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Volume 8, NĂşmero 1 - Porto Alegre - Junho 2018

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Comissão Editorial Adriana Mendonça Beatriz Borges Forthes Kroeff www.revistarabisco.com.br Cleon Cerezer Denise Souza ISSN 2236-3548 Juliana Fischer Jussara Ramos Zanetti Luiza Moura Márcia Zart Edição: Michele Melo Reghelin Stela Marys dos Santos Conselho Editorial Internacional Av. 24 de Outubro, 838/306 Adriana Anfusso (Uruguay) Porto Alegre – RS – Brasil Eduardo Gastelumensi (Peru) Gabriela Goldstein (Argentina) Revisão: Beatriz Borges Forthes Kroeff Jacqueline Amati-Mehler (Itália) Joseph Knobel Freud (Espanha) Jussara Ramos Zanetti Leonor Valenti de Greif (Argentina) Revisão Português: Lais Flores Pablo Abadi (Argentina) Raquel Goldstein (Argentina) Revisão Inglês: Beatriz Borges Forthes Kroeff. Saul Peña (Peru) Sonia Abadi (Argentina) Arte e impressão: www.graficatriangulo.com.br Veronica Indart (Uruguay) Tiragem: 300 exemplares Conselho Editorial Nacional Afrânio Matos Ferreira (SP) Rabisco Revista de Psicanálise. – Vol. 1, n.0 (jun. 2011)- . – Ana Leão (PR) Porto Alegre: Seminários Winnicott POA, 2011- . Anna Melgaço (RJ) v. ; 20 cm + 1 DVD Eloísa Valler Celeri (SP) Julio de Mello (RJ) in memorian Luciana Godoy (SP) Semestral. Luciane Carneirto (GO) Editor: Seminários Winnicott POA. Márcia Mendes (MS) Maria Vitória Maia (RJ) ISSN 2236-3548 Neyza Prochet (RJ) Ruth Goldemberg (RJ) 1. Psicanálise I. Seminários Winicott POA II. Título. Sandra Baccara (DF) Suely Duék (RJ) CDU 159.964.2 (05) Sueli Hisada (SP) Vera Marieta Fisher (PR) C 2017

– RABISCO Revista de Psicanálise

Catalogação na fonte: Patrícia Guariglia Sousa Cerezer CRB –10/1592 As opiniões expressas nos artigos deste periódico são de inteira responsabilidade dos seus autores. 2


EDITORIAL Winnicott e o Poder, volume 8 da Rabisco Revista de Psicanálise, é composta, em sua grande maioria, por artigos apresentados no IV Encontro Gaúcho sobre o pensamento de Donald Winnicott , que teve como tema “O indivíduo e as instituições: da submissão à independência” e do XII Encontro Brasileiro que versou sobre “Winnicott, poder e sofrimento psíquico”. Contempla artigos que abordam questões teóricas sobre o desenvolvimento emocional primitivo, sobre a transmissão da lei e da tradição, sobre o desenvolvimento psíquico e o poder das mães no processo de subjetivação, bem como artigos que versam sobre questões políticas e sociais. Iniciamos a Rabisco com o artigo de Ana Lila Lejarraga “O poder no setting analítico” onde resgata a importância do amor analítico como contrapartida do poder e domínio sobre pacientes que levariam a uma maior submissão, a partir das propostas teórico-técnicas de Ferenczi e Winnicott. Seguimos com o artigo o “Desapoderamento feminino e o self objetal passivo”, onde Denise Martinez Souza propõe conceitos inéditos que são: preocupação feminina primária e o self objetal passivo. Da Argentina recebemos um artigo do colega Pablo Abadi com o texto “La invención de uno mismo”, apresentado no XXVI Encontro Latino-Americano, no México, em 2017, onde sugere diferenciarmos pais de progenitores e pensarmos as implicações da falta de desejo na função materna/paterna na criação de lhos. Carolina Alcântara e Sandra Baccara fazem uma interlocução da Ciência Política e Psicanálise, abordando as questões da corrupção a partir das contribuições de Winnicott sobre o conceito de democracia. Em seu artigo “O poder estético – uma experiência criativa do desenvolvimento humano”, Márcia Zart convida-nos a pensar as relações estéticas de poder presentes desde o início da existência humana no contato e 3


cuidado da mãe com o seu bebê. “O poder das mães na Psicanálise, uma leitura winnicottiana é o texto que nos apresenta Tais Martin e, seguindo, nessa mesma linha temos “O poder materno na omissão aos lhos da paternidade e danos morais” das autoras Cristina Maria Prestes e Mariza Bortoletto. Ligia Lais Lucchetti discute sobre o mal-estar causado pela invisibilidade nas redes sociais, uma queixa atual que necessita entendimento a partir dos conceitos winnicottianos , em seu texto “O poder das redes sociais e o sofrimento do anonimato digital”. Em “Poder, agressividade e vontade de reconhecimento: o sofrimento psíquico no gesto adotivo”, Débora Lázaro e Patrícia Paganelli questionam o lugar que o ato de adotar ocupa e suas implicações. Como artigos que fazem relevantes questionamentos sobre o momento político atual, sobre o poder e submissão, temos o texto de Angélica Costa Zanini “ O indivíduo e o momento político atual do país; re exões da submissão à democracia”; apresentamos o artigo “A questão dos refugiados: reconhecimento e subjetivação em Axel Hornet e Donald Winnicott” de Cintia de Carvalho e Sergio Gomes; contamos com o texto de Marcelo Armony que trata de “Tipos de interação e poder”, e, também, o artigo de Bruno Cervelli Fedri “Cidadania e participação: algumas contribuições da teoria do amadurecimento para o atendimento de vítimas da violência”. No texto “O Édipo em Freud: a lei e a transmissão da tradição”, Pedro Carlos da Silva Neto, traz re exões sobre o tema utilizando Édipo em Freud e a Metáfora Paterna em Lacan. Helena Barbosa de Carvalho e Maria Izabel Tafuri ressaltam a importância de discutir o entendimento winnicottiano de ‘defesa maníaca’ e o autismo infantil precoce, em seu trabalho “Do controle ao poder ser: aspectos da defesa maníaca na constituição psíquica da criança”. Em seu artigo “Um tênue limiar”, Graciella Tomé propõe uma escuta sensível diante da desorganização psíquica, do caótico e do tênue limiar entre saúde mental e a doença psíquica, a partir da clínica psicanalítica. Na Seção Histórica, Luiza Moura, nos presenteia com uma serie emo4


cionante de recordações de sua próxima e afetiva história com Julio de Mello, que iniciou nos idos de 1990. Teremos a oportunidade de publicar nessa Rabisco uma carta/homenagem escrita por Luiza a Julio, que muito o orgulhava. Dessa forma deixamos registrado a nossa gratidão pela imensa contribuição de Julio de Mello a todos nós. Na Seção Gesto Espontâneo, Jussara Ramos Zanetti nos apresenta seu texto “A esquina do encontro”, onde compartilha suas re exões sobre o que chama ‘Clinica do Cuidado’ e a importância da proposta técnica de Ferenczi e Winnicott. Conclui seu artigo com uma bela poesia de sua autoria. Gostaríamos de apresentar a nova seção que inauguramos nesta Rabisco – A Seção Psicanálise e Cultura. Esse espaço é ocupado pela análise do lme Shame por Parfen Laszig com seu trabalho “Shame- en busca del sentimiento perdido”. E, por m, a Rabisco "Winnicott e o poder” traz em dvd a gravação da peça "Verdades Inventadas”, de autoria de Luiza Moura e direção deAdriana Mendonça e representando Coco Chanel, Camille Claudel, Frida Khalo, Virginia Wolf e Clarice Linspector as colegas Beatriz Borges Forthes Kroeff, Denise Martinez Souza, Juliana Souza Fischer, Jussara Ramos Zanetti e Márcia Zart respectivamente. Boa leitura a todos!

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SUMÁRIO 1. O Poder no Setting Analítico The Power in the Analytic Setting Ana Lila Lejarraga.

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2. O Desapoderamento Feminino e o Self Objetal Passivo The Female Disempowerment and the Passive Objectal Self Denise Martinez Souza

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3. La Invención de Uno Mismo Pablo Abadi

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4. Corrupção, Memes e Democracia: em busca do verdadeiro self a partir de interlocutores entre Ciência Política e psicanálise Winnicottiana Corruption, Memes and Democracy: in search of the true self from interlocutors between Political Science and Winnicottian psychoanalysis Carolina Moreira de Alcântara / Sandra Baccara

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5. O Poder Estético – uma Experiência Criativa do Desenvolvimento Humano The Aesthetic Power – a creative experience by human development Márcia Zart

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6. O poder das Mães na Psicanálise – uma leitura winnicottiana Mother’s power in psychoanalysis – a Winnicottian reading Tais Martin

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7. O Poder Materno na Omissão aos Filhos da Paternidade e danos Emocionais Mother Power in Omission to Sons of Paternity and Emotional Damage Cristina Maria Filomena Monzoni Prestes/ Marisa Cintra Bortoletto

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8. O Poder das Redes Sociais e o Sofrimento do Anonimato Digital The Power of social networks and the suffering of digital anonimate Ligia Lais Lucchetti

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9. Poder, Agressividade e Vontade de Reconhecimento: o sofrimento psíquico no gesto adotivo Power, aggressiveness and desire for recognition: the psychic suffering in the adoptive gesture Débora Lázaro / Patricia Pagnelli

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10.A Questão dos Refugiados: reconhecimento e subjetivação em Axel Hornet e Donald W. Winnicott The refugees’s issue: recognition and subjectivation in Axel Honneth and Donald W. Winnicott Cíntia Corrêa de Carvalho/ Sergio Gomes

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11.A Redescoberta do Potencial Saudável da Cultura a partir da Grupoterapia The rediscovery of culture’s health potential from group therapy Arytanna Zuitá

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12.O Édipo em Freud – A lei e a transmissão de tradição The Oedipus in Freud – the law and the transmission of tradition Pedro Carlos Tavares da Silva Neto

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13.O Indivíduo e o Momento Político Atual do País; reflexões da submissão à democracia The individual and the current political moment of the country: reflections of submission to democracy Angélica Costa Zanini

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14.Do controle ao poder ser: aspectos da defesa maníaca na constituição psíquica da criança From control to being: aspects of maniac defense in the psychic constitution of the child Anny Caroline Martins Pereira / Maria Izabel Raso Tafuri

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15.Um Tênue limiar... A thin threshold... Graciella Tomé

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16.Tipos de Interação e Poder Types of interaction and power Marcelo Armony

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17.Cidadania e Participação: algumas contribuições da teoria do Amadurecimento para o Atendimento das vitimas de violência Citizenship and Participation: some contributions from the theory of maturation for the care of victims of violence Bruno Cervilieri Fedri

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SEÇÃO HISTÓRICA: Carta Aberta a Julio de Mello Luiza Moura

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SEÇÃO GESTO ESPONTÂNEO: A esquina do encontro The meeting’s corner Jussara Ramos Zanetti

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SEÇÃO PSICANÁLISE E CULTURA: Shame – En busca del Sentimiento Perdido Shame – searching for the lost feeling Parfen Laszig

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DVD: VERDADES INVENTADAS

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1. PODER NO SETTING ANALÍTICO THE POWER IN THE ANALYTIC SETTING Ana Lila Lejarraga

Resumo Com base na concepção foucaultiana do biopoder, abordamos neste artigo as relações de domínio e in uência que tendem a se estabelecer no setting analítico. Após breve referência à visão freudiana, que reconhece a dimensão sugestiva – poder de in uenciar o paciente – no método psicanalítico, abordamos a proposta de Ferenczi da importância da compreensão e simpatia do analista como agentes da cura. Herdeiro da tradição ferencziana, Winnicott também valoriza os sentimentos do analista, propondo a ideia de um tipo de amor próprio da pro ssão – o amor analítico – como condição fundamental do trabalho terapêutico. Contrapondo amor e poder, levantamos a hipótese da atitude amorosa e empática do analista – o amor analítico – como contrapartida de seu poder e domínio, tornando os pacientes menos submissos e mais criativos. Palavras-chave: poder, setting, amor analítico, Foucault, Winnicott. Abstract Based on the Foucaultian conception of biopower, we discuss in this article the relations of dominance and in uence that tend to settle on the analytic setting. Aer a brief reference to the Freudian view, which recognizes the suggestive dimension – the power to in uence the patient – in the psychoanalytic method, we approach Ferenczi's proposal of the importance of the analyst's understanding and sympathy as agents of healing. Heir to the Ferenczian tradition, Winnicott also values the analyst's feelings, proposing the idea of a kind of love peculiar to the profession – analytic love – as a fundamental condition of the therapeutic work. By opposing love and power, we raise the hypothesis of the analyst's loving and empathic attitude – analytic love – as a counterpart to his/her power and mastery, making patients less submissive and more creative. Keywords: power, setting, analytic love, Foucault, Winnicott. 1. Pós doutorado em Psicologia Clinica pela PUCSP Rabisco R. Psican

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p. 11-22

Junho/2018


PODER NO SETTING ANALÍTICO

Embora Alfred Adler teorizasse um “desejo ou vontade de poder”, para compensar um sentimento de inferioridade que seria próprio da condição humana, a categoria “poder” não chegou a se constituir como um conceito propriamente psicanalítico. O poder é um conceito das ciências sociais e se refere à ampla questão do domínio ou da in uência de uma camada superior – grupo social, classe ou indivíduo – que impõe sua vontade a outros. A dominação, logicamente, pressupõe desigualdade das partes envolvidas: uma que domina e outra que é dominada ou submissa. Michel Foucault abordou o estudo histórico dos mecanismos do poder, descentrando seu foco do poder soberano do Estado, para se referir aos micro-poderes que permeiam todos os espaços sociais. Na sua visão, não se trata de “o Poder”, com maiúscula, mas dos poderes que se espraiam por todo o tecido social, dos poderes que se exercem numa relação de forças circulando entre todas as pessoas. Por outro lado, Foucault desconstrói a ideia do caráter negativo do poder; de que este se exerça só repressivamente, impondo limites, proibindo e castigando. O poder age também positivamente, como produtor de individualidades, operando sobre o corpo das pessoas para que se tornem economicamente produtivas, fabricando os indivíduos (cf. Foucault, 1979). Nesse sentido, emerge no século XVII o poder disciplinar, que opera sobre os corpos individuais, procurando obediência e docilidade e a e cácia do trabalho produtivo. Esta tecnologia de poder usará a vigilância e a punição para que os indivíduos se adequem às normas das instituições, produzindo sujeitos úteis e submissos. Posteriormente, no século XVIII, surge a biopolítica que, sem anular o poder disciplinar, se dirige à massa populacional, ao homem como espécie. Assim, nasce a preocupação com a natalidade e mortalidade, com a saúde e o bem-estar da população, visando agora, não só os sujeitos particulares, mas o conjunto da espécie humana (cf. Foucault, 1999). Ambas as tecnologias de poder – o poder disciplinar e a biopolítica – são vertentes do biopoder: uma forma sutil de poder, em constante movimento, distribuído em 12


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todas as relações sociais, que molda a maneira como os indivíduos vivem, controlando e administrando a vida em nome da própria vida e da boa sociedade. O biopoder, desse modo, perpassa todas as relações sociais, incluindo as instituições psicanalíticas e, também, o próprio setting. Sabemos que Foucault desenvolve seu estudo sobre as transformações históricas das diferentes estratégias de poder – a genealogia do poder – num diálogo intenso com a psicanálise. Embora considerando que a psicanálise libertou o “doente da existência asilar” (Foucault, 1989, p. 502), da reclusão a que a psiquiatria clássica condenava os loucos, Foucault entende que o analista, via transferência, acabou concentrando em si o poder do médico manicomial. Na sua leitura, apesar de perceber a relação de poder que se estabelece entre analista e paciente, Freud não consegue eliminar o caráter alienante dessa sujeição ao poder médico. A prática psicanalítica estaria, assim, a serviço do biopoder, produzindo indivíduos que, pelo fenômeno da transferência, submetem-se e obedecem as normas instituídas. Foucault enfatiza a liação histórica da psicanálise à tradição médica e aos saberes psi, apesar de que sua constituição se deu criticando e rompendo com esses saberes. Desse modo, Foucault elogia e questiona a psicanálise, porque sua prática não escapa da teia das relações do biopoder, sendo paradoxalmente, parcialmente libertadora e, ao mesmo tempo, normalizadora. Embora não se referisse ao poder explicitamente, Freud problematiza o uso da autoridade do analista que in uencia o paciente pela sugestão. Em 1904, Freud contrapõe sugestão e psicanálise, comparando o método da sugestão, seja hipnótica ou direta, à técnica per via de porre da pintura, e o método psicanalítico à técnica per via de levare da escultura (cf. Freud, 1905/1988). Assim, o psicanalista não trabalha com sugestão, já que não acrescenta nada de novo, mas “retira” defesas e resistências – como o escultor que retira pedra em vez de pôr – para que a verdade do sujeito possa a orar. A psicanálise seria o oposto da sugestão, cuja técnica consistia em in uenciar os pacientes com a autoridade e o poder do médico – abandonada vários anos atrás. Cabe assinalar que esse poder 13


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médico aumentava ainda mais quando se tratava da sugestão por hipnose, já que o paciente hipnotizado, ao colocar o médico no lugar do ideal, cava submisso e obediente em relação ao mesmo, numa dinâmica semelhante ao apaixonado em relação ao objeto amado. Entretanto, alguns anos depois, na conferência A terapia analítica, apesar de não abrir mão da distinção entre sugestão e psicanálise – a terapia hipnótica trabalharia como uma cosmética enquanto a psicanalítica como uma cirurgia (cf. Freud, 1916/1988, p. 410) – Freud é levado a admitir o papel da sugestão no método analítico. A sugestão de alguma forma perpassa a transferência, sendo parte integrante da mesma. Assim, no trabalho analítico, que tem por eixo o manejo da transferência, “se nos torna possível tirar proveito do poder da sugestão; ela está em nossas mãos” (Freud, 1916/1988, op. cit., p. 411). Embora o psicanalista não utilize a sugestão para a eliminação dos sintomas, como no método sugestivo, poderia lançar mão da sugestão como um coadjuvante, especialmente no sentido de aumentar a convicção do paciente sobre o material analisado. O paciente está sujeito a ser sugestionável pelas forças mobilizadas na transferência, cabendo ao analista fazer bom uso dessa dimensão sugestiva, que opera como auxiliar no tratamento. Assim, a sugestão pode ser utilizada favoravelmente na prática analítica, reconhecendo-se o poder da mesma de in uenciar o paciente, já que seria parte constitutiva da transferência. Alguns anos depois, confrontado à di culdade de tratar pacientes graves, e tendo proposto a técnica ativa como forma de mobilizar pacientes cujos tratamentos estavam estagnados, Ferenczi faz profunda re exão sobre o fazer do analista e sobre os efeitos nefastos de uma atitude analítica de fria objetividade, onipotência ou hipocrisia. Frente aos impasses e insucessos de sua técnica ativa, ele muda o foco de re exão, da resistência dos analisandos para a dos analistas. No texto “Elasticidade da técnica analítica”, Ferenczi questiona a postura analítica autoritária e distante, que se acentuava com a técnica ativa, sugerindo o tato analítico – que é de nido como um “sentir com” – e a elasticidade: o analista deve “como um elástico, ceder às tendências do paciente” 14


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(Ferenczi, 1928/1992, p. 307). Essa nova postura analítica, mais exível e empática, que depois se con gurou como o “princípio de relaxação e neocatarse”, levou Ferenczi a se defrontar com intensas manifestações catárticas dos analisandos, que remetiam às situações traumáticas da infância. Ferenczi começa a perceber que a postura analítica autoritária e distante tende a ser vivida pelo analisando como repetição da gura do agressor do passado. Só quando o analista ocupa um lugar diferente, con ável, o passado traumatogênico – que não foi esquecido nem recalcado, do qual é guardada uma memória corporal – pode se tornar presente e ser abordado terapeuticamente. Para Ferenczi, na clínica dos traumatizados, as interpretações da técnica clássica perdem valor, já que, afetivamente, o paciente é “como uma criança que não é mais sensível ao raciocínio, mas, no máximo, à benevolência materna” (Ferenczi, 1933/1992, p. 101). Entretanto, essa benevolência, para despertar a con ança no paciente, deve ser sincera. Ferenczi enfatiza a necessidade de o analista ser sincero e não hipócrita, porque os pacientes que regridem ao passado infantil percebem, de uma forma particularmente lúcida, as emoções do analista. A con abilidade se torna uma noção-chave na clínica do trauma. Todos os esforços de Ferenczi são no sentido de promover uma postura analítica mais sincera e afetiva, com o objetivo de reduzir a distância entre o analista e o analisando e de propiciar no paciente a con ança no analista. A ausência ou a perda da con ança impede a cura, porque reproduz a violência do adulto agressor, já que a confusão de línguas – o primeiro tempo do trauma – consiste essencialmente em uma confusão em relação à con abilidade do adulto. Nos últimos anos de sua vida, Ferenczi enfatiza cada vez mais a importância da compreensão e simpatia do analista como agentes da cura, de nindo a compreensão analítica como identi cação, parente próxima do “sentir com”. No seu Diário clínico chega a a rmar que “nenhuma análise poderá ter êxito se não chegarmos, no seu decorrer, a amar realmente o paciente” (1985/1990, p. 171, itálico nosso) e que “sem 15


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simpatia, não há cura” (Id., ibid., p. 248). Com essas re exões, propondo uma atitude analítica mais compreensiva e empática, que diminua a distância entre analista e analisando, Ferenczi contrapõe-se aos excessos de autoridade e poder do analista. Sem dúvida, Ferenczi foi pioneiro em a rmar explicitamente o valor terapêutico dos sentimentos do analista. Vemos, assim, que ele aborda um terreno até então inexplorado: a atitude sincera do analista de compreensão, empatia, simpatia e amor, como agentes terapêuticos fundamentais no processo de cura. Por outro lado, se o setting analítico não escapa das relações de poder, a proposta ferencziana de simpatia e amor analíticos parece ir na contramão das relações entre o analista poderoso e dominante, por um lado, e o paciente submisso e obediente, por outro. Conceber o amor, em sentido amplo, como oposto ao poder, nos faz lembrar da famosa frase junguiana que diz: “Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro” (Jung, 2005, p. 45). Jung não está se referindo à situação analítica, mas à diferença de perspectivas entre a teoria de Freud sobre Eros e a de Adler sobre o poder, consideradas nesse texto como atitudes contrárias, em que uma seria a atitude consciente e a outra sua sombra reprimida. Assim, para Jung, embora Freud tenha contraposto Eros ao ódio e à pulsão de morte, na sua visão, o contrário do amor seria, psicologicamente, a vontade de poder. Desse modo, o indivíduo que se encontra na perspectiva do Eros procura a compensação na vontade de poder, que é seu contrário – sua sombra – e aquele, cuja atitude consciente é a vontade de poder, vai compensá-la com o Eros, produzindo-se a tensão entre os contrários, necessária para o movimento da vida. Pensamos que esta contraposição de poder a amor, embora formulada em outro contexto teórico, pode resultar frutífera para re etirmos sobre as relações que se estabelecem no setting analítico. Herdeiro da tradição de Ferenczi, Winnicott também coloca em primeiro plano o valor dos afetos e da pessoa do analista no encontro analítico. 16


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Na situação analítica concebida como campo intersubjetivo2, transferência e contratransferência são duas facetas do mesmo fenômeno e, da mesma forma que a transferência do paciente provoca emoções no analista, os sentimentos do analista também contribuem para moldar a experiência do paciente e a totalidade da relação. O vínculo analítico é, assim, permeado por emoções e sentimentos que têm o poder de afetar a ambos os integrantes da díade. Curiosamente, enquanto o tema da transferência é quase sempre relacionado com a questão do amor, há poucas pesquisas psicanalíticas que relacionem contratransferência com amor, ou que abordem o valor terapêutico dos sentimentos do analista. Logicamente que não podemos es quecer-nos do famos o texto winnicottiano “O ó dio na contratransferência” (1949/2000), em que Winnicott aborda a tensão e o ódio que o analista deve tolerar quando se dispõe a tratar pacientes psicóticos ou antissociais. Nesses tratamentos o analista vai ser afetado por brutais e ferozes sentimentos ambivalentes dos pacientes, que provocam medo e ódio contratransferenciais. E torna-se fundamental que o analista seja capaz de controlar e suportar esses sentimentos, evitando negá-los, para poder utilizá-los em momentos apropriados. Embora em raras ocasiões, Winnicott também faz referência explícita ao amor do analista, como quando a rma: “Para o psicótico seria mais correto dizer que essas coisas [o divã, o calor e o conforto] são a expressão física do amor do analista” (1949f/2000, p. 283). Sabemos que o fazer analítico com pacientes psicóticos e borderline afasta-se do trabalho interpretativo tradicional do desvelamento do recalcado, consistindo, antes de tudo, em fornecer um setting que proporcione con ança, que ofereça, como uma mãe su cientemente boa, um ambiente de holding para o paciente/bebê. Com esses pacientes regressivos, o trabalho analítico consiste no “manejo do setting”, cuja base reside na capacidade empática do analista e seus cuidados 2.A noção de “campo” analítico foi proposta inicialmente, na década de 1960, por M. e W. Baranger, para se referir à dupla analista-analisando como uma unidade relacional na qual seus membros não podem ser compreendidos separadamente. Assim, transferência e contratransferência não podem ser pensadas isoladamente, constituindo uma unidade indissolúvel (cf. Baranger, 1969). 17


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con áveis, propiciando uma experiência de encontro reparador, que permite estabelecer uma diferença com o desencontro do passado patogênico. Interrogamo-nos quais seriam os sentimentos do analista que lhe permitem realizar o manejo do setting, promovendo a con abilidade. Tratar-se-ia de alguma forma de sentimento amoroso? Pensemos nos pacientes que regridem à dependência. Tornam-se bebês que dependem do analista e que, como nos diz Winnicott, mais do que desejos, eles têm necessidades. Da mesma forma que os bebês, os pacientes regredidos têm necessidades de contato íntimo e afetivo, de serem olhados e reconhecidos pela mãe/analista. Sabemos que a tarefa materna do holding, de promover a comunicação íntima da mutualidade e funcionar como um espelho que reconheça seu bebê, só poderá ser desempenhada por uma mãe que ame seu bebê. Lembremos que a experiência da mutualidade, fundamental para que o bebê comece a ter existência psíquica, é essencialmente afetiva. Embora fosse avesso ao sentimentalismo, que pressuporia a negação do ódio e da ambivalência próprios do sentimento materno, Winnicott utiliza o termo “amor”, em várias passagens, como condição dos c uidados maternos su cientemente bons. Se pensarmos nos sentimentos do analista, especialmente no manejo do setting com pacientes regredidos que têm necessidades de comunicação verdadeira, compreensão e empatia, interrogamo-nos se caberia utilizar a palavra “amor” em referência aos sentimentos contratransferenciais, variados e ambivalentes. Os termos “con abilidade”, “capacidade empática” e “cuidar” parecem indispensáveis na atitude do analista com pacientes regredidos. Trata-se de termos que apontam para troca afetiva e, de forma mais abrangente, para o que se entende geralmente por amor, apesar de soar piegas e sentimental, o que Winnicott tanto repudiava. Nesse sentido, no texto “A cura”, em relação ao trabalho terapêutico de nido como curar/cuidar, Winnicott a rma: “Estamos falando de amor, mas se o amor tem que ser fornecido por pro ssionais, num contexto pro ssional, então se deve 18


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explicar o signi cado da palavra. Neste século, são os psicanalistas que fazem essa explicação” (Winnicott, 1986f/1993, p. 109). O amor do analista pode ser pensado como a capacidade de cuidar, que é um dos sentidos atribuídos por Winnicott à palavra “amor”. Assim, no texto “O primeiro ano de vida”, Winnicott considera que o signi cado do termo “amor” vai se modi cando de acordo com o processo de amadurecimento e, para uma criança mais amadurecida, “Amor signi ca cuidar da mãe (ou do objeto substituto) assim como a mãe cuidou do bebê – uma prévia da atitude adulta de responsabilidade” (Winnicott, 1958j/1990, p. 19. Itálico nosso). Entendemos que seria válido, acompanhando Ferenczi e Winnicott, falar de um tipo de amor, especí co, próprio da pro ssão, que é o amor do analista. Esse amor, que se relaciona com a capacidade de cuidar, de se importar e ser responsável, de se comunicar de forma verdadeira e sensível, é também um amor que conhece seus limites, que valoriza a realidade objetiva, externa, que se controla, e que não suscita no sujeito que ama (o analista) apego pelo objeto do amor, nem o desejo de ser amado. O analista se envolve emocionalmente em função das necessidades dos pacientes, mas conserva a capacidade de se afastar desses sentimentos, de ter controle sobre eles. Poderíamos dizer que o analista oferece seus cuidados e sentimentos para serem usados pelo paciente, como parte do setting, mas precisa manter sua atitude pro ssional, uma certa distância afetiva que lhe permita se separar. Nesse sentido a rma Winnicott: “O analista precisará permanecer orientado para a realidade externa ao mesmo tempo que identi cado ou mesmo fundido com o paciente” (1960a/1990, p. 149). Pensamos que a especi cidade do amor analítico é, principalmente, disponibilidade afetiva do analista para cuidar, para estabelecer um relacionamento emocional, deixando-se afetar e se envolvendo intensamente com o sofrimento do paciente. Desse modo, especialmente nos momentos regressivos, Winnicott entende que o analista se torna uma “pessoa profundamente envolvida com sentimentos e ainda assim, à 19


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distância, sabendo que não tem culpa da doença de seu cliente e sabendo os limites de suas possibilidades de alterar a situação de crise” (Winnicott, 1963c/1990, p. 206). Perguntamos, com base nestas considerações, se seria possível considerar o amor analítico como contrapartida das relações de poder entre analista e analisando. Se, como considera Jung, o amor é o oposto do poder, caberia entender que o amor do analista trabalha na direção contrária ao exercício de seu poder?3 Se pensarmos em termos da sugestão que o analista exerce no paciente, considerada um auxiliar do trabalho interpretativo, no sentido de in uenciar os pacientes a se convencerem da veracidade dos con itos reprimidos, vemos que o sentimento amoroso do analista está muito distante do propósito de in uenciar o paciente. O analista, com seus cuidados amorosos, visa estabelecer um novo vínculo, con ável, um encontro reparador, para que o paciente possa recuperar a autonomia para viver sua própria vida, para que possa reencontrar sua criatividade. E, se for necessário, o encontro con ável possibilitará ao paciente regredir à situação de fracasso ambiental, para reviver, experienciar e integrar no self, pela primeira vez, as vivências terrorí cas do colapso. Desta perspectiva, a nosso ver, o analista não estaria exercendo um poder no sentido de domínio ou de in uência. Quando diminui a distância entre analista e analisando, estabelecendo-se proximidade emocional e con ança, tende também a diminuir o campo da in uência e do poder do analista. Sem negar a assimetria da relação – porque assimetria não signi ca distância emocional – pensamos que quando valorizamos a dimensão afetiva do encontro, que possibilita a experiência reparadora, afastamo-nos da cena de um médico poderoso, dono do saber, e um paciente submisso. 3. A contraposição entre o biopoder e a criatividade foi amplamente tematizada por Beatriz Gang Mizrahi, no livro A vida criativa em Winnicott, um contraponto ao biopoder e ao desamparo no contexto contemporâneo, que inspirou em parte este trabalho. A autora propõe a ideia de a criatividade ser uma forma de resistência ao biopoder. Embora não abordemos explicitamente o tema da criatividade, entendemos que os sentimentos amorosos do analista são condição para o reencontro do paciente com sua criatividade e a experiência transicional.Sobre isto, consultar Gang Mizrahi, B. (2010). 20


Ana Lila Lejarraga

Embora não tenhamos certeza se o setting analítico poderia escapar das malhas do biopoder, pensamos que a atitude amorosa e empática por parte do analista, entendida como condição fundamental do trabalho terapêutico, parece funcionar como contraponto do poder, tornando os pacientes mais livres e menos submissos ao desenvolver suas potencialidades criativas na troca afetiva com o analista. REFERÊNCIAS BARANGER, W. & M. (1969). Problemas del campo psicoanalítico. Buenos Aires: Kargieman. FERENCZI, S. (1928). Elasticidade da técnica psicanalítica. In: S. Ferenczi, Obras Completas (Vol. 4). São Paulo: Martins Fontes, 1992. ________. (1933). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In: S. Ferenczi, Obras Completas (Vol. 4). São Paulo: Martins Fontes, 1992. ________. (1985). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990. FOCAULT, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal. ________. (1999). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. ________. (1989). História da loucura. Rio de Janeiro: Perspectiva. (onde critica a psicanálise). FREUD, S. (1905). Sobre psicoterapia. In: Freud, S., Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1988, vol. VII. ________. (1916). La terapia analítica. In: Freud, S., Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu, 1988, vol. XVI. GANG MIZRAHI, B. (2010). A vida criativa em Winnicott, um contraponto ao biopoder a ao desamparo no contexto contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond. JUNG, C. G. (2005). Psicologia do inconsciente. In: Jung, C. G., Obras completas. Petrópolis: Vozes, vol. VII/1. WINNICOTT, D. W. (1949). O ódio na contratransferência. In: Winnicott, D. W., Da pediatria à psicanálise. Obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000. ________. (1958). O primeiro ano de vida. Concepções modernas do desenvolvimento emocional. In: Winnicott, D. W., A família e o 21


desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ________. (1960). Contratransferência. In: Winnicott, D. W., O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. ________. (1963). Os doentes mentais na prática clínica. In: Winnicott, D. W., O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. ________. (1965). Os objetivos do tratamento psicanalítico. In: Winnicott, D. W., O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. ________. (1986). A cura. In: Winnicott, D. W., Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

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2. O DESAPODERAMENTO FEMININO E O SELF OBJETAL PASSIVO THE FEMALE DISEMPOWERMENT AND THE PASSIVE OBJECTAL SELF Denise Martinez Souza4

Resumo: O presente trabalho aborda as questões referentes ao desapoderamento feminino, rastreando as motivações inconscientes que levaram à submissão feminina ao longo dos séculos, utilizando para isso as manifestações da cultura contidas na religião por um lado e nos contos infantis por outro. Apresento três novos conceitos baseados na teoria winnicotiana e nas ideias de Ferenczi: a preocupação feminina primária, o self objetal passivo e a auto-clivagem ontogenética, forma de dar sentido teórico a perpetuação do ideal masculino da cultura. Palavras-chave: desapoderamento, submissão, preocupação feminina primaria, self objetal passivo, auto-clivagem ontogenética. Abstract: e present work addresses the issues related to female disempowerment, tracing the unconscious motivations that led to female submission throughout the centuries, using for this the manifestations of culture contained in religion on the one hand and in children's tales by another. I present three new concepts based on Winnicott's theory and Ferenczi's ideas: the primary feminine concern, the passive objectal self and the ontogenetic self-cleavage, a way of giving theoretical meaning to the perpetuation of the masculine ideal of culture. Keywords: disempowerment, submission, primary female concern, passive objectal self, ontogenetic self-cleavage.

Há muito dedico-me a estudar o feminino e suas manifestações na cultura as religiões, os mitos, os contos infantis, que denunciam e nos permitem rastrear os registros inconscientes das relações intersubjetivas 4. Psicanalista, Membro Pleno do CEPdePA, Membro dos Seminários Winnicott PA, Membro fundador da revista Rabisco. 23 Rabisco R. Psican

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de poder – a história dos vínculos de submetimento que afetam as mulheres a séculos. Hoje quando se fala tanto no empoderamento, pensar as questões que perpetuaram a submissão e o desapoderamento feminino se faz uma exigência. O empoderar-se sugere a consciência coletiva das mulheres de que tomar posse sobre si mesma é uma necessidade, que surge como resposta a evidencia da desapropriação milenar do Eu imposta a subjetividade da mulher. Para compreender esse processo escolho falar das motivações inconscientes que levaram à submissão feminina, da perpetuação do poder dos homens sobre as mulheres, marca de uma perenidade no processo de subjetivação que deixou de ser singular para ser coletiva, bem como o papel da mulher nessa perpetuação. E onde começa o desapoderamento feminino e o mito de sua inferioridade? Parto do mito bíblico da criação por acreditar que a religião judaicocristã imprimiu no imaginário um destino de desapoderamento e inferioridade à mulher, pelo caráter patriarcal de poder instituído. Deus disse: Não é bom que o homem esteja só: façamo-lhe uma ajudante semelhante a ele. Mandou pois o Senhor Deus um profundo sono a Adão; e quando ele estava dormindo tirou Deus uma de suas costelas, e pôs carne em seu lugar. E da costela que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher, que Ele lhe apresentou. Então disse Adão: Eis aqui agora o osso de meus ossos, e a carne da minha carne. Esta se chamará Virago, por que de varão foi tomada. (Gênesis 2, 18-23) Analisemos! A mulher surge no mito como uma ajudante de Adão, que não poderia ser igual mas um semelhante, que vem ao mundo já com função subordinada. Como é criada da costela é parte/propriedade de Adão e como do varão foi tomada será um subproduto do masculino. Além de um ser de segunda classe, será também a grande transgressora, a grande vilã da história da expulsão do Paraíso, quando passará a ser 24


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chamada por Adão de Eva, a mãe de todos os viventes. (Gênesis 3, 20) Eva desvirtua Adão ao incitá-lo a comer do fruto da arvore do conhecimento do bem e do mal. Ele tão correto e obediente ela desobediente e atrevida. E Deus disse a mulher: Eu multiplicarei o trabalho dos teus partos. Tu parirás teus lhos em dor, e estarás debaixo do poder de teu marido, e ele te dominará. (Gênesis 3,16) Maior que as dores do parto, a grande punição será a perda de autonomia, não ter poder sobre si, pois viverá sob domínio do marido. A Adão disse: Pois que tu destes ouvidos à voz de tua mulher... a terra será maldita: tu tirarás dela o teu sustento à força de trabalho Tu comerás o teu pão no suor do teu rosto. (Gênesis 3,20) O homem não deverá dar ouvidos ao que a mulher tem a dizer, pois o que virá dela levará ao pecado. Graças a Eva a humanidade será portadora do pecado original, conhecerão a vergonha, o sofrimento e a necessidade. A sedução e a sexualidade feminina serão perigosas, necessitarão cautela e estudo. As escrituras rabínicas são evidencia. No Talmud a mulher é descrita como “um ser super cial, vaidoso, apegado a superstições, dominado pela sensualidade e pelo ‘nervosismo’”. Para impedir o desejo sexual feminino intervenções divinas seriam necessárias para evitar que as mulheres se atirassem sobre os homens para saciar seus mais ímpios desejos sensuais. Assim ca determinado ao homem o dever de tutelar a mulher, de coibir sua liberdade mulher, de educa-la. Das mãos do pai passariam as do marido, garantindo assim os desígnios de Deus. Na tradição talmúdica há um verso que ilustra o que viemos abordando: “Deus não criou a mulher da orelha para não ser enxerida... Deus não criou do pé, para não ser andarilha... Nem do coração para não ser ciumenta... Criou de uma parte escondida para que fosse modesta.” 25


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As mulheres durante séculos internalizaram esse mandato. Para estar à altura do desejo do pai e de seu substituto, o marido, sujeitaram-se as leis do patriarcado. Para ser objeto de amor e não de rechaço ou temor, a mulher sujeitouse. Assim nasce a virgem, a pura, a casta. Nasce a jovem recatada. Nasce a “mãe de família”. Para que a virgem vire a mãe de família, casta e pura Nasce a puta. A exigência de uma atitude ilibada por parte das mulheres aparece nas mais diversas manifestações da cultura e muito especialmente nos contos infantis, encontramos personagens que sofrem passivamente a maldade de seus pais, madrastas e irmãs, mas por que por sua bondade, abnegação e generosidade são recompensadas com o amor. Na Gata Borralheira ou Cinderela, como também é conhecida, é a lha mais humilde que será escolhida pelo príncipe. Na versão dos irmãos Grimm diz a mãe em seu leito de morte: “Amada lha, continua sempre boa e piedosa. O amor de Deus há de acompanhar-te sempre. Lá do céu velarei sempre por ti”. Podemos inferir que a mãe é a porta voz de um desígnio divino a que a menina deverá conformar-se. Dessa forma, quando o pai casa-se com uma mulher má e interesseira, que privilegia suas duas lhas, coloca-a no lugar da serviçal, aceita sem revolta, mantendo-se modesta, discreta, aceitando sua pobreza sem reclamar. É sobre ela, com sua modéstia, discrição e humildade que a escolha do príncipe recai. O conto francês La Belle e la Béte, publicado pela primeira vez em 1740 por Gabrielle-Suzanne Barbot, madame de Villeneuve, seguida por Jeanne-Marie de Beaumont, difere e muito da estória tão difundida pelos Estudios Disney. Originalmente relata a história da lha de um rico mercador, a quem 26


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todos chamavam Bela. Era humilde, gentil e generosa. As duas lhas mais velhas eram fúteis e egoístas. Numa viagem de negócios as lhas mais velhas solicitam ao pai que lhes tragam vestidos. Bela pede-lhe uma rosa. De regresso ao tentar colher uma rosa no jardim de um palácio, é surpreendido por uma Fera quer uma de suas lhas para libertá-lo. Bela, obviamente, oferece-se para substitui-lo. Bela ao aceitar o casamento que a Fera lhe propõe rompe com o encantamento e surge, então, o príncipe encantado. Outra vez é a lha gentil, humilde e generosa a escolhida para viver o amor. Poderia seguir citando outras tantas estória em que as personagens sofrem passivamente a maldade, mas que por sua bondade são recompensadas com o amor. Esse seria o ideal a ser perseguido pela mulher? A preocupação feminina primária: um novo conceito Amarás mais o teu próximo do que a ti mesma, será o mandamento a que se submeterá a mulher? O que percebemos é que ao longo do tempo a sociedade organizou-se preparando o gênero feminino para transitar pela vida a serviço das necessidades alheias. As mulheres treinaram-se no exercício de decifrar e antecipar os desejos dos seus objetos de amor: primeiro dos pais, depois do parceiro e dos lhos. Percebe-se que ao sintonizar-se intensamente com os desejos dos outros, chega a perder a habilidade de decifrar os seus. Essa antecipação que na maternidade é tão necessária para atender as demandas do bebê, evidenciada por Winnicott (1956), quando descreve a “preocupação materna primária”, parece existir desde sempre na subjetividade feminina e surgirá intensi cada por ocasião da maternidade. Decidi chamar esse fenômeno de preocupação feminina primária. A preocupação feminina primária (SOUZA, 2017) imagino ser uma forma particular de conceber o amor onde o desejo e as necessidades do ser amado passam a ser o eixo da própria vida, amar é quase mimetizar-se com o outro. 27


O DESAPODERAMENTO FEMININO E O SELF OBJETAL PASSIVO

Essa espécie de avatar feminino em que estar mais atento ao outro do que a si mesmo se faz norma, cria uma espécie de estrutura que chamarei de self objetal passivo. Self objetal passivo: outro novo conceito Penso que o self objetal passivo predispõe a mulher a uma ligação especial com o outro propiciando uma percepção diferenciada do que se espera dela e um talento especial para abrir mão de suas necessidades em detrimento dos seus objetos de amor. O self objetal passivo que descrevo estaria calcado num vínculo inconsciente de dependência afetiva quase absoluta, numa crença quase visceral de que não sujeitar-se ao desejo do outro resultaria em abandono e rejeição, quase um desamparo. Nesse sentido submeter-se como forma de amor seria uma necessidade, quase um destino. Self objetal passivo e autoclivagem ontogenética Conhecemos o conceito de Ferenczi (1931) que refere que na gênese de uma autoclivagem o eu estaria exposto a pressão de um perigo iminente e um fragmento do sujeito se cindisse sob a forma de instância autoperceptiva que quer acudir em ajuda, e isso, talvez, desde os primeiros anos de infância. (FERENCZI, 1931, Análise de crianças com adultos, p. 78) Comenta ainda que quando isso acontece os sujeitos “tendem a cercar maternalmente os outros; manifestamente, estendem assim a outros os conhecimentos adquiridos a duras penas, [ ] tornam-se indivíduos bons e prestimosos. “ (Idem) Acrescenta que essas pessoas onde a autoclivagem narcísica se evidencia caem em estrema submissão em decorrência do medo de desagradar o outro com suas críticas, chegando a submeter-se automaticamente à vontade daquele que percebe como agressor e cria mecanismos para adivinhar “o menor de seus desejos esquecendo-se de si mesmas”. (FERENCZI, 1932, Confusão de língua entre os adultos e as crianças, 28


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p.99 e 102) Nesse processo a identi cação com o agressor, por introjeção e identicação, fazem com que o agressor desapareça enquanto realidade exterior, tornando-se assim parte de uma instancia intrapsíquica, inclusive internalizando a culpa. Não seria justamente um processo semelhante que ao longo do tempo inscreveu a culpa no inconsciente da mulher, que fê-la voltar-se e estar atenta ao outro, temer criticá-lo e por identi cação perpetuar esse destino que ontogeneticamente se repete? Uma espécie de resistência passiva que a mulher cria como sistema defensivo, frente as agressões impostas secularmente, através da incorporação auto-simbólica do papel a ela atribuído? Proponho que o self objetal passivo é resultado de uma clivagem do eu que ontogeneticamente se institui no seio do psiquismo feminino, transmitido como um destino a ser perpetuado pelas mulheres. Em outro trabalho desenvolvi a ideia de que o modelo do feminino é perpetuado pela própria mulher em seu papel socializador. (SOUZA, 2017) É a mãe que cria os modelos de masculino e feminino que compõe as identi cações primárias de meninos e meninas perpetuando o mito da inferioridade feminina, disseminando o valor da submissão voluntaria ao amor. Nessa antecipação materna que tem como modelo a identi cação com o agressor, à mulher estaria destinada a submeter-se voluntariamente por amor e a perpetuar um amor que não liberta as mulheres. Talvez, por isso, no mito expresso pelos contos infantis são as próprias mulheres mães/ madrastas que encarnam o ditame masculino da cultura e que perpetuam a dependência e submissão. (SOUZA, 2015, Deusas, bruxas e belas despertas) Os contos infantis e as novas versões do feminino Em termos históricos é muito recente o movimento feminino de libertação dessas identi cações milenares que de niram esse modelo de 29


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submetimento em nome do amor, entre outros. Parece que a clivagem do eu em um self objetal passivo também começa a perder espaço na personalidade das mulheres modernas. As mudanças que começam a existir, nos faz pensar que estamos diante de uma nova produção de subjetividade feminina mais distante quem sabe da logica fálica predominante. As mulheres expressam o que querem, fazem escolhas possíveis. Estas modi cações são perceptíveis nas novas versões dos contos infantis. Tomemos Male cent (2015) e A Bela e a Fera (1991/2016). Há 13 anos atrás escrevi um trabalho “Mulheres: seus fardos, seus fados, seus contos de fada”, analisando as personalidades femininas nos contos infantis, destaco entre elas as personagens de A Bela Adormecida, lme de animação lançado pelos Estúdios Disney em 1959. (SOUZA, 2004) Ao fazê-lo denunciava a visão machista e preconceituosa com relação as mulheres, mas isso não devería surpreender já que a adaptação foi feita do conto de Charles Perrault, publicado em 1697, trabalho laborioso de seis roteiristas coordenados Joe Rinaldi (Hibler Winston, Bill Peet, Ted Sears, Ralph Wright e Milt Banta). Voltemos aos personagens. Temos as três boas fadas Flora, Fauna e Primavera, a rainha mãe de Aurora e Malévola. Aurora, con rmando o padrão já mencionado nesse trabalho era bela, boa e pura. As três fadinhas mulheres de meia idade atrapalhadas e tolas, mais bobas do que boas. A rainha não tem nome, nem fala. Tem uma única frase em todo o lme. Sobre Malévola, que signi ca malfeitora, pergunto-lhes: por que a única mulher independente, dona de seu próprio castelo, rainha em seu próprio reino, que tem súditos, que goza de autonomia e poder deve ser a feiticeira má da estória? Já aí não existiria uma meta mensagem aludindo que na doçura, na obediência e dependência a mulher encontraria o caminho do amor? Male cent vem redimir a todas nós nessa nova versão dos estúdios Disney que tem em Angelina Jolie a personagem principal, Malévola é 30


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colocada no seu lugar de direito. Soberana num reino seu, governa de forma protetora e cuidadosa, sua ética não é da conquista como o do rei que ameaça seus domínios, nem da ambição e ganancia com que o ideal masculino se apresenta através de Stephen. Nela bondade e maldade se alternam, mas a ética que prevalece é a do amor e do cuidado. Legitima o poder, a independência e a autonomia feminina. Já no lme de animação a Bela e a Fera de 1991, percebe-se no personagem de Bela uma nova imagem de mulher. Com certeza in uenciada pelas modi cações culturais e conquista dos movimentos feminista. Ressalto, nesse sentido, a importância da presença de uma mulher na equipe responsável pelo roteiro. Com certeza, Linda Woolverton fez toda a diferença, já que foi a primeira mulher a escrever um roteiro de lme de animação e contrariando a visão de dois outros roteiristas que lhe precederam, conseguiu adaptar a história incorporando idéias próprias, diferindo dos 6 roteiristas da versão de uma Bela submetida. Coincidência ou não a Bela e a Fera (1991) foi o primeiro lme de animação a ganhar o Globo de Ouro e ser indicado para o Oscar de melhor lme, mas o mais signi cativo na minha opinião é ter sido selecionado para preservação no National Film Registry, pela biblioteca do Congresso dos EEUA por ser considerado “culturalmente, historicamente ou esteticamente signi cante”. Na nova versão da Bela e a Fera protagonizada por Emma Watson em 2016, a história de 1991 não foi alterada. A personagem feminina é uma mulher inteligente, curiosa, apreciadora da leitura e por isso considerada estranha pelo povo da aldeia. Como é muito bela é cortejada por Gaston, que apesar de ser um homem disputado pelas solteiras da cidade, encarna o ideal machista. Para ele as mulheres não devem ler e pensar, só servir ao marido e gerar lhos. Bela, em sua independência recusa Gaston com veemência, declarando esperar da vida muito mais. 31


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A personagem feminina é uma mulher inteligente, curiosa, apreciadora da leitura e por isso considerada estranha pelo povo da aldeia. Como é muito bela é cortejada por Gaston, que apesar de ser um homem disputado pelas solteiras da cidade, encarna o ideal machista. Para ele as mulheres não devem ler e pensar, só servir ao marido e gerar lhos. Bela, em sua independência recusa Gaston com veemência, declarando esperar da vida muito mais. Linda Woolverton, e esse dado me parece muito signi cativo, foi também a roteirista de Male cent. Mulheres por mulheres ganham uma nova inspiração. Cabe a nós mulheres e mães libertar-nos dessa preocupação feminina primária, dessas identi cações cruzadas que produzem o self objetal passivo que nos desapossa e nos desapodera. Nos descolarmos da perpetuação do ideal masculino da cultura cuja ética é de poder e implementarmos a ética do amor e do cuidado, para que possamos mudar as relações sociais tornando-as menos competitivas e mais cooperativas conscientizando as gerações vindouras dessa repetição transgeracional. REFERÊNCIAS VILLENEUVE, GS. (1740) La Belle et la Béte, Paris. Crébillion, 1965. BEAUMONT,L. JM. (1756) La Belle et la Bete. Paris. Cerf Volant, 2002. BIBLIA SAGRADA, Gênesis. In.: Antigo Testamento, versículos 2, 1823; versículos 3-20. FERENCZI, S. (1931) Análise de crianças com adultos. In.: Obras Completas de Sandor Ferenczi, vol. 4. São Paulo, Martins Fontes. 1992. __________ (1932) Confusão de língua entre os adultos e as crianças. In.: Obras Completas de Sandor Ferenczi, vol. 4. São Paulo, Martins Fontes. 1992. SOUZA, D.M. (2004) Mulheres: seus fardos, seus fados, seus contos de fada. GEA, 2002 _________ (2015). Deusas, bruxas e belas despertas. Trabalho apresen32


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tado no XXII Encontro Brasileiro sobre o pensamento de Winnicott, Campo Grande, 2015. ___________ (2017). Amor submetido, amor liberto ou a submissão em nome do amor. Trabalho apresentado no IV Encontro Gaúcho de Winnicott, POA, RS, 2017. WINNICOTT, D.W. (1956/2000). Preocupação materna primária. In.: Winnicott, D.W. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p.p. 399405). Rio de Janeiro: Imago. ________________ (1945/2000). Preocupação materna primária. In.: Winnicott, D.W. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (p.p. 2182320. Rio de Janeiro: Imago.

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3. LA INVENCIÓN DE UNO MISMO *Nota: texto transcrito como recebido, sem correções

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A mis queridos amigos Jaime y Eleonora Coloma Y a la memoria de Tito Turjanski Tal vez sea la inserción del psicoanálisis en la cultura, en la idea de cómo criar hijos, en su in uencia en la puericultura, lo que ha hecho, como era de esperar, que aparecieran distintas subjetividades, más que nuevas patologías. Es aceptado que los descubrimientos del psicoanálisis han permeado en la sociedad y que ha in uido en el cuidado de los niños. Así, respecto de la crianza de los hijos mucho ha cambiado, seguramente ya no se castiga ni amenaza a los niños tanto como antes, se tienen ciertos cuidados, mucho se ha aprendido. Esto es sin duda un aporte, pero vale lo que un aprendizaje, una inscripción. Aporte que no implica que los padres sean más sanos, ni más amantes, ni deseosos de paternidad, ni por lo tanto más capaces de criar a sus hijos. Sigue siendo condición que los que criarán hijos sanos serán padres deseantes y sanos. En su defecto crearán hijos con los dé cits y las patologías que ya conocemos. Habrá padres que sabrán psicotizar a sus hijos y otros que sabrán como neurotizar a sus hijos. Pienso que existen otros dé cits en la crianza que traen aparejadas otras consecuencias. Freud describirá los psicodinamismos de la neurosis, de la psicosis, Klein aportará las posiciones y su relación con la evolución y Winnicott es quien explicará qué y quienes, dónde y cómo se sostendrá el desarrollo de la neurosis, de la psicosis o del crecimiento saludable. Buena parte del psicoanálisis acuerda en que sin considerar ese sostén o su falta, el abordaje de la comprensión teórica de la salud y la patología es insu ciente y el de la aproximación clínica es parcial. Winnicott nos sugiere pensar en otros padres, padres que hacen su

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tarea insu cientemente bien. No aptos para identi carse con su infans primero, con su niño y su adolescente después. Imposibilitados de ponerse en su piel. Padres insu cientemente buenos, padres digo y no sólo madres, serán los que conducirán a sus creaturas a comprender lo que puedan y como puedan, son nuestros pacientes esquizoides, psicosomáticos, los infrecuentes esquizofrénicos, autistas relativos o totales. Y aparece como dije, tal vez por la in uencia del psicoanálisis en la sociedad, un otro tipo de crianza simplemente de muy baja intensidad, ni psicotizante ni neurotizante sino claramente insu ciente. Podríamos preguntarnos por la pertinencia de llamar crianza a lo que son sólo cuidados básicos. Tal vez tengamos que considerar como no crianza cuidados que promueven un desarrollo de citario, con una psique, un psique soma, un self, que se desarrollarán pero acodados en una falta, produciéndose así huérfanos parciales. Esto será la consecuencia del fallo parental y de la ausencia de sustitutos. Recordemos, los cuidados básicos están, pero no aportados por padres empáticos, ni necesitados de ese hijo, ni deseantes de ejercer su función parental, ni de acompañar la evolución. Sucederá entonces que más allá de malas o frustrantes o insatisfactorias experiencias, tendremos que considerar una otra falla que es la falta de experiencias. Es, la patología de la ausencia, de la falta, a la que creo que Winnicott nos invita a asomarnos poniendo en valor lo que podríamos llamar trauma negativo. Es el efecto de otro tipo de padres, ni padres buenos ni padres malos, ni psicotizantes ni transgresores. Que gestarán niños que serán criados entonces, y suena violento decirlo, por no padres. Creo que podríamos coincidir en que éstos son y serán nuestros nuevos pacientes. Padres que no ejercen su función, son progenitores no padres. Resaltarlo me parece más útil que eludirlo para poder entender consecuencias ulteriores. Como psicoanalistas tenemos que reconocer la diferencia entre progenitores y padres. Sabemos, claro, que existen padres que no son los 36


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progenitores, pero son padres porque ejercen la función de padres. Y también es útil nombrar, llamar no padres a los que son no padres, y sólo son progenitores porque inaugura un camino de comprensión y de investigación particulares. No siempre hay padres, y los no padres generan sujetos, más que hijos, que tendrán que desarrollarse a partir de ese espacio en blanco que requiere ser revelado. Y que producirá particulares consecuencias. Podríamos preguntarnos sobre la pertinencia de llamar hijos a quienes fueron criados por no padres. Esto nos lleva a aceptar la incómoda noción de ausencia de deseo, de no deseo, de no deseo de hijo en acto, el no investir libidinalmente a un hijo es una realidad. No creo que eso deba violentar nuestro corpus teórico. Existen no padres y existe la ausencia de deseo, salvo que digamos que el no deseo es un deseo. Pero sabemos de lo pregnante del deseo de los padres. Tal vez sea chocante ponerlo en palabras, pero es que hemos escuchadopacientes en los que la función parental no fue ejercida, lo cual nos da lugar a pensar en el no deseo de padres. Evitar esta intelección creo que no ayuda a la comprensión de estos pacientes y lleva a la esterilización del análisis. Así como veremos aparecer patologías esquizo-autista, psicosomática, también surgirán otros sujetos que, no obstante, lograrán armar su estructura, su self, alrededor de lo fascinante del amor, de la belleza, de la creatividad, donde la envidia de lo deseado motorizará la búsqueda objetal. No es parte de nuestro acervo ni de nuestra teorización, hablar de no padres y de no deseo, y tampoco la de considerar la envidia como un núcleo tró co posible, pero tal vez ayudaría a comprender ciertos pacientes el salir de la universalización de pensar en padres y en deseo de los padres. Como psicoanalistas no podemos positivizar la ausencia de deseo como deseo. El blanco parental existe y se observa, y requiere una comprensión y una interpretación realista. La aceptación de la noción de no padres será imprescindible para construir la historia cuando corresponda. En nuestras sociedades actuales ya no se convive con abuelos, tíos, primos que puedan actuar de sustitutos y morigerar la falla. 37


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Pero cabe una pregunta, ¿cómo es que un sujeto a pesar de la ausencia de padres y sustitutos puede desarrollarse como un ser deseante, qué hará que se desarrolle alrededor de lo fascinante del amor, de la belleza, de la creatividad en lugar de transformarse en un retraído esquizo-autista? Podemos apoyarnos en una puntualización de Winnicott: La natural tendencia humana es hacia la integración, y no hacia la enfermedad, hacia la organización y no hacia el caos (dejando también clara su posición opuesta a la noción de pulsión de muerte). Una tendencia erótica buscadora de objeto que cuando el fallo parental deje un resquicio logrará ir abriéndose paso. Volviendo a la noción de no padres, esta falta se hará mas clara y comprensible si la podemos pensar, y poner en palabras. Nuestro trabajo será el de nombrar esta falta, Este no sin huella. Hacer marca sobre la no marca. Investir la ausencia. Ausencia que deja dé cit pero no huella. Los traumas dejan huella y se pueden elaborar. La falta de, no deja huella. Produce. Habrá que poner en palabras la potencia vital, la pulsión de vida, eros en acto presente en el admirar o envidiar de nuestro paciente. Así, La ausencia de huella es el trauma. La presencia ausente. La ausencia sin nombre hasta que la nombremos. Los padres insu cientes, los no padres, no dejan trauma si no que el infans queda a merced de una tarea, la de comprender lo exterior a si, por ejemplo qué es un rayo, y lo interno, como son los propios afectos o sentimientos de envidia, tarea que no puede resolver su cientemente bien por si mismo. Y conoce la angustia. Sí, la angustia es consecuencia de una crianza fallida y no parte de un desarrollo medianamente logrado. Decía Winnicott: “el infans es un ser al borde de una angustia inconcebible”, subrayemos “al borde”. 38


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Padres insu cientes entonces promueven en sus hijos la angustia y la tarea de entenderse y entender lo que ven y viven. Se tratará entonces de inventarse a sí mismos, de entender el mundo y sus envolturas, los vínculos, el sexo, los afectos. La noche y el día. La admiración, la fascinación, la idealización, frecuente y paradójicamente la envidia ocuparán un lugar central en su estructuración, lugar que tendría que haber tenido el amor y el sostenimiento. La envidia del amor, el amor envidiado, recelado, pueden ser la única entrada del amor en su vida. Creo que podríamos acordar en que la materia prima de la envidia no es el odio sino el deseo, la fascinación, el encantamiento. Envidiamos lo deseado, luego la frustración no sostenida, no acompañada por los padres es lo que nos llevará a la destructividad. Diferencio a los no padres de los padres ausentes, que pueden ser no obstante un sólido núcleo, objeto interno benévolo y aún ideal. Pienso en la expresión “Mon oncle d’ Amerique”, gura referente-ideal-idealizadapadre poderoso, del que todo se espera. Está lejos, pero está. Un no padre deja un espacio a rellenar por el niño, el padre ausente, en cambio, tiene y ocupa su lugar, está ausente. El no padre deja el lugar vacante y abre la posibilidad de que ese espacio o bien sea ocupado por otro, al modo de un padre suplente, con lo cual podría ser suplido satisfactoriamente o, y esta es mi observación y el eje de mi planteo, el otro signi cante nunca se corporizó, nunca se objetalizó, nunca existió. No obstante vemos con frecuencia surgir sujetos que arrastrarán, ciertamente la consecuencia de esta falta, pero que se autoconstruirán a partir de la admiración y la envidia. A veces podemos historizar alguien que ocupó ese lugar, un familiar en general. Pero otras no lo hallamos, salvo que los queramos inventar. Mi idea es que, en estos casos, el espacio parental vacío no siempre producirá melancolía, depresión o esquizoidía, si no que en ciertos casos será llenado por ideales. No habrá padres buenos, amantes, sostenedores y cuidadosos, en su lugar estarán los ideales percibidos en vínculos: el 39


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amor, la belleza, la fuerza, el cuidado de si. En otros términos los objetos buenos serán los ideales. Los ideales cubrirán la hiancia. De lo admirado, fascinante, excitante, envidiado estará constituida su médula, cu a esencia serán los ideales. Así la estructura se forma desde el lugar de espectador, de lo que se pudo ver, percibir, admirar, envidiar, muy poco de lo que se ha recibido y muy poco también de lo que se le ha devuelto, me re ero al papel de espejo de los padres. Sólo hay un pequeño espejo. No es un espejo deformante ni un espejo roto, es sólo un espejo mínimo. De ahí lo de la invención de si mismo y el lugar de los ideales. Los padres estaban muy ocupados en otros menesteres, no han deseado este hijo, o ya tienen otros, o no son empáticos, nunca depositaron mayores expectativas en él, son muy jóvenes o muy viejos. Lo destacable de su lugar de padres radica en su insu ciencia. Volvamos a los ladrillos, los ideales amorosos, de fuerza, de justicia, de lealtad, de amistad, de belleza, de erotismo, viven, vibran y orecen dentro de él, gracias a que los ha visto resplandecer en otros, en otros vínculos que lo encantaron, lo conmovieron, lo abrieron al deseo. Le mostraron el camino. Asumo el riesgo de plantear la envidia, la fascinación como un modo otro de inaugurar zonas erógenas. La pulsión de vida tomará las riendas del desarrollo en mucha mayor medida de lo deseable, supliendo a las guras parentales. La falta de facilitación ambiental deja al infans sin ese apoyo en la base. La belleza y el amor lo fascinaron produciendo a veces admiración y otras envidia. Aquí un paradójico papel tró co de la envidia. La envidia puede ser el comienzo del amor, de un gran ideal. Así, a pesar de no ser mirado, se nutrirá, recorrerá ese camino, y crecerá en un clima particular, el sentir, percibir amor, el ver miradas arrobadas, besos apasionados, amantes emocionados, padres de la mano con sus hijos. Y envidiar. Planteo que el no haber sido arrobado amorosamente no quiere decir no haber sido untado por el amor. La belleza y la bondad lo enternecerán, 40


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le ablandarán el alma para siempre, aún sin haber sido el príncipe o la princesa para sus padres que todo bebé, niño y adolescente debe ser, no obstante, vio por ahí y atrapó la belleza en vínculos amorosos, que a veces admiró y otras envidió. Y que se transformaron en su centralidad objetal. El trabajo del analista con este paciente no será el de buscar un trauma, o el de interpretar los celos edípicos sino el de hacer visible la falta para que esa falta deje de presenti carse en sus síntomas, en su duda, en su aislamiento, en la incertidumbre, propios de quien tuvo que inventar el mundo, e inventarse a si mismo. Esta historia, este desarrollo no está exento de complejidades. Inventarse sin espejo, sin sostenimiento no produce un resultado tan perfecto como lo son los ideales, es la construcción de un escultor autodidacta. En este punto recuerdo a Lacan y viene justo a mi planteo cuando dice que el autodidacta no le debe nada a nadie porque le debe todo a todo el mundo. Algo así es mi planteo, la invención de uno mismo se modela, se recorta en todos los amores, y en todos los amantes. Parafraseo a Winnicott cuando plantea lúcidamente que lo opuesto a la organización, a la integración del self no es la desintegración o la desorganización psicóticas como estamos acostumbrados a pensar, si no que lo opuesto a la integración es la no integración. Del mismo modo, si los padres no son su cientemente buenos, no es obligatorio pensar en padres malos, son no padres, son insu cientemente buenos, dejando un espacio vacío, que tenderá a ser rellenado dejando secuela. Esta idea mía de los no padres creo que es en realidad familiar al planteo de Freud de la renegación, y de la psicosis restitutiva, de Lacan de la forclusión, y de Green de la psicosis blanca. Planteo la posibilidad de una estructuración psíquica que implique un desarrollo tal vez poético en el sentido de creativo, pero no “ex nihilo”, sino apoyado en lo que otaba alrededor de la vida del infans aún cuando no le fuera a él prodigado. La tarea sería el de la apropiación de valores, afectos, amores, incorporación de esas maravillas. Hacerlas el propio tesoro. Hablo de amar el amor, desear el deseo, narcisizar el narcisismo, para 41


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después investir la carencia, psiquisizarla, y recién a partir de ahí crear al otro signi cante. Lógica vital invertida, es cierto, en vez de ser criado, crear el amor. Y la ley. Crear padres en acción. Es la potencia de la original tendencia a integrar (eros) opuesta a la especulación de la pulsión de muerte. Casos: María quería casarse y tener hijos, calculaba que ya era hora. Se casa, tiene hijos. Me consulta por una sensación de extrañeza en su vida, una mezcla de insatisfacción, de irrealidad, desasosiego, y una angustia que no la suelta: que su mucama le conquiste-seduzca-robe a sus hijos, que la quieran más que a ella misma. En el transcurso de su análisis, surge, su sensación de ser no verdadera, uctúa de sentirse muy capaz en lo suyo a pensarse un invento, se ve mezcla de seductora y falsa, a veces se valora y otras se siente miserable. Remeda la duda obsesiva pero es otra la problemática. Puede tener una vida autoerótica fulgurante pero siempre pobres relaciones sexuales. Trabaja sola y con mucho éxito. Pone siempre en duda la honestidad de sus sentimientos, así como no puede concebir ser querida, acepta sí ser deseada, pero se lo atribuye esto a su impostura o su seductividad. La uctuación afectiva y la duda sobre los vínculos es una constante. Mi hipótesis: Ella se construyó a si misma, lo pudo hacer y se pudo enriquecer y alimentar del amor que admiraba en los cuidados, las expectativas y la narcisización con que sus padres amasaron a sus hermanos. Se nutrió del amor que irradiaban vínculos amorosos. También se nutrió de otros ideales: supo valorar el esfuerzo y la dedicación de su padre por su trabajo. Admiraba los cuidados narcisísticos de su madre, la recuerda ocupándose de dejarse un vaso de agua todas las noches en su mesa de 42


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luz. Sus senos esplendorosas, su siempre arreglo. María no recibió nada de eso pero curiosamente ese amor, esos cuidados y expectativas de sus padres sobre sus hermanos, sus valores, se transformaron en un núcleo maravilloso, que a modo de ideal, la acompaña en la vida. Ama el amor, claro que desde el lugar de la espectadora. Lo cual pienso debe ser puesto en valor en la estructuración del verdadero self, pero no obstante no logra, ni cree que pueda algún día lograr ser protagonista de un amor. En la escena amorosa ella es la fascinada espectadora. No se trata de una represión edípica ni de un aspecto fóbico o esquizoide. No hay huella del amor en su carne. Si de la fascinación por el amor. No tiene la huella que dejan las funciones parentales en los individuos, que en términos de Winnicott podríamos resumir como el efecto del sostenimiento amoroso y empático continuado en el tiempo. Como contra prueba, tampoco ella dejó huella en sus padres. La quieren bien, pero no han podido hacerla suya. Se construyó sin un lugar en un otro signi cante. La invención de uno mismo. Pero ¿por qué puede amar, por qué establece vínculos, por qué se desarrolla habiendo sido una ausente en la expectativa parental? María lo logra porque puentea, salta por arriba de los objetos, o la falta de, y captura y se ensueña en y con sus ideales de relación. Se enamora del amor. Otro paciente Max construyó su ideal amoroso alrededor del envidiado amor que su tío tenía por su propio hijo. Y ese vínculo se transformó en un objeto-fuente-meta en su vida que pudo progresivamente ir haciendo propio. Pero fue eso, esa mirada la que le mostró el camino a su deseo. Mi interés actual es el de considerar otra manera de crecer, de desarrollarse, de madurar, de construirse en la vida que es importante de ser considerada para no interpretar equivocadamente a nuestros pacientes y hacer los análisis interminablemente frustros. Planteo un desarrollo ni esquizoide ni neurótico, ni falso. Pero sin duda con consecuencias y dé cits. 43


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El sujeto se construye al costado de la falta pero no anulado por ella. Son personas que no han recibido más que un mínimo sostenimiento, un pobre acompañamiento hacia la realidad compartida, muy poco contacto físico, sin espejo materno que construya su autoestima. Construirse en base a ideales conduce a una integración depresiva relativamente incompleta, puesto que será una persona que se mantendrá siempre fascinada, sostenida por ideales y sosteniendo ideales, con el corazón en la mano, a cualquier costo. Construcción particularmente sensible que fue revelada, modelada en la belleza del amor y del deseo que reconocía en otros vínculos. Simple como eso. Se trata de alimentarse de la belleza, del amor y del deseo. ¿Qué lleva a buscar análisis? Algunos motivos: uno la angustia, que es la repetición de la angustia acallada en la niñez de haber tenido que desarrollarse con demasiado esfuerzo y sin red de contención. El otro, la sensación de no ser verdadero. Al estar esta autoconstrucción apoyada más en ideales que en vínculos verdaderos un cierto tono idealista in exible y un tanto rígido será su eje, a la vez que una cierta di cultad en socializar. Lo que si tengo son mis ideales y son irrenunciables. Pero la base cae en frecuentes zonas de duda y cuestionamiento. El basamento no es tan sólido ni permite una sensación de seguridad. En la salud de la crianza su cientemente buena, del sostenimiento que otorgan las guras parentales protectoras se pasa a la seguridad de la sociedad fraterna, de la fratría (Freud). En cambio en la invención de uno mismo no se produce este pasaje, faltan experiencias parento- liales y por lo tanto tampoco habrá descanso en una sociedad de hermanos, de pares. A modo de adenda, homologando el proceso de la crianza con el desarrollo de ciertos análisis, frecuentemente constatamos procesos analíticos pobres. El lugar de los ideales en juego puede ser clave nuevamente, el paciente se enriquece y progresa también a partir de los aspectos ideales del vínculo analítico, de la intención amorosa del analista, mucho más que por las elaboraciones que puedan surgir de las 44


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interpretaciones, construcciones o revelaciones del proceso analítico. No podrá utilizar al analista como un otro, un otro del que se espere algo más que sus cualidades personales, pero se podrá enriquecer y aliviar más de sus cualidades que de su función de analista propiamente dicha. Sin quererlo lo puenteará como analista y lo adoptará como persona.

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4. CORRUPÇÃO, MEMES E DEMOCRACIA: EM BUSCA DO VERDADEIRO SELF A PARTIR DE INTERLOCUÇÕES ENTRE CIÊNCIA POLÍTICA E PSICANÁLISE WINNICOTTIANA

CORRUPTION, MEMES AND DEMOCRACY: SEARCHING FOR THE TRUE SELF BY INTERLOCUTIONS BETWEEN POLICTICAL SCEINCE AND WINNICOTTIAN PSYCHOANALYSIS Carolina Moreira de Alcântara Sandra Baccara⁴

Resumo O presente trabalho baseia-se na interlocução da Ciência Política e a Psicanálise, propondo a construção da de nição psicológica da corrupção a partir das contribuições de Winnicott sobre o conceito psicológico de democracia. Busca-se compreender também os movimentos existentes nas redes sociais nas criações de “memes” e sátiras sociais (ou chistes) suscitadas a partir dos escândalos de corrupção. A compreensão do comportamento antissocial de líderes políticos e sua relação com o desenvolvimento político da sociedade brasileira é realizado por meio de uma breve análise histórica sobre o desenvolvimento da democracia brasileira. Palavras-chave: comportamento antissocial, corrupção, desenvolvimento social, democracia, verdadeiro self. Abstract e present work is based on the interlocution of Political Science and Psychoanalysis, proposing the construction of Winnicott’s psychological contributions about corruption and democracy. It seeks to understand also the social movements in social networks in the creations of "memes" and social satires (or jokes) raised from the scandals of corruption. e 3. Psicóloga clínica. Mestre em Psicologia Clínica e Cultura (UnB, 2010), Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional (UnB, 2008). Especialista em Relações Internacionais (UnB, 2016). 4. Psicóloga clinica e jurídica. Doutora em Psicologia pela UnB, Especialista em psicoterapia da infância e da adolescência, em psicoterapia conjugal e familiar. 47 Rabisco R. Psican

Porto Alegre

v.8

n.1

p. 47-61

Junho/2018


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understanding of the antisocial behavior of political leaders and their relation with the political development of the Brazilian society is realized through a brief historical analysis on the development of Brazilian democracy. Keywords: antisocial behavior, corruption, social development, democracy, true self. O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons. Martin Luther King Bobbio, Mateucci e Pasquino (1986), no dicionário de Ciência Política de nem corrupção como: o fenômeno pelo qual um funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troco de recompensa. Corrupto é, portanto, o comportamento ilegal de quem desempenha um papel na estrutura estadual. Trata-se, portanto, de um conceito de corrupção atrelado ao de esfera pública, sendo esse último uma das mais importantes contribuições trazidas pela teoria política lançado por Hannah Arendt (1958) e operacionalizado por Jürgen Habermas, conforme resumiu Avritzer (2008). As perspectivas trazidas por Hannah Arendt e Jürgen Habermas lançaram luz sobre a necessidade de separação entre a esfera pública e a esfera privada, tendo em vista que a sociedade de massas e a ascensão do social levaram à despolitização da condição humana, transferindo para as atividades privadas e, em especial, para o consumo, o centro das atividades humanas. O ato ou modo ilegal de exercer in uência que se molda ao funcionamento de um sistema público, afeta, signi cativamente, o processo decisório em três níveis, de acordo com Bobbio et al. (1986): 48


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• Na fase de elaboração das decisões, ligado a atividades de pressão dos grupos e das elites, como, por exemplo, o lobby; • No nível da aplicação das normas por parte da administração pública e de suas instituições, buscando a isenção ou uma aplicação de qualquer decisão favorável, assim, quanto mais elástica e vaga for a formulação das normas, maior a probabilidade de corrupção; • No julgamento, visando fugir às sanções legalmente previstas. Observa-se, assim, que são objeto de corrupção, tanto seus agentes públicos como também o próprio sistema em suas três esferas (Executivo, Legislativo e Judiciário). São enrendados parlamentares, servidores públicos, magistrados, bem como seus governos, burocracias, leis e jurisprudências. Bobbio et al. (1986) fazem algumas considerações sobre três fatores básicos cuja corrupção está ligada: • À proporção do processo de institucionalização, portanto, quanto maior for o âmbito da institucionalização, maior a possibilidade do comportamento corrupto. Por isso, a ampliação do setor público em relação ao privado provoca o aumento das possibilidades de corrupção; • Ao ritmo com que a institucionalização, logo, em ambientes estavelmente institucionalizados, observa-se que os comportamentos corruptos tendem a ser, ao mesmo tempo, menos frequentes e mais visíveis que em ambientes de institucionalização parcial ou utuante. • À cultura das elites e das massas. Quanto mais a elite se sentir ameaçada, tanto mais recorrerá a meios ilegais e à corrupção para se manter no poder. Assim, o fenômeno da corrupção acentua-se com a existência de um sistema representativo imperfeito e com acesso discriminatório ao poder de decisão. Seus efeitos são notáveis no funcionamento de um sistema político. Quando a corrupção está largamente espalhada e é, ao mesmo tempo, parcialmente aceita pelas massas e nas relações entre as elites, 49


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suas consequências podem não ser inteiramente disfuncionais. Exemplo desse tipo de tolerância pode ser observado em discursos populares ao se referir a determinados políticos: “ele é corrupto, mas faz”, a respeito de benfeitorias públicas apesar de notáveis desvios nanceiros ou a superfaturamento de obras. Porém, Bobbio et al. (1986) alertam para os casos em que a corrupção servem tão somente para a manutenção das elites no poder e, além disso, em circunstancias em que os corruptores forem elementos externos ao sistema político nacional, como no caso do colonialismo e neocolonialismo, é provável que seu uso em larga escala crie duas situações extremas: a primeira, tensões no seio das elites e, por outro, provoque reações nas massas, reações ativas como demonstrações, ou passivas como apatia e alheamento. Cabe ressaltar, que a corrupção não é algo novo no Brasil, é, sobretudo, um fenômeno histórico como bem analisa Carvalho (2012): Os republicanos da propaganda acusavam o sistema imperial de corrupto e despótico. Os revolucionários de 1930 acusavam a Primeira República e seus políticos de carcomidos. Getúlio Vargas foi derrubado em 1954 sob a acusação de ter criado um mar de lama no Catete. O golpe de 1964 foi dado em nome da luta contra a subversão e a corrupção. A ditadura militar chegou ao m sob acusações de corrupção, despotismo, desrespeito pela coisa pública. Após a redemocratização, Fernando Collor foi eleito em 1989 com a promessa de caça aos marajás e foi expulso do poder por fazer o que condenou. De 2005 para cá, as denúncias de escândalos surgem com regularidade quase monótona. Para Carvalho (2012) a corrupção – que sempre existiu – modi couse ao longo dos anos. As denuncias que se referiam ao Brasil Império e à Primeira República não citava nomes. Apenas em 1945, houve o combate aos políticos corruptos da Era Vargas (incluindo o próprio Getúlio). O autor ainda a rma que o tamanho da corrupção também se modi cou, 50


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ampliando-se com o crescimento da máquina pública. Outra mudança que Carvalho (2012) aponta diz respeito à reação das classes, enfatizando a função da classe média, sobrecarregada por impostos, que se mobilizou em importantes movimentos sociais no passado. Carvalho (2012, p. 203) conclui prevendo um cenário otimista, em que “a curva ascendente da corrupção começará a in ectir para baixo, assumindo a clássica forma do sino, até o ponto em que seja considerada tolerável”. Deve-se considerar, no entanto, que talvez existam outros fatores que atualmente in uenciam a sociedade brasileira a tolerar os atuais escândalos de corrupção. Baccara, (2014) discute que o momento sociocultural vivido atualmente tem trazido uma di culdade muito grande na estruturação das normas e valores, não só para as crianças e adolescentes, mas para todos o contexto social e cultural. A ausência de modelos de identi cação, ou a presença de outros modelos desestruturadores, representando subjetivamente um “Pai” ausente, ou um “Pai” que não exerça a Lei como modelo estruturador – “rouba, mas faz”- tem criando obstáculos para que a sociedade reconheça e reaja aos comportamentos antissociais (corrupção) fazendo com que eles se tornem comportamentos comuns, aceitos pelo social. A dimensão psicológica da corrupção e da democracia Buscando focalizar a dimensão psicológica da corrupção, retomamos a contribuição de Winnicott que – apesar de não ter sido o primeiro a escrever sobre a tendência antissocial – esse foi quem mais contribuiu com ideias originais para o entendimento do tema. Para tanto, deve-se citar, primeiramente, Freud que cou conhecido por herdar a visão pessimista de omas Hobbes sobre a essência humana (homo homini lupus) sendo necessário ao homem submeter-se aos processos civilizatórios a m de se perpetuar enquanto espécie, constituindo o grande mal-estar na civilização. De acordo com Ferraz (2006) a inovação de Freud para a compreensão das tendências antissociais rompeu com o senso comum no sentido que ele propôs como origem dos atos infracionais a busca por 51


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punição. Os conceitos como pulsão de morte (todestrieb) e a noção de superego severo propostos por Freud (1923 em Ferraz, 2006) permitiram ao autor inferir sobre a semelhança existente entre a melancolia e as tendências antissociais: “a tendência para a destruição pode estar presente em uma satisfação libidinal, satisfação sexual voltada para o objeto ou fruição narcísica. Assim, componente pulsional destrutivo desempenha seu papel contando com o reforço de componentes eróticos” (Ferraz, 2006, p. 175). Winnicott diverge de Freud uma vez que ele não considera que essa tendência seja regida pela pulsão de morte. Winnicott (1956), ao contrário, considera o ato infracional como um sinal de esperança e, portanto, um movimento ligado à vida. No que tange a compreensão sobre o desenvolvimento humano pode-se a rmar que esse autor concentrou seus estudos sobre o desenvolvimento infantil que ocorre antes do processo de integração, ou seja, propôs a análise de um período anterior ao que Freud considerou como fase oral. Sugere-se, então, que a tendência antissocial está intimamente ligada ao conceito de agressividade. Dessa forma, a perspectiva winnicottiana sobre a origem da tendência antissocial implica em uma nova compreensão sobre as origens da agressão. Ao a rmar que “amor e ódio envolvem agressividade”, Winnicott (1939, p. 93) faz referência ao processo de elaboração e reparação da “expressão mais primitiva do amor – a agressão” (Winnicott, 1950-5, p. 356). Descarta-se, então, a possibilidade de se entender o comportamento agressivo como fruto exclusivo dos instintos agressivos primitivos, passando a compreendê-lo por meio da percepção de que há uma atividade motora, conhecida como voracidade ou motilidade. Entretanto, compreender o desenvolvimento da agressão não explica por si só a questão da tendência antissocial. Deve-se ressaltar que agressão e agressividade não são codinomes de delinquência. A agressão concreta é uma realização positiva que faz parte dos processos de maturação, em contraposto à destruição mágica do mundo (Winnicott, 1939). Esse autor entende que a tendência antissocial é algo natural a 52


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todo ser humano, enquanto a questão da delinquência é uma característica que não é comum a todos. Winnicott (1966) entende que a tendência antissocial não se estabelece “a partir de uma simples carência, mas sim de um verdadeiro desapossamento” (Winnicott 1956, p.139). A origem da tendência antissocial, sugerida por Winnicott, está na (de)privação que seria a perda do bom objeto e con ável. Outeiral (2009) esclarece a diferença entre privação e deprivação da seguinte maneira: quando ocorre uma falha ambiental importante neste estágio nos defrontamo-nos com estados de mente primitivos, como as psicoses e as doenças psicossomáticas. Neste caso teremos uma privação (privation), a inexistência e a perda do contato numa etapa muito precoce da existência. Quando a criança avança até a dependência relativa, já temos a presença do espaço potencial, área das primeiras experiências não-eu, com a percepção da mãe objeto (m/other) e a prevalência do elemento masculino puro, o fazer. Já existem aspectos do estágio de preocupação (concern). Uma falha neste momento leva a deprivação (deprivation) à perda de uma experiência emocional experimentada e percebida que será cobrada pela criança. A criança sente como se lhe houvessem roubado os cuidados: a tendência antissocial relaciona-se a este momento: a cobrança de uma divida afetiva. Por outro lado, existe ainda a esperança de que o cuidado poderá ser resgatado (p. 231). Outeiral (2009) também analisa a etimologia dessa palavra, contribuindo com outra perspectiva, igualmente originária do latim, de+linkare, que signi ca a perda da capacidade de estabelecer vínculos, sugerindo uma relação existente entre a delinquência e a capacidade de envolvimento. A capacidade de envolvimento é adquirida primeiramente por meio da conquista “da capacidade de combinar a experiência erótica e agressiva em relação a um único objeto” (Winnicott, 1963, p. 113). Essa aquisição permite que o bebê 53


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experimente “a ambivalência em fantasia assim como na função corporal de que a fantasia é uma elaboração” e por sua vez, “comece a ser independente do ego auxiliar” (Winnicott, 1963, p.113- 4). Dessa maneira, Winnicott (1963) propõe que o envolvimento surge no processo de integração, na mente da criança, da mãe-objeto com a mãeambiente e sendo assim a tendência antissocial deriva do problema do não envolvimento que consiste na não sobrevivência da mãe-objeto ou o fracasso da mãeambiente em propiciar uma oportunidade con ável para a reparação, levando à perda da capacidade de envolvimento e à sua substituição por angústias cruas e por defesas cruas, tais como clivagem ou desintegração (p. 117). Portanto, enquanto a culpa refere-se à “angústia vinculada ao conceito de ambivalência e implica um grau de integração no ego individual que permite a retenção da imago do objeto bom, ao lado da ideia de destruição”, o envolvimento “relaciona-se de modo positivo com o senso de responsabilidade do indivíduo, especialmente com respeito às relações em que se introduziram pulsões instintuais” (Winnicott, 1963, p. 111). Em outras palavras, pode-se considerar que a culpa diz respeito às vivências que o sujeito sente no próprio corpo, ou seja, dele com ele mesmo, enquanto a capacidade de envolvimento refere-se à relação do sujeito com o outro. O elo entre o sentimento de culpa e a capacidade de envolvimento é, portanto, a con ança. Por sua vez, a linha tênue entre normal e patológico é resumida por Winnicott (1946) da seguinte maneira: uma criança normal, se tem a con ança do pai e da mãe, usa de todos os meios possíveis para se impor. Com o passar do tempo, põe à prova o seu poder de desintegrar, destruir, assustar, cansar, manobrar, consumir e apropriar-se. Tudo o que leva as pessoas aos tribunais (ou aos manicômios, pouco importa no 54


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caso) tem seu equivalente normal na infância, na relação da criança com o seu próprio lar (p. 129). De modo semelhante, poder-se-ia considerar que o agente público corrupto apresenta, portanto, uma di culdade de estabelecer vínculos com o povo, levando à repetição de comportamentos que atendem aos impulsos narcísicos. Ao privilegiar alianças políticas e a manutenção de concessões para as elites, elege a satisfação de seus próprios interesses, estabelecendo um outro tipo de sistema de governo, que não a democracia, talvez uma aristocracia ou uma oligarquia. O termo democracia, por sua vez, é abordado por Winnicott (1989) em sua dimensão psicológica como um sistema social, organizado para o povo e pelo povo, em que o mesmo escolhe seus líderes, sua forma de governo, permitindo que seus indivíduos gozem de liberdade de ação. Democracia é, portanto, de nida por Winnicott como sociedade bem ajustada a seus membros saudáveis (grifo nosso). Todavia, percebe-se que as instituições que sustentam o ‘nome do pai’ e a Lei sofrem de um enfraquecimento generalizado, concomitante ao desprestígio da paternidade, no que diz respeito aos nossos modelos sociais e políticos de identi cação Barros (2001, citada por Baccara, 2014). No mundo de hoje, em que se propaga o enfraquecimento do código moral e ético, em que a corrupção se “torna” norma de conduta de nossas autoridades e a Função Paterna – representante da Lei e das normas morais e sociais – está cada dia mais ausente na constituição subjetiva das crianças e adolescentes, faz urgente o resgate da Lei paterna, constituidora do Super Ego moral e social, e da internalização da Lei para a construção resgate da ideia de um cidadão que respeite a si mesmo e ao bem público. E quando essa Lei, esse referencial de Poder e limite se encontra sob suspeita? Baccara discute que “A ausência ou perda das referências faz acreditar que isso pode signi car o fracasso do individuo, assim como o fracasso social, inviabilizando a interiorização da imagem e da metáfora paterna, levando à impossibilidade da interiorização coletiva da Lei”. Se 55


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sociais. Os memes poderiam ser considerados as caricaturas de ontem, criadas e compartilhadas tantas vezes que sua autoria passa a ser de difícil identi cação, caindo no anonimato ou no domínio público. Seria esse um dos movimentos culturais da sociedade contemporânea? Estaríamos rebeldes ou resignados à corrupção? Freud (1905) refere-se a Fischer ao a rmar que um chiste é um juízo cômico feito pelo inconsciente. Em 1927, Freud retoma o assunto na voz de Anna, sua lha, durante o X Congresso Psicanalítico Internacional e considera o humor como: “uma contribuição feita ao cômico pela intervenção do superego. (…) E, nalmente, se o superego tenta, através do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua origem no agente paterno” (p.169). Marília Morais (2008, p. 119) sintetizou Freud (1905/1927) e Lacan ao resgatar a análise do termo witz, traduzido como chiste, diferenciado-o do humor, dando ao último um status superior ao primeiro ao considerá-lo como ético – frente à pulsão de morte; estético por sua criatividade diante dos interditos, culminando em um proceso de sublimação, e político em virtude da busca pela esperança e pelo direito de existir e resistir. Kuppermann (2003, 2005, 2010) se dedicou à temática do humor, relembrando sua importância enquanto característica pessoal de Freud em um cenário anti-semita, bem como sua contribuição para a compreensão do processo de sublimação, enfatizando o trabalho de desidealização promovido pelo humor frente à condição de orfandade que caracteriza o sujeito moderno. O humor, enquanto desconstrução de poder, é atualmente estudado por Birman (2005) que analisa seu uso como estratégia de sobrevivência criativa dos judeus frente ao antissemitismo do século XIX. Para o autor, transformar a agressão mortífera em chiste e ainda gozar com o que se realiza, pelo riso que provoca, implica, para a tradição judaica, não se identi car com o agressor e esvaziar-se em ato, em cena social, o aniquilamento presente no gesto antissemita (Birman, 2005). Entretanto, diferentemente do que ocorreu na sociedade germânica antissemita, em que o judeu sublima, em última instância, o ódio do Outro, o brasileiro se utiliza do humor 56


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vivemos em ‘um mundo sem limites’, onde as referências se tornam confusas, pela falta de referenciais paternos – a Lei, o limite social – podese possibilitar com que os lhos abandonados se deixem levar pela violência – corrupção – pelas condutas aditivas – desrespeito ao bem público – e por manifestações ditas bordelines. Carreteiro (2001), citada por Baccara, “a rma que poder ter a Lei como referencia em nível social é poder imaginar uma possibilidade de ordem democrática em que haverá igualdade entre a fratria (os seres humanos) “. Manter a Lei paterna como referencia é, ao mesmo tempo, assumir a proibição do incesto e do assassinato, acessar ao reconhecimento da alteridade e querer ser reconhecido em sua própria alteridade. Assim, poder ter acesso a lei é poder construir o respeito a si e ao outro. É se construir, construindo o outro. As mudanças impostas pela contemporaneidade, por meio da globalização de normas e condutas, da “universalização” dos valores e normas sociais e morais, tiraram do espaço familiar a constituição subjetiva do individuo, dando-lhes a falsa sensação de que “Ter” é o bastante. A construção do “Ser”, desta forma, cou restrita a um segundo plano. Uma geração narcísica “nasce” fruto desse processo, atropelando o sujeito na sua estruturação de cidadão. Obedece-se então à Lei imposta pela cultura de massa, pelo consumo, que afasta o sujeito de si mesmo (Baccara, 2014). A dimensão política do humor, da sátira e dos memes O uso do humor tem sido, talvez, a mais frequente demonstração social atual diante do cenário político. Porém, o humor e suas vertentes mais agressivas, a sátira e a ironia, não são novas nos movimentos culturais e artísticos brasileiros. Starling (2008) nos fez lembrar a obra de Machado de Assis escrita em 1882, “Sereníssima República”, uma fábula sobre a sociedade das aranhas. Lustosa (2012), por sua vez, detém-se sobre a e cácia da caricatura, que, diante da naturalização dos maus costumes, encontra espaço entre o jornalismo e a arte. Assim, a temática da corrupção permeia nossa música, nosso teatro, cinema, saindo das folhas de jornal, atualizando-se e multiplicando-se em nossas redes 57


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para lidar com os escândalos de corrupção em seu próprio seio. Ele ri de si mesmo, de seu próprio câncer. Igualmente ao judeu, o brasileiro lida com a orfandade da perda da gura paterna por meio do humor. Mais recentemente, após uma onda de manifestações públicas articuladas por meio de redes sociais na internet que marcaram o ano de 2015, o brasileiro assiste, ansiosamente, os desdobramentos e os julgamentos do STF de membros do Legislativo e Executivo. O resultado é uma nova explosão de memes. Entretanto, as ruas estão mais silenciosas. Estaríamos vivendo a calmaria que precede a tormenta às portas de um ano de eleições para a presidência? Os os da corrupção no Brasil contemporâneo enredam o sistema de pesos e contrapesos, enlaçando agentes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Parece não haver mais divisão de poderes e o amor ao bem público, de Montesquieu, é engolfado pelo amor ao bem privado. Como diria Bobbio, a corrupção é fator desagregação do sistema. Mas Winnicott diria mais. A corrupção esfacela o Estado e por consequência, a família e o indivíduo. De fato, esse tipo privilegiado de in uencia, reservado àqueles que possuem meios, muitas vezes só nanceiros de exercê-la, conduz ao desgaste mais importante dos recursos do Estado: sua legitimidade. A Legitimidade é um atributo do Estado que consiste na presença, em uma parcela signi cativa da população, de um grau de consenso capaz de assegurar a obediência sem a necessidade de recorrer ao uso da força (da violência). É por essa razão que todo poder busca alcançar consenso, de maneira que seja reconhecido como legítimo, transformando a obediência em adesão. A crença da legitimidade é o elemento integrador, a relação de poder que se veri ca no âmbito do Estado. A legitimidade da comunidade política, do regime de governo (no nosso caso o democrático de direito) e a nossa forma de governo (república) torna-se então, questionada, pela corrupção. O que pode estar por trás desse desmantelamento da moral social ou a que a está provocando? Pensamos que o processo de globalização tem sido um desses elementos. A proposta de uma “igualdade”, se traz 58


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benefícios, acreditamos que traga igualmente muitos prejuízos, pois faz com que se anule aspectos estruturadores das culturas. A individualidade que a cultura propicia à nação faz dela um diferencial importante. Eu sou “um” no meu universo cultural, que me dá normas e valores e, ao mesmo tempo eu sou o “coletivo”, que me faz pertencer a um povo e a uma cultura e me dá acesso ao poder e à Lei. Essa despersonalização presente na sociedade de hoje di culta a estruturação do universo cultural. Se as guras de identi cação se desvalorizam ou não surgem para a sociedade, a Lei se faz necessária como aquele que dará o limite e as normas morais e sociais. A partir das contribuições de Winnicott, poder-se-ia considerar que, diante da primazia do ter, a capacidade de envolvimento de seus indivíduos ca prejudicada, não permitindo o investimento adequado no um espaço transicional, na experiência cultural compartilhada, culminando em uma dinâmica narcísica. Em um estado contínuo de descon ança, os indivíduos raramente alcançam um desenvolvimento saudável de integração, que possibilita a expressão do verdadeiro self e a capacidade de compromissar-se. De fato, há pouca tolerância para a alteridade na contemporaneidade. Uma solução parcial que consiste em permanecer na submissão de um viver restringido a um falso self, guiado pela lógica do consumo e do elemento masculino puro – o fazer. Como a rmou Winnicott (1964, p. 66) “o drama dos dias de hoje reside em buscar um núcleo de verdadeiro naquilo que é substancial, sentimental, bem sucedido e engenhoso”. Os sintomas do falso self patológico são os mais variados, mobilizando os sujeitos a buscarem (ou consumirem?) intervenções terapêuticas diversas. Retraídos e descon ados, esses sujeitos não alcançam ainda a capacidade de estar só. Diante do vazio, buscam, compulsivamente, ser vistos. Todavia, o efêmero olhar das redes sociais não propicia o verdadeiro encontro com o elemento puro feminino - o ser. Em busca do verdadeiro self Em 1946, Winnicott pontuou: “os ladrões estão inconscientemente 59


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procurando algo muito mais importante do que bicicletas e canetastinteiro (p. 128). Os montantes de dinheiro público cada vez maiores denunciados em escândalos de corrupção revelam não somente a delinquência enrijecida pelos graúdos ganhos secundários, mas, também, “a dor de perder repetidamente a esperança é insuportável” (Winnicott, 1961, p. 232). Diante da dor da orfandade, encontramos ainda parcela da sociedade que sugere o retorno aos regimes autocráticos como solução diante do cenário que vivemos. Nesse caso, Winnicott alerta: Caso existam, em determinado momento numa sociedade, x indivíduos que demonstrem sua falta de senso social desenvolvendo uma tendência antissocial, há uma quantidade z de indivíduos reagindo à insegurança interna através da tendência alternativa – a identi cação com a autoridade. Essa identi cação é doentia, imatura, pois não é uma identi cação com a autoridade que surge da autodescoberta. É o senso da moldura sem o senso do quadro, um senso da forma sem a manutenção da espontaneidade. É uma tendência prósociedade, mas anti-indivíduo. As pessoas que se desenvolvem dessa maneira podem ser chamadas de antissociais ocultas. Analisando o sistema democrático, Winnicott questionou: “qual é a proporção de indivíduos antissociais que uma sociedade pode conter sem que a tendência democrática inata submerja?” Winnicott propõe o cálculo matemático, em que toda a responsabilidade democrática recai sobre 100 – (x+y+z) % de indivíduos que estão amadurecendo como indivíduos e que estão gradualmente se tornando capazes de acrescentar um sentido social a seu bem fundamentado desenvolvimento pessoal. Assim, enquanto num total de 50% indicaria uma tendência democrática inata su ciente para efeitos práticos, 30% não seriam su cientes para evitar uma submersão no meio constituído pelos antissociais (ocultos e 60


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manifestos) somados aos indeterminados (estes últimos, por suas fraquezas, ou por seu medo), seriam persuadidos a se associar aos antissociais. Esses números parecem estar mais ligados a fatores culturais que a dados subsidiados pela Macroeconomia, remetendo-nos à passagem bíblica de Abraão e sua insistente negociação com Deus diante da iminente destruição de Sodoma e Gomorra: “Não faria justiça o Juiz de toda a terra?”. Deus responde: “Se eu em Sodoma achar cinquenta justos dentro da cidade, pouparei a todo o lugar por amor deles”. (Gênesis 18:26). Como resultado apenas Abraão e sua família se salvam, fugindo dos destroços. Diante sodomização do Brasil, observa-se a crescente diáspora. De acordo com dados da Receita Federal, em 2014 houve um aumento de 81,61% na comparação com o triênio imediatamente anterior de cidadãos que declaram a saída de nitiva do país. De 2011 a 2013, período que antecedeu a crise econômica, somavam-se 30.506 documentos⁵. Como Winnicott previa, observamos a eclosão de lideres imaturos que começam a se rodear de indivíduos antissociais óbvios, os quais lhe dão boas-vindas, como se ele fosse seu chefe natural. A situação atual revela a imaturidade da sociedade brasileira que em meio a um capitalismo tardio e perverso, clama por ajuda, entendendo assim que a corrupção, é um pedido de ajuda, um gesto de esperança, como “cura de uma dissociação de instintos” ou tendências, que pode ser visto por meio da atuação, acting outs. Resgatar a verdadeira identidade de ser brasileiro é a terapêutica necessária. Precisamos resgatar a esperança a partir de uma atuação criativa, e não apenas em um brincar submisso e compulsivo diante da ansiedade. O humor pode ser uma estratégia criativa de transgressão e de fortalecer ethos de ser brasileiro. Quantos sobreviverão? E quantos bons serão necessários para mudar a nossa realidade?

5 https://istoe.com.br/crise-eleva-numero-de-brasileiros-que-deixam-o-pais/ 61


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5. O PODER ESTÉTICO – UMA EXPERIÊNCIA CRIATIVA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

THE AESTHETIC POWER – A CREATIVE EXPERIENCE BY HUMAN DEVELOPMENT Márcia Zart⁶

Resumo: Este texto pretende desenvolver re exões sobre algumas questões estéticas existentes no poder. A estética e o poder estão presentes desde o início da existência humana e podemos re etir sobre as relações entre mãe e bebê sobre este aspecto. Esta comunicação se entrelaça na afetividade, onde o poder e a estética se sobrepõem aos demais sentimentos, exercendo grande responsabilidade na evolução humana e se tornam fundamentais em importantes conquistas que tornam o mundo adequado a vida. O poder e a estética são constantemente construídos, desconstruídos e reconstruídos e recriar é essencial ao poder criativo em razão da vida. Palavras-chave: Psicanálise, Poder, Estética, Winnicott Abstract: is text aims to develop re ections on some aesthetic issues in power. Aesthetics and power are present from the beginning of human existence and we can re ect on the relations between mother and baby on this aspect. is communication is intertwined in affectivity, where power and aesthetics overlap with other feelings, exercising great responsibility in human evolution and become fundamental in important achievements that make the world suitable for life. Power and aesthetics are constantly built, deconstructed, and rebuilt, and re-creating is essential to creative power on the grounds of life. Keywords: Psychoanalysis, Power, Aesthetics, Winnicott “É bom lembrar que o início é um somatório de inícios.” Winnicott (1962) Abram (1996) 6 Marcia Zart. Psicóloga. Especialista em psicoterapia psicanalítica e clínica de adultos; Integrante dos Seminários Winnicott Porto Alegre/RS; Membro fundador e integrante do editorial da Revista Rabisco de Psicanálise; org. e coautora do livro A estética alimentar no desenvolvimento humano. Email: marcia@zart.com.br 65 Rabisco R. Psican

Porto Alegre

v.8

n.1

p. 65-71

Junho/2018


O PODER ESTÉTICO – UMA EXPERIÊNCIA CRIATIVA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

A estética apresenta-se na vida do ser humano desde os primeiros ciclos da existência, talvez possamos acreditar que ainda na vida intrauterina, quando o pequeno feto se familiariza com a voz da mãe e os sons do ambiente dentro da primitiva escuta e percepção daquele momento. Ao nascer o bebê necessita de dedicada atenção dos cuidados maternos, de uma mãe su cientemente boa, de acordo com a teoria de Winnicott. Segundo este autor, a comunicação tem origem na transmissão de estados afetivos entre mãe e bebê. Conforme Smalinsky e Ripesi (2017), “esta mãe é uma mulher normal, dedicada a criação de seu bebê. É uma mulher con ável e previsível para seu lho, apesar das inevitáveis falhas na sua tarefa”. Processo que possibilita identi cações com a vida intrauterina e portanto torna-se estético. “A mãe corresponde as diversas e exigentes necessidades de seu lho, que se encontra em estado de dependência absoluta,” segundo Winnicott no livro Descobrindo Winnicott e o brincar (2017). O poder da mãe está em proporcionar a este novo ser, um ambiente acolhedor e adequado aos cuidados necessários para sua sobrevivência e desenvolvimento. Este é o poder criativo em razão da vida. A mãe ou a pessoa que assume a maternagem tem as condições naturais de poder para comandar este holding. “Ao atender o ciclo das necessidades vitais, a mãe introduz um ritmo que vai mais além do estritamente vital, segundo suas ansiedades. Ao alimentá-lo, a mãe introduz um compasso, com suas acelerações ou detenções, que possui já um valor signi cante determinado”, diz Smalinsky e Ripesi (2017). Instalando-se um núcleo rítmico conforme Henrique Honigsztejn. Nesta relação mãe-bebê, vai a orar numerosos sentimentos, vinculados a experiência estética, como admiração, encantamento e desejo, num interjogo saudável de sedução e conquista, poder e submissão. O corpo e o afeto nos inúmeros sentimentos que fazem parte do universo humano, compõem territórios de condutas e expressividades. Os sentimentos são revelados através de nosso corpo, num complexo de expressões faciais e corporais que se manifestam espontaneamente. Desta maneira podemos perceber o belo que nos oportuniza sensações agradáveis e o estranho. 66


Marcia Zart

Estranho é aquilo que não sabemos como abordar. Conforme Freud (1969/1996) Vol. XVII, “(...) somos tentados a concluir que aquilo que é estranho é assustador precisamente porque nos é conhecido e familiar”. Assim como o pequeno feto se entrelaça numa rede afetiva com a mãe gestante, os seres humanos também o zeram com a mãe natureza e as outras mães que a vida proporciona. Esta comunicação vai se repetir nas demais relações emocionais ou pro ssionais, onde o poder e a estética se sobrepõem aos demais sentimentos. Desde o início da humanidade o poder e a estética existiram e foram os responsáveis pela sua evolução, essenciais em importantes conquistas positivas, tornando possível a convivência e transformando o mundo conveniente à raça humana. Poder e estética estão presente em todas as organizações e associações existentes independente de lugar, espaço, tempo, aspectos culturais ou momento da nossa história. Estarão entre as pessoas que convivem numa sociedade, comunidade, grupos ou instituições. Em todas as coletividades e classes como família, trabalho, escola e o Estado, através de uma organização própria se faz necessário o poder e a estética que atuará motivando, inibindo ou impedindo ações de comportamentos diversos e também vai in uenciar na convivência de todos os seres humanos. O poder para ser uma experiência estética completa precisa ser sentido como algo agradável, adequado e benevolente. E para isso necessita que sejam utilizados símbolos de imagem bela, sendo capaz de seduzir a todos. Que símbolos seriam estes? Seriam as primeiras percepções do feto em um momento onde nada pode ser nomeado, onde nada existe com signi cação simbólica? Vivemos a experiência estética quando sentimos verdadeiramente a emoção e a percepção de outros signi cados que estão muito além do externo. A experiência estética só ocorrerá quando entrarmos em contato com o universo das diversi cadas representações que podem existir entre as conexões vinculares. O campo das representações relacionadas com o poder estão nas relações sociais e políticas, que permitem a elaboração de uma relação de comando e submissão. Contudo, também se encontram nos mais simples elos existentes entre seres humanos. 67


O PODER ESTÉTICO – UMA EXPERIÊNCIA CRIATIVA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

O que poderíamos entender sobre a estética e o poder? A estética circula geralmente pelos sentimentos empáticos e agradáveis, enquanto o poder nem sempre nos traz boas sensações. O lósofo Sergio Cortella, conhecedor de Winnicott, a rma que a tarefa do poder é servir e não se servir. E diz que o poder é capaz de gerar con ito ou confronto. Ele é da opinião de que o con ito é positivo, proporciona melhorias à convivência, gera mudanças e tem o propósito de convencer. O confronto é negativo, quer anular alguma situação especí ca, corresponde a perdas e sempre busca vencer. Con ito – positivo – melhora a convivência – mudança – convence Confronto – negativo – anulação – ocasiona perdas - busca vencer De que maneira a estética poderia in uenciar sobre as questões de poder? Seria quando a pessoa ao exercer o poder transmite boas sensações? Ou quando o poder se harmoniza com as necessidades psíquicas dos seres humanos e com as organizações de uma sociedade? Quem detêm o poder pode ser sedutor e segundo Eugène (2007), “Sedutor é aquele que acredita ter em mãos a verdade do desejo do outro”. O pensamento político deveria estar ancorado na melhor compreensão da natureza humana, de suas motivações e na aceitação de que existem processos mentais inconscientes que manifestam-se na vida cotidiana. Através de um apropriado entendimento, pelas lentes sensíveis e delicadas da estética, poderia promover uma ação de poder com mais sucesso para o bem comum. É preciso diferenciar o poder saudável do poder perverso e destrutivo. É concebível que em diferentes momentos da vida se possa transitar entre estes diferentes conceitos de poder devido a sensações estéticas sentidas e internalizadas, já que este limiar é dividido por uma frágil membrana invisível. Cada ser percebe, na sutileza de distintas percepções e sensibilidades, conforme as internalizações das primeiras relações vivenciadas. Faltam critérios e conceitos claros para analisar os movimentos autênticos e e cazes, os desejos e con itos que movem as pessoas a optar por diferentes discursos, para saber o que verdadeiramente os políticos representam para os cidadãos. Onde a estética toca na emoção das pessoas? Acredito que existam reedições das primeiras relações de poder sobre a qual 68


Marcia Zart

me referi no início do texto. A experiência estética é satisfatória quando nos coloca frente a delicada fronteira da percepção, em que as diferenças entre razão e sentimento, deixam de existir, como as demais fronteiras que fazem parte de nossas vidas, onde o interno e o externo se equalizam. Winnicott (1962) diz: “A pele se torna o limite entre o eu e o não-eu.” Neste espaço potencial surge o que Winnicott chamou de objetos transicionais e fenômenos transicionais, onde aparece o sentimento ao qual nos referimos como estético ou estranho. Destaca Winnicott (1998), “O espaço entre indivíduo e o meio ambiente é o lugar da experiência cultural”. O estético proporciona transformações, evoluções e sentimentos já conhecidos e registrados anteriormente e que ocorrem durante a vida do ser humano, desenvolvendo a experiência cultural, enquanto o “estranho”, que parece paralisar, não gera criatividade. De acordo com Winnicott (1951), “o objeto transicional e os fenômenos transicionais introduzem os seres humanos naquilo que sempre foi importante para eles, ou seja, numa área de experiência neutra que não será desa ada.” A estética não é apenas a “ciência da beleza”, mas também designa as qualidades de nossos sentimentos. O encanto e a formosura existentes nas combinações das palavras de ilustrações representativas. Formando elementos importantes nas comunicações agradáveis e adequadas que proporcionam re exões capazes de transformar, sem uso de forças imperativas, apenas motivado pelo sentir. Assim acontece o desenvolvimento criativo de uma experiência estética do poder. Lembrando Winnicott (1971),“depois de ser – fazer e ser feito. Mas primeiramente, ser.” “Entre o despertar e o adormecer, a criança salta de um mundo que é percebido para um mundo autocriado. Numa posição intermediária, encontramos a necessidade de uma in nidade de fenômenos transicionais: o território neutro.” Winnicott (1980). E o que acontece neste espaço potencial entre o poder e as sensações estéticas? Que sentimento desperta no outro? Qual objeto transicional transita neste espaço? Seriam os sentimentos? As lembranças registradas nos primeiros momentos de vida? Onde a entrega amorosa é ilimitada? 69


O PODER ESTÉTICO – UMA EXPERIÊNCIA CRIATIVA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO

O que nos é estranho transcende ao estético. A pele é o limite entre o eu e o não-eu. O que é estranho ultrapassa a barreira e aparece onde o belo se perde. As atitudes e manifestações psíquicas “estranhas” transformam o ser humano num todo. As lembranças nostálgicas dos contos de fadas me fazem recordar que havia uma referência pontual quanto ao bom e ao mal. O poder do mal geralmente estava relacionado ao feio, ao desagradável, assustador e “estranho”. Enquanto que o poder voltado ao bem, estava relacionado aos aspectos estéticos agradáveis, familiares, tranquilos e de sentimentos com vínculos identi catórios de vital importância, como os primeiros cuidados maternais que se constitui mediante as identi cações que o indivíduo estabelece no decurso de sua vida. Quando o personagem do mal, vilão das estórias infantis se tornava um personagem do “bem”, ele também modi cava seu aspecto físico e alterava a percepção dos outros. Se tornava bonito, protetor, cuidador, portanto, estético. De acordo com Eugène (2007), “O bom poder traz consigo competência, tranquilidade, segurança, poder de encenação e violência contida.” Balandier, G. (2006) acrescenta: “O poder tem que ser capaz de exercer a sua função essencial, ‘a de acabar com as angústias e os medos’”. O poder e a estética são construídos, desconstruídos e reconstruídos a cada instante da vida e recriar-se é fruto da contemplação e da vivencia. Deve-se participar e interagir com a mesma segurança de um bebê protegido pelo holding proporcionado pela mãe e o ambiente. Concluo: o desenvolvimento da capacidade do senso estético do ser humano está vinculado às questões psíquicas e as atitudes de poder harmonizadas com as boas convivências que trazem tranquilidade e segurança. Como já disse, a repetição ao mesmo sentimento existente entre mãe e bebê. Talvez por isso as mães nos pareçam sempre belas. É com elas que aprendemos a importância destes sentimentos. REFERÊNCIAS ABRAM, J. (1996). A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter BALANDIER, G. (2006) O poder em cena. Brasília: UNB. 70


Marcia Zart

CORTELLA, Sergio. lósofo. São Paulo. ENRIQUEZ, E. (2007) As guras do poder. São Paulo: Via Lettera e Livraria FOUCAULT, M. (2004 [1978]). Sexualidade e Poder. Em Ética, Sexualidade, Política: Coleção Ditos & Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Freud, obras completas (1969/1996) Vol.XVII. Rio de Janeiro:Imago NAFFAH Neto, Alfredo ( in:Winnicott 2005). “Winnicott; uma psicanálise da experiência humana em seu devir próprio”. In: Natureza Humana. SMALINSKY, E. e RIPESI, D. (2017), Descobrindo Winnicott e o brincar. Capão da Canoa: Triangullo. WINNICOTT, C; SHEPHERD, R; DAVIS, M. (org) Explorações Psicanalíticas - D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artmed,2007. WINNICOTT, D. W. (1990/1965b,1962/2007). O ambiente e processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. ________, D. W. (1978,1951). (Org.), Textos selecionados: Da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro: Francisco Alves ________, D. W. (1971/1975). O brincar e a realidade. Trad. José Octavio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago. Winnicott, D. W. (1987/2006).

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6. O PODER DAS MÃES NA PSICANÁLISE UMA LEITURA WINNICOTTIANA MOTHER'S POWER IN PSYCHOANALYSIS A WINNICOTTIAN READING Tais Martins ⁷

Resumo: O poder das mães na psicanálise pode ser descrito pela lógica winnicottiana através do poder materno que se constitui na transformação do bebê em pessoa. A construção do indivíduo se dá através do olhar da mãe e do laço com a mãe – que pode vir a ser uma mãe su cientemente boa. A nal, o ato do parto não produz uma mãe. Os processos históricos apontam a maternidade como uma obrigação da mulher. Desconsiderando seus anseios e levando em conta uma condenação social para as opções divergentes do contexto social na qual ela está inserida. Algumas mães da psicanálise serão mencionadas para comprovar a a rmativa implementada por Winnicott. Mães e Psicanalistas que representam esse poder Klein; Deutsch, Horney e Dolto. A mãe winnicottiana é a tutora da herança humana – o desenvolvimento sadio e equilibrado que constitui um dos elementos da democracia, pois através da mãe surgirá o sujeito apto ao convívio social. Palavras Chave: Mãe; Poder; Winnicott. Abstract: e power of mothers in psychoanalysis can be described by Winnicottian logic through the maternal power that constitutes the transformation of the baby into the person. e construction of the individual occurs through the eyes of the mother and the bond with the mother - who can become a good enough mother. Aer all, the act of 7 Tais Martins. Advogada. Mestre em Direito (2006-2008). Professora Universitária. Graduanda em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná. Pós-Graduanda em Psicoterapia de Orientação Psicanalítica pela Universidade Tuiuti do Paraná (2016-2017). Mestranda em Psicologia Social Comunitária (2017-2019). Rua Nunes Machado, 1826. Sala 08. Bairro Rebouças. Cep. 80.220.070 Curitiba-Paraná. (41) 999893740. (41) 32482994. taisprof@hotmail.com 73 Rabisco R. Psican

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childbirth does not produce a mother. Historical processes point to motherhood as an obligation of women. Disregarding their desires and taking into account a social condemnation for the divergent options of the social context in which it is inserted. Some mothers of psychoanalysis will be mentioned to prove the affirmation implemented by Winnicott. Mothers and Psychoanalysts who represent this Klein power; Deutsch, Horney and Dolto. e Winnicottian mother is the tutor of the human inheritance - the healthy and balanced development that constitutes one of the elements of the democracy, because through the mother will arise the subject apt for the social conviviality. Keywords: Moter; Power, Winnicott

A história das mulheres e as representações do feminino na história – um caminho anterior a Winnicott As palavras preliminares desse artigo trazem como esteio preliminar o dever de informar que não se trata de uma fala sobre a da supremacia feminina sobre a masculina – num debate sobre a dominação ou submissão de um ser sobre o outro. (Khel, 2016, p. 26). A mulher vem apresentando uma transformação constante e o homem vai sendo confrontado por uma crise identitária (Oliveira, 2012, p. 01). No entanto a maternidade constitui um ponto nevrálgico a ser discutido dentro e fora da psicanálise. O poder da mulher está em sua feminilidade (Soler, 2005, p. 57). Ao longo da obra de Winnicott, é possível asseverar que sua grande ênfase se traduz pelo estudo da in uência do meio ambiente no desenvolvimento psíquico do ser humano. E esses desenvolvimentos são necessariamente atravessados pela mãe. Suas pesquisas e interpretações não descartam a importância do pai e da família. (Winnicott, 1999, p. 117). Há três funções maternas que são essenciais: A apresentação do objeto; o holding e o handling. (Nasio, 1999, p. 184) Através da Mãe – de sua su ciência na estruturação de um bom handling, de holdig e da estrutura do “viver com” – onde mãe e lactente vivem juntos até que haja a separação do lactante através da descoberta do “não eu” e consequentemente da defusão (Winnicott, 1983, p. 44-45). O 74


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desfazimento da membrana limitante rompe o processo de dependência e faz surgir um cidadão. A mãe acaba por se tornar a provedora de uma base real para a sociedade, forjando o indivíduo apto para a manutenção do sistema social do país pautado na democracia. (Winnicott, 1999, p. 118). A mulher trouxe o grande desa o a psicanálise, pois seu contorno não é capturável por dimensões classi catórias. Seu verdadeiro poder reside na capacidade de desejar e de não desejar. Bem como sua estrutura rejeita historicamente a objetalização. Para Aristóteles a mulher era um homem inacabado e incompleto – além de constituir através de sua anatomia um ser impuro. Leia-se que a ovulação só foi descoberta no século XVIII – a maternidade era colocada no subplano do receptáculo de esperma. (Perrot, 2016, p. 62). O contorno histórico credita a mulher uma busca pela condição de sujeito. Esse é um dos seus meandros de poder. Certamente houve expressivas mudanças no campo do feminino com suas raízes históricas atreladas à Revolução Industrial, com a redivisão sexual do trabalho, e à Revolução Francesa, com as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, assim como, da profunda mudança cultural e tecnológica no pós-guerra. (Perrot, 2016, p. 19). A mulher no viés winnicottiano O desejo de abarcar todo o universo da mulher e do feminino foi intenso. No entanto essa é uma tarefa que não seria possível diante dos limites do artigo. Razão pela qual a opção nesse momento foi debruçar os saberes apenas sobre um recorte na obra winnicottiana – trazendo para o debate o poder das mães na psicanálise. A mulher vista enquanto um elemento de poder, ou seja, na sua singularidade, na sua subjetividade. Para a tratativa winnicottina o trabalho dos pais consiste em compreender os lhos e através dessa tarefa acontece uma construção de uma base social que culmina numa tendência democrática essencial para o desenvolvimento de um país. (Winnicott, 1999 p. 118). Sem desmerecer os pais Winnicott compreende que o esteio norteador da sociedade humana está na boa maternagem. (Winnicott, 1999, p. 117). A evolução do indivíduo seja bebê, adolescente ou adulto transita pelo senso do limite, pela segurança e culmina na liberdade 75


O PODER DAS MÃES NA PSICANÁLISE

(Winnicott, 1958, p. 27). Os estudos de Winnicott tem fulcro na escola freudiana. No entanto há pontos de con uência e de discordância entre eles. A proximidade com Melanie Klein interferiu também na construção dos escritos. Especialmente nas relações objetais (Winnicott, 1993, p. 44). Ainda assim a obra winnicottiana tem um conteúdo primaz. A mãe um dos elementos centrais de sua obra é a responsável pelos materiais essenciais que constituem a criança em adulto. E esse amadurecimento equilibrado e permeado pelo senso da coletividade é o objetivo fulcral materno. Permitir que esse ambiente saudável seja introjetado, pois não existe bebê sem a mãe e não existe mãe sem o bebe. A unidade é essencial para a sobrevivência e posteriormente para a segurança. (Winnicott, 1958, p. 27). Os estágios de desenvolvimento naturais culminam com o material do qual a democracia é feita. (Winnicott, 1958, p. 19). A relação se constrói através de uma subjetividade e não haverá o indivíduo se esse contato não ocorrer. Na Fase de dependência absoluta não pode haver a falha materna – pois isso comprometerá o self – uma vez que não ocorrer a o estabelecimento real do ego. Isso favorece o surgimento do falso self e consequentemente as falhas na adaptação. (Winnicott, 1975, p. 185). Dessa feita ocorrerá uma intrusão – algo que interrompe a continuidade do ser. (Winnicott, 1975, p. 185). O poder materno está em segurar garantir a segurança sem aniquilar a formação da personalidade. Através da mãe saudável o lactante de torna um sujeito apto para o processo democrático. O poder das mães – uma análise psicanalítica O poder materno se constitui na transformação do bebê em pessoa. A construção do indivíduo se dá através do olhar da mãe e do laço com a mãe – que pode vir a ser uma mãe su cientemente boa. Ou quiçá permear com deprivação todos os anseios de seu lho. (Winnicott, 1975, p. 186). Seu poder vai muito além da concepção. A nal o ato do parto não produz uma mãe. (Perrot, 2016 p. 69). A liberdade da mulher ainda transita sobre a debilidade moral e a decisão do uso de seu aparelho reprodutivo. O corpo e o desejo da mulher, que deveriam ser privados, são cerceados sobre a égide pública. (Sohiet, 1997, p. 9). As mulheres e seu espaço na psicanálise podem 76


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ser vislumbradas através de muitos olhares e incontáveis conclusões. No diapasão histórico do patriarcalismo ao maternalismo o caminho trilhado por Helene Deutsch; Karen Horney; Fançoise Dolto e Melanie Klein apresentam uma psicanálise inovadora e permeada por questões ligadas ao laço materno. O contributo de cada uma delas se presta mesmo que de modo indireto a comprovar que a função das mães vai muito além da possibilidade de gerar. A história de cada uma dessas mulheres transita no esteio de seus laços afetivos nos polos ativo e passivo. Uma vez que foram lhas e posteriormente foram mães. O conjunto de sua vida e obra apontam para as demandas que elas ousaram sustentar. E fazendo uso dos contextos winnicottianos sobre o poder das mães. Asseveramos que cada uma delas cumpriu sua senda no processo de construção de um sujeito apto ao processo democrático. Algumas das psicanalistas com maior destaque nos servem de exemplo para nossas a rmações sobre o poder e a democracia que transcendem a gura da mãe. Helene Deutsch – defendeu temas socialistas. Se dedicava ao estudo da loucura e da maternalização; a sexualidade feminina; o lesbianismo e a narcisismo masculino e materno. Karen Horney – estudou e escreveu sobre a mãe adorada; a feminilidade inata, o culturalismo materno e a inveja do ventre. Françoise Dolto que trouxe para psicanálise as marcas propiciadas por uma mãe castradora e frustrada. Melanie Klein – contribuiu com a maternalização primária; com o estudo das relações objetais; com os mecanismos esquizoides e com a inveja e a gratidão. (Sayers, 1992, p. 1-253) A clínica winnicottiana é pautada no amadurecimento pessoal. No entanto Winnicott apresenta um poder que ele escreveu e ao mesmo tempo vivenciou... a responsabilidade da mãe corpori ca o seu poder que se constrói na opção pela maternidade e pela assunção da vida de um sujeito que ao se transformar num ente apto ao processo democrático comprova o poder da Mãe. REFERÊNCIAS Molina, J. A. O que Freud dizia sobre as mulheres. São Paulo: Unesp, 2016. Nasio, J. D. Introdução às obras de Freud, Ferenczi, Groddeck, Klein, Winnicott, Dolto, Lacan. Tradução, Vera Ribeiro; Ver Marcos Comaru. Rio 77


O PODER DAS MÃES NA PSICANÁLISE

de janeiro: Zahar, 1995. Oliveira, M. Entrevista ao Programa Rodaviva. Exibido pela TV Cultura em 20.02.2012. Perrot, M. Minha história das Mulheres. São Paulo: Contexto 2016. Khel, M. R. Deslocamentos do Feminino – a mulher freudiana na passagem para a modernidade. São Paulo: Boitempo, 2016. Sayers. J. Mães da Psicanálise: Helene Deutsch, HKaren Horney, Anna Freud, Melanie Klein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Soler, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. Sohiet, R. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. _____. Violência simbólica. Saberes masculinos e representações femininas. In: Revista Estudos Feministas. Vol.5, Nº1, 1º semestre de 1997. Rio de Janeiro, Instituto de Filoso a e Ciências Sociais – IFCS/UFRJ. p. 7-29. Winnicott, D. W. (1983). (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. (Trabalho original publicado em 1965; respeitando–se a classi cação de Huljmand, temos 1965b. Título original: e Maturational Processes and the Facilitating Environment) Winnicott, D. W. (1999). Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1984; respeitando–se a classi cação de Huljmand, temos 1984a. Título original: Deprivation and Delinquency). Winnicott, D. W. (1999). Tudo Começa em Casa. Tradução Pá Ulo Sandler. São Paulo: Martins Fontes. Winnicott, D. W. (1956/2000). Formas clínicas da transferência. Título Original: Clinical varieties of transference: In Trough paediatrics to pysichoanalysis: collected papers pp 295-299). NewYork & London: Brunner Routledge, 1992.

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7. O PODER MATERNO NA OMISSÃO AOS FILHOS DA PATERNIDADE & DANOS EMOCIONAIS MOTHER POWER IN OMISSION TO SONS OF PATERNITY AND EMOTIONAL DAMAGE Cristina Maria Filomena Monzoni Prestes ⁷ Marisa Cintra Bortoletto ⁸

Resumo: O trabalho re ete a questão do poder das mães quando criam seus lhos sem a presença do pai. Ausência decidida pelas mães. E as consequências emocionais ao desenvolvimento psíquico na vida de Walter e Joaquim. Dois jovens atendidos pelas autoras. Palavras-chave: poder, materno, ausência paterna, danos emocionais. Abstract: e present work re ects the question of the Power of mothers when choose to bring up their children without presence of father. Absence decided by mothers. And emotional consequences of psychic development in Walter and Joaquim's life. Two young men attended in psychotherapy by the authors. Keywords: Power, maternal, paternal absence, emotional damage.

7. Cristina Maria Filomena Monzoni Prestes: E-mail: cristinamariafprestes@uol.com.br. Cel.: (11) 996691577. Psicóloga, graduada pela PUC-SP com especialização clínica, e especialista em Psicoterapia Psicanalítica (USP). Atua em consultório. Colaboradora da Verbo Clínica Psicológica e Coordenadora do seu Centro de Estudos. Docente do CEAPPE, da Associação de Psicoterapia Psicanalítica (APP). Autora de artigos científicos e de resenhas, e coautora do livro: Formas Compreensivas de Investigação Psicológica. 8. Marisa Cintra Bortoletto: verboclinica@hotmail.com.br. Cel: (11) 976551928 Fundadora e Diretora do Verbo Clínica Psicológica. Responsável técnica junto ao CRP-SP. Mestre em Psicologia Clínica PUCSP. Especialista em Psicoterapia Psicanalítica-CEPSI USP. Presidente da Associação de Psicoterapia Psicanalítica-APP (gestão2012-2015). Supervisora teórico-clínica e psicoterapeuta psicanalítica. Autora: Convênios Psicológicos e Psicoterapia Psicanalítica Ed. Escuta: SP, 2009. 79 Rabisco R. Psican

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Introdução O trabalho tece a história clínica de dois pacientes, Joaquim e Walter, atendidos pelas autoras, cujas mães omitiram a identidade dos pais e não permitiram a presença dos mesmos durante a infância e adolescência dos pacientes, e no caso de um deles até a vida adulta. O tema central gira em torno do poder das mães, bem como do sofrimento causado por essa ausência e as diferentes consequências emocionais. As mudanças sociais e culturais, a partir dos anos 1960, ofereceram às mulheres várias conquistas, e entre elas o advento do anticoncepcional e maior acesso ao mercado de trabalho, e assim muito se tornaram as provedoras dos lares. Tal fato histórico promoveu o planejamento familiar e a possibilidade da mulher decidir a gravidez de acordo com seus interesses. Roudinesco, (2002), considera esse avanço como o “reino do materno”, no qual os homens passam a recorrer às mulheres para poderem: “fabricar seus lhos e lhes transmitir seu nome”. Outeiral, (2007), acrescenta que observa as consequências das mudanças culturais sob a família: “Nós somos obrigados hoje a pensar em famílias, pois cerca de 1/3 dos homens não está na casa, como no ambiente familiar. Fisicamente o pai não está presente. Mas nós temos de imaginar que a própria infância e a própria adolescência se transformaram...” As mulheres somaram às atribuições femininas, as masculinas e uma das consequências foi o surgimento de mulheres que decidiram por criar seus lhos com ou sem o comparecimento do pai. O poder materno aparece exagerado. A expansão da onipotência feminina ocorre e algumas decidem inclusive coibir seus lhos de conhecer parte da própria origem. Mulheres cuja falta de amor e ressentimento em relação ao pai de seu lho está presente desde a gravidez, bem como uma falta de um olhar valorizador para o ser gerado. Entende-se que viveram num estado emo80


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cional com indícios de depressão e desilusão, talvez fundamentadas em uma prejudicada internalização de um dos seus próprios pais ou do casal parental Haudenschild (2016). A condição materna primária, conceito winnicotiano, um estado de “doença” no pós-parto já estaria com falta de cobertura, sob a égide do sofrimento feminino, Winnicott, (2001), e assim não puderam atender seus bebês na sua singularidade. Em termos de danos emocionais destes pacientes despojados do convívio com o pai, lembramo-nos dos riscos dessa ausência: a signi cação suspensa, não realizada, e as possíveis fantasias ou até o delírio que podem surgir como forma de preencher a metáfora da função paterna. Assim como, de produzir uma ideia de estabilização do drama identi catório do sujeito e da relação simbólica da liação. (Dunker, 2016). Outros aspectos importantes a serem pensados, foram o tardio alcance de competências ligadas ao masculino, à estruturação frágil interferindo na escolha pro ssional ou na tolerância às naturais condições diárias de con ito no trabalho, e ainda na a rmação da sexualidade no início da vida adulta. Isto é, questões relacionadas ao processo de identidade, verdadeiro e falso self, e a dimensão do sofrimento psíquico em cada paciente. Poder materno e Ausência paterna “Não há tal coisa como um bebê, o que signi ca, é claro, que sempre que alguém encontra um bebê encontra cuidados maternos e sem os cuidados maternos não haveria um bebê.” (Winnicott, 1960) Os bebês humanos são seres dependentes dos cuidados de outro ao nascer e desta dependência crucial, a sobrevivência será decisiva. Em geral, o cuidado inicial é realizado pela mãe e como observamos as mães parecem possuir qualidades especiais que as levam a proteger seus bebês em suas necessidades primordiais, (Winnicott, 2001). Trata-se aqui de uma condição sensível e intuitiva que aparece desde a 81


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infância das meninas, nas brincadeiras de “casinha com suas bonecas bebê” e a experiência de um sonhar com a maternidade desde pequenas. Algumas mulheres irão desejar seus bebês e lhes oferecer o que possuem de melhor. E entrar, ao nal da gravidez, na condição materna primária e superá-la no momento adequado ao desenvolvimento da parceria entre mãe e bebê. Há mulheres, entretanto que assumem a maternidade sem a presença do pai. Algumas dão existência ao pai, mantendo-o presente, vivo, mesmo que tenha falecido. Notamos na história destes pacientes, o poder materno expresso na dedicação extremada, principalmente no sentido de dar condições educacionais e materiais aos lhos. Diríamos que houve maior sustentação no “fazer” do que no “ser”. Observamos ainda, outras mulheres, que retiram o direito do pai sobre seu lho sob a égide do amor possessivo e do ódio ao pai. Alucinam a completude narcísica. Para algumas mulheres seus bebês são considerados extensões narcísicas de si mesmas, há uma apropriação do bebê como objeto de poder. Há revanche, desprezo ao não apresentá-lo ao pai. Dispõem do bebê como aprouver, ainda podem os bebês revelar “a cara do pai”, aquele a quem as mães desejam esquecer. E como forma de resolver seus con itos onipotentemente mantem em segredo à identidade do pai. Esta decisão autoritária de apagar a secreta verdade sobre o contexto da concepção do lho pode ser entendida como exercício do poder materno. Retira de se algo estruturante da personalidade do lho. Casos Clínicos Walter Walter procurou psicoterapia com 34 anos a pedido de sua noiva. Ela impôs como condição para a sequência do relacionamento um processo psicoterapêutico. Relatou que a relação ia muito bem, embora percebesse que eram bem diferentes. Sentia-se feliz com ela e podia conversar sobre qualquer assunto. Procurava sempre seguir o que ela achava que era 82


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melhor para ele e para eles. Assim, iniciou sua psicoterapia. Desde jovenzinho trabalhou e pagou suas despesas pessoais, no momento continuava trabalhando muito. Mudava de emprego quando se dava conta que o chefe não lhe daria a atenção que ansiava receber diante do resultado de seu trabalho, e não o elogiaria o excelente trabalho que havia realizado. Nos estudos nunca repetiu um ano letivo ou pegou uma dependência. Dizia que gostava muito de festas e que só não ia quando precisava estudar ou trabalhar. Apreciava principalmente as regadas à música e algumas drogas. A mãe de Walter, solteira, engravidou dele quando tinha 16 anos e morava na casa dos pais. Ela brigou muito com seu próprio pai sobre sua gravidez e sobre quem era o pai do seu bebê, mas continuou na casa e em silêncio. Não revelou seu segredo. Walter nasceu e continuaram a morar na casa dos pais dela. Ela continuou a trabalhar e a estudar, saindo desta forma todos os dias, saindo cedo e chegando tarde. Até sair de vez e deixar seu lho com as mulheres da casa. Na casa também viviam duas primas mais velhas e um tio da avó. O tio apresentava idade avançada e sérios problemas de saúde. Walter assim foi criado na casa dos avós. O avô se ausentava da casa com frequência e quando estava presente muitas vezes brigava com a avó. Walter foi cuidado pelas mulheres até seis anos de idade quando sua mãe se casou com seu atual marido após ter tido uma lha. E o levou para morar com eles em de nitivo. Nesta época, a mãe o orientou que passasse a chamar o padrasto de pai. Sua mãe teve mais dois lhos deste casamento, que lhe deram três sobrinhos. Atualmente, relata que não tem o hábito de ver os pais e irmãos, e sobrinhos, e mantem vivo os vínculos com a casa da avó. A noiva de Walter queria muito estreitar os laços com esta família e esperava que eles pudessem desvendar o segredo de sua origem paterna, mas toda vez que se reuniam, a mãe dele acabava gritando e brigando com o lho por qualquer motivo que não a agradasse chamando-o de marginal e drogado. Desta forma, precisavam deixar o ambiente sob ameaça desta mãe autoritária. O que tornava qualquer aproximação e esclare83


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cimento sobre sua origem impossível. A noiva acabou desistindo da aproximação com eles, mas não aceita que Walter não lute para saber sua origem. Ele diz não saber como resolver isto, e como conseguir enfrentar sua mãe para conhecer seu pai. E se vê sem condições de fazê-lo, “não tenho forças”. Walter permaneceu em terapia por cerca de dois anos. Re exões Vemos que o desenvolvimento psíquico deste homem sofre uma falta emocional fundante. Ogden (1991) lembra a importância do lho ser investido do pai pela mãe. Quando criança, ele não estava investido do pai pela mãe. A mãe não teve um parceiro. Não contou com o pai de Walter para protegê-la e para que liberada se dedicasse ao lho, Outeiral (1997). A mãe contou com a possibilidade de “entregar” seu lho para ser cuidado pelas mulheres da família. Notamos a sua permanência curta nos trabalhos. Este homem, na sua busca pelo elogio do chefe e ao não receber, repetidamente deixa o trabalho. E assim retoma a procura por outro emprego na esperança em que o chefe seja diferente com ele. Parece estar numa busca incansável por ser olhado e reconhecido pelo pai, representado pelo chefe. O pai é quem dá alegria e prazer na rivalidade. Walter também não pode contar com um homem presente e psiquicamente ativo. Este paciente foi privado da amizade que surge da rivalidade entre homens, Outeiral (1997). Assim, sem essa experiência e fragilizado não conseguiu desenvolver competência para rivalizar e expor-se ao mundo na sua plenitude de ser. O pai, continente age no estabelecimento dos limites e no controle da agressividade. Assim com o pai ausente, o menino sofre falha no controle da agressão, no seu domínio. Não tem esse objeto para usá-lo e então recorre à agressividade da mãe e perde de tê-la como refúgio. Parece que Walter não pode ter o pai e também a mãe, mas na noiva seu infantilizado refúgio emocional. Sua mãe lhe apresentou formalmente um pai (padrasto), que se mos84


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trava sicamente presente, atendendo as expectativas maternas, mas psiquicamente ausente. Manteve-se assim na adolescência dele, não o adotando, apenas ocupando seu papel social e desta forma não dando sustento emocional a este menino e jovem que se desviou de um crescimento psíquico. Recorreu à atuação onde as drogas foram o chamariz. Joaquim O atendimento clínico iniciou com o pedido de uma orientação prossional. O jovem formado em geofísica não conseguia oportunidades de trabalho na área de formação. Coincide na ocasião uma crise nas empresas estatais e particulares. Os concursos públicos tornaram se raros. Desejava ter um trabalho remunerado e então procurou em diversos ramos: administrativo, professor de idiomas, mestrado, entre outros, sem sucesso. Era possível observar o quanto estava perdido e assolado por sentimentos de menos valia. Durante a vida acadêmica não procurou qualquer atividade prática, como por exemplo: estágio na área. Estava centrado no estudo, uma vez que o curso de Geofísica exigia dedicação integral. Indagado sobre sua escolha por este curso universitário, não sabia dizer o que de fato o levou a essa escolha na adolescência. Lembrava apenas seu gosto por colecionar pedras, o interesse pelos dinossauros e eras passadas. Acreditava que poderia ser astronauta, mas considerou este ser um desejo pueril, típico das crianças pequenas. A orientação pro ssional o ajudou a reconhecer sua habilidade para cálculos e números, o que indicava possibilidade de estudo e trabalho na área nanceira. Então, decidiu por começar com um curso superior em nanças, enquanto não houvesse perspectivas em sua área. Havia uma peculiaridade, como estudou numa universidade pública logo estranhou o ambiente da faculdade particular. É o mundo do trabalho, onde todos os colegas, o qual não conhecia. Durante a psicoterapia pode contar que fora criado pela mãe apenas e que não conhecia o pai. Essa era uma questão familiar que até aquele 85


O PODER MATERNO NA OMISSÃO AOS FILHOS DA PATERNIDADE & DANOS EMOCIONAIS

momento, aos vinte e poucos anos não sentia “forças” para buscar saber quem era o pai, isto é, a história de sua origem. Tinha noção que tal fato o deixou um tanto retraído e solitário. E “o seu “jeito” levava a sofrer “bullying” dos colegas de escola. Seu refúgio era a dedicação aos estudos, torna-se, então, um excelente e destacado aluno. Após um período de trabalho na área nanceira, percebeu que seu real interesse estava ligado à área de exatas e que talvez devesse voltar para universidade no curso de física ou até astronomia. Joaquim ao mesmo tempo começa a indagar a mãe sobre o porquê do segredo em relação a quem seria seu pai. Conseguiu pressionar a mãe até que ela revelasse o nome do pai. Veio a conhecer o pai e uma grande família, com irmãos e tios. E teve reconhecimento o cial e recebeu o sobrenome paterno. Ao nal da terapia dizia sentir ser outra pessoa e ainda estranhava a presença do pai e a busca dele por sua amizade. A mãe, em sua percepção, tornou-se mais temerosa da perda do amor do lho e ambos, pai e mãe, aos seus olhos pareciam muito culpados. Logo se sentiu fortalecido para seguir seu caminho na busca da própria identidade e independência, então decide por prestar o vestibular e entra na faculdade de astronomia. Re exões Joaquim esteve um longo período transitando na busca da própria identidade, por meio do estudo da geofísica. Estudo centrado na investigação dos fenômenos físicos que alteram a Terra, tais como: gravidade, magnetismo, atividade sísmica, fenômenos elétricos entre outros. E o desejo acalentado na infância de ser um astronauta. Astronomia que é a ciência que trata do universo sideral e dos corpos celestes, com o m de situá-los no espaço e no tempo e explicar sua origem e seu movimento. Vemos um jovem vivendo a metáfora da procura da própria vida, do sentido mais profundo do self. Um processo, aparentemente, distante e próximo de sua consciência, tolhido por angústias sem nome. E um estranho sentimento de culpa por ter nascido, “por que será que nasci” sic. Poderíamos dizer que estava sob a lei da gravidade, esta força que nos 86


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pressiona sem percebermos, que parece expressar o poder materno a deprimi-lo. A psicoterapia vem como um abalo sísmico nas defesas rígidas e até patológicas. “ Saber quem eu sou é que permite escolher o que fazer e como fazer. É o processo de autoconhecimento que constrói uma autoimagem autêntica, isenta de distorções.” Neiva (2013). A chegada à astronomia coincide com a descoberta do pai, o que indica maior integração da personalidade. De maneira tal, a poder conceber sua origem e seu lugar no tempo e espaço. Combina que Geofísica e astronomia são dois substantivos femininos e pai um substantivo masculino: aquele que gerou. O progenitor aquele que ofereceu movimento para Joaquim seguir a própria e individual escolha. Considerações gerais As histórias destes dois homens mostram que não tiveram a sorte de terem seus pais à mão para usá-los e até “matá-los”, Outeiral (1997). Não contaram com seus pais em momentos decisivos de sua constituição psíquica. Foi tirado algo fundante de suas identidades. Suas mães ao exercerem o poder materno, o desempenharam no sentido da crueldade, matando em vida uma parte da vida do lho. Onipotentemente, não deram aos seus lhos o que é de direito, a qualquer ser humano, de conhecerem sua origem. Houve uma carência no olhar materno, seus lhos não foram vistos como valorosos no sentido de ter a própria existência, Haudenchild (2016). Desta forma, notamos que desenvolveram uma inibição geral, acentuadamente na lida da agressividade e criatividade. E revelaram-se temerosos da vida e dos relacionamentos, Bottura (1999). Walter e Joaquim carregam uma falha na integração dos impulsos destrutivos e amorosos e uma consequente precária resolução edípica, Freud (1972). E como aponta Roudisnesco: “...ninguém escapa de um destino inscrito no inconsciente.”p.187. 87


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REFERÊNCIAS BOTTURA, W. (1999) A paternidade faz a diferença, SP. República Literária. DUNKER, C.I.L. (2016) Por que Lacan? Zagodoni Editora, SP. FREUD, S. (1972). Transformações da puberdade. Três ensaios sobre a sexualidade: Transformações da puberdade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 213-237). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905.). HAUDENSCHILD, M.T.L. (2016). Psicossexualidades: feminilidade, masculinidade e gênero, Editora Escuta, SP. NEIVA, K.M.C. (2013). Processos de Escolha e Orientação Pro ssional, Vetor Editora,SP. OGDEN, T. (1991). O limiar do complexo de Édipo masculino. Ide, 20, 38-49 OUTEIRAL, J. O. ( 1997) Sobre a concepção de pai na obra de D. W. Winnicott. In Outeiral, J, Abadi (orgs) Donald Winnicott na América Latina: Teoria e clínica psicanalítica (pp.203-211) RJ, Revinter. OUTEIRAL, J.O.(2013) Educar nos tempos de hoje, in: Sexualidade começa na infância. Casapsi Livraria e Editora, SP. ROUDINESCO, E. (2003) A família em desordem, RJ, Jorge Zahar. WINNICOTT, D.W (2001). A família e o desenvolvimento individual. Ed Martins Fontes, SP. ____________ (1989).e splitting of male and female elements to be found in men and women. Psycho-analytic explorations (pp. 168-192). London: Karnac. ____________ (1982). A integração do ego no desenvolvimento da criança. In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 55-61). Porto Alegre: Artmed. ____________ (1960). eory of the Parent-Infant Relationship. Int. J. Psycho-Anal., 41: 585-595.

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8. O PODER DAS REDES SOCIAIS E O SOFRIMENTO DO ANONIMATO DIGITAL ⁹ THE POWER OF SOCIAL NETWORKS AND THE SUFFERING OF DIGITAL ANONIMATE Ligia Lais Lucchetti

Resumo: Este trabalho pretende discutir o mal-estar relatado por pacientes no setting clínico diante da sensação de invisibilidade nas redes sociais sob a luz dos conceitos Winnicottianos. Tomaremos como aporte teórico o conceito de falso self, que nas redes sociais é projetado publicamente à visitação e avaliação coletiva, e tem tido papel contemporâneo de importância social, pessoal e cultural. No exercício da experiência clínica de adultos e adolescentes, ouvimos relatos de angústias derivadas da vida nas redes sociais, relativas ao “não ser visto”, “não ser comentado” ou “não ser curtido”. O trabalho tem como objetivo re etir sobre o sofrimento psíquico, quando a invisibilidade pode ser mobilizada pela criação e exposição da identidade digital, divulgada e avaliada publicamente, para isso serão utilizados exemplos de vinhetas clínicas. Palavras-chave: Redes sociais; Sofrimento; Anonimato Digital; Falso Self. Abstract: is paper aims to discuss the discomfort reported by patients in the clinical setting vis-à-vis the sense of invisibility in social networks under the light of Winnicottian concepts. We will take as theoretical contribution the concept of false self, which in social networks is projected publicly to visitation and collective evaluation, and has had a contemporary role of social, personal and

9. Artigo apresentado no XII Encontro Brasileiro sobre o pensamento de D. W. Winnicott 89 Rabisco R. Psican

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cultural importance. In the exercise of the clinical experience of adults and adolescents, we have heard reports of anxieties derived from life in social networks related to "not being seen", "not being commented" or "not being tanned". e work aims to re ect on the psychological suffering, when invisibility can be mobilized by the creation and exhibition of the digital identity, published and evaluated publicly, for this will be used examples of clinical vignettes. Keywords: Social networks; Suffering; Digital anonymity; False Self. Introdução A projeção do Falso Self No início da vida, o bebê experimenta o estágio da dependência absoluta, os pais devotados satisfazem sua onipotência e tudo parece fazer sentido. É a permissão dada ao bebê de vir ao mundo criativamente, (WINNICOTT, 1957). A partir desta experiência inicial de onipotência, o bebê vem a experimentar a frustração, quando o mundo externo lhe é apresentado. A partir destas vivências, o Verdadeiro Self é formado e o ego é fortalecido, o ego dos pais fortalece a interiorização crescente deste bebê (NEWMAN, 2003). Quando a mãe não consegue ser su cientemente boa, nasce o Falso Self, que tem origem na incapacidade desta mãe sentir e atender as necessidades deste bebê. O Falso Self surge com a função defensiva de ocultar e proteger o verdadeiro, tem função positiva e poderosa, acalentando o “Não ser visto” ou “Não ser ouvido” por estes pais, é construído a partir de identi cações. Neste momento, o Falso Self pode vir a se instalar como o verdadeiro, e ser apresentado às futuras relações. Em outro momento, o falso self pode se instaurar como o verdadeiro e começar a falhar em situações de grande demanda. Ao defender o verdadeiro, o falso self pode fazer o verdadeiro oculto, ou, em uma opção mais saudável, o falso self busca condições para viabilizar a atuação do 90


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verdadeiro Self, que deve estar pronto para assumir seu lugar, e por m, o Falso Self como organização de uma atitude social, graças a capacidade da pessoa de nalmente deixar de lado a onipotência junto com seu processo primário. A construção do “Vir a ser” Sempre ocupou lugar de estudo, principalmente quando essa existência criativa entra em contato com um mundo de interferências e manejos sociais. Através dos tempos a sociedade e suas regras mudam, e com elas a percepção do ser. Como declarou Winnicott, (1957). “Após ser- fazer e deixar que lhe façam. Mas antes de tudo, ser.” Chegamos ao século XXI, a um mundo que cresce exponencialmente e se espelha num cenário onde as relações sociais são, rapidamente, substituídas. Milhares de per s são criados em páginas como Facebook, a ns, onde somos confrontados, possivelmente, com centenas de Selfs Reais e milhares de Falsos Selfs, (VIEIRA, 2010). O mundo se tornou maior com o advento da internet, as redes sociais fazem parte de nossos vínculos e permeiam nossas relações, nelas, o Falso Self é projetado publicamente à visitação e avaliação coletiva, e tem tido papel contemporâneo de importância social, pessoal e cultural. No exercício da experiência clínica de adultos e adolescentes, ouvimos relatos de angústias derivadas da vida nas redes sociais, relativas ao “não ser visto”, “não ser comentado” ou “não ser curtido”. Se é a partir das vivências com o mundo externo que nos constituímos, como é vivenciada a angústia de “Não ser visto” ou “não ser ouvido” na escala das redes sociais? Como esta sensação é experimentada e quais seus efeitos? Hoje a internet permeia nosso cotidiano, facilita e viabiliza nossa comunicação. A identidade digital acaba acompanhando e permeando a vida das pessoas. Se temos lugar em nossos relacionamentos, somos também representados na rede. Mas até que ponto a busca por essa visibilidade é saudável? Quais as implicações para as pessoas e seus relacionamentos? O trabalho tem como objetivo re etir sobre o sofrimento psíquico, quando a invisibilidade pode ser mobilizada pela criação e exposição da 91


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identidade digital, publicamente, para isso serão utilizados exemplos de vinhetas clínicas, relatos ouvidos durante os atendimentos na Verbo Clínica Psicológica pela autora. Vinhetas Clínicas As vinhetas clínicas, que ilustram este artigo foram ouvidas em setting clínico, durante sessões de psicoterapia pela Autora. Os pacientes são jovens adultos com idades entre dezessete e vinte e oito anos. 1. O que há de errado comigo? B. tem 24 anos, cursa o último ano de Direito de uma grande universidade paulista, tem boas notas e uma vida social ativa. A moça diz se sentir frágil e paralisada pelo desejo de agradar e fazer parte do grupo das pessoas conhecidas, passa bastante tempo conectada às redes sociais, sempre atenta ao aplicativo instalado em seu celular. Na sessão da qual foi extraída a vinheta clínica parece desanimada e preocupada; “(...) Sabe... realmente não dá para entender. A gente se esforça, compra roupas, maquiagem, os melhores ltros, diz coisas interessantes... pelo menos interessantes para mim... e quando posta... nem meia dúzia curte! Eu co pensando: O que há de errado comigo, sim porque só pode ser comigo! Sinto uma tristeza, um vazio, isso realmente me põe para baixo. ” Nesta fala, a moça relata o quanto suas tentativas de ser notada, ou de receber uma resposta esperada do meio digital, lhe parecem frustradas, o “não ser vista”, é do sofrimento diante da invisibilidade que ela fala. Quando de sua própria imagem, polida e oculta por roupas, maquiagens e ideias que ela projeta como um Falso Self na tentativa de ser vista, em vão. A projeção do ser ideal, tendo como parâmetro a aprovação por via de curtidas e comentários. “Entre os mais jovens, que vivem questões importantes de autoestima e aceitação, esta situação pode ser muito complicada. Ao não ser avaliado por pares de sua idade, eles podem se sentir rejeitados ou excluídos. Pode haver uma percepção negativa de si, que só aumenta os níveis de ansiedade e angústia”, (Bouer, 2017). 92


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O verdadeiro Self parece oculto pelas tentativas do Falso em se adequar socialmente. O falso Self parece ter se instaurado como o Verdadeiro, a ponto de alguns observadores acreditarem que esta é a pessoa verdadeira, porém, se visto de perto o Falso Self pode começar a falhar, falta nele algo de essencial. O Verdadeiro Self está oculto. (NEWMAN, 2003). 2. A Sensação de ter feito algo realmente bom e grande! G. tem dezessete anos, nesta sessão está radiante; foi o primeiro colocado no vestibular de uma das mais renomadas faculdades de Publicidade de São Paulo, a colocação garantia um desconto nas mensalidades e seu nome apareceu em destaque no site da universidade. “Eu não estava muito animado... É que sempre gostei de ler; Caíram muitas atualidades na prova. Eu vi na lista, eu avisei meu pai, ele veio ver, começou a pular de alegria, senti que ele e minha mãe tinham muito orgulho de mim. Aí uns amigos que também prestaram começaram a chamar no Whatsapp... As pessoas começaram a me marcar no Facebook... O negócio foi tomando uma proporção que eu não imaginava! De repente fui me empolgando, eu nem consegui agradecer todos! Foi a sensação de ter feito algo realmente bom e grande, que todos comentassem!” Neste exemplo quem nos fala é um jovem vestibulando, o rapaz é instruído e atento às novidades. G. prestou o vestibular almejando ingresso na vida acadêmica. O rapaz deixa claro que a aprovação o faria car satisfeito. A primeira colocação o surpreendeu, uma vez que não considerou seu feito investido de muito esforço. As devolutivas do meio, que foram surpreendendo gradativamente G. partiram dos círculos mais próximos, a comemoração dos pais, sua família ao saber reverberou a informação, as congratulações parecem ter crescido em progressão geométrica, potencializadas e catalisadas pelas redes sociais. De uma maneira positiva, a valorização e atenção do meio chegaram a G., fazendo-o reconsiderar seu feito e dar a ele uma maior dimensão. No caso, a permissão parece ter lhe sido dada pelo meio. 93


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G. tem ideias sobre si mesmo, o Self Verdadeiro onde acredita interessante ler e se informar. Confrontado com a reação geral, potencializada pela rede, experimentou a sensação de poder. 3. É como se eu não existisse mais... D. fará vinte e nove anos na próxima semana, há meses vem relatando grandes di culdades em superar o término do namoro. A vida amorosa da moça é pontuada por episódios de dependência, os últimos parceiros queixavam-se de falta de privacidade, sentiam-se sufocados e acabavam por terminar o namoro. Nesta sessão ela está realmente irritada. “Me sinto excluída, invisível... Ele e o pessoal dele, sempre curtiram o que eu postava sabe... agora nada! De duas semanas que a gente terminou. Que ELE terminou, não curtem nem comentam nada! Como se eu tivesse morrido... É como se eu não existisse mais, não zesse parte mais.” Neste exemplo, a moça chega a verbalizar a experiência do colapso do ego, a sensação de invisibilidade aos olhos deste grupo social parece tê-la destituído de sua identidade. Era muito importante para esta moça ter um namorado, a ideia de completude atrelada à ideia de um par, no papel de “namorada” se sentia segura e incluída. A separação gerou sentimento de ameaça ao ego. D. em sua fala mostra uma sensação de perda de referências, antes identi cada como namorada do rapaz e amiga de seu grupo, hoje sente a sensação de colapso da invisibilidade para eles, o medo do anonimato e da solidão, Neste momento se sente impedida de acessar seu verdadeiro Self e identi car o que há de bom nele. A ideia de encontrar novos grupos, se valorizar e ser valorizada lhe parece distante, quase inatingível. Na exclusão, frequentemente, há uma ruptura da rede social por conta do isolamento, Assim, além das marcas relativas à carência e vulnerabilidade ligadas à insegurança, o processo abarca fragilização da identidade. Se tomarmos tais processos como parte da condição humana, que é sustentada sobre a relação entre espaço íntimo e espaço social, entendemos da capacidade de modi car o ambiente e de 94


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encontrar formas de inclusão. Assim, no caso da exclusão social, há um ciclo-vicioso sem-saída: o excluído é aquele que não é visto, não é reconhecido, não pertence e essa impossibilidade de ser olhado di culta a criação de respostas que permitam algum tipo de inclusão produtiva. (Kemper, 2013). 4. Eu tenho vontade de fazer dois per s! J. é um bem-sucedido economista, aos vinte e oito anos trabalha em um banco. O rapaz veio de uma infância humilde no interior paulista, os pais mal podiam prover a ele e suas duas irmãs mais novas, seu progresso dependeu de determinação e investimento próprio. Hoje ajuda a família nanceiramente. “Não gosto de colocar foto lá do interior, com meus pais... não que não goste deles.... Mas o pessoal daqui, pode ver e pensar que sou aquele caipira lá. Eu lutei muito para estar aqui, não escondo minha origem, mas sempre que a gente acaba postando foto de família, pouca gente curte, uns até comentam... ‘Esse aí é você?’. É estranho, eu tenho vontade de fazer dois per s, um para o pessoal do interior, que me conheceu moleque, e outro pro pessoal daqui. É estranho misturar.” J. fala de uma cisão de seu ego. Dois per s parecem dar sentido ao seu desejo de separar o rapaz do interior que foi do economista. Ele sabe que a distância entre sua cidade natal e a capital separam essas duas projeções de si mesmo. Mas as redes sociais aproximam. Em 1960, Winnicott estudou a cisão do ego, fazendo a distinção entre um Self Verdadeiro e um falso Self. Entendeu que o segundo é criado a partir da defesa do primeiro e instaura-se como este a ponto de seus observadores tomarem como este. (Zimerman, 2009) Aqui, o rapaz teve de criar um falso self para lidar com a demanda social de suas necessidades em atuais, funcionou e se sentia seguro assim. Aos nais de semana J. poderia se autorizar a voltar a ser o rapaz do interior. Cada um de seus grupos sociais o conhecia funcionando de uma maneira distinta. 95


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Conclusão Neste trabalho, buscamos primeiramente discutir as implicações da exposição nas redes sociais usando para isso conceitos Winnicottianos. Nos exemplos ilustrados através de vinhetas clínicas, a questão do falso self foi expressa através da angústia da invisibilidade; percepção e orgulho de uma realização, exclusão social e apagamento de si, e cisão do self. Conforme o conceito de falso self, que nas redes sociais é projetado publicamente à visitação e avaliação coletiva, e tem tido papel contemporâneo de importância social, pessoal e cultural. O objetivo foi a re exão sobre o poder e sofrimento psíquico, quando a invisibilidade pode ser mobilizada pela criação e exposição da identidade digital, divulgada e avaliada. Como já foi lembrado, construção do “Vir a ser” sempre ocupou lugar de interesse e estudo, principalmente quando essa existência criativa entra em contato com um mundo de interferências e manejos sociais. A comunicação digital cresce e transcende barreiras e em alguns momentos relativiza as relações. Milhares de per s são criados em páginas como Facebook, Twitters, e a ns, somos confrontados, com centenas de Selfs Reais, Selfs Ideais e Falsos Selfs, (VIEIRA, 2010). A identidade digital acaba acompanhando e permeando a vida das pessoas, então é importante que se busque dimensionar e ponderar essa relação. Se temos lugar em nossos relacionamentos, somos também representados na rede. Como observamos, o resultado disso pode ser positivo ou não para a saúde mental. Propomos uma nova re exão; se faz necessário o acolhimento desta nova demanda que tem chegado aos nossos consultórios e está presente no cotidiano contemporâneo. Agradecimentos A Edgar Bittner Silva, Cristina Maria F. M. Prestes, Marisa Cintra Bortoletto e toda equipe Verbo Clínica Psicológica 96


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REFERÊNCIAS BOUER, J. Tecnologia e Felicidade. Estado de São Paulo, São Paulo, 21 de Maio de 2017. Editoria de Ciência, p. 13. FARIAS, S. R e Spizzirri R. A questão do poder na perspectiva winnicottiana . Porto Alegre, 2007. Disponível em: <http://www.contemporaneo.org.br/contemporanea.php.> KEMPER, M. L. C. Invisibilidade, identidade e laço social na contemporaneidade: sobre a exclusão nas esferas psíquica e social. Cadernos de psicanálise, Rio de Janeiro. 2013. vol.35 n.29. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext> NEWMAN, A. As idéias de D. W. Winnicott- Um Guia. São Paulo, Ed. Imago, 2003. NICOLACI-DA-COSTA, A. M. Cabeças Digitais – O Cotidiano na Era da informação. São Paulo, Ed. Edições Loyola, 2006. RECUERO, R. Diga-me com quem falas e dir-te-ei quem és: A Conversação mediada pelo computador e as redes sociais na internet. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia. n. 38, pp. 118-128. Rio Grande do Sul, 2009. VIEIRA, C. Redes sociais e o Falso Self: Uma Re exão. Blog Estranho Q u o t i d i a n o , 2 0 1 0 . D i s p o n í v e l e m : <http://estranhoquotidiano.blog.spot.com.br/2010/12/redes-sociais-eo-falso-self-uma.html?m=1>. Acesso em: 15 julho. 2017. WINNICOTT, D. - Tudo começa em casa. São Paulo:Martins Fontes,1996 WINNICOTT, D. W. Os bebês e suas mães. São Paulo, Ed Martins Fontes, 2002. ZIMERMAN, D. E. Manual e Técnica Psicanalítica: Uma re-visão. São Paulo, Ed. Artimed, 2009.

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9. PODER, AGRESSIVIDADE E VONTADE DE RECONHECIMENTO: O SOFRIMENTO PSÍQUICO NO GESTO ADOTIVO POWER, AGGRESSIVENESS AND DESIRE FOR RECOGNITION: THE PSYCHIC SUFFERING IN THE ADOPTIVE GESTURE Débora Lázaro Patricia Paganelli

Resumo: O fenômeno da adoção, quando abordado do ponto de vista clínico, chama atenção para diversos aspectos: os afetos, os vínculos de paternidade e liação, as fantasias sobre a origem e o abandono e, principalmente, o lugar que o ato de adotar ocupa na existência de cada um. É sobre este último aspecto que o presente trabalho objetiva ampliar a compreensão. Para tal, utilizará como bússola um caso clínico que tangencia a questão do poder e da provável não formação de vínculos afetivos em um caso de adoção tardia. Tomando como referência, os conceitos de poder, agressividade e sofrimento psíquico da teoria winnicottiana. Palavras-chave: Poder, Sofrimento Psíquico, Adoção tardia. Abstract: From a clinical viewpoint, the adoption act raises several considerations: whether affection is present, the paternity link, doubts about inception and neglection, and most importantly: the motivation behind the adoption act. is work contributes to the understanding of the latter consideration, and is guided by a clinical case that raises questions about whether the paternity link is present, as well as the role of authority, in the case of delayed adoption. To this end, it draws references from the authority, hostility and psychological distress concepts that are present in the winnicottian theory. Keywords: Power, Psychological Distress, Delayed Adoption

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PODER, AGRESSIVIDADE E VONTADE DE RECONHECIMENTO: O SOFRIMENTO PSÍQUICO NO GESTO ADOTIVO

Introdução A adoção é um processo de inserção no ambiente familiar, de forma de nitiva, de uma criança cujos pais morreram, são desconhecidos, não podem ou não querem assumir o desempenho das suas funções ou foram considerados inaptos pelas autoridades competentes (Freire, 1994). O gesto adotivo é também associado à vulnerabilidade psicológica do desejo de ser pai e à incapacidade de realizá-lo ou à lantropia dos pais adotantes. Contudo, pouco se sabe até então sobre a extensão na qual o enfrentamento destes fatores relaciona-se a atributos pessoais dos pais e à motivação para a adoção (Reppold e Hutz, 2003). O art. 39 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), reconhece a adoção como uma medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa. O presente artigo, através do aprofundamento de uma situação clínica, tenta tecer considerações sobre as motivações de um caso adotivo tardio e, sobretudo, ponderar acerca da qualidade relacional entre pais e lhos na situação de adoção que se apresenta com alto grau de sofrimento psíquico para ambos os lados. Para Weber (1999), na decisão de ter lhos, seja adotivo ou consanguíneo, é imprescindível a necessidade de uma re exão sobre as próprias motivações, riscos, expectativas, desejos e medos. Signi ca, sobretudo, tomar consciência dos limites e possibilidades de si mesmo, dos outros e do mundo. Na visão de Otuka (2013) em seus estudos sobre adoções tardias (crianças acima de dois anos), é fundamental que a experiência de adoção possa se dar em um processo de estabilidade que pressupõe algumas linhas de continuidade do novo lar, de modo a assegurar as condições de holding necessárias para sustentar o desenvolvimento saudável da criança. Ainda para a mesma autora, a adoção será um processo positivo se, efetivamente, a nova família puder se sustentar como su cientemente boa, ou seja, se conseguir se identi car com as necessidades do novo ser inserido no seio familiar. Lembrando que o adotado, muitas vezes, passou pelas vicissitudes de anos de institucionalização, criando um ambiente seguro e capaz de prover suas 100


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necessidades emocionais. Para Levinzon (2004), a ideia de que há muitas crianças necessitadas e que adotá-las seria uma maneira de ajudá-las, fazendo um bem à sociedade, constitui uma das razões relatadas por pais para explicar sua opção pela adoção. O desejo de ajudar e de amar uma criança, entretanto, por si só, não é razão su ciente para a adoção. O vínculo parental, assim, não pode ser estabelecido unicamente em função de desejos altruístas ou como uma forma de salvação da criança, posto que a liação envolve vivenciar emoções diversas e muitas vezes intensas e ambivalentes, que precisam ser sustentadas durante longos períodos de tempo. Em contra-partida, as famílias se encontram sempre em busca de integração. Para que o processo ocorra de forma harmoniosa, é essencial que os pais tenham claro que desejam um lho e que não estão apenas fazendo o bem a ele. É importante que a criança adotiva sinta que tem um lugar escolhido dentro de sua família (lyama & Gomes, 2005). O sofrimento é parte constitutiva da vida e o homem tem de dar-lhe um sentido como desa o de sua existência. No padecimento psíquico e físico surgem algumas questões fundamentais da existência humana a ser analisadas, como re-orientar a pessoa que sofre a descobrir nova adequação à realidade. O sofrimento psíquico está, inúmeras vezes, fortemente relacionado com as questões de poder que permeiam a existência humana. A nal o que pode o homem? Qual o alcance e os limites das vontades que o movem? A agressividade e a violência em suas mais variadas formas de aparição são, muitas vezes, o fruto da di culdade humana em lidar com as próprias limitações, acarretando em sofrimento para si e para o outro. Winnicott (1983) permite ver a agressividade também como expressão do próprio impulso vital, da própria espontaneidade como força que descobre o mundo. Sendo assim, essa força vital não só se expressa gerando um certo grau de tensão, como necessita de uma resistência acolhedora de seu gesto para que, ao encontrar esse anteparo, a pessoa possa sentir-se viva, existindo.

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PODER, AGRESSIVIDADE E VONTADE DE RECONHECIMENTO: O SOFRIMENTO PSÍQUICO NO GESTO ADOTIVO

Situação clínica M., técnico de esquipamentos elétricos, 50 anos, procurou ajuda psicológica acreditando não precisar de psicoterapia. Logo nos primeiros minutos da primeira sessão, quando questionado pela razão de procurar a clínica para atendimento, respondeu muito convicto que não reconhecia qualquer questão em sua vida que merecesse ser analisada, e que o único problema de sua existência resumia-se ao lho adotivo que se encontrava na recepção à espera de atendimento. M., após sete anos de convivência com o lho adotado, sente-se “frustrado" por não ter conseguido “consertar" o adolescente que, segundo ele, já apresentava problemas comportamentais desde o principio da convivência com sua família. M. adotou J. quando este tinha 9 anos de idade. Já sendo pai de uma menina de 8 anos, sempre compreendeu a adoção de J. não como um exercício afetivo de paternidade e sim como um gesto de assistencialismo social, “ajudar alguém a ser alguém na vida”. Neste cenário, compreende-se como um benfeitor cujo lho adotivo, hoje com 17 anos, não o legitima tampouco reconhece a importância de seu ato para sua existência. M. frequenta as sessões com assiduidade, embora quase nunca fale de si no setting terapêutico. Seu tempo em análise é utilizado quase que integralmente para destruir a imagem do lho adotivo, pessoa que ele compreende com tendo profundos e irreparáveis desvios de conduta, má formação de caráter, características que ele associa a “questões de natureza mesmo”, “problemas de sangue”, diante dos quais sente-se impotente para reverter a situação e, nesse sentido, busca auxílio psicológico como “última tentativa” empreendida na direção de uma remota possibilidade de alcançar harmonia na relação pai- lho. J., como dito anteriormente, também frequenta a clínica no mesmo horário é levado por M. e sempre é possível observá-los em cantos opostos na sala de espera. M. mostra-se ansioso quanto aos rumos da psicoterapia de J., principalmente com relação à “imagem dele mesmo” que o lho possa estar construindo para a psicóloga. Não raro tenta marcar, por conta própria, um horário para conversar com a terapeuta de J. Preocupa-se com a sua convicção de que J. possa estar 102


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manipulando os atendimentos e sente que precisa agir antes que este fato ocorra. M. verbaliza que não acredita nos afetos, tampouco que estes possam contribuir positivamente nas relações humanas. Diz ter sido criado sem a presença de afagos, é o primogênito de uma família extensa, sem a gura do pai, cuja mãe cresceu em um lar adotivo. Precisou trabalhar cedo para ajudar a mãe no sustento da família de modo que “não teve oportunidade para ser rebelde”, como julga que seja J. Desta maneira, impõe rotinas severas para o lho adotivo e, quando não cumpridas, são acompanhadas de punições que incluem dormir fora de casa, caso não cumpra o horário estabelecido para retornar ao nal do dia. Em uma de suas sessões, disse que a sua lha, recentemente, entrou em um quadro depressivo com possibilidade de suicídio alertada pelo psiquiatra que a acompanha. Fato que o preocupou, mas que “já passou. Tristeza a gente cura trabalhando”. O uso frequente do aparelho celular, acordar tarde, não organizar o quarto, ter baixo rendimento escolar, andar cheio de amigos e a não aderência a empregos, são comportamentos de J. compreendidos por M. como "rebeldia e ingratidão” e inviabilizam uma convivência saudável entre os dois. A preocupação que M. nutre com a possibilidade de J. estar manipulando a psicóloga que o atende, extende-se para outros campos relacionais da vida de J. Recentemente, este procurou emprego no comércio local onde moram e, já quase contratado, M. procurou o dono do estabelecimento e interferiu na contratação dizendo ao possível empregador, que ele poderia estar “comprando um abacaxi”, alegando que J. não conseguiria cumprir o horário de trabalho porque não costuma acordar a tempo para as suas obrigações. Tal fato, estremeceu ainda mais a relação entre eles e M. aguarda ansioso o rumo que o lho dará a vida ao completar, nos próximos meses, dezoito anos. Considerações nais O indivíduo é um ser que advém de interações perpassadas por relações de poder. Quando este se apresenta sob a forma de “excesso de poder”, temos o que chamamos de violência (Farias e Spizirri, 2007). Um 103


PODER, AGRESSIVIDADE E VONTADE DE RECONHECIMENTO: O SOFRIMENTO PSÍQUICO NO GESTO ADOTIVO

olhar apurado sobre o caso J. e M. nos fez perceber que a agressividade presente em ambos os lados, aparece como um subproduto de uma relação atravessada por forças e preocupações vestidas de paternais, mas, aparentemente, desvinculadas de laços afetivos. As queixas apresentadas por M. com relação a J., não diferem muito das apresentadas pela grande maioria dos pais às voltas com a adolescência de seus lhos. Mas estas surgem para M. com o peso da ausência de gratidão e reconhecimento que deveriam existir, em sua compreensão, em decorrência do gesto adotivo. É possível que o adolescente esteja se relacionando dessa forma com os pais adotivos, reagindo às suas expectativas e tentando adequar-se às necessidades do ambiente em vez de sentir-se em um contexto familiar que acolha suas necessidades e singularidades como ser humano. Para Winnicott (1965), a criança que cresceu em um ambiente de privação de suas necessidades básicas, usualmente pode vivenciar sentimentos perturbadores em função de seu passado marcado por experiências traumáticas. Entretanto, quando a criança mostra-se capaz de bene ciarse de um ambiente su cientemente bom e seguro, há então a possibilidade de ressigni car suas vivências na direção de uma vida mais saudável. A saúde emocional, assim, só pode ser alcançada quando esse ódio pode ser sentido, tendo condições de ser reconhecido e manifestado no ambiente. De acordo com a professora de loso a e mitologia grega Luciene Felix no livro "Explorando o Mito", nos ns dos anos sessenta, os psicólogos americanos Robert Rosenthal e Lenore Jacobson mostram que acalentar alguma idealização positiva pode se revelar profícuo numa relação. Focando na relação professor-alunos, eles se dedicaram à análise do quanto o otimismo de nutrir boas expectativas pode se revelar bené co. Nossa percepção, quer seja de pessoas, quer seja da realidade, tem efeito sobre as indivíduos que conhecemos, convivemos, sobre a própria realidade e também na maneira como nos relacionamos. O que percebemos no modo como M. situa seu lho adotivo no mundo, a sua visão sobre ele, é carregada de estereótipos e rotulações que limitam o 104


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campo existencial do adolescente e, em contrapartida, o seu próprio. Na compreensão clínica de Safra (2004), cada indivíduo tem o seu Idioma Pessoal. Esse idioma aparece em sua maneira de ser, em seu discurso, na maneira como ele constitui seu percurso de vida. A partir desse ponto de vista, podemos compreender o sofrimento psíquico como a maneira peculiar como uma pessoa, com seu idioma, conseguiu por em marcha as questões de sua existência. Ainda na visão do Safra (2004) a busca pelo Outro, o anseio pelo Outro é norteado por um saber que não é fruto de uma elaboração mental ou intelectual, mas das experiências e sofrimentos éticos vividos pela pessoa. É geralmente no convívio com os pais, adotivos ou não, que se propicia o surgimento do Espaço Potencial (Winnicott, 2004), espaço com função organizadora do que no humano há de mais complexo, fazendo surgir zonas de respiração dentro do mundo instituído, em primeira instância, na instituição familiar. Sabemos que a introjeção da gura paterna e materna pode signi car um holding ou uma experiência desastrosa. Nos casos de adoção como o analisado por este artigo, em que o que move a adoção é, em primeira (e talvez única) instância uma “boa ação social”, muitos aspectos da existência humana acabam sendo prejudicados. O Cadastro Nacional de Adoção (CNA) registra cerca de 4,7 mil crianças e adolescentes esperando por um lar. Este artigo aponta na direção de maior aprofundamento das questões que envolvem o gesto adotivo, principalmente no tocante às motivações que impulsionam os futuros pais para a importante e complexa tarefa de educar e, acima de tudo, amar um ser humano na gura de um lho. REFERÊNCIAS FARIAS, S. R & Spizzirri, Rosane C. P. (2007) A questão do poder nas perspectiva winnicottiana. In Contemporânea - Psicanálise e Transdisciplinaridade, Porto Alegre, n.01, Jan/Fev/Mar 2007 FELIX, LUCIENE (2012) - Pigmalião e Galatéia ? A idealização do ser amado - Jornal Carta Forense FREIRE, F. (1994). Abandono e adoção: Contribuição para incentivo de 105


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10. A QUESTÃO DOS REFUGIADOS: RECONHECIMENTO E SUBJETIVAÇÃO EM AXEL HONNETH E DONALD W. WINNICOTT THE REFUGEES'S ISSUE: RECOGNITION AND SUBJECTIVATION IN AXEL HONNETH AND DONALD W. WINNICOTT Cíntia Corrêa de Carvalho ⁰ Sergio Gomes

Resumo: O “ser estrangeiro” retrata várias contingências inerentes a esta condição. Dentre muitas, pode-se destacar a necessidade constante de “abrir mão” da sensação de pertencimento, cultura, família, valores, pro ssão. Para os refugiados, “ser estrangeiro” traduz uma estratégia de vida. O presente trabalho objetiva analisar o sofrimento psíquico destes, enquanto “estrangeiros”, sob a perspectiva de Axel Honneth (teoria do reconhecimento) e Donald Winnicott (espelhamento e subjetivação). Para Honneth, reconhecimento refere-se à capacidade humana de autorreconhecimento e reconhecimento do outro, alcançado através de três esferas: esfera do amor, vivida nas relações primárias; esfera jurídicomoral, constituída nas relações de direito; esfera da estima social, alcançada nas relações de solidariedade. Para Winnicott, o reconhecimento constitui-se, sobretudo, por espelhamento e subjetivação, vividos pela dupla mãe-bebê nos momentos de trocas de afeto. Acreditamos que apenas através das três esferas do reconhecimento poderemos acolher o sofrimento psíquico dos refugiados, possibilitando a diminuição de con itos e ensejando laços sociais. Palavras-chave: refugiados, reconhecimento, intersubjetividade, espelhamento 10. Aluna do Curso de Graduação em Psicologia e Estagiária da Divisão de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da UFRJ. Email: cintiaccarvalho@gmail.com. Telefone: (21) 99851-1308. 11. Doutor em Psicologia Clínica, Psicanalista Membro Associado do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Supervisor de Estágio da Divisão de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia da UFRJ. Email: sergiogsilva@uol.com.br. Telefone: (21) 98315-7733. 107 Rabisco R. Psican

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A QUESTÃO DOS REFUGIADOS: RECONHECIMENTO E SUBJETIVAÇÃO EM AXEL HONNETH E DONALD W. WINNICOTT

Abstract: To be a "foreign" refers to various contingencies inherent to its condition. We can highlight the constant need to "give up" of the sense of belonging, culture, family, values, and profession. For the refugees to be a foreigner translates into a life strategy. e present work aims to analyze the psychological suffering of refugees, as "foreigners", from Axel Honneth’s theory of recognition and Donald W. Winnicott’s theory of mirroring and subjectivation. For Honneth, recognition refers to the human capacity for self-recognition and recognition of the other, achieved through three spheres: the sphere of love, lived in personal relationships; the legal-moral sphere, constituted in the relations of right; and the sphere of social esteem, achieved in the relations of solidarity. For Winnicott, the recognition is constituted by mirroring and subjectivation, experienced by mother-baby attachment in some moments of affection. We believe that only from the three spheres of recognition can we accommodate the psychological suffering of the refugees, making it possible to reduce the con icts and created in a social bond. Keywords: refugees, recognition, intersubjectivity, mirroring Introdução Observa-se atualmente signi cativo aumento do número de pedidos de refúgio nos países da Europa, Estados Unidos e América do Sul, como é o caso do Brasil. Segundo dados da ONU de 2016, mais de 65 milhões de pessoas se encontram em situação de refúgio por todo o mundo. Signi ca dizer que uma em cada 113 pessoas no planeta é solicitante de refúgio, deslocada interna ou refugiada. Trata-se, portanto, de uma verdadeira catástrofe humanitária. Sob esta perspectiva, este trabalho objetiva realizar um diálogo entre o conceito de reconhecimento na loso a política de Axel Honneth e o conceito de espelhamento na teoria clínica do pediatra e psicanalista inglês Donald W. Winnicott. Através de uma breve contextualização histórica, buscaremos conhecer os problemas em torno dos refugiados: 108


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quem são, quais são as motivações que levam um indivíduo à situação de refúgio, quais relações de poder estão envolvidas na condição de refugiado. Em seguida, abordaremos as implicações psíquicas relacionadas ao “ser estrangeiro” enquanto estratégia de sobrevivência, e a importância do reconhecimento para a construção da subjetividade. Ao longo da História da humanidade é possível observar movimentos migratórios ocasionados por situações de fome, guerra, perseguições políticas, discriminação social, racial, religiosa, condições ambientais e todo tipo de con ito envolvendo variados grupos sociais, que geram uma série de violações aos direitos humanos e danos à integridade física e mental dos indivíduos. Como exemplos, podemos citar a imigração de irlandeses para os EUA entre 1820 e 1840; imigração de italianos, espanhóis, portugueses, croatas, russos para diversos países das américas ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, entre tantos outros uxos migratórios. O conceito de refugiado foi regulado pela Organização das Nações Unidas por meio da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados, realizada em 1951 e adotada em 1954. Desde então, considera-se refugiada toda pessoa que se declare em risco iminente em razão dos diversos tipos de con itos e por não poder contar com a proteção do Estado de sua nacionalidade. São indivíduos que, ademais do sofrimento inerente à sua própria condição de desenraizado, não raro, estão sujeitos a condições precárias de vida, subempregos ou até mesmo trabalhos forçados. Dessa forma, é possível observar o forte impacto, tanto em termos sociais, econômicos e políticos, quanto emocionais, ocasionando sofrimento psíquico para os indivíduos e grupos sociais envolvidos direta ou indiretamente com o tema em questão. O reconhecimento como condição à subjetividade O reconhecimento caracteriza-se como uma categoria que pode ser discutida no âmbito político-social (representado pela loso a política) e no âmbito subjetivo (representado pela psicanálise). Ambos se 109


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mostram imprescindíveis para a compreensão dos mecanismos de construção da subjetividade. No primeiro, o reconhecimento se faz necessário para alcançar o status de sujeitos de direitos nas sociedades democráticas e o estabelecimento das relações sociais, reconhecendo sujeitos humanos em suas diferenças. Assim, o conceito de reconhecimento está atrelado à atribuição de valor a um indivíduo, ultrapassando, portanto, a perspectiva meramente cognitiva de identi cação que se pode empreender com relação a este indivíduo. Na psicanálise, reconhecimento, empatia, con abilidade e mutualidade são fundamentais no manejo clínico de determinados pacientes no setting. Para Axel Honneth (2003), o saber-se enquanto pessoa não é su ciente para que ocorra o processo de autorreconhecimento. Torna-se necessário ser reconhecido pelo outro, o qual deve representar um conjunto de valores e ideais que retratem as aspirações do próprio sujeito que está em busca deste reconhecimento, bem como ser também alvo de seu reconhecimento, numa relação de reciprocidade. Eu me reconheço porque o outro me faz ser reconhecido através do seu olhar. E o outro também vê em mim o meu reconhecimento por ele. É através da con rmação de sua alteridade, alcançada a partir da relação com seu semelhante, que este pode chegar a uma compreensão total de si. Na loso a política de Axel Honneth, o reconhecimento se refere à capacidade humana de autorreconhecimento e reconhecimento do outro, alcançado por meio de três esferas: a esfera do amor, vivida nas relações primárias e de autocon ança; a esfera jurídico-moral, constituída nas relações de direito por meio do autorrespeito; e a esfera da estima social, alcançada nas relações de solidariedade e de autoestima. A esfera do amor tem origem nas relações primárias vividas no início da vida, permeadas por ligações afetivas sólidas, essencialmente encontradas na relação mãe-bebê. É através da experiência do amor materno que o bebê encontra meios para a construção do amor de si, através do espelhamento recíproco possibilitado por meio do olhar da mãe e do bebê. Na esfera do direito, o reconhecimento surge como fruto do respeito 110


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ao outro e do autorrespeito. O sujeito se torna capaz de se reconhecer como um ser portador de direitos ao se deparar com a existência de normas sociais a serem respeitadas, em prol da convivência saudável com os demais e por compreender que o outro é um sujeito de direitos tanto quanto ele próprio o é. É a partir da consciência dos direitos – individuais e do outro – que se torna possível o estabelecimento de leis, pois, para que os sujeitos possam submeter-se às normas sociais, é necessário que se reconheçam como sujeitos em igualdade de condições, detentores de um status social que os permita serem partícipes da sociedade e através do qual possam alcançar o reconhecimento jurídico-moral que os funda como merecedores da mesma proteção jurídica e respeito social, condição principal para o desenvolvimento do autorrespeito. Por m, na esfera da estima social, a “solidariedade” é condição essencial para se alcançar a autorrealização no meio social. Trata-se da autoestima, fruto da autorrealização, alcançada por meio do reconhecimento social das qualidades individuais, segundo parâmetros estabelecidos pela própria comunidade em que está inserido o sujeito. Refere-se, portanto, à aceitação e valorização, por parte dos demais integrantes do corpo social ao qual o sujeito está vinculado, de suas qualidades individuais, propriedades e potencialidades, que servem de referencial para a diferenciação entre um sujeito e os demais de sua comunidade, conduzindo-o a uma experiência de “orgulho de si” ou “amor próprio”. Honneth aponta que a esfera amorosa do reconhecimento é a base de autonomia necessária à vida pública, ao fundamentar os valores de autorrespeito e eticidade, frutos da autocon ança individual. É a partir das teorias de Donald W. Winnicott que Honneth busca explicitar os fundamentos do reconhecimento através da esfera amorosa. Segundo Winnicott, o reconhecimento é constituído, sobretudo, por meio da experiência de espelhamento vivida pela dupla mãe-bebê nos momentos de trocas de afeto, carinho e cuidado, na qual ambos podem ver e serem vistos um no olhar do outro. Para o autor, o precursor do espelho é o rosto da mãe, pois é através dele que o bebê tem a oportunidade de ver a si 111


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mesmo e tomar contato com as primeiras vivências de relação objetal e diferenciação entre o “eu” e o “não eu” (WINNICOTT, 1975, p.153). A função materna de espelhamento fundamenta a matriz do desenvolvimento emocional do bebê. Nesta diferenciação entre “eu” e “não eu”, ele tem a oportunidade de se perceber visto pela mãe, simultaneamente e da mesma forma, como ele próprio se vê, enquanto uma consciência singular. Quando o bebê olha para o rosto materno tudo o que ele vê é a si mesmo, ou seja, “a mãe está olhando para o bebê e aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali” (WINNICOTT, 1975, p.154). É deste reconhecimento mútuo que se produz a “tríplice hélice narcísica”, pontuada pela expressão “eu vi que você viu que eu vi” e “eu vi que você me viu como eu me vejo” (GOMES, 2017, p.105). Deste modo, podemos compreender que o bebê necessita não só que a mãe o veja, mas que ela o reconheça da forma como ele mesmo se vê nos olhos dela. Assim como na relação de espelhamento propiciada pela mãe o bebê tem a oportunidade de se ver enquanto ser independente, na clínica, igualmente, o ver e ser visto, reconhecer e ser reconhecido pelos olhos do analista possui grande efeito terapêutico. O espelhamento, portanto, é um processo que ocorre não somente pelo olhar, mas também pelas experiências de mutualidade vividas pela dupla mãe-bebê, tais como a amamentação e as brincadeiras de carinho e afeto vividas entre eles. De igual maneira, esse processo segue se desenrolando ao longo de toda a vida do sujeito, sendo vivenciado nas mais diversas situações: na família, na escola, no trabalho e na vida social e política. Considerações nais: o reconhecimento dos refugiados Aqui se encontram os refugiados em sua condição de estrangeiro: sem pátria ou senso de pertencimento, apartados de sua cultura, hábitos ou família, valores ou posição social, tendo seus direitos violados, vitimados pela situação de fome, oriundos da guerra ou de perseguições políticas e de diversos tipos de discriminação. São pessoas "assujeitadas" e 112


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submetidas a condições precárias de vida – uma “vida nua” (bare life) (AGAMBEN, 2004, 2010; ARENDT, 1989). Como não pensar no sofrimento psíquico destes homens, mulheres e crianças, quando estes se encontram sem refúgio e sem reconhecimento na sua condição de excluídos dos excluídos? Quais estratégias podem ser pensadas no sentido de amenizar este sofrimento? Ante tais questionamentos, o reconhecimento desponta como fator de inclusão do sujeito refugiado em um círculo social ao qual ele se vincule, através da experiência de compartilhamento da vida social e da construção e solidi cação da sensação de pertencimento a uma coletividade. Trata-se de uma relação de mútuo pertencimento, um “serno-mundo”, isto é, pertencer a uma realidade de mundo, ciente de que este mundo também lhe pertence. O reconhecimento enseja a base emocional de todo ser humano, através da reivindicação de direitos (esfera jurídico-moral) e participação social solidária e ética (esfera da estima social). O aporte que estes sujeitos podem fazer à sua comunidade sempre será único e seu valor para a sociedade será reconhecido por todos os seus demais membros. Signi ca que os membros de uma comunidade se identi cam uns com os outros ao disporem da estima social que lhes possibilitem referir-se positivamente às suas potencialidades individuais, as quais devem ser respeitadas e protegidas por todos do grupo. Através da conquista de seu valor social advém o sentimento de orgulho coletivo e, posteriormente, a formação da autoestima e do senso de pertencimento. Precisamos “olhar” com maior atenção para a questão dos refugiados e o caráter urgente de relações solidárias para com eles. Com isto, Honneth e Winnicott, como pensadores políticos, ajudam-nos a compreender as di culdades sociais e políticas dos refugiados na contemporaneidade. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 113


_____. (2004). Estado de exceção. São Paulo: Boitempo. ARENDT, H. (1989). Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras. GOMES, S. (2017). A gramática do silêncio em Winnicott. São Paulo: Zagodoni. HONNETH, A. (2003). Luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos con itos sociais. Rio de Janeiro, RJ: Editora 34. WINNICOTT, W. D. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.

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11. A REDESCOBERTA DO POTENCIAL SAUDÁVEL DA CULTURA A PARTIR DA GRUPOTERAPIA 12 THE REDISCOVERY OF CULTURE'S HEALTH POTENTIAL FROM GROUP THERAPY Arytanna Zuitá

Resumo: Desde o princípio a psicanálise se constituiu enquanto uma ciência que se ocupa com o desenvolvimento humano, as angústias do ser e as possibilidades de uma existência plena. Donald Winnicott amplia os estudos e compreensão da relação primária mãe-bebê ao pontuar a relevância de uma maternagem su cientemente boa para a estruturação de um ego fortalecido e formação de um sujeito com um padrão de troca saudável. Contudo, muitos são os casos de mulheres que chegam aos consultórios clínicos se percebendo deprimidas, ansiosas, com baixa autoestima, e vivem ou viveram relacionamentos abusivos. E ainda, ao relatarem sua primeira infância alegam não terem desfrutado de um ambiente satisfatório e hoje se encontram, inconscientemente, reproduzindo padrões adoecidos do relacionar-se, consigo e com o outro. Portanto esse artigo coloca a psicoterapia de grupo para mulheres que se encontram nessa dinâmica como uma ferramenta rica que visa promover um ambiente facilitador de resgate do self, redescoberta da criatividade e devir autônomo. Palavras-chave: dependência, vínculo, psicoterapia, grupo. Abstract: From it's beginning, psychoanalysis was built as a science about human development, the being's anguish and the possibility of a whole existence. Donald Winnicott then broaden the studies about primary relations between mother and child by highlighting that a sufficiently 12. Trabalho apresentado no XII Encontro Nacional do Pensamento de D. W. Winnicott 13. Arytanna Zuitá Barbosa Ferreira Condomínio Ouro Vermelho II Quadra 10 Casa 04 Fase 01 – Jardim Botânico, Brasília – DF (CEP: 71680385). (61)99176-4824 - arytannazuita@gmail.com 115 Rabisco R. Psican

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A REDESCOBERTA DO POTENCIAL SAUDÁVEL DA CULTURA A PARTIR DA GRUPOTERAPIA

good mothering is relevant to the development of a strong ego and thus the constitution of a subject with a healthy relationship behavior pattern. Nevertheless, there are many cases of women arriving at psychological clinics perceiving themselves as depressed, anxious, with low self-esteem and also in or recently out of abusive relationships. Still, when narrating their rst childhood memories, they claim to not have enjoyed a satisfactory environment and today nd themselves unconsciously repeating hazardous relationship behavior patterns with them and others. erefore, this article proposes group psychotherapy with women in these conditions as a valuable tool that promotes a friendly environment to rescue one's self, rediscover one's creativity and aid one's development of a self-directioned becoming. Keywords: dependence, bond, psychotherapy, group. Há mais de cem anos a psicanálise desenvolve-se e apresenta novas possibilidades de compreender e analisar o ser. Donald Winnicott foi um grande colaborador à prática psicanalítica, dedicou parte relevante de sua teoria no estudo da relação primária mãe-bebê e à repercussão dessa experiência no padrão vinculativo do bebê ao longo de sua vida. Winnicott observou que todo bebê carece de um ambiente seguro e previsível para desenvolver-se em sua plenitude, o recém-nascido que goza de uma maternagem su cientemente boa conta com a provisão de suas necessidades de nutrição e higiene, mas, principalmente, desfruta de um investimento em si que vem do alto grau de identi cação dessa mãe com ele. O termo “preocupação materna primária” surge nas pesquisas winnicottianas para se referir à habilidade materna de desviar o interesse de si mesma para o bebê, de colocar-se no lugar dele. É essa capacidade que leva a mãe a fazer a coisa certa, a saber ler cada tipo de choro (ou silêncio) de seu lho. Assim, tal competência impele a genitora a oferecer holding (sustentação), handling (manejo) e a apresentar objetos ao recém-nascido, ou seja, ela irá olhar, tocar, segurar, conter, amamentar, 116


Arytanna Zuitá

limpar, proteger, embalar, conversar, cantar, brincar, passear com essa pequena criança. É dar início a uma relação com qualidade humana, que ajuda o bebê a lidar com espantosas transições de estado pací co/satisfeito – seja desperto ou dormindo – para momentos de excitação, choro e ataques ávidos ao seio. A vivência de uma relação especular com a mãe em que seus sentimentos são compreendidos e suas demandas atendidas leva o bebê a desenvolver uma percepção real de si mesmo, dos objetos e do ambiente ao seu redor. Além de um self uido e criativo, a criança desenvolve também a capacidade de crer e de estar só. Na obra “Tudo começa em casa” (1999) Winnicott pontua que: Acreditamos porque alguém nos proporcionou um bom início. Recebemos uma comunicação silenciosa, por um certo período de tempo, de que éramos amados, no sentido de que podíamos con ar na provisão ambiental, e por tanto continuamos com nosso crescimento e desenvolvimento (p. 143). Winnicott (1983) a rma que maturidade e capacidade de car só signi cam que o indivíduo teve oportunidade, através de uma maternagem su cientemente boa, de construir uma crença num ambiente benigno. Por ser possível acreditar em/prever seu ambiente – pai e mãe – a criança vai gradualmente integrando sua personalidade e ensaiando sua independência. Contudo, se nesse primeiro momento de total dependência o bebê não conta com um ambiente facilitador e uma mãe disponível que, ao invés de acolher e complementar seu gesto espontâneo sufoca sua criatividade impondo-lhe seu próprio gesto/necessidade, ele acaba por desenvolver o que Winnicott (1983) chamou de falso-self. Em vez de começar a existir no mundo a criança passa a reagir às exigências deste. Lygia Humberg (2003) descreve de forma didática a estruturação egóica do recém-nascido que vive em meio à inabilidade materna em 117


A REDESCOBERTA DO POTENCIAL SAUDÁVEL DA CULTURA A PARTIR DA GRUPOTERAPIA

sentir suas necessidades: Se a mãe não pode ajudar seu lho a desenvolver um ego estruturado, seja por também não tê-lo, por estar deprimida, indisponível, ou porque naquela relação e momento não teve condições para isto, a criança desenvolve um ego frágil. Seu superego, por sua vez, sendo herdeiro das in uências parentais, quando essas são confusas, se desenvolve sem parâmetros reais, idealizado, num momento fazendo requisições desmesuradas, e m out ro s e m e x i gê n c i a n e n hu m a . S e u s d e s e j o s , consequentemente, cam muitas vezes extremamente recalcados no id, e quando podem soltar-se o fazem como se não houvesse princípio de realidade, somente guiado pelo prazer (p. 30). Tão dinâmico quanto o desenvolvimento humano é a cultura, que com suas revoluções e novos paradigmas reverbera de forma distinta em cada geração, deixando um e outro sintoma mais agudo. Tenho notado uma quantidade signi cativa de mulheres que recorrem à psicoterapia sentindo-se deprimidas, ansiosas, com baixa autoestima, que vivem ou viveram relacionamentos abusivos. E ainda, constato por intermédio dos relatos, que elas foram bebês que não desfrutaram de um ambiente s at i s f at ó r i o n a p r i m e i r a i n f â n c i a e h o j e s e e n c o nt r a m , inconscientemente, reproduzindo padrões adoecidos do relacionar-se, consigo e com o outro. Como já explanado, por não dispor de um ambiente de facilitação o falso-self forma-se e a pessoa cresce com uma estrutura de adesão submissa ao outro, esvaziada (afetiva e ideativamente) de si. Em caráter defensivo o ego fragilizado evita a separação com o objeto que deixaria o self não coeso via subordinação ao desejo alheio. E essa é a base do funcionamento relacional de um sujeito dependente do vínculo. Um sujeito com dependência vincular foca nas necessidades e comportamentos dos outros em detrimentos dos próprios. São 118


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características comuns aos dependentes: baixa autoestima, insegurança, desejo de ser necessário, tolerância ao sofrimento e necessidade de controlar e mudar o outro. Humberg (2003) alega que é frequente essas pessoas sofrerem com comportamentos compulsivos tais como jogar, comprar, comer. A autora coloca também que um dependente do vínculo busca aprovação, segurança, sentido de valor e identidade. No consultório é recorrente ouvir dessas mulheres que elas estão no local de cuidadoras dentro de seus sistemas familiares, sempre disponíveis às demandas dos outros (mãe, pai, irmãos, companheir@s, lh@s). Dizem não saber do que gostam ou o que sentem diante de diversas situações. Quando conseguem identi car certas necessidades têm muita di culdade em atender às demandas próprias ou verbalizá-las. Narram sentir muita angústia, quando conseguem, nomeiam a ição e raiva frente o dilema razão x emoção, pois racionalmente sabem o quão mal as faz determinadas relações, contudo, não conseguem se desligar emocionalmente do par vincular. E a ição e medo por não conseguirem acreditar que existem outras possibilidades de ser/estar no mundo. São pacientes que também vivenciam muita culpa, pois costumam se cobrar desmedidamente. Tendo em vista esse contexto gostaria de destacar no presente trabalho o potencial da psicoterapia de grupo para tais mulheres. A grupoterapia é um processo dinâmico de troca em comunicação, ao comunicar-se a pessoa se coloca em profundidade para si e para o mundo em busca da própria realidade. Nesse espaço de partilha, amparo, trocas e ampliação do autoconhecimento as participantes podem criar outras formas de ser e estar na vida. Em sua pesquisa Humberg (2003) comenta que as perturbações do processo de projeção/introjeção estão na base dos con itos de dependência/independência, posto que uma pessoa com traços de dependência precisa do outro para projetar/introjetar seus conteúdos – até alí desconhecidos, pois não os suporta ou não aceita vê-los em si mesma. Fato que vai ao encontro do que Ribeiro (1995) trata em seus estudos sobre a psicoterapia de grupo analítico: “As pessoas vivem nessa 119


A REDESCOBERTA DO POTENCIAL SAUDÁVEL DA CULTURA A PARTIR DA GRUPOTERAPIA

num reexperenciar vivências passadas traumáticas ou não e que conduzem a uma nova visão da própria interioridade.” (p. 59). No grupo psicoterapêutico a participante também passará pelo processo con itivo de pertencimento, pois ali também existe uma cultura grupal, sustentada por um inconsciente grupal. Entretanto, difere-se da cultura externa uma vez que a cultura desse grupo é baseada no respeito, na aceitação, no encorajamento e permissividade. Na medida em que o processo terapêutico se desenvolve as pacientes aprendem a libertarem-se, a perderem seus sentimentos de culpa, a manifestarem-se livremente dentro de sua própria e única dimensão. Quero concluir essa breve re exão citando Ribeiro (1995), pois nessa passagem capto a riqueza da grupoterapia enquanto uma possibilidade de promover um ambiente facilitador de resgate do verdadeiro self, redescoberta da criatividade e devir autônomo: No grupo, o paciente tem a oportunidade de redescobrir-se, de ver-se com olhos novos, podendo defender-se dos objetos maus introjetados. Eles a oram à consciência, causando ansiedade e medo, pois, de novo, é doloroso rejeitá-los, como outrora, ou aceitá-los conscientemente dentro de uma nova dimensão. Os objetos bons podem ser vivenciados mais livremente, pois, na situação de grupo, o paciente conta com o apoio do psicoterapeuta transformado no centro de suas introjeções e com a ajuda dos companheiros de grupo. O relacionamento entre companheiros de grupo se torna cada vez mais profundo. A projeção e introjeção se estabelecem como processos dinâmicos de transformações afetivo-emocionais, a partir das quais se opera uma transformação intrapsíquica de impulsos e objetos introjetados. (p. 60). REFERÊNCIAS HUMBERG, L.V. Dependência do vínculo: uma releitura do conceito de co-dependência. São Paulo, 2003. 120


Arytanna Zuitá

RIBEIRO, J.P. Psicoterapia grupo analítico: teoria e técnica. São Paulo, Casa do Psicólogo, co-edição Livros Neli, 1995. WINNICOTT, D.W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre, Artmed, 1983. WINNICOTT, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo, Martins Fontes, 1999.

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12. O ÉDIPO EM FREUD A LEI E A TRANSMISSÃO DA TRADIÇÃO OEDIPUS IN FREUD LAW AND TRANSMISSION OF TRADITION Pedro Carlos Tavares da Silva Neto ⁴

Resumo: O autor deste trabalho tem procurado trabalhar a teoria e a clínica usando o elemento denominado Interpretante, elemento que Lacan introduz a partir de uma participação em seu seminário de François Recanati, no qual a Semiológica de Charles Sanders Pierce é incorporada em seu ensino. O Interpretante pode ser entendido como uma chave de leitura, um signi cante (ou conjunto de signi cantes) que traduz outro (ou outros). E nesse processo de tradução, revela algo da lógica de uma estrutura. No caso presente - estrutura da linguagem - um discurso sobre o Édipo em Freud e a Metáfora Paterna em Lacan. O autor sustenta neste ponto do trabalho uma leitura dos processos referidos – alienação e separação – utilizando somente textos do próprio Lacan, dispensando todos e quaisquer comentadores de sua obra, na medida em que entre estes existe, no entendimento deste autor, manifesto afastamento da letra do texto lacaniano na interpretação do processo de separação. Palavras-chave: Interpretar, signi cante, alienação, separação. Abstract: e author of this work has sought to work the theory and the clinic using the element denoned Interpreter, element that introduces Lacan from a participation in his seminary of François Recanati, in which Semiological of Charles Sanders Pierce is incorporated in its teaching. e Interpretant can be understood as a reading key, a signi er (or set of signi ers) that translates another (or others). And in this process of

14. Advogado e Psicanalista. Membro de Apertura, Sociedad Psicoanalitica de Buenos Aires e La Plata. Rua Cristina Ziede 98, casa 07, Nova Friburgo, CEP 28610-270. Email: pedrotavaresneto@globo.com 123 Rabisco R. Psican

Porto Alegre

v.8

n.1

p. 123-146

Junho/2018


O ÉDIPO EM FREUD – A LEI E A TRANSMISSÃO DA TRADIÇÃO

translation, it reveals something of the logic of a structure. In the present case - language structure - a discourse on the Oedipus in Freud and the Paternal Metaphor in Lacan. e author maintains in this point of the work a reading of the mentioned processes - alienation and separation - using only texts of the own Lacan, dispensing any and all commentators of his work, since among these exists, in the understanding of this author, manifesto deviated from the letter of the Lacanian text in the interpretation of the separation process. Keywords: To interpretate, signi cant, alienation,separation. Introdução De nição de Édipo de Roland Chemama, em Diccionario Del Psicoanalisis: 1) Conjunto de los investimientos amorosos y hostiles que el niño hace sobre los padres durante la fase fálica. 2) Proceso que debe conducir a la desaparición de estos investimientos y a su remplazo por identi caciones. Fico tentado a cotejá-la com a fórmula do fantasma lacaniano, S barrado punção de a. Porém, invertendo aqui seus polos e articulando o operador da disjunção: um objeto que deve cair – desaparecimento dos investimentos objetais parentais – para que um sujeito se constitua substituição por identi cações. O Édipo pode ser abordado como o encontro da pulsão que a ora na criança com a cultura transmitida pelos adultos de seu entorno. Ou como a dialética tensa que, através da desnaturação do instinto da criança pela in uência de seu ambiente, faz a montagem da pulsão. Um modo privilegiado de interação entre a energética pulsional e a hermenêutica cultural. Uma metáfora que nos pensa, parafraseando o título de um livro de Emmanuel Lizcano. Paul Ricoeur distingue a obra freudiana nestes exatos termos: uma energética e uma hermenêutica. Haveria entre esta 124


Pedro Carlos Tavares da Silva Neto

interpretação da teoria freudiana de Ricoeur e a fórmula lacaniana da fantasia – S barrado em conjunção e/ou disjunção com objeto a – uma homologia? Um sujeito que advém por uma operação de exegese – articulação entre S1 e S2, bem como entre S e A - hermenêutica cujo combustível é a energética da pulsão que contorna o objeto faltante (a). Em termos freudianos, pode-se pensar em o representante ideativo e o representante afetivo/quantitativo sendo articulados em conjunção ou em disjunção? Essa é apenas uma hipótese de trabalho, aproximar o Édipo freudiano da fórmula lacaniana da fantasia, usar uma fórmula como Interpretante, um operador epistemológico de um campo de fenômenos nominados edipianos. Édipo não só como o paradigma da constituição subjetiva, mas também como um fenômeno dialético estrutural (uma estrutura estruturante no dizer de Garcia Roza) que produz um sujeito identi cado aos ideais parentais (S barrado) e vinculado a determinados objetos de desejo (a). Uma possível leitura é este sujeito estar, pelo Édipo, dividido entre objetos que investe (a) e ideais que assimila (S barrado). Dividido por um lado pela Alienação aos signi cantes do Ideal do Outro (no polo do S barrado) e, por outro (no polo do objeto a), pela Separação do objeto interditado – com a consequente constituição de outro – ainda que podendo fazer série metonímica com o primeiro. Alienação e separação como processos lógicos de constituição da estrutura da fantasia fundamental. Me parece que a fórmula da fantasia de Lacan é um poderoso operador epistemológico: sujeito e objeto estão de nidos – por fórmulas outras, mas que podem entrar em operação se necessário. Espaço e tempo são também trabalhados por Lacan, o tempo lógico com a sincronia e a diacronia, com antecipação e retroação - o importante conceito de a posteriori - e o espaço com a topologia que permeia seu ensino. Aqui distingo espaço e tempo por razões descritivas, mas lembro que Lacan trabalha com espaço/tempo, conceito derivado da Teoria da Relatividade. 125


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O interpretante de Charles Sanders Peirce Mas o que queda elidido dessa operação quaternária – sujeito, objeto, espaço, tempo - que pode ser reduzida á um par – S barrado punção de a – é que se faz necessário algo para articulá-los. Um Interpretante. A partir da intervenção de François Recanati em seus seminários 19 e 20 – intervenções que não estão traduzidas nem são encontradas nos Seminários de Lacan publicados em português (o autor usa as versões criticas de Ricardo Rodriguez Ponte para o espanhol) - Lacan passa a trabalhar também com as operações semióticas do triângulo de Pierce: composto pelo Objeto, seu Representamen (seu signo ou signi cante) e seu Interpretante (outro signi cante). Em “Semiótica”, Charles Sanders Pierce estabelece uma lógica, que vai interessar muito á Lacan, composta de elementos triplos – denominados triádicos – que se relacionam entre si (Objeto, Representamen e Interpretante) e com três outros elementos (Existente Concreto, Qualidade e Lei) denominados Correlatos, também em numero de três, de múltiplas maneiras. O que interessa a Lacan é testar as possibilidades de aproximação deste ternário com os Registros do Imaginário, Real e Simbólico, já nesta época de seu ensino amarrados pelos nós Borromeus: Primeira de nição de signo em Pierce: Signos são divisíveis conforme três tricotomias. A primeira, conforme o signo em si mesmo por uma mera qualidade, um existente concreto ou uma lei geral. A segunda, conforme á relação do signo para com seu objeto consistir no fato de o signo ter algum caráter em si mesmo, ou manter alguma relação existencial com esse objeto ou em sua relação com um Interpretante; a terceira, conforme seu Interpretante representá-lo como um signo de possibilidade ou como um signo de fato ou como um signo de razão. Segunda De nição de Pierce: 126


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“De no al Signo como algo que es determinado en su calidad de tal por otra cosa, llamada su Objeto, de modo tal que determina un efecto sobre una persona, efecto que llamo su Interpretante, vale decir que este último es determinado por el Signo en forma mediata. Mi inserción del giro “sobre una persona” es una forma de dádiva para el Cancerbero, porque he perdido las esperanzas de que se entienda mi concepción más amplia en cuestión” Destaco da citação acima o Signo/representamen como algo que determina um efeito chamado Interpretante (este por sua vez determinado pelo Representamen de forma mediata – ou seja, dependente da intervenção de terceiros, outros Interpretantes). Oscar Zeilis e Gabriel Pulice, psicanalistas argentinos que publicam conjunto de artigos sobre o tema na Revista Imago Agenda, esclarecem algumas questões que serão importantes ao longo do trabalho: Observamos la importancia de esta última aclaración, porque apunta a lo recién señalado acerca de que, en la concepción peirceana, no es necesario suponer un sujeto consciente tal como lo entiende la psicología clásica, y por tanto, el interpretante puede funcionar por fuera de la conciencia, lo que nos permitirá pensar el acto de semiosis como factible de realizarse en procesos inconscientes y, de modo general, entenderlo como una propiedad semiótica y no psicológica. Para no producir confusiones, además, Peirce muchas veces reemplaza, al describir el diagrama, la palabra signo por representamen. Veremos enseguida que en este modelo, la relación signo-interpretante también se podrá leer, por ejemplo, como el encadenamiento de un signi cante a otro signi cante. Pero antes veamos cuál es su de nición de semiosis: «Por semiosis entiendo una acción, una in uencia que sea, o involucre, una operación de tres elementos, como por 127


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ejemplo un signo, su objeto y su interpretante, una relación trirelativa, que en ningún caso se puede resolver en una acción entre dos elementos” (Peirce, 1998). Vale decir, plantea una relación triádica genuina y no reductible. Destaco da citação acima que o Interpretante funciona em processos inconscientes (encadeamento de um signi cante a outro signi cante), que a relação entre os três elementos é irredutível á qualquer relação diádica e de que não se trata de propriedades psicológicas, mas de uma ação ou in uencia da natureza de uma operação lógica semiótica. Lacan, no Seminário 19, Versão Ricardo Rodriguez Ponte: “Lo que el otro día fue puesto en el pizarrón bajo el nombre de “triángulo semiótico”, bajo la forma de representamen, de lo interpretante, y aquí del objeto, para mostrar que la relación es siempre ternaria, a saber, que es la pareja Representamen / Objeto, que es siempre a reinterpretar, es eso de lo que se trata en el análisis”. Destaco da citação acima que, do que se trata em analise, diante de uma relação sempre ternária, é reinterpretar constantemente a dupla Representamen/Objeto. Um pouco mais adiante, mesmo seminário: “¿Qué hace falta sustituir en el esquema de Peirce, para que armonice con mi articulación del discurso analítico? Es simple como los buenos días: a efectos de lo que se trata en la cura analítica, no hay otro representamen que el objeto a, objeto a del cual el analista se hace el representamen, justamente, el mismo, en el lugar del semblante” (Lacan, 1971-1972). Destaco que a única coisa que Lacan indica necessário substituir, entre seu esquema ternário e o de Pierce, é que o objeto a é nomeado como único (no hay otro) representamen que conta para a cura analítica. 128


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Alocado como Representamen, não como Objeto. Para surpresa de muitos, Lacan não diz: “para os efeitos da cura em psicanálise, o objeto a ocupa o lugar de Objeto na tríade de Pierce”. Ao revés, diz que o objeto a ocupa o lugar de Representamen. E isso tem consequências que precisam ser exploradas. Repito, o lugar do Objeto é deixado vazio e o objeto a é alocado no lugar do Representamen. Me interessa explorar o elemento denominado Interpretante, assim descrito por Umberto Eco: El Interpretante pode adoptar formas diferentes. Enumeremos algunas de ellas: (a) puede ser el signi cante equivalente ( o aparentemente equivalente) em outro sistema semiotico. Por ejemplo, pude hacer coresponder um desenho com uma palavra (b) pude ser el indicio directo sobre el objecto particular, que supone um elemento de cuanti cacion universal ( todos lós objectos como este). (c) puede ser uma de nicion cienti ca ingenua del próprio sistema semiotico ( por ejemplo, sal por cloreto de sódio e vice versa). (d) pude ser uma asociacion emotiva que adquiera uma conotacion ja ( perro por delidad) (e) pude ser la traducion de um termino de um lenguaje a outro, su substituicion mediante um sinonimo Um signi cante visual – imagem – correspondendo a um signi cante auditivo – palavra. Um método de correlação entre sistemas semióticos distintos. Um método de tradução de um plano (visual) a outro (plano auditivo) por um signi cante equivalente ou sinônimo. Um regime geral de equivalências que se da por tradução, que pode conter uma de nição cienti ca ou ingênua e que seja motivado por uma associação emotiva que adquira conotação xa. Que pode se dar do plano falado ao plano escrito. Entre plano perceptivo e plano motor. Entre o plano biológico e o plano psicológico. Entre o plano somático e o plano psíquico. E, portanto 129


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que se aplica entre os planos Imaginário, Simbólico e Real. Um exemplo, o mais intuitivo embora o menos produtivo, seria o de equiparar Objeto (Existente Concreto) ao Real, Representamen ( Qualidade) com Imaginário e Interpretante ( Lei) com Simbólico. Mas isso é só um exemplo simplório. Um recurso para ns didáticos por assim dizer. Lacan deixa bem claro que o objeto a se aloca como Representamen e não como Objeto, o que impediria ao menos a realização dessa correlação, embora não impedisse as demais tricotomias. O que interessa, e muito, é que Lacan começa aqui a rever o fundamento de que o par mínimo, para operar com a lógica dos Signi cantes e para a produção de signi cação, seja somente S1 S2. Ele passa a contemplar a possibilidade de operar com um S3: “para mostrar que la relación es siempre ternaria, a saber, que es la pareja Representamen / Objeto, que es siempre a reinterpretar, es eso de lo que se trata en el análisis». E isso signi ca ter que pensar em como, quando e onde será colocado o terceiro elemento, o Interpretante. Essa operação lógica é pensada, testada, estudada ainda por poucos autores, mas tem se revelado importante para superar os impasses estruturais das poucas, mas porém relevantes, operações diádicas que Lacan produziu, entre as quais o par mínimo necessário para signi cação (S1 S2). Operações que terminam por induzir á interpretações que implicam num raciocínio diádico, de antítese ou antinomia, que elidem um terceiro termo. Especi camente o tempo lógico em bene cio do tempo cronológico em Alienação e Separação. Primeiro um e depois o outro. No caso do Édipo, a antítese entre pai e mãe. Édipo e Alienação e Separação são algumas das operações que ganhariam muito se pudessem ser repensadas com a inclusão do Interpretante. De fato, o interpretante está sempre operando, mas ca em regra elidido da operação. Quem ou o quê vincula um S1 a um S2? O que os mantém ligados ou os separa senão um S3? O mesmo vale para S e A. Neste sentido – um Interpretante elidido – uma primeira possibilidade é o imaginário do analista ou do autor de um texto qualquer. O aspecto imaginário de seu desejo, daquilo que o anima a 130


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escrever. Um exemplo comum em textos psicanalíticos que tratam dos processos de alienação e separação é a leitura desses processos com fundamento no critério do tempo linear. Porém, este Interpretante – o tempo linear – ca subposto (talvez por uma associação emotiva que adquire conotação xa. Uma constante de nosso tempo é o tempo como uma constante, echa que vai de a a z.) O que era processo lógico se transforma em evento. Primeiro evento: estou alienado. Condensado no ser. Segundo evento: busco o sentido, me separo do ser (me desalieno por assim dizer),constituo a serie metonímica de meus objetos. Terceiro evento: objeto extraído, com a ajuda necessária de meu analista. Quarto evento: constituo meu desejo de saber, o Outro deixa de existir e sigo pela vida sem o fantasma, embora com um resto de gozo indizível. Quinto evento: m de analise, passe, nomeação. Elisão da concepção de tempo do autor como Interpretante desta sucessão de eventos. O que é elidido nesse resumo algo canhestro de alguns escritos psicanalíticos é o tempo lógico como Interpretante desse processo. O que é elidido é um S3. Se o Interpretante aqui é o tempo lógico, estas operações são processos e não eventos, e são processos sujeitos á antecipação e retroação, e, ainda que possa se vislumbrar um nal, o processo é necessariamente recomeçado, relançado. A posteriori. Um Ideal a ser perseguido talvez, mas ideal. E do Outro. O analista nessa tem seu percurso determinado por um Outro (tesouro dos signi cantes do analista, lugar aonde se depositam, não só os textos de Lacan, mas também os de todos os comentadores de sua obra). Que pode ser inconsistente e/ou incompleto, mas que necessariamente existe. Mais uma vez Pierce: Um Signo (signi cante) é um Representâmen com um Interpretante mental E esse mental pode ser inconsciente. Opera com mais e cácia assim, como sabido desde Freud. O signi cante é o que representa o sujeito para outro signi cante. 131


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O signi cante é o que representa o sujeito para outro Interpretante. E esse Interpretante, nesta hipótese, o cia como Imaginário. Um exemplo pode esclarecer como operar com o Interpretante de Pierce. Se a Balança pode ser o signo da Justiça (balança como representamen/signo do objeto Justiça), o signi cante Justiça pode assumir função de signi cação pelo Interpretante Igualdade. A Igualdade esclarece, ltra, interpreta o que é justiça ou injustiça; conferindo signi cação, ela passa a ser o Interpretante da Justiça. E o que é Justo ou Injusto – ou seja, a de nição dos atributos do objeto, de suas propriedades, de sua substancia - passa a depender do que seja Igualdade. Mas o que é igualdade? O que é igualdade depende de outro signi cante, e este por sua vez passa a ser o interpretante da igualdade. E assim sucessivamente em remissão in nita. Se eu vou entender Justiça como Igualdade – e assim dar a cada um da mesma forma – ou vou entender Justiça como Equidade – e assim dar a cada um na medida de suas desigualdades – fará diferença? Depende. Por um lado, fará. Um Interpretante leva a um caminho distinto do outro. Estipula um impossível. Ou um ou outro. Impossível os dois. A cadeia signi cante possui leis próprias e, tão importante quanto, memória. Uma memória que é simbólica, mas tremendamente e caz. Que registra, no ato mesmo de seu encadeamento, as impossibilidades advindas das escolhas que faço quanto aos Interpretantes a serem utilizados. Mas o que é Justiça? Posso perfeitamente em determinado espaço/tempo considerar que é Igualdade e em outro espaço/ tempo considerar que é Equidade. Desde que sejam em espaços/tempos diferentes – ou seja, desde que sejam espaço/tempo lógicos constituídos por cadeias signi cantes distintas embora possam ser sincrônicas realizo a distribuição de Justiça de dois modos distintos. Me aproximo da coisa em si, e assim atinjo a Justiça, abordo um fragmento do Real por assim dizer. Mas o que é Justiça? Que tal o Justo agora ser Isonomia (distribuição de Justiça por Equiparação), Interpretante distinto dos anteriores? E o que é Equiparação? A remissão in nita do signi cante por outro Interpretante se renova e se relança. O que me interessa aqui é 132


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marcar que nesta remissão in nita o referente – a coisa em si- é perdido. Atinjo a Justiça como objeto, e objeto bastante concreto em seus efeitos, mas não o Justo como coisa em si - Substância do Justo (Substancia do Gozo). Propriedade da linguagem. Impossível de domesticar, de controlar. Um impossível lógico. A coisa em si, e não o objeto, é que está irremediavelmente perdida. Estamos todos subordinados aos efeitos inconscientes da linguagem. Linguagem que possui capacidade ontológica – cria espontaneamente entes, os quais nos enlouquecem, na medida em que tentamos apreende-los e captar o que seria o seu ser - e capacidade hermenêutica – produção incessante de sentidos. Quanto à capacidade ontológica da linguagem, Pierce: “Si hay algo real —esto es, algo cuyas características sean verdaderas de ello independientemente de si tú o yo, o cualquier hombre o número de hombres las pensamos como siendo características suyas o no— que se corresponda su cientemente con el objeto inmediato —el cual, puesto que es una comprensión, no es real—, entonces , ya sea identi cable con el Objeto estrictamente así llamado o no, debería denominarse, y normalmente se denomina, “objeto real” del signo. Por alguna clase de causación o in uencia debe haber determinado el carácter signi cante del signo”. Nesse diapasão de argumentos, o objeto a é um operador lógico (um Interpretante) utilizado para deter a remissão in nita da signi cação – o desejo é sua interpretação- bem como para determinar –pesquisar a causa - o elemento que in uencia o caráter signi cante do Representamen, seu “objeto real”. Em psicanálise, esse objeto – esse referente - é a pulsão. A pulsão como “objeto real” - elemento que in uencia – interfere – e portanto determina – causa - o caráter signi cante, confere signi cação. Mas o que é a pulsão? Pulsão atualmente é esclarecida pelo Interpretante 133


O ÉDIPO EM FREUD – A LEI E A TRANSMISSÃO DA TRADIÇÃO

gozo. Mas o que é gozo? E o circuito de signi cação se renova e se relança pela necessidade de novos Interpretantes. Ademais, Pierce coloca no condicional (se, então) : se há algo real, então deve haver uma classe de causação ou in uência que determina esse caráter de “real”. Nem na Biologia – considerada com a ciência que cuida das substancias do organismo vivo – existe um objeto que escape a alguma forma de apreensão signi cante– que possua características verdadeiras independentes de qualquer operação psíquica (mental) acerca dele. Que seja coisa em si, que demita a necessidade de Interpretantes. Da revolução dos genes o que sobrou foi uma tremenda polêmica acerca do que é a unidade de seleção genética ( a esse respeito, Elliott Sober, “ e Nature of Selection”). O Édipo esclarece, funciona como Interpretante do que é patológico ou não; de certa forma determina objetos – a sexuação (o polo do objeto na formula lacaniana da fantasia) – seu conteúdo, seja ele qual for, masculino ou feminino ou... (o que depende da articulação entre conjunção e disjunção, entre S e a, melhor exemplo para disjunção é o assexuado) – e seus signos/representamen, as Estruturas Clínicas, os sujeitos neuróticos, psicóticos e perversos (a, o objeto, em conjunção com o Sujeito). Mas Freud não utilizava a linguística como chave de leitura, e tratava o tempo - como categoria epistemológica - de modo linear e concreto– progressão e regressão. Retirada do investimento no objeto, segue-se a regressão pela introjeção, no eu, de atributos do objeto, identi cação. O Édipo seria uma regressão positivada, necessária para o bem da civilização. Quanto ao espaço, dava validade universal ao conteúdo cultural de sua Viena – desta forma limitando o Édipo a uma circunscrição especí ca e psicologizada, cujos pormenores irão abastecer a literatura psicanalítica de teses e proposições em relação ao seu conteúdo – edipiano. Um Édipo cujos Interpretantes elididos – fundamentos de seu pensamento – são a Biologia e a Psicologia de sua época e cujas referencias são uma estrutura familiar já derrogada pela passagem do 134


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tempo. Mas uma ressalva importante deve ser feita: Freud sempre deixou claro que o que formulava eram hipóteses de cunho cienti co, e que estas poderiam ser substituídas ou alteradas se assim fosse logicamente necessário. Me parece que quando Lacan formula a Metáfora Paterna ele busca sair dos impasses de um Édipo excessivamente pormenorizado e limitado ao seu conteúdo de época. Do sal por cloreto de sódio. De um hábito arraigado de pensamento suposto materialista e da imensidão da imaginação psicanalítica dos autores de então. O Édipo como interditor do incesto, promotor da exogamia – o abandono do objeto incestuoso - e do Ideal do Outro, cujo herdeiro é o supereu é o Édipo freudiano que foi preservado por Lacan. O conteúdo do Édipo freudiano pode ser atualizado tanto quanto se faça necessário. Lacan preserva, ou tenta – vide os três tempos do Édipo - a estrutura revelada por Freud e a eleva, a transpõe, para o lugar de Paradigma. Paradigma dos ideais e dos objetos. De Interpretante. O Édipo passa a ser uma potente chave de leitura (tradutor privilegiado) dos fenômenos que constituem a subjetividade, independente de sua época e de seu conteúdo, com a ressalva de que não seja o único – pode haver neurose sem Édipo. A metáfora paterna lacaniana é sem conteúdo, independe de conteúdo, uma instância terceira que representa a ordem simbólica. Esta memória virtual de possibilidades e impossibilidades que só se localiza no espaço /tempo por uma abordagem topológica – abstrata - que não cabe aqui abordar. O Édipo em Lacan sofre relevantes modi cações - as posições epistemológicas dos dois são muito diferentes. Para Lacan, um Édipo idêntico a ordem da linguagem. Um discurso estruturado e transmitido pelas línguas de origem indo-europeias. Um discurso que forma sujeitos e constitui objetos. Importante frisar que os objetos também são constituídos pela linguagem. Existe uma tendência – uma espécie de nominalismo ingênuo - a supor que, primeiro está a coisa em si (que somente pode ser parcialmente apreendida, a deixar um resto que se imagina fora da 135


O ÉDIPO EM FREUD – A LEI E A TRANSMISSÃO DA TRADIÇÃO

linguagem) e, sobre ela, se apõe o nome, o signi cante, a palavra. O referente determinando a referencia. O Objeto determinando o Representamen e o Interpretante sendo recalcado. Mas dessa forma necessariamente o Édipo passa a ser a coisa em si, o referente dos interpretantes. E é absurdo supor que em psicanálise se trate da coisa em si. Do pai em si. Mesmo que através do recurso ao pai totêmico. Em semiótica isso se denomina a falácia do referente (vide Umberto Eco). A linguagem constitui os objetos, inclusive o a. A referência determina o referente. A coisa só se torna Objeto pela relação entre Representamen e Interpretantes. Se antigamente se supunha que a linguagem possuía limite – e este era notado com a formula 2x102.000.000, atualmente se a rma o caráter in nito da linguagem. Se a linguagem é in nita, esse in nito se dá em um espaço/tempo que pode determinar a revisão da hipótese freudo/lacaniana que supõe existir um resto concreto que escapa á representação. Essa suposição determina uma forma de conceber o objeto a que não é sustentada pelo texto lacaniano, embora seja promovida por seus comentadores. O objeto a não se refere a um Existente Concreto como coisa em si cujo Interpretante seria um gozo inefável, inaudito, impossível, um gozo adjetivado porque substantivado num pedaço do corpo imune a ser representado - conforme explicitado pelo próprio Lacan nos trechos que citei. A psicanálise também esta afeita aos efeitos da tradição, uma tradição cuja revisão e tradução se faz necessária constantemente. Porque o que é transmitido pelo Édipo é essa conotação xa superegóica do tu farás ou tu não farás, do tu deves ser ou tu não deves ser, tu desejarás ou tu não desejarás. Pensarás desta forma ou daquela, e transmitirás assim ou não transmitirás. Na psicanálise são admitidos outros Interpretantes: Roudinesco constata em seu dicionário que, nos Estados Unidos, o mito de Narciso ocupou o lugar de Édipo. Da mesma forma, o psicanalista americano Fred Pine inventariou a produção teórica e clínica estadunidense e concluiu pela descrição de quatro Interpretantes: “quatro psicologias” – Drive, Ego, Self and Object – cada uma delas autônoma em relação as demais, embora possam ser operadas 136


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na clínica em conjunto. O Édipo pode ser pensado como o mecanismo que ordena as pulsões (Drive), determina as relações de objeto (Object relations), constitui o eu (Ego Psychology) e produz uma vivência subjetiva (agency) de masculinidade ou feminilidade (Self experience). O que me interessa marcar aqui é que o sujeito sai destas operações lógicas com o fantasma constituído. Mas com qual conteúdo? Ao contrario do Édipo mítico, a criança sai deste processo sem ter conseguido matar o pai ou fazer sexo com a mãe. Sai domesticada. Domesticada pelo que não aconteceu. Para Freud o inconsciente é composto de representações de coisa, resíduos mnêmicos de imagens e eventualmente traços auditivos. Coisa entendida como aquilo que efetivamente aconteceu e deixou marca, como evento. Para Lacan o inconsciente é o discurso do Outro. E um signi cante em si não signi ca nada, não faz marcas. Para fazer traço ou letra precisa de mais um, no mínimo. A ver. Aqui se sustenta que três no mínimo. A memória lacaniana esta no entorno do sujeito (embora produzindo efeitos em sua matéria corporal), não é a memória biológica interna freudiana. Signi cante e palavra não coincidem. Na época de Freud isso não estava formalmente desenvolvido. Nesse sentido, o trauma não é o que aconteceu, mas o que não aconteceu e que se repete enquanto encontro faltoso. Não deixa marca na memória biológica. O evento que constitui o trauma não somente produz efeitos diretos sobre mim, mas impede que outros efeitos ou eventos aconteçam. O Real como impossível lógico, cuja memória é a rede dos signi cantes. Numa conferencia sobre Psicanálise e Neurociência Miquel Bassols da um exemplo que ainda comove. O bombeiro que, sonhando depois do atentado de 11 de setembro, repete o movimento de sua mão em direção da mão da criança, estendida em sua direção, que não chegou a tocar a sua e que, portanto, não conseguiu ser salva por ele. Sonho de angustia, um encontro que não aconteceu, algo que não se realizou. E que traumatiza. Quando se usa o signi cante gozo e se o associa com o signi cante Coisa já se está no plano da linguagem. E já há Interpretante, esse que associa. Eu sou aqui, meu eu é, neste trabalho, o operador 137


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Interpretante – eu, esse condensado de identi cações, metáfora/ sintoma (polo do Sujeito), gozando pela escrita (polo do objeto), imaginando as possível reações ao que digo. Meu Imaginário opera, vincula Simbólico e Real (S barrado e a). E meu inconsciente me surpreende, assumindo esse lugar que imagino dominar. Se a estrutura é em nó borromeano o Imaginário do analista ou do autor de um texto qualquer não se dissolve pura e simplesmente. É uma impossibilidade estrutural. Também posso usar o interpretante denominado Real, para indicar o “impossível de dizer” (resto irrepresentável, Ding) e imajar um lugar aonde se localize o signi cante “Coisa”, representamen do objeto Coisa, cujo Interpretante seja um gozo inominável. Mas não saio do plano da linguagem. Nem do plano da imagem. É impossível abordar a coisa em si de outra forma que não essa do plano linguageiro. E é nesse plano, da linguagem, e tendo como referência a categoria do Real, que se pode escrever e formalizar, operar com letras – a fórmula da fantasia, S barrado punção de a – para um sujeito alienado a um conjunto de signi cantes – Ideal do Outro – e em conjunção e disjunção a um conjunto de objetos – causa de desejo. Agora, desejo de quem? Desejo do Outro. Um fato de estrutura que faz com que cada um tenha que se haver com o descolamento – aqui sim – a separação entre o Ideal do Outro e a causa de desejo. E para tanto precisa haver (olha o mandamento do ideal do eu) a extração do objeto, a queda desse objeto vindo do Outro – e que é constituído pela alienação ao Ideal do Outro. Sutil diferença aqui, mas fundamental, pois quem produz o objeto que substitui a mãe interditada é o Outro. Ele quem indica, faz índice, do que pode ser “escolha de objeto”. A alienação e a separação não são necessariamente sucessivas, o tempo lógico se aplica. Nesse caso, eu me separo do objeto proscrito (supereu) e me alieno ao objeto prescrito (ideal do eu) pelo Outro por identi cação. Essa é uma hipótese lógica decorrente da operação de inverter o sentido da fórmula S barrado punção de a – ela passa a correr no sentido de a punção de S barrado. É admissível entender os processos de Separação e Alienação como 138


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produtores de um sujeito dividido entre a busca de sentido, pela constituição de um deslocamento metonímico de objetos em serie – primeiro o proscrito, depois o próprio eu (podes me perder?) e depois outros prescritos – investidos e a cristalização do ser por uma condensação metafórica de signi cantes que o aliena. Uma lógica do desfalque. Sou onde não penso, Alienação. Penso onde não sou (e todo pensar é pensar em algo, um objeto), Separação. Momento de constituição do fantasma. Um equilíbrio precário, um sujeito dividido entre o ser e o sentido. Ademais, é um sacrilégio conceber que quando ingresso em uma comunidade, a OAB, por exemplo, não estou me alienando ao Ideal do Outro? Negativa essa alienação? A alienação é necessariamente patológica? Quando me separo de uma pro ssão que me alienou durante quinze anos, e ingresso em uma escola de psicanálise... O m de analise me garante contra uma nova alienação ao passar a pertencer a um novo campo? Campo do Outro por sinal - Campo Freudiano, não campo do Pedro, nome deste que ora escreve. De todo modo, independente de todas essas hipóteses, o que me parece relevante é marcar o Édipo como um Interpretante - não como um Universal Antropológico – capaz de produzir identi cações e escolhas de objeto, em uma dialética a rmada por Lacan como a do ser e do ter. O Nome-do-Pai lacaniano pode ser pensado nesta hipótese de trabalho como o Interpretante de referência – e não como referente – para a garantia da e cácia simbólica, essa instância terceira que legisla, que determina, que memoriza, constitui e separa. Que faz norte ou bússola. E esta independe do pai, pode ser a instituição, pode ser a mãe, a tia, o primo, o Estado, a Lei. Em Função e Campo da Fala Lacan assim a rma: “A lei primordial é aquela que, ao regular a aliança, superpõe o reino da cultura ao da natureza entregue a lei do acasalamento; essa aliança é idêntica a uma ordem de linguagem e a interdição do incesto é apenas seu pivô subjetivo” 139


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Tratar o que e apenas o pivô subjetivo (con ito edipiano) como fato de estrutura ( O Nome do Pai) implica conceber a transferência e a direção do tratamento de modo muito distintos. O lugar do analista no Édipo freudiano necessariamente é localizado como sendo o destinatário das imagos e protótipos infantis transferidas. Ocupa o lugar do pai ou da mãe. E desse lugar “corrige” a neurose de transferência que se constitui. Educa. E, desse lugar interpreta, um analista hermeneuta - a essas representações de coisa inconscientes transferidas faz –se necessário acoplar representações de palavra. Delimitar, circunscrever e modi car a relação do eu ao objeto. O analista freudiano corre o risco de produzir in ação de sentido. Acolher a demanda do analisando em encontrar respostas, em fechar as lacunas, em ser. Um ser que ama e trabalha melhor. Bom. Antes de chegar ao umbigo do sonho – o núcleo impossível de interpretação, Freud recomenda esgotar todos os sentidos possíveis de exegese. Opera num espaço Ontológico da presença, revés da epistemologia lacaniana, marcada pela falta, um sujeito sem substancia e com um objeto que lhe causa por sua ausência. Uma Ontologia negativa, como a rmam Dunker e Safatle, conferindo um estatuto losó co para a Lógica da Castração. Lógica essa que decorre da estrutura pré-subjetiva da linguagem. Em Lacan, o que o analisante transfere, o que endereça ao analista – este situado como semblante de objeto a - me parece, é o conjunto indicado pela fórmula da fantasia em suas múltiplas possibilidades transfere sua hermenêutica particular e sua economia energética, a serem analisadas caso a caso. Nesta hipótese, a questão seria pensar o lugar do analista como sendo o do Interpretante, mas a doutrina diverge quanto á isso. Palice, se sustentando na fala expressa de Lacan citada anteriormente, sustenta que é a do Representamen, na medida em que este se coloca no lugar (stands for) do objeto. Por esse viés, o analista interpreta indicando quais os interpretantes do analisando se repetem na demanda. Visa os Interpretantes para atingir o objeto. 140


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A interpretação pelo equivoco, pela escansão, pela citação, pelo enigma, pela evocação, pelo ponto de falta, pelo ponto do sujeito, pela busca dos signi cantes insensatos que se repetem na demanda do analisante – modos propagados por Lacan em vários momentos distintos de seu ensino para desfazer os nós de signi cação, as cristalizações do ser e do sentido (as xações freudianas) – diferem frontalmente da interpretação hermenêutica freudiana. As cristalizações podem ser lidas como cristalizações ontológicas, o sujeito sofre do excesso de ser e da in ação de sentido. Com a fórmula da fantasia, parece possível decompor, pelo polo do sujeito, e de acordo com sua transferência, os conteúdos de seu inconsciente, e pelo polo do objeto, a pulsão que se manifesta pela repetição. Articular e desarticular hermenêutica e energética. Dissolver o Édipo em termos freudianos e ir avante. Atingir a pulsão, o que abre outro campo de questões, mas que se revela o caminho clinico mais e ciente para tratar do gozo – da economia pulsional do analisante mediante a desmontagem de sua fantasia – essa que articula seus objetos parciais dando-lhes estrutura signi cante. A fantasia como um Interpretante da pulsão. A posição epistemológica de cada um, posições muito diferentes em Freud e Lacan, determina o que se concebe enquanto conceito e o que se opera enquanto pratica. Por exemplo, o que mantém S1 e S2 articulados pode ser pensado em termos de um Interpretante, o Imaginário, mas também pode ser pensado como tendo a pulsão (alterando o registro, de Imaginário para o Real) como Interpretante. Um representante ideativo (S1, por exemplo), Simbólico, e um afetivo quantitativo (S2), Imaginário, pressupõem uma fonte pulsional (S3), Real. Essa hipótese levaria necessariamente a constituição de um S3. O sujeito acéfalo da pulsão (sou essa boca que quer comer, sou esse olhar que quer penetrar, sou isso) parece ser exemplo do Interpretante como Real. Agora, pulsão como substancia do vivo ou como demanda do Outro? São destinos clínicos diferentes da pulsão. Ou talvez aqui falte um S3 que possa articular estas aparentes antíteses. A pulsão como “eco no 141


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corpo do fato de que há um dizer” – Lacan, seminário 23 – e a pulsão freudiana – estimulo interno que pressiona constantemente por expressão e representação – necessariamente devem ser lidas como radicalmente distintas? Ou podem sofrer um trabalho de síntese por um S3? Jacques Allain Miller funcionado como Interpretante de Lacan e Freud em “Silet – a Pulsão entre o desejo e o gozo”. Não acho que S3 deva funcionar com o Interpretante “síntese” – síntese faz o eu. Os universais antropológicos freudianos (ou Interpretantes Absolutos no dizer de Pierce) – Édipo, masoquismo originário, pulsões como estímulos internos, para citar alguns – são colocados em questão por Lacan. A esse respeito é interessante notar a homologia entre o universal antropológico de Melanie Klein – excesso de pulsão de morte – e o universal antropológico de Miller – excesso de gozo. Lacan altera e decompõe constantemente tanto a energética quanto a hermenêutica freudiana, mas não as substitui por outros universais antropológicos ou Interpretantes Absolutos. A não ser que a linguagem seja considerada nesta categoria. A leitura que procura marcar as diferenças entre os dois – Freud e Lacan - é tão necessária quanto a leitura que procura marcar as semelhanças entre eles. Enriquece as possibilidades clinicas. Por outro lado Lacan tenta o tempo todo salvar varias hipóteses freudianas. E quando mais sustenta seu discurso de retorno a Freud parece cada vez mais se distanciar dele. O falo lacaniano não é o falo freudiano e entre os dois as diferenças parecem inconciliáveis (a esse respeito, Jacques Allain Miller na obra citada acima). Assim, se tomo Lacan como Interpretante de Freud produzo um tipo de questão. Se tomo Freud como Interpretante de Lacan tomo outro caminho de indagações. E se leio Lacan sem me remeter a Freud produzo mais outro viés. Se leio tanto um quanto outro tomando como referencia – Interpretantes os autores da loso a ou da ciência do tempo de cada um deles produzo mais um outro tipo de leitura. A que me parece mais interessante, ainda que a mais difícil. Mas se tomo os dois como Um – outro Interpretante 142


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produzo uma sutura tremendamente perigosa para meu percurso clinico e teórico, porque me coloco na posição de tender ao Absoluto, na posição de certeza, na posição do didata. Governado pelo meu Imaginário, deixo de transcrevê-los, de cita-los, de indaga-los, de critica-los, de analisar seus textos, de constatar sua inconsistência ou incompletude e passo a correr o risco de somente me citar ou a seus apóstolos. Fazer analise é de certa maneira tentar subverter a própria posição epistemológica. Desconstituir e suspender as certezas – torná-las meras hipóteses – diminuir o peso do que é. Ricardo Goldemberg a rma que fazer analise é fazer a experiência da falta de referência e da falta de referente. Da falta de referência, no polo do sujeito, de seu romance familiar, de suas imagos e protótipos. Da falta de referente, no polo do objeto, saber que, independente de suas fantasias e dos objetos a ela vinculados, a pulsão ordena seu corpo e seu psíquico de um modo ou de outro. Funciona como seu Interpretante. REFERÊNCIAS ACERO, J. J. Introduccion a La Filoso a Del Lenguage. 2001. Ediciones Catedra. BIRMAN, J. A linguagem na constituição da psicanálise: uma leitura do ensaio "Contribuição à concepção das afasias", de S. Freud. In: BIRMAN, J. Ensaios de teoria psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p. 3872. BIRMAN, J. Ensaios de Teoria Psicanalitica. Parte 1. Jorge Zahar. 1993. CHEMAMA, R. Diccionario del psicoanalisis. 1993. Amorrortu editores. LIZCANO, EMMANUEL. Metaforas que nos piensam. Sobre ciencia,democracia y otras poderosas cciones. 2006. Creative Commons. CAROPRESO, F. O nascimento da metapsicologia: representação e consciência na obra inicial de Freud. São Carlos: EDUFSCar; São Paulo: FAPESP, 2008a. CAROPRESO, F. Pensamento linguagem e conciênscia nos textos inicia143


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13. O INDIVÍDUO E O MOMENTO POLÍTICO ATUAL DO PAÍS: REFLEXÕES DA SUBMISSÃO À DEMOCRACIA 15

THE INDIVIDUAL AND THE CURRENT MOMENT OF THE COUNTRY: REFLECTIONS OF SUBMISSION TO DEMOCRACY Angélica Costa Zanini ⁶

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir acerca do momento político atual do país. Fazendo um entrelaçamento entre loso a e psicanálise, tomando como embasamento os lósofos Aristóteles, com sua obra “A Política” e Platão com seu livro “A República” e o psicanalista Winnicott, discorrendo em torno da democracia tendo como referência a “A família e o desenvolvimento individual”. O trabalho tem por nalidade convidar a pensar de forma crítica, para que cada um faça seu próprio rabisco como personagem durante a fala, mas também na vida e como psicoterapeutas em seus campos de atuações. Portanto, não tendo como nalidade ser conclusivo, mas despertar a capacidade criativa critica e de pensar. Palavras-chave: Política, Democracia, Winnicott, loso a e psicanálise. Abstract: e present work aims to discuss about the current political moment of the country. By doing a connection between philosophy and psychoanalysis, using as basis Aristotle, with his work “e Politics” and Plato with his book “e Republic” and the psychoanalyst Winnicott, discussing about democracy, as basis “e family and the individual development”.

15. Trabalho apresentado no IV Encontro Gaúcho sobre o Pensamento de W. Winnicott, sendo parte do trabalho de 3° ano do CEP de PA. 16. Especialista em Clínica Psicanalítica Ulbra, Mestre em Distúrbio da Comunicação Humana 16. UFSM e membro associado do CEP de PA. Angélica Costa Zanini, (55) 98133.3789, 147 Rabisco R. Psican

Porto Alegre

v.8

n.1

p. 147-152

Junho/2018


O INDIVÍDUO E O MOMENTO POLÍTICO ATUAL DO PAÍS: REFLEXÕES DA SUBMISSÃO À DEMOCRACIA

e work has intended to invite you to think critically, so that each one can make your own scribble as a character during the speech, but also in life, and as psychotherapists in our elds of actions. It not aims to be conclusive, but awaken the creative critical and the thinking capacity. Keywords: Political, Democracy, Winnicott, philosophy and psychoanalysis. Introdução Entre riscos e rabiscos, entre loso a e psicanálise, me arrisco a convidar cada um de vocês para ser personagem central da cena política atual do país em que vivemos. Dois antigos lósofos que marcaram sua época e que, atrevidos, já falavam sobre a política, Aristóteles e Platão, e completando o elenco trouxe um grande psicanalista, Winnicott. E eu, psicanalista em formação, vou transformar-me em roteirista. Desenvolvimento Primeiro ato: escrever sobre política, no momento atual do país, é uma tarefa complexa pela diversidade dos fatores social, histórico, losó co, cultural e psicanalítico, todos geradores dos mais diversos pontos de vista dependendo do foco escolhido. Surge na minha mente que POLÍTICA DERIVA DE POLIS = CIDADE. E a loso a se ocupou em organizar a sociedade, assim, as cidades tinham um funcionamento baseado na política para o bem estar do cidadão. Era uma vez um sonho não sonhado por Winnicott, mas sonhado por mim. Um fantasiado encontro entre Platão, Aristóteles e Winnicott que nunca ocorreu, e segundo estudiosos de Winnicott, esse nunca os estudou. Mas como sonho pode se a realização de um desejo, este encontro, no meu brincar, tornou-se possível. Convido vocês para fazermos uma viagem no túnel do tempo, para podermos compreender política a partir destes antigos lósofos: 148


Angélica Costa Zanini

Aristóteles em sua obra “A Política” e Platão com seu livro “A República”. Já Winnicott contribui neste cenário acerca da democracia no capitulo do seu livro “A família e o desenvolvimento individual”. Platão em “A República”, sua obra de maior destaque, a rma que a justiça é a felicidade e que o primeiro princípio da justiça é a solidariedade social, visando o bem-estar de todos. O segundo é o desprendimento, a capacidade de promover o bem comum. Além disso, Platão divide a sociedade em três classes, correspondentes às três partes da alma humana: 1- a classe dos artesãos e trabalhadores braçais, que representa a parte apetitiva da alma; 2- a classe dos guerreiros e guardiões, que corresponde a parte irracional; 3- a classe dos governantes, que seria a parte racional da alma. Ele concebia uma sociedade perfeita e entendia que nela haveria justiça, harmonia, conhecimento, ética, educação, loso a e política. Para o lósofo, o ideal humano era ser lósofo. Em virtude da ação da natureza e da manutenção da espécie, há a necessidade de um ser que manda e outro que obedece. Sendo que aqueles que possuem inteligência terão autoridade e poder de chefe enquanto aqueles que apenas têm força física obedecerão e servirão. Aristóteles faz sua famosa a rmação ”o ser humano é um animal político por natureza” e deve assim viver em sociedade. Ao mesmo tempo, aquele que por alguma razão, por instinto e não por inibição, deixa de participar de uma cidade é considerado como sendo um ser vil, censurado como sem-família, sem leis e sem lar, também considerado como quem tem sede de combate e não tem obediência. Pensando assim, para viver em sociedade é necessário alguém que manda, e outro que obedece e é regido por leis. Naturalmente, o Estado antecede a família e o indivíduo, tendo em vista que o todo antepõe à parte, o indivíduo por si não é su ciente, pois quem não consegue viver em sociedade e se basta, não participa do Estado. A natureza age para que os homens se associem. O homem, em 149


O INDIVÍDUO E O MOMENTO POLÍTICO ATUAL DO PAÍS: REFLEXÕES DA SUBMISSÃO À DEMOCRACIA

sua perfeição, é o mais excelente de todos os animais, mas o pior quando vive isolado, sem leis e sem preconceitos. Aristóteles divide em três classes: 1- os cidadãos, 2- os guerreiros e 3- os magistrados e os sacerdotes. Mulheres e escravos não tinham os mesmos direitos e deveres e compunham a classe dos governados. O m último do Estado é a virtude e a ética, é a doutrina moral individual enquanto que a política é a doutrina moral social. Para Aristóteles há três formas do estado: a monarquia, governo de um só, que possui como caráter a unidade e a sua degeneração é a tirania; a aristocracia, governo de poucos e cujo objetivo é a qualidade, e sua degeneração seria a oligarquia; e a democracia onde o governo é de muitos e seu objetivo é a liberdade, sendo sua degeneração a demagogia. A degeneração da tirania, da oligarquia e da demagogia, não é não é o que temos no Brasil hoje? Segundo ato Winnicott alerta para a importância de sua teoria, que entre um atrevimento e outro, resumo com a importância da mãe su cientemente boa, o pai como suporte, o ambiente facilitador tanto para ter/SER um indivíduo saudável como a interferência da saúde do indivíduo na sociedade e, consequentemente, na política. A política pode ser pensada e quem sabe sonhada como: um sistema social, em que o povo governa; um sistema social com um líder escolhido pelo povo; um sistema social cujo governo é escolhido pelo povo; e um sistema social em que o governo concede ao povo a liberdade de pensamento, expressão e empreendimento. Esta seria a visão de democracia. Para Winnicott uma sociedade madura, ou seja, de indivíduos maduros e, portanto sadios psiquicamente. Nesta concepção de democracia, como uma sociedade bem ajustada em relação aos membros 150


Angélica Costa Zanini

individualmente sadios, não é necessário que o conceito democrático possua um signi cado xo, mas considerando a cultura peculiar de cada sociedade. Para uma sociedade ser dita democrática, deve-se ter em sua estrutura, eleições de governantes com o voto livre e secreto. Essa estrutura deve oportunizar a deposição de governantes por voto secreto, bem como tolerar a ilogicidade da eleição e deposição de governantes. O que signi ca que as pessoas possam ter liberdade de expressar seus sentimentos e pensamentos. Pois no voto secreto, se o indivíduo for saudável toma a responsabilidade de sua ação para si. O voto representa o entrave entre o seu mundo interno e externo. Ele é a expressão de uma batalha do mundo interno, uma vez que a cena externa – os políticos, a sociedade – torna-se pessoal ao identi car-se com os partidos por suas questões e lutas. Ao mesmo tempo, percebe assim, a cena externa como sua própria luta interna. Winnicott já falava do período de eleições, onde o povo se prepara emocionalmente com suas questões para este processo. Uma eleição súbita resultaria em frustração. Portanto Winnicott simboliza dizendo que o mundo interno de cada um se transforma em uma arena política. Se o caráter secreto do voto é colocado em dúvida, o que resta para o indivíduo é expressar suas reações, por mais sadia que a pessoa possa ser. A eleição de uma pessoa implica que o eleitor acredite em si mesmo como pessoa, o que faz acreditar em quem vota. A pessoa eleita pode agir como uma pessoa inteira, sadia, contendo dentro de si o con ito, isso permite formar uma opinião acerca do externo. Apesar desta pessoa poder participar de um partido e poder manifestar uma tendência. Enquanto que a eleição de um partido ou tendência grupal é menos madura, pois não exige a con ança em uma pessoa. Este é um processo de um ser humano imaturo, pois não requer se responsabilizar como um indivíduo maduro, votando em outro individuo mas responsabilizando um grupo. Na medida em que, o voto em um partido ou tendência é grupal e não em uma pessoa, di culta a reação a mudanças. O que foi aceito não pode ser amado ou odiado, é adequado para indivíduos cujo 151


O INDIVÍDUO E O MOMENTO POLÍTICO ATUAL DO PAÍS: REFLEXÕES DA SUBMISSÃO À DEMOCRACIA

self é parcialmente desenvolvido. Este por sua vez, é considerado um sistema menos democrático. Conclusão As cortinas se fecham e sigo pensando que a situação política do país está presente no ambiente, invadindo o dia a dia de cada um de nós, como uma mãe intrusiva? Pode ser de diferentes formas, na TV, redes sociais, meios de comunicação em geral, nas rodas de conversa, na família, nos nossos consultórios... Ao estar, portanto, presente na vida de cada um, é também assunto da clínica, apesar de cada um possuir seu olhar, pensar, sentir e viver em relação a isso das mais diversas formas. Ao falar de mudanças de comportamento, de funcionamento da sociedade, fala-se de ambiente, o que de alguma maneira nos chega na clínica. Esse tipo de problemática, uma TRAGÉDIA onde cada um de vocês é personagem central, seja do sonho, seja da cena, está ligada a relação do interno e externo polarizado, nos impedindo transicionalizar, efetuar vínculos, de tal forma, que as realidades interna e externa, quem ao mesmo tempo, próximas e diferenciadas. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filoso a. São Paulo: Martins Fontes. 5 edição, 3 triagem, 2015. ARISTÓTELES. Política. Texto integral. São Paulo: Martin Claret. 2001. PLATÃO. A República. São Paulo. Martin Claret, 2002. WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. Martins Fontes. São Paulo. 2005. www.pucsp.br. O conceito de política em Aristóteles. Visto em 07-092016. Ás 17hs e 30.

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14. DO CONTROLE AO PODER SER: ASPECTOS DA DEFESA MANÍACA NA CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DA CRIANÇA ⁷

FROM CONTROL TO BEING: ASPECTS OF MANIC DEFENSE IN THE PSYCHIC CONSTITUTION OF THE CHILD Helena Barbosa de Carvalho ⁸ Maria Izabel Raso Tafuri

Resumo: Esse artigo discorre sobre a importância de discutir a noção Winnicottiana de ‘defesa maníaca’ e o autismo infantil precoce. Para tal, é apresentado um caso clínico que ilustra as implicações da defesa maníaca no funcionamento psíquico de uma criança em análise. São ressaltadas características de seu brincar e de suas relações objetais. Atenta-se para um funcionamento regido pela necessidade do controle de si, do outro e do ambiente, beirando a impossibilidade de um ser criativo e espontâneo. Trata-se de mecanismo de defesa utilizado pela criança que a possibilita existir perante o outro. Esse mecanismo de defesa explorado a partir das contribuições de Klein e Winnicott, perpassando-se também os conceitos de falso self, ansiedades depressivas e objetos internos. Procuramos, por meio do caso clínico apresentado, demonstrar a similaridade de características comportamentais ditas autísticas que, na verdade, são expressões de uma ‘defesa maníaca’ apresentada pela criança como uma forma de ser. Por meio do processo psicoterápico, a criança demonstra possibilidade de reconstituir ou constituir seu próprio self não necessitando mais de se utilizar desse mecanismo de defesa. O diagnóstico de autismo ca colocado à prova à medida em que a criança deixa de apresentar as características que evidenciavam a patologia. Palavras-chave: Defesa-maníaca, controle onipotente, falso-self, setting e Psicanálise de crianças. 17. Trabalho apresentado no XII Encontro Brasileiro sobre o Pensamento de D. W. Winnicott, Brasília, de 7 a 9 de setembro de 2017. 18. Helena Barbosa de Carvalho, graduada na Universidade de Brasília em 2015. Contato +55 (61) 98471.1501 helena.barbosac@gmail.com 153 Rabisco R. Psican

Porto Alegre

v.8

n.1

p. 153-163

Junho/2018


DO CONTROLE AO PODER SER: ASPECTOS DA DEFESA MANÍACA NA CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DA CRIANÇA

Abstract: is article discourses about the importance of discussing the Winnicottian notion of 'manic defense' and early infantile autism. erefore, the authors present a clinical case that illustrates the implications of Manic Defense in the psychic functioning of a child under analysis. Characteristics of his play and of his object relations are emphasized; besides, it’s given a stress on a functioning governed by the necessity of controlling himself, others and the environment, which hamper the possibility of creative and spontaneous being. We aim to demonstrate a similarity of behavioral characteristics socalled autistic that, in fact, are expressions of a "manic defense" presented by child as a way of being. rough the psychotherapeutic process, the child demonstrates the possibility of reconstituting or constituting his own self, being no longer necessary to use this defense mechanism. e diagnosis of autism is confronted as the child no longer presents the characteristics that once indicated autism. Keywords: Manic defense, Omnipotent control, false-self, setting and Psychoanalysis of children. A prática na clínica psicanalítica com crianças nos permite observar algumas similaridades entre as características comportamentais ditas autistas, descritas nos manuais diagnósticos e as características comportamentais de crianças que precisaram desenvolver mecanismos de defesa precoces, em especial a defesa maníaca, em uma idade em que o ego se encontrava ainda rudimentar e self não-integrado. Tais mecanismos de defesa também podem provocar alterações invasivas no desenvolvimento global da criança. Este artigo pretende, por meio da apresentação de um caso clínico, descrever a presença da defesa maníaca e suas consequências no curso do desenvolvimento, além de suas similaridades com os sintomas ditos autísticos. Propõem-se, portanto, questionamentos acerca da concepção de autismo presente nos manuais diagnósticos, além de apontar para a importância em considerar a singularidade da criança e o seu prognóstico (o devir) na construção de 154


Helena Barbosa de Carvalho • Maria Izabel Raso Tafuri

um diagnóstico. Joca é um menino de 8 anos, diagnosticado com Transtorno Global do Desenvolvimento (F84 pelo CID 10), aos 4 anos de idade. A mãe relata que o lho é muito agitado, resistente a mudanças e, em alguns momentos, parece estar 'fora do ar'. Além disso mostra-se agressivo quando contestado ou frustrado, dando 'pitis' regularmente. Quando nervoso ou muito feliz, faz estereotipias; agita e estica os braços, andando de um lado para o outro. A agressividade esteve presente desde a época em que Joca era um bebê. A mãe relata que Joca chorava, esperneava e mordia com frequência, principalmente quando em contato com outras pessoas. Teve di culdade em se adaptar a creches e apresentava o comportamento de bater a própria cabeça na parede. Segundo a mãe, Joca passou a se comunicar pela fala, efetivamente, apenas por volta de 5 anos de idade, não tendo o hábito, ainda hoje, de interagir com outras crianças, além da irmã. Em nossos primeiros encontros, Joca me olhava de um jeito mecânico e ao mesmo tempo evitava me olhar, aparentando estar ‘fora do ar’, assim como referido pela mãe. Ao entrar na sala, o menino ia direto aos brinquedos e, ao brincar, narrava a brincadeira e falava sobre os brinquedos ininterruptamente. Sua fala era alta, rápida e passava a sensação de euforia e ansiedade. Assim como as palavras, as brincadeiras também se engatam umas nas outras, de modo que eu me sentia agoniada, com uma sensação de descontinuidade. Apesar de Joca me convidar para brincar, eu não me sentia escutada, quando falava com ele ou intervia na brincadeira. Eu tentava aproveitar um hiato entre uma brincadeira e outra, entre uma fala e outra, porém era tudo muito rápido. Me sentia competindo com suas inúmeras falas, sem conseguir achar um espaço. Percebi que Joca sabia onde se posicionava cada brinquedo da sala, se incomodando com mudanças na posição dos brinquedos entre uma sessão e outra. Além disso, ele frequentemente me colocava na posição de aprendiz, me ensinando algo e dando as instruções diretivas do que eu deveria fazer ou como eu deveria brincar. 155


DO CONTROLE AO PODER SER: ASPECTOS DA DEFESA MANÍACA NA CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DA CRIANÇA

Com o passar das sessões, Joca conseguia permanecer mais tempo em uma mesma brincadeira, podendo desenvolvê-la e usufruí-la. Seu brincar passou a se caracterizar pela alternância entre duas brincadeiras: lutas violentas entre de robôs e o conserto de um carro de brinquedo. Nas lutas, por meio da fantasia, o menino controlava os bonecos e seus poderes, de forma a ditar todos os acontecimentos. Passava-me uma sensação esquisita de que ele realmente acreditava que ganhava o jogo por causa dos poderes, designados por ele, serem invencíveis. Ademais, se eu expressava sentimentos como medo, tristeza ou culpa, que eventualmente apareciam na brincadeira, Joca mudava imediatamente o curso da brincadeira, anulando a causa do sentimento e fazendo-o inexistente. Era um brincar pesaroso e não espontâneo, dando a sensação de cansaço e raiva, pelo insistente controle, da minha presença e da brincadeira em si. Essa forma insistente em conservar a mesmice é descrita nos manuais psiquiátricos como um sintoma do Espectro do Autismo. Entretanto, do ponto de vista psicanalítico pode ser pensada e analisada de outra forma, como se pode ver a seguir. A partir das características expressas no brincar de Joca e de seu modo insistente em me controlar e se defender das angustias de separação e das decepções, remarco a presença de um mecanismo de defesa, intitulado ‘defesa maníaca’. Esse mecanismo de defesa foi inicialmente apresentado por Melanie Klein (1934/1981) para descrever um funcionamento psíquico marcado fundamentalmente pelo sentimento de onipotência e pela necessidade de controle dos objetos, tanto internos, quanto externos. Um mecanismo de defesa presente desde o início da vida da criança. Segundo Klein (1934/1981), ao longo dos primeiros meses de vida, o bebê se posiciona de forma variada perante o que chamamos de externalidade, sua relação com os objetos internos e externos se modi ca segundo as angústias e sofrimentos decorrentes das relações objetais. A psicanalista (1934/1981) a rma que, inicialmente, a criança se relaciona com objetos parciais, não se diferencia do mundo, vivenciando onipotência e utilizando mecanismos de projeção e cisão para lidar com 156


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os desprazeres internos e externos, que, dada a organização rudimentar de seu ego, são sentidos como ataques de perseguidores intrusivos. Nessa época, o bebê estaria na posição esquizo-paranoide. Aos poucos, a criança passa a ver a mãe como objeto total, autônomo de si mesmo, ocupando uma nova posição em relação à externalidade, a posição depressiva. Segundo, Cintra e Figueiredo (2010), nessa nova posição, o ego ainda imaturo já é capaz de se preservar das ansiedades de aniquilamento e de se defender do sentimento de culpa e medo por imaginar ter feito danos ao objeto total. O ego passa, nesse momento, a mobilizar defesas maníacas, que têm por base a negação da realidade psíquica e da realidade interna, e servem preservar o ego dos desprazeres causados pelo medo dos objetos aterrorizadores e/ou para se contrapor à culpa de ter lesado os objetos (Cintra & Figueiredo, 2010). A defesa maníaca, portanto, se apresenta como um mecanismo próprio ao curso natural do desenvolvimento psíquico, porém, assim como supomos ter ocorrido com Joca, caso haja fracasso na elaboração da posição depressiva, Klein (1934/1981) a rma que tal mecanismo pode prevalecer sobre o desenvolvimento, de modo a causar uma possível psicose, marcada também por aspectos da posição anterior, caracterizada por relações parciais, cindidas e paranoides com a externalidade. Importante considerar que, à época, o autismo infantil precoce ainda não havia sido descrito. Mas o caso do “Pequeno Dick” apresentado por Klein em 1930, hoje considerado como um caso de autismo, foi descrito como uma primeira manifestação da esquizofrenia. A insistência de Dick em manter comportamentos repetitivos e mecânicos foi considerado por Klein como um mecanismo de defesa. Winnicott (1954/1978) trouxe uma valiosa contribuição para a noção Kleiniana de defesa maníaca. Mais preocupado com o ambiente como parte fundamental na constituição do psiquismo, o psicanalista propõe que, inicialmente, o bebê se encontra em dependência absoluta do ambiente, de modo a ser impossível designar algo que não a unidade mãe-bebê. Dessa forma, para que seja possível chegar a complexidade da 157


DO CONTROLE AO PODER SER: ASPECTOS DA DEFESA MANÍACA NA CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DA CRIANÇA

posição depressiva, a maternagem su cientemente boa proporciona ao bebê experiências de sentir-se integrado e pertencendo ao próprio corpo, além de fazer-lhe a apresentação do mundo de forma compreensiva, ao ritmo do bebê. (Winnicott, 1945/1978). A partir do encontro às necessidades do bebê e sua satisfação su cientemente boa, aponta Winnicott (1962/1983), a mãe permite à criança, uma breve experiência de onipotência. A sensação de criar o mundo, junto ao papel de ego auxiliar, desempenhado pela mãe, permite ao bebê se relacionar com seus objetos subjetivos e chegar, de vez em quando e, aos poucos, ao princípio da realidade. Ademais, nos é importante frisar o papel do ambiente em todo o processo de constituição psíquica, sendo esse determinante não só como possibilitador na entrada à posição depressiva, mas também na sua elaboração e estabelecimento, o que proporciona ao bebê ser capaz de reconhecer o outro como ser total preenchido de sentimentos e individualidades, assim como a si mesmo. O alcance e estabelecimento da posição depressiva possibilita uma relação possível e enriquecedora do indivíduo com a realidade. Winnicott (1954/1978) expõe que a mãe, ao sustentar e sobreviver à agressividade, que na verdade é o amor pulsional do bebê, permite-lhe elaborar experiências decorrentes dessa agressividade. Há, então, a integração da gura materna em uma unidade e o estabelecimento da distinção entre realidade interna e externa, fato e fantasia. Também é apontada a importância de a mãe receber o gesto de reparação do bebê, que agora preocupa-se perante seu amor pulsional. As repetidas vivências dessa maternagem su cientemente boa permitem o estabelecimento da posição depressiva. A criança desenvolve o sentimento de con abilidade no meio, a preocupação se torna tolerável e a criança passa a conseguir construir recordações de situações sentidas como boas, de forma que a experiência da mãe sustentando a situação se torna parte do self, e é assimilada ao ego (Winnicott, 1954/1978). Tais construções teóricas acerca do papel do ambiente no desenvolvimento emocional primitivo do indivíduo trazem também 158


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reverberações práticas, de modo a ampliar a noção de transferência no trabalho analítico, para além da interpretação. Winnicott (1954-5/1978) relata que a técnica interpretativa de Freud pressupunha pacientes com integração egóica, que atingiram um senso de unidade. Porém, ao tratar pacientes a quem não foram proporcionados o alcance desse estágio de integração, o analista exerce a função de sustentação (holding) e proporciona um setting que transmita con ança, seguindo na direção apontada pelo paciente e trazendo-lhe apenas o que ele dá conta. Nesse tipo de trabalho, o setting, ou seja, a soma de todos os detalhes do manejo, se torna mais importante que a interpretação, de modo que a ênfase do trabalho analítico passa de um fenômeno para outro. A partir daí o analista possibilita ao paciente a regressão à dependência, utilizando-se das próprias falhas e permitindo ao paciente reconhecê-las e sentir raiva por elas, sem retaliar. Na experiência psicoterápica com Joca, inicialmente não havia espaço para uma interação. Minhas falas eram sentidas como intrusivas, de modo que por alguns encontros, apenas me adaptei ao que Joca me propunha com sua brincadeira, sustentando a direção apontada pelo paciente. Aos poucos, Joca me dava mais espaço, de modo que eu, gradualmente agregava mais falas, posturas e destinos (diferentes de seus comandos) para meus bonecos. Comecei a introduzir meus sentimentos e desejos, de modo expressivo e corpóreo, e também os sentimentos que eu percebia que a criança sentia. Ele negava insistentemente a nomeação dos sentimentos, principalmente os negativos, mudava de jogo ou apresentava um semblante ‘fora do ar’. Aos poucos, Joca passou a atacar meus bonecos e a mim, como uma extensão da brincadeira anterior. Passou a me colocar na posição de bandido, me colocava na cadeia, ou me hipnotizava: ‘agora você vai fazer tudo o que eu mandar, do meu jeito’. Uma cena clínica que pode ilustrar o que Winnicott, (1955-6/1978) indica como a mudança da experiência de ruptura para a experiência de raiva, de modo que o paciente passa a fazer fracassar o analista, no lugar de se anular, se mostrando fora do ar. Assim, a partir da con abilidade proporcionada pelo setting, o paciente, na regressão, é capaz de trazer “o 159


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fator prejudicial externo para a área do seu controle onipotente e para a área controlada pelos mecanismos de projeção e introjeção” (Winnicott,1963/1983, pp. 233). Eu, por minha vez, repetidamente, vivenciava os ataques e me submetia às ordens dele, sem retaliar, até que o menino interrompesse a brincadeira. Eu sobrevivia à agressividade e o setting permanecia ali, por meio da minha presença e da continuidade das sessões dentro de um espaço tempo. Minha intenção era ser a mãe su cientemente boa que é atacada mas permanece lá. Com o passar do tempo, Joca começou a se manifestar de forma mais espontânea comigo. Piadas e ironias passaram a fazer parte da relação comigo, as brincadeiras se diversi cam e Joca começa a permitir a presença de sensações como tristeza, culpa e raiva, no brincar e na relação comigo. Fora do consultório, os pais indicaram que Joca estava muito diferente, mais solto. Relataram que Joca passara a buscar interagir com outras crianças, além da diminuição da agitação e da euforia. Os momentos de estar fora do ar diminuíram signi cativamente. Winnicott (1955-6/ 1978) propõe que a adaptação su cientemente boa do analista ao paciente vai sendo gradualmente percebida pelo paciente como “algo que faz nascer a esperança de que o self verdadeiro possa nalmente ser capaz de assumir os riscos que o início da experiência de viver implica” (pp. 486). Assim, suponho que as defesas maníacas de Joca se tornaram cada vez menos necessárias, de modo que o seu self verdadeiro pudesse emergir e seu ego retomasse o desenvolvimento. Considerações nais Os manuais diagnósticos utilizados atualmente, O DSM V e o CID-10 classi cam o autismo em Transtorno do espectro autista e Transtorno Global do desenvolvimento, respectivamente. Ambos se baseiam em dé cits ou perturbações características na comunicação e interação social e em comportamentos restritos, focalizados e repetitivos. Tafuri, (2003) mostra que a designação de autismo como uma 160


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síndrome, feita por Kanner em 1943, in uencia a psiquiatria atual e seus consequentes manuais diagnósticos. Ao referir-se ao termo transtorno, há a concepção do autismo como uma incapacidade inata, um desenvolvimento anormal do sujeito, caracterizado por um dé cit irreversível. Essa concepção do autismo e seu consequente tratamento, além de se mostrar “fruto de um modelo psiquiátrico já ultrapassado pelas leis que regem a genética moderna e os conhecimentos recentes da neurobiologia a respeito da plasticidade cerebral” (Tafuri, 2003, pp 14), di culta em si o tratamento da criança dita autista, dada a pressuposição da impossibilidade de desenvolvimento como inerente à criança, tida assim por incurável em seu quadro imutável. Winnicott, porém, já em 1966, situa o autismo no desenvolvimento emocional primitivo, entre o potencial herdado do bebê e a provisão ambiental satisfatória, de modo que o autismo, como doença, é tido como inexistente para o autor. “Para cada caso de autismo que encontrei na minha prática, encontrei centenas de casos em que havia uma tendência que foi compensada, mas que poderia ter produzido o quadro autista” (Winnicott, 1966/1997, pp.180). Ap ont a-s e, p or t anto, p ara uma concep ç ão de aut ismo diametralmente oposta às concepções dos manuais diagnósticos atuais, quando, ao invés de separar o autismo do desenvolvimento dito normal, o autor (1966/1997) a rma-o como um termo clínico referente aos extremos menos comuns de um fenômeno universal. O caso de Joca nos indica que a partir da vivência psicoterápica, o controle, que antes regia seu funcionamento psíquico e relações objetais, vai dando espaço a um modo de ser menos cindido e mais espontâneo indicando modi cações em aspectos essenciais de seu funcionamento psíquico e comportamento. A vivência do processo psicoterápico permitiu à criança começar a se desfazer das defesas e, assim deixar de apresentar algumas características que antes evidenciaram o autismo. Portanto, tal modi cação num quadro dito autista, junto às contribuições de Winnicott, contradizem a concepção de autismo 161


DO CONTROLE AO PODER SER: ASPECTOS DA DEFESA MANÍACA NA CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DA CRIANÇA

Portanto, tal modi cação num quadro dito autista, junto às contribuições de Winnicott, contradizem a concepção de autismo presente nos manuais diagnósticos e apontam para a necessidade de um pensar crítico sobre a maneira como o autismo vem sendo concebido/diagnosticado, além de suas consequências em termos clínicos e sociais. REFERÊNCIAS American Psychiatric Association. (2014). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (5ª ed.). Porto alegre : Artmed Cintra, E. M. U. & Figueiredo, L. C. (2010). Melanie Klein: estilo e pensamento. São Paulo: Escuta. KLEIN, M. (1934/1981). Uma contribuição à psicogênese dos estados maníacos depressivos. In M. Klein, Contribuições à Psicanálise (pp. 355389). São Paulo: Mestre Jou. Organização Mundial da Saúde. (1997). CID-10 Classi cação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. São Paulo: EDUSP. TAFURI, M. I. (2003). Dos sons à palavra: Explorações sobre o tratamento psicanalítico da criança autista. Brasília: ABRAFIPP. WINNICOTT, D. W. (1945/1978). “Desenvolvimento emocional primitivo”, In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (J. Russo, trad., pp. 269-286) Rio de Janeiro: Francisco Alves. WINNICOTT, D. W. (1954/1978). “A posição depressiva no desenvolvimento emocional normal”, In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (J. Russo, trad., pp.437- 458) Rio de Janeiro: Francisco Alves. WINNIC OT T, D. W. (1954-5/1978). “Asp e c tos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting psicanalítico”, In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas (J. Russo, trad., pp.459- 482) Rio de Janeiro: Francisco Alves. WINNICOTT, D. W. (1955-6/1978). “Variedades clínicas da transferência”, In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: obras 162


Helena Barbosa de Carvalho • Maria Izabel Raso Tafuri

escolhidas (J. Russo, trad., pp. 483-490) Rio de Janeiro: Francisco Alves. WINNICOTT, D. W. (1962/1983). “A integração do ego no desenvolvimento da criança”, In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. Ortiz, trad., pp. 55-61). Porto Alegre: Artmed. WINNICOTT, D. W. (1963/1983). “Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica”, In D. W. Winnicott, O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (I. Ortiz, trad., pp.225- 236). Porto Alegre: Artmed. WINNICOTT, D. W. (1966/1997). “Autismo”, In D. W. Winnicott, Pensando sobre crianças (M. Veronese, trad., pp. 179-192). Porto Alegre: Artes Médicas.

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15. UM TÊNUE LIMIAR... ⁹ A THIN THRESHOLD... Graciella Tomé ⁰

Resumo Este artigo convida ao exercício clínico e ao pensar psicanalítico. Sob a luz de escutas sensíveis, com olhares amorosos e empáticos de treinados analistas, existe todo um vasto conteúdo para ser avaliado e tratado na trama mental de um sujeito, na desorganização mental do ser humano. Partindo do pressuposto de que o limiar entre a saúde mental e a doença psíquica no homem é muito tênue. Utilizou-se para tal compreensão buscar a relação existente entre experiências clínicas e o pensamento de Donald W. Winnicott que nos brindou com o entendimento do caótico. Palavras-chave: limiar, tênue, caótico, morte fria, existência. Abstract is article is an invitation to a clinical exercise and a psychoanalytic thinking. Under the light of sensitive listening, with loving and empathic looks of quali ed analysts, there is a vast content to be evaluated and treated in the mental plot of a person as in the mental disorganization of the human being. Based on the assumption that the threshold between mental health and psychic illness in man is very tenuous, it was used for such an understanding to seek the relation between clinical experiences and the thought of Donald W. Winnicott that he offered us with the understanding of the chaotic. Keywords: threshold, tenuous, chaotic, cold death, existence. 19. Este artigo é uma atualização do Trabalho de Conclusão do Curso de Formação em Psicoterapia de Adultos e Transtornos de Adição do Instituto Cyro Martins, Porto Alegre, 2005. Tema retomado em setembro de 2017 para apresentação do XII Encontro Brasileiro sobre o Pensamento de Donald W. Winnicott. 20. Graciella Leus Tomé, Psicóloga Clínica, Psicóloga do Corpo Clínico do Instituto Cyro Martins; Membro dos Seminários Winnicott Porto Alegre. Rua Francisco Petuco, 45 ap 1303b, 90520-620 – Porto Alegre. (51) 99807.6799 graciellatome@yahoo.com.br 165 Rabisco R. Psican

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O caso de qualquer indivíduo, no início do processo de seu desenvolvimento emocional, há três coisas a serem vistas: em um extremo há a hereditariedade; no outro extremo há o ambiente que apóia ou falha e traumatiza e no meio está o indivíduo vivendo, se defendendo e crescendo.” (Winnicott, 1959) Uma cena em especial, no inicio de minhas experiências na clínica analítica, muito me chocou e deu origem a essa gama de pensamentos. Primeiro experienciamos na vida e com isso aprendemos. Trago sempre comigo essa vivência, querendo aprender assim o quanto pode ser singular o viver criativo de um ser humano se assim lhe for permitido, ou não. O historiador e lósofo escocês David Hume (século XVIII) escreveu: “somos seres que vivemos da experiência”. Como pensadores importantes de séculos anteriores e posteriores e criadores de nossas ciências seguem ensinando. Descrevo a cena em questão, que me re ro acima: internação de uma jovem senhora, mãe, casada, pro ssão estável, olhar vago, entristecida, deprimida, em surto. Uma mulher tão parecida a muitas de nós. Foi então que a ideia do quão tênue é o limiar existente no sofrer psíquico de um ser humano se instalou dentro de mim. O quão tênue foi este limiar entre sanidade e adoecimento, de insuportável sofrimento, que fez “quebrar” (sic) essa jovem senhora? E pensei mais, no poder de ferramentas inconscientes do ego para evitar o enlouquecimento, exercendo frágil proteção nesta mulher pelo resto de sua vida. Tênue esta linha divisória entre sombra e aparência, fugaz este limiar entre loucura e sanidade, luz e escuridão. A construção psíquica do con ar, pertencer, desejar existir e necessitar existir para alguém pode passar a ser algo inalcançável em um ego fragilizado. 166


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Sei ser impossível determinar uma única verdade para o comportamento de uma pessoa. O comportamento humano é interminavelmente dinâmico, criativo e esperançoso, ou não. Por isso... Um tênue limiar... Desde os primórdios experimentamos e somos experimentados na ideia. Crianças já brincam de ter crianças, já brincamos com a possibilidade de nos perpetuarmos como espécie – ter um lho. A gestação lembra que um corpo está tomando para si outro corpo para incubar. Mãe e bebê estão sendo gestados e o ambiente do lar vai se moldando para mais um cômodo, o quarto do bebê. Casa e família se criam e se transformam nesta espera. O parto nos entrega um bebê e, o nascimento dessa criança entrega à vida novos pais, que precisarão aprender a doar de si para a formação de outra pessoa. Recordo das palavras de Outeiral nos lembrando que para existir um bebê tem que existir uma mãe. Bem, eu sugiro que vale a pena ousar. Acredito como ensinou Winnicott, que os pais su cientemente bons validam, nomeiam seus lhos e os autorizam a vir a ser. Tudo é único no inicio da vida a partir destes primeiros vínculos fundantes das representações psíquicas. É o poder da mãe ao “ser a mãe su cientemente boa” (Winnicott, 1952) sendo exercido em sua essência. Dentro do útero, com o lho nos braços, em casa e na família. Onde princípios básicos do amar e ser amado se completam, se sobrepõe, se buscam e se fundem na construção de cada sujeito. Mãe é querer se ofertar na construção da obra prima que é seu lho, colorindo com um olhar atencioso, com a pincelada de um toque cuidadoso; e atenção, que não é só cuidar o bebê, mas que é amar seu lho. A voz meiga dos pais permite ao infans as primeiras traduções psíquicas. O holding possibilita o desenvolvimento emocional da criança, criando e possibilitando novos tons as experiências vivenciadas, 167


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nem sabidas e ainda não nomeadas. Ser mãe valida condições internas de ir reordenando sua própria história de vida, de modo que sua criança tenha sua identidade assegurada através de sua origem e possa assumir suas prerrogativas de sujeito. E dói saber que quando esses primeiros contatos forem insu cientes, frios ou distantes esta obra prima familiar pode vir a ser sem cor, sem forma, esvaziada, fria e sem vida. E os bebês? Os bebes, por sua vez, nos falam sobre tudo! Bebês xam olhares em seus cuidadores. Com os olhos, com gritinhos e choros sinalizam ao ambiente o que lhes falta, suas necessidades. Seus movimentos corporais buscam intensamente aproximação a outros corpos, o próprio corpo do bebê toma o lugar da sua linguagem. Toda experiência vivida pelo bebê nos primeiros anos de vida, se traumática for, pode vir a provocar uma falha irreversível no processo de simbolização e desenvolvimento psíquico, expressando-se futuramente através de sintomas e graves patologias. Existem pacientes que necessitam viver na terapia, mais que interpretações, uma boa vivência de cuidado, quase um colo, seguido da possibilidade de ser nomeada a experiência, sendo a vivencia com o terapeuta uma espécie de autorização para viver e desenvolver-se. Nas primeiras entrevistas mal conseguem pronunciar uma palavra. Bem sabemos o quanto é necessário de con ança na dupla terapêutica para que o retorno do recalcado possa ser experimentado. Estes pacientes não transparecem nem sequer um o de esperança e con ança. Muitos deles, quando a con ança se instaura, curvam-se lembrando a posição fetal. Choram um choro de dor, de intenso sofrimento, aquela dor sem nome. Outeiral comentava a propósito disso que não é o ambiente que leva a regressão, só facilita. Os pacientes traumatizados usam da linguagem corporal de dor da criança. Muitos necessitam uma aproximação física, chegam a aproximar-se 168


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da terapeuta numa tentativa de car bem pertinho, - como se agarradinho a mamãe num último suspiro-, diria eu. Experimentam uma tamanha angústia que necessitam sentar-se muito próximo da terapeuta, muitas vezes enlaçar suas mãos nas dela, segurando-as e sendo sustentados. Levando a terapeuta sentir e viver na própria pele seus temores. Seu choro mudo e trêmulo, sem nada pronunciar. Fazendo a terapeuta sentir na própria pele seu medo de ser aniquilada. Tais pacientes respondem na terapia da melhor forma que podem ao sentimento de “aniquilamento” e caos. Ocupam o espaço do campo analítico depositando seus medos e angústias, de forma literal e concreta, nas mãos da analista. Caroline Eliacheff (1995, p.144) no livro “Corpos que Gritam – a psicanálise com bebês” a rma que “muito precocemente bebês psiquicamente também adoecem”. Winnicott (1983, p. 56) diz, “é bom lembrar que o início é um somatório de inícios”. Pensando assim traumas mais graves se perpetuam quanto menor forem os bebês pelo acúmulo do apercebido. A mãe que puder perceber se ofertará objetivamente como parapeito de seu lho. O psicanalista Luiz Marcirio Machado escreveu: “(...) na relação intersubjetiva analista-analisando, se estabelece um espaço potencial que poderá ser ocupado” e segue, “pois, estas relações recriam aspectos da história do paciente, com seus modelos de relações objetais, fantasias inconscientes e con itos intrapsíquicos.” (MACHADO, 2008, p.68) Nós terapeutas, nos entregamos a nossa pratica clinica, com a teoria e a técnica psicanalítica, ouvindo com atenção utuante nossos pacientes. Nossos pacientes, muitas vezes, também trazem seus silêncios aos quais dedicamos toda nossa escuta e, com isso, nos proporcionam o aprendizado de conviver com nossos próprios silêncios. Aprendemos a suportar seus vazios e admitir nada saber sobre eles. Assim, com empatia podemos ajudar nossos pacientes a reconstruir, ou mesmo construir, sua própria história e dela apropriar-se, podendo pôr em palavras suas dores. Percebe-se nesses casos uma di culdade de conectar-se com a 169


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emoção, mesmo quando relatam uma história sofrida. Re ro-me a ser sem emoção, pois entendo que uma vivência de dor tão primitiva e ainda não nomeada não poderá ser sentida. Se possível, chamaria de gelada emoção. Pacientes que são afastados precocemente do contato com a mãe ao nascer por problemas físicos, do bebe ou da mãe, que tem uma vivencia de quase morte no nascimento, que não encontram no olhar da mãe uma possibilidade de conexão, do vir a ser, ou encontram-se com uma mãe fria e desvitalizada, que oferecem um colo de pedra, cam estancados num limiar psíquico fragilizado e instala-se uma falha no desenvolvimento emocional primitivo. Ficam impossibilitados de sonhar um colo de mãe. Um grande paradoxo instalado. Um bebê só pode existir na presença do olhar de um outro olhar. Estes bebês não podem criar o seio, primeira experiência de onipotência, não lhes foram ofertadas a segurança do ambiente mãe quando nasceram. Winnicott (1974, p.72) relaciona o desamparo vivido pelo bebê, quando ainda totalmente dependente da mãe, ao “medo do colapso”, “A rmo que o medo clínico do colapso é o medo de um colapso que já foi experimentado”. E lança a pergunta: “porque o paciente continua atormentado por isso que faz parte do seu passado? A resposta é que a experiência original da agonia primitiva, não pode pertencer ao tempo passado, a menos que o ego primeiramente adquira suas próprias experiências no tempo presente.” Diz ainda: “existem momentos em que é necessário dizer ao paciente que o colapso, o medo de sua vida ser destruída, já se deu”. Ajudar a suportar a perda, que se reativa no tempo presente, e assinalar que essa é uma dor do passado é a missão do terapeuta nesses casos. As vivencias de desamor são uma constante pois revivem o desinvestimento inicial da mãe ambiente. Qualquer desinvestimento psíquico de um objeto é destruidor e qualquer vivencia de separação abala a organização egóica, sendo levados a temer a solidão e o medo do 170


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colapso que viveu frente a experiência de morte gelada. Nessas situações de desinvestimento, separação e frustração, novamente o ambiente falha, novamente o sentimento de ser traído pela mãe ambiente. Penso que ao nos permitirmos sentir o frio do investimento, o silêncio do morgue, o medo também de nos sentirmos só e abandonados, ao mergulharmos junto com nossos pacientes no seu resgate emocional, com esta postura pro ssional e acolhedora, sim, estaremos emprestando nossa mente a eles, para que possam eles próprios “vir a ser”. Para Winnicott (1983, p.130) “a criança precisa ser capaz de experimentar os vários tipos de relações objetais num mesmo dia, ou talvez ao mesmo tempo...”, e segue “são os padrões familiares da criança, mais do que qualquer outra coisa, que a abastecem daquelas recordações do passado, de tal modo que, ao descobrir o mundo, a criança sempre realiza uma viagem de volta – e essa viagem faz sentido para ela”. Conhecemos a psicodinâmica do ser preconizando o fazer. Muitas vezes nossos pacientes nos entregam seu fazer, numa mistura tola e infantil de esconder o que, para ele próprio, seu ser lhe representa. Muitas vezes equivocados, por nunca lhe ter sido acessível se conhecer, se olhar com seus próprios olhos iluminados pelo amor de seus criadores. Sem poder dizer eu sou chegam a nós e dizem eu z. Sinto ser fundamental olharmos nossos pacientes, um dia bebês, de uma forma ampla, sob todos os vértices possíveis de sua história incluindo as vicissitudes que ocorrem na dinâmica familiar. Admitamos: como dói um vínculo que se rompe, como é insuportável a dor de amor! Quanto sofrimento emocional carrega um ser humano, que se vê só, em um mundo onde ele próprio não se sente existir. Silencia em seu imaginário infantil a con ança, o sentimento de pertencer a vida de alguém e de uma família, de ser reconhecido no olhar de reconhecimento do ser amado. São vazios buscando o reconhecimento no vazio. Igual a um navio fantasma, a deriva. No texto “Assassinato da Alma” de Leonard Shelgond (1979, p.9), que 171


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prioriza o tema da negligência na infância, descreve que o descuido e negligência para com as crianças e abusos nos primórdios da vida do sujeito são sentidos como “uma invasão psíquica real” e a rma,”assassinato da alma signi ca ser privado de identidade”. Uma alma assassinada não carrega um o de esperança, não pode acreditar em si e nem em possíveis conquistas. Então aí vemos o destino da morte do vir a ser... Freud disse um dia que “um homem que foi o favorito da mãe conserva durante toda a vida um sentimento de conquistador”. Este homem de Freud sim, ele pode crescer, desenvolver sua personalidade, amadurecer a realidade interna e ao apreender da realidade externa componentes su cientemente bons, é capaz de provocar transformações peculiares em sua vida, ter um viver criativo. Não sente culpa por buscar ser feliz, sonha e não se assusta ao se permitir pensar seus próprios pensamentos. Vemos aí o destino do vir a ser criativo... Então para este sujeito, com sentimentos de conquistador como descreve Freud, ca a pergunta: o que foi que deu certo? Fica minha resposta: primeiro ser desejado e amado por sua mãe, em um ambiente bom, que frustrou no seu tempo, mas soube lhe dar espaço para experienciar e brincar com seus castelos e reis e destruí-los com seus monstros sempre que necessário. Ser criativo em vida. Tolerando bem a idéia de que somos seres incompletos, dependentes e sedentos de amor. Um homem que aprendeu a ter, a perder, a receber, a doar, a se doar, a suportar, conserva a segurança fazendo parte de algo maior, acredita no amor e que o amor é uma emoção em que se pode con ar. ...carrego seu coração comigo eu o carrego no meu coração, E.E.Cumings. Carrego no meu coração o sentimento que ao nos envolvermos amorosamente com nossa própria existência, com nossos pacientes, assim como com a escrita criativa de um artigo, provocamos em nós 172


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mesmos muitos dramas já experimentados, amores vivenciados e medos de entregar “nosso coração”. Remete-nos ao nosso tênue limiar. Atividade criativa é forma própria de nos autorizarmos a sermos sujeitos de nosso próprio caminho. Estrada com bifurcações que de um lado nos conclama a permanecermos ainda pequenos, dependentes e inseguros, mas do outro lado bifurcado, pode estar a possibilidade de escrever nosso próprio script, criarmos o próprio saber, no aconchego de nosso próprio colo. REFERÊNCIAS ABRAM, Jan (2000). A Linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter. ELIACHEFF, Caroline (1995). Corpos que Gritam. Rio de Janeiro: Ática. FREUD, S. (1995). Projeto para uma Psicologia. In _______. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago. MACHADO, L. M. (2008). A intersubjetivadade no processo analítico. Psicanálise de crianças: escutas possíveis. Porto Alegre: Carta. SHENGOLD, Leonard (1979). Assassinato da Alma. Journal of American Psychoanalytical Association. V.27 n.3 WINNICOTT, D. W. (1975). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago. WINNICOTT, D. W. (1983). O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. WINNICOTT, D. W. (1974). Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.

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16. TIPOS DE INTERAÇÃO E PODER TYPES OF INTERACTION AND POWER Marcelo Armony, DSc.

Resumo: Este artigo visa descrever e tecer articulações entre dois tipos de interação relacionados a proibições e entrada na cultura, que devem levar a desenvolvimentos distintos no que concerne à lida com a questão do poder. Toma-se, como base, elementos teóricos da obra de Freud, de Winnicott e de Leloup. O primeiro tipo de interação, relacionado a um poder castrador, aumentaria a possibilidade de que as restrições relacionadas à entrada na cultura sejam imbuídas prioritariamente de um sentido de proibição, de um sentido negativo; pode-se dizer que a expressão “não pode” (em Leloup) seja representativa deste tipo de interação. Enquanto o segundo tipo, relacionado a um poder estruturador por levar a um empoderamento, aumentaria a possibilidade de que as restrições relacionadas à entrada na cultura sejam imbuídas de um sentido positivo; pode-se dizer que a expressão pode não (em Leloup) seja representativa deste tipo de interação. Palavras-chave: mãe su cientemente boa; espaço potencial; uso do objeto; poder; papel do pai. Abstract: is paper intents to describe and articulates two types of interaction related to prohibitions and the entry on culture that should lead to distinct developments on the subject of power issues. For that, Freud’s’ theory, Winnicott’s theory, and Leloup’s theory are used. e rst type of interaction, related to a castrating power, would increase the possibility

21. Artigo inédito. 22. Psicólogo. Doutor em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, HCTE-COPPE/IQ/IM, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de Psicologia da Faculdade de Educação Tecnológica do Estado do Rio de Janeiro FAETERJ-Petrópolis/FAETEC. Endereço: Av. Getúlio Vargas, 335 - Quitandinha, Petrópolis - RJ, 25651-075. Telefone:(24) 2235-1079. E-mail: armony.marcelo@gmail.com 175 Rabisco R. Psican

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that restrictions related to entry on culture, would carry a prohibition sense, a negative sense. It may be said (on Leloup), that the expression “you can’t” is representative of this type of interaction. e second type of interaction, related to a structuring power, that leads to empowerment, would increase the possibility that restrictions related to entry on culture, would carry a positive sense. It may be said (on Leloup), that the expression “you can don’t do” is representative of this type of interaction. Keywords: good enough mother; potential space; use of object; power; father’s role. Neste artigo são enfocados dois tipos de interação concernentes a proibições e entrada na cultura e suas possíveis in uências no desenvolvimento individual relacionadas à questão do poder. Discute-se como estes tipos de interação podem ser limitantes ou, de outro lado, empoderadoras. Para tal, são descritos, de forma breve, algumas elaborações encontradas em Freud, em Winnicott e em Leloup, e tecidas articulações entre estas elaborações. Entrar na cultura implica necessariamente o abandono de certas atitudes e comportamentos e a aquisição de outros, conforme a criança se desenvolve. Neste processo, os papéis maternal e paternal desempenham funções determinantes para o modo como a criança se desenvolverá na dimensão da cultura. Um aspecto presente nas interações sociais é a forma como o poder é exercido e circula entre os diferentes atores envolvidos. Deste modo, justi ca-se a importância de se re etir sobre possíveis tipos de interação relacionados aos papéis parentais, no que concerne à entrada na cultura, às restrições e à questão do poder. Em Freud (2011), tem-se a identi cação com o Superego paterno (social) como resolução para o Complexo de Édipo; ao longo deste processo inclui-se também o Complexo de Castração. A criança se adequa à cultura a partir de proibições, muitas vezes permeadas por uma aura de medo. O protótipo destas várias proibições seria a proibição do incesto. Desta forma, o poder exercido e perpetuado seria, 176


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frequentemente, um poder castrador, que pode ser limitador e regulado pelo sentimento de culpa. Em Winnicott, a percepção da criança em relação à sua mãe enquanto um objeto (não-eu), a desilusão e a quebra da relação simbiótica estão relacionados às falhas da mãe su cientemente boa. As falhas da mãe, e consequentes frustrações vividas pela criança, favorecem a individualização da criança. Gradativamente sua percepção apresentará menor conteúdo projetivo, e a possibilidade e probabilidade de uso do objeto aumentará (WINNICOTT, 1975). Pode-se dizer que este caminho desde a simbiose inicial até o uso do objeto, é um processo de entrada e desenvolvimento na cultura. É importante ressaltar, também, a possibilidade de - neste processo, que inclui a vivência de uma mãe totalmente devotada, bem como de uma mãe que frustra, su cientemente boa – haver, gradativamente, a identi cação do indivíduo com o “su cientemente bom”. Deste modo, tem-se, teoricamente falando, de um lado, a entrada na cultura através de um processo que culmina na identi cação com uma instância censora e punitiva, qual seja, o Superego; e de outro, através de um processo no qual, pode-se dizer, o “su cientemente bom” desempenharia um papel fundamental em função das interações com a “mãe su cientemente boa”. Sabe-se, em Winnicott, que o Espaço Potencial e a criatividade se desenvolvem pela interação mãe su cientemente boa – bebê, mas ressalta-se também a possibilidade da identi cação da criança com o su cientemente bom e, portanto, com a não-perfeição. No primeiro caso, da identi cação com o Superego, trata-se de um poder castrador que, se por um lado pode vir a adequar o indivíduo às normas sociais, por outro pode tolher-lhe a criatividade e a espontaneidade e gerar sofrimento psíquico relacionado a sentimentos de culpa, por não se conseguir atingir o ideal [de ego] (FREUD, 2011), ou ser perfeito. No segundo caso, pode-se pensar no desenvolvimento de um poder criativo estruturador, desobrigado da necessidade de cumprir um ideal 177


TIPOS DE INTERAÇÃO E PODER

de perfeição; e em uma identi cação com o su cientemente bom. Até o momento dissertou-se aqui sobre o papel paterno, em Freud, e sobre o papel materno, em Winnicott, no que diz respeito à entrada na cultura; articulando-os com a questão do poder. Tratar-se-á, a seguir, de elaborações de Leloup (2001) sobre o papel paterno sobre este mesmo assunto: “Quando falo de pai, falo de uma palavra que nos estrutrura. Todos nós temos necessidade de ternura, de sermos envolvidos pela mãe e, ao mesmo tempo, temos necessidade de estrutura, da palavra que nos informa” (LELOUP, 2001, p. 109) Leloup, ao dissertar sobre a coluna vertebral do corpo humano, em “O Corpo e seus Símbolos” (2001), defendeu, a respeito do papel do pai, que a imposição de uma lei sem sentido teria como resultado o desenvolvimento de uma estrutura frágil. Este autor correlaciona o papel paterno com a palavra e os meios que estruturam o indivíduo. No entanto, diz o autor, se a palavra é um “não pode” sem sentido, o resultado é uma estrutura frágil: O papel do pai é de dar o sentido à lei. E a lei não diz a alguém ‘você deve’, mas ‘você pode’. Ser pai é ser capaz de dizer ‘você pode’ e de dar ao lho os meios de poder (LELOUP, 2001, p. 109). Em Leloup, o verdadeiramente papel estruturante do pai, portanto, no que concerne a restrições, está ligado à palavra “pode não”, no sentido de você pode, você é capaz de não fazer determinadas coisas, de não ter certos comportamentos, para viver na cultura, para viver em sociedade: “Você pode não mentir, você pode não roubar. É ‘você pode’, não é ‘você deve’ (LELOUP, 2001, p. 109)”. Então, esta seria, a princípio, uma interação que empodera, e não que tolhe. Não castradora, mas sim empoderadora. É possível aqui traçar um paralelo entre Winnicott e Leloup. O primeiro, postulou que uma mãe devotada no início, e que falha e frustra em fase logo posterior, (propiciando, ao longo deste processo, a 178


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continuidade do ser e o desenvolvimento do espaço potencial), é importante para o desenvolvimento de um self verdadeiro, em contraposição ao desenvolvimento de um falso self (ABRAM, 2000). Enquanto o segundo postulou que o papel estruturante do pai seria o de fornecer a palavra (e os meios) para o indivíduo se desenvolver, mas sem desempenhar radicalmente a função proibitiva. Cabendo, portanto, ao pai, um papel mais exível do que ao atribuído no caso da interação na qual predomina o poder castrador: “A lei estruturante do dever torna-se frequentemente uma lei castradora” (LELOUP, 2001, p. 109). Ao postular como papel estruturante do pai o exercício da palavra você pode, e não você deve, pode-se pensar, em Leloup, uma certa complementariedade temporalmente linear com relação ao tipo de interação que a mãe forneceria, em Winnicott. As elaborações de Winnicott, neste sentido, enfocam uma fase inicial do desenvolvimento, relacionadas ao papel da mãe, enquanto as de Leloup, aqui focalizadas, dizem respeito ao papel do pai, relacionado a uma fase posterior, na qual a palavra desempenha função essencial. Sendo que ambos os autores abordam a entrada na cultura de uma forma menos castradora que em Freud, e mais empoderadora. Vale observar também que esta interação empoderadora poderia levar o indivíduo a abrir mão de um ideal de perfeição, correlacionando-se aqui, também, com a identi cação com o su cientemente bom. É possível re etir, ainda – sem perder de vista as considerações anteriores - que os dois tipos de interação relacionados ao papel do pai podem ser importantes em diferentes momentos e para diferentes indivíduos, e que também caberia ao papel do pai, ou a quem desempenhará a função paterna, acompanhar, tal como a mãe com seu handling em fase anterior, as utuações e tendências do desenvolvimento da personalidade em uma época posterior. REFERÊNCIAS Abram, J. (2000) A Linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter. Freud, S. (2011) O eu e o Id. In Obras Completas (P. S. Souza, trad., Vol. 179


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17. CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DO AMADURECIMENTO PARA O ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA

CITIZENSHIP AND PARTICIPATION: SOME CONTRIBUTIONS FROM THE THEORY OF MATURATION FOR THE CARE OF VICTIMS OF VIOLENCE Bruno Cervilieri Fedri

Resumo: O presente artigo tem como objetivo realizar um estudo teórico sobre a assistência às vítimas de violência pela perspectiva da teoria do amadurecimento pessoal de D. W. Winnicott. Observa-se ainda que o oferecimento do acesso à justiça somado a participação da vítima em um espaço público e acolhedor podem favorecer a construção de novos e criativos percursos para o exercício da cidadania e protagonismo da vítima de violência. Palavras-chave: cidadania, violência, Winnicott. Abstract: is article aims to perform academic studies about assistance to victims of violence through Personal Maturity Growth Teory (D.W. Winnicott) perspective. It can also be observed that the justice access facility allied to the victim participation in a public, welcoming and warm environment shall favour new and creative paths to a real citizenship practice and the victim of violence prominence either. Keywords: citizenship, violence, Winnicott.

23. Psicanalista, especialista em Teoria Psicanalítica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É coordenador técnico das unidades do Centro de Referência e Apoio à Vítima – CRAVI – da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo. Endereço: Rua Borges de Barros, n. 189, apartamento 11, Sumarezinho, São Paulo. CEP 05441-050. Email: brunofedri@gmail.com. 181 Rabisco R. Psican

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CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DO AMADURECIMENTO PARA O ATENDIMENTO ÀS VÍTIMAS DA VIOLÊNCIA

Introdução O número de vítimas de crimes contra a vida, especialmente no que se refere aos casos de homicídios, são crescentes e preocupantes. Entretanto, o número de vítimas indiretas, ou seja, os parentes e amigos das vítimas assassinadas é difícil de dimensionar. Junto com a despedida da vítima direta, permanecem pais, mães, lhos, irmãos e amigos cuja dor da perda fundamenta uma das principais demandas por justiça. A assistência às vítimas de violência não se caracteriza apenas como uma questão de saúde, mas também como uma questão de justiça. O apoio oferecido à vítima de violência deve ser calcado também no âmbito público, âmbito no qual a Psicanálise deve permanecer em constante articulação. Endo (2006) aponta para a importância de observarmos o indivíduo cuja subjetividade é marcada e atravessada pela cidade, suas construções e transformações. A violência, neste sentido, deve ser observada como um fenômeno político, que confunde as divisões entre o público e o privado e que deve ser atravessada pelo espaço público do testemunho e do compartilhamento. O psicanalista, desta forma, deve se atentar para auxiliar a vítima de violência a trazer à tona o sofrimento que não raro é relegado ao âmbito privado. Isto não signi ca exposição ou mesmo interferência nos valores de con abilidade, tão caros em nossa atuação. Signi ca não perder de vista a articulação que existe entre seu sofrimento e a estrutura social violenta que dissemina as desigualdades sociais, os cuidados com as particularidades do atendimento às populações vulneráveis, o acesso à justiça e principalmente a compreensão da violência como violação de direitos. Frente ao sofrimento oriundo de um crime contra a vida, a Psicanálise tem potência singular, pois além de ser comprometida com o acolhimento do outro conforme este se apresenta, ela compreende a voz da vítima como testemunho, que produz uma verdade sobre o sujeito ao mesmo tempo que o implica na transformação do sofrimento em narrativas vitais e construtivas (OCARIZ, 2015). 182


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No atendimento da vítima, a clínica psicanalítica, articulada e comprometida com o aspecto público e político da violência, pode favorecer a participação da vítima para além dos atendimentos clínicos tradicionais oferecendo uma oportunidade de reconstruir um sentido novo e transformador diante do sofrimento e da dor. Acolhimento – uma tarefa fundamental A violência possui diversas faces, desde as mais obscuras e silenciosas, caracterizadas pelo abandono e pela negligência, até as mais perversas e hediondas, como nos casos de violência sexual e dos crimes contra a vida. Conforme a violência impacta o sujeito, provoca marcas que desa am o tempo e a resistência. Observam-se, nas vítimas das mais diferentes formas de violência, os sentimentos de insegurança e medo quanto à possibilidade de reincidência do evento ou mesmo o insucesso quanto a sua superação. Estamos, assim, diante do primeiro fenômeno de grande importância para a clínica psicanalítica no atendimento à vítima de violência: a quebra da con ança com o mundo. O estabelecimento da con abilidade é uma das mais essenciais conquistas na relação entre a vítima de violência e o analista. Winnicott foi um dos psicanalistas que mais se preocupou com a con abilidade na relação terapêutica, localizando-a como fundamental na teoria do amadurecimento pessoal. Para ele, além de a con abilidade ser uma qualidade desejável em qualquer relação, ela é a característica central do ambiente facilitador, materno e terapêutico (DIAS, 1999). Entretanto, Winnicott a rma que a con abilidade é transmitida por meio de uma comunicação silenciosa (WINNICOTT, 1968) entre mãe e bebê e que esta con abilidade, uma vez conquistada, oferece a possibilidade de o bebê passar do estado de integração ao estado de não integração. No atendimento à vítima de violência observa-se uma demanda latente relacionada à necessidade de con ar. Esta necessidade responde à experiência de ter sido vítima de uma violência que surpreendeu o 183


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indivíduo em suas possibilidades de defesa, rompendo assim sua con ança no mundo e a continuidade de suas experiências dentro dele. O estabelecimento da con abilidade se favorece por meio da presença do analista, por meio do seu olhar, da sua escuta e disponibilidade, convidando a vítima a descrever da forma como lhe for possível o ocorrido e quais efeitos este teve em sua vida, estabelecendo uma frequência de acolhimento semanal, na qual a experiência de continuidade se reestabelece, facilitando a reorganização e reintegração do self. Esta sustentação é própria do ambiente facilitador (WINNICOTT, 1963) e não se restringe apenas às potencialidades do analista, pois sua caracterização envolve também o ambiente físico (setting) onde a experiência se realiza. Desta forma, os cuidados para acolher a vítima também implicam no oferecimento de um lugar aconchegante e organizado. De acordo com Hisada (2002), as características principais para um bom manuseio do setting são a estabilidade e a previsibilidade: características não raro faltantes nas vítimas de violência. Para Dias (2003), a con abilidade signi ca previsibilidade e estas experiências, realizadas de forma regular, auxiliam na integração do indivíduo como unidade e este se torna cada vez mais capaz de cuidar de si mesmo. É a partir do estabelecimento do ambiente facilitador, sustentado pelo analista, que a vítima de violência, portadora de um testemunho de sofrimento e dor, poderá revisitar os aspectos mais dolorosos de sua experiência e integrá-los, compreendendo a si mesma como partícipe deste cuidado. O estabelecimento deste ambiente é de especial importância, pois nele se realiza o início da passagem do ser para o ter: ser a dor para ter a dor. No cotidiano de atendimento às vítimas de violência observa-se que estas não desejam apenas assistência, mas também desejam participar do seu processo rumo à busca por justiça. A participação, contudo, só é possível quando a vítima pôde contar com um ambiente facilitador, que acolheu seu sofrimento e seus instintos destrutivos sem retaliação, por meio de 184


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um analista que sobreviveu a ela (DIAS, 2002). É no encontro do sobrevivente, outrora vítima, com outro sobrevivente, que esta passagem do ser para ter se realiza. Tendo sido acolhida em um ambiente facilitador, que não raro se caracteriza pelo ambiente institucional de um programa de atendimento à vítima, a mesma poderá se interessar por conhecer outras vítimas que passaram por situações semelhantes à dela, coletivizar as marcas da violência com outras pessoas, conhecer as legislações relacionadas aos direitos das vítimas de violência para, junto com outras vítimas, transformá-las. Dizendo de outra forma, poderá exercer a cidadania e seu protagonismo. Segurança, Interdisciplinaridade e Sobrevivência do Analista: alguns fundamentos para o exercício da cidadania A violência é um fenômeno multifatorial e transgeracional que demanda a atuação de diversas áreas do conhecimento, especialmente do Direito e do Serviço Social para o estabelecimento de um trabalho interdisciplinar, caracterizado como uma postura pro ssional, que reconhece e sustenta o recorte das disciplinas. Winnicott, além de ter desenvolvido uma teoria do amadurecimento pessoal comprometida com o ambiente, demonstrou sua postura interdisciplinar ao longo de sua vida através de seu trabalho com assistentes sociais nos abrigos para crianças e adolescentes em situação de guerra (KAHR, 1996). Oferecer à vítima de violência um trabalho analítico para o atravessamento dos sintomas da violência desconsiderando a participação das demais áreas do conhecimento e sem se atentar para as potencialidades da vítima no âmbito público pode não favorecer as condições necessárias para o empoderamento da mesma e consequente exercício de sua cidadania. O estabelecimento da con abilidade, portanto, possibilita o encontro da vítima com um caminho possível para entrar em contato com o trauma resultante da violência. O tema do trauma, por sua vez, é de grande importância no atendimento à vítima de violência e central na teoria psicanalítica, com 185


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algumas diferenças quanto à compreensão por parte de Freud e Winnicott. Enquanto para Freud o trauma é um acontecimento de natureza psíquica cuja excitação, sempre de ordem sexual, não pode ser eliminada, para Winnicott o trauma aponta para uma ruptura na experiência de continuidade do ser (FULGÊNCIO, 2004). Observa-se na fala das vítimas de violência a ênfase dada ao caráter imprevisível da ação violenta e o quanto este, especialmente nos casos de perda de um ente querido por homicídio, aponta para a perda de um mundo, anteriormente con ável e possível de se viver (FEDRI, 2014). O oferecimento do ambiente facilitador é uma aposta de reconstrução, não mais do mundo como era antes, mas de um mundo onde a ação violenta pode resultar em ações construtivas. Para tanto, é necessário segurança e esta é uma das principais demandas das vítimas de violência. Para Winnicott (1960) algumas pessoas não podem viver em liberdade, por temerem a si mesmos e ao mundo. As vítimas de violência são algumas destas pessoas, pois além de temerem o mundo agora marcado pela violência, temem também a si mesmas por meio do ódio e do desejo de vingança que sentem contra as pessoas que lhe aplicaram a violência. Para que o sentimento de segurança seja conquistado, é necessário que se edi que, no interior de cada um, a crença em algo que não seja apenas bom, mas durável e con ável, capaz de se recuperar depois de se ter machucado ou mesmo perecido (WINNICOTT, 1960). Neste sentido, além da importância do ambiente físico para o estabelecimento da con abilidade e segurança, é igualmente importante ressaltar a sobrevivência do analista como parte do processo. A vítima de violência porta testemunhos de dor e sofrimento e teme que o analista não sobreviva a eles. Dias (2002) descreve a sobrevivência do analista de forma que ele se mantenha vivo, dando continuidade ao que foi iniciado pelo paciente, sem desanimar nem desistir da tarefa. Espera-se que a vítima de violência use seu analista, no sentido de fazer valer seu espaço de acolhimento para transmitir a ele seu sofrimento. Ela tenderá à repetição, própria do trauma, contando por 186


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diversas vezes a mesma história sobre o homicídio de seu ente querido ou a violência sexual que sofreu. Trará para o setting seu sentimento de revolta e injustiça, con denciando seus desejos mais destrutivos de vingança. Duvidará, com grande pesar, da existência de um Deus que outrora con ou sua vida e segurança e por vezes se preocupará com o analista, culpabilizando-se (WINNICOTT, 1958) por lhe trazer, junto ao impulso amoroso de querer encontrá-lo, toda a destrutividade oriunda da violência sofrida. Cidadania e Psicanálise – O direito de ser e fazer “Nós vítimas de violência não queremos apenas assistência, nós queremos participar”. Esta frase, enunciada por um pai cujo lho fora vítima de homicídio, ilustra os objetivos deste artigo. A experiência cotidiana com as vítimas de violência e seus relatos nos convida a pensar a clínica psicanalítica por meio de enquadres diferenciados, reforçando seu compromisso com a realidade social que a permeia. No campo da Saúde Mental, as “o cinas” podem ser consideradas um exemplo deste tipo de enquadre. Buscando desenvolver no usuário a autonomia (ROGONE, 2006), as o cinas são consideradas dispositivos clínicos imprescindíveis para a efetivação de ações para o exercício da cidadania. Ainda segundo Rogone (2006), as o cinas são produto da desinstitucionalização da Saúde Mental, que provocou uma transformação importante na relação entre médico e paciente, passando esta da heteronomia para a autonomia. No campo da Justiça, esta transformação ainda não aconteceu. Marcado pelas relações de poder e pela característica punitiva de suas sentenças, o campo da Justiça ainda encontra di culdades no favorecimento da participação de seus usuários junto a seus ritos judiciários. Nestes, sobretudo as vítimas de violência, não raro são revitimizadas e culpabilizadas pela violência que sofreram, percorrendo fóruns e delegacias sem orientação e apoio. Nesse ambiente não su cientemente bom, a con abilidade da vítima 187


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e sua consequente participação não encontram possibilidades de se concretizar. Sentindo-se desamparada e sem o holding que sustenta o ambiente facilitador, a vítima de violência é relegada aos próprios instintos destrutivos, temendo a si e aos outros, almejando a vingança encoberta sob a demanda de justiça. Para que a vítima possa exercer sua cidadania e participar do processo que a conduz à justiça, ela deve primeiramente ser acolhida e para isso, faz-se necessário o estabelecimento de um lugar de pertencimento, condição para a cidadania. Cidadania é um conceito que comporta diversas signi cações. Para COVRE (1995), cidadania signi ca reivindicação, não de uma coisa qualquer, mas de algo no qual o indivíduo acredita ser dele de direito. O dicionário HOUAISS (2009), cidadania aponta para a “condição da pessoa que, como membro de um Estado, se acha no gozo de direitos que lhe permitem participar da vida política”. Covre (1995) a rma ainda que para que a cidadania seja exercida não bastam apenas as leis, mas é importante que os homens comuns, os trabalhadores, se apropriem também dos espaços para a construção de leis favoráveis à extensão da cidadania (p. 29). Para tanto, deve-se oferecer um espaço potencial à criatividade e livre de intrusões, que levam o indivíduo à submissão, especialmente nos âmbitos jurídicos. A cidadania, para ser exercida, precede a noção de apropriação do objeto sentido como algo que lhe é de direito. Tal noção vai ao encontro de uma conquista fundamental na teoria do amadurecimento: a capacidade de usar objetos. Winnicott (1969) descreve as diferenças entre relação e uso de objeto, a rmando que o uso do objeto envolve a concepção da natureza do objeto, não como projeção, mas como coisa em si. Além disso, ele também aponta para o uso do objeto por meio do sentimento de ter direito a ele: “Entre o relacionamento e o uso existe a colocação, pelo sujeito, do objeto para fora da área de seu controle onipotente, isto é, a 188


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percepção, pelo sujeito, do objeto como fenômeno externo, não como entidade projetiva; na verdade, o reconhecimento do objeto como entidade por seu próprio direito” (WINNICOTT, p. 125). Isso signi ca que o sentimento de ter direito ao objeto é resultante da con abilidade anteriormente estabelecida com o analista e, no caso, com a instituição de justiça, que sobreviveu à destruição do objeto na fantasia, ou seja, não retaliou ou desistiu de oferecer assistência à vítima. É, portanto, por meio da capacidade de usar objetos que a vítima de violência poderá compreender as leis e os direitos que dela emanam como algo a ser constantemente criado e transformado por ela, ou seja. Mediante desta compreensão que a vítima de violência poderá estabelecer com a justiça uma relação de participação, e não de submissão. Oferecer à vítima a possibilidade não apenas de falar sobre sua dor, mas garantir seu direito de participar de grupos de orientação para direitos, frentes parlamentares e grupos organizados que lutam por justiça é condição para o exercício (e uso) de sua cidadania (objeto), portanto de seu empoderamento como sujeito. REFERÊNCIAS COVRE, M. L. M. O que é Cidadania. São Paulo: Brasiliense, 2007, ENDO, P. C. A Violência no Coração da Cidade: Um Estudo Psicanalítico. 1ª Ed., São Paulo: Escuta, 2005, FEDRI, B. C. Dor de Mãe: Lutos Possíveis e Impossíveis das Vítimas da Violência Urbana. 2014. 114 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, FULGÊNCIO, L. A Noção de Trauma em Freud e Winnicott. In Revista Natureza Humana. Volume 6, n. 2, julho-dezembro. São Paulo: Educ, 2004. HISADA, S. Clínica do Setting em Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2002. HOUAISS, A. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. 189


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HISADA, S. Clínica do Setting em Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2002. HOUAISS, A. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001. KAHR, B. A Vida e a Obra de D. W. Winnicott. Um Retrato Biográ co. Rio de Janeiro: Exodus, 1996. DIAS, E. O. Da Sobrevivência do Analista. Centro Winnicott de São P a u l o . D i s p o n í v e l e m : <http://www.centrowinnicott.com.br/winnicott_eprint/uploads/c9441 562-93080d75.pdf.>. Acesso em 05/10/2010, ___________. Sobre a Con abilidade: Decorrências para a Prática Clínica. In Revista Natureza Humana. Volume 1, n. 2, dezembro. São Paulo: Educ, 1999. OCARIZ, M. C. Violência de Estado na Ditadura Civil-militar Brasileira (1964-1985) Efeitos Psíquicos e Testemunhos Clínicos. São Paulo: Escuta, 2015. __________. Sobre a Con abilidade: Decorrências para a Prática C l í n i c a . R e v i s t a N a t u r e z a Hu m a n a . D i s p o n í v e l e m : < http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S151724301999000200004&script=sci_arttext>. Acesso em 05/10/2010, ROGONE, H. M. H. Psicanálise e Cidadania: Correndo Riscos e Tecendo Laços. 2006. 174 f. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. WINNICOTT, D.W. Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 2004, WINNICOTT, D. W. O Uso de um Objeto e Relacionamento Através de Identi cações. In O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. ___________. Comunicação Entre o Bebê e a Mãe e Entre a Mãe e o Bebê: Convergências e Divergências (1968). In. Os Bebês e Suas Mães. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ___________. A Psicanálise do Sentimento de Culpa (1958). In. O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed, 2008; 190


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______________. A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ______________.O Medo do Colapso (1963). In Explorações Psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed, 1994. ______________. Segurança (1960). In A Família e o Desenvolvimento Individual. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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SEÇÃO HISTÓRICA

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CARTA ABERTA A JULIO DE MELLO Luiza Moura

No primeiro semestre de 2013, recebi o gentil convite para participar de uma homenagem ao Dr. Julio de Melo que aconteceria no Rio de Janeiro. Infelizmente, não pude estar presente, então, enviei um texto que intitulei como “Carta Aberta a Julio de Mello”. Ele me respondeu com muita satisfação, tinha gostado muito do conteúdo da Carta, contou-me que ela foi lida para o público presente no dia do evento. Neste mesmo ano, o nosso grupo – Seminários Winnicott/PoA -, sob a coordenação de José Outeiral estava organizando o VIII Encontro Brasileiro sobre o Pensamento de D. W. Winnicott, que aconteceria em Bento Gonçalves. Como parte das atividades deste Encontro, Outeiral sugeriu uma homenagem a Julio de Mello. Gentilmente o Dr. Julio aceitou nosso convite. E, generosamente, seu lho, Julio Neto, organizou-se para acompanhá-lo. Nosso grupo estava muito alegre com a possibilidade da sua presença. Sabíamos que era algo muito importante para a história de Winnicott no Brasil que Julio de Mello estivesse mais uma vez presente num evento de porte nacional. Muitos que o conheciam, apenas através de seus livros, poderiam, en m, vê-lo e ouvi-lo. Enquanto ainda festejávamos e antevíamos a importância de sua participação no VIII Brasileiro, perdíamos José Outeiral. Como eu poderia imaginar que apenas 40 dias depois de eu ter escrito a Carta em homenagem a Julio de Mello eu estaria escrevendo um texto de despedida a Outeiral.

195 Rabisco R. Psican

Porto Alegre

v.8

n.1

p. 193-198

Junho/2018


SEÇÃO HISTÓRICA: CARTA ABERTA A JULIO DE MELLO

Por m, aproximávamos da data do Encontro Brasileiro. Estávamos desconcertados: Outeiral não estaria conosco. Mas Julio estaria. E seu lho Julio Neto também. Recebi a atribuição de subir a serra gaúcha com pai e lho. Fomos, numa pequenina jornada, rumo a um Encontro, no qual sabíamos que nosso querido amigo, desta vez, não compareceria. Paramos para que Julio lanchasse, ele pediu uma cheese cake, estava cheio de vigor e determinação, e seguimos viagem. Para sua Conferência reservamos uma sala de tamanho médio entre as salas do hotel. Que equívoco! Na hora do Dr. Julio começar sua fala uma multidão estava se aglomerando na porta. Rapidamente transferimos tudo para o maior auditório. Eu coordenava a mesa e o Dr. Julio iniciou sua Conferência, com todos os lugares preenchidos. Ele estava cheio de vitalidade, falou com humor e com arte. Como diria Outeiral: ele falou “de forma arteira”. Coordenei a Mesa de maneira comportada. Ao nal, quando ainda estávamos sentados no palco ele se virou para mim e falou, com um tanto de decepção: “Pensei que tu lerias a Carta Aberta”. Este episódio me doeu e eu nunca esqueci. Fui discreta para não ocupar um espaço que era dele, mas eu devia ter sabido que ele esperava mais este tantinho de homenagem. Os bons momentos seguiram... Organizamos um espaço para que o Dr. Julio autografasse seus livros. Uma la enorme se formou. Foi mais um episódio inesquecível. Ele posou para uma centena de fotos. Viveu intensamente cada minuto. Um pouco distante, observando todas aquelas demonstrações de afeto e tietagem estava Julio Neto, sozinho. Aproximei-me dele para poder compartilhar o ângulo de onde ele via tudo aquilo. Pude notar que ele estava emocionado e, emocionado, disse-me algo assim: “Agradeço muito a vocês. Não por ele, mas por mim. Vocês não têm ideia da importância que tem para mim o que está acontecendo aqui. Não pensei que ainda teria a oportunidade de ver o quanto meu pai é respeitado e 196


Luiza Moura

amado”. Hoje, passados quase cinco anos, estamos sofrendo a perda de Julio de Mello. E sou eu quem está, agora, plena de gratidão ao Seminários Winnicott/PoA. Grata pela oportunidade de usar este espaço, para contar um pedacinho desta história que compartilhamos como grupo. E, ainda, fazendo uso deste espaço, vou ter minha segunda chance de ler a Carta a Julio de Mello. E, desta vez, não vou desperdiçar: Prezado Dr. Julio, Conheci você numa circunstância que certamente não recorda, e eu nunca cheguei a lhe contar: A primeira vez que lhe vi foi numa sessão de autógrafos do livro “O ser e o viver”, aqui em Porto Alegre, em 1990. Tenho seu livro gentilmente autografado, como uma boa fã deve ter o livro de seu ídolo. Eu era, então, estudante de psicologia. Até aqui, tudo conforme o esperado... Mas agora inicia o inesperado: Me formei e já tinha um razoável contato com pensamento de Winnicott, basicamente através de seus olhos, Dr. Julio, de sua escrita, de seu livro... logo, descobri também a obra de Ferenczi, quei encantada com as aproximações possíveis entre estes dois autores. Sobre estas aproximações eu escrevi um artigo, intitulado “Ferenczi e Winnicott: da inquietação à transicionalidade”. Por uma necessidade minha de justamente transformar a minha própria inquietação em transicionalidade, decidi apresentar este texto no III Encontro Latino-Americano sobre o Pensamento de D. W. Winnicott, que aconteceu aqui em Gramado, em 1994. Faz tempo, mas me lembro como se fosse hoje: o trabalho estava na categoria de Tema-livre, mas aleatoriamente, a minha sala para apresentação era o auditório principal do hotel Serra Azul. Eu me vi num palco (que me parecia enorme) diante de um enorme mar de cadeiras vazias, ou quase todas vazias. Recordo de você, Dr. Julio, entrando e caminhando todo o corredor 197


SEÇÃO HISTÓRICA: CARTA ABERTA A JULIO DE MELLO

entre as cadeiras, vindo e se instalando em uma das primeiras leiras. Ainda recordo da emoção e responsabilidade que eu senti naquele momento. Mas o mais inesperado ainda estava por vir, um pequeno grande milagre estava para acontecer... Ao nal da minha apresentação você veio falar comigo. Com sua fala ritmada e gentil, me convidou para publicar o meu artigo no seu próximo livro, “Winnicott: 24 anos depois”. Assim, começamos a ter uma convivência mais próxima, recebia notícias suas, tive contato com seus outros livros, com suas contribuições para a psicossomática, por exemplo... Logo o seu novo livro estava pronto, e eu estava participando daquela experiência incrível! Graças a você, ao seu gesto que veio ao meu encontro, descobri o quanto amava escrever e reassegurei o quanto as idéias de Ferenczi e Winnicott eram importantes para minha trajetória como psicoterapeuta. Ou, melhor dizendo, o quanto Julio de Mello foi e é importante na minha trajetória. Julio, você foi o inesperado na minha vida: O ídolo que se torna amigo. Obrigada pela generosidade, pela gentileza e pelo exemplo como pessoa e pro ssional.

Muito obrigada por tudo! Com imenso carinho e eterna gratidão, Luiza Moura. Porto Alegre, 09 de junho de 2013.

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A ESQUINA DO ENCONTRO Jussara Ramos

Ao saber sobre o que versaria este IV ENCONTRO GAÚCHO sobre pensamento de Winnicott – "O Indivíduo e as Instituições – da submissão à independência", pensei em levantar um tema que levasse em em conta o fazer psicanalítico ,no que me arrisco chamar de “Clínica do Cuidado” embasada na ênfase dada por Ferenczi e Winnicott para um clima terapêutico onde a con ança, o afeto, bem como a disponibilidade e qualidade da presença do analista fosse o o condutor. Encontrar àquele que nos procura, envolto em seu sofrimento psíquico, desencontrado de si mesmo e que traz consigo a dor do rompimento da continuidade de um vir a Ser, nos desa a a auxiliá-lo no processo de elaboração e de sentido para experiências nem sempre satisfatórias e muitas vezes, traumáticas. Para Winnicott, a questão econômica de excitações não descarregadas não teriam a ver com o traumático mas sim, com as falhas do ambiente que interrompem a continuidade e a quebra de con ança no ambiente. Ora, baseada nessas concepções e trazendo para o tema do nosso encontro; me arriscarei a pensar no extremo cuidado que deve permear nossa praxis no sentido de não fazermos do ambiente analítico uma repetição da cena traumática. Estar implicado no processo analítico signi ca também estar em sintonia com as angústias que se nos apresentam e para tanto nossas questões pessoais devem no mínimo estarem bem analisadas, pois, somente assim seremos capazes de nos colocarmos no lugar do outro, permitindo, aceitando o adoecimento deste outro sem que nosso querer se sobreponha às necessidades de nosso paciente, ou seja, que ele , passivo , se SUBMETA. 201


SEÇÃO GESTO ESPONTÂNEO A ESQUINA DO ENCONTRO

A abordagem clínica, baseada, na con abilidade do analista, necessita um extremo cuidado para que as interpretações não direcionem as associações do paciente. Lembrando, que esta atenção deve estar dirigida, principalmente, aos pacientes graves, pois, particularmente estes, tem tendência à PASSIVIDADE E SUBMISSÃO. Quando estamos comprometidos com o processo terapêutico, nosso olhar não se afasta das necessidades do paciente, pois caso contrário, não só o trabalho analítico, mas também a relação da dupla ca abandonada. Para que haja sintonia com o sofrimento de quem nos procura, de quem espera de nós e con a é fundamental a REDUÇAO das reações contratransferências, o seja, o AUTOCONHECIMENTO é uma ferramenta INDISPENSÁVEL, para o encontro sensível da dupla Paciente X Analista. Ferenczi nos fala de um espaço intermediário onde a situaçao traumática pode ser vivida e rememorada num outro nível, pois esta memória traumatica, seria uma memória corporal. É neste Espaço de Jogo que os afetos circulam entre analista e paciente (Ferenczi, 1931). Vale lembrar que o analista pode exercer uma função facilitadora ou traumatogênica para o paciente. São vezes que a necessidade de ceder às tendências deste, pode signi car não submetê-lo. Para Ferenczi, o TRAUMA PSÍQUICO resulta não somente do evento traumático em sí, mas também, da reação dos adultos e da indiferença ao sofrimento da criança. Quando no setting o paciente revive o trauma original alí está o analista que se mantém passivo, acolhedor e empático, que mesmo mediante a inalterabilidade da cena traumática de outrora, encontra, quem não estava lá, mas que agora, alí está , para ouvir, acolher e principalmente sobreviver. Ferenczi, em seu texto de 1928, A ELASTICIDADE DA TÉCNICA ATIVA, de ne O TATO, como capacidade fundamental do analista, sendo este, a qualidade em sentir como e quando uma comunicação elucidadora fará sentido para o paciente, quando o material é su ciente para que este conclua algo ou, quando se deve aguardar outras associações... e até mesmo quando o silêncio é uma tortura para o paciente. TATO se traduz em "SENTIR COM", ou seja, é a possibilidade de uma comunicação empática baseada no TATO psicológico do analista que facilita e favorece as 202


Jussara Ramos

comunicações não somente verbais mas principalmente das vivências de seus pacientes. A posição de NEUTRALIDADE (que Freud insistia) não era compatível com o modelo baseado no afeto, na sinceridade e na igualdade que Ferenczi estava disposto a defender. No texto de 1931, ANÁLISE DE CRIANÇAS COM ADULTOS, Ferenczi nos fala que o sucesso do tratamento tem base na responsabilidade do analista, onde não bastaria mais, somente a empatia e a dispoinibilidade, mas também, em relação ao analista, nada deveria ser omitido, ou seja, a honestidade deveria prevalecer sempre. Quando falha a atitude de cautela e nos antecipamos ao paciente, o submetemos a interpretações precoces e acabamos por preencher um espaço que deveria estar alí para ser ocupado por ele. Ao se submeter a esta invasão a instalação do falso self reforça a dissociação que alí já estava, cabendo aqui salientar, que a submissão só pode ser aceita pelo FALSO SELF e nunca pelo VERDADEIRO SELF. Quando o TATO não se faz presente, nossas interpretações podem ocorrer fora do timming e assim estaremos direcionando as associações do paciente, que em estado extremamente dependente e regredido acaba exigindo do analista a responsabilidade de falhar o MENOS possível para não repetir para aquele as variáveis não prediziveis de sua primeira infância. Se assim o submetermos, o levaremos novamante aos imprevistos dolorosos a que outrora estivera exposto e submetido. Penso na submissão do paciente, quando re ro- me a certas posturas do analista como: - INFLEXIBILIDADE - SEVERIDADE E FRIEZA - POSTURA ANALÍTICA AUTORITÁRIA - AUSÊNCIA DE TATO - MEDO DA POSIÇÃO EMPÁTICA A clínica contemporânea, as novas subjetividades, desa am o fazer psicanalítico. Ao favorecermos um espaço para que nosso paciente entre em contato com as dores de seu mundo interno, estamos nos implicando com disponíbilidade emocional e psíquica para que sentindo suas angústias possamos ajudá-lo a dar-lhes signi cado, transformando em palavras o não 203


SEÇÃO GESTO ESPONTÂNEO A ESQUINA DO ENCONTRO

simbolizado para que possa ser então, representado. Um recorte... Não sei se sou... Se me perdi de mim ou se nunca existi... Me sei aqui... Falar de mim, difícil isso... ...dizer o que? Que tenho medo? Que me foge o ar? Que perco o chão? Que piso em falso? Eu escorro na ausência de um abraço, junto partículas e tento formar gotas para banhar a mim mesmo... ...estou aqui ...e tu me escutas ...saio daqui ...e tu me esperas ...e de novo te encontro ...e novamente me escutas No teu olhar me vejo... estou ali... Confuso me pego pensando, é estranho Con o... me abandono...me reencontro...me abandono Brinco com isso Fecho meus olhos...a presença basta, pra que me sinta no abraço... Agora te reconheço... 204


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Eu já tinha estado por aqui, só que não havia ninguém... “Obrigada por me atender.” REFERÊNCIAS FERENCZI, S. (1990). DIÁRIO CLÍNICO. SÃO PAULO. MARTINS FONTES. (ORIGINAL publicado em 1932) FERENCZI, S. (1987). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In J. Birman (org) escritos psicanalíticos (p.p 313-317). Rio de Janeiro TAURUS. (ORIGINAL, 1929) FERENCZI, S. (2011) ANALISE DE CRIANÇAS com adultos. In. S. Firenzi, OBRAS COMPLETAS (A. CABRAL, trad., 2 ed., vol4, pp.79-95) São Paulo. MARTINS FONTES. (trabalho original publicado em 1931). WINNICOTT, D. (1994). O conceito de trauma em relação ao desenvolvimento do indivíduo dentro da família. In. D. Winnicott, explorações psicanalíticas (pp. 102-115) São Paulo: ARTMED (ORIGINAL -1965)

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SEÇÃO PSICANÁLISE E CULTURA

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Shame - En busca del sentimiento perdido *Nota: texto transcrito como recebido, sem correções

Parfen Laszig, Heidelberg

»e expense of spirit in a waste of shame Is lust in action; and till action, lust Is perjured, murderous, bloody, full of blame, Savage, extreme, rude, cruel, not to trust;« William Shakespeare, Sonnet 129 Trama de la película La película comienza con un primer plano de Brandon (Michael Fassbender) acostado en su cama, con los ojos abiertos, mirando el techo y las sábanas justo por encima de la cintura. Cambio de escena En el metro Brandon pasea con la mirada sobre los rostros de la ciudad, gente camino a sus trabajos, un vagabundo y una mujer joven con mirada ensoñadora (Lucy Walters). En el fondo e s c u chamo s u n ge m i d o y u na p are j a he te ro s e x u a l c omo acompañamiento (y transición a la siguiente sección). Cuando la joven se da cuenta de la mirada de Brandon, sonríe. Se siente halagada por su interés (la música refuerza el juego de miradas). La joven parece estar fantaseando, cruza las piernas y presiona sus muslos. De repente, se pone inquieta, su mirada cambia. Se levanta y en un plano cerrado vemos que en su mano lleva un anillo de compromiso. Brandon ahora está de pie justo detrás de ella, su mano justo encima de la suya, casi a punto de cogérsela. La situación se vuelve algo repugnante para ella, por lo que huye de él entre la multitud de la estación de metro. Brandon la sigue y logra encontrarla. En el fondo vemos un cartel que dice: "Salida de emergencia". En los planos paralelos descubrimos la fuente del gemido sensual.

209 Rabisco R. Psican

Porto Alegre

v.8

n.1

p. 209- 238

Junho/2018


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En la puerta del departamento, Brandon vestido sólo con boxers gris y una polera blanca, invita a Alexa (Marie-Ange Ramirez), una joven latina, a entrar. Ella rechaza el trago que Brandon le ofrece y cuenta el dinero que le entrega (queda claro que es una prostituta). En el fondo oímos -como en la primera escena - el “tic-tac” de un reloj. Como contraste, Brandon le pide que se tome su tiempo en quitarse el sostén y el calzón de color frambuesa. La mira como si se tratase de un producto delicioso hasta que nalmente la tira bruscamente sobre su cama. Al nal de la escena, la cámara se centra en un pendiente, que a la joven se le ha quedado en el velador de Brandon. Por la tarde, va a un bar con sus colegas para celebrar un negocio exitoso. Están rodeados de mujeres hermosas. David (James Badge Dale), el jefe de Brandon, casado con hijos, está decidido a seducir a la muy atractiva Elizabeth (Elizabeth Masucci), que está sentada junto a sus dos amigas, Rachel (Rachel Farrar) y Loren (Loren Omer), en el bar. Elizabeth está molesta y rechaza a David, sin embargo, ya le ha “echado el ojo” a Brandon. Después de acompañar a su jefe borracho al taxi, ella le ofrece llevarlo en su auto ("Hey, wanna ride?"); Poco tiempo después tienen sexo debajo de un paso subterráneo. En el departamento de Brandon el teléfono suena una y otra vez. Una voz femenina le ruega, cada vez más desesperada que devuelva la llamada. La voz resulta ser la de su hermana menor, Sissy (Carey Mulligan). Brandon ignora sus llamadas. No quiere verla, es más, no quiere tener nada que ver con ella. Una noche llega a casa y escucha sonidos en el cuarto de baño. Armado con un bate de béisbol, entra y se encuentra con su hermana desnuda duchándose. Brandon está molesto por su presencia, aparentemente inesperada, aunque ella le recuerda que él mismo le había entregado una copia de las llaves del departamento y que ella le avisó repetidamente a través del contestador automático que iba a venir Nueva York. A Brandon le molesta su naturaleza exagerada, dependiente, y más tarde tiene que escuchar cómo intenta reconquistar por teléfono a su novio, quien al parecer, la dejó. Brandon nalmente se rinde y acuerdan que mientras tenga 210


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compromisos en la ciudad como cantante puede vivir con él, prometiéndole asistir a su presentación. Más tarde, junto a David, Brandon visita el club de moda, donde Sissy cantará. Como antes, su jefe intenta coquetear con las mujeres, pero la mesera modelo (Marta Milans) le ignora. Entonces Sissy aparece. Canta "New York, New York" y de repente el mundo cambia. Su presentación produce “escalofrías” a todo su público, especialmente a Brandon, quien se seca, avergonzadamente, una lágrima. Después de su presentación Sissy llega a la mesa de los dos hombres. David comienza a coquetear excesivamente con ella. Más tarde en el departamento, Brandon tiene que escuchar cómo Sissy y David tienen sexo en la habitación contigua, en su cama. Está atormentado, huye del departamento y corre por las calles nocturnas hasta que no da más. Cuando vuelve al departamento, quita las sábanas y pone unas nuevas sobre la cama. Posteriormente, su hermana intenta meterse en la cama de Brandon como si fuese una niña pequeña, sin embargo, éste la echa rabiosamente de la habitación. Al día siguiente, David llama a Brandon a su o cina para preguntarle la razón de su atraso y, además para informarle que se encontraron innumerables vídeos pornográ cos en su computador. Por convicción, o bien para ayudar a Brandon a cuidar su reputación, le pregunta si podría haber sido su aprendiz. Durante una pausa en la cocina, se topa con su colega Marianne (Nicole Beharie), que le viene “echando el ojo” hace un buen tiempo. Se juntan en un restaurante “chic”. De camino hacia el restaurante, Brandon se encuentra junto a la enorme fachada de cristal del “Standard Highline Hotel”, un edi cio estrecho con ventanas iluminadas a través de las cuales se puede observar la vida en su cotidianidad; un niño jugando con su niñera lipina, una mujer hablando por teléfono, un hombre de negocios, una mujer de limpieza y una pareja copulando contra la ventana. Marianne, que ya está esperando en el restaurante, observa a Brandon a través de la ventana. La cita en sí es un desastre: Brandon actúa de manera extraña frente al mesero, la franqueza natural de Marianne le descoloca y entonces, la conversación se estanca. Intercambian 211


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información personal. Marianne nació en Brooklyn, se crió con dos hermanas y aún vive allí. Está divorciada. Brandon, nacido en Irlanda, tiene una hermana y emigró a los Estados Unidos a los diez años. La cuestión de por qué la gente entra en relaciones es casi un tema de controversia. De camino a la estación de metro, los dos actúan enamorados y se prometen que "tal vez" podrían salir de nuevo otro día. Ya en su departamento tiene una pelea con Sissy, ya que ésta lo sorprendió en el baño masturbándose sobre el lavamanos. Discuten y gritan. Brandon regresa al baño y se ducha. Mientras tanto Sissy abre su computador y es recibida por una mujer desnuda (Charisse Bellante alias Charisse Merman) de una línea directa de sexo (aparentemente había estado esperando a Brandon y ahora intenta incluir a Sissy, como su supuesta novia, en el "Sextalk”). Brandon pilla a su hermana, cierra el computador, toma su notebook y se dirige a su dormitorio. Sissy sale abruptamente del departamento. La desesperación de Brandon se vuelve palpable. Junta todo su material pornográ co, revistas, videos e incluso su notebook y los bota a la basura. Quiere escapar de su vida, salir de la prisión que él mismo ha creado. Ya no puede soportar su incapacidad de permitir cercanía humana. En la o cina, toma a Marianne detrás de un tabique y la besa apasionadamente. La lleva a uno de los hoteles del Standard, el edi cio que había visto en la noche de su cita desde el exterior. La vista desde las ventanas de piso a techo hacia el cercano río Hudson es fenomenal; en la intimidad con Marianne pierde su erección. Avergonzado y frustrado, la echa. En el mismo hotel, solicita a una prostituta (Amy Hargreaves) a la habitación; la empuja contra la ventana y la toma violentamente por detrás. Después de una última gran pelea con Sissy, en la cual le ataca por su dependencia y autoindulgencia, entre otras cosas, la echa de su departamento. Al nal, vuelve a huir por la noche. En la barra de un bar, se dirige a una joven llamada Carly (Anna Rose Hopkins), mientras que su novio juega al billar en el fondo. Brandon hace avances explícitos, la toca debajo de la falda y después lame 212


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un de sus dedos. Cuando su novio musculoso (Chazz Menendez) viene a ver en que está ella, Carly trata de salvar la situación. Brandon, sin embargo, quiere pelear y provoca al hombre. Pareciera que su oponente se lo toma con calma. Sin embargo, una vez que Brandon sale del bar, le sigue a la vuelta de la esquina, lo golpea y lo patea. Brandon acaba tirado en el suelo, momento en cual, nalmente, le escupe. Aun así Brandon continúa su actividad nocturna. Después de que el portero (Car Low) de un club le niega la entrada, sigue a un individuo que se encuentra apoyado en la pared de un club nocturno gay (en una de las cabañas éste le hace sexo oral). Mientras su hermana Sissy trata de comunicarse con él por teléfono en varias oportunidades, éste sigue vagando. Va al departamento de dos prostitutas (Calamity Chang, DeeDee Luxe) y vive un trío salvaje y fervoroso. En el camino de vuelta, el metro está siendo despejado por la policía. Es obvio que alguien se ha lanzado a las vías del tren. Puesto que Brandon sólo puede contactar al contestador automático de Sissy, se preocupa por ella y corre a su departamento en pánico. En el baño encuentra a su hermana cubierta de sangre; se cortó las venas. Sissy sobrevive. En el hospital acaricia las múltiples cicatrices que tiene en el brazo. Una vez fuera del hospital, solo, en el muelle lluvioso del río Hudson, llega al límite de su aguante y colapsa, estalla en llanto. Al nal de la película, vemos a Brandon una vez más en el metro. De nuevo la joven del principio de la película se siente frente a él. La danza comienza de nuevo, pero esta vez ella parece lista para él. El metro se detiene. No sabemos si Brandon se baja o no. Sobre el director y la película Nacido en el oeste de Londres como hijo de padres granadinos, Steve McQueen en un principio fue conocido como fotógrafo y artista audiovisual y de instalaciones, es miembro de la generación “Young British Artists”. Además de numerosos premios, fue nombrado artista bélico por el Museo Imperial de la Guerra (“Imperial War Museum”) en 213


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2003 por su trabajo durante la guerra de Irak. Como parte de esta función, fue enviado a Basora y Bagdad para crear el proyecto "Queen in Country" (2007-2009), que muestra los retratos de soldados caídos en un pliego de estampillas (sellos). Ya su primera película muda “Bear” (1993) (una película de 16 mm en blanco y negro, con una duración de diez minutos que trata de la corporalidad, masculinidad e inclinación física y psicológica) muestra la lucha de dos hombres desnudos (uno de ellos es el mismo McQueen), que se comunican exclusivamente a través de sus ojos. Su debut como director de cine “Hunger” (2008) muestra de manera contundente las últimas seis semanas de vida de Bobby Sands, miembro del IRA (también interpretado por Michael Fassbender)2, que había entrado en huelga de hambre. Su segundo película de cine “Shame” se estrenó en 2011 en el sexagésima octavo Festival de Cine de Venecia. El guion original fue escrito por McQueen y Abi Morgan (una dramaturga británica). Mientras Hunger, según McQueen, trata de un hombre sin libertad que usa su cuerpo como herramienta para ganar su libertad, Shame sigue a un hombre que disfruta de todas las libertades de la vida y que a través de su supuesta libertad sexual crea su propia prisión. En Shame, Steve McQueen re eja fríamente sobre la adicción sexual. McQueen en un una entrevista con ZEIT (Schwickert 2012) admite que está muy familiarizado con la sensación de perdición, la cual es el tema subyacente de la película. Señala que durante la preparación de la película en Nueva York habló con tres terapeutas considerados los expertos más competentes en el campo de la “adicción sexual”. Se estableció entonces el contacto con los afectados que estaban dispuestos a hablar sobre esta problemática. En las entrevistas con los afectados, encontró repetidamente el sentimiento de vergüenza (de ahí el título de la película). Independientemente de la película, la prensa amarilla con regularidad informa sobre supuestas estrellas sexualmente adictas al sexo como Michael Douglas, Tiger Woods o Megan Fox. Es interesante 214


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que los hombres "afectados" muchas veces compiten por el grado de su deseo sexual, como por ejemplo Arnold Schwarzenegger, quien se describe en su biografía como "un maníaco sexual peor que Tiger Woods". Además es importante notar que la Asociación Americana de Psiquiatría ha reemplazado el diagnóstico de "adicción sexual" del DSMV con “el término enmascarador” (Sigusch, 2013, p. 391) I, de "Hipersexualidad". Personalmente, me parece cuestionable hasta qué punto el diagnóstico "adicción sexual" representa adecuadamente los fenómenos mostrados en la película. Seguramente, como “eslogan”, ha ganado la atención del público y ha despertado la atención de los medios de comunicación. Al igual que el diagnóstico inicial de "adicción sexual", el título "Vergüenza" me parece equivocado, o al menos incompleto. Según mi opinión la sensación de vergüenza aparece sólo en su forma rechazada. Brandon no se avergüenza, está huyendo de la vergüenza, huyendo del vacío, y al mismo tiempo de sus sentimientos. Para decirlo con las palabras de Winnicott (citado por Kahn, 1975, 1996) es una persona que no está buscando una relación, sino que está "en la búsqueda de una capacidad que se encuentra en sí mismo" (ibíd., p. 366).II En este sentido, puedo estar de acuerdo con McQueen al mencionar que en su película el protagonista trata de “perderse”, de ser encontrado (o en el sentido de Winnicott, “encontrar algo”) y también de reconocer que uno puede cambiar. (McQueen, fuente DVD Extras). Estética de la película En la composición global de Shame se cristaliza el talento versátil artístico de Steve McQueens. El diseño de colores e interiores, además de los lugares elegidos y la banda sonora, constituyen el escenario y fondo de lo sucedido. Mientras la película por lo general seduce o más bien aturde por sus tonos azules y grises, una mezcla de frío y anhelo, nos sumergimos en momentos claves en una fusión de amarillo y rojo. Leonardo da Vinci describía la esencia y el efecto del color azul como una 215


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mezcla metafísica de la luz solar con la "negrura del eclipse del mundo" en su libro "Trattato della Pittura". Goethe, por otro lado, lo entendía "como un fenómeno de distancia psíquica y anhelo de sí mismo "(Schutt 1996, página 16). Para Goethe existían solamente dos colores puros: amarillo y azul, que él opuso diametralmente: azul al borde de la oscuridad y amarillo al borde de la luz. El color rojo lo asociamos generalmente al fuego, el amor y la pasión.3 Aquí también encontramos signi cados positivos y diametralmente opuestos. Incluso la música, a veces esférica, luego soñadora y otras veces fervorosa, acompaña no sólo la interacción de los sentimientos, sino también caracteriza la dualidad de los personajes. Brandon suele ser acompañado de los Preludios de Bach y las Variaciones de Goldberg interpretadas por Glenn Gould, un refugio perfecto que evoca una época pasada. Sissy le produce a él – y a nosotros una emoción frontal al estilo Beat de los 80s de "Chic". En su solo musical, revela su vulnerabilidad con una desgarradora versión de "New York, New York" que habría hecho llorar incluso a Liza Minnelli y Frank Sinatra. En la práctica artística de McQueen sobre todo el espacio, además del color y la música, forma un elemento narrativo y estructural. Los espacios y lugares que se muestran en Shame representan tanto las sensibilidades como el entorno social de los protagonistas y al mismo tiempo sirven como un medio de proyección y distanciamiento. En su ensayo sobre la obra de Steve McQueens, el historiador de arte Markus Klammer ha ilustrado “el uso del vidrio como medio de separación, re exión y meditación, ya sea como fachada de vidrio, espejo, ventana, ventanilla del auto o tabique en la o cina” (Klammer 2013, S. 102 ff).III El entiende las super cies de vidrio en su función formal-estética, como una función que mantiene al espectador a distancia, "divide el espacio proyectado en un área, desde la cual se observa, y a otra área que está bajo observación” (ibíd),IV Esto se puede observar por ejemplo, en la primera reunión de los dos hermanos. Mientras Brandon sorprende a su hermana en el baño, la 216


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cámara y, por lo tanto, el área supervisada permanece enfocada en él. Su reacción y la vergüenza por la confrontación inesperada con su hermana es el foco de atención (incluso cuando la reunión era previsible, como su hermana comenta en el siguiente discurso). Sólo a través del espejo en el fondo vemos dos personas haciendo contacto visual, a través del cual, el área observada se vuelve clara. Sissy intenta romper esta separación tirándole la toalla que Brandon le pasa. Tal, como si no quisiera desaparecer en el re ejo de la observación, sino que su hermano la percibiera en su relación con él. Brandon, sin embargo, rechaza esto y se aleja del espejo - y, por lo tanto, del espacio que está bajo observación. Desde el punto de vista psicodinámico, el uso múltiple de los espejos puede entenderse, en el sentido de la re exión de Kohut, no sólo como distancia e inaccesibilidad, sino también como deseo de conexión, atención y reconocimiento. Kohut (1971, 2007) describe con el término “re exión” la reacción empática y emocional de la madre hacia su hijo, la asimilación e imitación de gestos y expresiones faciales, así como las expresiones verbales del niño. Habla del "re ejo en el ojo de la madre", que le señala al niño, que es querido en su existencia y en sus acciones, por lo cual se refuerza su autoa rmación y por lo tanto no se siente solo en el mundo. Si esta autoa rmación a través del amor de la madre no es su ciente a menudo resulta en retraimiento narcisista y la auto-re exión se solidi ca, lo que a su vez impide relaciones interpersonales profundas. En la película, vemos primero a Brandon en un plano cerrado. Está desnudo en la cama de su departamento en Manhattan. La habitación, con su diseño impecable en blanco y negro y organizado de manera funcional, parece tan pulido, frío e inanimado como el propio Brandon. Fuera del departamento, la película nos muestra el Manhattan “cool”; La parte de una metrópolis donde todo es accesible las veinticuatro horas del día - en donde, según McQueen, existe "exceso y acceso". Las ubicaciones de "exceso y acceso" también se eligen de acuerdo a la verticalidad de la ciudad. Uno de los aspectos más destacados de la película es el canto de la hermana de Brandon, Sissy. La presentación toma lugar en la planta superior del Standard Hotel, el "Boom Boom 217


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Room", uno de los clubs nocturnos más de moda (y al mismo tiempo más caros) de la ciudad, con una ilustre lista de invitados. En los pisos más “bajos”, el hotel ofrece una vista grandiosa del río Hudson desde sus grandes departamentos ampliamente acristalados y sirve a Brandon como una visión “voyerista” de la vida y sexualidad de los demás, así como plantilla de sus propias fantasías sexuales ("exceso"). Al mismo tiempo, este mundo glamuroso y costoso es interrumpido repetidamente por los "no-lugares" (“non-lieu” Augé 1994); Ya sea el metro, el desolado paisaje del puerto o, trotando a través de las calles nocturnas casi desiertas de la “Gran Manzana”. Según Augé, "no-lugares" son, en particular, zonas mono funcionales en áreas urbanas y suburbanas como autopistas, estaciones y aeropuertos. La diferencia con el lugar tradicional, en particular antropológico, es la falta de historia, relación e identidad, así como en un abandono comunicativo. Para Augé el no-lugar, en contraste con el lugar, representa un debilitamiento de las funciones: "El espacio del nolugar no crea ninguna identidad particular y ninguna relación especial, sino la soledad y la semejanza" (Augé 1994, p.121)V. Por lo tanto, no parece ser una coincidencia que en la película la sexualidad (por ejemplo, bajo el paso subterráneo), así como la soledad de Brandon (en los muelles) se muestra en estos lugares. Sin embargo, al mismo tiempo podemos observar en estos mismos lugares cambios emocionales que ocurren durante la película, incluyendo el hecho de que Brandon parece cada vez más consciente de su soledad narcisista. La película causó sensación internacional en los círculos profesionales, tanto como en el público y en los folletines. Las opiniones se dividieron de manera controvertida entre "insistente", "existencial", "estiloso", "calculado", "trivial " o "taciturno/negativo". La película, el director, los dos actores principales, así como también la cinematografía y la edición, recibieron numerosas nominaciones y premios (incluyendo el premio del Festival de Cine de Venecia Coppa Volpi, el Premio del Cine Independiente Británico, nominaciones del Globo de Oro, el Premio Europeo de Cine, etc). Debido a su 218


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representación explícita de contenido sexual, la película recibió una cali cación NC-17 en los Estados Unidos (Ningún niño bajo 17 admitido: antes conocido como clasi cación X). A pesar de (o tal vez debido a) esta restricción, Shame fue un éxito en taquilla en los Estados Unidos. Impresión de la película Hambre, vergüenza y adicción En el período previo a su aparición había oído hablar de Shame y me produjo curiosidad. No conocía Hunger ni las otras obras del director. Cuando vi por primera vez la película, sentí, a pesar de la sexualidad relativamente explícita, poco placer, más bien sentí mucho más un “sentimiento de pérdida”. Más tarde también tristeza, que a veces incluso llegaba al límite de mi tolerancia al dolor (como sucedió más tarde en el caso de Hunger en forma extrema). Durante el encuentro y reencuentro con Brandon, por lo tanto, estuve sujeto a cierta resistencia, como si no quisiera abrirme, no quisiera conocer a Brandon como persona, y nalmente sólo busco distanciarme de él y protegerme de su comportamiento frío y distante, agresivo y destructivo. En retrospectiva, p are c i e r a c omo s i yo c omo e sp e c t a d or na l me nte i m ito involuntariamente la incapacidad de relacionarme con mi contraparte, tal como el protagonista de la película. Cada vez que vuelvo a ver la película me atrae aún más en términos de composición general, el uso de los colores, banda sonora y secuencias. Empecé a, tal vez, "inevitablemente", buscar vínculos y a percibirlos cada vez más, pequeños gestos y puentes asociativos. Siento que entré en sintonía con el personaje. También me conmovieron los encuadres utilizados, la composición, ya sea con la cara de Brandon, sus ojos, o viceversa, su visión de las mujeres. Comencé a interesarme no sólo por la película, sino también por el director McQueen y "su" actor Fassbender. Como pareja, ambos nos muestran corporalidad de manera intensa, a veces vulnerable, a menudo estética y otras veces desapasionada. Me pregunté en qué relación el 219


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director masculino se encuentra con el actor principal, si “miró” su cuerpo tan descaradamente con la cámara, si es porque le atrae físicamente o porque se trata de una especie de re ejo en blanco y negro, una sombra invertida. También consideré el papel que podía jugar el color de piel de los dos hombres, si la actriz de Marianne tenía que ser negra por lo mismo y cómo una mujer iba a percibir la película, con quién podría identi carse. "La teoría cinematográ ca feminista ha utilizado la teoría psicoanalítica desde hace muchos años, no sólo para enfatizar que la observación está en el centro del placer cinematográ co (Kinolust), sino también para enfatizar que el placer de observar absorbe las estructuras existentes de feminidad biológica o cultural. El “placer de observar” (Sehlust) depende del género y tanto el espectador como la espectadora pierden su identidad en la dinámica erótica inherente a la manera en que se ven las películas "(Mulvey 2000, p. 130; también vea. Laszig 2008).VI Interpretación psicodinámica En la cama con Brandon Tanto en la película, como en un encuentro psicoanalítico, los primeros minutos nos dan una idea de los temas centrales de nuestra contraparte. Así también en Shame. La primera escena, así como los primeros ocho minutos de la película transmiten de muy buena manera el tono emocional de nuestro protagonista, sin muchas palabras, casi sólo con la ayuda de imágenes y la banda sonora subyacente. En el primer plano vemos desde arriba a Brandon desnudo acostado en su cama. Mira con los ojos abiertos hacia al techo. Su mano izquierda sobre el ombligo, se mueve hacia arriba y hacia abajo al ritmo de su respiración, como tratando de sentirse a sí mismo, sentir su cuerpo. Probablemente acaba de despertarse, escucha los sonidos cotidianos del departamento del piso de arriba, el pitido de un despertador, los pasos amortiguados de un vecino anónimo. En el fondo, escuchamos el rápido tic-tac de un reloj, ritmo que acompañará a Brandon durante toda la película. De pronto tira la sábana hacia atrás, se levanta. Se oye el sonido 220


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de las persianas, la luz del sol de la mañana cae sobre la cama vacía, el título de la película, SHAME, se proyecta sobre la sábana azul arrugada en letras mayúsculas negras. Por un momento, estuvimos en la cama con Brandon. El cuerpo desnudo y musculoso del atractivo hombre y las sábanas arrugadas despiertan, por un lado, fantasías (sexuales), pero sus expresiones faciales, la atmósfera de soledad y el rápido tic-tac del reloj contrastan esas emociones. Las próximas escenas poseen un montaje rápido. En un momento vemos a Brandon "cazando" en el metro, en otro observamos el juego erótico con una prostituta y entremedio vemos escenas de Brandon solo en su departamento. En estos escenarios predominan los tonos grises y azules. Echémosle un vistazo a los temas de colores: hay azul, el color de la distancia, el anhelo y el blues de nuestro "héroe". De a poco vemos a Brandon en toda su corporalidad, incluido el reiterado enfoque de la cámara a su pene. Lo vemos orinar, su re ejo en el baño (en una especie de pantalla dividida), masturbándose en la ducha, la cara desenfocada en un plano cerrado y en la próxima escena, su rostro en el metro igualmente desenfocado. Los viajes en el metro pueden considerarse una simbolización de un (su) viaje a través del subsuelo, tal vez incluso el subconsciente de la ciudad. Vemos a Brandon en relación con sí mismo y con las mujeres. Como es característico de McQueen, la corporalidad es tema principal. En el sentido más verdadero de la palabra se enfoca la (supuesta) dominación fálica del pene. Las mujeres sólo parecen ser objetos de deseo, ya sea como el estereotipo de una joven adolescente soñando (con deseo, compromiso, matrimonio, etc.) en el metro o como producto estilizado, disponible y consumible. Del sueño de la prostituta queda solamente uno de pendientes olvidado en el velador. Como si hubiese querido, pese a su profesionalismo, un encuentro diferente. Pero eso (todavía) no parece posible con Brandon. En la escena de la masturbación frente el espejo, descubrimos su narcisismo (secundario): no hay otra persona o contraparte, falta un encuentro interpersonal. 221


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David … o cómo sentir vergüenza ajena Con la excepción de las mujeres, Brandon parece tener sólo una relación con David, su jefe. La primera aparición de David es algo confusa. Sus palabras también podrían estar relacionadas con Brandon, sobre todo si seguimos las indicaciones de la cámara: "Lo encuentro repugnante, lo encuentro desolado, lo encuentro intrusivo." Pero se trata de un discurso sobre la política de la empresa dirigido al equipo, en el cual deja a los críticos del progreso sin límites como los verdaderos cínicos. Destaca el poder de YouTube sobre los jóvenes, ante el cual (y, por ende, ante él) los críticos nalmente tendrán que rendirse. David, en contraste con Brandon, parece ser capaz de mantener relaciones. Un padre de familia, casado, de mediana edad, aparenta ser un padre responsable y un jefe benévolo. Pero mientras está negociando con su hijo, todo un papá responsable, a través de Skype, cómo comportarse con su madre, rechaza por teléfono casi simultáneamente su último “One-night-stand”. Cuando enfrenta a Brandon con el hecho de que se encontraron numerosos archivos pornográ cos en su computador, se nota que se divierte bastante al listar el contenido de los archivos, sin que quede claro, si no tal vez cree que estos archivos son propiedad de Brandon: "Tu disco duro es un asco…. O sea, está completamente sucio. Estoy hablando de putas, maracas, anal, doble anal, penetración, facial interracial, cream pie… ni siquiera sé qué es eso." A su manera, a veces histérica-exagerada, admira a Brandon, en primera línea por su don con las mujeres. Por otro lado, también se revela un plano homo-erótico. Cuando David, al sentarse en el taxi, arregla 222


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brevemente la bufanda de Brandon, cuando le da una palmadita en el trasero en la o cina, y también cuando tiene relaciones sexuales con la hermana de Brandon, buscando su proximidad física de varias formas. Su apariencia “ligera” parece forzada (y agotadora) sin ser auténtica. Lo que Brandon necesitaría (desde el punto de vista psicoterapéutico), sería un amigo sin miedo de confrontarlo, una contraparte adulta y masculina, un modelo paternal. Un rol que David no puede cumplir. Sissy, hermana amorosa y perseguidora En contraste con su jefe, Brandon parece ser un conquistador profesional. Como un héroe trágico, parece conocer su destino, incluso cuando no se opone a ello durante gran parte de la película. La vida de Brandon, su sexualidad, se caracteriza por un aspecto compulsivo repetitivo. En la película, esto se mani esta a través de la recurrencia escénica de los rituales como levantarse, ir al baño, y sus hábitos sexuales compulsivos. Para decirlo con las palabras de Joyce McDougal, Brandon se decide "una y otra vez por el acto “mágico” y su dolorosa y compulsiva calidad, en vez de confrontar [se con] el miedo, el dolor y sus demonios internos" (McDougall 1988, pág. 304)VII. También se siente perseguido por su hermana Sissy. En la película, aparece primero como una voz de fondo (mientras Brandon ve pornografía en el computador). A diferencia de Brandon, el cual parece ser una persona más pasivaagresiva, ella es una persona explosiva. Cuando quiere comunicarse con él por teléfono, lo hace de manera extremadamente dramática: "Me muero, tengo cáncer, sólo me queda una semana por vivir, cáncer vulvar..." Así mismo el primer reencuentro de los hermanos tiene un aire dramático: cuando Brandon llega a la casa, escucha música fuerte en la sala de estar: "I want your love, I want your love.." Armado con un bate de béisbol, entra al cuarto de baño y se encuentra con su hermana. Por cierto vemos a Sissy primero en el espejo, completamente desnuda, corporal, desprotegida, íntima. La canción de fondo ilustra tanto su relación con Brandon como con el mundo. Ama a su hermano y quiere ser amada. A pesar de su severidad, su hermano pareciera querer 223


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lo mismo a su manera, y el encuentro, un tanto vergonzoso se disuelve en risas y en un diálogo familiar, como si de viejos tiempos se tratara. Un primer acercamiento de sentimientos y relaciones. Sissy le da vida a la desesperación que vemos en la cara de Brandon. Más tarde, en una llamada telefónica con su novio Marc, Brandon, o nosotros, somos testigos de cómo el "I want your love" se convierte en un desesperado "Te amo, haría todo por ti". Una de las escenas claves de la película es la presentación de Sissy en el Boom Boom Room. La cámara, la mirada, se centra totalmente en su cara, ojos, nariz, boca. Su versión triste y lenta de "New York, New York" nos permite vivir este clásico de una manera completamente nueva y llena de emociones. En ese momento, podemos ver la conexión entre Brandon y Sissy que se mani esta a través de su dolor, los ojos brillantes de Sissy son complementados por las lágrimas de Brandon (aunque trata de ocultarlas inmediatamente). Sus defensas se desmoronan, y por un momento el frío Brandon se descongela, y al igual que su encuentro en el baño, Brandon se ve más humano. Sissy se sienta con los dos hombres y de paso, mientras observamos el intento bastante torpe de David de coquetear con ella, tenemos una breve visión de su vida. Cuando Sissy habla acerca de sus cicatrices y nos cuenta que son resultado de su "aburrimiento" como joven en Nueva Jersey, nos podemos hacer una idea más clara de la (auto) destructividad de los hermanos. Pero Sissy no sólo es la re exión femenina de Brandon en este sentido. Cuando termina con David en la cama un poco más tarde, vemos como Brandon espera frente al ascensor, como si esperara que su jefe bajara en cualquier momento. Arriba en su departamento, escucha cada vez más atormentado lo que está pasando en su habitación, hasta que nalmente huye del departamento, recorriendo las vacías calles de un nocturno Nueva York, solo es acompañado por la banda sonora . Brandon se ve re ejado en el comportamiento de Sissy. Un poco más adelante en la película él la acusará de: "¡No puedes evitarlo, es asqueroso! Te acuestas con el después 224


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de tan sólo 20 minutos, ¿qué te pasa? Sabes que él tiene una familia, ¿no viste su anillo?" La proyección es obvia (hasta el anillo, recordamos la escena en el metro), y Sissy responde de manera concluyente: "Esto no se trata de él. Te sigues enojando conmigo ¿y no sé por qué?" En su vida con ella, el enojo de Brandon crece cada vez más - pero al mismo tiempo pareciera sentirse más vivo. Un nuevo encuentro de los dos hermanos en el baño toma otro curso esta vez. Esta vez, es Sissy la que sorprende a Brandon en el baño. Está de pie frente al espejo masturbándose, ella sale riéndose del baño. Sólo vestido con una toalla, se lanza al sofá, encima de ella. Lo que inicialmente parece un juego de fuerza fraternal se intensi ca en sólo unos cuantos segundos. La escena parece ser la recreación de un ataque y Sissy comienza a gritar. Brandon le pregunta gritando qué quiere de él y por qué está aquí: "¡Háblame!" Esto también tiene un carácter proyectivo por dos aspectos. Por un lado está claro cómo Brandon se siente controlado, manipulado y perseguido por la presencia de su hermana. Por otra parte, es una versión enojada de las preguntas que le hizo Marianne durante su cita ("¿Por qué estamos aquí ..., por qué estamos aquí?") y su respuesta evasiva. En la pelea con Sissy, ella le recuerda su responsabilidad como hermano. Él la rechaza agresivamente y le dice que deje de victimizarse. Él no la trajo a este mundo, no la parió. Esta disputa en acento irlandés, es decir, con la afectividad de la infancia, también se puede interpretar como una referencia a la omisión informativa sobre el pasado de los dos protagonistas que se mantiene deliberadamente durante la película. Lo que Brandon le quiere decir a su hermana es que él no es su madre. Excepto por el lenguaje, la madre y el padre están totalmente ausentes en la película, un lugar oscuro que invita a la proyección, al igual que el departamento de Brandon, con su atmosfera estéril la cual no da ninguna 225


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indicación de recuerdos o de su historia personal. ¿Pero por qué Brandon se re ere a Sissy como víctima? ¿Y por qué Brandon tiene que mantener su superioridad sobre ella a través de la autoprotección e independencia (yo puedo cuidarme ... no dependo de la gente...)? Durante la película Brandon demuestra su supuesta superioridad, especialmente sobre las mujeres, una y otra vez. Él no es la víctima, las mujeres lo son. Y “tan pronto como la desesperación y los sentimientos de inferioridad surgen demasiado a la super cie, parece estar inquieto"(Stoller, p.164)VIII y actúa, sólo para no tener que enfrentarse y relacionarse con sus sentimientos. No sabemos qué tan traumática fue su infancia. Es muy probable que las cicatrices de Sissy no sean el resultado del aburrimiento, y el comportamiento sexualizado de los dos da lugar a suposición. No sabemos tampoco qué límites sobrepasaron, con quién y por qué los hermanos se mudaron de Irlanda a Estados Unidos cuando Brandon apenas tenía 10 años. Solamente sabemos que Sissy se re ere a sus orígenes como un "mal lugar". Ambos parecen sin embargo, aunque de manera distinta, estar en un círculo continuo de escape y búsqueda. La meta de la búsqueda, el objeto, parece ser completamente irrelevante, ya que el movimiento se dirige principalmente a la autorregulación y a la autotranquilización. En relación con esta estructura adictiva, McDougal habla de una falta de internalización de una parte de la madre y "... el peligro de ser obligado sin cesar a dejar que un objeto del mundo exterior reemplace uno que está dañado o simbólicamente ausente en su estructura psíquica interna e incluso en el mundo de su imaginación" (McDougal, 1988, p.330).IX McDougal habla de un "obstáculo" biográ co que se puso en el camino y que por ende, resulta en que se le da sentido a algo que falta o que está ausente. "Sólo queda una fría fantasía que impulsa el deseo de 226


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una situación adictiva". (McDougal, ibid.).X Este obstáculo permanece oculto durante la película. No se puede decidir a través de la película, si la madre estaba ausente (interiormente), si los padres eran abusadores, también en el sentido sexual, si la migración era necesaria y traumática aun cuando consideramos el contexto transgeneracional (Irlanda) de los protagonistas. Para el director esto no fue relevante y fue deliberadamente omitido. El contexto biográ co, con sus "obstáculos", es decir, el comienzo de la historia, sigue siendo un vacío, una brecha que tenemos que superar con nuestra mirada, con nuestras fantasías, con las asociaciones (el lugar malo, las cicatrices, la sexualidad, la destructividad, etc.) y posiblemente también con construcciones teóricas. El propio McQueen, según dice en una entrevista, se preocupa menos de la biografía que del "presente, del aquí y ahora" y de lo que el individuo puede desarrollar a partir de él (dossier de prensa SHAME 2012a). En este aspecto, el encuentro entre Brandon y Marianne es otro punto central de aceleración en la narración. Marianne en el "Aquí y ahora» Inicialmente vemos a Marianne en la película sólo como una gura marginal (durante el brie ng del personal de David). Gradualmente podemos observar el creciente interés sexual de Brandon por ella. Una mujer sensual, que también parece no oponerse a Brandon. En la escena de la cocina de la o cina le dice algo ambiguo: "¿Te gusta el azúcar?", lo que nos recuerda la ambigua canción "I want a little sugar in my bowl " de Nina Simone. Como si hubiera quedado todo claro, la película no muestra cómo los dos acuerdan la cita. En cambio, vemos como Brandon observa en un Nueva York nocturno a la gente a través de las ventanas - entre otras cosas la pareja copulando frente la ventana. También está mirando a Marianne, que ya lo está esperando, a través de la ventana del restaurante. Todavía mantiene su distancia, parece estar en control, la persona que cita a las mujeres y las deja esperando. Pero Marianne lo desequilibra, aunque de una manera diferente a Sissy. Mientras que en la situación desconocida de una "cita" 227


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aparece repentinamente indeciso e inseguro, ella es abierta y directa. En contraste con él, puede enfrentar y admitir sus inseguridades: Marianne: "Me demoré una hora en decidir qué ponerme." Brandon: "Has elegido bien." Su respuesta es profesional y al mismo tiempo revela sus defensas. En sus intentos de conocerlo, se vuelve cada vez más personal. Él le sigue el juego, pero cuando ella se entera de que su relación más larga duró cuatro meses, podemos sentir su irritación. "Tienes que involucrarte", dice ella, y él le responde: "Lo hice por cuatro meses". Ella repite sus palabras y su mirada se vuelve re exiva. Más tarde en la calle, la sorprenderá contándole una anécdota divertida de su pasado. Él le deja tocar una herida en su cabeza, el remanente de un juego infantil con su primo. En esta anécdota cuenta como él y su primo jugaban al “avioncito” y un día se accidentó y se pegó en la cabeza, quedó inconsciente por varios minutos y además se meó los pantalones. La historia parece ser un brusco espasmo emocional, el juego familiar con el primo, la pérdida de control, el aspecto vergonzoso, condensado entre las líneas de este pequeño episodio incidental. E inmediatamente después una nueva revelación: Brandon le pregunta si ella preferiría vivir en el pasado o en el futuro, Marianne contesta con una segunda pregunta. Su respuesta "cool" a querer ser músico en los años sesenta es cuestionada por ella. Ella considera un in erno esa época (el pasado infantil) una época caótica, el último lugar en el que ella quisiera vivir. En contraste con Brandon, Marianne quiere vivir (y amar) en "el aquí y ahora". Él esto lo encuentra "aburrido". Con estas palabras la rechaza aparentemente en broma. Para decirlo con las palabras de Virilio (1997, p.144) se podría establecer que huye "ante la realidad del momento", hacia la sobre estimulación, que también puede ser visto como una expresión de su miedo a un encuentro auténtico, amoroso y por lo tanto incontrolable; Una ambivalencia profundamente enraizada en forma de anhelo y al mismo tiempo temor del ver y ser visto. 228


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Pero Brandon no quiere huir, al día siguiente en la o cina besa a Marianne apasionadamente y la lleva a un hotel. Sin embargo, la autoestima del seductor es sólo super cial, en el baño toma secretamente cocaína, como si tuviera que crear un límite, un sentimiento sintético, entre él y ella. Pero Marianne sigue avanzando hacia él en el verdadero sentido de la palabra. Incluso toma la iniciativa durante el sexo. Ella se quita la camisa, lo acaricia mientras lo mira y él devuelve sus miradas. La reciprocidad de ver y ser visto es, por supuesto, también el signi cado simbólico de comprender y ser comprendido (Steiner 2015). Observamos a Brandon como trata de entrar en una relación mutua, o según Steiner, de dejar su refugio. El chiste de Brandon sobre los calzones antiguos de Marianne, nos recuerda por un lado la escena con su hermana, en la que se burla amablemente de su sombrero añejo. Por otra parte, también podría entenderse como un intento de protegerse, de ser visto. El “ver” se usa ahora de una manera agresiva para indicar las de ciencias del objeto, para privarlo de sus buenas calidades y exponerlo precisamente a esa humillación que el mismo teme (Steiner, p.17). Porque a pesar, o simplemente debido a esta proximidad íntima, Brandon pierde el control y pierde su erección. Marianne también parece estar consciente de la magnitud de la humillación y quiere deshacer lo ocurrido o no ocurrido al vestirse rápidamente e irse de ahí. En su vulnerabilidad, Brandon tiene di cultades a mantener la forma externa. Se ha abierto una grieta profunda en su fachada narcisista, y de a poco pierde el equilibrio dolorosamente mantenido por su vida sexual (ver McDougall 1988). Intuimos que este desarrollo terminará de manera dramática. Reboot the System! En armonía con el protagonista, la película gana velocidad tras el encuentro con Marianne, que se logra a través de rápidos y variados cambios de escena, la ruptura de la cronología y fade-outs. En la siguiente escena vemos a Brandon en un departamento del mismo hotel. La mujer desnuda que Brandon “folla por detrás” contra la ventana es una 229


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prostituta. El acto nuevamente corresponde a una duplicidad. En la super cie sirve para demostrar su potencia sexual y superioridad sobre las mujeres; El evitar el contacto visual por la posición en el acto probablemente no es una coincidencia, sino sirve como autoprotección. Al mismo tiempo, Brandon, por así decirlo, duplica la escena que había observado desde la calle en camino a la cita del restaurante con Marianne. Según Steiner, "el miedo a la humillación ... está directamente relacionado con la propia tendencia a observar y humillar a otros" (Weiß y Frank, Steiner, 2014, p.14).XI Observamos ahora una condensación escénica de temas como la sexualidad, el poder, el control, la sumisión, el voyerismo y el exhibicionismo, así como – como tono de fondo - el ya antes mencionado anhelo y miedo de ver y ser visto. También queda claro que a pesar de sus actos busca, anhela la normalidad de una relación. Lo que no logró hacer con Marianne, trata de lograrlo de manera inocente y torpe con la prostituta. Se ofrece a ayudarle a reparar el gancho de su sostén roto, le pregunta si quiere quedarse a tomar unos tragos con él y ésta lo rechaza con una sonrisa despectiva, como si quisiera decir: ¿Qué quieres? Ambos sabemos que esto no es real. No tenemos ninguna relación real y ya se acabó el tiempo. Todo lo que pasa de aquí en adelante tiene carácter de “erupción”. En primer lugar, la pelea con Sissy mencionada anteriormente, que es precedida por una escena regresiva en la que los dos, sentados abrazados en el sofá, ven monitos animados en la televisión. En su pelea, Brandon quiere liberarse de Sissy, de su persecución, dependencia y caos. Por supuesto esto es solamente super cial y no se trata realmente de ella sino más bien de una parte de sí mismo. Después de la pelea, Sissy deja el apartamento. Brandon bota todo su material pornográ co, revistas, videos e incluso su notebook en una bolsa de basura, pero antes de cerrar la bolsa se abre una de las revistas y vemos en primer plano y en rápida sucesión pechos, bocas, anos... un universo perverso lleno de objetos parciales. Él trata de deshacerse de sus dependencias, escondiéndolos, ahora probablemente algo avergonzado, en la basura. Pero una separación realizada por su ser externo no signi ca automáticamente 230


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que tenga el mismo impacto en su ser interno. En la película vemos a Brandon después de esta supuesta limpieza, sentado en el metro, agotado, con heridas en la cara, su fachada defensiva rota simbólicamente. Derrumbe y nuevo inicio? La escena en el bar es coqueteo, seducción, dominación y acto de autodestrucción en uno. La manera en que Brandon manipula a la joven sexualmente, nos recuerda en su franqueza indignante a los chats de sexo en Internet. Mientras él le está hablando en la barra del bar con palabras explícitas ("¿Estás con alguien aquí? ¿Te lame bien? Yo sí lamo bien, a mí me encanta... Quiero probarte, quiero meter mi lengua dentro de ti, justo cuando te vas”), con la mano debajo de su falda, vemos en los ojos de la joven, el placer por la tentación de exceder el límite. A pesar de toda la tensión sexual entre los dos, que resulta en el desvanecimiento de la habitación y de las demás personas, nos preguntamos realmente si el objetivo principal de Brandon es seducir a la mujer. Ya en el primer instante de su conversación, le pregunta a la joven si su novio la satis ce oralmente. No sólo se preocupa por la excitación de la joven, sino también por su pareja, el hombre de fondo. No sólo la mujer, sino también el tercero, son objeto de su conquista. Si observamos la escena en términos de un acto edípico, éste interrumpe el contacto intenso entre los dos “enamorados”, que aparentemente sólo tienen ojos el uno para el otro. Brandon no quiere ser el derrotado esta vez. Ahora ya no es cuestión de conquistar a la mujer, sino más bien la humillación, la subyugación del rival. De hecho, describe sus fantasías de una manera tan drástica que parecieran sacadas de una película porno. (Luego la cojo fuertemente por el culo, le meto las pelotas en la boca y le tiro mi leche en su cara). Incluso las respuestas aparentemente calmadas del oponente (por ejemplo, dirigido a su novia: "¿Y a mi no me dejas follarte por el culo?") destacan la lucha por la superioridad (masculina). Brandon gana la lucha por la 231


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última palabra al descomponerlo cuando le pone bajo la nariz el dedo con el cual antes tocó a su novia debajo de la falda. El supuestamente derrotado persigue a Brandon lo golpea y le escupe. Castiga y avergüenza al "Romeo", como si quisiera demostrarle quien domina a quien y que él tira sus uidos corporales al (odiado) Brandon. (Lamentablemente no puedo profundizar el tema de los "faciales" que se muestran en las películas pornográ cas. También las “sentencias de vergüenza” que desde entonces también son impuestas en los Estados Unidos, por ejemplo el permiso judicial del escupirle al "infractor de la ley", serían aspectos interesantes [ Schröder, 1997, en "Die Welt"]). Pero Brandon aún no se cansa y sigue vagando por la noche. Rechazado por el portero de un club, el guardián del orden (heterosexual), sigue a otro hombre, apoyado contra la pared en una actitud claramente ambigua. El camino hacia el club gay se pone en escena como el descenso al in erno. El tono antes azul de la película se transforma en un rojo brillante, y seguimos a Brandon al reino de los excesos homosexuales. Los dos se besan breve y violentamente. Inmediatamente, Brandon empuja a su oponente de rodillas y deja que lo satisfaga oralmente. En el fondo vemos una cortina plástica transparente sumergida en luz roja. Cortina y color se asemejan a una anticipación épica, una cortina de ducha sumergida en sangre. El exceso todavía no ha llegado a su n; Brandon parece estar "encima" de los hombres, pero sus demonios internos no lo dejan en paz. En su buzón de voz, escuchamos la solicitud implorante de Sissy de llamarla de vuelta. Mientras Brandon tiene sexo salvaje con dos prostitutas, la escuchamos de nuevo en el buzón, esta vez suena como un triste adiós cuando le dice: "No somos gente mala, sólo venimos de un lugar malo, gracias por dejar que me quede contigo". Con este último mensaje de Sissy vemos a Brandon y a las dos mujeres sumergidas en luz amarillenta en un éxtasis aparentemente ilimitado. La imagen se distorsiona, la música anhelante, esférica-despiadada, los 232


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pechos, bocas besándose, y una y otra vez el rostro de Brandon en primer plano, hasta que se distorsiona en un doloroso orgasmo. is is the End, my beautiful friend … is it? Camino a casa las puertas del metro no se abren debido a una señal de emergencia, el personal frenético del metro, el anuncio del conductor, todo apunta a que el llamado "daño personal", es un suicidio, Brandon recuerda la miseria de su hermana. Cuando poco rato después la encuentra ensangrentada en el baño, la película no tiene más palabras. La escena en el baño solamente es acompañada por la banda sonora. El baño de azulejos blancos es ahora un mar de rojo sangre. La música no para hasta que Brandon ve a Sissy en la cama del hospital y acaricia sus brazos con las "viejas" cicatrices autoin igidas. Se siente como el primer momento de compasión por parte de Brandon, de empatía espontánea y real. Cuando Sissy lo llama una "mierda" y pone su cabeza junto a la suya sobre la almohada, hay un momento de paz y unión - y, de cierta manera, la esperanza de que los dos hermanos sobrevivan a sus lesiones, cada quien a su manera. Simbólicamente, encontramos en la siguiente escena a Brandon solo bajo la lluvia. El tono es verde, el color de la curación y la esperanza. Los pilares de madera negra en las aguas del Pier 54 nos hacen recordar antiguas estelas.4 La meta parece ser alcanzada. Al nal de la película el círculo se cierra. Vemos a Brandon, pero no en su cama como en el comienzo de la película, sino sentado en el metro. Su ropa y su peinado un tanto más desordenados. Es imposible decir hasta qué punto el trastorno indica una relajación de su defensa compulsiva o si es una señal de su convulsión interna. Nuevamente se topa con la joven del principio de la película. Tiene puesto un lápiz labial diferente, más femenino, más maduro, un tono más intenso, un pelo rubio, rizado y suelto, una mirada directa. Coqueta, lanza la cabeza hacia atrás y señala con la cabeza hacia la salida. En primer plano, vemos el anillo de compromiso en la mano de la joven. Como símbolo, enmarca lo que ha sucedido. Visto puramente como un círculo, señala la repetición in nita 233


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del intento de reparación, la fuerza de la repetición. Pero Brandon no se acuesta en la cama como al principio de la película, ésta vez no está directamente detrás de la mujer y mira su mano a la distancia. El anillo es un símbolo de cpnexión, de amar y también de pertenecer. El uso del anillo en el dedo de la mano izquierda se debe a la idea egipcio-romana de que una vena, la llamada Vena amoris (lat. para “vena de amor”), llega directamente de este dedo al corazón. El tren se detiene. Pero esta vez vemos un fade a negro. Si existe un escape, un camino que lleva al corazón, si Brandon y Sissy pueden cambiar, si encuentran o son encontrados permanece nalmente en la obscuridad. LITERATURA Bailey C (2013) Überleben, Hunger und Shame. En: Steve McQueen. Werke. Katalogbuch Schaulager. Laurenz-Stiung,Schaulager, Basel CH; Kehrer, Heidelberg Fisher J (2013) Über Raum und Ort in den neueren Arbeiten von Steve McQueen. En: Steve McQueen. Werke. Katalogbuch Schaulager. Laurenz-Stiung, Schaulager Basel CH; Kehrer, Heidelberg Kahn M (1996) Nachwort zum Bruchstück einer Analyse. En: Winnicott DW, Blick in die psychoanalytische Praxis. Klett-Cotta,Stuttgart, pág. 471–496 (Primer edición 1975) Kohut H (2007) Narzißmus. Eine eorie der psychoanalytischen Behandlung narzißtischer Persönlichkeitsstörungen, edición 14, reimpresión. Suhrkamp, Frankfurt am Main (primer edición 1971) Laszig P (2008) Strange Days – Phantasmatische Rückkoppelungsschleifen der Entgrenzung. En: Laszig P, Schneider G (Hrsg) Film und Psychoanalyse – Kino lme als kulturelle Symptome. Psychosozial, Gießen, S 39–64 MacDougall J (1988) eater der Seele. Illusion und Wahrheit auf der Bühne der Psychoanalyse. Verl. Internat. Psychoanalyse, Munich Schutt D (1996) Die Farbe Blau: Versuch einer Charakteristik. Lit Verlag, Munich 234


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(3) En hebreo, las palabras rojo y sangre tienen el mismo origen: Rojo signi ca "dm" y sangre "dom". (4) Estela es la denominación de un monumento, usualmente monolítico con inscripciones, en forma de lápida, pedestal o cipo, que se erige sobre el suelo y puede tener una función conmemorativa, funeraria, religiosa o geográ ca. En ellas se inscribían textos, signos, símbolos, y guras, describiendo el porqué de su ubicación, constituyendo importantes documentos para arqueólogos e historiadores, apoyados por especialistas en epigrafía. (fuente: Wikipedia) Notas de la traductora (J. Schreiber) (I) »eher maskierenden Terminus« (Sigusch 2013, pág. 391) (II) »auf der Suche danach, in sich selbst eine Fähigkeit zu nden« (Winnicott cita de Kahn 1975, 1996) (ibíd., pág. 366). (III) »Einsatz von Glas als einem trennenden, zugleich re ektierenden und re exiven Medium – sei es als Glasfassade, Spiegel, Fenster, Autoscheiben oder Trennwand in Büros« beleuchtet (Klammer 2013, pág. 102 ff) (IV) »den projizierten Raum in einen Bereich (teilt), von dem aus beobachtet wird, und einen Bereich, der unter Beobachtung steht« (Klammer 2013, pág. 102 ff) (V) »Der Raum des Nicht-Ortes scha keine besondere Identität und keine besondere Relation, sondern Einsamkeit und Ähnlichkeit« (Augé 1994, pág. 121) (VI)»Die feministische Filmtheorie hat über Jahre psychoanalytische eorie genutzt, nicht nur um hervorzuheben, daß Sehen im Mittelpunkt der Kinolust steht, sondern auch um zu betonen, daß die Lust des Sehens bestehende Strukturen der biologischen oder kulturellen Weiblichkeit absorbiert. Die Sehlust ist geschlechtsabhängig und der Zuschauer ebenso wie die Zuschauerin, verliert seine/ihre Identität in der erotischen Dynamik, die der Art des Filmebetrachtens innewohnt« (Mulvey 2000, pág. 130; vea también Laszig 2008). (VII) »immer wieder für die magische Handlung und ihre schmerzlich 237


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zwanghae Qualität, statt sich [mit] der Angst und Qual sowie seinen inneren Verfolgern [zu] konfrontieren« (McDougall 1988, pág. 304) (VIII) sobald Verzwei ung und Minderwertigkeitsgefühle zu nah an die Ober äche drängen … scheint er endlos, rastlos zu wiederholen« (Stoller, pág. 164) (IX) »… [der] Gefahr, unablässig gezwungen zu sein, ein Objekt der Außenwelt einstehen zu lassen für eines, das in seiner inneren seelischen Struktur und sogar in der Welt seiner Fantasie beschädigt oder symbolisch abwesend ist« (McDougal 1988, pág. 303). (X) »Erhalten bleibt nur eine verhärtete Phantasie, die das Verlangen nach einer süchtigen Situation steuert …« (McDougal, ibíd.) (XI) »die Angst vor Demütigung … in einem direkten Verhältnis zur … eigenen Tendenz, andere zu beobachten und zu demütigen (Weiß und Frank in Steiner 2014, pág. 14) Información sobre el autor Parfen Laszig, Dr. (doctor scientiarum humanarum), psicólogo, psicoterapeuta, psicoanalista (DGPT), terapeuta didáctico y supervisor. De 1993 a 2004 asistente de investigaciones en la clínica psicosomática del Hospital Universitario de Heidelberg. Desde 2005 estableció su práctica propia. Actividades de supervisión, docencia e investigación en diversas clínicas e institutos; Editor Jefe de la revista " Psychoanalyse im Widerspruch" y editor de la revista "Psychotherapeut". Autor de numerosos artículos y varios libros, más recientemente junto a Lily Gramatikov como editor de Lust & Laster - Was uns Filme über das sexuelle Begehren sagen. Springer, 2017. Más información en: www.psychoanalytische-ressourcen.de

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