuta um casal, que posturas de ordem das que Freud delineou para a cura individual (atenção flutuante, regra de abstinência e outras) emolduram seu trabalho de modo tal que seja possível acessar os funcionamentos psíquicos dos parceiros e construir as intervenções pertinentes.
1. A associação livre e o discurso conjunto Uma questão importante na lógica da construção freudiana é como ter acesso aos funcionamentos inconscientes que sustentam os sofrimentos de um paciente que consulta. Freud comunica ao paciente a regra fundamental a partir da qual se produzirá a associação livre, na qual se verificam resistências e facilitações, ambas expressões da repressão que, em diferente grau, opera em todos os níveis do aparelho psíquico e o constitui. Na concepção de Freud, não há associação sem resistência, porque o sujeito está cindido, “dividido”, e se a cura tende a fazer com que as resistências tornemse cada vez mais porosas e plásticas, o objetivo de eliminar as resistências não tem um sentido lógico, porque equivaleria ao desaparecimento do aparelho psíquico.
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Capítulo III
Em um dispositivo de casal, surge a pergunta de como operam as resistências – se aceitamos esta dominação – quando, além do analista, o sujeito tem a sua frente seu parceiro. Neste marco, com que essa situação – no qual está presente um estranho – esperar algo da ordem da associação livre e entender suas detenções e fracassos como “resistências”? Os pacientes ocultam e mentem nas curas individuais, a respeito disso existe abundante bibliografia. A pergunta que se apresenta é se os enganos, ocultamentos e resistências que se produzem na cura individual, podem incluir-se em uma mesma categoria de fenômenos como as mentiras, enganos, ocultamentos e resistências que se produzem nos dispositivos grupais. A discussão seria longa. A meu juízo, pode-se afirmar que a presença de terceiros, que não seja o analista, retira do produto linguístico as características que Freud postulou para a associação livre e cabe, portanto, propor uma diferente denominação, a noção de discurso conjunto para designar a cadeia associativa que produz um casal. De acordo com isto, minha proposta aos parceiros, uma vez concluídas as primeiras entrevistas, é combinar um horário, geralmente semanal, e que “falemos do que queiram”. Não transmito nada da ordem da regra fundamental freudiana, porque, se o fizesse; me pareceria, no mínimo, ingênuo. Entre a associação livre e o discurso, há semelhanças e diferenças, no discurso conjunto, há trajetos que se assemelha à associação livre, momentos que podem chamar-se “associativos”. A enorme diferença depende da presença de outros que não são o analista. Assim sendo, se a associação “livre” constitui um desideratum que não se alcança nunca no dispositivo individual, já que as repressões e resistências operantes no sujeito o impedem, em um dispositivo grupal se agregam obstáculos, próprios da presença de um interlocutor que não é o analista. O analista no dispositivo freudiano funciona como um interlocutor muito especial, cujas ações se regem por postulados técnicos que aspiram a que interfira o menos possível na associação livre. Bien diz Kaës (2005 pag 43) “Toda la dificultad y toda la apuesta del proceso emprendido en la situación psicoanalítica de grupo está en que los otros 'responden', mientras que ese 'otro' que es el psicoanalista no responde, o no de la misma manera”. Cada dispositivo aproxima uma realidade que brinda diferentes possibilidades de operar psicanaliticamente e, por outra parte, a clínica, em cada
37. “Toda a dificuldade e toda a aposta do processo empreendido na situação psicanalítica de grupo está em que os outros “respondam”, enquanto que esse “outro”, que é o psicanalista, não responde, ou não da mesma maneira”.
Discurso conjunto, transferência intracasal, intervenção vincular. Conceitos distintivos da clínica com casais.
um dos dispositivos, aborda problemáticas específicas. No dispositivo de casal, o parceiro está presente com tudo o que isto implica no que diz respeito aos véus, ocultamentos, mentiras e manejos conscientes, mais ainda: para um parceiro que geralmente está em crise, a associação livre não funciona como tal, a transferência se desdobra de outra maneira, a regressão se apresenta de forma diferente do discurso conjunto e a produção grupal a que o clínico refere suas intervenções. Dado que este difere da associação livre, conduzir um tratamento de casal requer do analista não somente uma teorização e funcionamentos próprios, como também certa destreza em seu manejo clínico, este último da ordem da teckné. No discurso conjunto, o produzido por um, dá sentido ao produzido pelo outro, de modo tal que deve ser entendido como um produto de dois em todos os sentidos. Na associação livre, a manter aspiração de que o analista se eclipse o mais possível, aponta a intenção de que o verbalizado fique em aberto, privilegiando as determinações de um único participante, situação que – vale a pena repetir – é diferente no discurso conjunto. Aqui se trata de dois sujeitos, o que leva a um interjogo entre ambos, que dê origem a polarizações, equalizações e uma distribuição de papéis (“roles”) que aparecem frente aos olhos do analista. Também é frequente que apareçam repetições significantes e conteúdos ideativos similares nas palavras de ambos, ou pelo contrário, diferentes recortes hierárquicos. O analista pode identificar sequências repetitivas de abertura e fechamento, recaptulações, significantes privilegiadamente investidos por um ou ambos integrantes do vínculo. Aparecem malentendidos entre os parceiros que, segundo a situação clínica, serão trabalhados ou circularão como parte do mal-entendido permanente, próprio da comunicação entre humanos. O leitor poderá encontrar, no capítulo 4, algumas outras descrições das apresentações do discurso conjunto. Desenrolam-se, no lugar central, condutas destinadas a fazer com que o outro atue e provoque nele certo tipo de resposta. Estas induções – assim as denominamos – fazem com que, no discurso conjunto, ocupem um lugar protagonista, respostas que constituem uma reação à conduta do parceiro. As induções têm um papel importante na vida de casal e não oferecem, nos tratamentos individuais, a mesma possibilidade de expressão e de abordagem clínica. No discurso conjunto, no âmbito do vínculo e fora do princípio de realidade, aparecem, de forma muito mais evidente que na associação livre, argumentações inaceitáveis para o outro. (Exemplo: Ele: nós nos juntamos com a ideia de ter um filho. Esse foi nosso grande acordo. Ela: Não. Agora...o queres dizer com isso? Que vai sair com vinte meninas?). Também se fazem mais evidentes certas contradições entre forma e conteúdo como, por exem-
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plo, quando um sujeito reclama amor do outro agressivamente. Quando uma contradição se acompanha de uma lógica sem saída e, portanto, é prejudicial para o psiquismo, muitos autores falam de paradoxos. Um paradoxo frequente da situação amorosa é quando um parceiro diz a outro que não mude e, ao mesmo tempo, queixa-se da situação e diz que “assim não podem seguir”. O discurso conjunto mostra de forma mais evidente que a associação livre, os sinergismos, funcionamentos em que as argumentações ou fantasias de ambos parceiros se potencializam mutuamente em uma situação (exemplo: Nenhum de vocês inclui no que diz, como vocês podem haver sido afetados pela prisão de seu filho, e ao não falar do tema, cada um aumenta, no outro, a proibição de falar de uma questão fundamental). Algo similar ocorre quando ambos mostram déficits de simbolização referentes às mesmas questões (Exemplo: Nenhum de vocês levam em conta todos os aspectos afetivos que estão por trás dessas discussões por dinheiro, e o silêncio de um obriga o outro a não falar sobre a questão, ainda que sem dar-se conta). A consideração das fantasias e as interinfluências fantasmáticas no discurso conjunto permitem individualizar modelos recíprocos de fantasias, sinergias, antagonismos, ativações e desativações correlatas, fenômenos de convergência e divergêncial ligações significantes. Talvez uma das maiores especificidades do discurso conjunto é o lugar protagonista que nele ocupam as manifestações cênicas. Se Freud estava atento à linguagem não verbal, o que é explícito em seus registros e anotações no tratamento do “Homem dos ratos”, é válido dizer que o dispositivo freudiano tende a levar a expressão não verbal a um nível mínimo, de maneira quase inversa ao que ocorre no dispositivo de casal. É muito habitual que muitos parceiros elejam a linguagem gestual como principal meio de intercâmbio e que, numa sessão, o único que “diga” algo, seja um membro olhar a parede enquanto o outro fala. Neste contexto, os registros visuais do analista têm grande importância. A comparação do discurso conjunto e o jogo de uma criança em situação analítica pode ser interessante. Diz Winnicott (Realidad y Juego, pag 64): “[...] o jogar tem um lugar e um tempo. Não se encontra dentro, segundo concepção alguma desta palavra [...]. Tampouco está fora, é dizer, não forma parte[...] do não-eu”. Visto a partir de um parceiro, o discurso conjunto não pertence a um sujeito e tão pouco está fora dele, não lhe pertence mas tão pouco lhe é estranho. 38. Os processos anterior es são descritos em meu livro “Clínica psicanalítica com casais. Entre a teoria e a intervenção”. Editorial Lugar. Buenos Aires.2005.
Discurso conjunto, transferência intracasal, intervenção vincular. Conceitos distintivos da clínica com casais.
2. As transferências intracasais O conceito de transferência ocupa um lugar central na teoria e na prática psicanalítica. Laplanche e Pontalis dizem, em seu Dicionário, que este termo – na versão freudiana – designa o processo em virtude do qual os desejos inconscientes se atualizam sobre certos objetos, e que consiste em uma repetição de protótipos infantis, vivida com um marcado sentimento de atualidade. Assinalam também que é nesse terreno em que se desenrola a problemática da cura psicanalítica, caracterizando-se esta última pela instauração, modalidades, interpretações e resoluções da transferência. A transferência é, fundamentamente, o âmbito em que deve ser isolada a neurose, especialmente a neurose infantil, para ali dirigir o trabalho clínico e, mesmo que nesta questão tenha havido muitas confusões, não se dirige unicamente ao analista. Já no epílogo de Dora (1905), Freud esclarece que as transferências investem em qualquer personagem do mundo do paciente. A transferência ocupa um lugar central em nossa disciplina porque assinala o foco no qual se atualiza o desejo inconsciente, em sua maior intensidade, constituindo, assim, uma função que, em nenhuma circunstância, pode ser ignorada, na medida em que se constitui como uma bússola que marca um ponto que a interpretação deve obrigatoriamente ser considerada. A clínica psicanalítica é uma clínica em transferência e é por isto que Kaës diz (1994 pag.69) diz “es una verdadera dimensión epistemológica del psicoanálisis”. A transferência seleciona o que do desejo está em relação a um outro e observa-se e habilita-se, então, uma nova definição (Kaës 1994 pag 20): “Lo que especifica al vínculo de transferencia es que se necesita a otro extraño y familiar para que en uno mismo se libere y sea reconocida la extrañeza radical del inconciente.” No estudo do funcionamento psíquico em um conjunto plurissubjetivo, como é o casal, a aceitação dos conceitos de interdeterminação e das alianças inconscientes conduz-nos a propor o conceito de transferência intracasal. Chamamos assim às transferências em que um parceiro investe no outro, em que se modelam e se constituem, tanto em virtude do intrassubjetivo do sujeito, em que se origina a transferência, bem como em virtude das
39. “é uma verdadeira dimensão e pistemológica da psicanálise”. 40. “O que especifica o vínculo de transferência é que necessita de outro estranho e familiar para que em um momento libere-se e seja reconhecida a estranheza radical do inconsciente.”
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alianças inconscientes e da interdeterminação que opera no vínculo. Com efeito, a transferência a um outro, tal como descreve Freud, não considera a presença das alianças inconscientes, nem a interdeterminação; descreve, para usar uma metáfora mecânica, uma flecha – que ao ser convocado por um traço de objeto – vai até ele e investe, porém, sem sofrer em si mesma os efeitos transformadores decorrentes do fato de incrustar-se no seu alvo. Enquanto Freud descreve um eixo unidirecional, a transferência intracasal designa um suceder psíquico afetado pela interdeterminação e as alianças inconscientes. A transferência intracasal tem uma determinação bilateral de forma tal que as investidas transferenciais vão sendo modeladas pelas regulações que se estabelecem entre ambos polos e em ambos polos. A transferência intracasal, vale esclarecer, não é do vínculo, já que, em nossa terminologia não dizemos que um grupo ou um vínculo é “transferencial”, a transferência intracasal é de cada um dos parceiros para o outro, mas está também determinada pelo outro e o intersubjetivo. Trata-se de uma teorização da transferência que leva em consideração a interdeterminação e as alianças e que inclui as contribuições da perspectiva intersubjetiva. Quando se produz uma crise de casal, mais além dos conteúdos manifestos que apareçam, uma situação habitual é que as transferências intracasal, que até o momento tinha um signo totalmente positivo, adquire um signo totalmente negativo. A forma como um analista pode ajudar, sem adentrar nos caminhos da sugestão ou do aplacamento, é produzindo insight sobre as transferências que unem ambos parceiros, de tal modo que os mecanismos próprios do princípio do prazer – já que tomam o viés da idealização ou da censura – cedam lugar a funcionamentos mais próximos ao princípio da realidade, a respeito de quem é, o que faz e o que se passa em cada um consigo mesmo e com o outro. A vantagem de um dispositivo vincular, como foi dito, é habilitar uma diferente – e muitas vezes melhor – expressão e abordagem do intersubjetivo e, portanto, das transferênciais intracasal. A transferência intracasal se expressa insuficientemente em muitos tratamentos individuais devido à ausência de parceiro no dispositivo. Na associação livre, de fato, se amortiza a expressão da interação com o parceiro e, ao mesmo tempo, as cisões e desmentidas do analisante não encontram os impedimentos ao seu desenvolvimento, que encontram no discurso conjunto. Ao desdobrar-se, no dispositivo de casal, as transferências intracasal também aparecem sobredeterminadas pela presença do analista, por mais que este procure eclipsar-se. Ocorrem fenômenos de redistribuição e reordenamento, que incluem processos de desdobramento da transferência entre o parceiro e o analista mas, no habitual, o analista não é o objeto prefe-
Discurso conjunto, transferência intracasal, intervenção vincular. Conceitos distintivos da clínica com casais.
rente da transferência nos tratamentos de casal. Contudo, a transferência intracasal – quer dizer com o parceiro - não elimina a transferência com o analista e esta jamais pode ser deixada de lado ou desconsiderada, mas, ainda mais, se recordarmos que a transferência não se configura unicamente como repetição, mas sim como descobrimento e invenção de modos de elaboração do conflito original. Com efeito, nos tratamentos de casal, a relação com o analista oferece – e são de grande utilidade clínica – modos de funcionamentos alternativos aos estereótipos em que geralmente ficam atoladas as transferências intracasal nas crises.
3. Intervenções vinculares. O processo de mudança O processo de mudança psíquica, nos tratamentos de casal, segue caminhos diferentes dos que transitam nas análises individuais. Nestes últimos, a associação livre do analisante, permite estabelecer a transferência a ser trabalhada em sessão e, do trabalho sobre esta, esperam-se os resultados mais significativos quanto à mudança psíquica. A interpretação do que aparece na transferência revela os funcionamentos inconscientes que, ao fazerem-se conscientes, habilitam as trocas subjetivas. A situação é outra em um tratamento de casal, em que a proposta é um trabalho psíquico com diferente viés – analisar problemas da relação – e aos parceiros propõe trabalhar as questões entre eles. O que resulta é uma interdiscursividade, o discurso conjunto, que possibilita uma abordagem privilegiada das transferências intracasal. As outras formas de transferência estão presentes e, obviamente, têm efeitos, mas se desenvolvem de maneira muito mais limitada. O trabalho clínico no intersubjetivo – interdeterminação, alianças inconscientes, transferências intracasal – se realiza graças à utilização de intervenções vinculares. Estas – a diferentemente da interpretação freudiana – não se dirigem a um sujeito ou a um aparelho psíquico individual, mas sim aos dos sujeitos e tentam esclarecer, no devido timing, as transferências intracasal e os funcionamentos responsáveis do sofrimento, considerandoos como construídos por ambos. A intenção de mudança aponta processos psíquicos em que participam ambos sujeitos. Uma forma habitual de intervenção vincular é dizer-lhes que “quando você faz isso, que para você é sem consequências, não te dás conta de que a ele/ela, produz o efeito de responder
41. Um estudo mais pormenorizado das intervenções vinculares pode encontrar-se em meu livro “Clínica psicanalítica com casais. Entre a teoria e a intervenção”. Editorial Lugar. Buenos Aires. 2005
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assim. Por outra parte, quando você responde assim, não se dá conta de que a ele/ela produz isto... Depois resulta que os dois, não se sabe como, sofrem por encontrar-se com um vínculo de tal e qual características...” Assim, como no horizonte de uma interpretação freudiana, opera sempre uma teoria de conflito e a defesa intrassubjetiva, assim também pode-se dizer que, no horizonte de uma intervenção vincular, opera – mais além da forma que adote – uma teoria da interdeterminação, das alianças inconscientes e das transferências intracasal. O essencial da intervenção vincular é a consideração do intersubjetivo como o ator principal do funcionamento em jogo, e o que se prioriza na formulação é o intersubjetivo, já que isto é o que justifica a utilização de um dispositivo vincular. Ao mesmo tempo em que também se leva em conta a articulação entre os funcionamentos intrassubjetivos e os intersubjetivos. Observe-se que, em nenhum sentido, desconsiderava-se o intrassubjetivo, postura insustentável em uma aproximação psicanalítica. Não pode haver um adequado conhecimento do intersubjetivo e é perdido de vista o intrassubjetivo, e vice-versa. A mudança psíquica que aponta a intervenção vincular – como já se disse – engloba ambos parceiros. Neste sentido, a proposta é inversa à tendência de muitos pacientes que realizaram tratamentos individuais e que tendem a reduzir tudo ao intrassubjetivo. “Isso não é meu problema”, “Eu me ocupo do meu, você se ocupa do seu”, são todas frases que, se podem ter muito de certo, também podem estar a serviço de desmentir ou negar o intersubjetivo, atitude que tem, às vezes, promovido tratamentos individuais malorientados.
4. Sobre o trabalho do analista no dispositivo de casal Os funcionamentos intersubjetivos e o trabalho em dispositivos vinculares criam problemas diferentes dos que se criam num dispositivo individual. Assim como há analistas que têm muita perspicácia para captar crianças ou adolescentes, há os que têm agudeza em captar o intersubjetivo. Existem as aptidões pessoais e, por isso, a penetração de cada analista é diferente nos distintos enquadres ou práticas clínicas. Entre as particularidades do trabalho clínico com casais, cabe assinalar, em primeiro lugar, como elementos fundamentais, tanto o olhar entre os parceiros como o olhar do analista, o que faz a cena e o visual. Assim o termo escuta pareceria não ser de todo adequado, por desconhecer esta diferença com o dispositivo individual.
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Quanto à disposição interna, Freud propõe que o analista, no momento da clínica, deixe de lado seus conhecimentos teóricos em nível consciente e adote a posição que chama de atenção flutuante. Piera Aulagnier efetua uma modificação à proposta freudiana e fala de teorização flutuante. Apesar de ambos proporem uma certa atenção flutuante em sessão, Aulagnier pensa que as referências teóricas pesam de uma maneira mais protagônica que a sugerida por Freud em suas descrições da atenção flutuante, em minha opinião, o conceito de Aulagnier descreve melhor o que sucede na sessão vincular. Falar de “teorização” flutuante não significa, em nenhum sentido, negar o valor do aspecto pessoal, do trabalho do analista, que, talvez, a palavra “atenção” aluda melhor que o termo “teorização”. As referências que operam no analista são dos dois tipos: teóricos e pessoais. É certo que os analistas das mesmas escolas geralmente dizem coisas parecidas – o que demonstra a operatividade das referências teóricas – como é também certo que dois analistas não dizem nunca o mesmo, ainda que suas referências teóricas sejam muito similares – o que demonstra a operatividade do fator pessoal. O analista não opera num campo neutro, nem é um personagem neutro, está sempre implicado, por isso não há, em nossa prática, analistas “aéticos”, e “não implicados”, bem como não há “apolíticos” entre homens e mulheres que vivem em sociedade. Por exemplo, em qualquer situação de divórcio, há diferentes posturas de como proceder com os filhos pequenos e o mesmo ocorre se um dos parceiros tem uma enfermidade física. No trabalho clínico a subjetividade do analista pesa em todos os sentidos: suas ideologias pessoais e políticas, suas necessidades laborais, seus pertencimentos institucionais, suas últimas leituras, sua experiência de vida. A respeito destas experiências, para que interfiram negativamente o menos possível, como diria Castoriadis, o melhor que se pode fazer é elucidá-las: saber o que se pensa para pensar o que se faz. Negar a problemática valorativa equivale a mistificar o trabalho do psicanalista. O trabalho clínico em dispositivos vinculares, geralmente demonstra isso de forma mais evidente que no dispositivo individual, porque há conflito de interesses entre os sujeitos, o que obriga o analista a opções éticas. O tratamento de casal deve em princípio ser fiel à intenção que subjaz à regra de abstinência. A terapia – e isso é válido para a totalidade dos dispositivos e, ainda mais, nas problemáticas neuróticas - deve ser dirigida de tal forma que o analisante encontre o mínimo possível de satisfações substitutivas de seus sintomas na relação com o analista, que não deve satisfazer as demandas do paciente nem desempenhar os papéis que este tende a imporlhe. De outra maneira, se distorce o sentido do tratamento.
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O analista deve, em princípio, evitar todo tipo de prescrição ou atitude pedagógica, limitar-se a pensar sobre a conflitiva que traz o casal e vale, no começo, certa cautela nas decisões como propôs Freud. Mas há situações que devem modificar esta postura básica: * A violência: Quando um dos polos a exerce em detrimento do outro, que está em inferioridade de condições, o analista deve tentar evitar relações abusivas. Claro que terá que diferenciar entre as relações abusivas e as sadomasoquistas, em que o gozo da “vítima” configura uma situação de outro tipo. * O desamparo: quando o casal está em crises e um polo está em uma situação de desamparo egoico, deve tentar sair o menos prejudicado possível da situação e, se for possivel, gerar um lapso de tempo para fortalecer-se. A espera de um pode ir em prejuízo dos desejos do outro e, nestes casos, cabe pesar duas posturas diferentes: deve-se propiciar ajuda aos mais fracos e darlhes um tempo, mas é lícito, muitas vezes, que o membro forte não possa ou não queira sustentar o fraco e levá-lo como uma carga. * Quando há filhos pequenos em jogo, as questões são muito mais complexas. O conceito com o qual manejo é o de paternidade/maternidade responsável, introjeção que deve ser elaborada nos tratamentos. Paternidade ou maternidade responsáveis significam que os sujeitos têm responsabilidade sobre os seres que trouxeram ao mundo em uma série de questões, que vão variando segundo idades e circunstâncias. Às vezes, as crises de casal apresentam situações nas quais qualquer solução envolve algum dano para um parceiro desamparado e/ou para um filho sem autonomia. As coisas não só vão terminar mal, como todas as bússolas do analista explodem. A questão que se apresenta então, tanto num dispositivo individual como em um vincular, é qual a ética que sustenta nossa prática, e em que valores apostamos. Minha ideia é que se deve ver caso a caso e as ideias diretrizes gerais, da ética do analista ainda falta escrever. Mas me parece evidente que o trabalho em dispositivos vinculares nunca levaria a afirmações como as de Bion, de escutar sem memória e sem desejo, ou afirmações como a de Lacan, quando sustenta que, de um ponto de vista analítico, o único de que se pode ser culpado, é de haver cedido em seu desejo. A mim parece que, quando os que consultam são dois ou uma família, as coisas são muito complexas e se torna evidente que não podem resolver-se com conceitos como os de “neutralidade”, o analista “tela”, ou o analista como “morto”. Estas posturas não resolvem estas problemáticas complexas. Tão pouco me convence pensar uma ética “desde o ponto de vista analítico” na qual se localize o desejo do sujeito em uma sorte de ápice absoluto, em uma espécie de cúspide absoluta, em detrimento de todas as
Discurso conjunto, transferência intracasal, intervenção vincular. Conceitos distintivos da clínica com casais.
outras referências que ordenam uma situação. Por último, em muitas situações, deve-se construir a posição ética em um intercâmbio interdisciplinário que faça luz sobre questões que excedem a nossa disciplina.
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IV O casal, no mais aqui do inconsciente. A superfície do discurso conjunto.
Nas diferentes práticas analíticas, um dos primeiros requisitos que o analista formula a si mesmo é fazer uma ideia do que Freud – em seu modelo das catáfilas de cebola – chamava a superfície psíquica. Trata-se de, provisoriamente, agrupar alguns problemas e temas, ir orientando-se a respeito de conflitos e questões que aparecem nas palavras dos consultantes, esboçar uma ideia sobre sua lógica interna, suas referênciais e suas inconsistências. Nesta tarefa, que pode ou não traduzir-se em alguma comunicação aos pacientes, são muitas as teorias que brindam elementos para possíveis leituras, assim como também brinda elementos da experiência de vida. O analista pode apoiar-se em um conceito freudiano como ocorre, por exemplo, quando se mostra a um cônjugue que realiza um deslocamento ou uma anulação (por exemplo, acaba de morrer um ser muito querido para ele, mas somente aparece angústia por um detalhe mínimo). A leitura pode tomar elementos da chamada teoria da comunicação e dizer a um cônjuge que ele afirma que “não faz nada nem diz nada, mas que sempre se faz algo (sempre se comunica algo) e que não falar é dizer muito”. Baseando-se nos conceitos do cognitivismo que desenvolveu A. Beck, pode-se dizer a um cônjuge que seu modo de generalizar dissolve a importância do tema que se está tratando. Porém, se trabalhamos a partir de uma perspectiva psicanalítica, as formações de superfície transitórias a que se recorre em virtude da cultura, o estilo e a experiência de vida do analista, localizam-se ad referendum da referência principal, que é o marco teórico do psicanalista. Neste capítulo, então, descreveram-se algumas formas típicas com que o analista de casal se encontra em suas primeiras aproximações ao discurso conjunto. Descrever e reconhecer estas formas de superfície ajuda na elucidação do material clínico, mas não esclarece as muitas e fundamentais questões que estão mais além da superfície psíquica.
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Capítulo IV
1. Algumas interações típicas A figura que toma a interação – entendendo por interação as posições que ambos membros assumem no discurso conjunto considerado na superfície psíquica – podem ser infinitas e seu estudo realiza-se a partir de perspectivas muito diversas. O que se define como “interação” não requer para sua descrição e explicação da hipótese do inconsciente tal como se teoriza em psicanálise: chego a considerar que nas interações há níveis explícitos e níveis implícitos. As formas que se descreverão a seguir são especialmente úteis para pensar os casais e suas crises e, como as figuras em retórica em parte se superpõem, ao mesmo tempo que cada uma pode ser pensada como uma combinação das outras também, de modo que não há uma fronteira nítida entre as diferentes modalidades de interação que são expostas. Os níveis implícitos e inconscientes que subjazem a estas formas de superfície são variáveis e devem ser diagnosticadas caso a caso, tanto no nível intra como no nível inter com as interdeterminações e as alianças inconscientes que os caracterizem em cada caso singular.
1.1. Polarização: É frequente que a interação leve a posições de antagonismo extremo. Ocorre, então, que, porque ela é gastadora, ele assume uma sorte de fanatismo por economia; ou porque ele é muito sociável, ela assume uma posição de negar-se a ver amigos e a relacionar-se com pessoas. Às vezes é útil, aos casais com este tipo de distribuição de papéis, mostrar-lhes como, nesse modo de funcionamento, ambos perdem algo de sua autêntica maneira de ser e terminam em uma forma de identidade "reativa" distorcida. Na base de muitas polarizações, geralmente há uma secreta atração não reconhecida, na qual o outro tem posse daquilo de que carece e, em parte, deseja, lógica da incompletude. No caso que se descreve, no capítulo XII, Pablo é extremamente organizado e Claudine desorganizada e com tendência à anarquia. Nela predominam funcionamentos anais da série expulsiva, nele os da série de controle e de contenção. A polarização assume os extremos antagônicos de um único eixo de funcionamento anal que nele opera reprimida, a atração recíproca (e obviamente a rivalidade fálica). A polarização na interação pode sustentar-se em mecanismos de desmentida ou de repressão e em alianças inconscientes de diferentes tipos. Há menos possibilidades de mudanças psíquicas quando se trata de desmentidas ou funcionamentos da ordem da perversão, ou ainda quando está em jogo uma rigidez narcisista extrema. Outro fator que pode diminuir as pos-
O casal, no mais aqui do inconsciente. A superfície do discurso conjunto.
sibilidades de trocas de algumas polarizações quando formam parte de alianças inconscientes fundantes que armaram uma espécie de “identidade” imodificável de casal.
1.2. Magnificação: Em muitos conflitos de casal constitui um componente relevante em um ou em ambos sujeitos a magnificação entendida como um processo que tende a levar ao máximo absoluto as qualidades e o valor de um elemento isolado. Tal como se entende neste texto, a magnificação é um funcionamento que corresponde ao que outros autores chamam de maximização (que inclui a contrapartida obrigatória de minimização). No inconsciente, geralmente corresponde a processos de idealização e apoia-se em mecanismos de repressão, desmentida e/ou em alguma outra forma de exclusão. No intersubjetivo, apoia-se em diferentes tipos de alianças inconscientes e configura uma interdeterminação típica. Trabalhar clinicamente sobre magnificações requer tempo e vai na contramão no que diza respeito ao enamoramento fundante. Mas, se não se sai da idealização rígida, é impossível abrir espaço ao trabalho de luto (“ele poderia fazer-me feliz”, “se ela quisesse, tudo isto não ocorria”). A censura, em excesso, nos diz que é uma forma de magnificação. Quando a magnificação adquire bordas exageradas e qualidades delirantes para o sentido comum, socialmente aceito, alguns autores falam de mistificação e se configuram situações clínicas que ilustram, porque a patologia do narcisismo tem sido relacionada por tantos autores com a patologia psicótica. Para dizê-lo coloquialmente, as magnificações rígidas correspondem às problemáticas narcisistas e evidenciam que quando o narcisismo se agiganta e espessa, aproxima-se perigosamente à psicose. As idealizações rígidas próprias das psicose correspondem, entre outras coisas, a lutos narcisistas que não puderam ser elaborados.
1.3. A Pseudocomplementariedade ou identidade pseudocomplementar: Deve-se entender como uma complementariedade fictícia e constitui um funcionamento que aspira supostamente, a satisfazer ao outro. Algo disto acontece sempre em todo casal, mas a pseudocomplementariedade implica um modo de funcionamento limitante e apoiado em um falso self, por exemplo, o de uma criança que se sobreadapta para satisfazer a seus pais. No caso dos casais, os casos mais acentuados desta falsa complementarieda-
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de configuram as variedades de submetimento, hetero ou auto induzido e a pseudocomplementariedade aparece como um modo de evitar conflitos. Um exemplo habitual é aquele das mulheres que, apesar de estar assoberbadas pelas crianças pequenas, não podem solicitar uma maior colaboração do esposo na criação, porque estão presas a um ideal sustentado bidireccionalmente com o marido. São vítimas da pseudocomplementariedade em que vivem com a consequente frustração e rancor na relação. A pseudocomplementariedade se apresenta com frequência nas personalidades histéricas que buscam satisfazer o desejo do parceiro e perdem de vista o seu próprio.
1.4. Discordância conteúdo/relação: Configura-se quando circula um tipo específico de mensagens contraditórias no discurso conjunto. Com efeito, como demonstram Watzlawick e os teóricos da comunicação, um intercâmbio referido a certo conteúdo, a qualquer que seja, contém também uma mensagem relativa à relação entre os que interagem. Há então, dois níveis lógicos distintos em um diálogo e, em realidade, muitos outros mais que devem ser considerados para entender o que se passa com um casal. Contudo, restringindo-os à relação e conteúdo, diz Watzlawick que “toda comunicação tem uma dimensão de conteúdo e outra de relação, de modo que a segunda classifica a primeira e é, por conseguinte, uma metacomunicação”. “Metacomunicação” quer dizer que constitui uma comunicação, constitui-se sobre algo “meta” ou seja “mais além” do conteúdo em jogo no diálogo. É frequente que no casal um membro tenha consciência de uma das mensagens que circula em um nível, mas que desconheça que o parceiro está processando o que foi dito em outro nível. Esta discordância gera muitas discussões e brigas porque, por exemplo, o que um membro assinala como violento, o outro o desconhece como tal e os dois têm fundadas razões para sentir o que sentem. Explicitar a existência destes dois níveis de informação e esclarecer o que está acontecendo pode aliviar tensões. Manuel está deprimido por problemas de trabalho e Nora é muito sensível às manifestações de afeto que circulam entre eles. Nora: Ontem chegou de viagem e trouxe uns presentes muito lindos para os meninos e para mim, mas chegou em casa ao meio-dia e não teve um gesto de afeto em toda a tarde.
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Manuel: Estávamos falando mas não tivemos sexo. Nora: Antes não era assim, o mais importante era a ternura entre nós. Manuel: (falando ao terapeuta) às sete da noite me disse que não queria que eu dormisse em casa e nem em sua cama. Eu não entendia nada. Para Nora, o fato de não terem tido sexo configura na relação uma mensagem de desamor e menosprezo, ainda reconheça que, no explicito, não havia agressão, frente à mensagem que ela interpreta como de desamor, responde com uma represalia. Para Manuel, o que entendia era que haver trazido presentes era falar. Está deprimido e não registra as mensagens de desconexão e desinteresse que emite. A reação de Nora lhe parece de uma violência injustificável e sente-se muito rancoroso. As discussões derivadas da discordância entre a mensagem de conteúdo e a relação são muito frequentes nos casais. Um paciente, em uma sessão de análise individual, relata o seguinte: Estava em casa, meio melancólico, caminhando no living e de repente minha mulher me disse: “Agora vais caminhar sempre assim, arrastando os pés?” (reproduz as palavras da mulher em um tom ofensivo e depreciativo). Eu primeiro não lhe disse nada, mas depois, quando me preguntou se havia cortado a grama do jardim, não lhe contestei. Ela não sei o que me disse e terminamos aos gritos. Disse-lhe que eu caminhava como me desse vontade, que ela estava gorda e eu não lhe dizia nada. ¡Para que!! A interpretação do analista foi recordar a paciente de que ele mesmo há duas semanas havia falado de sua preocupação em como estava caminhando, vinculando-o com a depressão que padecia e o preocupava. Ou seja, que talvez o que lhe havia molestado em sua mulher não era tanto o conteúdo senão o tom em que ela disse o que disse. O conflito devia entender-se no nível relacional, não no do conteúdo.
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1.5. Discordância verbal / gestual: Configura-se ao emitir-se diferentes mensagens pelos meios verbais (palavras) e os gestuais (expressão facial, postura corporal, ritmo respiratório, tono muscular, tono de voz, gesticulação). Serve para entender um grande número de brigas do casal. Cristóbal: ... Silvana teve que prover-se devido situação muito complicada, que era prender-se com um tipo viúvo com três filhos grandes que estavam com ele e toda essa história que vinha comigo, e todos esses filhos grandes e tudo o que implica como rejeição ao novo casal, procurou... não? sempre havia algumas situações que aparentemente não são de rejeição, mas atitudes antipáticas e Silvana triunfou, verdadeiramente triunfou... Silvana: Não sei… (com tom de fadiga e cansaço) Cristóbal: Creio que isso explica exatamente o que é que nos acontece, creio que é perfeita... a representação... são histórias que para nós são muito importantes e nos marcaram a fogo. O terapeuta não entende a que se refere Cristóbal, que muitas vezes tem discurso inconsistente e confuso. Silvana não se opõe explicitamente, mas o tom é de oposição implícita. Cristóbal explicitamente participa e opina, mas implicitamente suas palavras demonstram desconexão. A conversação entre ambos segue assim por longo tempo. A linguagem gestual de Silvana –fatigada e, às vezes, provocadora– expressa algo que não coincide com o conteúdo de suas palavras. A linguagem de Cristobal tem uma fachada de abundante informação e interesse e um fundo de confusão e não conexão. Formam um casal com explosões periódicas de muita violência. Analista (depois de um tempo): Olhem, eu não me dou conta do que estão falando, não entendo bem o que diz Cristóbal nem entendo o silêncio de Silvana, mas me dou conta que pelos gestos, Cristóbal não convence Silvana com o que diz, enquanto Cristóbal fala e fala, sem registrar o que passa com Silvana. É possível que se o diálogo siga assim, em um momento uma explosão vai irromper entre
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vocês, como contam que acontece em sua casa quando, sem saber por que, de repente se instala uma guerra aparentemente do nada.
1.6. Mal-entendido ou ilusão de entendimento: Uma situação frequente na vida de casal configura-se quando ambos acreditam estar de acordo, mas não estavam e pensavam estar em uma situação de entendimento total. Suponho que isto ocorra em muitíssimas situações da vida, mas a relação se transforma em um inferno quando o narcisismo em jogo impede as readequações necessárias. Coca pensava que para Ernesto era muito importante reconstruir uma vida de família, mas que ele era muito acomodado e não era capaz de fazer os esforços necessários. Ernesto pensava que Coca teria muito interesse nele mas se distraía excessivamente nas questões da família e nas confusões que atrasem as relações entre os diferentes filhos. Havia uma ilusão de entendimento sobre os interesses centrais que eram diferentes em ambos. Para ela, o que era central era reconstruir uma família e, para ele, o central era uma vida de casal. Sobrevivem uma crise e se produz entre eles este diálogo em sessão: Coca: nós estamos em uma crise, há mais ou menos um ano, uma crise verbalizada. Ernesto em 1990 teve uma pneumonia foi quando apareceu sua inquietude de separar-se, eu aí descobri que eu não tinha em Ernesto o lugar que queria ter. Bom, desde ali até agora eu mudei, e agora peço outras coisas para seguirmos juntos; antes era eu que administrava a estrutura familiar, que é uma estrutura familiar grande, cada um de nós tem 2 matrimônios e cada um de nós tem 2 filhos em cada matrimônio, ou seja 4 no total. Eu comecei tudo isto com a ideia de que seria o casal definitivo, de formar, por fim, uma família. Ernesto: Bom, como teria que ser nestes casos, eu não estou de acordo; estou de acordo com os dados, mas por isso mesmo eu acreditava que o casal teria que ser muito especial, com a história que trazemos, Coca, no princípio, era
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quem apressava, eu lhe dizia para seguirmos tranquilos; sou cético, eu, na realidade, não sei se estou de acordo com tudo o que tenho que mudar e tão pouco sei se, na realidade, quero mudar. Além do mais, falamos idiomas diferentes, temos idiomas diferentes, para mim, a convivência sempre pareceu um problema. Eu lhe dizia para não convivermos, mas, talvez, sem a devida ênfase, me parecia que ia perdê-la se o dissesse demasiado… Eu lhe dizia para não casarmos, seguir juntos mas cada um vivendo em sua casa.
1.7. A esterilização da palavra: Aparece quando os sujeitos utilizam a linguagem como um recurso de defesa ou ataque automático. Não prestam atenção como deviam ao conteúdo do que se dizem e, na briga, utilizam a linguagem como uma arma de guerra mais do que um instrumento de pensamento; o objetivo é causar alguma dor ou provocar certa reação. A ideologia que, às vezes, é subjacente neste tipo de funcionamentos, é a de que o casal é um feito da natureza, de modo tal que não existe divórcio e se pode evacuar/falar sem cuidado pelo conteúdo em jogo. Em uma dinâmica deste tipo, ao não produzir-se uma mudança, torna-se praticamente impossível uma terapia analítica, dada a utilização que, em psicanálise, se faz da palavra. Um exemplo pode aclarar a ideia: Alejandra fez, com o cartão de crédito, um gasto excessivo para os pressupostos do casal. Emanuel: Como pode ser que tenhas gastado essa soma de dinheiro, uma soma que não temos? Alejandra: Você faz o mesmo. Emanuel: Quando fiz o mesmo? Alejandra: Sempre. Emanuel: Diga-me uma vez… Alejandra: (com indignação) Por favor! O diálogo assim iniciado segue um tempo curto, não tem nenhuma possibilidade de contribuir com algo, à exceção de que Alejandra deixe de falar com devoluções automáticas. É conveniente que a intervenção do analista se refira à forma, sem referir-se ao conteúdo, e que assinale a esterilidade de um diálogo assim iniciado, mas, obviamente, há alta possibilidade de
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as de Emanuel. No que se refere a Emanuel, a intervenção deve referir-se a funcionamentos diferentes da esterilização da palavra. Outro exemplo de esterilização da palavra pode encontrar-se no discurso de Cristóbal que foi referido ao falar de discordância verbal/gestual.
1.8. A confirmação e a desconfirmação: Designam o funcionamento através do qual um outro reconhece ou desconhece como autêntico algum modo de ser de um sujeito, atribuindose, sobre este, um lugar de autoridade. A desconfirmação consiste em negar como válida uma forma legítima de ser do outro; a confirmação adapta a forma de uma corroboração ativa a um falso self, de modo tal que, aquele cujo falso self é confirmado e seu self próprio desconfirmado, se vê colocado na posição de sentir culpa, vergonha ou angústia se não funciona da maneira falsa que se lhe exige, tanto no que chamamos confirmação como no que chamamos desconfirmação, promove-se, então, a alienação. “Confirmar” algum aspecto de alguém quer dizer a decisão sobre quem é e o que pensa, enquanto que “desconfirmá-lo” pressupõe que o outro seja transparente para ele, que se arroga o poder de desconfirmação. Celina: estou muito cansada com as duas nenês, me dão muito trabalho, não tenho ajuda. Pedro: mas as nenês estão divinas, se vê a diferença com outras nenês que estão sem a mãe. Celina: Não digo não estar com elas, mas necessitaria alguma ajuda. Pedro (o terapeuta): Eu sei que no fundo ela está orgulhosa de como estão crescendo nossas filhas… Pedro desconfirma as propostas de Celina, em uma espécie de espiral crescente de negações. Desconfirma o cansaço de Celina e o que ela denuncia de sua necessidade de ajuda e de sua realidade pessoal. Como tão bem propõe P. Aulagnier ao estudar os estados de alienação, os processos de confirmação e desconfirmação no casal não devem ser vistos como resultantes da interação entre uma vítima e um carrasco, mas sim pensar que, na suposta vítima, opera, em algum grau, o que Aulagnier chama de o desejo de auto-alienação. Ao contrário, na clínica com crianças, a situação merece outra perspectiva de análise.
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1.9. A conspiração : É um acordo entre duas pessoas que se enganam a si mesmas e têm como base um conglomerado de alianças inconscientes. Uma característica essencial deste jogo é não admitir o que é, ou seja, por um lado estar reprimido e por outro conscientemente rejeitado. Os exemplos no matrimônio são frequentes: o matrimônio “perfeito” é um dos mais comuns. A conspiração requer pseudocomplementariedade e confirmação dos respectivos falsos self, que se superpõem, em parte, à ilusão, na qual, como diferença, geralmente, há uma menor participação das confirmações recíprocas dos falsos self. Em realidade, ambas têm sido descritas por diferentes autores e se superpõem em certos aspectos, enquanto que, em outros, têm diferentes matizes.
1.10. A ilusão: É uma variedade de técnica evitativa –inicialmente descrita por Laing (1961) – em que o conflito não é enfrentado e se substitui a realidade desagradável por outra, algo assim como tapar com um quadro uma mancha na parede. Se ilude o conflito, opondo uma realidade à outra, transforma-se um processo do eu em outro processo de maneira deliberada e inicialmente consciente, uma mescla de autoengano e evitação. Por exemplo: Juana está casada com Pedro. Mas não quer estar casada com ele e tem muito medo de deixálo. De modo que segue com Pedro, mas imagina não estar casada com ele. A ilusão é um modo de funcionamento habitual dos pais frente à conduta dos filhos que não sabem como encarar, como, por exemplo, a adição. No caso do matrimônio dos Fisterra, ao falar de Mario, a mãe referia que o pai não tem relação com o filho e o pai se referia a como o filho era idealista e sonhador. Em uma crise em que devia entrevistar Mario, o terapeuta se inteirou que cultivava marijuana em vasos especiais, de cuja colheita fumava três cigarros por dia e se declarava participante da cultura canabis. Era um adicto irrecuperável e deteriorado, mas os pais jamais mencionavam sua adição. A ilusão é um funcionamento que se sustenta no intersubjetivo, mediante alianças inconscientes e funcionamentos intra, geralmente da ordem da desmentida e/ou repressão.
1.11. Deposição: A Deposição (Pichon-Rivière; 1995) geralmente ocorre que um membro assuma 100% da responsabilidade explícita por algum funcionamento,
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enquanto o outro não assume nenhuma responsabilidade explícita psíquica pelo conflito em questão (“é seu”). Este tipo de situações clínicas se vê frequentemente nas disfunções sexuais. Ele, por exemplo, tem episódios periódicos de impotência, cuja responsabilidade assume totalmente. Ao ficar a responsabilidade totalmente depositada nele, não se vê o quanto ela contribui com medos, frieza, insegurança e outros tipos de condutas. Quando ele começa a melhorar de sua impotência, é típico que apareçam problemas nela. Em outros casos, a mulher é frígida e “sempre” teve esse problema, mas quando ela começa a melhorar, ele começa a ter quadros de ejaculação precoce… Na abordagem destas situações, pode ser útil mostrar que não se trata de culpas nem de defeitos individuais exclusivamente, mas sim de problemas em cuja gênesis contribuem os dois, ou seja, é incluir na psique dos pacientes uma perspectiva vincular. Os depósitos configuram um tipo de projeção rígida que no, inconsciente, podem corresponder a diferentes funcionamentos tanto de ordem neurótica como perversa ou psicótica.
1.12. Posição insustentável A posição insustentável define-se como tal desde o ponto de vista existencial e pode ser induzida pelo próprio eu ou por outros. A inautenticidade nunca é sem efeitos. Um caso habitual é aquele em que os pais que põem os filhos em lugares impossíveis como por exemplo, salvar o matrimônio deles. Quando se age apartir de uma posição insustentável, as percepções sobre o que acontece fica de tal forma comprometida, que o vivido fica distorcido tendo em vista a necessidade de sustentar o insustentável e, poder, assim, burlar o princípio da realidade de forma flagrante.
2. Da interação ao inconsciente A análise das formas de interação vai encaminhando o trabalho sobre os diferentes sentidos libidinais do vivido e avança até funcionamentos menos evidentes e inconscientes: as bagagens identificatórias e as conflitivas edípicas, os diferentes universos valorativos e semânticos, as formas da interdeterminação e as alianças inconscientes. Diz Lemaire (1979, pag. 262): “La tarea clínica [...] consiste antes que nada en clarificar los mensajes y comparar los sentidos diferentes que ellos tienen para uno y otro integrante...” Um dos objetivos do trabalho 42. “A tarefa clínica [...] consiste ante s de mais nada em clarificar a s mensagens e comparar os sentidos diferentes que eles tem para um e outro integrante...”.
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psicanalítico, então, é clarificar mensagens e comparar os diferentes sentidos que adquirem para um e para outro. Esta tarefa consiste fundamentalmente em resgatar os sujeitos das significações que as crises alimentam: persecutórias, estereotipadas, autorreferidas, defensivas no sentido mais distorcido do termo e a processar as mensagens num modo mais próximo ao princípio de realidade e menos regido pelo princípio do prazer. Contudo, nesta tarefa de clarificar as mensagens, deve-se levar em conta que, no casal humano, a dinâmica que opera no encontro não é a da ordem que circula entre o científico e suas perguntas. Em seu funcionamento psíquico, os casais não funcionam como uma mente que detecta um interrogante e tenta aclará-lo com objetividade. Os parceiros não se propõem a ser objetivos, nem científicos, nem tão pouco conformar o que Bion chamava de um grupo de trabalho. Pelo contrário, as atribuições de sentido geralmente estão marcadas pelo narcisismo de cada polo e pelas ansiedades que os afligem –independente do tipo que sejam– e o mesmo vale para a mensagem devolvida. A linguagem do casal é libidinal e faz parte do circuito libidinal a presunção – frequentemente a certeza - de conhecer o outro (“Eu te conheço, eu sei porquê fazes isto”) e ser “objetivo”, “ter razão”. Neste trabalho clínico, que em ocasiões se configura como um labirinto, podem detectar-se funcionamentos mais próximos ao princípio do prazer ou mais próximo ao princípio da realidade. O analista unicamente pode trabalhar nesta última direção, embora esta não seja uma garantia de atração e, além disso, pode ir contra as características do enamoramento. Podemos, em nossa defesa, afirmar que não vamos contra o amor, mas não podemos ignorar que, na bússola do analista, a atração libidinal não é o norte a ultrapassar, mas geralmente costuma ser para muitos casais. Quando o trabalho clínico avança, o casal vai assumindo a dolorosa realidade de que tudo tem um significado em parte diferente para ambos. Dolorosa realidade que tanto vai contra as ilusões fusionais do enamoramento como abre possibilidades a um casal mais apoiado no reconhecimento à singularidade do outro, o que caracteriza o amor e o trabalho psíquico que este implica.
3. O que os parceiros chamam de “comunicação” Enquanto o analista se centra em trabalhar os distintos sentidos que as diferentes questões adquirem para cada parceiro e, mais ainda, a impossibilidade de acessar a sentidos unívocos ou definitivos; os casais, por sua vez, referem-se permanentemente aos problemas “de comunicação”. Como pensar a comunicação existindo o inconsciente? Trata-se de um termo que é usado de maneiras muito diferentes. Não tem uma aceitação
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unívoca e, em termos gerais, se refere a como o casal imagina a si mesmo. Segundo alguns casos, o problema vem “desde sempre” ou, pelo contrário, asseguram que, no começo, “a comunicação era muito boa”, “nos entendíamos muito bem”. Sobre o que se referem, nunca é claro. Geralmente, quando os casais dizem que no começo “a comunicação era muito boa”, é provável que se refiram à ilusão especular dos inícios, em que cada um atribuía ao parceiro ideias e características complementares ou similares às próprias (“pensávamos igual”). Geralmente, também, quando dizem que “a comunicação é ruim”, possivelmente aludam ao fato de que a mensagem do outro e a própria são reciprocamente interpretados de maneira persecutória ou negativa pelo interlocutor e a mensagem que predomina no diálogo é uma espécie de surdez autista. O termo “comunicação” é vago, de geografia imprecisa, e não há forma de comunicar-se absolutamente “bem”, já que as variações semânticas são obrigatoriamente singulares e libidinais. A comunicação humana não é nunca unívoca e há mal-entendidos frequentes, ainda que, obviamente, haja alguns que são piores que outros, e não é o mesmo a tragédia e a comédia. O analista oscila permanentemente entre aceitar que a comunicação se baseia em mal-entendidos inconscientes e, por outra parte, esclarecer algumas mensagens para diminuir, dentro do possível, o efeito dos malentendidos que produzem maior mal-estar. O peso do erótico e enigmático na vida de casal não deve encobrir a importância das mensagens conscientes no que diz respeito ao projeto de vida –decidir se vai ao cinema ou ao teatro e em que horário, que valores serão sugeridos conscientemente a um filho, enfim... O psicanalista sabe dos limites da linguagem, mas não pode diminuir sua importância: é o maior instrumento de que dispõe o ser humano para dar conta de sua experiência, mesmo em que pese os seus infinitos limites e falências. Por fora dele, ficam alternativas como o fuzil, o divórcio, o silêncio meditativo do retiro no Himalaya, que surgem quando a linguagem falha. Contudo, nos conflitos de casal, é importante ter muito presente que tudo o que a linguagem pode clarificar não alcança a dimensão principal da vida de casal: o corpo, o real, o libidinal no jogo. Para terminar, é útil recordar que, neste capítulo, se tem descrito algumas formas que adquire o discurso conjunto na superfície psíquica e foram propostas algumas reflexões sobre como o casal vive o diálogo entre eles: o que eles geralmente chamam comunicação. De modo que nos temos referido exclusivamente às primeiras orientações no trabalho clínico, o que deixa sem resolver a pergunta que se refere aos funcionamentos inconscientes que operam no casal.
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V Da demanda à construção de uma posição analítica na clínica com casais.
A terapia de casal tem se consolidado como uma alternativa entre as práticas psicanalíticas e constitui uma ferramenta de uso habitual, o que obriga a um reformular atualizado a respeito de que casos podem se beneficiar desse dispositivo terapêutico. Ocorre, com efeito, com as terapias em geral e também com as de casal, que, para poder beneficiar-se delas, requerem-se algumas condições, entre as quais a posição subjetiva dos que solicitam tratamento. Esse é um ponto fundamental. Algumas referências a clínica talvez esclareçam melhor a questão que se aborda. Acontece, por exemplo, em muitos casais, que um ou ambos membros geralmente são “consultantes”, mas não “analisantes”. Não consideram que eles mesmos devam propor-se a um trabalho psíquico a respeito do sofrimento que os traz, nem tão pouco se percebem como agentes do conflito pelo qual consultam. Vêm ao consultório, mas “a culpa é do outro, é o outro que não sabe amar”, e as discussões e reclamações se produzem por questões “alheias” a suas subjetividades, quer dizer, por questões do outro ou do exterior. Em outros casos, talvez não demasiadamente diferentes dos referidos no parágrafo precedente, chegam como consumidores, dispostos a pagar por um serviço, mas são resistentes a realizar um mínimo trabalho psíquico e solicitam um tratamento psicológico como quem solicita uma cirurgia. Como efeito, em uma sociedade de consumo como a nossa, alguns casais com um sofrimento, de qualquer tipo, podem procurar um consultório psi para pedir uma solução que seja imediata e econômica, de acordo com suas urgências. A situação deste tipo de consultas pode parecer estranha ou ridícula, talvez cômica, mas não: tem a lógica da sociedade de consumo e implica, para o analista, a tarefa de validar ou não o dispositivo e tipo de tratamento que os pacientes demandam espontâneamente. Então, uma questão a esclarecer antes de avançar no tema deste capítulo é o que se entende por terapia “psicanalítica” de casal, já que há muitos modos legítimos de propor um tratamento a um casal, assim como muitas práticas psicanalíticas. Trata-se de um tipo de abordagem clínica que, para
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alcançar uma mudança subjetiva, utiliza como ferramenta o conhecimento da própria realidade psíquica, dos funcionamentos psíquicos do parceiro e das retroalimentações recíprocas e cujo marco referencial constitui o conjunto de desenvolvimentos teórico-clínicos que conformam a psicanálise. Outros tipos de terapia operam com outras referências teóricas e, quanto à transformação subjetiva, não propõem que seja acompanhada de um processo de conhecimento da realidade psíquica. Assim sendo, e dada a existência de demandas de todo tipo, faz-se mais evidente ainda a afirmação de que, para beneficiar-se de uma terapia analítica, requerem-se algumas condições que não podem ser negligenciadas. Com efeito, concebido o tratamento com objetivos que incluem uma passagem pelo insight e o conhecimento de si, do outro e do vínculo, em muitos casos aparece um obstáculo cuja elaboração é prioritária: há que promover em um ou em ambos sujeitos uma posição de interrogação, há que construir o analisante ou os analisantes sem isso o trabalho analítico será impossível. 1. Algumas formas da demanda. Modos de chegar a consulta As formas como os casais chegam à consulta são infinitas. A situação mais propícia para um tratamento de orientação analítica é a de dois sujeitos, que se querem, desejam estar juntos e melhorar a relação, e por isso procuraram a consulta, porque seguidamente surgem discussões entre eles e isto desejam modificar. Neste tipo de demanda de tratamento, que não é a mais habitual, geralmente há dois sujeitos relativamente dispostos a aceitar um questionamento a respeito de si mesmos. “Relativamente” quer dizer que existe uma intenção consciente porque o sofrimento é grande e lhes é urgente fazer algo, mas isto não exclui egosintonias, nem caracteropatias, nem outras formas de resistência a mudanças. No que segue, descobrirão algumas formas de demanda em que a ausência de analisante/s aparece como um obstáculo que, por não modificar-se, levará ao fracasso de uma intervenção analítica.
1.1. O filho/filha como motivo da consulta Muitos casais vêm a tratamento porque o filho/a aparece como sintoma do conflito entre eles, enviados pelo colégio, pelo psicólogo ou por um juiz. “Nos mandaram do colégio por causa de Lisandro, nosso filho de seis anos. Está impossível. Discute tudo, quebra os brinquedos, não obedece à emprega-
Da demanda à construção de uma posição analítica na clínica com casais.
da. Ontem abriu a torneira do banho e inundou todo o primeiro piso de nossa casa. Duas empregadas já se foram de casa.” O casal não tem consciência de que o problema no menino/a é um indicador de uma perturbação na dinâmica entre eles. E que tomar consciência supõe um trabalho árduo, já que, a julgar por suas palavras, não parece fácil que armem os circuitos preconscientes-conscientes que lhes permitiriam interrogar-se sobre suas participações na problemática do filho/a que criam. Não se perguntam, em nenhum momento, por que uma conduta do menino/a levou a que eles, e não o filho, fossem enviados a tratamento pela equipe de psicólogos do colégio. O analista está frente a uma situação que requer a construção, nos pacientes, de uma posição analisante que não têm.
1.2. Quando o problema é a violência Os casais com funcionamentos violentos geralmente exigem, também, um trabalho que prepare o terreno para que as intervenções do analista sejam úteis a ambos. Podem dizer que vêm porque a violência entre eles é insuportável, mas, ao mesmo tempo, não consideram que esta violência é gerada “entre eles”, isto é, por ambos. Ocorre, com frequência, que cada um pensa que o único promotor da violência é o outro. Ou seja, que não vêm duas pessoas a tratamento, senão que cada um traz o outro (“O que está mal é o outro, eu o acompanho, mas que ninguém se dê conta de que venho unicamente para trazer o outro/a”). Nestes casos, o trabalho clínico a realizar é múltiplo e deve tender a que cada um assuma as responsabilidades individuais (“Eu sou responsável por minha violência e tenho que modificá-la eu mesmo, independentemente do que o outro / a faça ou me provoque”); ao mesmo tempo, se trata de que ambos assumam uma perspectiva vincular que lhes permita ver como se retroalimentam negativamente (“nós dois armamos uma bomba”).
1.3. Quando o casal se sustenta em normas de um establishment Os casais em que a cultura do establishment, a que pertencem, decide protagônicamente os funcionamentos dos parceiros, criam problemas específicos no que se refere à posição subjetiva apta para um tratamento psicanalítico. Muitas vezes percorreram um longo trecho sem conflitos transbordantes, e dizem ter convivido muito bem. A harmonia se apoia no acatamento de ambos às normas, valores e ideologias da religião ou setor social de que fazem parte. Na consulta, o analista se encontra com um casal cujo funciona-
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mento do vínculo se apoia no cumprimento das normas que, segundo interpretam, são as que correspondem ao matrimonio. Ao mesmo tempo, os parceiros não têm o hábito de dialogar ou interrogar-se pela perspectiva que o analista aspira a promover: a de sujeito singular, que se interroga a si mesmo e interroga os próprios valores e os da cultura em que ambos vivem. São casais sumamente estáveis e, às vezes, muito bem-vindos, porém pouco afins à perspectiva de sujeito singular e criativo que propõe o método psicanalítico. Raramente consultam por si mesmos mas, quando são enviados, geralmente acatam a indicação. O terapeuta se de fronta com o que é difícil instalar neles, um ponto de vista analítico.
1.4. Quando as palavras são estéreis Outro tipo de dificuldade na instalação de um processo analítico apresentam os casais que utilizam a linguagem como um elemento de defesa ou ataque automático, promovendo uma espécie de esterilização da palavra. Se consideram autorizados, na discussão, a utilizar a linguagem como uma arma contra o inimigo, mais do que como um instrumento de pensamento. Neste tipo de casais, se não se modificar o emprego que fazem da linguagem, será muito difícil o progresso em um tratamento analítico.
1.5 “Vincularismo” e “solipsismo”: duas situações a evitar Independentemente dos funcionamentos de superfície que caracterizem o motivo da consulta, uma terapia de casal enfrenta sempre dois perigos, tanto em seus inícios como em seu desenvolvimento: que ofusque o vincular ou que ofusque o individual. O primeiro perigo aparece nas situações em que se acusa o outro de ser o único responsável ou também quando se instala uma atitude radicalmente autoacusatória. O segundo perigo, o eclipse do intrassubjetivo, geralmente apoia-se em visões “vincularistas” defensivas e superficiais, de corte evitativo. Este último era o caso de uma paciente que havia começado com ideias persecutórias que encapsulava e ocultava, enquanto que se queixava de variadas condutas de seu marido e que teria com ele permanentes discussões verbais, com grande deterioração da vida familiar. Quando nas entrevistas se tentava entender o que estava acontecendo, ela atribuía tudo a dificuldades da vida familiar. (Ela: “O que acontece é que em casa se respira mal clima e quando algo não está bem na família, todos estamos mal. Analista: Você crê que você e seu esposo têm problemas pessoais, questões individuais que tenham que levar em conta nesta
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crise? Ela: Não. Eu acredito que é como li em uma revista faz uns meses, que os problemas os fazemos entre todos, na vida familiar”). Depois de algum tempo, que se tentou manejar a descompensação psicótica sem decisões de corte abrupto, a paciente teve que ser internada. Recapitulando, têm-se assinalado algumas situações clínicas em que ocorre uma demanda de tratamento mas, ou não têm decidido conscientemente “colocar o corpo” na terapia, ou não o fazem por razões estranhas a suas decisões conscientes. Portanto, se se aspira a possibilitar um tratamento analítico de casal, a tarefa prioritária é construir, em ambos os polos, um analisante que preste atenção ao psíquico em cada um deles e no vínculo.
2. A construção de uma posição analítica A construção de uma posição analítica não é sempre possível. Abrange múltiplos aspectos, dos quais dois são fundamentais: primeiro, que ambos sujeitos estejam em uma posição de interrogação a respeito de si mesmo; e, segundo, que esta interrogação inclua acontecimentos da vida de casal. Esta tarefa não se faz nunca de uma vez e para sempre e tem que ser encarada, no curso do tratamento, tantas vezes quanto o analista considere que os funcionamentos psíquicos de um ou ambos polos o justificam. Descrevemos aqui três facetas desta questão entre as muitas a destacar. 1. Que cada um dos parceiros seja para si mesmo, motivo de perguntas e questionamentos acerca de problemas parecidos aos que se dão nos tratamentos individuais e, como se sabe, não é fácil promover uma posição de interrogação em um sujeito. A presença do outro em sessão implica o que fala uma implantação condicionada às associações e, em ocasiões, verdadeiros obstáculos, dadas as interrupções, induções e interferências do parceiro. Noutras ocasiões, o parceiro, ao estar presente, vai contribuir com informações sobre o outro e condutas do outro que este não traz e talvez tão pouco traria a uma entrevista individual, já que ambos, seguramente, não participam das mesmas angústias e /ou defesas. Quando isto acontece, pode ocorrer que um dos parceiros é o que vai levando o outro a uma atitude de questionamento e perguntas, com a utilização espontânea de métodos mais contundentes ou investigativos que os que utilizaria um analista. (“não estás dizendo a verdade, você diz que tua relação com Norma – filha de 15 anos - é muito boa, mas ela não diz o mesmo e as últimas duas vezes que falaram, ela depois esteve chorando um longo tempo.”) 2. O trabalho psíquico de estar em um vínculo supõe não só interrogar-se a respeito do que lhe interessa, mas aceitar também a possibilidade de
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fazê-lo em questões que para o sujeito são egossintônicas, mas que para o parceiro são fonte de angustia (XX: “Eu sou assim e não vejo porque tenho que mudar. Não é ruim ser assim.” Analista: “Não é ruim, mas torna difícil estar juntos, porque ele/ela o faz sofrer com esta característica tua que a outras pessoas não incomoda”). A ideia não é que um parceiro aceite por submetimento o que o outro assinala, mas o não falar, ou não perguntar-se sobre certos temas importantes para o parceiro, limita as possibilidades de um encontro satisfatório. A possibilidade de que um dispositivo de casal seja útil para dois parceiros supõe entre eles um investimento que não seja a indiferença, e uma posição capaz de modificar a censura estereotipada. Neste último caso, não há pergunta, há evacuação de críticas nas quais o pecado do parceiro é não cumprir com as próprias expectativas. Uma interrogação genuína requer sair da dinâmica de anjos e demônios que subjazem às censuras estereotipadas, ao mesmo tempo que alguma possibilidade de sintonia e validação (Spivacow M. 2008) do que acontece ao parceiro é capaz de surgir. 3. Conceber ao intersubjetivo um âmbito de determinação psíquica implica aceitar a ideia de que algumas questões não são produzidas por um ou outro, senão por ambos, como resultado da relação. Em muitas pessoas, há uma grande resistência a incluir este ponto de vista para pensar o psíquico (Eu me ocupo do meu e tu ocupa-te do teu – dizia Patrício -. “Não vejo porque eu tenho algo que ver com que a ti te custa fazer valer tua autoridade como mãe. Eu sou o pai, não a mãe.”). Chamativamente, este tipo de funcionamento se vê também em muitas pessoas que têm realizado terapias individuais porém, contrariamente ao esperado, se tem fortalecido nelas uma tendência a desconhecer o intersubjetivo. A incapacidade de pensar o intersubjetivo como âmbito de determinação psíquica pode agregar-se como uma 4ª forma de resistência do Eu à classificação que Freud propõe no adendo em “Inhibición, síntoma y angustia” (1923 pags. 147 a 150). Neste texto, Freud classifica as resistências segundo seja do Id, do Ego e do Supego e dentro das do Ego distingue três formas: de repressão, de benefício secundário e de transferência. As resistências a/do intersubjetivo seriam uma oposição do Ego a conscientizar funcionamentos e representações em cuja gênesis o outro e o intersubjetivo jogam um papel e têm, portanto, uma sustentação dupla. No vincular, baseiam-se na interdeterminação e nas alianças inconscientes; e, no intrassubjetivo, em mecanismos de repressão, desmentida ou falhas na simbolização. Por isto a denominação de resistências de/ao intersubjetivo: “do” intersubjetivo, 43. “Inibição, sintoma e angústia”.
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porque se apoiam em uma dinâmica sustentada por ambos; “ao” intersubjetivo, porque se dirigem a conteúdos referidos a este âmbito do funcionamento psíquico.
*** Deve-se ter sempre presente que um grande número de pessoas chega à consulta com a ideia de que um bom casal se dá bem só pelo efeito do amor, sem considerar que este requer um trabalho psíquico, muitas vezes árduo. São pessoas que assimilam o amor como algo da ordem do enamoramento e às quais só a existência de conflitos as faz sentir que sua relação de casal é desafortunada. Nestes vínculos, que muitas vezes arrastam a ideologia da “meia laranja”, a possibilidade de análise supõe incluir a ideia de que, em um casal vitalizado, aparecem conflitos inevitavelmente, assim como também assumir o trabalho psíquico que isto implica. Em muitos destes casos, tratase de revisar a dinâmica vincular e os modos possíveis de funcionamento mais além do enamoramento, com sua aspiração a uma complementariedade sem fissuras. Estas pessoas, se não modificam a ideologia com que inicialmente se aproximaram da terapia, são as que apenas melhoram a conflitividade de superfície e, portanto, propõem interromper prematuramente o tratamento porque “já está”. Na construção do/dos analisante/s, a idealização é um mecanismo que merece atenção já que, se bem é uma das grandes sustentações da relação amorosa, é também um modo de funcionamento mental que tende a paralisar qualquer interrogação consciente. A pessoa, sinto dizer, se autoidealiza na relação amorosa e idealiza o outro, dado o prazer que a idealização proporciona. Mas, ao mesmo tempo, se um casal realiza um tratamento, é porque necessita algum tipo de mudança psíquica, o que requer algum questionamento das idealizações em jogo.
3. O trabalho da intersubjetividade. Sintonia Foi exposto, anteriormente, alguns modos de chegar à consulta e algumas questões fundamentais na construção de uma posição analítica. Esta última tarefa, como disse, geralmente não é fácil e nunca se realiza “de uma vez e para sempre”, deve ser retomada uma e outra vez. A dinâmica intrínseca da relação amorosa faz com que isto seja assim, já que esta é, por natureza, regressiva e regressivante. Freud assimilava o enamoramento – núcleo fundacional da relação amorosa – a psicose; e Lacan fundamentou sobradamente seu aforismo a respeito da não relação sexual. O analista de casal, e este não
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o desmerece, trabalha em um território subjetivo mais que relutante à análise e ao ganho de trocas subjetivas. Dadas as dificuldades que se assinalam notratamento de casal, podem ajudar a expor o que acontece quando, em um casal, ambos sujeitos desenvolvem seus melhores potenciais de análises. Nestes casos, ambos prestam atenção ao que lhes acontece em nível individual e ao que juntos geram como resultante do funcionamento vincular. Em consequência, aparecem os indicadores de uma maior complexidade no trabalho, produzem-se modificações no trabalho psíquico da intersubjetividade (Kaës), entendido como o trabalho psíquico que impõe a um sujeito vínculo com o outro (ambos claramente no contexto do Outro). O trabalho clínico requer dos três participantes, ir pensando por quais caminhos pode transitar a maioria dos casais que consulta, que é sempre, vale recordar, um casal singular. Se, por exemplo, a problemática em questão é a relação com um filho adolescente, vale tanto que a mãe tome alguma distância e delegue questões ao pai, como que seja o pai o que toma distância ou que cada parceiro faça outra coisa em função dos recursos e ideias que oferecem suas séries complementares. Trata-se de ir pensando o possível bemestar de cada vinculo, ir encontrando, em cada relação, um saber fazer que não resulte de submetimentos nem de normas do establishment e que articule algumas elaborações psíquicas com modificações na cena do real. Quando a elaboração no terreno da intersubjetividade começa a render frutos, começam a aparecer indicadores da presença de sintonia: a capacidade de pôr-se no lugar do outro; o reconhecimento de que não se sabe 100% do que se passa com o parceiro; a aceitação de que ambos apresentam visões diferentes do problema, mas que podem ser validadas e compatíveis; o abandono parcial dos mecanismos de polarização e de maior estereotipia defensiva; a possibilidade de semantizar incluindo como fator operante a interdeterminação – quer dizer as influências recíprocas que sofrem os funcionamentos de ambos sujeitos de um vínculo. Estes indicadores supõem um abandono parcial de posições de onipotência e completude, marcam uma elaboração da castração tal que se abandonam parcialmente as posições fálicas de saber tudo e ter toda a razão. Assim entendido, o trabalho psíquico que os parceiros realizam em sua relação vai sofrendo modificações no relativo aos dois grandes organizadores do vínculo: a interdeterminação e as alianças inconscientes. Com relação à primeira, cada um vai reconhecendo e modificando os modos de interação do tipo das provocações, as induções, as depositações, enfim, as formas ativas ou passivas da hostilidade. No referente às alianças inconscientes, o casal começa a falar de temas que antes permaneciam no âmbito do intercâmbio no consciente, ou seja, modificam-se os termos das alianças incons-
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cientes. Envolvendo a interdeterminação e os acordos inconscientes que se reformulam, podemos dizer que mudam os modos de metabolizar o que vem do outro, do vínculo e do sujeito, os modos de “significar e interpretar, receber, conter ou rechaçar, ligar ou desligar” (Kaës,1993 pag 352) os produtos do outro e o funcionamento psíquico em geral. Tudo isto leva por adicionar uma maior autonomia de ambos parceiros e, como diz Kaës (1994, pag 140): “O objeto do trabalho psicanalítico em grupo é esse desagrupamento”. Também se modificam os funcionamentos de ambos parceiros individualmente considerados, especialmente nos funcionamentos da ordem da repressão. Quando se trata de funcionamentos da ordem da desmentida e/ou falta de simbolização, as modificações são mais difíceis de obter.
4. Do lado do analista: eficácia e penetração na clínica do intersubjetivo A possibilidade de construir nos parceiros uma atitude de analisantes depende de diversos fatores, entre eles da capacidade clínica do analista. Todos os analistas oscilamos, segundo os momentos do dia e/ou pessoais, entre uma maior ou menor eficácia e/ou penetração clínica e, por outra parte, porque em cada clínica correm diferentes destrezas e habilidades. No trabalho com o intersubjetivo e em dispositivos vinculares, surgem problemas diferentes aos que aparecem em um dispositivo individual. Cada clínica, como já se disse, aborda especificidades e destrezas, um diferente tipo de saber fazer com o dispositivo em questão. Enquanto ela falava em sessão de um tema laboral, ele olhava a parede. Ela: Você vai seguir olhando a parede? Ele: Não. (E começou olhar o piso). Ela: Viu? Esta é a maneira que tem de me provocar. Ele: Provocar você? É impossível.... Nesse momento, a terapeuta se lembrou de um acontecimento que tinham relatado em sessões anteriores. A: Vocês se lembram do que contaram sobre a lavadoura de roupas? Aqui vai começar uma briga como aquela. Pela expressão do rosto de vocês, eu não acho que ninguém queria provocar o outro; o que eu vejo é que estão muito magoados. Ao estudar no dispositivo individual questões referidas à eficácia da
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interpretação, Liberman distinguia dois grandes grupos de analistas – histéricos ou esquizoides – e propunha um analista capaz de implementar diferentes estilos complementares segundo o caso clínico, desta maneira se limitava a assinalar o que convinha abordar aos pacientes segundo seus estilos de funcionamento e evitava definições universais a respeito destes problemas. Para um paciente com traços esquizoides, o melhor aporte ofereceria um analista capaz de fazer uma aparência de funcionamentos histéricos e viceversa, a aparência esquizoide geralmente é o melhor para o paciente histérico. Cabe a ideia, a partir das contribuições de Liberman, de pensar que pode haver, para certos climas ou funcionamentos vinculares, estilos com maior ou menor eficácia. Na vinheta referida, pode-se evitar a escala simétrica de violência e apareceram temas significativos... Terminou predominando um clima de elaboração. Mas isto dependeu em muito da capacidade da terapeuta de atravessar as defesas de superfície e sintonizar sentimentos depressivos que estavam ocultos. Tomando as ideias de Liberman, pode-se pensar que implementar um estilo depressivo frente a uma interação queixosa, resultou eficaz. Eis aqui, então, uma intervenção que pode constituir um exemplo de penetração psicanalítica do terapeuta no terreno do intersubjetivo: intuir, sob uma superfície de interação agressiva, dinamismos intersubjetivos ocultos pelo manifesto do discurso conjunto. O trabalho do analista supõe que este vá aprofundando nas características singulares de cada casal e que, para cada caso, vá imaginando, explorando e trabalhando com os parceiros os possíveis funcionamentos que constituiriam a melhora. A respeito dos tratamentos individuais, Liberman(1978) propunha algo equivalente e dizia que os pacientes primeiro se curavam “na mente do analista”, que ia realizando em si mesmo fora da sessão, os trabalhos psíquicos percursores dos insights que logo, modificadamente, realizaria o analisante. Observem o muito que esta descrição de um aspecto da tarefa do analista se afasta de outras concepções do trabalho do analista em que este se limita a desenvolver as projeções. Vale também, nesta direção, recordar aqui um comentário de M. Safouan (2005, pag 30) referido às ideias de Lacan a respeito da questão do fazer com (faire avec) na cura individual: “No se trata de desembarazar al sujeto de sus síntomas, sino de ponerlo en una posición tal que el pueda arreglárselas con [faire avec] su síntoma y de que la repetición sea menos devastadora…”. É dizer que, tanto do lado do analista como do analisante, não se 44. “Não se trata de desvencilhar o sujeito de seus sintomas, senão de colocá-lo numa posição tal que ele possa lidar com [faire avec] seu sintoma e de que a repetição seja menos devastadora...”.
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trata de atender exclusivamente ao inconsciente do sintoma, senão também a como lidar com ele da melhor maneira possível. Enfim, a questão da penetração do analista e sua capacidade e/ou capacitação é um tema muito amplo. A captação do intersubjetivo assim como a implementação do estilo adequado de intervenção constituem um capítulo fundamental da técnica.
*** Os casais demandam tratamento em infinitas circunstancias, motivadas em sua maior parte, por sofrimentos que não podem resolver. O analista pode ajudar de muitas maneiras que não necessariamente constituem uma intervenção analítica tradicional: um bom conselho sobre questões com um filho, levado a cabo em 5-6 sessões; uma derivação a tratamento/s individual/s, também desenvolvem no tempo que requer, modos de intervir que, talvez, não configurem exatamente o que chamamos uma intervenção analítica, mas têm um valor máximo. Já Winnicott dizia que há muitas coisas que não são psicanálise, mas que quem melhor pode fazê-las é um psicanalista. Então, se se aspira a que – comece onde comece – a intervenção do analista vá sem dúvida adquirindo os modos próprios de uma intervenção psicanalítica, é aqui que adquirem mais relevância as reflexões expostas. A construção, nos dois sujeitos, de um ponto de vista que considere tanto o intersubjetivo como o intrassubjetivo de ambos, assim como os trabalhos psíquicos que implica a intersubjetividade, são questões que devem estar permanentemente presentes nos três participantes. Seu esquecimento por parte dos pacientes é causa de grande número de interrupções prematuras nos tratamentos de casal; levando em conta, pelo contrário, coincide com a posição freudiana a respeito da importância do trabalho clínico sobre a per elaboração(working-through): não consegue comunicar ao analisante um sentido do sintoma para que este se modifique. Não se trata só de comunicar conhecimentos ou interpretações, senão de ir abordando diferentes pontos de vista sobre os problemas que aparecem, sobre o inconsciente em jogo, sobre as dificuldades do trabalho psíquico da intersubjetividade, e de ir desenvolvendo, no casal, um saber fazer com um, com o outro e com o vínculo.
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Todo vínculo de casal produz de maneira inevitável, uma quantidade importante de trabalho psíquico, devido aos conflitos e desajustes que obrigatoriamente aparecem em uma relação com certo nível de intensidade. Acontece, na relação com o outro significativo, algo semelhante ao que Freud assinala que acontece entre a psiquê e o corpo: a relação de dependência da psiquê com o corpo produz primeiro uma exigência de trabalho. Esta exigência que aparece na relação com um outro significativo apresenta duas facetas que só artificialmente podem ser separadas, já que na vida real se sobrepõem. Por um lado, há um trabalho, classicamente assinalado em psicanálise, no qual o sujeito constrói e remodela as representações do objeto que lhe permitem processar a relação em jogo. Por outro lado, nenhuma representação do objeto inclui o outro em sua complexidade. O outro, com efeito, se autonomiza sempre em algo das representações que dele se constrói, de modo tal que o trabalho psíquico com esse outro não se reduz ao muito que em psicanalise se tem assinalado a respeito da relação de objeto, senão que se deve considerar também o outro do objeto (Green) e o outro no objeto (Kaës). “Por isso – diz Kaës (1999, pag. 132) – importa distinguir o outro e o objeto. O outro presente no objeto é irredutível à sua interiorização como objeto.” A relação com o objeto/outro, um tanto irredutível à sua interiorização, tem sido em psicanálise menos considerada que a relação com o outro/objeto interiorizado, mas sua importância se faz evidente naquelas patologias em que o reconhecimento da dimensão subjetiva do objeto/outro é insuficiente, como nas psicoses, nas perversões, nos fronteiriços e nas problemáticas psicossomáticas. Nestas patologias, aparecem tipicamente modos de relação com o outro em que este é coagulado em sua dimensão de objeto e sua redução à interiorização que dele se efetua. Também na vida de casal a problemática mencionada está muito presente. Nos funcionamentos perversos, por exemplo, é característica no reconhecimento da subjetividade do parceiro e a relação com ele se sustenta em investiduras que tendem a imobilizá-lo em um lugar sem vida própria.
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Então, a relação com um outro é moebiana e implica duas facetas de um processo único: uma faceta na dimensão interior – da relação de objeto – e outra faceta referível à autonomia do outro, mais além de toda representação que dele se construa.
1. A situação clínica Nas páginas seguintes se propõem os conceitos de sintonia e validação, ferramentas teóricas que ajudam a pensar alguns trabalhos psíquicos que são característicos da relação de casal e em que a diferença outro/objeto desempenha um papel de liderança. A situação clínica pela qual consultam os casais, a que se referem estes conceitos, pode ser descrita nestes termos: trata-se de pessoas que sentem que se amam, entre as quais predominam as investidas eróticas, mas as irritações, as discussões e os mal-entendidos, incontroláveis em algum tema, invadem a relação. Então, pedem ajuda a um analista para “se dar bem”. Não conseguem realizar juntos, e em relativa harmonia, algumas das coisas que desejam. As desavenças não acontecem em todos os âmbitos, mas apenas restringidamente em certa questão importante. O analista diagnostica uma situação em que as diferenças de desejos ou de outro tipo levam a um enfrentamento sem indícios de metabolização. Em uma questão de relativa importância, um deseja A e o outro B, e embora isto seja normal em todo casal, o que torna incontrolável é que não podem avançar em alguma forma consensual de negociação, de transição ou metabolização não violenta da desavença. Um aspecto central da desavença é que ambos parceiros se encerram nas representações que construíram do outro e do tema em questão, e estas constituem um baluarte fechado a remodelações e mudanças. Assim a discussão se torna infinita e se reduz a argumentação já que o ponto de vista pessoal é o que deve ser validado. A questão é como um analista poderá ajudar o casal a “se dar bem”, sem assumir um vértice diretivo ou pedagógico e sem tampouco tentar impor alguma visão de problema. Não se trata de que o analista diga se convém uma coisa ou outra, senão que ajude o casal, se é possível, a realizar um trabalho psíquico que permita alguma metabolização não violenta do conflito em questão. Uma primeira avaliação neste tipo de situações deve referir-se ao peso relativo dos funcionamentos destrutivos. Quando estes predominam, a intervenção do analista vai transitar nos terrenos do sadomasoquismo, do narcisismo da morte (Green), da perversão, todos terrenos nos quais a possibilidade de mudança psíquica é limitada. Mas já se tem dito que este não é o
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caso dos casais em que predominam as investidas eróticas, e aparece como viável o pedido dos parceiros ao terapeuta, para ajudá-los a tentar caminhos de entendimento. Com este diagnóstico inicial, então, o analista estabelecerá quais funcionamentos psíquicos orientarão inicialmente o trabalho clínico, para tentar logo aprofundar na interdeterminação e nas alianças inconscientes que operam em ambos, assim como nos modos em que se realiza o trabalho da intersubjetividade(Kaës); em termos mais gerais, trata-se de aprofundar no inconsciente que opera em/entre ambos sujeitos. Os parceiros, como foi dito, estão unidos por investiduras com predomínio erótico, porém invadidos por uma violência que não conseguem manejar. Nestas situações, pode se antecipar que o trabalho clínico se realizará, em paralelo, em dois âmbitos: a) sobre o inconsciente e está implícito que vai se desvelando no discurso conjunto, de modo tal que cada parceiro possa ir construindo representações do outro, de si mesmo e do vincular, mas regidas pelo princípio da realidade e b) simultaneamente se realizará uma outra tarefa que se centra no modo de trabalho ou funcionamento psíquico com que cada parceiro acolhe ou rejeite a subjetividade do outro. Enquanto o primeiro é um trabalho que se centra “no o que”, no registro do outro o mais próximo do princípio da realidade “o quê”, o segundo é um trabalho que se centra em “como” processar a singularidade inacessível do parceiro. A diferença assinalada, relativa “ao que e ao como” de uma relação, aproximar-se, em parte, ao que assinalaram Waztlawick, Beavin e Jackson quando propuseram que em todo intercâmbio ocorrem simultaneamente dois canais, um referente ao que se quer comunicar; e outro, ao modo em que estão posicionados os dois interlocutores ao realizar-se o intercâmbio da maneira como se realizam. Exemplificar pode esclarecer a questão. Se o tema em questão se refere, por exemplo, a questões de dinheiro, um aspecto do trabalho em sessão se centrará nos diferentes significados, conscientes e inconscientes que, para ambos, têm as questões de dinheiro. Este é o aspecto que engloba o ponto “a” – o que – e que pode distinguir-se, embora em muito se sobreponha, ao aspecto “b”. Neste último trata-se de ver como cada um se posiciona frente ao outro quando se lida com problemas de dinheiro. Não é mais uma questão de saber se o dinheiro significa isso ou aquilo, mas se as semelhanças ou diferenças são tratadas, se são humildes, arrogantes, queixosos ou de outra maneira. Nesta área de questões, que se refere ao processamento da alteridade e intersubjetividade – a que forma de trabalho psíquico – correspondem os conceitos sintonia e validação. Citar um exemplo pode esclarecer a questão. Se o conflito se refere, por exemplo, a questões de dinheiro, um aspecto do trabalho em sessão se centrará nos diferentes significados, conscientes e inconscientes que, para
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ambos, têm as questões de dinheiro. Este é o aspecto que é abordado no ponto “a” – o que – e que pode distinguir, embora em muitos se sobreponha, ao aspecto “b” do trabalho clínico, o qual trata de ver como cada um se posiciona frente ao outro na abordagem das questões de dinheiro. Já não se trata de pensar se o dinheiro significa isso ou aquilo, mas sim perceber as semelhanças ou as diferenças, entre o casal, no que se refere à humildade, arrogância, atitude queixosa, etc. Este aspecto “b” poderia ser chamado de “posição vincular”, “atitude com o outro” ou “disposição vincular”.
2. Da demanda ao projeto terapêutico O casal pede ajuda para “relacionar-se melhor” a respeito de determinados temas. A contribuição do clínico não pode apontar para estabelecer “a realidade” ou “a verdade” nas recriminações que circulam a respeito de desamores, raiva, maltratos e indiferenças. O analista não é um investigador policial, nem um juiz, nem existe um código psicanalítico que legisle sobre a relação de casal. A alternativa a tentar é mostrar-lhes o inconsciente que opera em seus funcionamentos, como se relacionam no momento atual, como armam o encontro e, a partir disto, propor trabalhar, construir, elaborar modos alternativos de relação. O que se pode fazer, a melhor contribuição, é mostrar aspectos inconscientes dos conflitos e que isto habilite aos membros do casal a modificar os estereótipos que caracterizam a crise. O analista não opera sobre a magia do casal; o que pode fazer é de outra natureza: clarear dificuldades e interferências, violências ativas e passivas de diferentes vieses, mas não gerar alquimia. A possibilidade do terapeuta é trabalhar nas representações do objeto/outro, as relações com este e fundamentalmente as transferências intracasal (cap. 3). Habitualmente, nas crises, estas transferências têm adquirido um viés negativo de tal modo que cada parceiro atribui ao outro intenções irritantes, funcionamentos e identidades mais em consonância com os processos primários e à alucinação, em sua vertente persecutória, ao que Freud chama juízo ou exame de realidade. Uma primeira tarefa possível é, então, ir desvelando as raízes inconscientes dos funcionamentos que determinam o sofrimento no vínculo e impulsionando um trabalho psíquico de sintonia entre os parceiros, trabalho que, em outros âmbitos da vida destes casais, se realiza espontaneamente, mas que está ausente nos conflitos que motivam a consulta. A sintonia é um modo de captação ativa e imaginativa do outro. Inclui uma receptividade e um registro acolhedor de forma tal que as representações regidas pelo princípio de realidade as liga com as transferências que sustentam a relação.
Sintonia e validação. Trabalhos psíquicos na relação de casal.
A sintonia aspira a configurar no casal uma maneira de intercâmbio diferente ao da guerra, do desprezo, da indiferença, ou do intercâmbio clichê como a idealização rígida. Devemos pensar como uma forma de trabalho psíquico alternativo à violência e à luta pelo poder que geralmente aparece como forma de enfrentar os desentendimentos. Se recordarmos o conceito de trabalho da intersubjetividade (Kaës) introduzido no capítulo V, a sintonia é um modo particular em que isto se realiza. A sintonia não é algo que o terapeuta pode prescrever como um fármaco. O que se pode propor é, sobre a base do princípio de realidade, trabalhar prevalentemente as transferências intracasal que subjacem ao conflitos envolvidos, analisando tanto os funcionamentos que fazem as transferências negativas como os acontecimentos que levaram ao debilitamento das transferências positivas. Trata-se de promover entre os membros da relação uma captação do outro, de si mesmo e do vínculo, na qual estão presentes o acolhimento e a receptividade a partir de registros baseados no princípio de realidade. Mas além desta tarefa, o analista não pode fornecer muito mais, já que entram em jogo os mistérios da atração, o desejo, e as coisas são deixadas nas mãos de Deus, como propõe Freud em seus escritos técnicos ao citar a A. Paré, um cirurgião que dizia a seus pacientes: “Eu só os ajudo, a cura é de Deus”. A sintonia supõe, como requerimento básico, aceitar a subjetividade do outro, o que implica certo trabalho sobre as diferenças entre ambos polos do vínculo, assim como também certo trabalho psíquico sobre os variados graus de rejeição, continência, significação e expulsão que se produzem no intercâmbio entre os membros do vínculo. Em paralelo ao que se pode trabalhar sobre a sintonia, irão sendo analisados os conteúdos com que cada parceiro registra o outro, a maneira pela qual aceita sua singularidade – o que mais adiante se descreverá como validação – e nestas tarefas tentarão construir e elaborar formas alternativas de relação. Sintonia e validação, então, configuram trabalhos psíquicos que implicam o reconhecimento das realidades emocionais que circulam no vínculo – tanto a própria realidade como a do outro - o processamento criativo das diferenças e sua aceitação, assim como a metabolização da incompreensível singularidade. Como diria Laing, permitem que os dois membros não reajam no encontro como duas bolas de bilhar, indeformáveis, em um tipo de choque narcisístico inelástico; constituem modos de funcionamento que geralmente desaparecem durante as crises do casal e, quando nos pedem ajuda, são funcionamentos que o analista pode tentar promover quando no vínculo predomina a investidura amorosa. Ao contrário, nas diferentes for-
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mas de violência destrutiva, a sintonia e a validação aparecem como metas quase impossíveis.
3. A sintonia e seus diferentes aspectos A sintonia constitui um trabalho psíquico da intersubjetividade que, se observado apenas a partir de um só de seus participantes, pode descreverse também como um trabalho psíquico sobre a diversidade. Seus vários aspectos, em benefício da clareza expositiva, serão descritos aqui como sucessivos, ainda que, em realidade, não constituam fragmentos de uma sequência temporal, senão facetas de vários processos que se dão em sincronia. A conveniência de expor o tema de maneira sequencial não nos permite esquecer que na sintonia se dão, em simultaneidade, diferentes funcionamentos que são aspectos de um único acontecer. Uma faceta fundamental – tomando o processo a partir de um só membro – consiste em pôr-se no lugar do outro e em tentar entender suas motivações e condutas. Podemos descrevê-la – em uma terminologia que pode parecer paradoxal, pois unifica duas polaridades de uma pendulação – como um tempo de “identificação discriminada”. Neste momento da sintonia, o sujeito tenta imaginar o que acontece ao parceiro a partir de uma perspectiva em que simultaneamente se ocupam duas posições: o sujeito se põe no lugar do próximo, mas se sabe outro, em um tipo de oscilações entre a identificação com o parceiro e o reconhecimento da discriminação Eu/não Eu. O diálogo que segue –ao lado com o monólogo – serve para pensar sobre este aspecto da sintonia e especificamente o que acontece quando este processo se dá de forma falha. - Eu sei que você está mal devido minha reunião de manhã – diz Jorge com absoluta segurança. - Você está errado. Você acredita que é o centro do mundo... Eu estou mal porque tenho muitos problemas em meu trabalho – responde Elena com rosto fatigado. Pôr-se no lugar de um interlocutor é tentar imaginar a realidade emocional do outro e poder fazê-lo com diferentes tipos de funcionamentos. Jorge tenta pôr-se no lugar de Elena, mas sua projeção massiva é quase delirante, já que simplesmente traduz seu próprio estado psíquico, sem colocarse no lugar de um outro diferente. Pôr-se no lugar do outro, em um processamento neurótico, não psicótico, é um funcionamento com discriminação
Sintonia e validação. Trabalhos psíquicos na relação de casal.
Eu/não Eu e reconhecimento das diferenças, assim como envolve o luto de serem duas individualidades e não uma. O que se chama sintonia não se limita a “identificar-se” com o outro, tarefa que, em sentido estrito, está sempre afastado da possibilidade de imaginar algo diferente do próprio. Seria, como se diz, uma identificação “discriminada”. Tentar colocar-se no lugar do outro tem como obstáculo a alteridade e a opacidade, e não pode se realizar quando não apela à imaginação: requer, portanto, toda a criatividade necessária para registrar e pensar a singularidade do outro. Este aspecto da sintonia, que é parte do trabalho de colocar-se no lugar do outro, implica trabalho sobre as diferenças e criatividade. Luisa e Pedro têm duas crianças pequenas e dificuldades econômicas. Nas discussões, Luisa reclama pelos problemas das crianças e Pedro pelos gastos que poderiam ter-se evitado. Luisa parece insensível à questão econômica e Pedro aos sofrimentos das crianças, sendo ambos funcionamentos chamativos para o terapeuta, já que em outros terrenos funcionam de maneira muito diferente. Independentemente da realidade econômica e da situação das crianças, parecia haver em ambos uma dificuldade para colocar-se no lugar do outro e para tomar nota das diferentes vulnerabilidades de cada um: Luisa descarta importância aos problemas de dinheiro (“não é para tanto”) e Pedro descarta importância aos problemas das crianças (“estão ótimos, não exagere”). O analista geralmente lhes diz que “pode ser um exagero” e que talvez “não seja para tanto” mas que ninguém quer considerar que são sensíveis a diferentes questões e que para a Luisa, as questões das crianças a colocam muito vulnerável, enquanto que a Pedro preocupam especialmente os problemas econômicos. Os dois têm razão a partir de uma perspectiva fáctica em minimizar as preocupações do outro, mas não percebem que não podem colocar-se no lugar do outro/a de uma maneira imaginativa e criativa. O trabalho sobre as diferenças implica criatividade, já que aspira a ir registrando as especificidades de cada um, aceitando que um sujeito não é réplica do outro. Também implica um processo da ordem do luto, na medida em que uma representação de objeto funcionante, de acordo com o princípio
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da realidade, não elimina a existência no objeto do outro subjetivo, autônomo e opaco, rebelde à representação do objeto. Ao referir ao trabalho da intersubjetividade, Kaës (1999) assinala esta problemática como “la experiencia de la relación del sujeto con la subjetividad del objeto” (pag. 129) e disse (pag. 133): “…cada sujeto adquiere, en diversos grados y en ciertas condiciones de su relación con el otro, la capacidad de significar e interpretar, de contener y rechazar, de ligar y desligar, de jugar con – o de destruir – representaciones, emociones y pensamientos que pertenecen a otro sujeto, que transitan a través de su propio aparato psíquico o devienen de él, por incorporación o introyección, partes enquistadas e inertes, o integrantes y reutilizables”. A sintonia constitui um trabalho psíquico que vai produzindo sucessivamente representações desde diferentes pontos de vista, em uma dinâmica comparável à que propõe Freud para a per-elaboração. No caso de Luisa e Pedro, captar as diferentes sensibilidades em jogo, adentrar com alguma criatividade nas diferentes problemáticas de autoestima que predominam em cada um: Pedro se sente facilmente culpado quando há algum limite econômico, e Luisa é hipersensível às questões dos filhos, porque facilmente se identifica com seus aspectos mais desamparados. Nos transtornos de personalidade chamados narcisistas, a sintonia tem dificuldades características. Laura conta a Santiago suas preocupações pelo desenvolvimento de Jorge, um filho de ambos de trinta anos que apresenta frequentes dificuldades em seu desenvolvimento laboral. Santiago a acalma, lhe diz que Jorge está muito bem, que é apenas uma crise passageira. Seus argumentos refletem uma menor preocupação que a de Laura e a incapacidade de sentir o desprazer que implica pôr-se no lugar de Laura, assim como também a angústia de que um filho não seja simples e puramente “exitoso”. Laura se queixa de que Santiago não a escuta, ainda
45. “a experiência da relação do sujeito com a subjetividade do objeto” (pag.129) e diz(pag.133):“...cada sujeito adquire, em diversos graus e em certas condições de sua relação com o outro, a capacidade de significar e interpretar, de conter e rejeitar, de ligar e desligar, de lidar com – ou de destruir – representações, emoções e pensamentos que pertencem a outro sujeito, que transitam através de seu próprio aparelho psíquico ou se tornaram dele, por incorporação ou introjeção, partes congeladas e inertes, ou integrantes e reutilizáveis”.
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que reconheça que ele pode reproduzir as palavras dela com precisão já que, em nível informativo, Santiago registra o que Laura diz. Laura refere uma mescla de tédio, aborrecimento e esterilidade. Ele, por sua vez, diz que, faça o que fizer, sempre está mal: “em meu casamento sou culpado”. Sente que é impossível entender Laura, entrar em seu mundo lhe parece “entrar em um labirinto”. A impressão que se forma no terapeuta é de que Santiago não pode sair de si mesmo e experimentar o que Laura sente; menos ainda pode assumir a tarefa de imaginar as especificidades do que a Laura passa com seu filho Jorge. O universo subjetivo de Laura, com suas particularidades, lhe parece um labirinto. Fernando e Cristina estão casados faz 10 anos e têm respectivamente 55 e 30 anos; nas palavras do terapeuta, ela é uma adolescente com escassa capacidade de simbolização que literalmente se casou com a mãe. Fernando expõe suas preocupações referidas a um filho que tem problemas de aprendizagem. “Nada a ver” retruca Cristina, que emprega esta mesma frase para qualificar – virtualmente eliminar – todas as preocupações de Fernando, em um funcionamento que une a desmentida com a cisão e implanta uma modalidade de sintonia de baixa complexidade, frequente nos indivíduos fronteiriços. Fernando, por sua vez, responde com escalas de violência, de magnitude crescente. No casal heterossexual, o paradigma da diferença é a diferença sexual, e a sintonia supõe um trabalho sobre esta diferença protagônica. Em sessão, é interessante o quão perturbador pode ser para um parceiro que se recorde o sexo diferente do outro e se pergunte como pensa que esta diferença influi sobre o tema em conflito. Chama a atenção como muitos homens esquecem o quanto a uma mulher, em nossa sociedade, pode afetar uma preocupação com um filho pequeno e também como muitas mulheres esquecem quanto ao homem, em nossa sociedade, pode afetar não ter uma boa renda financeira, e isto diminuir sua sensação de potência viril. O “trabalho psíquico” que espontaneamente realizam os parceiros sobre as diferenças de um sexo com outro se reduz, muitas vezes, à mera opinião de que as mulheres são todas exageradas ou loucas, e que os homens são todos concretos ou egoístas.
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Colocar-se no lugar de outro e trabalhar as diferenças implica um aspecto da sintonia, consiste no trabalho de elaborar, no sentido mais ativo do termo, a opacidade do companheiro/a do qual depende amorosamente. Certamente, colocar-se no lugar do outro é um trabalho que não se constitui integralmente, pois que isto apenas sucederia ilusoriamente através de um desvio psicótico, também é claro que a elucidação das diferenças e o trabalho que neste âmbito pode realizar-se tem um limite. As semelhanças, as comparações, as oposições, o estabelecimento de diferenças constituem tentativas de se acercar um real que, cedo ou tarde, se mostra inalcançável, e o outro emerge em certa opacidade irredutível, à contramão de qualquer possibilidade de um conhecimento acabado do parceiro e, mais ainda, à contramão dos funcionamentos psíquicos que caracterizam o enamoramento e os funcionamentos fusionais e passionais presentes no casal. A sintonia tem, na opacidade, um limite impossível de superar e não pode nunca aspirar a captar uma informação “correta”. Não há tal informação correta no campo da linguagem entre os homens, sempre equívoco, na medida em que toda mensagem fica capturada e se reorganiza nos desfiladeiros do significante, questão sobre a qual tanto insistiu Lacan. Mas o trabalho psíquico da sintonia pode ser de maior ou menor complexidade e aproximar-se mais ou menos à realidade emocional do parceiro. A opacidade não é registrada como tal nos funcionamentos persecutórios e nos fusionais em que se tem a convicção de que se sabe com clareza “como é o outro”. O reconhecimento da opacidade está excluído na dinâmica das celotipias, nas quais não se reconhecem fissuras nem opacidades no registro do outro, o que constitui dois mundos nitidamente divididos: o dos anjos e o dos demônios, já que o parceiro acusado executa – segundo o acusador – ações que unicamente faz por oposição ao sujeito celotípico – o ciumento - que é “puro” e sabe perfeitamente o que acontece na mente do outro. A sintonia é um modo de funcionamento psíquico intermitente e que pode ser ocasionado ou inibido pela vontade. Mas pode ser liberado a seu funcionamento espontâneo, dependendo das angústias em jogo, o que requer registrar e acolher o outro, não só o que diz, senão também o que não diz, e não depende de um entendimento intelectual ou erudito, necessita do trabalho de relacionar com a própria experiência de vida o que vai captando diferente do outro. Se o registro do outro fica na esfera puramente intelectual, o trabalho psíquico da sintonia fica incompleto, predominando a superficialidade. A sintonia está diretamente relacionada com a elaboração da incompletude e com a possibilidade de não se submergir naqueles funcionamentos, da órbita do narcisismo, que anulam a existência do outro autônomo e os enigmas que aborda.
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Talvez não seja demais recordar que, em matéria de sintonia, há que distinguir entre o que os pacientes dizem e o que o analista infere. Muitas pessoas com dificuldades em conectar-se com outros se queixam insistentemente de que não são entendidos, mas o trabalho clínico mostra que eles, para sentir-se entendidos, exigem que o ouvinte repita e confirme, palavra por palavra, seu próprio discurso. Não suportam nem as diferenças nem a independência de critério do interlocutor. Sua repetição de “Não me entendes” constitui uma ilustração da diferença entre as declarações explícitas dos pacientes e o que o analista revela através delas. A sintonia ocorre em uma relação em que estão em jogo duas realidades subjetivas com suas singularidades. Saint Exupéry se refere a isto quando em O Pequeno Principe reflete sobre a criação de vínculos e laços entre os seres humanos. O Principe diz a raposa, um possível amigo: “Serás para mí único en el mundo. Seré para tí único en el mundo.” (pag.68). A sintonia requer captar a singularidade do outro e esclarece uma das diferenças entre uma relação na qual o intercâmbio inclui o emocional e outra relação que pode reduzir-se ao exclusivamente fático. Este último é o que ocorre, por exemplo, com um condutor de ônibus ou um caixa de supermercado: com eles não é esperável que se produza sintonia já que a relação não se diferencia demasiadamente da que se tem com um computador: o que dela interessa é a função que cumpre. As personalidades fáticas (Bleger) têm sérios problemas para entender o que é a sintonia e não conseguem imaginar um mundo com funcionamentos diferentes dos seus próprios. Recapitulando, então, as palavras com que se tem tentado apresentar o funcionamento da sintonia são: identificação, discriminação, criatividade, luto, diferença sexual, opacidade, singularidade.
4. Validação A sintonia pode – ou não – estar acompanhada de validação, entendendo este termo como equivalente a um funcionamento de aceitação e legitimação do que se capta no outro tal como é, sem pretender mudá-lo. O que neste texto se chama validação inclui aceitação, respeito e reconhecimento, mas não supõe coincidência nem acordo, e menos ainda, submissão; constitui frente ao outro um funcionamento diverso à violência, ao desprezo, e à indiferença, ou desconhecimento de sua singularidade. A validação resulta de trabalhos psíquicos que configuram uma posi46. ”Serei para mim único no mundo. Serei para ti único no mundo”(pag 68).
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ção subjetiva que pode ou não acompanhar a sintonia. Quando está presente, implica uma modulação temperada das lutas de poder inerentes à vida de casal, elaborações em relação às fragilidades narcisistas e a angústia que acompanha a relação com outro significativo. As palavras de Juan exemplificam questões da órbita da validação: “No sé, la verdad es que yo no entiendo bien por qué Mariana hace las cosas así con nuestro hijo. Hablamos muchas veces, pero no hay caso. A mí al principio me dolía como si me lo hiciera a mí… sentía que ella era dura con Gastón. Y bueno, sea como fuere, lo que yo me digo a mí mismo es que tengo que aceptar que ella lo quiere muchísimo y está bien que cada uno trate diferente a Gastón. Yo tampoco tengo la fórmula de la felicidad y del éxito para criar hijos…” A validação do que se registra no parceiro, se é acompanhada da continuidade da investidura amorosa, implica uma elaboração da fantasmática persecutória e a possibilidade de discriminação Eu/não Eu. Nas palavras de Juan, se observa como tenta elaborar suas ansiedades de variada natureza a respeito de Mariana (o que supõe também desindentificar-se de Gastão) e vai configurando um funcionamento de validação. Sintonia e validação podem estar presentes ambas, uma só e também nenhuma. No terreno político, os serviços de inteligência – mutante mutantis – são instituições feitas para realizar o trabalho de sintonia com um inimigo e poder destruí-lo melhor. Neste caso, há sintonia mas não validação, de modo que a sintonia pode estar presente entre dois inimigos, mas é raro que ocorra o mesmo com a validação; entre inimigos em guerra não é habitual uma posição de aceitação nem de reconhecimento da legitimidade da postura do outro. As personalidades psicopáticas se caracterizam por sua capacidade de sintonia e de sua incapacidade de validação. Em certos casos, pode haver validação mas não sintonia. Os pacientes com escassa capacidade de simbolização podem não se pôr no lugar do 47. “Não sei, a verdade é que eu não entendo bem porque Mariana age assim com nosso filho. Falamos muitas vezes, mas não tem jeito. A mim, a princípio me doía como se fosse comigo (...) sentia que ela era dura com Gastão. E bem, seja como for, o que eu digo a mim mesmo é que tenho que aceitar que ela o quer muitíssimo e é normal que cada um trate diferente ao Gastão. Eu também não tenho a fórmula da felicidade e do êxito para criar filhos(...)”.
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outro nem trabalhar as diferenças, e ter muitas dificuldades para entrar em sintonia, mas respeitar a singularidade do outro. Isto é o que ocorre com alguns sujeitos que são “concretos” (fáticos na terminologia de Bleger) e com alguns pacientes psicossomáticos, nos quais, sem a mediação de um trabalho prévio de sintonia, se aceita o diferente do parceiro e se configura um processo de validação.
5. Sintonia e validação, sintonia validante Quando sintonia e validação estão presentes pode falar-se de sintonia validante, funcionamento que constitui um fator de pacificação e amortização da violência.
5.1 Antecedentes na vida infantil A sintonia e a validação herdam, na adultez, modalidades dos vínculos infantis com os objetos parentais. O antecedente na infância é a capacidade parental de acolher e simultaneamente balancear as iniciativas de criança com as do adulto, reconhecendo e respeitando a ambas. Quando este balanço não se produz, pode resultar um funcionamento do vínculo parento-filial tal que nele somente prevalece e é reconhecida a realidade subjetiva de uma das partes. Tal funcionamento do vínculo entre a criança e seus progenitores origina, no futuro adulto, uma diminuição da capacidade para refletir adequadamente sobre os estados subjetivos, próprios e alheios. Quando se tornam adultos, resultam em sujeitos submetidos, esmagados pelos pais ou, então, sujeitos tiranos, caprichosos, incapazes de empatizar com o interlocutor; o mais frequente é uma combinação de ambos perfis, o sujeito submetido/submetedor ou alguma outra modalidade de patologia do narcisismo. Sintonia e validação requerem certa elaboração de sentimentos como os ciúmes, as rivalidades, as invejas, as desconfianças, assim como sustentar um eu observador capaz de não envolver-se massivamente na hostilidade. Também requerem um trabalho psíquico sobre os funcionamentos da órbita do fusional e do enamoramento, dada a capacidade destes estados de paralisar processamentos psíquicos.
5.2 A sintonia e a polaridade. Desejo sensual<- -> amor No terreno do casal amoroso, cabe esclarecer a relação entre a sintonia, o desejo sensual e o amor. A sintonia não constitui um vetor de consequências previsíveis no terreno da atração física e do desejo sensual. O desejo
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sensual é um fato cujo desenvolvimento não é paralelo à sintonia; esta promove a não violência do encontro e tem consequências benéficas no terreno do entendimento e do amor, mas no terreno do desejo pode dar lugar às surpresas que Freud descreve na Degradação da vida amorosa. Assim como o amor pode diminuir a atração física que desperta o outro, a sintonia não necessariamente aumenta o desejo sensual. O entendimento e a compreensão recíproca são independentes do que atrai dois sujeitos; é um feito que os gostos no terreno erótico e as respostas do corpo podem ir por caminhos diferentes da sintonia. Quando a sintonia validante funciona, a ilusão onipotente de uma comunicação infalível não preside o encontro (“Nós contamos tudo, sabemos tudo um do outro”). Pelo contrário, aparece a aceitação do indizível e/ou incomunicável e do mistério que faz o reconhecimento da castração, todos indicadores que expressam uma melhor elaboração da onipotência e a incompletude e a aceitação da inconsistência dos estados subjetivos.
6. Percursos clínicos Como já se disse, em muitos casais, a sintonia e a validação funcionam como recursos espontâneos no vínculo. Quando no tratamento de um casal se tenta transitar um caminho de sintonia e validação, podem conformar-se distintos tipos de percursos clínicos, entre os quais há alguns paradigmáticos que se descreverão a seguir. Pode ocorrer que se chegue a uma conclusão que marca o fim das consultas: “Não gosto do que fazes, nem o aceito e tampouco te entendo muito e já não me interessa”. O casal deixa de vir ao consultório e não se avança demasiadamente em nenhum tipo de sintonia nem validação. Seguem juntos, ou encontram formas de distanciamento pacífico ou, então, seguirão predominando a luta pelo poder e a violência como modos de tentar resolver o conflito. Em outros casos clínicos, a violência entre os parceiros decresce, mas, apesar de terem construído alguma sintonia, persistem a distância e a raiva. Uma situação habitual nestes casais é que o trabalho clínico tenha proporcionado sintonia mas, não obstante, nada impede que os reposicionamentos nos mundos fantasmáticos formem cenas egodistônicas para um ou ambos parceiros que dizem: “entendo, mas não gosto”. Nestes casos, não há validação. Este último caso ocorre frequentemente em nossa cultura quando se descobre relacionamentos extramatrimoniais de um parceiro: pode-se até alcançar alguma sintonia, mas as transferências intracasal adquirem um viés
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hostil que irá em detrimento da possibilidade de validação e embate ao predomínio erótico. A dificuldade de trabalhar as transferências intracasal e reajustar as alianças inconscientes, uma vez conhecidas as aventuras extramatrimoniais, permite entender os defensores de que o fundamental é que ele/ela não saibam. Desvelada a traição, tudo o que se elabora não vai evitar que um dos dois se sinta em um lugar de irremediável desprazer nas encenações fantasmáticas, com a consequente impossibilidade de validação. Vale aqui uma consideração relativa à validação. Quando a hostilidade e a rejeição ocupam um lugar importante na relação com o outro, a validação pareceria ter uma paralisação. A legitimação total supõe um mínimo de hospitalidade que é inalcançável quando o pensamento é de ordem do “aceito porque está/esteve bem para você mas para mim está/esteve mal”. Também pode haver sintonia e validação, mas ao mesmo tempo, ruptura do casal. São os casos em que alguém diz: “Entendo, respeito e aceito o que dizes, mas não quero seguir juntos”. Outro percurso clínico é que o casal transite o caminho da sintonia e da validação e, a favor das investiduras eróticas, consiga “viver melhor”. A sintonia implica que entre os membros funciona o trabalho do intercâmbio subjetivo com a possibilidade de colocar-se no lugar do outro/a com imaginação e receptividade, o que, sem dúvida, sugere uma transformação recíproca. Inclui mal-entendidos e desentendimentos. Não faz um de dois e se refere ao que Lacan enfatizava a respeito da não complementariedade, a não proporção sexual. Não obstante, estas limitações são um grande veículo de encontro em um casal. Embora não suponha ajustes perfeitos nem proporções exatas, poderíamos dizer, então, também parafraseando Lacan, que não implica proporção sexual, mas sim um encontro que apela ao princípio de realidade e de imaginação, e que implica a possibilidade de maior harmonia na relação. Enfim, cabe esclarecer que a sintonia e a validação não têm necessariamente, em um tratamento de casal, um desenvolvimento simétrico em ambos membros. Isto é o que acontece quando os parceiros não aproveitam por igual o tratamento e, enquanto um se enriquece notavelmente, o outro o faz muito menos. Quando sintonia e validação se ativam em ambos, se potenciam reciprocamente.
*** Recordemos outra vez que a proposta espontânea dos integrantes de um casal pode incluir ou não o trabalho psíquico da sintonia, mas pode não ser para eles o fundamental. Os pacientes buscam geralmente um modo de
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encontro agradável em que predomine a atração e de ser possível que o encontro resolva com facilidade o conflito que surja. A proposta dos pacientes, em tratamento ou fora dele, geralmente seguem a trilha do princípio do prazer e ser facilitador. Vale repetir, então, que, embora as pessoas busquem e valorizem a atração, o analista não pode fazer nada de maneira direta para fortalecê-la, gerá-la ou revivê-la. A única contribuição de uma terapia é desfazer as interferências que diluem a atração existente. Neste ponto, é quando a sintonia e a validação adquirem relevância. Que capacitação-recepção se tem do outro? Como o vínculo com o outro respeita sua singularidade e diferenças? Quanto se acolhe a realidade subjetiva do outro com hospitalidade e se assume a própria incompletude? São estes termos – capacitação, atividade, receptividade, realidade subjetiva, singularidade, diferenças, legitimação, hospitalidade, incompletude – os que melhor evocam o que aqui se chama sintonia validante, uma maneira de vincular-se que constitui uma ferramenta útil para elaborar conflitos, uma vez que nos consultam. Contudo, voltemos ao princípio e recordemos que, em um tratamento, a sintonia validante é um trabalho psíquico a impulsionar mas não um objetivo que possa considerarse o único. No tratamento, o objetivo principal é ir revelando questões inconscientes que motivam a consulta. Também, como sempre, se trata de reduzir funcionamentos auto ou heterodestrutivos... São muitas as questões em jogo em um tratamento de casal, o que confirma uma e outra vez a incompreensível complexidade dos fatores que incidem no bem-estar ou mal-estar do casal que perduram além do enamoramento inicial.
VII O divórcio, entre a fantasia e a decisão.
Os casais que buscam a terapia habitualmente estão atravessando grandes sofrimentos e é frequente que, em ambos, apareçam fantasias de divórcio e de refazer, independentes um do outro, uma vida que se imagina mais prazerosa. A problemática do divórcio está quase sempre presente, seja como fantasia que aparece no decorrer do tratamento, seja como decisão quando o casal consulta inicialmente por uma crise e a evolução do conflito se orienta para a separação. De modo que, seja como efeito do surgimento de fantasias que não se concretizam ou porque, na evolução do tratamento, se efetiva um divórcio, as questões que este promove estão sempre presentes nos tratamentos de casal e convém que o terapeuta saiba qual é a sua própria posição a respeito. Isto ajuda a entender o que ele diz e faz.
1. O divórcio é diferente para cada parceiro. O divórcio é uma experiência que a gente atravessa de diferentes maneiras. Para alguns, é sumamente doloroso e afeta os nós mais significativos do equilíbrio pessoal. Outros, pelo contrário, se divorciam sem grande custo emocional. Assim, como todo casal é único, também os processos de divórcio são singulares para cada um de seus integrantes. Portanto, isso quer dizer que, quando o analista se defronta com um casal que está se divorciando, deve pensar que, em realidade, trata-se de dois divórcios, um para cada um dos protagonistas.
2. O divórcio implica luto. Nos processos de separação que se desenvolvem ao longo de uma terapia de casal, os parceiros geralmente costumam “descobrir” características do outro e do vínculo que desconheciam, tais como: repressão, desmentida, interdeterminação e alianças inconscientes. Quebrada a homeostase vincular, emergem, com maior virulência, tendências hostis e se registram traços
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do outro que aparentemente não haviam sido registrados. Assim são muitos os momentos em que um parceiro “descobre” que o outro é um “monstro”, numa espécie de decepção maiúscula. Este tipo de processamento psíquico se opõe à realização de um luto e vai de encontro ao reconhecimento da própria participação nas repressões/desmentidas/alianças inconscientes que encobriam o que agora aparece na superfície. Na crise de casal, o que se registra do outro vai-se regulando em novos ajustes: repressões, desmentidas e alianças inconscientes entram em novos equilíbrios. Quanto mais ausente está o luto neste processo, maior a violência, prevalecendo, na vida cotidiana, a guerra sem quartel; e, nas entrevistas terapêuticas, a escala simétrica. Aparece, no horizonte, a possibilidade de um divórcio com um alto grau de destrutividade, o qual, na maior parte dos casos, é prejudicial para os filhos, quando existem, e para o futuro dos ex-cônjuges. Na clínica, a possibilidade de fazer uma luto nessas situações é um fator de pacificação destas situações. Pelo contrário, se a separação se configura com uma elaboração persecutória, as coisas serão muito mais complexas e muito menor será a possibilidade de uma separação efetiva.
3. Sentimentos de fracasso. O amor não é eterno. É frequente que as pessoas sintam o divórcio como um fracasso, o que é compreensível, mas constitui um erro. O amor, como todos os feitos da vida, nasce e morre, não é eterno, não obstante a presença no imaginário popular da fantasia estendida de eternidade. Em uma famosa canção, Frank Sinatra afirma: “If somebody loves you is no good unless he loves you...all the way”. Também Shakespeare afirma algo semelhante em um de seus sonetos: que o amor, se é verdadeiro, é eterno. Frente à eventualidade de um divórcio, trabalhar sobre este imaginário enganoso oferece muitas vantagens na clínica, porque diminuem os sentimentos persecutórios e menos valia, e se promove em ambos parceiros uma recomposição do narcisismo trófico, o que colabora com a saída da crise e ajuda a não atolarem-se nas mistificações conferidas ao “amor eterno”.
4. Discriminação e divórcio. Nos casais em crise, é pertinente em muitas ocasiões, interpretar as fantasias de divórcio ou separação como indicadores da necessidade de dis48. Se alguém te ama, não é amor exceto se te ama toda a vida.
O divórcio, entre a fantasia e a decisão.
criminar-se do outro mais do que como intenções de efetivar um divórcio na cena do real. Trata-se, nestes casos, de ter intervenções que digam algo mais ou menos assim: “Mais que divorciar-se de Juan, a necessidade de Silvia me parece que é de separar-se de um casal em que sente que não pode crescer e que não tem autonomia”. Contudo, isto não é sempre assim e, é também muito válida, a advertência de Liliana Bracchi, em seu artigo “Disolución del vínculo conyugal: ¿acto o acting?”: “Se observa em supervisões que os analistas geralmente escutam os enfoques de separação dos casais como desejo de discriminação com mais facilidade do que como desejo de dissolver o vínculo...” Segundo Bracchi, a dificuldade do analista em escutar as reflexões propostas de divórcio como correspondentes a desejos de efetiva separação origina-se da ideologia de que o matrimônio é para toda a vida, assim como também na angústia que gera no terapeuta perder um paciente, já que se o casal se separa não continua o tratamento. Como, então, as fantasias de discriminação se sobrepõem às de divórcio, com frequência, deve-se ser cauteloso na análise, diferenciando a ambas, quando for possível e, aceitando, noutros casos, a impossibilidade de uma diferenciação nítida.
5. Questões práticas. Nos processos de divórcio não tem importância, somente, as problemáticas emocionais, mas, também, deve-se prestar atenção às questões práticas dos filhos, o entorno familiar, problemas patrimoniais, etc. Uma função do analista, nestes casos, é ajudar a pensar a encontrar soluções e novas ideias; o que F. Ulloa chama de “produzir inteligência”. Esta tarefa é enormemente útil para os pacientes e não consiste em levantar repressões, nem tampouco coincide com o formato mais habitual de uma intervenção psicanalítica. Por exemplo, é sumamente útil ajudar a pensar um novo cotidiano entre filhos e pais, o que legalmente chama-se um regime de visitas que se adapte à singularidade da família e que permita, ao que é pertinente à parentalidade, um menor sofrimento e dano possível. Outro exemplo: ajudar a pensar e discutir em que assuntos podem pedir ou não a opinião dos filhos.
6. Os profissionais que intervêm. Como disse anteriormente, uma maneira de entender um processo de 49. “Dissolução do vínculo conjugal: ato ou acting”.
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divórcio é pensá-lo como um processo de luto, uma elaboração que não implica somente os parceiros, senão todo o círculo social e, também, as instâncias judiciais da comunidade (juízes, advogados, legislações). Contudo, alguns advogados opinam que, em princípio, o futuro excônjuge é um inimigo enquanto não demonstra o contrário, o que, a priori, não ajuda como afirmação. Muitos advogados tendem a classificar as coisas em termos de “boas” e “más”, e o mesmo ocorre com muitos analistas e muitos pacientes, o que proporciona um clima de anjos e demônios de teor persecutório. Neste terreno, cabe dizer que embora o trabalho do analista não aceite facilmente o viés do que é um trabalho em equipe, uma vez que se inicia um processo de divórcio, com o analista individual, o de casal e os advogados que intervenham devem estar dispostos a intercambiar entre eles, e estar atentos para não recriar, entre os profissionais que atuam, o clima cismático que pode imperar no casal que se divorcia. Não se trata de armar uma equipe em que todos pensem igual, mas de saber que, em muitos casos, é útil dialogar com os outros profissionais e tratar de estabelecer um intercâmbio a respeito das diferenças. A forma com que se desenvolve um divórcio tem um forte impacto na saúde mental dos filhos a longo prazo e, também, na possibilidade futura de formar novos casais dos agora ex-companheiros, de modo que, evitar projetos cismáticos ou de tipo esquizoparanoide, é sempre beneficioso.
7. Repercussões no somático. Como bem recordam Aguiar y Nusimovich, é frequente que, em um processo de divórcio, apareçam, em um ou ambos sujeitos, sintomas orgânicos ou acidentes de alguma gravidade. Os divórcios são algumas das situações que melhor exemplificam uma questão que insistia Sami-Ali: “Quando não se pode sonhar a saída de uma crise, deve temer-se seriamente uma enfermidade orgânica. Os processos de divórcio, em muitos momentos de seu desenvolvimento aparecem como beco sem saída, situações vitais, sem esperanças, que predispõem a passagens ao corpo daquilo que não entra na simbolização, se instalando no real”. Frequentemente aparecem dúvidas ao analista quanto às enfermidades orgânicas de alguma seriedade, dúvidas sobre o timing e fantasias de voltar atrás ou desacelerar processamentos que a um ou a ambos parceiros parecia, por um momento, não poderem sustentar. São os casos em que está contraindicada uma posição neutra e/ou abstinente, devido aos perigos em jogo, e o analista deve manter uma posição clara de sustentar e cuidar da
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vida. Isto não simplifica as coisas, pois o analista não pode regular, segundo seu capricho, os processamentos psíquicos dos pacientes, mas deve estabelecer como prioridade o cuidado da saúde física.
8. Os filhos na guerra divorcista. São muitos os homens que, ao separarem-se da mulher, abandonam seus filhos, que, deste modo, parecem passar a ser “ex-filhos” também. Existem estatísticas de processos judiciais por descumprimento da função paterna, que dão conta da dificuldade de muitos pais em diferenciar das suas reclamações com a mãe o que acontece no vínculo com os filhos, mantendo o vínculo paterno independentemente do que ocorra na relação com a mãe (Giberti, 1985). Se o pai se descuida, no processo de divórcio, da relação com os filhos, a separação pode terminar incluindo perdas que, de nenhuma maneira, são obrigatórias. Por outro lado, é frequente encontrar mães que usam seus filhos como reféns, e os manejam como possessões pessoais em iniciativas extorsivas com relação ao ex-marido. O analista deve estar atento aos sentimentos de culpa pelo divórcio que ativem mecanismos destrutivos e/ou autopunitivos. Em termos gerais, se deve prestar especial atenção aos processos defensivos que ativem destrutividades desnecessárias. Nos tratamentos individuais, os analistas devem estar atentos a essas questões e buscá-las de forma ativa, já que, muitas vezes, não são evidentes no material clínico e aparecem de maneira pouco clara. O paciente não traz a problemática, o analista não a resgata no material associativo e tampouco o ex-cônjuge está ali para “denunciá-la”. As situações clínicas de divórcio, quando se complicam, levantam questões ideológicas a respeito da paternidade e a problemática da paternidade/maternidade responsável no analista. Também questões técnicas, fundamentalmente de timing: muitas vezes, nos momentos quentes e passionais de um divórcio, os pacientes são impulsivos e autodestrutivos, mas impenetráveis à intervenção do analista. Quando não há egodistonia, nem demanda, nem transferência, podem ser requeridas medidas diretivas o que, em outros momentos, não seriam adequadas, já que, obviamente, não são as melhores. Em uma ocasião, por exemplo, um analista teve que praticamente obrigar um paciente hipertenso a verificar sua pressão arterial. Teria 18-11, o que, por seus antecedentes, configurava um risco máximo para sua vida.
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9. Uma vinheta. Alberto e Isabel fizeram, há 6 anos, um tratamento de casal que durou um ano. Logo deixaram o tratamento derivados cada um para terapia individual. Isabel ainda continua. Alberto interrompeu seu tratamento individual faz muito tempo. Ele tem 30 anos de matrimônio e dois filhos (homem e mulher) de 25 e 28 anos. O que segue é um fragmento de uma primeira entrevista em que voltam a pedir ajuda para divorciarem-se. ....... Alberto: Então, me dei conta que não estou atento, não tenho forças. Ontem ou antes de ontem, ao sair de minha casa, dei um basta. Não deu mais. Claudico, me vou, me vou de minha casa. Queria ir. Porque assim... não quero mais, não tenho mais forças. Analista: Alberto... Você está falando de uma crise pessoal ou de uma crise de casal? Alberto: De uma crise de casal que me mostra que eu não tenho mais forças para sustentar nada. Não tenho forças, estou cansado, esgotado de discussões. Quando proponho mil coisas, que não são definitivas, que são sugestões, não sei... Eu digo de saída que tenho dificuldades, não digo que sou perfeito, que os demais são loucos e que eu estou certo. Estamos? Comecei falando de minhas dificuldades. Porém... se percebo tudo mal, estarei enfermo, mas não dói mais. Porque quando sinto que uma filha não se dirige a mim da forma que se espera numa sociedade normal... Não um pai a uma filha, uma filha a um pai... me fala tudo aos gritos, insultando. “Não seja tolo, não seja machista, não seja tarado!”. Não suporto mais que me digam “tolo, machista, tarado”. Não suporto. Não suporto. Não dói mais. Então, está bem, basta. Disse: Como me falas assim?” E armou todo um escândalo. Ela fez todo um escândalo! E, bah... Isabel: Isto ocorre faz dois meses. Alberto: Sim, porém não havíamos percebido. Isabel: Bem, você não se havia dado conta. Eu, sim já havia percebido. Alberto: Bom, mas eu não sabia. Então, o único que digo é ... Isabel: (interrompendo) Bem vindo ao mundo. Alberto: Bem, comecei dizendo que estou fora do mundo. Eu quero ir. Vou. Vou. Não quero mais confusão. Quero viver tranquilo! Silêncio Alberto: E uma coisa que descubro, é que tenho bronca. Que tenho
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muita bronca, tenho muita bronca. E uma das coisas pelas quais digo que tenho bronca é porque a necessito, e isso me dá mais bronca, ainda. Querer ter relações sexuais com ela me dá mais raiva, mais bronca. Querer foder com ela. Como vês (falando ao analista) não tenho muito organizado nem o discurso nem as ideias. Que ela se vá. Que vá viver só. Ou vou eu, porque eu, como você pode ver, estou mal. Não nos falamos, tratei de evitar qualquer tipo de toque: Uso outro banheiro, já durmo noutro dormitório faz anos. Com ela, não a vejo, nem me encontro, nem nada. Quando falo, qualquer coisa que digo, a molesta ou se não, eu a agrido. Se não estou, não a agrido. Já chega. Pronto, quero tranquilidade. Não pode ser que eu diga a uma filha minha que não me chame de “machista”, não sei nem porque era, porque era uma macheza, e fez todo esse escândalo que fez, porque eu lhe disse que não me chame de “machista”. E bem, assim que estamos. Está claro? A primeira vez que vim aqui, faz não sei quantos anos, eu não queria me separar, porém agora estou cansado, estou velho, estou cansado, não sei. Estou triste, estou deprimido, mas não posso seguir assim. Não posso, não posso. Eu não... necessito um espaço para mim, onde possa ser apreciado. Onde não seja o bobo, meus conceitos sejam escutados, os aceitem, não os aceitem, não sei... mas que sejam escutados, que riam de minhas piadas. Estou revalorizando a mim mesmo. Necessito revalorizar-me, e para revalorizar-me parece que tenho que buscar um espaço diferente do que eu criei em minha própria casa, isto é, com meus filhos, e os papéis... Não me sinto cômodo, porque eu fiz que se joguem desta forma as coisas: aos gritos. Estou falando de todos: de meus filhos, homem e mulher, de mim e de minha mulher. Agora tudo são discussões. Qualquer coisa, a opinião do outro é uma discussão. O outro não pode ter uma ideia diferente, uma opinião diferente, e escutá-la porque sempre é discutir. Estou falando de todos os integrantes. Com qualquer pessoa que você diga algo diferente ao que ela pensa, é discutir. Não pode pensar: “Talvez..., é para ver..., pode ser...”, não. É discutir. Tudo é discutir. Bom, isso é o que está ocorrendo no meu ponto de vista. Isabel: É muito subjetivo Alberto: E... todo o ponto de vista é subjetivo.. Isabel: ...Eu, um dia optei por não falar. Então, ele se irritou e me deixou em um bar, sozinha, sem carro, voltou para casa só. Ele disse que não compra computadores porque eu não deixo, que não compra sapatos porque eu não deixo. E esse dia, disse que não comprou não sei se um traje porque eu não deixei...Então, depois segui falando e disse: “Bom, eu não contesto mais, não falo mais”. Eu tomei a atitude do silêncio. Disse: “Bom, para ver se assim...”
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Ele me disse: “Não me fale”. Digo: “Me preservo...me preservo”. Ainda que um dia me preservei, me preservei e me dei mal. Ainda senti dores na coluna dorsal, também no peito e nas costas. Senti dor. Me preservei, me preservei. Eu optei por me preservar. Bom, muito bem, aprendi este exercício e me disse: “Vamos ver se aprendes a calar a boca, e a não discutir as coisas, e a deixar que faça o que ele quer, e a não meter-te(...)”. E comecei a fazer este exercício. Um dia tivemos uma reunião. Ele começou a falar um assunto, e por quinquagésima vez repetiu o mesmo. Eu comecei a ficar nervosa, e em vez de dizer-lhe: “Alberto...”, me levantei e fui. Então, optei por não denegri-lo, por não dizer-lhe nada, optei pelo respeito. Fui. Não sei se está mal ou bem. É o que eu posso fazer. Disse: “Bom, fico nervosa, ele não gosta que eu o critique. Vou. Não me engata. Chegamos um dia em casa, e o cara que havíamos contratado para colocar um tanque térmico o havia posto como um burro. A verdade é que nos irritamos os dois, e eu comecei a dizer algo, não recordo o que, comecei a falar em cima... Estávamos os dois acalorados com o cara. E comecei a falar de imediato, é certo, porém ele se pôs a gritar “Toma, toma o telefone! Fálica de merda! Anda você, porque você...!”. “Fálica de merda! Anda você! Fala você! “. Disse: “Outra vez! Para que falei?”
9.1. Comentário sobre a vinheta. Alberto e Isabel têm grandes desavenças há muitos anos. Passaram por crises comparáveis à atual e logo reconstruíram uma continuidade que ambos descrevem como conveniente. Alberto se sente muito desvalorizado por Isabel e simultaneamente tem dificuldades desde sempre com a regulação de sua autoestima; tenta sair de seu poço de impotência e menos valia com agressões selvagens a Isabel. Isabel, por sua vez, o rejeita sexual e fisicamente de uma maneira evidente e se dirige a ele com ironia e superioridade. A relação que mantêm é de mútuo maltrato com períodos longos de exacerbação e momentos breves de tranquilidade. Ambos se sentem fechados numa relação sem paixão nem afetos do âmbito da ternura. O desgaste e a complexidade de anos de interação estereotipada torna difícil formar-se uma ideia a respeito dos desencadeantes desta última luta matrimonial. Isabel relata com clareza um tipo de funcionamento que muita gente tenta implementar nas crises matrimoniais, que consiste em evitar a expressão da agressão, independentemente das elaborações subjacentes. Porém,
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esta forma de lidar com o problema tem falhas periódicas devido à agressão que se acumula. Não é fácil sustentar um distanciamento afetivo de alguém a quem se odeia e com o qual se convive. Alberto, por seu lado, propõe um vínculo basicamente evacuativo, com funcionamentos como o que protagoniza a raiva pelo tema do tanque térmico. Frente à frustração, sente que grita a Isabel “fálica de merda” lhe devolve a potência fálica que não tem. Por que não decidem separar-se, dado que a relação já está em estado deplorável faz muitos anos? Não há para esta pergunta uma única resposta. Alberto teme sucumbir a um colapso depressivo caso se divorciar, não se sente com capacidade para encarar o divórcio, nem foi capaz de manter o tratamento individual, cujo um dos objetivos era capacitá-lo a se sustentar melhor. Isabel parece mais disposta à separação, a que ela promove de maneira indireta. Economicamente, ambos dependem da renda de Alberto, que é um estancieiro de grande fortuna, e a terapeuta suspeita que este elemento freia Isabel para avançar com a separação. A terapeuta pensa, e é possível que assim seja, que Isabel teme as represálias econômicas de Alberto, que, se por um lado não a colocará na pobreza, significaria uma diminuição no excelente nível de vida que levam. Alberto mostra, em suas referências a sua filha, um funcionamento no qual ela e Isabel configuram um grupo/objeto persecutório, no qual não pode discriminar a mãe da filha. As coisas que ambos dizem nesta entrevista não são uma novidade para nenhum dos dois. Um dado novo que poderia indicar que algo diferente estaria acontecendo, seria se tivessem consultado a algum advogado, o que evidenciaria uma intenção de concretizar a separação e não ficar na briga catártica em que estão instalados faz anos.
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VIII O casal em “segundos matrimônios” e nas famílias reconstituídas.
Muitos pedidos de tratamento de casal se originam em conflitos próprios do que se tem chamado, com alguma imprecisão, “segundos matrimônios”. Imprecisão porque se designa, desta maneira, a relações cuja característica diferente é que um ou ambos membros está separado de um casamento anterior em que tiveram filhos, porém não necessariamente constituem o “segundo” matrimônio, já que pode ser o terceiro ou o quinto. Fala-se de “segundo matrimônio” quando, de um vínculo conjugal anterior, ficam filhos, o que, sem dúvida, localiza o novo matrimônio em uma problemática particular, a de unir, em uma única unidade familiar, o parceiro atual com filhos de um casal anterior. Nestes “segundos matrimônios”, ocorrem coisas semelhantes às que acontecem em outros matrimônios, porém, quando se fala de “segundo matrimônio”, é porque se quer acentuar que o vínculo anterior ou bem as cicatrizes de sua ruptura, ao menos no manifesto, determinam muito do que acontece no casal e na família atual. As especificidades das situações clínicas dos segundos matrimônios, então, não apresentam dinamismos particulares a não ser algumas problemáticas características das quais a mais comum é a integração de filhos e cônjuges na nova unidade familiar.
1. Algumas situações que trazem para a consulta. Uma configuração relativamente frequente neste tipo de consultas é ter o cônjuge do primeiro matrimônio como um objeto que é alucinado e projetado sobre o parceiro atual. Nesta situação se deposita uma constelação de questões que tem mais relação com o primeiro matrimônio do que com o vínculo presente. Uma situação habitual, por exemplo, é acusar o parceiro de não colaborar e ser egoísta, com uma intensidade totalmente desproporcional, e com argumentos muito semelhantes aos que eram utilizados no matrimônio anterior. Em muitas ocasiões, o casal atribui a origem das desavenças aos filhos.
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Uma situação típica é a da filha adolescente ciumenta que faz a vida impossível ao pai em sua nova relação. Nestes casos, tem-se que buscar, com quase total segurança, um conflito de lealdades no pai, em virtude do qual este não pode pôr limites claros à filha adolescente. Por outro lado, é possível que a nova esposa funcione de forma especular com a filha adolescente. A ideia orientadora na abordagem deste tipo de situação deve ser trabalhar primeiro tudo o que se pode com os adultos e alcançar uma ideia clara do que acontece nesse nível, antes de encarar um trabalho clínico com os filhos. Tem que prestar atenção especial às alianças inconscientes que organizam o novo casal. Quando os pais se apresentam como vítimas dos filhos, convém sempre investigar a cumplicidade inconsciente do progenitor com o filho/a. Para ser preciso, deve-se investigar tanto as alianças inconsciente, do novo casal, como as alianças inconscientes entre filhos e pais e as lealdades ocultas que funcionam entre eles. É comum que os novos parceiros estabeleçam, nas alianças inconscientes do novo casal, áreas de desconhecimento e negativização, em que ficam incluídos aspectos da relação com os filhos do casal anterior, junto a modos de se relacionar com a ex-parceira. Carolina, 18 anos, filha de Juan e Marcela, tem frequentes brigas com Elsa, atual parceira de Juan. Ele não põe limites a Carolina, e Elsa aborda o problema de maneira infantil. Juan disse que Elsa não tem que meter-se com Carolina porque isto é com ele e Elsa diz que não quer meter-se nem saber de nada, apenas quer que Carolina não a provoque. As alianças inconscientes do casal estabelecem, assim, uma área de exclusão e desconhecimento, que deixa fora o intercâmbio consciente de Juan e Elsa, a relação de Juan e Carolina e a de Elsa e Carolina. Quando estas relações são mencionadas em um diálogo – o que acontece com frequência – o registro é de um diálogo de surdos. Não há, no novo casal, um intercâmbio com escuta e transformação a respeito das relações de Juan e sua filha, nem da nova esposa com Carolina. Outra situação que se apresenta, e é parecida com a do parágrafo anterior, é a de considerar que os filhos tenham culpa pelo divórcio, o que dificulta a inclusão do novo parceiro e a estabilização da família recomposta. Como se organiza uma atividade que integre os filhos do primeiro matrimônio e o companheiro/a do presente, se isto é sentido como algo tão prejudicial? Como dar um lugar de protagonista ao pomo da discórdia, a ele/a que foi o instigador/a do divórcio criminal? Pode acontecer também que o que é temido não seja algo referente ao novo parceiro, mas tristeza por avançar na dissolução do velho vínculo e na estabilização do novo. Um ou ambos parceiros não podem avançar na elaboração de um luto pela primeira família,
O casal em “segundos matrimônios” e nas famílias reconstituídas.
nos modos da relação com os filhos que ali se davam, nem nas alegrias que nela circulavam. Muitos sofrimentos que aparecem nas famílias reconstituídas derivam, em parte, da pretensão de ser “uma família normal”, o que geralmente quer dizer ser uma família organizada ao redor do primeiro matrimônio, e que “não tem conflitos”. O analista deve recordar permanentemente que um casal ou uma família “sem conflitos” constitui sempre, absolutamente sempre, uma fachada enganosa. Quando os cônjuges elaboram que “ser normal” é uma pretensão impossível e que serão inevitavelmente uma família diferente, muitos dos conflitos se aliviam. Se as coisas vão bem, com o tempo entenderão – dar lugar ao timing é fundamental – que todas as famílias são distintas e originais e que as famílias “normais” não existem, como tampouco os sujeitos “normais”. Se existem, são o que Liberman chamava “normopatias”, as pessoas que padecem de normalidade psíquica e vivem em um mundo plástico. Quando os filhos do matrimônio anterior são pequenos e/ou têm problemas, a relação com o progenitor, ou seja, o ex-conjuge, tem uma intensidade que pode resultar numa fonte de conflitos com o atual companheiro e despertar ciúmes e competências. Dizem Aguiar e Nusimovich: “A presença dos filhos determina que uma das vertentes do vínculo de aliança não se rompa entre os ex-cônjuges: a parentalidade. Esta indissolubilidade é um paradoxo para o casal que se divorcia: separar-se do cônjuge sendo que, em um aspecto, não se poderá desprender nunca. É nesse sentido que o progenitor deverá deixar a cotidianeidade com sua ex-cônjuge enquanto que, através dos filhos, experimenta uma presença cotidiana desta”. Quando o divórcio assume uma elaboração patológica, ocorre, às vezes, que os conflitos levam ex-cônjuges a ser também ex-pais – ou ex-mães – e a justificar seu distanciamento dos filhos com um argumento de submissão ao ciúme e/ou possessividade do companheiro/a atual. O abandono dos filhos se justifica na necessidade de estar bem com o casal atual. Os segundos matrimônios têm, às vezes, um trabalho dobrado na elaboração de possessividades, ciúmes, aspirações funcionais, bem como problemáticas desta ordem, já que, na impossibilidade de um vínculo poder gerar um espaço imaginário de completude, geralmente presentifica-se de maneira bastante imediata. Pelo contrário, os segundos matrimônios têm a seu favor, embora, não sempre, o fato de os parceiros que geralmente não são muito jovens e suas aspirações à completude, ao menos no casal, estão, menos virulentas e um pouco temperadas.
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2. A montagem do dispositivo. Quando os problemas que se apresentam, incluindo progenitores e filhos, crianças, adolescentes e adultos, surge a pergunta de quem incluir na abordagem terapêutica. Em termos gerais, a chave da solução se deve buscar sobretudo nos adultos. Embora a problemática apresente-se como “de família”, a tarefa terapêutica convém ser levantada, em primeiro lugar, com o casal e, somente quando a abordagem estiver encaminhada com eles, pergunta-se que caminhos percorrer com as crianças. Claro, isto não é sempre assim e, em alguns casos, um processo diagnóstico alavanca, quase de início com uma derivação de tratamento individual de um filho. Uma questão a levar em conta neste tipo de problema é que os tempos de elaboração são diferentes em adultos, em crianças e adolescentes. Os adultos geralmente pretendem que as crianças tenham o mesmo timing e não entendem que o luto pela convivência com um progenitor e o desmembramento da família pode ser muito mais lento e difícil de fazer para uma criança do que o luto que devem encarar os adultos. Também ocorre, como assinala Ana Martinez (2008) que os adultos têm pressa de apagar uma história (funcionamento hipomaníaco) enquanto as crianças têm necessidades de voltar e reelaborar. Neste sentido pode ser um bom conselho, para algumas situações, recomendar aos pacientes que consolidem a relação de casal e não se apressem para encarar a integração das duas famílias. Os problemas dos adultos a respeito da integração da nova unidade familiar geralmente não corresponde a nenhuma necessidade dos filhos.
3. Da superfície espinhosa ao fundamento amoroso. As situações clínicas que apresentam as famílias reconstituídas são, geralmente, no manifesto, uma mescla de tiranos, encistamentos narcisistas e grupos que têm opiniões irreconciliáveis. Esta apresentação de superfície pode incorrer em enganos sobre o fundamento amoroso que habitualmente está em sua gênese, o que o terapeuta deve recordar para si e aos pacientes. Com efeito, os múltiplos inconvenientes para organizar a vida do novo casal derivam, em geral, de um sentimento amoroso básico que pode ser esquecido no calor das batalhas. Em relação a este sentimento amoroso subjacente, E. Roudinesco e outros propõem denominar as famílias, “reconstitudas” ou “recompostas” com o termo, de “famílias afetivas” e destacam, como núcleo fundacional nelas, um “desejo de família”, mais além do establishment jurídico e/ou religioso, que frequentemente as condena e descrimina. Diz Roudinesco(2002):
O casal em “segundos matrimônios” e nas famílias reconstituídas.
“A partir dali, o surgimento do conceito de “família recomposta”, que se refere a um duplo movimento de dessacralização do matrimônio e humanização dos laços de parentesco. Em lugar de divinizada ou naturalizada, a família contemporânea se pretendeu frágil, neurótica, consciente de sua desordem, mas desejosa de recriar, entre os homens e as mulheres, um equilíbrio que a vida social não podia proporcionar. Assim brotou, de seu próprio desfalecimento um vigor inesperado. Construída, reconstruída, recuperou a alma na busca dolorosa de uma soberania fraturada ou incerta. Por isso, suscita, hoje, tamanho desejo frente ao grande cemitério de referências patriarcais desafetadas, que são o exército, a Igreja, a nação, a pátria e o partido”. “Desde o fundo de seu desamparo, a família parece em condições de converter-se em um lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedade globalizada. E, sem dúvida, poderá ser, com a condição de que saiba manter-se como princípio fundamental, o equilíbrio entre o individual e o múltiplo que todo sujeito necessita para construir sua identidade. A família verdadeira deverá inventar-se uma vez mais.”
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IX As relações extramatrimoniais na terapia de casais. “Infidelidade”
1. Uma velha instituição. As relações extramatrimoniais constituem uma velha instituição. Ovidio aconselhava a respeito aos homens: “Divirta-se, porém oculte o delito com modesta discrição”. Ao longo da história, em todas as sociedades que o matrimônio regulou a relação entre os sexos, também existiram relações extramatrimoniais. Seguramente, não é fácil que um modelo institucional regule, sem fissuras, o pulsional em homens e mulheres. E, então, se poderia arriscar: as relações extramatrimoniais são uma velha “contrainstituição”, tão velha quanto o matrimônio. Este assunto constitui um tema muito presente nas terapias de casal. Em algumas ocasiões, um dos parceiros toma conhecimento de um affaire do outro e isto motiva a consulta. E em outras oportunidades, logo após algumas entrevistas, apareça uma aventura do passado. Em qualquer caso, aparecendo a questão da forma que aparecer, o analista deve saber que muito possivelmente será um tema explosivo e com fortes investiduras, embora isto possa não ser evidente na superfície psíquica. As aparências enganam, e o manejo clínico das sessões em que se fala de relações com terceiros/as é complexo, escorregadio e sempre, sempre difícil.
2. Terminologia e significados. Uma primeira consideração, para entrar no tema, se refere à terminologia: é mais adequado pensar em termos de “relações extramatrimoniais” do que em termos de “infidelidade”. A palavra “infidelidade” está carregada de conotações morais que não predispõe a um ponto de vista psicanalítico. Não obstante, o analista deve entender que os pacientes seguramente tentam uma aproximação ao tema que inclua uma perspectiva moral. Ainda que o terapeuta não fale de “infidelidade”, os pacientes falarão, já que entre eles, com frequência, tem havido pactos explícitos de exclusividade que têm sido violados, e o uso desta palavra fortemente acusatória corresponde ao que é
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mais massivo, arcaico e gritante e que geralmente circula entre este tema. Seja como for, o vértice dos pacientes não é o do analista e a este convém pensar o que se apresenta mais em termos de “relações extramatrimoniais” ou, segundo o caso, “relações com terceiros/as”, do que em termos de “infidelidade.” As aventuras amorosas têm diferentes significados em cada situação. A exploração pode revelar que a aventura foi um ato que teve pouco a ver com o companheiro/a ou que – pelo contrário – foi “dedicada” a provocar seu interesse e/ou raiva, ou, ainda, que foi estimulada pelo cônjuge...Os motivos individuais e vinculares das aventuras extramatrimoniais são infinitas e geralmente se insere, de inicio ou secundariamente, entrelaçadas com outros problemas, de modo que seu significado é sempre múltiplo e singular.
3. Quando se configura uma situação traumática. Para muitas pessoas, interar-se de uma relação extramatrimonial do/a outro/a tem grande gravidade. Em nossa cultura, o casal faz por ser, por ter e para pertencer e muitas pessoas, ao saberem da relação paralela, sentem que não são o que queriam ser, não têm o que queriam ter e não pertencem socialmente ao grupo a que queriam pertencer. Configura-se, assim, uma situação traumática que explica os diálogos repetitivos e estereotipados que aparecem em sessão, reflexos, sem dúvida, da tendência à repetição que emerge como modo de elaboração de um trauma. Convém recordar que, desde a dinâmica fusional do enamoramento, o corpo do parceiro é vivido como uma propriedade, uma extensão do próprio eu. A injúria narcisista é, portanto, enorme, e a cultura ocidental o avaliza: o adultério é uma afronta grave no imaginário social. Quando queremos depreciar alguém, falamos: “és um corno/a”, quando, curiosamente, esta atribuição é válida para uma ampla maioria de homens e mulheres muito valiosos.
4. violência é um perigo sempre presente. A violência criminal, as descompensações psicóticas, a impulsividade, condutas autodestrutivas, o suicídio e o assassinato, como reação a um conflito passional, aparecem todos os dias em diários e revistas. De modo que não devemos estranhar que as sessões em que se fala de relações com terceiros estejam muito carregadas de violência, nem que isto influencie, de formas múltiplas e inconscientes no analista, que, em geral, tenta evitar a violência.
As relações extramatrimoniais na terapia de casais. “Infidelidade”
O terapeuta pode sentir-se pressionado a assumir um papel aplacador e frear a agressão a todo custo, e isto pode ocorrer sem que esteja consciente do que lhe sucede. Por outro lado, é esperado que trate de desativar a violência, embora esta seja às vezes, inevitável e necessária para a elaboração psíquica. Na realidade, esta questão está enraizada no nível da violência. Mas, sabemos ser impossível manejar sua emergência de maneira ótima. Em síntese, a questão é de difícil abordagem clínica. Deve-se prestar muita atenção à ativação de problemáticas inconscientes produzidas no analista a partir do material do paciente. É difícil não tomar partido por um ou por outro membro do casal, não se identificar com o próprio gênero. É difícil não “envolver-se” e dar a alguma questão maior importância do que tenha, ou removê-la..., é difícil encontrar um ponto de vista que não introduza, inconvenientemente, valores da órbita privada e íntima do analista.
5. Freud e as relações extraconjugais. Que pensava Freud das relações extramatrimoniais? A leitura de La degradación de la vida amorosa pode dar algumas pistas. A ideia que propõe é que as correntes sensuais e de ternura muitas vezes estão dissociadas, e que o homem não tem uma satisfação plena com a mulher com a qual sente ternura. Algo parecido ocorre na mulher. O marido, ao ser um objeto permitido, faz com que a maior satisfação fique reservada aos objetos extramatrimoniais proibidos. A diferença da relação do alcoolista com a bebida – diz Freud – a do amante com seu objeto é uma relação que, com o passar do tempo, produz tédio e necessidade de troca. “... teria que ocupar-se da possibilidade – propõe – de que haja algo na natureza da pulsão, mesmo desfavorável ao ganho da satisfação plena”. Freud não considera que a manutenção de relações exclusivas com um único objeto seja a maneira mais prazerosa de organizar a vida sexual, nem para homens e nem para mulheres. Consciente de que sua observação vai contra os postulados da cultura, resume: “En vista de los afanes de reforma sexual, tan vivos en la cultura de hoy, no es superfluo recordar que la investigación psicoanalítica, como cualquier labor científica, es ajena a toda tendencia”. (1912 pág 180). 50. A degradação da vida amorosa 51. “Em vista das ansiedade s da reforma sexual, tão vivos na cultura de hoje, não é supérfluo recordar que a investigação psicanalítica, como qualquer trabalho científico, é estranha a toda tendência”. (1912 pág 180).
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Por outro lado, a imagem que Freud diz de si, foi a de um pai de família fiel. Lacan exibia outra imagem e censurava a Freud pela “exigência” de monogamia, com tudo o que de superegoico cabe na palavra “exigência” (1960, pag.36). Recentemente foi rejeitado o rumor, nunca comprovado, de que Freud manteria relações com sua cunhada Minna, que vivia em sua própria casa. O que no fundo se discute sobre esta questão vai mais além do modo de ser ou de apresentar-se em público de Freud ou Lacan e se refere tanto a relação que a psicanálise propõe entre a cultura e o sujeito, bem como a maneira com que, em psicanálise, enfrenta-se a “não relação sexual” de que falava Lacan. É claro que a proposta analítica não é de dócil respeito aos mandatos da cultura, já que nas relações extramatrimoniais não se trata unicamente de um mandato da cultura, senão de como é pensado o amor entre homem e mulher.
6. Apreciação da hostilidade. Sempre é difícil avaliar quando as relações paralelas veiculam modos de gozo sádico ou hostilidades de outro teor. Por outro lado, quando se pensa que a relação com um terceiro/a implica hostilidade com o casal oficial, deve-se distinguir se a hostilidade fica radicada no fato de ter a relação extramatrimonial, ou no fato de fazer saber ao outro agressivamente. Em muitos parceiros, informar aberta ou sutilmente a outro um possível terceiro/a é um modo certo de hostilizá-lo. Em muitas ocasiões, o que se considera traído pode utilizar o fato para martirizar o cônjuge, e o sadomasoquismo adotar formas de vingança, humilhações intermináveis, flertes públicos com outros, maltratos de todo o tipo. O comportamento pode inclusive justificar-se como uma tentativa de proteção diante da possibilidade de ser ofendido novamente e ainda exibir agregado uma fórmula de invencibilidade: “o que eu faço não é nada comparado com o que me fizeste”. Nestes casos, a interdeterminação retroalimenta a hostilidade em ambos. Em alguns casais, depois que o outro interou-se da aventura, têm uma relação sexual como nunca antes haviam tido, um homem com episódios de impotência se sentiu inusitadamente potente depois de conhecer a aventura de sua mulher; uma esposa frígida teve orgasmo. Este tipo de dados – mais habituais de serem coletados em tratamentos individuais que de casais – confirmam que o inconsciente, o masoquismo, o superego, a problemática edípica e outras questões desta índole existem e têm efeitos surpreendentes e cotidianos. Temos também que considerar que a reação dos parceiros pode, no imediato, ser muito distinta da que se instala no decorrer de um tempo
As relações extramatrimoniais na terapia de casal. “Infidelidade”
após o conhecimento da situação e que, o que hoje produziu um orgasmo, amanhã pode alimentar rancores, vinganças e hostilidades reiteradas.
7. Equilíbrios que o analista não deve desajustar. Há casais que realizam tratamentos por outras questões nas quais as alianças inconscientes supõem aventuras com terceiros/as, periódicas e necessárias; são matrimônios nos quais estas relações paralelas estão estipuladas inconscientemente, porém conscientemente são desconhecidas. O analista deve ter isto presente para não descalibrar, com intervenções reveladoras, os equilíbrios sobre os quais os pacientes não estão pedindo uma intervenção, embora o tema se insinue em sessão. Quando este tipo de temáticas estão veladas com relativo êxito no casal, é fundamental que o analista interferira excepcionalmente. Como dizia Lacan, o analista não deve ser “demasiado” vivo. Eu diria: tem que ser suficientemente inteligente para não fazer exibições de sua nitidez, o que não quer dizer que não veja o que está acontecendo em algum canto do leito amoroso. Trata-se de casais cuja relação com terceiros ocupa um lugar, mas não é o motivo de consulta. O analista entende que ela existe, e que tem um papel, porém não deve impor um tema que não interessa fundamentalmente na conflitiva pela qual consultam os pacientes.
8. A sinceridade e a franqueza. Nas situações clínicas em que se trata de uma relação com terceiros/as (não só nelas), vale a pena discutir se a sinceridade e a franqueza são acertadas ou “terapêuticas”, e em que margens e em que contextos, dito de outra maneira, qual é a nossa atitude a respeito da “verdade”, se corresponde ao termo. Alguns casais dizem que a revelação da aventura lhes resultou positiva. Muitas pessoas, sem dúvida, não podem elaborar esta classe de informação ou trauma, a relação extramatrimonial é uma notícia que lhes produz ansiedades de impossível manejo. Também estão aqueles que não querem saber: “eu não quero me inteirar, e se me conta é porque quis foder-me”. A questão neste tipo de pacientes é o interar-se ou não, e não tanto o que acontece. As considerações anteriores têm consequências na clínica. Há sessões em que, ao saber de uma aventura extramatrimonal, um dos membros acossa desesperadamente o outro para saber “toda a verdade”. Entre a culpa de um e o assédio do outro, o analista se encontra frente ao perigo de um “sincericídio”, que convém evitar, ou pelo menos postergar. Com poucas exceções,
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os detalhes da relação caem muito mal ao enganado/a e agregam traumas que não terão uma fácil elaboração posterior. Alguns parceiros, em uma posição infantil, ignoram que há confissões que fazem um dano desnescessário e que não poderão voltar atrás do que foi dito. Os segredos, a intimidade e a privacidade formam parte do funcionamento psíquico adulto, e saber o “como” de uma relação com um terceiro – incluídos no fervor de uma discussão- geralmente não ajudam a um posterior bem-estar do casal. Os “porquês”, em troca, geralmente entram mais facilmente em um intercâmbio produtivo.
9. O melhor arranjo possível. Embora as relações extramatrimoniais tragam, às vezes, sofrimento ou outros efeitos prejudiciais, em muitas situações parecem ser o melhor arranjo possível. Isto, a meu juízo, geralmente fica claro para os psicanalístas que têm passado pela experiência de atender pacientes que querem variar e tornar mais rica sua vida sexual e afetiva, porém desejam, também, manter sua estrutura familiar e de casal. Sem entrar no terreno moral, vê-se muito pouco, nos consultórios psicanalíticos, a rigorosa monogamia.
10. As diferentes necessidades sexuais dos dois cônjuges. Há casos de sexo extramatrimoniais que ocorrem devido a diferenças marcantes nas necessidades sexuais dos dois cônjuges. Eliseu, por exemplo, tem 52 anos e recebia betabloqueadores (medicação que diminui o desejo sexual). "Não tenho interesse sexual, assegura com certo desinteresse e acrescenta à mulher: “você, se quiser, arranje um amante”. Há indivíduos que buscam dedicadamente relações sexuais com outros ainda quando dizem estar bastante satisfeitos com a relação sexual com seu parceiro no casamento. O que eles planejam marca a questão em um nível quase biológico: estão satisfeitos com o outro/a, mas fica um remanescente de avidez sexual que o parceiro não está disponível de satisfazer. “Não gosta de ter relações sexuais tanto quanto eu”, dizem de seu parceiro.
11. Em que consiste a traição. Em alguns casais, ambos têm aventuras com terceiros, mas as mantém exclusivamente sobre bases sexuais, e o que seria percebido como deslealdade e / ou infidelidade ao companheiro é uma união emocional profunda com outro/a. Os cônjuges, nestas condições, mantêm geralmente suas responsa-
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bilidades como pais e esposos, e as relações extramatrimoniais se levam com discrição e sem compromisso emocional importante com o terceiro.
12. Uma poesia. Uma poesia para pensar a clínica: RUA DO SENA de J. Prèvert. Rua do sena as dez e meia da noite em um beco um homem titubea ... ... uma mulher o sacode... ... os dois estão muito pálidos o homem deseja realmente sair... desaparecer...morrer... porém a mulher sua voz que sussurra não se pode evitar ouví-la é lamento ordem ... um recém-nascido enfermo que tirita sobre uma tumba uma canção uma frase sempre a mesma ... Pedro, diga-me a verdade quero saber tudo diga a verdade... ... Pedro quero saber tudo 52. Rue de Seine, traduzido do francês para o espanhol por Juan José Ceselli, fabril editora.
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... Vamos acalma-te, estás louca ... se agora o mundo entrou em colapso sobre ele e o agora está prisioneiro encarcerado por suas promessas... ... A poesia anteriormente transcrita reflete, com realismo, o clima regressivo de desamparo e desespero que inunda, com frequência, os parceiros envolvidos numa situação deste tipo. Se o analista não se identifica com nenhum, pode ajudar a elaborar e superar o clima regressivo, obviamente com o timing adequado que ajude a metabolizar a situação traumática. As personalidades prévias determinam, e muito, as possibilidades de elaborar. Neste sentido, o dispositivo de terapia de casal pode não ser o mais adequado, pois não é o mesmo ter-se a ideia de que ninguém morreu, apesar do ocorrido, na privacidade de uma terapia individual, do que fazê-lo na presença de um terceiro, o parceiro, a quem não se pode pedir nem esperar que colabore. A mulher da poesia, como tantos homens e mulheres, solicita repetitivamente saber “a verdade”. Esta é uma reação muito frequente quando recém se descobre aventura do outro/a, diferente do que ocorre quando passa mais tempo. Comentando este fato e esta poesia em grupos de trabalho, os participantes fizeram diferentes comentários a respeito: “Pergunta o que já sabe”, “é uma pergunta mórbida”, “excita-lhe a cena primária”, “pergunta sobre os traços da mulher que ganhou o tal Pedro”.
13. Um caso clínico. Marcelo e Mercedes consultam em abril de 1993. Ele é cinesiologista, e ela trabalha em computação. Formam uma família de classe média. Vivem em um apartamento no centro de Buenos Aires. No piso térreo, Marcelo tem seu consultório. Mercedes chama pelo telefone e solicita uma entrevista que tem que ser muito, muito urgente. O terapeuta lhe dá um horário para o dia seguinte. No dia da entrevista, 10 minutos depois do horário acordado, ela telefona para o consultório para perguntar o endereço exato. Na porta do edifício, já 20 minutos atrasados, liga para dizer que está esperando seu marido e pergunta se sobe sozinha ou o espera. Em síntese, chegam 25 minutos atrasados.
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Eles têm 50 e 48 anos e têm 6 filhos (3 homens e 3 mulheres, a maior tem 28 anos). (a) Marcelo: O tema foi que tive uma história com uma mulher durante 5 anos. Um dia Mercedes me descobriu. Voltei para minha casa porque minhas filhas me chamaram. Cortei a relação por 6 meses, depois voltei. Não podia cortar ela porque me dizia que estava apaixonada. Eu não queria que se ressentisse, é muito particular. Não consegui terminar bem, ela me prometeu vingança e mandou uma carta a Mercedes, sem poupar detalhes, exagerando. Contava histórias minhas...eu para relativizar o que tive com ela, contei que havia saído com muitas outras, o que não era verdade, porém ela conta na carta como se eu fosse um degenerado. Mandou também e-mails Mercedes olha o chão em silêncio. (b) Minhas filhas souberam e vieram as três falar comigo em meu consultório, me tiraram o que tinha a mão (O terapeuta se pergunta o que queria dizer). Gustavo, meu filho mais velho, de 18 anos, viu a carta. É muito introvertido, porém ele diz a Mercedes que queria “cagar a pau”. Me preocupou muito. Faz 1 ano Mercedes recebia mensagens tipo “tu és uma corna-...tu és isto” de todo o tipo... eu pensava que não era ela. Agora creio que sim. Diz que eu prometi que ia me separar, porém... Gustavo é introvertido e está muito afetado pelo que soube...disse a Mercedes que está muito zangado comigo. Porém Gustavo me trata como se nada houvesse. Entende? (c)Terapeuta: Entendo, creio que entendo em parte o que me contam, a sucessão dos fatos, mas, o que os fez vir neste momento? Por que resolveram vir agora sendo que isto vem acontecendo desde muito tempo? Por que vêm aqui, hoje, o que os motivou a pedir agora uma consulta...? (d) Marcelo: Fiquei angustiado porque Gus soube agora em plena adolescência... Tenho que sentar com ele e falar, ele não sabe que eu sei que ele sabe. Mercedes falou com ele, não sabia se ele teria que fazer tratamento psicológico, não sei. É muito forte para um filho. (e) Mercedes: O ano passado fizemos entrevistas de casal com outro terapeuta. Marcelo havia deixado a relação. Tivemos conversas com o terapeuta de Marcelo, que era também terapeuta meu, uma mescla... O que Gustavo leu foi terrível. Para mim foi difícil. O que Gus leu falava de chafurdar, relações sexuais, gemidos, que não queria usar preservativos. Gus a leu e foi dormir na sua namorada, ainda não voltou para casa para dormir. Em março de 1990, eu comecei a receber mensagens, diziam que eu era cornuda, que era isto, aquilo. Gus leu mais mensagens no celular, ele o revisa...
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Seguem falando um tempo longo. (f) Terapeuta: Me parece que das coisas que vão dizendo, teríamos que diferenciar dois problemas conectados, porém diferentes, um de casal e outro de família e que um problema que agora aparece como novo e urgente é que não se explode a família, dado que os filhos estão no meio de todos os problemas de vocês. Neste sentido, creio que Gus deve estar mal, porém, o mesmo acontece com as meninas, que também estão muito envolvidas em tudo. A você, Marcelo, te trancam em teu consultório. (g) Mercedes: Estávamos mal, porém agora tudo espirrou. As meninas não sabem que isto seguiu... Marcelo faz dois anos que foi a Miami a negócios e foi com a amante. Levou ela a Miami, e não me levou... (chora pela única vez na sessão. O terapeuta sente-se perplexo). ... (h) Depois de um tempo em que se fala de várias coisas, o terapeuta diz que há muitas coisas em jogo, e muito diferentes, que ele não os conhece ainda, porém, mas crê que o primeiro a fazer seria criar uma barreira entre o problema dos pais e os problemas dos filhos, como uma forma de proteger a família e os meninos. Que eles estão errados, mas, a família e os filhos também estão. (i) Mercedes: Realmente nunca havia pensado que a família e os meninos também estão mal, porém ... agora que penso sobre isso. (j) Marcelo: Gustavo não quer voltar para casa. Eu não sei como falarlhe. (k) Terapeuta: que pensaste? (l) Marcelo: Bom, dizer-lhe que ela inventa, que estou em uma crise com a mãe, mas que não é certo o que esta mulher diz de mim, um pouco diz algumas mentiras piedosas e outro pouco a verdade. Como te parece que eu fale? (m) O terapeuta responde que lhe deixe ter mais informações, que, todavia, lhe faltam elementos, porém Marcelo insiste, peremptoriamente, em um conselho sobre como falar com Gustavo. Parecia que este conselho era o único que lhe importava. (n) Terapeuta: Eu creio que você tem que falar com ele como pode, como pai, com teu estilo... e que, algo a falar, não sei se tem que ser agora mesmo e com urgência. Talvez pudéssemos esperar que tu tivesse as ideias um pouco mais claras. Isto, se querem fazer algo, é um processo que começa. Seguem falando de diferentes coisas, ele diz que é “um filho de quatro irmãos” (lapso evidente); ela que seu pai era muito mulherengo e que morreu quando ela tinha 2 anos e também, perderam contato com toda a família paterna. (ñ) No término da entrevista, o terapeuta insiste que o que primeira
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recomendação concreta é levantar uma barreira entre eles e os filhos, especialmente em relação a Gustavo, e que isso é o que levaria em conta, se Marcelo falasse com Gustavo seria: não dar detalhes, tirá-lo do meio entre o pai e a mãe, e de alguma maneira transmitir-lhe que seu lugar não é no meio da crise dos pais, mas fora desta crise, em uma relação com a mãe e o pai menos invadida por informações e contrainformações sobre a sexualidade dos pais. O terapeuta sente dúvidas sobre a pertinência do que disse anteriormente. Propõe a eles que pensem se a entrevista lhes serviu e que se pensam que efetivamente lhes serviu, que voltem a chamá-lo para fazer outra. Umas horas depois de finalizada a entrevista, se reprova a si mesmo por não ter organizado ali mesmo uma segunda entrevista, dado que são pessoas que “se não se agarra” não vão fazer nada, como até o momento não fizeram, porém se dá conta de que não teve vontade de se encarregar de “agarrá-los”. Em termos gerais, diz a si mesmo que, nunca gosto de “agarrar” pacientes, porém, quando vê ser necessário, o faz. Neste caso, reflete em uma espécie de auto-reprovação, não quis fazê-lo.
14. Comentários. No caso de Mercedes e Marcelo, o conhecimento da relação extramatrimonial se soma ao impacto de uma carta com informações de todo tipo e detalhes sobre a sexualidade dos pais. O distanciamento de Gustavo para a casa da noiva funciona como uma advertência ao pai de que outros filhos também “podem retirar-se”, advertência que funciona como solidária com a tomada de partido das filhas a favor da mãe (b). A consulta aparentemente está mais determinada pelo impacto da carta e com o que ela implica na vida familiar, do que pela relação extramatrimonial com suas consequências na vida de casal. Marcelo não reconhece sua participação no que acontece, no máximo, sente-se “culpado” pela aventura, porém, sobre sua participação na dinâmica familiar, não formula nenhum comentário. Mercedes sente-se uma vítima e só isso, não reconhece nenhuma participação sua no fato de seu filho tenha lido seus e-mails, não presta atenção ao que ela poderia ter evitado. A necessidade de vingança de Mercedes não tem limites no momento. A organização familiar se assemelha, por momentos, mais a um agrupamento de irmãos que a uma estrutura com funções diferenciadas e pais que ocupam lugares de ordenamento e liderança. No discurso, as funções de liderança que aparecem na vida familiar pareciam ser assumidas pelas três filhas mulheres. A preocupação do pai por Gustavo representa seu temor ao filho/juiz que o condena. Não há em Marcelo uma visão de conjunto a respeito da vida familiar.
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Não é possível avaliar, no momento atual, o futuro da relação entre ambos. A palavra divórcio não aparece em seus discursos e aparentemente são um casal para o qual a separação não é uma opção. Não aparece no discurso de ambos uma diferenciação entre a família e o casal, nem a possibilidade de cuidar da família, ainda que o casal esteja em crise. Isto pode relacionar-se com o lapso de Marcelo (n), nele se revela uma posição subjetiva mais próxima à filial e fraterna do que a paterna. O mesmo se depreende de suas explicações a respeito do por que não podia cortar com sua amante(a), independentemente do quanto refletem parte de uma verdade. A constelação familiar dela fala de um pai fantasmagórico e mulherengo, o que está em consonância com o lugar débil que Marcelo ocupa como pai.
15. As mudanças na sociedade. O lugar das relações extramatrimoniais está mudando vertiginosamente na sociedade atual. Enquanto as legislações vigentes geralmente condenavam as mulheres e permitiam aos homens, o lugar da mulher e a estrutura familiar atual não condiz com legislações anacrônicas. As mudanças neste terreno fazem com que o analista, antes de intervir clínicamente, deva indagar adequadamente qual é o universo de valores com que os pacientes se manejam no consciente, sem supor nada a respeito.
X Violência emocional no casal
A violência emocional ou física entre os membros de um casal constitui um motivo de consulta cada vez mais frequente em terapias de casal, em parte em consonância com o crescimento da violência na sociedade contemporânea e, em parte, porque aparece, a olhos vistos, o que antes era menos evidente. Sem dúvida, as diferentes formas de violência conjugal e doméstica preocupam cada vez mais as autoridades de saúde em todo o mundo. Nesse contexto, existem violências casal de muitos tipos diferentes – emocionais, físicos, unilaterais, bilaterais – e configuram situações clínicas muito diferentes. Por outro lado, todas compartilham a característica de constituir um exercício de poder sobre o outro a quem tenta anular como interlocutor autônomo e o coloca numa situação de dominação e menosvalia. As páginas que seguem tratarão de questões referidas às situações de violência exclusivamente emocional, aquelas que não saem do terreno psíquico. Quando há danos corporais, desenvolvem-se problemas de outra ordem, dos quais este texto não se ocupa. Ricardo e Greta consultam devido às discussões muito violentas. O tipo de violência que acontece entre este casal pode ser apreciado nos seguintes fragmentos de diálogo: Ricardo: Porém, escuta-me uma coisa... Não querias ter um videocassete? Bem, (diz olhando o terapeuta) agora que o tens, anda vai buscar o filme, lhe digo. “Agora não posso”, me contesta. “Puta que pariu”. Ou seja, é tanta discussão por nada que...porque nós brigamos, nós brigamos, nós brigamos. Agora, como não brigamos, agora estou mal porque não sei quanto tempo isto vai durar. Greta: eu não disse que estava mal, disse? Ricardo: eh? Greta: Eu não disse que estava mal, não disse e não estou mal, estou bem.
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... Greta: Eu me sinto mais dócil que você. Eu não sei como dizer pra você: “aqui em baixo”. Ricardo: É uma mentira. Isso é uma mentira. Está recorrendo em uma mentira. Porque, neste momento... Greta: Quando eu posso sair, Ricardo? Ricardo: Quando quiser. Greta: Quando? Ricardo: Bom, quantas vezes eu te disse: “saia de casa já, porque se não, vou eu.” ? E você contesta: “Não, não, eu que me vou caralho, porque, você...” Greta: Uma vez, só uma vez. Ricardo: Bom, viste que podes? Viste que podes? Em algum ponto podes. Greta: Uma vez, só uma vez. Ricardo: Bom, viste que podes? Viste que podes? Em algum ponto podes.Viste, ah...Inclusive te digo mais. Custa muito mais pra ti do que a mim. Eu já estou saindo em silêncio. Quando eu não te contesto algo, começa a conjecturar e não para mais. Tu te armas com uma motosserra de palavras...Tuc, tuc, tuc! Basta! Paramos aqui. Eu já sinto, viste, que estamos em 25 ou 28 graus, e que quando arranca um “Tuuuuuuun” (faz ruído de motosserra), sopra e sobe a pressão, não se aguenta. Então, não me digas que não sabes como parar-me. .... Ricardo: Começa e não paras, já não sei como dizer. Basta! Não se pode discutir o mesmo toda a noite... Não vamos nos entender. Vamos deixar arejar. Greta: Eu não sei por que não se pode falar... Ricardo: (dirigindo-se a terapeuta) Você entende? Você pode explicar? Greta: Para, eu não sou boba. É você que começa a insultar. Não tem jeito, não vai parar... Greta: Eu não tenho porque parar, eu não sou violenta como você... Segundo o tipo de violência, a maneira de abordar a problemática são diferentes na clínica. O fato de Ricardo e Greta nunca terem ultrapassado o
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limite da agressão verbal permite que se mantenha um enfoque dirigido ao conhecimento dos funcionamentos psíquicos de ambos. Pelo contrário, quando se chega ao ataque físico, é peremptório avaliar a pertinência de incluir abordagens diretivas ou de outra forma, dirigidas a evitar, de maneira prioritária, a violência física. A estratégia depende, como sempre, de questões singulares; cada caso é um caso. Quando a violência é só verbal, o trabalho clínico oscila entre tentar diminuir o nível de destrutividade, que é imediatamente urgente, e analisar os dinamismos que geraram violência. O terapeuta pendula entre focalizar-se em uma e outra alternativa, porém, com frequência, diminuir a violência é um pré-requisito para trabalhar em outros níveis. Constitui-se assim, uma situação clínica em que a teorização flutuante, que deveria caracterizar o trabalho do analista, fique muito ameaçada, quando não colapsada pela urgência da atenção.
1. Modos de apresentação. Uma primeira característica a assinalar neste tipo de situação clínica é que cada um geralmente desmente a própria violência e simultaneamente denunciam a do parceiro. No fragmento transcrito, se bem que é óbvio que Ricardo desmente muito, deve se considerar que Greta também desmente muito quando diz “eu estou bem” e, ao mesmo tempo, está utilizando a desmentida para colocar-se em um lugar de superioridade sobre Ricardo. É certo que ela está em um lugar de superioridade, já que está muito mais dona do controle de si, porém usa esta capacidade para provocar Ricardo. Usa a tranquilidade para vencer a força bruta, não a usa com o fim de entendimento recíproco e uma paz sem vencedores nem vencidos. As batalhas verbais são frequentes em sessão, num funcionamento tipo explosão, saem de um tema para outro: começam pela ida ao cinema, se acontece algo com um filho, etc. Esta exposição pode ser minunciosa e detalhista ou bem desordenada porém, seja como for, logo após começar, já não se sabe sobre o que se discute e o analista tem, diante de si, uma sorte de catarata confusional, onde só é claro o objetivo de destruir o interlocutor. Em alguns casos, obedecem à liberdade associativa, com a qual os pacientes falam (ou evacuam), e que permite formar-se uma ideia do latente. Em outros casos, e o mais habitual, trata-se de técnicas pré-existentes estereotipadas e previsíveis em que se passa de um tema para outro, vertiginosamente, para esmagar o inimigo, utilizando um discurso que enumera delitos do parceiro um atrás do outro. Nestes últimos casos, a confusão pode também penetrar na mente do analista, que corre o risco de terminar confundido,
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cansado e desconectando-se. As brigas adquirem a forma de um “vale tudo verbal” em que cada um se permite dizer qualquer coisa. As palavras e a lógica deixam de ter vigência. O que disse, há cinco minutos, que hoje era terça, afirma, sem nenhum pudor, que hoje é quarta-feira. Em termos matemáticos, poderia formalizarse este funcionamento arbitrário com esta fórmula: “dois mais dois é cinco porque quatro mais quatro é vinte”. A discussão, quando a intervenção do analista não produz efeitos, geralmente tende a esgotar-se na rivalidade especular narcisista e acaba mais por fadiga que por outra razão. Isto é o que ocorre no diálogo transcrito entre Greta e Ricardo, no qual pode-se observar como opera a degradação da lógica e da palavra: nos milhões de brigas que têm tido, Greta pode parar Ricardo apenas uma vez, porém, para ele, isto serve para demonstrar a igualdade de ambos neste terreno. Quando um clima assim se instala em sessão, a análise resulta inoperante. O analista trabalha com a palavra e toda desvirtuação deste instrumento é um alarme vermelho no trabalho analítico. Se a palavra não tem valor, não há análise possível, e a violência física é uma ameaça no horizonte. O analista deve considerar-se mesmo como um guardião da palavra como ferramenta de mudanças. Muitas vezes eu, em tom de brincadeira, lhe disse “vou gravar”. Jamais o fiz, nem vou fazer, porque o dia em que grave é para separarmos. Porém, dizia a mim mesmo, “isto é enlouquecedor. Acabas de dizer branco e agora diz preto”. “Não, não, não”. “Acabou de dizer branco”. Não, não, não”. Acabas de dizer branco. Se quisesse dizer preto, acredito, porém disseste branco. E agora está dizendo preto”. Então eu tomo o branco e depois me encontro com preto...É muito difícil”. Quando a dinâmica da discussão adota este viés de esterilização da palavra, geralmente coincide com um processo de depósito de todo o mal no outro. O parceiro passa a ser um depósito de resíduos onde se joga todo o lixo. Muito do que dizem são respostas a ataques que aconteceram no passado distante, porém voltam à memória no momento da briga e se sobrepõem à realidade atual em uma espécie de atualização/alucinação. A interação se transforma em uma devolução de agravos que se reatualizam. Nestes casos, se escutam o analista, e este tem os elementos para fazê-lo, convém localizar as palavras atuais que explicam as do tempo passado. E também
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agregar que a discussão atual é um exemplo de como tudo o que passou retorna, e que, por isso, seguindo adiante, seria conveniente baixar o tom de voz, já que as agressões de hoje serão as causas do que será devolvido amanhã. As brigas geralmente adquirem uma dinâmica na qual é impossível pôr um ponto final. Nenhum dos dois pode realizar um corte. Este dinamismo translada a sessão a discussões intermináveis das quais se desprendem todos os mecanismos possíveis: magnificações, deslocamentos, minimizações, deduções arbitrárias, personalizações, generalizações, etc. Ricardo: Eu não estou dizendo que és uma menina que pega uma faca e corre pela casa toda. Digo que começas e não paras, eu já disse muitas vezes. Muitas vezes tive que dizer-lhe: “Para! Para! Para!”. Faz meia hora que estamos falando do mesmo assunto, não entramos num acordo. Faz dez minutos que estávamos em vinte decibéis, agora estamos em sessenta decibéis, não faz falta, rompe os tímpanos. Não vamos nos entender. Paremos, precisamos arejar um pouco, que baixe os calores, sigamos discutindo ou não, seguimos amanhã. Me dá a sensação que neste ponto não... não sabes como és. Bom, eu tampouco sei como explicar. Eu tenho muito trabalho pessoal, devia anos de minha terapia, e não sei como...Vamos ver ... Eu acho que ... para ver ...que a experiência é intransferível, a sabedoria que está em um livro fica em um livro, então, não sei como passar a ela, entregar para ela. E no momento de calor da briga, menos ainda, muito menos. Então, digo: “bom, é o momento de parar”. Talvez não seja a melhor determinação, mas entre cagar ela a pau e não cagá-la a pau, é não te cagar a pau. Ou seja, tem que parar. Não podemos discutir como peronistas e radicais, River e Boca... Greta: Eu não sei qual é o risco que ele vê em certo tipo de conversa. Ou seja, eu não sinto que... Ricardo: A degradação, gorda! Greta: Para. Eu não sinto tanto perigo nisso. Eu, por exemplo, não sei... Em plena discussão, eu não sou uma pessoa que insulta, nem uma pessoa que grite. Ou seja, é
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uma discussão... Ricardo: Porém, agregar elos à cadeia, indefinidamente, não se pode... Greta: Eu não tenho a sensação de que tenho que parar porque se não me transformo em Hulk e quebro tudo. Não sou deste registro. A discussão seguiu assim, sem parar, durante um longo tempo de sessão. A impossibilidade de realizar um corte em sessão é um indicador do tipo de funcionamento que subjas à briga. O mais habitual é que funcionamentos onipotentes primitivos sejam a causa da impossibilidade de pôr um fim a uma interação na qual se jogam vulnerabilidades narcisistas. Não se pode aceitar que o outro é um outro e que, embora esteja equivocadíssimo, pensa e faz diferente e não existe a possibilidade de que mude de ideia ou de conduta. A impossibilidade de “cortá-la” no enfrentamento, corresponde a uma impossibilidade de aceitar um limite, uma impossibilidade que evidencia a própria impotência, uma forma de castração. Em referência a isto, Ricardo se reprova quanto a não saber como “explicar” à Greta como são as coisas. Independentemente das muitas questões em jogo, Ricardo não entende que não se pode explicar a um outro o que este não tem disposição para entender: a única resposta possível é aceitar um limite, entender que não há interlocutor.
2. Os dinamismos latentes. Os conteúdos manifestos e latentes nas situações de violência emocional são infinitos. A ideia fundamental para a abordagem é que só certa diminuição da violência vai permitir trabalhar com o casal sobre o que aparece no conteúdo da sessão, porém, possivelmente, e apesar do declarado pelos pacientes, provavelmente haja, na violência que se exibe, um gozo mortífero ao qual ambos têm dificuldade de renunciar. Os dinamismos subjacentes, com mais frequência, constituem alguma gama de funcionamentos infantis com muito de onipotência e possessividade. Não se suporta o outro fora da esfera da própria onipotência e, muito habitualmente, o sujeito violento se sente dono do parceiro como uma criança se sente dona do corpo da mãe. Outro ingrediente habitual é um déficit nos controles egoicos, com a consequente impulsividade. Em algumas ocasiões, a conduta violenta é um funcionamento que oculta dinamismos psicóticos. Em alguns destes casais, o desaparecimento
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da violência em um polo leva à descompensação psicótica do outro, com internação psiquiátrica. Nesses casos, se faz evidente a participação de funcionamentos sadomasoquistas, que são muitos, e a construção da intervenção deve ser cuidadosa, evitando o analista a tomar partido de um ou de outro. Coloquialmente, a intervenção deve transmitir algo assim: “Os dois são guerreiros de raça”, “Ninguém retrocede”. De outra maneira, o terapeuta está no lugar ingênuo e equivocado de assinalar vítimas e vitimados onde não há. As alianças inconscientes, em muitos casos, se estruturam para deixar fora da consciência o gozo sadomasoquista. Deve-se levar em conta que, em muitos casos, a intimidade dos funcionamentos sadomasoquistas é melhor analisada em dispositivos individuais; nestas situações, no dispositivo vincular, podemos muito bem conformarmo-nos em localizar o problema e a preparar o terreno para um tratamento em outro dispositivo. Em minha experiência, há sempre dois diagnósticos fundamentais a realizar. Um primeiro diagnóstico se refere à interdeterminação operante e aspira descobrir como a violência depende da interação e retroalimentação entre os parceiros, mais além da apresentação de superfície, que habitualmente é de vítima e vitimado. Um segundo diagnóstico se refere aos motivos violentos ou dos violentos. Temos que distinguir entre aqueles sujeitos cujo motivo primário é anular o outro, porque no ato de anulá-lo encontram um gozo perverso, e aqueles cujo motivo primário é resgatar a si mesmo de uma situação traumática, geralmente de inferioridade, submetimento ou menosvalia. Este tipo de pessoa, para romper suas cadeias, pode chegar ao dano físico e, no resultado final, então contém uma grande dose de destrutividade apesar de os motivos primários não serem destrutivos. Levar em conta esta diferença rende muitos frutos na clínica.
3. A intervenção do analista. Os membros do casal geralmente não registram a violência que estão protagonizando. Um primeiro trabalho, em muitas destas situações, consiste em descrever o enfrentamento implacável que está acontecendo e eles desmentem; ao mesmo tempo que lhe transmitir firmemente a ideia de que uma discussão pode ser muito enriquecedora, se é bem conduzida. Apenas a intervenção do analista descrevendo o que acontece, quando é possível dizer algo em tom tranquilo, fora da guerra, opera positivamente. A participação do analista deve começar por descrever os modos explícitos ou encobertos de violência, assinalando que os parceiros percebem a violência no outro,
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mas não a própria. A descrição deve apontar e evidenciar o jogo em que ambos propõem ser anjinhos, vítimas de uma guerra em que o outro é culpado. Uma guerra se faz entre dois, basta que um dos parceiros se abstenha para que não haja guerra entre o casal, embora, isso sim, possa fazer sobrevir algo, talvez, mais doloroso, como é a separação. O analista deve ter presente que, na clínica dos vínculos, não existe uma medida “padrão” para medir violências, e que muitas vezes aqueles que apertam o gatilho são “moscas mortas” que têm a especial habilidade de golpear o parceiro em seu tendão de Aquiles com ares de “eu não fiz nada”. Na intervenção, não convém referir-se a nada do que o casal conta que aconteceu na casa ou na vida extraconsultório, já que sempre um dos parceiros impugna as versões do outro e não há maneira de saber, de forma confiável, o que aconteceu. O ideal é mostrar-lhes como estão brigando aqui e agora na sessão, de que maneira destrutiva e esterilizante. Isto é o que serve para trabalhar como são e como funcionam, já que se o analista se refere, em sua intervenção, a acontecimentos que não presenciou, estará em um lugar difícil para defender-se das impugnações que certamente virão. Para ilustrar o que foi dito, temos o primeiro fragmento de diálogo transcrito entre Ricardo e Greta. Ele acusa-a de coisas que aconteceram de uma maneira que é impossível ao analista saber; o que ele pode saber é o que acontece neste momento, na sua frente. Ricardo funciona como uma motosserra de palavras e não pode parar, ou seja, faz o que denuncia em Greta. O terapeuta deve observar aquele momento e descrevê-lo a Ricardo. Aquilo que com outro paciente poderia parecer óbvio, para Ricardo poderia constituir-se uma intervenção desafortunada, seria assinalar, como projeção, o que denuncia em Greta. Uma intervenção deste teor, neste momento, pode reciclar a violência, dada a impossibilidade de reintrojeção de Ricardo. O terapeuta deve contentar-se em descrever o que está diante de seus olhos. Talvez Greta funcione em sua casa como disse Ricardo, talvez não. Ela pode muito bem funcionar assim, porém o terapeuta deve falar, nestes casos, unicamente do que ele está materialmente percebendo. A situação clínica não é a mesma quando o vínculo é simétrico e quando o vínculo é assimétrico, entendendo por simetria que ambos membros tenham um nível equivalente de desempenhos egoicos. Se um dos dois cai em situações de colapso ou de desvalimento egoico, desenvolvem-se problemas específicos. A clínica destas problemáticas é sempre complexa, porque
53. Ver Spivacow M. (2005) clínica psicoanalítica con parejas. Entre la teoria y la intervencion. Ed. Lugar. BsAs. 2005
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um parceiro que, em um momento entra em um verdadeiro colapso, da maneira como Winnicott descreveu, muito pouco tempo depois, pode aparecer como um claro provocador. Nas ocasiões em que uma sessão resultou absolutamente estéril pela violência estereotipada e repetitiva, um recurso técnico é, na próxima sessão, antecipando-se a tudo, e antes de que algum deles traga algum tema, dizerlhes algo assim: “Olhem... da outra vez não pude dizer nada porque não me deixaram. Creio que o que ocorreu foi exatamente o que os traz a tratamento e me pedem ajuda para modificar... seria interessante ver se hoje podemos retomar algo e falar de outra maneira. Não sei se estão em condições...” Ou seja, adiantar-se ao estravazamento emocional que logo anula suas capacidades reflexivas e ver se podem escutar, pensar, retomar algo do que aconteceu na sessão anterior. Quando a sessão se sobrecarrega em interações repetitivas, alguns colegas, com êxito, interrompem a sessão. Este tipo de recurso pode se visto como um modo de levar a cabo o que os pacientes se propõem: “saber cortála”. Seja qual for a intervenção do analista, o manejo clínico das sessões com violência emocional requer um controle do analista das próprias reações de raiva, fadiga, aborrecimento, esterilidade, inquietação, etc. Muitas intervenções clínicas que resultam desafortunadas se originam, como diria Freud, no fato de o terapeuta não poder “conter a contratransferência” e fazer prevalecer emoções pessoais sobre os requerimentos profissionais. A violência manifestada transborda no analista, e este não tem a paciência adequada. Por último, é válido recordar que, quando uma discussão termina em alguma forma de submissão, a paz alcançada é uma paz “minada” e, a qualquer momento, explodirá a bomba relógio que o submetimento ativa. Porém, neste tipo de casal, o término de uma discussão será aquela que se pode efetivar e, mesmo que não seja “perfeito”, temos que priorizar, na intervenção, o valor de poder “cortá-la”
*** A violência emocional apresenta, na situação analítica, um dinamismo de luta pelo poder que se opõe à possibilidade de associar livremente e de pensar entre vários. No trabalho clínico, estão colapsados vários dos objetivos que caracterizam o trabalho analítico. Não há busca de insight em nenhum dos parceiros que se utilizam de mentiras, técnicas de anulamento do outro e de “fazê-lo fazer”, enfim... Configura-se uma espécie de emergência onde o objetivo - quase o desafio – do terapeuta é voltar a condições mínimas de trabalho analítico, coisa que nem sempre é possível. Nestes casos vale
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a afirmação já citada por Winnicott de que “há coisas que não são psicanálise porém e aquele que melhor pode fazê-los é um psicanalista”. Parafraseando Lacan, poderíamos dizer que o analista não deve retroceder diante da violência, embora com ela, como com a psicose, o êxito geralmente seja esquivo. Os funcionamentos violentos nos vínculos estáveis estão arraigados em funcionamentos psíquicos primitivos e em alianças inconscientes muito difíceis de modificar. Os pacientes geralmente consultam porque “assim não se pode seguir”, porém, é difícil para eles viverem de outra maneira. Em minha experiência, os melhores resultados sobre a diminuição da violência se alcançaram nos casos em que puderam implementar-se tratamentos individuais em paralelo ao tratamento de casal.
XI
Os casais de amanhã. O futuro a partir de uma clínica de casais.
Atualmente, as maneiras como um casal está se formando está em permanente mudança, o que envolve seus integrantes, a família e toda a sociedade. Se até o final do século XX, o casal amoroso paradigmático era um casal heterossexual e, em consequência, a ampla maioria de crianças se criava com um papai e uma mamãe, no começo do século XXI, isto já não é bem assim. O casal amoroso, no vínculo social estabelecido e legalizado pelo coletivo, já sofreu grandes modificações nas últimas décadas e, pelo que se pode visualizar, as mudanças serão ainda mais vertiginosas no futuro próximo. Nos países industrializados e tecnificados, da Europa e da América do Norte, surgem e se multiplicam variadas formas de casais: homossexuais e heterossexuais de todo tipo. A grande protagonista nestas culturas é a tecnologia e, com seu desenvolvimento avassalador, cada vez tem menos prevalência nas estatísticas da cédula social que constituía um casal heterossexual com filhos. As técnicas atuais de reprodução assistida permitem ter filhos fora dos circuitos biológicos presentes na natureza e aparecem casais homossexuais com filhos, mulheres solteiras que se inseminam, mulheres pós-menopausa que dão a luz, formas de casais e de famílias que antes era inimagináveis. Nos países menos desenvolvidos – como Argentina e outros da América Latina – a situação varia muito segundo o setor social. Em termos gerais, nos últimos anos, as questões que ocupam fundamentalmente a sociedade, no referente aos casais, seguem sendo as sequelas da miséria econômica e a conquista de direitos por parte da mulher, porém, nos setores sociais médios e altos, cada vez mais, se apresentam os mesmos problemas que nas sociedades mais tecnificadas. As formas de vínculo amoroso vigentes na sociedade são diferentes nas distintas regiões do mundo ocidental, segundo os perfis de desenvolvimento econômico e as culturas dominantes. Mas estes diferenciais não são absolutos e assim como as classes médias e altas do hemisfério sul compartilham semelhanças com as do hemisfério norte, a miséria econômica e o adiamento de comportamentos anteriormente tidos como característicos da
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mulher fazem diferença, também, no hemisfério norte. O casal, sem dúvida, está mudando. Seguramente em todas as épocas, desde sempre, esteve em um processo de mudança, porém hoje as mudanças são mais vertiginosas. Para dizer ironicamente, cada vez mais o Outro prefere dedicar suas regras e normas a questões mais importantes para a economia de mercado e se ocupa menos do casal, ao qual deixa por conta do seu destino. Na sociedade atual, – os vínculos amorosos socialmente vigentes não têm regras de clareza e rigidez equiparáveis às que anteriormente os normatizavam. Os valores a respeito do casal e à família não propõem hoje o que proporiam na sociedade de algumas décadas passadas. Um homem “de bem” não é necessariamente hoje um homem de família, nem dizer de alguém que é um homem de família implica um mérito para os jovens de hoje. As propostas do Outro, tal como pode comprovar-se na televisão, se referem a ter dinheiro, ser um vencedor, ter um carro potente. Não há religiões massivas e oficiais que regulamentem a vida do casal e consigam, com isto a situação do passado, nos países católicos. O que diz o Papado coexiste, nas manchetes dos jornais, com as notícias sobre sacerdotes pedófilos. As causas das mudanças são muitas e muito se tem escrito sobre elas, porém não está em nosso propósito aprofundar nesta direção. O que ocorre, ocorre... e a intenção destas páginas não é estabelecer causas em muitos aspectos impossíveis de precisar, senão descrever a situação e analisar algumas das consequências na sociedade e no campo da psicanálise.
1. O crescimento da violência conjugal e familiar. Ao mesmo tempo em que a tecnologia exerce efeitos, sobre os quais logo nos deteremos, os problemas incluídos na heterogênea categoria de violência conjugal e familiar têm cada vez mais relevância na totalidade do mundo ocidental. Não se trata, certamente, de um invento de nossa época, e qualquer um sabe que a violência tem sido uma constante na história do matrimônio e da família. Porém a sociedade de nossos dias promove uma violência cada vez maior, por múltiplas razões. Em primeiro lugar, as grandes cidades não desenvolvem as tramas sociais que anteriormente continham os sujeitos, elas e potencializam a solidão e o isolamento com sua correlação de agressão de todas as ordens. Por outro lado, a ideologia de nossa época a respeito do casal propõe que o vínculo deve fornecer satisfação imediata, sem considerar o trabalho psíquico que necessariamente implica uma relação que se prolonga no tempo. Uma ideologia tal leva a separações frequentes e à violência como modo de solução já que, onde não se propõe um trabalho psíquico, ocorrerão separações
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expressas ou haverá violência aberta ou oculta. Enfim, entre outras razões para pensar o aumento da violencia na época atual, deve se destacar o lugar da imagem em nossa cultura e a tendência do Eu-ideal a predominar nos funcionamentos psíquicos sobre o Ideal do Eu. O Eu ideal, digamos telegraficamente, sempre quer tudo, aqui e agora e mais... desconhece os limites e leva à violência. Até aqui, então, algumas razões do aumento da violência na sociedade contemporânea. Nos estratos mais baixos da sociedade, se agrega ao antes dito que, onde a miséria entra pela porta, o amor sai pela janela. Sabemos que a pobreza é algo diferente da miséria e que enquanto na primeira há lugar para a dignidade e para os valores humanos, quando a miséria se adona de um conjunto humano, junto com ela vem a promiscuidade, a droga, e a degradação em suas múltiplas variantes. E isto é o que acontece, é duro dizer, em muitos setores da sociedade em nossos países, e as estatísticas sobre abuso infantil, maus-tratos e violações em todas suas formas constituem um triste testemunho. A miséria promove a violência porque, digamos academicamente, trata-se de uma situação traumática de tipo acumulativo que debilita todos os circuitos de inibição, ao mesmo tempo que promove comorbidades do tipo da droga e a criminalidade, que, por sua vez, potencializam a violência....
2. Os efeitos da ciência e a tecnologia. O desenvolvimento da ciência com sua correlação com a tecnologia já impôs uma verdadeira mutação da civilização, por momentos maravilhosa, por momentos terrorífica. O homem já chegou à lua, é capaz de clonar-se, é possível destruir o globo terrestre com algumas bombas atômicas, em um pequeno computador cabe mais informação que na biblioteca da Alexandria. Neste contexto, que em algumas décadas atrás era de ficção científica, as mudanças que afetam a reprodução são fundamentalíssimas, já que trazem questões transcendentais para o ser humano. Contudo, vale a pena recordar, a problemática da reprodução é um dos núcleos organizadores do casal humano.
2.1 A reprodução se tornou independente da sexualidade. A tecnologia torna a gestação independente da sexualidade de tal modo que as novas técnicas de fertilização permitem a fabricação de organismos humanos a partir de óvulos ou espermatozóides anônimos. As pes-
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soas já não são obrigatoriamente filhos de um casal heterossexual, nem sequer de um casal. A parentalidade e a filiação assumem formas inéditas, em que a mãe que teve a criança em seu ventre pode não ser a que produziu o óvulo e, mais ainda, a mãe que cria a futura criança pode ser uma terceira mulher. Por outro lado, os espermatozoides, que antes eram fornecidos pelos pais, agora podem ser gerenciados em um banco de esperma. Nestes terrenos, surgem problemas cruciais para a sociedade. Já existem leis nos países mais avançados para legislar o que, tal como estão as coisas, aparece como um perigo a evitar: que se podem comprar crianças nos laboratórios médicos da mesma maneira que se compram bonecas nas lojas de brinquedos. Porém, os temas a resolver são muito maiores. Assim como se tem instalado no âmbito jurídico a ideia de que a criança adotada tem direito a conhecer a seus progenitores biológicos, por quanto esta informação faz a sua identidade e o seu patrimônio...Como vão legislar o direito dos sujeitos a conhecer suas origens genéticas? Sabe-se do anonimato atual dos bancos de esperma e de óvulos, o que, então, poderia ser alvo de críticas. Mas há muitos outros problemas a respeito da legislação: como legislar o uso de sêmen de homens falecidos – obtidos por eletroejaculação? É válido legalizar o uso de óvulos de irmãs ou mães, ou seja, aceitar o que há alguns anos teria sido qualificado de incesto? Uma pergunta a trabalhar é em que lugar são deixadas as funções que em psicanálise se chamam materna e paterna. Winnicott (1960, pag 44 nota) dizia que um bebê sem uma mãe não existe e Green(1986) agrega que também sem um pai. A humanização aparecia como impensável sem a ação eficaz das funções materna e paterna. Como pensar a constituição de um sujeito quando se modificam os lugares de mãe e pai ao que aludem Winnicott e Green? Como pensar a passagem do organismo humano – um sucesso meramente biológico – ao que S. Bleichmar chama subjetividade – o psiquismo enraizado em uma época?
2.2 A polaridade masculina e feminina tem perdido a vigência na formação de casais. No ano de 2002, E. Roudinesco (2007, pag.205) calcula que existem na América do Norte entre seis e quatorze milhões de crianças criadas por casais homossexuais, femininos ou masculinos. As relações homossexuais institucionalizadas são cada vez mais numerosas. Adotam bebês e os criam...O masculino feminino é hoje apenas um eixo entre outros no ordenamento dos casais amorosos e/ou parentais. Uma pergunta a ser feita é como vão mudar no futuro os laços de parentesco. Todavia não temos nem sequer
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nomes para designar aos dois sujeitos homossexuais que criam um bebê. São duas mamães? Dois papais? Este estado de coisas leva a variadas perguntas no âmbito da teoria. É evidente, por exemplo, que já não se pode dizer que o esperável em um sujeito é a identificação com o progenitor do mesmo sexo, porque pode ser que este progenitor não exista. Nem se pode seguir postulando o Édipo descrito por Freud como a matriz formativa do psiquismo “são/neurótico”, quando muitas crianças já não são criadas por uma mamãe e um papai, e a família não coincide minimamente com a forma da família de Édipo. Os paradigmas psicanalíticos para pensar o psiquismo devem sofrer reformulações profundas.
2.3 A família não é o que era. As mudanças na sociedade fazem aparecer formas inéditas em substituição da organização familiar que regia até algumas décadas. Consultam casais homossexuais que adotam, mães solteiras que se inseminam. Na consulta psicológica, seguem se apresentando casais e famílias de formato “tradicional”, com os conflitos que historicamente as caracterizam e, junto a elas, as famílias que poderiam se chamar atomizadas ou destruídas, em que alguma forma de violência faz estragos: adições, violência física, atuações. Em consonância com esta destruição, um dos motivos da consulta mais frequente é o abuso sexual ou físico em suas diferentes variantes. Outra consulta muito habitual na atualidade se origina no que se chama segundos matrimônios e/ou famílias reconstituídas. Já não se trata da família destruída ou fragmentada, mas da família reconstituída e conformam, a meu juízo, o modelo de casal mais representativo de nossa época. O cimento que as une já não é a legislação, posto que muitas vezes não passaram por nenhum registro civil, nem a lei religiosa, porque a maioria das religiões geralmente as condenaria, nem com nenhuma outra forma de autorização social. O que as une fundamentalmente é a vontade de construir um grupo familiar a partir da dissolução de famílias anteriores nas quais ocorreu o divórcio. Trata-se do que muitos chamam de família afetiva e expressa uma das formas em que homens e mulheres de nossos dias se agrupam para reduzir a solidão e o isolamento que promove o mundo contemporâneo. O que é hoje uma família? O que a caracteriza? Considerando a diversidade de modalidades de família que se podem reconhecer na atualidade – diversidade que, em menor escala, também existia antes – e a variabilidade das formas familiares na modernidade tardia e pós-modernidade, pode valer a pena recordar a opinião de Lacan sobre a função da família no que se refere à passagem de um organismo biológico a um sujeito: “lo irreductible
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de la transmisión de un deseo que no sea anónimo”.
3. Efeitos das mudanças nas teorias da saúde mental e da psiquiatria. Uma consequência das mudanças vertiginosas é que a classificação internacional de transtornos mentais a partir do D.S.M. IIIR já não considera a existência de perversões, e muitas condutas não são patológicas como eram antes. Com efeito, a partir de uma compulsão veredicto eleitoral entre os membros da associação norte-americana de psiquiatria (um simples veredicto eleitoral) se decide eliminar a categoria diagnóstica de homossexualidade e também a de perversões. A partir deste momento se fala de parafilias, que se caracterizam “por impulsos sexuales intensos y recurrentes, fantasías o comportamientos que implican objetos, actividades o situaciones poco habituales” (DSM IV, pag. 505). Incluem o exibicionismo, o fetichismo, o fronteiriço, a pedofilia, o masoquismo, o sadismo, o fetichismo travestido, o voyeurismo e a parafilia não especificada. R. Stoller, por sua vez, se opõe ao abandono da categoria de perversão na medida em que considera que há sujeitos que veiculam ao seu objeto sexual uma relação básica de ódio e que convém manter uma categoria disgnóstica para este tipo de funcionamento. A perversão – considera – é a forma erótica do ódio.
4. O que não muda. Então, assim como muitíssimas coisas estão mudando na vida dos casais e vão mudar ainda muitas outras coisas mais, possivelmente algumas vão manter-se. Uma delas é o enamoramento, tal como Freud o descreve, com sua característica de reencontro alucinatório com objetos de amor do passado infantil. É uma constatação, as pessoas seguem se enamorando e os casais que chamamos passionais (no sentido que propõe P. Aulagnier, 1979) são muito frequentes na consulta. O enamoramento segue dando origem a casais menos pautados pela sociedade, muito mais estruturados de acordo com a singularidade dos sujeitos, porém o casal baseado no enamoramento vai seguir existindo. E vai seguir existindo um casal com projeto, porque o casal com projeto não é só um produto da cultura, mas se instala também em 54. [...]“o irredutível da transmissão de um desejo que não seja anônimo”. 55. [...] “por impulsos sexuais intensos e recorrentes, fantasias ou comportamentos que implicam objetos, atividades ou situações pouco habituais”. (DSM IV, pag. 505).
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virtude da vida emocional do ser humano, em sua busca de um reencontro duradouro com as condições de satisfação libidinal infantil. As mudanças são tantas e tão grandes, quanto se tem potencializado a capacidade destrutiva do ser humano. Muitos temem pelo lugar do amor no mundo, porém nada indica que o amor de casal vá desaparecer, embora suas características mudem apressadamente em nossa época. Vai continuar existindo o amor, embora pareça tolice dizer isto. Também vai continuar existindo a família. Concordamos nisto com E. Roudinesco que assinala que, apesar de todos os prognósticos, a família – como a ave Fênix -, renasce de suas cinzas, metamorfoseada e transformada, porém família. Homossexuais e heterossexuais, divorciados e casados, uma grande maioria de seres humanos coincide na vontade de ter filhos biológicos ou adotivos e organizar suas vidas em células familiares. No mundo de hoje, e no que virá, o casal é algo assim como um invento cujos códigos os parceiros armam as suas maneiras. Não há indicações unívocas como houve em outras épocas da civilização a respeito de como deve ser a relação: homo ou heterossexual, duradoura ou transitória, e parece não haver dúvidas sobre o direito dos sujeitos adultos a formar casal como quiserem. Pelo contrário, o que fica como pergunta para a sociedade é como vai ser a criação das crianças, uma vez que a família construida ao redor do matrimômio deixa de estar a cargo desta tarefa.
5. O que a psicanálise ensina. No referente à educação da criança, aspecto central na formação do ser humano, a psicanálise tem muito que transmitir à sociedade. A constituição de um sujeito requer uma figura que o deseje e se ocupe de seus cuidados precoces, o que vem chamando de mãe ou de função materna, porém, enfatizando isto, é um personagem do qual não se requer que tenha um vínculo biológico com o infante, nem mesmo que seja uma mulher. Por outro lado, é necessária outra função que mostre diferenças com este primeiro referente, algo que o oriente no mundo que está por fora deste amor fundante e da célula narcisista que o determina. Esta função, que se tem chamado paterna, pode ser encarnada por qualquer sujeito, de qualquer sexo e inclusive pela mesma pessoa que encarna a função materna; a monoparentalidade não é um obstáculo. Porém estas duas funções são necessárias e, se não são assumidas por alguém no meio em que a criança se cria, passam a predominar as patologias do narcisismo, as adições, os quadros psicóticos, etc. Um sujeito pode perfeitamente não se constituir no formato de família nuclear, tradicional, conjugal ou do tipo de for, porém não se constrói no anonimato de um
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laboratório, nem na solidão de um deserto. Será então necessário ir pensando como se constrói novos nichos e formas de organização social capazes de assumir a criação e a constituição das crianças.
6. O que a psicanálise não sabe. Os paradigmas que caem. É um fato que, até final do século XX muitas crianças se criavam em famílias nas quais um papai e uma mamãe eram os suportes da triangularidade que postula a teoria freudiana. Deixando de lado o discutível de que – ainda nos tempos de Freud – estivera confirmada a universalidade “edípica” da família, uma tendência maioritária da psicanálise do século XX tem sido postular o complexo de Édipo como a estrutura universal que nas diferentes culturas dá conta dos variados modos de organização do psiquismo. Em realidade, a ideia foi buscar em diferentes estruturas triangulares o equivalente à mamãe, ao papai e ao filho da família burguesa do ocidente, amalgamando, em um único constructo, a família de Édipo de Sófocles, a família burguesa e a de todas as sociedades. Assim é que, dizem Laplanche e Pontalis (pag.65), “la antropología psicoanalítica se dedica a buscar la estructura triangular del complejo de Édipo, cuya universalidad afirma, en las más diversas culturas y no solo en aquellas en que predomina la familia conyugal”. Lacan, por sua parte, afirma (1938, pag. 62): “Dada la cantidad de relaciones psíquicas que afecta el Complejo de Édipo, […]... Freud considera que este elemento psicológico constituye la forma específica de la familia humana y le subordina todas las variaciones sociales de la familia.” Porém, os tempos mudaram. O complexo de Édipo, com uma mamãe e um papai, é um mito que já não serve para explicar, por exemplo, o que passa nas milhões de famílias de pais/mães do mesmo sexo, exceto que reinterpretemos os textos até conseguir que o Édipo de Sófocles conforme um casal homossexual. A psicanálise contemporânea se encontra frente ao desafio de construir novos paradigmas para pensar o que antes, da mão de Freud, se atribui ao Édipo e que hoje, com uma perspectiva diferente aparece como uma forma singular, historicamente limitada, de organização da família. Trata-se de repensar os conceitos, a terminologia e ver o que fica e o que não fica em pé. 56. “A antropologia psicanalítica se dedica a buscar a estrutura triangular do complexo de Édipo, cuja universalidade afirma, nas mais diversas culturas e não só naquelas em que predomina a família conjugal”. 57. “Dada a quantidade de relações psíquicas que afeta o Complexo de Édipo, [...] ... Freud considera que este elemento psicológico constitui a forma específica da família humana e lhe subordina todas as variações sociais da família”.
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A meu juízo, mutatis mutandis, do complexo de Édipo ficam muitas coisas em pé e, num lugar central, a proibição do incesto, interdição que deve ser entendida como a proibição aos adultos de dispor para seu gozo do corpo das crianças. Seguimos nisto a Silvia Bleichmar (2005, pag.103) que propõe pensá-lo “... a partir de la preeminencia de la sexualidad del adulto sobre el niño...[…]... como modo de acotar la apropiación gozosa del cuerpo del niño por parte del adulto.” Assim adquire um novo sentido a localização, na obra de Freud, do tabu do incesto, do fraticídio e do parricídio como temas centrais na construção de uma ética. A psicanálise não é uma ética, nem pretende sê-lo, porém, quando Freud em Totem e Tabu penetra nos fundamentos da organização social humana, constrói um mito no qual um possuidor da força bruta total, o pai terrorífico, é enfrentado pelos filhos adultos que se negam a ser seus escravos. Após a derrota do pai, surge, entre outras coisas, uma organização social baseada em um pacto entre irmãos e uma proibição, a do incesto. Na mecânica da sociedade imaginada por Freud, a interdição do incesto aspira a evitar que a história se repita. Totem e tabu pode proporcionar – com várias reformulações – elementos para entender a construção de algumas leis sociais básicas em qualquer sociedade, especialmente se pensmos o tabu do incesto como a interdição de apropriar-se sexualmente das crianças/adolescentes do próprio sangue pelos adultos que cuidam deles. Há, no entanto, que considerar que a mesma interdição deve valer para a mãe e a criança, e centrar a questão na desproteção e não na consanguinidade, de modo tal que a problemática de fundo seja proteger a meninas e meninos indefesos da sexualidade dos adultos. Diz Silvia Bleichmar (2005, pag 43) “...si la prohibición del incesto está en la base misma de la moral, es porque en ella se juega algo del orden de la renuncia, por amor, a la captura del otro indefenso, del otro sometido, del otro dependiente...”. As perversões merecem também ser reconceitualizadas e o eixo de sua definição não pode ser a transgressão de uma zona erógena, definida como normal ou anormal desde a biologia, nem o mecanismo pontual da renegação, que tanto se vê isoladamente em diferentes quadros psicopatológicos. A classificação deve assumir uma ótica relacional em que o gozo sexual tenha como pré-requisito a desubjetivização do outro e/ou o predomínio da des58. “...a partir da preeminência da sexualidade do adulto sobre a criança... [...] ...como modo de delimitar a apropriação prazerosa do corpo da criança por parte do adulto”. 59. “se a proibição do incesto está na mesma base moral, é porque nela se encena algo da ordem da renúncia, por amor, a captura do outro indefeso, do outro submetido, do outro dependente...”.
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trutividade no vínculo. “La perversión, en su fijeza, en la inmutabilidad del goce propuesto, no es sino en el límite mismo el autoerotismo ejercido sobre el cuerpo de otro, despojado este otro de la posibilidad de instalarse como sujeto que fija los límites mismos de la acción, no solo sexual, sino intersubjetiva.” (S. Bleichmar 2006, pag.102-103)
7. A família tradicional não era tão boa, o que está vindo não é tão mau. As ideologias sobre o amor de casal. “Todo tiempo pasado fue mejor” nos diz Jorge Manrique por volta de 1.500 em uma síntese que reflete muitas das atitudes da contemporaneidade frente à avalanche de mudanças. A família conjugal era, em muitos casos, um núcleo humano funcional e satisfatório, sem dúvida, assim como, em muitos casos, não o era. As formas de organização familiar que foram implementados no Ocidente teriam como eixo a autoridade masculina e a submissão da mulher. Seja como for, homens e mulheres, meninos e meninas, sujeitos de todo o tipo têm dado testemunho ao longo das décadas das boas experiências vividas na família conjugal, tradicional, nuclear, etc. Porém também são muitos os testemunhos das más experiências, da violência dos pais com filhas e filhos, das violações, os maus-tratos, os abusos de todo tipo. A família ocidental não era tão boa como os nostálgicos propõem. As novas modalidades de amor de casal são muito mais livres. Os homossexuais podem organizar suas vidas de acordo com isto, assim como os heterossexuais podem seguir fazendo. O divórcio está ao alcance de todos, de modo que não é necessário perpetuar relações que se desgastaram e já não proporcionam a felicidade. Assim como as anteriores modalidades de casal teriam a desvantagem da indestrutilidade, as novas têm, sem dúvida, outras desvantagens. Porém, no mundo de hoje, há mais espaço para a autentica escolha, o divórcio necessário, o ordenamento da vida de casal ao redor dos eixos da afetividade e da liberdade.
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60. “A perversão, na sua fixidez, na imutabilidade do gozo proposto, não é senão no limite próprio o autoerotismo exercido sobre o corp o do outro, despojado este outro da possibilidade de instalar-se como sujeito que fixa os limites próprios da ação, não só sexual, se não intersubjetiva” (S. Bleichmar 2006, pag.102-103) 61. “Todo tempo passado foi melhor”.
Os casais de amanhã. O futuro a partir de uma clínica de casais.
8. O lugar e função do analista de casais. Referências para um projeto terapêutico Mas vejamos, o estado de questionamento em que estão os referencias culturais e éticos impacta no analista de casal, ou em qualquer terapeuta, quando se trata de construir um projeto terapêutico. Ajudamos a um psicótico ou a um perverso –homem ou mulher – a que tenha filhos com técnicas de fertilização assistida? No horizonte de nossa clínica, está sempre o que se chamou a aceitação da castração, aludindo, com este termo, a aceitação de uma lei que põe limites ao desejo. E nestes terrenos é justamente onde hoje a bússola não assinala claras coordenadas. Onde está a lei que interessa ao psicanalista nos tempos atuais? Recordemos que, em nossa disciplina, a lei refere a proibição do incesto e não a um fragmento de legislação qualquer; a lei é aquela que simboliza, na interdição do incesto, a proteção ao outro indefeso e a sustentabilidade de um laço social. Retomando, então, como pensar hoje, nestes terrenos, a questão da lei e os limites quando nos pedem ajuda? A meu juízo, uma bússola nesta tormenta é o conceito de destrutividade. Quando um casal me consulta, minha primeira avaliação se refere à presença entre elos de funcionamentos destrutivos. Me parece que isto tem mais importância do que se eles são homossexuais ou heterossexuais, se querem ter filhos com técnicas estrambólicas, se convêm ou não, etc, etc. O que primeiro me interessa em um casal é sua destrutividade e a possibilidade de ligá-la eroticamente. Isto sem ingenuidade, sei que há casais que se unem na destruição mútua. Muito relacionado com o anterior, outro funcionamento que me serve de bússola é o registro recíproco da subjetividade: em quanto e como o outro é considerado como um ente subjetivo ou assubjetivo no registro e respeito desejos, sentimentos e funcionamentos diferentes e autônomos. Meu trabalho clínico hierarquiza sempre esta direção e, se o registro do parceiro como ente subjetivo e autônomo está ausente, promover seu desenvolvimento é a tarefa prioritária. A ligação erótica da destrutividade, então, e o registro do outro como ente subjetivo e autônomo são duas referências que, na clínica com casais, me orientam quando me oprimem as novidades do mundo atual e não posso orientar-me a respeito de como participar em um projeto terapêutico. Há outra questão que me serve de referência e se refere não tanto ao que há que fazer, senão ao que não há que fazer, e a resumirei em uma só frase: “No somos legisladores, somos solamente psicoanalistas. Com efeito, frente ao colapso de todas as bússolas que, na cultura ocidental, ditavam o 62. Não somos legisladores, somos somente psicanalistas.
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que era o aceitável, num momento em que a sociedade não segue o que dizem as religiões, em que a justiça e o direito têm sido totalmente sobrecarregados pela velocidade das mudanças, quando todos os discursos oficiais têm demonstrado cabalmente sua inutilidade, muitas pessoas se voltam para a psicanálise e aos analistas para que agora nós ocupemos o vazio de um discurso oficial e nos perguntam sobre dar ou não dar crianças em adoção a homossexuais, sobre as conveniências ou inconveniências das famílias monoparentais, sobre as técnicas de fertilização assistida. Nos pedem para emitir a palavra “científica” e acadêmica sobre estes novos problemas. Minha posição é prudente: não creio que os analistas possam dar a palavra “cientifica” e certeira sobre estas questões, embora eu acredite que, em equipes interdisciplinares, teremos muito para dizer. Cooperemos na comunidade para evitar, o mais possível, as aberrações que, sem dúvida, perseguem e se cometem, porém não esqueçamos que todos os discursos que estão tentando legislar sobre o casal, o amor, a reprodução e a família têm ocupado inevitavelmente um lugar de autoridade social que não é o lugar da psicanálise. A autoridade é necessária na sociedade, porém desconfiemos da psicanálise erigida na autoridade. O lugar da psicanálise é o de sobreviver em um lugar de crítica, não o de instaurar-se em um novo discurso oficial. Se triunfarmos como discurso oficial, morremos como analistas e, digamos com clareza, os discursos oficiais psicanalíticos têm sido sempre inimigos da diversidade, tão necessária nos tempos atuais. Por último, já encerrando esta visão a partir da psicanálise sobre o casal atual e as imagens do futuro, quero dizer que a mim mesmo me impressionam e por momentos me atemorizam as mudanças que acabo de descrever. Sem dúvida, não me parece que os grandes perigos que ameaçam a nossa espécie provenham das novidades que afetam as famílias e os casais, nem de que duas pessoas do mesmo sexo criem filhos. O grande perigo para a humanidade – o que verdadeiramente deve nos atemorizar – é a destrutividade que, em virtude da energia atômica e a biotecnologia, tem agigantado seu poder mortífero e, em suas múltiplas formas, ameaça, mais do que nunca, a sobrevivência da espécie. Se recordamos a Auschwitz e Hiroshima, coincidiremos que são estas as questões que realmente devem nos atemorizar e não as mudanças no casal e na família.
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Comentada por: · Gloria Barros de Mendilaharzu · María Rosa Glasserman · Stella Maris Rivadero Claudine (advogada) e Pablo (dentista). Consultam no começo de 1992. Casados há 10 anos. Três filhos. O material clínico que se apresenta é a sessão de um casal que estava em tratamento há um ano e meio. Foi relatada quando tive tempo na noite daquele dia, baseando-me nas notas tomadas no momento e imediatamente depois que saíram do consultório. Como se verá, tentei transmitir não só o que os pacientes disseram, mas também, o que acontecia comigo com o que ia surgindo. No entanto, há coisas que, ao relatá-las, resultam bastante diferentes de como foram em sessão, de modo que não é ruim recordar que todo material clínico é uma ficção. Claudine e Pablo consultam em Janeiro de 1992. Estão casados há 10 anos, e eles têm três filhos, com 7, 6 e 3 anos de idade. Dizem sofrer muitos desajustes e ter diferentes estilos e formas de ver a vida. “Ela chega tarde em todos os lugares, é desorganizada, a casa está sempre de “pernas pro ar”, cheia de arquivos de expedientes que traz de seu trabalho. Uma vez tivemos que comer no chão porque não havia onde pôr tudo o que estava sobre a mesa.” “Eu quero ter tudo sob controle, ordenado”. “Nosso matrimônio é uma “merda”, os outros têm tudo certo. Ela não é confiável, não é companheira”. Claudine realiza um tratamento individual, ele nunca se tratou e não está interessado em fazê-lo. A relação, segundo referem, estava bem até o nascimento das crianças. Logo houve problemas e as coisas ficaram muito difíceis a partir da gravidez do último filho. Há um circuito frequente de discussão entre eles, que exemplificam assim:
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*) Ela faz algo muito desordenadamente, ou deixa sujo algo da casa. *) Ele retrai-se e não diz muito, antes protestava porém agora declarase vencido. Estas duas situações não têm uma cronologia clara, acontecem permanentemente. *) Ela, zangada pela distância de Pablo, diz que ele não ajuda com os filhos, que traz pouco dinheiro para casa e que ela, por isto, não tem a necessária ajuda doméstica. *) Ele diz que, no último ano, foram embora duas funcionárias por não poderem conviver com a desordem dela, que ela não faz nada para aumentar o salário em seu trabalho e que... *) A discussão pode seguir ao infinito. Pablo é dentista e Claudine advogada. Ele trabalha com pacientes particulares e com uma obra social. Ela trabalha no escritório de um advogado bastante reconhecido e atualmente está organizando uma pequena empresa com seu pai, a quem sempre esteve muito ligada e com o qual periodicamente encara alguma atividade em conjunto. Os dois dizem ter trabalhado medianamente bem até o momento, com alguns altos e baixos, porém atualmente têm dificuldades econômicas. Claudine diz que lhe encantava a dedicação que Pablo tinha com ela, que cuidava dela, cozinhava para ela e a cortejava. Porém, já não o faz há muito tempo. Pablo diz que admirava a vitalidade de Claudine, sua espontaneidade e capacidade de se desconstruir, porém sente que agora tudo isto se transformou em caos e sujeira. Claudine não reconhece em si mesma o caos e a desordem que Pablo lhe atribui. Diz que ele não tem ideia do que é ser mãe de três filhos pequenos. Pablo não reconhece em si mesmo a agressão que Claudine lhe atribui, ele diz que às vezes há mau cheiro na casa e que Claudine pretende que ele seja carinhoso com ela. Pablo não fala muito de seus pais, ambos estão aposentados.Claudine fala muito do pai, pelo qual sente grande admiração e afeto.
1. Alguns dados sobre a evolução do tratamento. Durante o primeiro ano, vieram uma vez por semana, e os temas mais frequentes se referiam à ordem, ao dinheiro e à relação muito forte que tem Claudine com sua família de origem. Sua mãe é de origem francesa. A partir do 2º ano, (1993) vêm uma vez a cada 15 dias. Durante os primeiros meses de tratamento, chegavam frequentemen-
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te entre 20 e 40 minutos atrasados, sempre por causa de Claudine, o que deixava Pablo furioso. Entrava dizendo: “A esperei lá embaixo 40 minutos”. A relação de Claudine com seus pais era um tema habitual, assim como a semelhança entre a desordem e sujeira da casa atual com a que reinava em sua família de origem. Em duas oportunidades, Claudine trouxe à sessão sonhos nos quais teria relações sexuais com seu pai. Pablo falava da sujeira e odores que havia na casa paterna de Claudine. No final do primeiro ano, começou a falar mais de Pablo, de suas explosões frequentes, de sua forte relação com sua única irmã. Claudine começou a questionar, com frequência, as explosões de Pablo, que “guarda tudo para explodir de forma aterrorizante". O habitual é que funcionem em um circuito de devoluções, induções e inoculações. Cada um, segundo o outro, faz coisas que “os tiram da paciência” e também ambos parecem desconhecer o que há de provocação em suas condutas. Uma tentativa de mudança em um, geralmente é anulado pela resposta do parceiro. Cada um estimula a agressão do outro, em um circuito de induções que se retroalimentam. Claudine: Bem, não vamos falar de bobagens. Pablo: Sim, todas as bobagens (ironicamente). Além do mais ela está com muito trabalho. Ela valoriza o seu mais que o meu. [...] eu não trabalho... importuno no consultório “todo” o dia. Geralmente depositam no outro quase a totalidade da responsabilidade pelos conflitos, em grande escalada de rivalidade fálica centrada em ver quem tem a razão. Pablo não pode organizar uma atitude de oposição à Claudine que seja menos filial e de maior firmeza enquanto a exigir uma mudança nela e a assinalar alguns dos caminhos possíveis neste sentido. Atua como um filho que protesta violentamente, porém não pode implementar outro funcionamento. Denuncia que ela não lhe dá lugar, mas, da mesma forma que a denuncia, desemcumbe-se de participar de algum trabalho de mudança e deixa tudo ao encargo dela. A reconstrução que segue foi realizada, no mesmo dia da sessão, tomando como base anotações do momento. Foram numeradas as intervenções dos três participantes para facilitar as referências na análise posterior.
2. Sessão do segundo ano de tratamento (1993). Antecedentes: houve, na sessão anterior, uma discussão muito violenta por questões de horário, a desordem de Claudine e a organização da comu-
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nhão de um filho. Chegam 15 minutos atrasados 1Analista: Como estão as coisas? 2Claudine: Que sei eu. Ele noutro dia me bombardeou ao final da sessão. Disse para nos separarmos. 3Pablo: Não, não disse nada. Porém, ela ficou trêmula, se comoveu. O que para mim é lamentável, mas se não é defrontada assim, ela parece que não registra. Ou seja, para que me escutem, tenho que fazer um escândalo. 4Claudine: Bem, eu depois quero falar algo que tem a ver com as coisas que geram a minha confusão. Tenho um estado de confusão em alguns aspectos nos quais flutuo de uma coisa à outra como se estivesse no mar, como se “não tivesse um norte”. Sei que há coisas que me enlouquecem e me põem nesse estado. E, agora, tem alguns gatilhos que estou pensando em... Bom, agora digo que me parece que tem a ver, porém diga-me você o que sente. 5Pablo: Muitas vezes a pessoa tem estados de confusão, e é como quando te iluminam na rota com as luzes, de frente, você sabe que tem que olhar para a linha da estrada para guiar-te. Temos que ter métodos para poder sair ou seguir pelo lado correto. 6Claudine: Ou acompanhar a pessoa. Algumas vezes, eu acho que há algo em nossa relação que me parece que não tem a ver estritamente com você. É algo que você me dizia noutro dia quando eu xinguei sua mãe. Pablo enlouqueceu. Eu xinguei a sua mãe, fiz isso, porque eu estava... Descarreguei, como quando ele descarrega e, desde esse fato, ele ficou muito mal. 7Pablo: Você a xinga e eu trato de acomodar as coisas porque são pessoas muito importantes pra mim, com as quais tenho muita proximidade e muitas coincidências, embora não compartilhe cinquentas milhões de coisas com eles, mas bem. Tenho amigos que estão em geral um pouco loucos e são borders sob algum ponto de vista. Não sei, Hugo o que nos apresentou, Elias que é o sócio do consultório, não sei, uma lista. E para ela todos são uma tragédia. E eu termino me angustiando por esta situação... 8Claudine: A mim parece que temos que nos circunscrever ao casal que somos para tratar nossos conflitos, mais além do nosso entorno, me pareceu que era melhor. Porém me dou conta que há muitos gatilhos de loucura, essa loucura que se manifesta como uma confusão, como um estado de sombreamento. Isso, muitas vezes, tem a ver com esse magma em torno de você, que você tem... em seu entorno, não sei bem de que forma, porém há gatilhos e eu fico mal e fico sendo acusada... 9Analista: Quero voltar atrás. Este é um problema que me parece que se aborda bem hoje e também foi comentado na outra vez, é algo que você diz
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desde o início, Pablo. Você diz “bom, eu me dei conta que para que Claudine reaja, às vezes tenho que chegar a um nível de violência tal que já nesse ponto não me interessa a conversação”. Por outro lado, você, Claudine falou sobre o ocorrido ao final da sessão... 10 Claudine: (interrompendo) Uma bomba, uma bomba, me atirou uma bomba no final. E não sei, me disse se ia, aonde você estava indo? Não me disse aonde teria ido ... 11 Analista: O que Pablo disse é que a bomba não foi no final, que foi desde o princípio. 12 - Claudine: Porém ele estava explicando, viste, explicou toda Analista: Perfeito, para você a bomba chegou no final, porém a ele não. O que quero é tentar isolar e ver a razão pela qual vocês às vezes estão à beira da separação e, ao mesmo tempo, meio como atônitos porque algo não se entende. Quando para você as coisas.... 14 Claudine: Não estão tão mal. 15 Analista: ... não estão tão mal para ti, para Pablo a bomba já explodiu. Eu quero fazer este registro porque estamos falando das bombas, não estamos falando de uma coisa menor. 16 Claudine: O problema é que Pablo é de suportar, não se manifesta. Ele suporta a priori. Não entendo. 17 Analista: Eu vou te dizer o que eu entendi. Eu entendo que Pablo, quando chega a determinado momento de raiva, pensa seriamente em separar-se, não suporta a situação, o que disse com todas as letras. 18 Claudine: Ao final da sessão. 19 Analista: Vês? Existem fatos que não chegam a ti no momento em que ele quer abordar. 20 Claudine: Como faço para pôr-me nesta linguagem, para não falar chinês, digamos para que falemos algo em esperanto? 21 Analista: Bom, essa é a pergunta que eu quero fazer. Teremos que pensar um pouco se queremos trabalhar por este casal. Porém, me parece que, quando ele está dizendo “não aguento mais”, você não escuta. Você, em sua linguagem, escuta outra coisa. Quando ele, depois tem uma explosão, com gritos e violência, que sai do verbal, então você entende que a situação está em perigo, porém, ao mesmo tempo, também chega uma mensagem muito confusa porque também te parece que ele está louco e é certo que ele está bastante louco, então se encoraja toda. Eu quero fazer este pequeno registro para ver o que se faz com isto. 22 Pablo: E existem outros pontos também. Bom, não sei, por exemplo, com respeito a hoje, ela está mais comovida, chegou tarde, veio caminhando. Numa sessão de uma hora, chegar 15 ou 20 minutos atrasada é uma porcaria.
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É, eu estava como um bobo ali esperando que viesse. Deixei de trabalhar, fui buscar o terno de Martín, o trouxe. 23 Claudine: Tive uma urgência, algo de última hora. 24 Pablo: Está bem, não sei. Sempre chegas tarde. 25 Claudine: Ele não entende o que eu faço, não lhe importa e houve um dia que cheguei tarde, e bem... 26 Pablo: Não. Estou dizendo que há uma coisa que não funciona e que não vai funcionar nunca até que você nos diga “eu sou, eu quero ser esta e pronto, não é que se faço tal ou qual coisa vou deixar de ser Claudine” porque se pensas assim nunca vais poder fazer, porque a pessoa que tem que ser organizada e chegar cedo tem que se pilhar. Não sei por que, há uma atitude que não sei se é de adolescente ou displicente... Não sei, eu a vejo correr com suas tarefas como advogada, mas lá também chega tarde a todos seus trabalhos, porém com uma preocupação e uma, digamos, dinâmica e uma intensidade, isso é o que digo, muito importante, mas que não é a mesma, que tem para, não sei, solucionar seus problemas contábeis... Todavia não pode fazer uma reunião com a contadora. Seguem passando os meses, tudo assim. Todavia não fez nenhum trâmite do registro do carro, não as faz. 27 Claudine: A contadora(...). Falei com ela hoje e me disse que está esperando que cheguem umas contas para ver quanto devo e como pago. 28 Pablo: Passaram quatro meses. 29 Claudine: Bom, é prioridade uma contadora? Se vê que para Pablo é prioridade um. Eu me inteirei agora, me dei conta agora de que era importantíssima a contadora. 30 Pablo: Está bem, o registro do carro vai custar, não sei, uma Claudine: Porém não te deste conta que eu não podia ir fazer os trâmites? Isso é o que me incomoda. 32 Pablo: Porém o carro tem um ano. Faz um ano que o compramos. Te pedi por favor antes de ir ao Chile. 33 Pablo: Parece-me muito importante esse ponto que eu digo que é um tema que temos que tratar aqui. 34 Claudine: Que coisa? 35 Pablo: Esse tema que você considera que a pessoa que você deveria ser não é você, como uma ambivalência, uma coisa de que a pessoa que faz isto bem e isto de tal maneira e isto de qual maneira, não é Claudine. Como se perdesses a identidade se fazes as coisas organizadas. 36 Analista: Pablo, nesta altura do jogo não aceita, não aceita como logicamente válidas as explicações que você dá, porque para ele seriam postergações que poderiam explicar um mês, poderiam explicar dois meses, poderiam explicar três meses, porém não podem explicar tanto tempo.
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Então, o que Pablo propõe pensar é que você não quer se organizar e há em você uma pessoa que não quer se organizar porque tem outros ideais. Creio que isso também explica um pouco as situações de violência de Pablo. 37 Pablo: “Vou ver, vou anotar na agenda: vou fazer isto, a contadora, não sei quando, ordenar” e não o faz. Porém ela diz “tens razão, tenho que fazer assim ou tenho que anotar, vou fazer a lista e que sei eu”... Nada. 38 Claudine: A lista está, eu me lembro perfeitamente da lista. 39 Pablo: Me lembro agora um caso recente de meu amigo do Chile, que trabalha com teste de acerto e erro, e eu lhe digo “não é assim”, não podes fazer isto assim, vai dar errado e não será nos tempos lógicos. Você tem que fazer isto e isto. “Sim, tens razão eu quero isso”. Mas, faz tudo a sua maneira, com teste de acerto e erro, mal. Aos trancos, mal, faz uma coisa, já tem que parar porque já vem outra ou não, “bom, já está feito, deixe mal mesmo”. Eu não ajo assim, eu tenho determinadas pautas para... 40 Analista: Eu creio que esse é outro dos problemas, que agora Pablo está se posicionando de um modo tranquilo, porém não sei se você o escuta. “Eu não ajo assim, eu me retiro desta sociedade”. Digamos, há um ponto em que Pablo diz “eu não, já está...” 41 Claudine: Como comparável ao do amigo? 42 Analista: Sim e agora, com a comunhão de Martín, o que dizia Pablo na sessão passada é “basta, faço o que posso porque é a comunhão de Martín”, porém se perdeu a possibilidade de fazer de outra maneira a comunhão de um filho. 43 Claudine: Na próxima vez vamos pensá-la de outra forma. 44 Analista: Sim, está bem. Porém essa se perdeu e é uma lástima. 45 Claudine: Estás me culpando de tudo? Eu não entendo, não posso entender. (indignada) 46 Analista: Não! Não, não, não, Claudine. 47 Claudine: Te juro que não o posso entender. 48 Analista: Vamos ver se consigo dizer isso de outra forma. A culpa do que está acontecendo com o amigo do Chile é do amigo? Não...o amigo funciona como funciona, mas Pablo diz “eu, para que eu possa estar em algo com ele, necessito estas condições”. Pablo as necessita. 49 Claudine: Está bem, mas eu quero estar com ele. 50 Analista: Está bem, porém ele assim não quer estar contigo. Ele quer que você entre em outro tipo de funcionamento. 51 Claudine: É o que eu não necessito. 52 Analista: Bom, então não é fácil estarem juntos e se armar as brigas que se armam. 53 Claudine: Eu, há muitos anos, era uma pessoa que não era confiável
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para nada. 54 Pablo: Bom, em alguns pontos esse é um problema, a confiabilidade de dizer que nos encontramos a tal hora e chegar a tal hora. Houve um episódio agora, com Patrício, que disse que passava em meia hora e não passou nunca, nem chamou, nada. E disse “este é um imbecil, ao final é como eu” disse, “agora me dou conta de quando eu digo que vou e não vou, afinal é como eu”. Ou seja, é como se ela dissesse para fora “sim, sou culpada, tenho que mudar” e depois para dentro diz “não, sou assim”. 55 Claudine: É que eu não sei onde está esse ponto, entendes? Eu não sei agora onde foi isso, porque eu agora sou uma pessoa confiável. 56 Pablo: Em que? 57 Claudine: No trabalho, salvo o horário de chegada. No trabalho. 58 Pablo: O horário de chegada para mim faz parte do trabalho. 59 Claudine: Eu, com os clientes, me encarrego dos problemas, das complicações, eu vou, eu dou a cara. Eu sou confiável em meu trabalho, mas sempre se pode fazer melhor. Com meus filhos, eu posso haver tido, nesse dia, um monte de atividades profissionais e, no entanto, eu estive para à comunhão com meu filho. Melhor, pior, poderíamos ter feito juntos as coisas, poderia ter contado com amigas que tenho para ajudar-me, poderia ter pedido ajuda, porém eu sou confiável para meus filhos, estou. Eu, como esposa, nas coisas mais importantes, sou confiável, 100% confiável. Então eu, que não era assim em nenhum aspecto de minha vida, agora digo, onde está isso? Porque agora isso me parece pequeno. Isto que era grande, que eu não era confiável, eu reduzi muito, sabes. É um problema grave, grave. Não encontro onde está, como pode ser algo que não se vê e que não sabes para onde foi? 60 Pablo: Não, não, não. Porém está. 61 Claudine: Está porque ele me diz isso. Se entende o que eu digo? 62 Analista: Creio que sim e eu diria que compartilho. Eu estou de acordo com você, que você tem feito enormes mudanças, tanto pessoais como no casamento e na relação com Pablo. Porém, o assunto, então, nos termos como Pablo o está dizendo, eu diria assim: Há algo que fica, e que Pablo necessita que você o veja como seu e o tome como um problema próprio. 63 Claudine: Bom, eu sou sincera: Não sei bem como vou fazer isso. Sei que é vital, é importantíssimo, mas por onde se começa? E essas coisas levam tempo. E Pablo não tem que mudar? 64 Analista: Você faz uma pergunta que eu gostaria te contestar, te contestar do que se está falando aqui hoje. Você diz: “o que é que tem que mudar em Pablo?” Bom, diante do que falamos hoje, o que tem que mudar em Pablo é começar a falar antes, porque, segundo disseste, ele se cala e depois explo-
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de. Também teríamos que pensar como ele pode falar diferente. Porque explodir é um péssimo sistema, que a única coisa que faz é alimentar tua confusão porque depois que recebes os gritos de Pablo não sabes mais se estás discutindo sobre uma espécie de defeito teu, e que todos temos defeitos, tipo: se chegaste tarde ou se ele está te dizendo que tu como pessoa é um desastre; e então essas são coisas totalmente distintas. Estou me explicando? Então, parece-me que sim, Pablo tem muitíssimo o que mudar no sentido de começar a dizer antes as coisas e dizê-las de outra maneira. 65 Pablo: Eu tampouco vejo claro qual é o momento em que não digo o que deveria ter dito ou não. Mas, sim tenho claro que há um ponto em que eu não sigo com isso, porque não sei se é pelo medo de retroalimentar a bola de merda, trato de pensar em outra coisa, digamos. 66 Claudine: Por exemplo... 67 Pablo: Eu, não sei. As chegadas atrasadas, ou a necessidade de contar com determinada linha para algumas coisas, não sei. Como o que expresso, porém se o sigo falando muito como que me atrapalho 68 Claudine: Porém, depois te queixas... 69 Pablo: Por exemplo, te disse que não tens que comprar coisas em prestação, ou não te disse? 70 Claudine: Algumas coisas tenho comprado em prestação, o monitor, te lembras? 71 Pablo: Sim, decidimos que as coisas que são de grande monta. 72 Claudine: Porém eu vou à Farmácia América que é uma conta grande, que é um imprevisto e as parcelas são sem juros. Que problema há? 73Pablo: Está bem. Farmácia América, o supermercado e várias coisas mais, te disse muitas vezes que não. 74 Claudine: Eu tento que não fiques louco e me parece correto. Tudo o que eu faço desde mi ... 75 Pablo: Porém contesta-me isto, eu te disse que não pagues o supermercado nem a Farmácia América em prestação? Disse ou não te disse? 76 Claudine: Me disseste. 77 Pablo: Bom, por que segues comprando em prestação? ... 78 Claudine: ...me disseste, é que você me trata como se eu não tivesse pensamentos, entendes? "Não compres mais na Farmácia América”, depois dizes “não tenho dinheiro para pagar o cartão!”. Então, outro dia, tenho que ir ao supermercado e digo “Ai, puta que pariu, vou aumentar a conta em R$300 e não tem esse dinheiro, como faço, pago 100, 100 e 100 e pronto”. Me parece lógico, ou não te parece lógica essa leitura? 79 Pablo: Já te disse que tem vários pontos. 80 Claudine: É dogmático.
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81 Pablo: Sim, é dogmático. Primeiro, que você gera uma dívida. Segundo que quando eu estou na revisão de gastos e digo “este mês houve uma catástrofe e isso não se recupera mais” e resulta que tenho 25 parcelas pendentes, isso me gera uma dívida impossível... 82 Claudine: Porém é do supermercado... 83 - Pablo: E por outro lado, isto de parcela sem juros é mentira, porque se você olhar bem a letra pequena, é mentira o “sem juros”, porque te aplicam a taxa de não sei o que do cu e do seguro e não sei o quê, e você se fixa que há uma taxa de 5% de que... Além disso, não importa, não importa se tenho razão ou não, o assunto é que eu lhe digo que faça uma coisa e você não faz. 84 Claudine: Mas isto é me desvalorizar muito! Como você vai me dizer isso? 85 Pablo: Não! Porque tu vais te desvalorizar muito? 86 Claudine: Faz uma coisa e não pensa. 87 Pablo: Claro. 88 Claudine: Cala-te a boca e segue absorvendo. 89 Pablo: Não, não, não. 90 Claudine: E segue absorvendo. 91 Analista: Eu não creio que isso seja desvalorizar-se, te quero esclarecer isto porque isto está no centro de muitas questões. Eu penso que Pablo escolhe para ele o critério de não comprar a prestação, isto se apoia fortemente na questão de seu sistema de ganho, onde o ingresso de repente cessa, e ele não quer ficar com dívidas. 92 Pablo: Sim. 93 Analista: Poderia ser um raciocínio equivocado. Porém, ele explica isso e, como ele está a cargo disso, ele te diz isso. Me parece que, quando você vai ao supermercado e tem que gastar R$300, se entende, também, o que você diz. Se entende também o que você diz sobre colocar em parcelas que “bem, é melhor levar a prestação”. Porém Pablo explica que não, pelas razões que dá. A linha que ele traça, o que ele escolhe, é pagar à vista. Ele diz que, nos momentos de dúvida com o dinheiro, ele tem uma norma, a norma é o pagamento à vista, a linha do pagamento à vista é “por favor não usemos parcelas”. Eu creio que esse modo de Pablo planejar algumas coisas faz você sentir que te submetes à lei de um tirano, que tuas opiniões não influem e aí tu burlas essa lei que ele propõe. É aí que o que ele diz interessa. Ele diz que não é que te esqueça do que ele disse sobre o pagamento à vista e que te esqueces das coisas, é que não queres cumprir com a norma que ele te propôs. 94 - Pablo: Nem sequer me avisa “comprei em prestação”. E não é só nas parcelas, é nas contas, no registro, na contadora, na ordem, no trabalho, na casa,
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não sei... oitenta mil coisas. Então chega um ponto que... Primeiro me diz que sim, depois me diz que não. 95 - Analista: Bom, mas eu quero assinalar isto. Eu acho que há momentos de ofuscamento em qualquer rota, quando se viaja à noite, e acho que poderíamos dizer que, na verdade, muitas vezes na vida um dirige à noite, não é? Assim, em qualquer rota quando você dirige à noite, há momentos de ofuscamento e você tem que escolher um critério, um padrão. Não é uma questão de razão. Nestes momentos de confusão, alguém tem que eleger um critério. Pablo dá seu critério, por exemplo: “sem parcelamento” e você não gosta de aceitar esse critério. Você quer contribuir com o teu, porém, quando contribui com o teu, segues outro critério. Para mim, isto é importante, porque eu não digo que você tenha a culpa de nada, está claro? É mais, talvez seja melhor você pegar o papel e o lápis e explicar a ele que ele, ao não querer pagar R$300 divididos em 3 parcelas se equivocou, se equivocou e perdeu dinheiro. Mas, digamos, creio que tem momentos em que você não quer seguir os critérios do outro. 96 Claudine: Como se quisessem me enredar, tirar minha liberdade (...). Aí me vem uma rebeldia setentista. Aí, neste ponto. 97 Analista: Porém, neste ponto que tu te chamas de rebeldia dos anos 70, quando alguém te diz “mas por que não fizeste caso?”, Você diz “ah, porque eu não quero ser boba”. Eu creio que aceitar essa norma é como se fizesse mal a tua autoestima. 98 Pablo: Tal qual, “não sou eu”. 99 Analista: Isto é o que ele disse (a Pablo). Olha como ri. (O analista mostra a Claudine que está rindo e ambos riem). 100 - Pablo: É como eu disse. Termina a sessão. As primeiras intervenções do analista dirigem-se a mostrar à Claudine uma situação em que parece que ela não escuta Pablo a não ser que ele atire uma bomba; enquanto, no final da sessão, dirige-se a Pablo para mostrar-lhe que ele cala, cala e de repente explode, em um tipo de ação impulsiva que não o tira da impotência. A interdeterminação atuante resulta em um varão impotente e explosivo frente a uma mulher aprisionada a um vínculo endogâmico e com um alto prazer em praticar formas de oposição e/ou transgressão. A intervenção do analista não avança em um terreno fácil já que Pablo tem uma atitude passível de crítica dela e de autoexclusão, correlativa a sua passividade, enquanto Claudine, como se vê na fala (45), tem uma alta vulnerabilidade narcisista, pela qual não suporta facilmente ver a si mes-
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ma, nem aos resultados de suas atitudes. 3. Comentário de Gloria Barros de Mendilaharzu. O relato de sessão apresentado por Miguel Spivacow permite realizar um exercício clínico no qual vou privilegiar a análise das produções conjuntas ou vinculares dos membros do casal. Esta eleição, reflexo de minhas opções teóricas, não nega que existem múltiplas interpretações possíveis para este material, situação que seguramente será patenteado nas análises realizadas pelos diferentes comentadores. Claudine e Pablo se definem como diferentes, porém se apresentam como opostos, não só no que trazem, como na primeira queixa manifesta (sujo – desarrumado/ordenado que guarda e explode) mas sim, também, em uma série de acusações mútuas que vão caracterizando-os como uma que não sabe, porém não faz caso e um que tenta dirigir e fracassa. Nesta proposta binária, dualista, ele tenta mostrar reiteradamente que é ela a que tem que mudar, ao que Claudine resiste “com uma rebeldia dos anos 70”. Ela está em análise individual, e ele diz não ter interesse em analisar-se. Do meu ponto de vista, resulta uma dificuldade particular na análise deste casal, já que os traços dela que ele critica se opõem a ideais (ordem, limpeza, pontualidade) que são valorizados também no transubjetivo. Soma-se sua manifestação que converte a impontualidade, na transferência, uma verdadeira armadilha técnica. Isto redobra a raiva de Pablo, e podemos inferir que tem um correlato no analista. Temos, então, os membros do casal assim caracterizados, o que nos permite fazer uma hipótese de complementariedade apoiada pelos motivos de atração inicial-eleição: (vitalidade, ser descontratado por parte dela; ser cuidadoso e ter atenções por parte dele). Neste ponto, recordo um comentário de R. Kaës em referência à aliança inconsciente: “Cada uno de nosotros necessita del outro para realizar aquellos de sus deseos inconscientes que son irrealizables sin él” y (está) “...construida por los sujetos de um vínculo para reforzar em cada uno de ellos ciertos processos, ciertas funciones o ciertas estructuras de donde extraem um benefício tal que (...) adquiere para su vida psíquica um valor decisivo” Porém, o momento da consulta revela uma conjuntura em que a aliança está a ponto de colapsar: na sessão anterior, teve “uma bomba”, a ameaça de separação por parte de Pablo. Esta, junto com muitas outras menções iniciais, caracteriza um vínculo violento com uma modalidade anal de intercâmbio mal cheiroso, sujeira, “o casal é uma merda”, a descrição dele como alguém que retém e explode, “a bola de merda” que pode aumentar. Menções
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que logo se retomam e reiteram, embora de forma metaforizada no resto da sessão, nas alusões ao dinheiro e ao controle. Resultaram-me interessantes os significantes magma e pagamento a vista, citados por cada um deles e que condensam fantasias acerca de modelos de casais: um, magma, que propõe Claudine, remete ao fusional, indiscriminado e confuso, enquanto que o outro, pagamento a vista – ao que se refere Pablo – remete à ideia de borda, limite, firme estrutura e (neste contexto) orientação. Conforma-se, assim, uma cena que garante o gozo de ambos, permitindo a ela perseverar na sujeira (modelo familiar) porém, com o risco de confundir-se e, ao mesmo tempo, preservar nele a imagem do correto e sem engano, com o risco de que as explosões alcancem um nível de loucura e violência. Por estar a serviço do pulsional, em nenhuma destas modalidades de relação se atinge o reconhecimento da alteridade, pois o outro está colocado na posição de objeto. No primeiro, os dois formam uma massa indiferenciada, triunfo absoluto de UM. No segundo, há um só ponto de vista válido, de acordo com a modalidade da imposição de um sentido único, no qual o jogo das diferenças fica anulado e tenta transformar a alteridade em semelhança. Outro tema que quero destacar é a referência a um sonho, relatado por Claudine, no qual ela tem relações sexuais com seu pai. Apesar de não contar com o relato do sonho, considero esta menção “fora de lugar” ou algo “que deveria ficar fora da cena” no contexto de uma análise de casal, já que estes sonhos e fantasias geralmente ficam reservadas para o âmbito da análise pessoal. O anteriormente mencionado aponta a considerá-lo como um material obsceno. Eu e um grupo de colegas relacionamos o obsceno, neste dispositivo, com “algo que deveria ficar negativizado e que volta, interrompe na cena do casal” e propusemos que se trata de uma pulsão des-velada (sem véu) e remete a um excesso pulsional não simbolizável. Qual é então o sentido deste relato na sessão conjunta? Para o que aponta? Mostrar que ela segue unida a seu pai e não há lugar para Pablo? E que se duplica com a menção a outro homem, o advogado exitoso com o qual ela trabalha. É a persistência do endogâmico-incestuoso, o que nela cheira mal? Nesse caso, as explosões e críticas dele poderiam ser vistas, entre outras interpretações possíveis, como uma maneira de restituir seu narcisismo desvalorizado, o que o faz “declarar-se vencido” (pelos outros homens que ela admira?). Reafirma-se, ratificando sua certeza com a crítica a Patrício, o amigo que atua por tentativa e erro. É por este motivo que a negativa de Clau-
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dine a seguir suas indicações é significada como um ataque que provoca uma explosão ou uma ameaça de ir embora. (“não jogo mais”, segundo assinala o analista). Se bem que eles se referem às suas dificuldades pós- nascimento de seus filhos, com a consequente e frequente perda do papel privilegiado do outro na constituição do casal. É possível que a consulta tenha produzido uma falha no momento de reparar o narcisismo de Pablo (identificado com uns pais que ficam definidos como “aposentados”?) ao reduzir seus ganhos. As palavras de Pablo e suas críticas não chegam à Claudine, que as destrói. Ele parece dar este último sentido e propõe uma saída voluntarista, “não vai funcionar até que digas eu quero ser isto”, com o problema agregado de que ela tem que ser como ele quer que seja. Não é estranho, então, que surja a ideia de identidade como uma maneira de evitar “seguir sugando” ou ser sugado, risco de dessubjetivação, de desaparecer no outro. Em um dado momento, um deles manifesta o desejo de que falem o mesmo idioma – esperanto – talvez com a esperança de poderem entenderse em uma língua que contenha elementos dos dois. A sessão termina com o comentário de Pablo “é como eu disse”. Seguir sustentando o mesmo ao fim de uma sessão só evidencia o triunfo em uma luta de rivalidades narcisistas pelo poder e a hegemonia, a dificuldade de acesso a um trabalho vincular que traga como consequência outros pensamentos, é dizer que se produza algo novo que não estava presente nessa estrutura. 4. Comentário de María Rosa Glasserman. Gostaria de compartilhar duas ideias antes de comentar esta entrevista. A primeira, é que penso que os únicos que sabem o que ocorre no espaço e tempo terapêutico são os protagonistas que participam. É difícil de transmitir, já que há inúmeras emoções que se põem em jogo e que comprometem os participantes, incluindo o terapeuta. A outra ideia, muito ligada à primeira, é que é por isso que farei mais perguntas que afirmações. O estilo terapêutico a que adiro propõe-se a produzir aberturas nos consultantes, a partir de perguntas mais do que afirmações. Partimos da ideia de sistema terapêutico, dizendo que tomamos as sessões como uma totalidade (diferenciada) que inclui o casal e o terapeuta com suas emoções e com o impacto que lhe produzem seus pacientes (con-
63. Agradeço ao Dr. Miguel Spivacow o convite para participar em seu livro.
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tratransferência, ressonância). Penso que é mais difícil fazer terapia de casal que de família, já que o terapeuta – neste último caso – “conta” com mais membros para poder realizar, com comodidade, algumas intervenções e eventuais alianças planejadas e alternadas (não fixas). Na terapia de casal, é difícil deixar de ser “o terceiro”, devendo-se cuidar das alianças possíveis e de suas inevitáveis consequências (sentimentos de exclusão, “tomada de partido”, etc). Os membros do casal que Miguel nos apresenta tem dois estilos muito diferentes de abordar a vida e sua cotidianeidade. Sabiam antes de unir-se? E se não, quando o descobriram? Ou talvez, o que foi tolerado ou negado antes, no momento do “enamoramento”, já não se tolera mais? Atribui-se a mudança ao nascimento de seus filhos, especialmente o último. Que esperava Claudine de Pablo como marido e pai em cada nascimento? Que teve de diferente na última gravidez e parto? Coincide com algum fato importante, ou vinculado às famílias de origem, nesse momento? Instalou-se um circuito de acusações mútuas onde se fala “do outro” e, em nenhum momento, há algum reconhecimento de sua própria responsabilidade. O que é bastante claro é que ambos estão desiludidos. De que ilusões? Ela, de não ser mais cuidada e admirada como antes. E ele, que a tem deixado de admirar na vitalidade, espontaneidade e flexibilidade, só vê caos e sujeira. É interessante observar que, às vezes, os casais se separam pelo mesmo que lhes atraiu em seu início, embora modificado. Por exemplo, é usual escutar “me atraiu sua proximidade” que se transforma, no momento da desilusão, em “sinto que me sufoca”. Neste caso, a inicial desestruturada e espontânea Claudine se transformou no caos atual. Quando as pessoas se unem, uma das expectativas usualmente não explícitas é que o/a cônjuge se “separe” da família de origem ou de algum membro da mesma. Isto não foi conseguido neste casal. Claudine segue muito ligada a seu pai, inclusive com sonhos eróticos. Quanto lugar há para Pablo? Que, por sua vez, está muito ligado a uma irmã. .... Eles terão formado um casal ou cada um está mais ligado a membros de suas famílias de origem que a seu parceiro? 64. “Cada um de nós necessita do outro para realizar seus desejos inconscientes que são irrealizáveis sem ele” e (está) “...construída pelos sujeitos um vínculo para reforçar em cada um deles certos processos, certas funções ou certas estruturas de onde extraem um benefício tal que (...) adquire para sua vida psíquica um valor decisivo”. Kaës, R. “El grupo y el sujeto del grupo”. Amorrortu, Bs.As.1995.
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As habituais áreas de conflito nos casais são: Quem e como se tomam as decisões em a) Sexo, b) Dinheiro, c) Relação com os filhos, d) Relações com as famílias de origem, e) Relações sociais. Aparece frequentemente a queixa pela diminuição econômica, a queixa dela por crer que ele não entende o que é ter 3 filhos pequenos e a menção aos vínculos com as famílias de origem. Há dois temas que se reiteram nos conflitos de casal que Claudine e Pablo compartilham. Ela fala em “línguas distintas” onde, portanto, não se entendem e o outro, da falta de “escuta” que provoca a necessidade de atirar “bombas” para que haja uma reação. Isto se dá nos casais onde o diálogo é difícil ou está perdido. Entendendo como diálogo a possibilidade de ser modificado pelo outro em um intercâmbio dialogístico. Haverá luta pelo poder neste casal? Ambos têm a sensação que não são valorizados em seus esforços, trabalhos e papéis familiares. E, por último, seguindo com a ideia de tomar o espaço como um sistema terapêutico, eu me perguntaria se essas chegadas sistematicamente tarde de Claudine não são resposta a certa aliança de gênero que se infiltrou em Miguel, em algum momento, e que logo adiante, com brio, tentou reparar. As atuações (chegadas tarde) como mensagens silenciosas, embora sem palavras, não são, por isso, menos importantes. Tudo isto, comentado com o respeito que merece Miguel e com os poucos elementos que uma sessão escrita proporciona, sem os sentimentos e emoções de todos os participantes. Me refiro a quando: Miguel em um momento diz à Claudine: a) “Não sei se você o escuta”. b) ...perdeu-se a possibilidade de fazer a comunhão do filho de outra maneira”. Claudine: “Da próxima vez vamos pensar de outra forma” Miguel: Sim, está bem. Porém esta se perdeu e é uma lástima”. 65. J. Puget e J. Berenstein tem desenvolvido a temática da alteridade e o jogo das diferenças em numerosos escritos. Limitei-me a citar Puget “Cada vez nos conhecemos menos” Ver. De la Asociación Médica Madrileña de Psicoterapia Psicanalítica”, Ano 2008 e “Linealidad y discontinuidad: el pode r y relaciones de poder” Conferência em AAPPG, junho 2009 e Berenstein “Devenir otro con otros” Paidós, B. A., 2004. 66. Inda, N.; Mackintach, A.; Mendilaharzu, G. Moscona, S.; Nusimocich; M. : “Lo obsceno: su implicância em la clínica cincular” Revista de psicologia y psicoterapia de grupo, T. XXXII, Nº 1, 2009.
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Claudine: Estás achando em mim a culpa de tudo – Eu não entendo, não posso entender (indignada). Para encerrar, insisto no que disse antes. Só os que estão presentes sabem o que ocorre nesse espaço, com as limitações que dão as diversas percepções da “realidade”. Gosto de participar de modo breve, para que, entre todos, tentemos tecer uma trama que nos leve a nos ajudar e ajudar. Além do mais, felicitações a Miguel. Nem todos os terapeutas se animam a entreabrir a porta do consultório e mostrar sua clínica. 5. Comentário de Stella Maris Rivadero. Agradeço o gentil convite por parte do autor para comentar um fragmento de sua clínica com o casal, com o qual nos brinda. O pedido de entrevista de casal supõe que, nesse entre dois, o padecimento os enlace de alguma forma. Será, então, função do analista esclarecer a demanda de cada um, lendo as posições subjetivas que permitirão escutar a sintonia do casal nesse desencontro. Durante certo tempo, Claudine chega tarde, sistemática e sintomaticamente, o que ocasiona a raiva de seu parceiro. Talvez, poderia ler-se, nesta cena das entrevistas de casal, que, como ela já está em análise, Pablo poderia demandar um espaço próprio para falar, já que ele sempre está na hora. Ela substrai-se, porém ele não pode pedir por ele. Os problemas de Claudine e Pablo começam a partir da maternidade e paternidade respectivas, quando parece que o pacto fantasmático que os mantêm unidos como casal se rompe. Todo pacto fantasmático supõe a reedição da pergunta fundante da subjetividade. O que o Outro quer de mim? Quem me quer? dirigida neste momento ao parceiro. Quando se põe em jogo a função materna e paterna que ambos devem exercer, parece atrapalhar e incomodar a posição feminina e masculina respectivamente, com que vinham suturando a pergunta acerca de que queria cada um do outro. A primeira pergunta que o texto me evoca é por que as coisas se tornam muito difíceis a partir da gravidez do último filho, ali parece que a vida se estilhaça. Passaram-se três anos: Porque vem neste momento? Que lugar ocupam os filhos? O menor era o último da série? Teriam que repensar novamente sua posição como homem e mulher? Paradoxalmente, quando ela se converte em mãe, ele exige que ela seja mãe de todos, ele, sintomaticamente, assume um lugar maternal para com seus filhos. Claudine disse que “a encantava a dedicação que Pablo tinha com ela, que cuidava dela, cozinhava para ela e cortejava-a”, enquanto Pablo afirma
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“admirava a vitalidade de Claudine, sua espontaneidade e capacidade de desestruturar-se, porém, agora, sente que tudo se transformou em caos e sujeira. Quando relatam suas dificuldades, é notório que aquilo que os encantava e admiravam no outro, em outro tempo, agora transformou-se no pior que cada um tem, e o parceiro não suporta. Podemos nos perguntar se aquelas marcas diferenciais que atraem e dão lugar ao enamoramento podem transformar-se na diferença intolerável com o semelhante, o que Freud chamava o narcisismo das pequenas diferenças. A tensão agressiva entre ambos revela as enormes dificuldades para tolerar as diferenças e ir mais além da lógica especular onde ficam aprisionados. Ir mais além do espelho implicaria situar o outro, não como um semelhante, mas sim como um próximo que une a estrutura e permite suportar o vazio existencial Ela está defendida em uma identificação viril com seu pai, quanto ao traço do caos e a sujeira, compartilhando com ele de atividades e por outro lado, seu pai é o objeto de amor do qual ainda não se desprendeu, então: como Claudine pode dar lugar a um homem, se ela está tão apegada a seu próprio pai sustentando-o ou salvando-o? O que é um homem para uma mulher? Se um homem é uma metáfora do pai, para Claudine, isto é da ordem do impossível, na medida em que ela não pode investir libidinalmente em Pablo, já que se sustenta do amor ao pai e do pai, que permanece idealizado. Em consequência, ela permanece impossibilitada de aceitar e, enquanto Pablo joga com a dificuldade dela e, com suas “explosões” ou silêncios, se revela como impotente frente a ela. Em consequência, ela não encontra um homem que supere a potência do pai e, como corolário, tampouco é permitido a Pablo exercer a função paterna (que faz coalescência seguramente com sua própria história). Função que tem eficácia se um homem toma a sua mulher como causa de seu desejo viril e se essa mulher aceita e suporta ser o objeto causa de desejo de um varão, ou seja, se suporta o laço libidinal com seu homem, aceita que este a desdobre em mulher e mãe, e que seus filhos não sejam os objetos nos quais ela se satisfaça. Oferecer-se ao amor para a mulher é aparentar ser o objeto que o fantasma do parceiro demanda. Faz parecer jogar para ser o homem que se apresenta atrativo deste lugar. Porém, esta facilidade estrutural de fazer-se semblante de a nem sempre está legitimada, já que assumir os ideais e os emblemas do sexo é um efeito de discurso que vem do Outro. O significante fálico é aquele que deixa marca no corpo da mãe e é ali que o sujeito se presentifica, preenchendo-o. No Édipo, a menina deve mudar de objeto e de zona, buscar o pai – lugar de abrigo – e como sub-rogado, o significante de sua feminilidade. O pai poderá dar o significante fálico, porém não pode significá-la como mulher, enquanto mulher, então, como abandonar a demanda de falo que a
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alivia, mas que se expira, que a faz confrontar-se com o estrago materno? O amor do pai é essencial que seja demonstrado para que ela sinta que é amada pelo que não há, o olhar amoroso que dá esta jura ao que não há. Uma mulher, e parece ser a posição de Claudine, pode ficar presa à via fálica como única a transitar, em cujo caso poderíamos pensar como o tipo clássico da histeria Ela sente a bomba quando ele fala de separar-se, dessa forma parece que ela está avisada que isto pode ocorrer. Vivenciá-lo deste modo também a exclui de sua responsabilidade nos acontecimentos, o que é que ela ainda não pode perder? Como abandonar esse pai idealizado que aparece como porto seguro e reter a Pablo, um homem que não constitui para ela garantia suficiente para que renuncie a suas identificações fálicas paternas? Do lado de Pablo, ele ainda espera que ela o reconheça como homem viril, sem que possa afirmar-se em seu próprio traço de caráter único, aquele que o permitiria situar-se como um ser distinto, além do olhar e das dificuldades de Claudine e também mais além do pai dela, ao qual ele também põe no centro da cena, embora seja de um modo crítico. Apesar de suas queixas e censuras, ela continua girando como um satélite ao redor dele, com muitas dificuldades para suportar a falta. Podemos pensar que um amor verdadeiro implica a castração, eles a iludem, não reconhecendo suas próprias dificuldades que parecem incrustadas como traços de caráter. Sendo ambos profissionais, ela exerce sua profissão de maneira liberal, e ele tem também um trabalho em relação de dependência. Aparecem dificuldades econômicas que ocasionam problemas entre eles, inclusive até parece ter um deslocamento queixoso sobre ninharias, sobre o uso ou não do “cartão na farmácia América, no supermercado, no parcelamento, no não parcelamento”, ali cada um se ampara em uma posição rígida, sem possibilidade de interrogarem-se sobre o que se joga nesta contenção pueril. De que ordem são estas dificuldades? Sabemos, desde Freud, que o dinheiro entra na equação fálica: fezes, pênis, filhos, dinheiro, presente, e que todas essas disputas nos remetem a outro terreno. Se estas ninharias pudessem ser substituídas por uma pergunta real – que implicaria uma prévia passagem pela angústia, articulando entre desejo e gozo – sobre a significação fálica do dinheiro, dando lugar para pensar o que isto acontece a cada um deles com este “ter trabalhado medianamente bem até o momento, com alguns altos e baixos, porém que atualmente têm dificuldades econômicas". Que significa para cada um ganhar dinheiro e como isso se conjuga, na equação simbólica, com o fato real de terem três filhos? Por outro lado, o objeto anal se presentifica no “caos, o mau cheiro”, não só na própria casa, senão o mau cheiro da família de origem de Claudine.
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“Nosso matrimônio é uma merda, os outros tem tudo bem, ela não é confiável”, são palavras de Pablo, assim como também querer “ter tudo sob controle, ordenado”, diferentes roupagens imaginárias do mesmo objeto. O pulsional desenredando insiste neles, sem poder dar o escoamento adequado para chegar ao terceiro tempo da pulsão que permitiria um adequado enlace pulsional, que se bem permitiria a possibilidade de dar respostas criativas a suas dificuldades, além das marcas históricas de cada um, e não outorgaria valor e eficácia à monótona repetição do mesmo no sofrimento. A contingência do amor só é possível se a função da castração simbólica vem ao compromisso. O amor põe limite ao gozo e lhe permite condescender ao desejo.
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Tradução e produção editorial
Adriana May Mendonça - Psicóloga, Psicanalista, Membro Efetivo do CEP de PA, Coordenadora dos Seminários do Instituto Cyro Martins, Membro dos Seminários Winnicott – POA, Membro fundador e da Comissão Editorial da Rabisco – Revista de Psicanálise, Membro da Diretoria da FLAPPSIP – Federação Latinoamericana de Associações de Psicoterapia Psicanalítica e Psicanálise (gestões 2015-2017 e 2017-2019). Coautora, organizadora e tradutora de livros psicanalíticos. Vencedora do Prêmio “Argentino S. Lineado”. Asociación Psicoanalítica Argentina - APA - Buenos Aires (1999) adriana.may.mendonça@hotmail.com Denise Martinez Souza - Psicóloga, Psicanalista, Membro Pleno, Coordenadora de Seminários e Supervisora do CEP de PA(Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre), Coordenadora de Seminários no Instituto Cyro Martins, Membro dos Seminários Winnicott – POA, Membro fundador e da Comissão Editorial da Rabisco – Revista de Psicanálise, Past President da FLAPPSIP – Federação Latinoamericana de Associações de Psicoterapia Psicanalítica e Psicanálise. Coautora organizadora e tradutora de livros psicanalíticos. denisemtzsouza@gmail.com Marcia Zart - Psicóloga, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica e Clínica de Adultos; Integrante dos Seminários Winnicott Porto Alegre; Membro fundador e do Editorial da Rabisco – Revista de Psicanálise; Coautora, organizadora e tradutora de livros psicanalíticos. Recebeu o prêmio de melhor trabalho teórico-clínico apresentado no XXI Encuentro Latinoamericano sobre o Pensamento de D. Winnicott, realizado na Asociación Psicanalítica Argentina (APA) em Buenos Aires/ Argentina (2012). //marciazart.wordpress.com/ www.zart.com.br/marcia marcia@zart.com.br
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