FISIOPATOLOGIA E ATUALIZAÇÃO TERAPÊUTICA DA
LIPODISTROFIA GINOIDE (LDG) CELULITE
FISIOPATOLOGIA E ATUALIZAÇÃO TERAPÊUTICA DA LIPODISTROFIA GINOIDE (LDG) CELULITE LUIZ HENRIQUE CAMARGO PASCHOAL Ex-Professor Titular de Dermatologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina do ABC Livre-Docente de Dermatologia pela UNIFESP Doutor em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
MARISA GONZAGA DA CUNHA Médica Dermatologista. Responsável pelo Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Dermatocosmiatria da Faculdade de Medicina do ABC
HUGO CIPORKIN Médico Endocrinologista (in memoriam)
2a Edição Revisada e Ampliada
Fisiopatologia e Atualização Terapêutica da Lipodistrofia Ginoide (LDG) – Celulite, Segunda Edição Revisada e Ampliada ISBN 978-85-8053-034-6 Copyright © 2012 by Di Livros Editora Ltda. Rua Dr. Satamini, 55 – Tijuca Rio de Janeiro – RJ/Brasil CEP 20270-232 Telefax: (21) 2254-0335 dilivros@dilivros.com.br www.dilivros.com.br
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Projeto gráfico/capa: CLR Balieiro Ilustrações: Ricardo Côrrea Impresso no Brasil – Printed in Brazil
PREFÁCIO
O livro Lipodistrofia Ginoide 1a edição, publicado há alguns anos, foi marco na dermatologia pelo seu pioneirismo em abordar um assunto tão complexo e ao mesmo tempo tão controverso. Seu autor, Dr. Luiz Henrique Paschoal, sempre esteve à frente do seu tempo e há vinte anos já escrevia sobre lipodistrofia ginoide, que até então era considerada uma alteração estética e sem importância. Somente uma pessoa visionária e corajosa poderia naquela momento captar essa necessidade e discorrer sobre ela com tanta clareza e profundidade. Já a Marisa, conheci como Marisa Gonzaga na Universidade de São Paulo. Fizemos o curso de graduação em medicina juntas, sendo que nesse período já tive a oportunidade de conhecer suas qualidades como inteligência brilhante, comprometimento, ética e lealdade. A Marisa sempre esteve em evidência em relação aos estudos e também estava pronta a ajudar os colegas nas circunstâncias difíceis. Além disso, compartilhamos momentos descontraídos nos jogos e competições do basquete feminino da Universidade de São Paulo. Isso mostra a versatilidade de suas ações: da médica a esportista. Já no final do curso de medicina foi uma grata surpresa quando ambas escolhemos a dermatologia como especialidade a seguir. Marisa continuou se destacando principalmente na área de cosmiatria da qual foi uma desbravadora. Hoje, coordenando o curso de pós-graduação em cosmiatria da Fundação ABC continua imprimindo sua marca de seriedade, competência e comprometimento. Sua participação neste livro com certeza trará benefícios a todos os dermatologistas interessados na área. Com a edição atualizada os autores nos brindam com um texto moderno, objetivo e completo sobre um tema tão relevante. Os capítulos sobre etiologia e histopatologia traduzem os mecanismos envolvidos na etiopatogenia da lipodistrofia ginoide de forma compreensível. O capítulo sobre tratamentos esgota as diversas possibilidades terapêuticas desta alteração.
Para os dermatologistas especialistas que compreendem a amplitude da dermatologia e que necessitam de bibliografia de valor, ele será muito bem-vindo. É gratificante poder prefaciar o livro de um mestre que sempre soube estimular o dermatologista especialista a buscar o conhecimento na dermatologia.
Denise Steiner Professora Titular do Serviço de Dermatologia da Universidade de Mogi das Cruzes Diretora da Biblioteca da Sociedade Brasileira de Dermatologia – SBD Nacional
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................1 1. HISTOLOGIA E REVISÃO DA FISIOLOGIA DO TECIDO CONJUNTIVO ADIPOSO ...........................................................5 Histologia topográfica da pele ...........................................................................5 Histologia do tecido conjuntivo ..................................................................6 Células .......................................................................................................6 Fibras .........................................................................................................8 Substância fundamental ..........................................................................8 Hipoderme e tecido celular subcutâneo ...............................................9 REVISÃO DA FISIOLOGIA DO TECIDO CONJUNTIVO ADIPOSO ..........9
Conceito das unidades operacionais ................................................................9 Unidade operacional matricial-intersticial (UMI) .......................................11 Fibroblastos ..................................................................................................11 Colágeno .......................................................................................................12 Estrutura..................................................................................................12 Biossíntese do colágeno .........................................................................13 Análogos da prolina .........................................................................14 Corticosteroides ................................................................................14 Colchicina ..........................................................................................14 Agentes quelantes .............................................................................15 Aminoácidos naturais, poliaminas ou análogos ...........................15 Nitrilos e sais de silício.....................................................................15 Mecanismo enzimático de degradação do colágeno extracelular....15 Substância fundamental..............................................................................16 Importância e funções biológicas das glicosaminoglicanas e proteoglicanas..................................................................................17
Unidade operacional microcirculatória (UMC) ...........................................21 Anatomia vascular do tecido conjuntivo adiposo e subcutâneo ...........21 Microcirculação ...........................................................................................22 Estruturas elementares da microcirculação........................................24 Tecido intersticial da microcirculação ......................................................25 Microcirculação dos líquidos tissulares....................................................26 O papel das proteoglicanas ...................................................................26 Estrutura do conjuntivo intersticial ..........................................................26 Estrutura laminada ................................................................................26 Sistema sol-gel ........................................................................................27 Interstício tamis ......................................................................................27 Microcirculação linfática ............................................................................27 A via linfática e a microcirculação na patogênese da LDG ...................28 Compartimento e dinâmica dos líquidos corporais ...............................29 Relação entre volume de líquido intersticial e pressões tissulares ........32 Troca e regulação de líquidos.....................................................................34 Regularização das pressões e volumes no líquido intersticial ...............35 Fatores que influenciam a microcirculação do tecido conjuntivo adiposo ..........................................................................................................36 Fatores endógenos ..................................................................................36 Fatores exógenos ....................................................................................37 Unidade operacional neurovegetativa (UNV) ..............................................38 Inervação do tecido dermo-hipodérmico ................................................38 Etapas da neurotransmissão.......................................................................39 1a etapa – síntese do neurotransmissor ..............................................39 2a etapa – armazenamento da noradrenalina .....................................41 3a etapa – liberação do mediador químico .........................................42 4a etapa – indução da atividade ao receptor .......................................42 5a etapa – término da atividade do neurotransmissor ......................45 Mecanismo de regulação da liberação da noradrenalina .......................46 Unidade operacional energético-adiposa (UEA) .........................................48 Tecido adiposo .............................................................................................48 Adipócito ou célula adiposa branca ..........................................................49 Anatomia topográfica do tecido adiposo subcutâneo ............................50 Aspecto da pele ............................................................................................53 Região e segmento corporal comparando-se magros e obesos .............53 Tipos de tecido gorduroso ..........................................................................56 Desenvolvimento do tecido adiposo normal ...........................................57 Fases do desenvolvimento do tecido adiposo normal ............................57
Adiposidade circunscrita feminina ...........................................................64 Fisiologia e metabolismo no tecido adiposo ............................................67 Lipogênese e lipólise....................................................................................67 Lipogênese...............................................................................................67 Lipólise ....................................................................................................70 Sistema neurovegetativo ..................................................................70 Hormônios lipolíticos atuantes como 1o mensageiro no “sistema adenilciclase” .................................................................75 Hormônios tireoidianos...................................................................78 Hormônio mobilizador de gorduras ..............................................78 Polipeptídio intestinal (VIP) ...........................................................78
2. ETIOLOGIA E FISIOPATOLOGIA DA LIPODISTROFIA GINOIDE ...............79 Etiologia .............................................................................................................83 Fatores predisponentes ...............................................................................84 Anatomia .................................................................................................84 Hereditariedade ......................................................................................84 Fatores desencadeantes ..............................................................................85 Hiperestrogenismo.................................................................................86 Mudanças fisiológicas dos esteroides ovarianos durante o ciclo menstrual ....................................................................................86 Estradiol .............................................................................................86 Progesterona ......................................................................................86 Hiperestrogenismo absoluto ...........................................................87 Globulina ligadora de esteroides sexuais (SHBG)........................88 Hiperestrogenismo relativo .............................................................89 Hiperestrogenismo receptivo ..........................................................89 Fatores coadjuvantes endógenos ...............................................................91 Enzimas ...................................................................................................92 Insulina ....................................................................................................92 Hormônios tireoidianos ........................................................................93 Prolactina ................................................................................................94 Hormônio luteinizante (LH) ................................................................94 Glucagon .................................................................................................94 Somatotrofina (GH) ...............................................................................95 Somatomedina ........................................................................................96 Hormônios adrenais − glicocorticoides ..............................................96 Hormônios adrenais − mineralocorticoides ......................................96 Hormônios adrenais – esteroides sexuais ...........................................97
Gravidez ..................................................................................................97 Puerpério e lactação...............................................................................98 Mastócitos ...............................................................................................99 Sistema neurovegetativo ........................................................................99 Fatores coadjuvantes exógenos ................................................................100 Hábitos alimentares .............................................................................100 Sedentarismo ........................................................................................100 Fatores emocionais...............................................................................101 Hábitos de vida .....................................................................................101 Doenças .................................................................................................101 Fisiopatogenia..................................................................................................102 Unidade matricial-intersticial ..................................................................103 Unidade microcircultória (UMC) ...........................................................104 Unidade neurovegetativa (UNV) ............................................................106 Unidade energético-adiposa (UEA) .......................................................107 3. CLÍNICA DA LIPODISTROFIA GINOIDE ......................................................111 Anamnese ........................................................................................................111 Antecedentes pessoais ....................................................................................112 Exame físico .....................................................................................................113 Formas clínicas da LDG .................................................................................116 LDG dura ....................................................................................................116 LDG branda ou difusa ..............................................................................116 LDG edematosa .........................................................................................118 LDG pura ....................................................................................................118 LDG com gordura .....................................................................................118 LDG com obesidade ..................................................................................118 LDG latente ou grau I ...............................................................................120 LDG incipiente ou grau II ........................................................................120 LDG crítica ou grau III .............................................................................120 LDG fibrolipodistrófica ou grau IV ........................................................122 4. EXAMES COMPLEMENTARES NA LIPODISTROFIA GINOIDE ............123 Exames laboratoriais gerais ...........................................................................123 Exames complementares específicos ............................................................123 Macrofotografia .........................................................................................124 Medidas antropométricas .........................................................................124
Termografia por anodo .............................................................................124 Xenografia...................................................................................................126 Ecografia bidimensional ...........................................................................126 Impedância bioelétrica..............................................................................126 Ressonância magnética .............................................................................126 Fluxometria de Doppler por laser ...........................................................127 Exame anatomopatológico .......................................................................127 5. TRATAMENTO DA CELULITE .........................................................................129 Cuidados gerais ...............................................................................................130 Medidas dietéticas ....................................................................................130 Fundamentos da composição qualitativa da dieta ..........................131 Atividade física...........................................................................................134 Perda de peso .............................................................................................135 Vestuário .....................................................................................................136 Anticoncepção hormonal .........................................................................136 Tratamento tópico ...........................................................................................137 Hialuronidase e thiomucase .....................................................................138 Substâncias lipolíticas ...............................................................................139 Silícios orgânicos .......................................................................................141 Extratos vegetais ........................................................................................142 Gingko biloba ........................................................................................142 Castanha-da-índia (Aesculus hippocastanum) .................................142 Centella asiatica ....................................................................................143 Vitis vinifera ..........................................................................................143 Hera (Hedera helix) ..............................................................................143 Rucus aculeatus ....................................................................................143 Melilotus o翿�cinalis ..............................................................................144 Glechoma hederaceae ...........................................................................144 Coleus foskohlii .....................................................................................144 Nicotinato de metila ..................................................................................144 Retinoides ...................................................................................................144 Princípios ativos usados no tratamento da LDG...................................145 Tratamento sistêmico .....................................................................................149 Diosmina ....................................................................................................150 Castanha-da-índia (Aesculus hippocastanum) .......................................150 Gingko biloba .............................................................................................150 Rutina ou rotosídeo ...................................................................................151 Centella asiatica .........................................................................................151 Exemplos de fórmulas ...............................................................................151
Tratamentos fisioterápicos .............................................................................153 Endermologia.............................................................................................153 Drenagem linfática manual ......................................................................155 Pressoterapia ..............................................................................................157 Eletroterapia ...............................................................................................158 Ultrassom....................................................................................................160 Fonoforese ..................................................................................................162 Tratamentos complementares .......................................................................163 Mesoterapia ................................................................................................163 Vetores de transporte ................................................................................167 Componentes variáveis .............................................................................168 Lipolíticos ..............................................................................................168 Tiratricol ..........................................................................................168 Derivados das xantinas ..................................................................169 Trissilinol (silício orgânico ou salicilato de monometilsilanotriol)................................................................169 Ioimbina ...........................................................................................170 Venotrófi cos, venolinfáticos e vasoativos..........................................170 Extrato de rutina (vitamina P) ......................................................170 Extrato de Melilotus .......................................................................171 Melilotus + rutina............................................................................171 Extrato de chá verde .......................................................................171 Gingko biloba ..................................................................................172 Benzopirona ....................................................................................172 Cloridrato de buflomedil ...............................................................173 Taraxacum o翿� cinale ......................................................................173 Eutróficos ..............................................................................................173 Centella asiatica ..............................................................................173 Melanges ..........................................................................................174 Radiofrequência .........................................................................................175 Infusão intradérmica de CO2 ...................................................................180 Eletrolipoforese ..........................................................................................182 Subcision .....................................................................................................183 Laser ............................................................................................................184 Lipossucção ................................................................................................184 Preenchimento ...........................................................................................184 Microagulhamento ....................................................................................185 Aplicação ...............................................................................................186 Radiofrequência fracionada .....................................................................188 Conclusão.........................................................................................................189
6. LEITURA COMPLEMENTAR NOÇÕES BÁSICAS PRELIMINARES DA FISIOLOGIA NEUROENDÓCRINA MOLECULAR .............................................................191 Mediador químico e receptor ........................................................................191 Conceito de hormônio ...................................................................................191 Tipos de hormônios ..................................................................................192 Conceito de receptor ......................................................................................195 Ligação hormônio-receptor ...........................................................................196 Agonistas e antagonistas ................................................................................196 Localização e número de receptores.............................................................197 Mecanismo de ligação do hormônio ao receptor .......................................198 Interação do complexo hormônio-receptor com as estruturas efetoras ..198 Conceito de neurotransmissor ......................................................................201 Bases celulares da neurotransmissão ......................................................201 Transmissão sináptica ...............................................................................202
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................205
FISIOPATOLOGIA E ATUALIZAÇÃO TERAPÊUTICA DA
LIPODISTROFIA GINOIDE (LDG) CELULITE
INTRODUÇÃO
A “celulite”, com a infelicidade terminológica já na sua primeira descrição clínica e anatomopatológica feita em 1926 por Paviot e posteriormente por Lagese em 1938, ambos em Lyon (França), provocou controvérsias, pois, de acordo com o seu sufixo “ite”, significava um processo inflamatório da hipoderme, sendo que a “celulite” não pertence a este tipo de afecção. De fato, o termo celulite não corresponde à realidade. Teoricamente seria aconselhável trocá-lo por outro termo mais adequado, como lipodistrofia ginoide, paniculose ou fibroedema geloide subcutâneo, para condizer com a sua própria histopatologia. Porém, apesar de parecer mais lógico, sendo esta patologia tão conhecida entre médicos e pacientes sob esta nomenclatura, trocá-la agora geraria novas confusões. A maioria dos pesquisadores concorda que o termo celulite deve permanecer inalterado evitando mal-entendidos que retardariam os progressos nas investigações. Porém, acreditamos que a denominação lipodistrofia ginoide(LDG) seria a mais acertada, por ser um termo científico que etimologicamente significa: lipo, relativo à gordura, distrofia, que demonstra desordem nas trocas metabólicas do tecido, e ginoide, designativo da forma de mulher. Portanto, este termo descreve a alteração genuína e locorregional do panículo adiposo, determinante no formato corporal característico do sexo feminino com perda do equilíbrio histofisiológico local e, portanto, será o utilizado na nossa descrição. O excesso de publicidade tornou esta patologia muito divulgada e, talvez por isto mesmo, não muito valorizada pela classe médica. Embora todos reconheçam tratar-se de um transtorno estético sério com repercussão psicossocial muitas vezes grave, acabam relegando a LDG ao segundo plano no tratamento de suas pacientes. “Uma das principais razões da atitude, perfeitamente compreensível do médico, diante da falta de soluções para este problema, deve-se ao desconhecimento desta patologia e ao fato de a classe médica não ter disponíveis medicamentos únicos, verdadeiramente ativos contra esta afecção” (J. Bargheon, 1976).
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LIPODISTROFIA GINOIDE
Além disso, a LDG nos seus vários graus é extremamente frequente, com incidência em torno de 95% na faixa etária entre 15 e 45 anos, ou seja, na fase reprodutiva feminina, estando diretamente ligada à ação dos hormônios femininos. Sendo assim, para alguns autores, é mais um sinal secundário característico da mulher na idade adulta do que uma patologia que mereça tratamento. A LDG está frequente e erroneamente associada à obesidade, embora sejam fundamentalmente diferentes e apresentem fatores patogênicos diversos (Fig. 1). Sua própria refratariedade aos meios dietéticos e medicamentos ativos no tratamento da obesidade comum levou, na atualidade, a superar esta postura. A obesidade pode se apresentar como fator de piora e não como desencadeante desta afecção. Respaldada pelos avanços dos conhecimentos adquiridos graças às novas técnicas de pesquisa, hoje a LDG é considerada uma afecção específica e anatomoclínica autônoma. Trata-se de uma hipodermodistrofia regional, cuja incidência é exclusiva na mulher, agregada ou não à obesidade do tipo ginoide,
Figura 1 LDG na mídia.
INTRODUÇÃO
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que acomete a região dos quadris, nádegas, membros inferiores e, menos frequentemente, abdome e face lateroposterior dos braços. Sua ocorrência mais frequente é durante a puberdade e na fase reprodutiva. Tem um fator predisponente heredoconstitucional, ao qual se agregam múltiplos fatores etiopatogênicos complexos e interligados. As manifestações clínicas visíveis e palpáveis da LDG constituem: • pele “acolchoada” e flácida, com múltiplas depressões e superfície irregular, em que se alternam protuberâncias e pequenas áreas deprimidas; • pele em “casa de laranja”, devido à tumefação dos planos superficiais da pele e à dilatação dos poros foliculares. Este aspecto se acentua com a compressão; • pode ocorrer a associação de queixas como facilidade para formação de hematomas, sensação de peso, tensão e dores, principalmente à palpação (Fig. 2).
Figura 2 Manifestações clínicas.
Como este fenômeno nosológico atinge vários “elementos-alvo” da derme e hipoderme, é promissor fazer uma detalhada revisão histológica, anatômica e fisiológica do tecido conjuntivo adiposo (Fig. 3). Estes conhecimentos certamente nos farão compreender mais facilmente os novos conceitos da fisiopatologia da LDG e os mecanismos de ação dos vários tratamentos propostos.
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LIPODISTROFIA GINOIDE
A
B
Figura 3 Ilustração da derme e hipoderme na LDG (A) e na pele normal (B).
Neste sentido e de forma esquemática foram idealizadas por Merlen e Dalloz-Bourguignon quatro unidades funcionais: a microcirculatória, a matricial-intersticial, a neurovegetativa e a energético-adiposa, que operam interligadamente no tecido conjuntivo adiposo. Este conceito tem como propósito estabelecer critérios definidos para a pesquisa da fisiopatologia e da terapia aplicada à LDG. Embora altamente prevalente, apenas um número reduzido de estudos tem sido publicado na literatura internacional e muitos deles com conclusões contraditórias, o que dificulta a escolha do esquema adequado de tratamento. Há muitas razões para a falta de investigação de qualidade sobre o assunto e, por outro lado, temos enorme quantidade de informações pseudocientíficas que geram inclusive falsas expectativas em nossas pacientes. Deve-se sempre ter em mente que a celulite é uma expressão fisiológica da adiposidade feminina e que, apesar de ser uma preocupação cosmética importante, poderá apenas ser controlada, mas não curada, uma vez que não se trata de uma doença.
HISTOLOGIA E REVISÃO DA FISIOLOGIA DO TECIDO CONJUNTIVO ADIPOSO
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O professor J.F. Merlen (1954) definiu a lipodistrofia ginoide como uma “lipodistrofia segmentar ou localizada do tecido conjuntivo subcutâneo com relação a uma estase venolinfática regional. Esta dermo-hipodermose prefigura uma histangiopatia ou uma resposta fibroblástica que precede as alterações do segmento capilaro-venular e é mantida por elas”. Assim, conhecer a histologia e a fisiologia da derme e da hipoderme é de fundamental importância para o entendimento da fisiopatologia da LDG e para a orientação do seu tratamento.
HISTOLOGIA TOPOGRÁFICA DA PELE A pele é constituída por estruturas complementares: a epiderme (de origem ectodérmica), a derme e a hipoderme (ambas de origem mesodérmica). A espessura da epiderme varia de 0,4 mm nas pálpebras a 5 mm nas regiões plantares. Na face, sua espessura e estrutura variam de acordo com a região. A epiderme é um tecido epitelial que repousa sobre a membrana ou lâmina basal e é constituída pela camada germinativa ou basal, pela camada espinhosa, pela camada granulosa e pela camada córnea. As células epidérmicas estão ligadas entre si por apêndices proteicos (desmossomas) e se comunicam através de filamentos proteicos que ligam um núcleo ao outro e que ligam as células epidérmicas à derme. A derme é um tecido conjuntivo que compreende, da superfície para a profundidade, as seguintes camadas: Derme papilar: com densidade celular elevada, principalmente fibroblastos, rica em capilares e onde estão localizados os corpúsculos táteis de Meissner.
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LIPODISTROFIA GINOIDE
Derme reticular: rica em fibras elásticas e colágenas paralelas à superfície e embebidas pela substância fundamental. À medida que se aproxima da hipoderme, o tecido conjuntivo se torna mais denso, rico em fibras elásticas e pouco vascularizado. Esta camada inferior faz a transição entre a derme e a hipoderme. Hipoderme é a estrutura profunda da pele. É um tecido conjuntivo frouxo e rico em adipócitos. Traves fi brosas ligam a derme profunda àfascia superficialis, formando os lóbulos adiposos. A vascularização e a inervação seguem ao longo destas traves. Nesta camada estão localizados os folículos pilosos e as glândulas sudoríparas. A fascia superficialis faz o limite entre o tecido celular subcutâneo e a aponeurose muscular do músculo subjacente (Fig. 1.1). HISTOLOGIA DO TECIDO CONJUNTIVO É conveniente insistir sobre os aspectos histológicos do tecido conjuntivo dérmico e sobre a matriz extracelular, estruturas em que ocorrem as primeiras modificações na LDG. Do ponto de vista didático, o tecido conjuntivo é formado por cinco elementos: células, formações fibrilares, substância fundamental, vasos sanguíneos e vasos linfáticos e nervos (sendo que estes três últimos possuem estreita relação). Células Fibroblastos: são as células mais importantes e numerosas do tecido conjuntivo. São programadas geneticamente para realizar a biossíntese dos quatro tipos de macromoléculas constituintes da matriz extracelular: as fibras colágenas, as fibras elásticas, as proteoglicanas ricas em polissacárides e em ácido hialurônico e as glicoproteínas de estrutura que compreendem numerosas famílias de proteínas conhecidas como “nectinas” (Fig. 1.2). Células do sistema retículo-histiocitário: que constituem as demais células e capilares. Plasmócitos e mastócitos: são as células com competência imunológica e estão presentes na derme papilar. Sua função principal é sintetizar anticorpos. Adipócitos: são as grandes células com conteúdo graxo e triglicérides. Nos adipócitos ocorre a lipólise e a lipossíntese, responsáveis pela estocagem das gorduras. O metabolismo dos adipócitos será discutido posteriormente. Na hipoderme, os adipócitos são agrupados em lóbulos, delimitados pelas traves conjuntivo-vasculares. Cada lóbulo é servido por uma artéria, duas vênulas e
HISTOLOGIA E REVISÃO DA FISIOLOGIA DO TECIDO CONJUNTIVO ADIPOSO
Limite superior – Epiderme Derme papilar
Derme reticular
Hipoderme – Camada adiposa superficial areolar
– Fáscia conjuntiva superficial
Limite inferior – Aponeurose muscular
Figura 1.1 Arquitetura esquemática da pele. J.F. Merlen.
Histiócito Fibroblasto
Linfócito
Fibras colágenas
Fibras elásticas
Figura 1.2 Células da derme.
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LIPODISTROFIA GINOIDE
um vaso linfático. A distribuição e forma dos lóbulos são diferentes no sexo feminino e no masculino. A hipertrofia dos adipócitos é responsável pelo aspecto capitonné da pele na LDG: as traves conjuntivas são distendidas pelos lóbulos hipertrofiados, porém estão presas na fascia superficialis (Fig. 1.1). Fibras Fibras colágenas: são as mais numerosas, constituindo 98% do contingente fibroso. No corpo humano estão presentes 14 tipos diferentes de colágeno: são fibras que apresentam estrias transversais e apresentam-se dispersas ou agrupadas em feixes paralelos. Na derme, temos a presença principalmente do colágeno tipo I e a maior parte da parede capilar é constituída de colágeno IV, que forma uma rede que permite a filtragem e condiciona as propriedades de tonicidade capilar. Fibras elásticas: estão organizadas em rede com basicamente três elementos: as fibras oxitalânicas na derme papilar, perpendiculares à lâmina basal; as fibras elaunínicas na derme reticular superficial, paralelas à lâmina basal, e as fibras elásticas propriamente ditas que se insinuam na derme média e profunda. São fi nas e anastomosadas em trajeto retilíneo. Fibras reticulares: derivadas do colágeno tipo III e com elevado teor de glicídios, elas formam uma rede em torno das células da derme papilar e das alças capilares, cumprindo a função de arcabouço e vetor de comunicação intercelular. Substância fundamental É constituída essencialmente por glicoproteínas de estrutura, proteoglicanas, sais minerais (NaCl) e água, o solvente principal das macromoléculas. A substância fundamental ou amorfa está em contato direto com o capilar, mantendo equilíbrio físico-químico constante. Apresenta-se em duas fases cambiáveis entre si: Fase gel: rica em proteoglicanas (sulfato de condroitina e ácido hialurônico) e em glicoproteínas de estrutura (principalmente fibronectina), impermeável às moléculas graxas e às proteínas, controlando assim a difusão de líquidos intersticiais e o edema. Fase sol: que é de fato o “líquido intersticial”. Este líquido circula lentamente entre os elementos géis, entre os vasos e entre as células, através de lagos intersticiais. Devido a suas características bioquímicas bem específicas, diferencia-se do plasma e da linfa (Fig. 1.3).
HISTOLOGIA E REVISÃO DA FISIOLOGIA DO TECIDO CONJUNTIVO ADIPOSO
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Capilar sanguíneo endotelial
Poro capilar
Traços de proteoglicanos Fase gel Fase sol Fibras de colágeno
Poro linfático Capilar linfático endotelial
Figura 1.3 Compartimento intersticial (segundo Merlen).
Hipoderme e tecido celular subcutâneo A hipoderme é um tecido celular adiposo contido por traves fibrosas perpendiculares à derme, separando-os em lojas adiposas. Estes lobos adiposos, localizados entre a derme e a fascia superficialis, servem de passagem aos vasos e aos nervos provenientes do tecido celular subcutâneo (Fig. 1.4). O tecido celular subcutâneo, como seu nome indica, está abaixo da pele e seu conteúdo graxo é independente das células da hipoderme. Sua espessura aumenta e diminui de acordo com o ganho de peso e situações específicas que determinam a formação da gordura localizada.
REVISÃO DA FISIOLOGIA DO TECIDO CONJUNTIVO ADIPOSO CONCEITO DAS UNIDADES OPERACIONAIS Após os trabalhos de Merlen sobre a unidade vásculo-circulatória, Dalloz-Bourguignon postulou o conceito das “unidades operacionais”: o conjunto órgão-funcional-homeostático do tecido conjuntivo dérmico. Seguindo esta ideia conceitual e com o único objetivo de complementação para o estudo e
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LIPODISTROFIA GINOIDE
DERME DR
HIPODERME
EPIDERME DP
EC
GS
EC: EXTRATO CÓRNEO DP: DERME PAPILAR DR: DERME RETICULAR GS: GL. SUDORÍPARA : FIBRAS COLÁGENAS
Figura 1.4 Estrutura da pele (aumento 400x) – histologia UFGD.
a compreensão da fisiopatologia e terapêutica aplicada das lipodistrofias localizadas, Ciporkin e Paschoal criaram e acrescentaram mais duas unidades: a matricial-intersticial e a energético-adiposa. Fundamentando-se na primícia básica de que a fisiologia patológica da LDG abrange também a camada tecidual hipodérmica, do ponto de vista funcional consideraremos o tecido dermo-hipodérmico (que denominaremos de conjuntivo adiposo) e suas quatro unidades operacionais interligadas que descritivamente são: 1a) Unidade operacional – unidade matricial-intersticial (UMI). 2a) Unidade operacional – unidade microcirculatória (UMC). 3a) Unidade operacional – unidade neurovegetativa (UNV). 4a) Unidade operacional – unidade energético-adiposa (UEA). As unidades operacionais estão sob o comando de um “sistema integralizador central” e todos seus eventos fisiológicos participam de um verdadeiro arco-reflexo, com ações e reações recíprocas controladas por um “mutualismo cooperativo operacional”. Deste modo, estas quatro unidades estão interligadas e em sintonia mútua mantendo o equilíbrio dinâmico do tecido conjuntivo adiposo.
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UNIDADE OPERACIONAL MATRICIAL-INTERSTICIAL (UMI) Nesta unidade funcional o principal protagonista é o fibroblasto pela sua responsabilidade tanto na diferenciação celular quanto na síntese, secreção e degradação da maior parte dos elementos constituintes do tecido em questão. Para melhor compreendermos esta unidade discorreremos com detalhes alguns tópicos de suma importância para esta unidade (Fig. 1.5).
Macromoléculas intersticiais
Fibroblastos
Figura 1.5 Unidade operacional matricial-intersticial.
FIBROBLASTOS O fibroblasto é uma célula de origem mesenquimal que migra pelo tecido e é responsável pela síntese e degradação das proteínas fibrosas e não fibrosas da matriz do tecido conjuntivo. É capaz de sintetizar mais de um tipo de colágeno e de elastina simultaneamente. A própria morfologia do fibroblasto sugere a sua atividade sintética ativa. A fibronectina, componente de sua membrana celular, fixa-o à matriz fibrosa. Estas células também sintetizam e segregam as enzimas colagenase e gelatinase, que rompem e degradam as fibrilas de colágeno. Os fibroblastos migram entre os feixes fibrosos, mas raramente invadem ou ficam retidos entre eles. É importante ressaltar que tanto o comportamento celular como a proliferação de fibroblastos são mediados pelo equilíbrio dos nucleotídeos cíclicos.
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Sabe-se que numerosos hormônios, mensageiros extracelulares e fatores de crescimento afetam a relação AMPc/GMPc intracelular, estimulando ou inibindo o metabolismo celular. Por exemplo, Okeefe e Pledger demonstraram evidências de um novo modelo de controle do ciclo celular, em que os aumentos do AMPc intracelular atuariam sinergicamente com o fator de crescimento de plaquetas (FCPL) estimulando a divisão celular. Agora, quando separadamente inibe-se a fosfodiesterase com metilxantinas ou através do emprego experimental da toxina colérica, o incremento de AMP cíclico provoca uma resposta contrária, isto é, uma inibição da proliferação. COLÁGENO Estrutura Corresponde a uma família de proteínas estreitamente relacionadas. São os componentes fibrilares principais do tecido conjuntivo e as maiores proteínas extracelulares do corpo humano. O colágeno deposita-se como grandes feixes de fibras orientadas de maneira regular. Estas fibras estão compostas por fibrilas e microfibrilas. As microfibrilas estão dispostas de forma paralela, o que determina um padrão de estrias transversais. O protótipo do colágeno é o tipo I, composto por três cadeias polipeptídicas (alfa) enroladas entre si, similarmente aos fios de uma corda, de forma que a molécula de colágeno possua uma estrutura de “tríplice hélice” (Fig. 1.6). Cadeia polipeptídica
Estrutura de “tríplice hélice” da molécula do colágeno 1,5 nm ≈ 300 nm
Fibra de colágeno
10-300 nm 67 nm
Figura 1.6 Esquema da formação do colágeno.
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O aperfeiçoamento das técnicas de estudo revelou que o colágeno constitui uma família de proteínas, produzidas por diversos tipos de células e que se distinguem na composição química, propriedades físicas, morfológicas, distribuição nos tecidos e funções. Mais de uma dúzia de tipos de colágeno já foram descritos, mas os principais são os tipos I a V. Na derme encontramos os colágenos I e III. O colágeno IV é encontrado nas lâminas basais. As consideráveis variações no conteúdo e na sequência de aminoácidos observadas no colágeno aplicam-se em parte pelo grau de modificação das cadeias polipeptídicas após a tradução de um RNA mensageiro de colágeno (RNAm) e talvez pela existência de vários outros genes distintos, que codificariam as cadeias com sequências de aminoácidos variáveis. Os mais importantes para o entendimento da LDG são: Colágeno tipo I: constitui 90% do total de colágeno do corpo dos mamíferos. Formam fibras e feixes muito resistentes. Encontrado nos tendões, ligamentos, cápsulas dos órgãos, derme, tecido conjuntivo frouxo, ossos, dentina, etc. É sintetizado pelos fibroblastos, odontoblastos e osteoblastos. Colágeno tipo III: frequentemente associado ao tipo I, é o colágeno que forma as fibras reticulares. Elaborado pelos fibroblastos e células reticulares. Biossíntese do colágeno O colágeno é sintetizado por diversos tipos de células, como osteoblastos, condroblastos, odontoblastos, células musculares e, de maior importância no nosso caso, por fibroblastos, que servirão de exemplo. A biossíntese pode ser dividida em duas etapas: a intracelular (fase fibroblástica) e a extracelular (fase matricial). Dentro de cada uma destas fases podem-se distinguir os seguintes passos sucessivos: 1. De acordo com a codificação do RNA mensageiro, polirribossomas ligados ao retículo endoplasmático sintetizam cadeias polipeptídicas que crescem para o interior das cisternas citoplasmáticas. 2. À medida que essas cadeias se formam, ocorre a hidroxilação da prolina e da lisina. A hidroxilação só começa quando a cadeia atinge certas dimensões dentro dos ribossomas e continua após a liberação da proteína na cisterna. No processo tomam parte duas enzimas específicas, a prolina-hidroxilase e a lisina-hidroxilase, tendo como cofatores o oxigênio, sais ferrosos e a vitamina C. 3. Quando a hidroxilisina se forma começa a glicosilação por intermédio da galactosil e da glicosil-transferase mais o cofator manganês dando origem às cadeias colágenas alfa.
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4. Cada cadeia alfa é sintetizada com dois peptídios de registro, um em cada extremidade. Estes peptídios determinam o alinhamento das cadeias proteicas em grupos de três (associação das cadeias, ligaduras dissulfeto e formação da tríplice hélice), facilitando a combinação destas cadeias para a formação de uma molécula de pró-colágeno. Outra função dos peptídios de registro é impedir a formação de fibras colágenas no interior das células, pois as moléculas de pró-colágeno não se agregam como acontece com o tropocolágeno. Os peptídios de registro são separados das cadeias alfa, no meio extracelular, pela ação das enzimas proteolíticas (pró-colágeno peptidases que, na presença de íon cálcio, promovem a conversão de pró-colágeno em colágeno). 5. No meio extracelular originam-se, então, as moléculas de tropocolágeno, que se polimerizam para formar as fibras colágenas com ligaduras cruzadas intramoleculares por ação da lisil oxidase mais o cofator cobre. O controle na produção e depósito de colágeno nos tecidos pode ocorrer de diversas maneiras. Nos parágrafos seguintes discorreremos de maneira detalhada cada uma destas possibilidades. Análogos da prolina A incorporação de certos análogos de aminoácidos nas cadeias polipeptídicas no lugar da prolina prevê a torcedura em tríplice hélice estável. É útil para o controle da produção e armazenamento de fibras colágenas e provavelmente está alterada em vários processos patológicos. Corticosteroides Os corticosteroides inibem a síntese do colágeno de três maneiras: a) As concentrações baixas afetam a expressão genética do colágeno por inibição da velocidade de transcrição e a consequente redução dos níveis de RNAm pró-colágeno. b) As concentrações altas reduzem a atividade de propil-hidroxilase, com diminuição da síntese de hidroxiprolina e consequentemente a quantidade de colágeno a ser sintetizado. c) Concentrações médias (terapêuticas) inibem a gelatinase, fato que ativaria o mecanismo de autorregulação da gelatinase no processo de degradação do colágeno. Colchicina A secreção de pró-colágenos realiza-se nas vesículas do retículo endoplasmático do fibroblasto por translocação intracelular, com a formação de microtú-
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bulos que são afetados seletivamente pela colchicina, retardando a secreção e estimulando a produção de colagenase. Agentes quelantes A conversão de pró-colágeno em colágeno realiza-se pela intervenção de duas peptidases, aminoterminal e carboxiterminal, na presença de cálcio. Estas são inibidas pelos agentes quelantes como o tetracetato de eteramina. Aminoácidos naturais, poliaminas ou análogos Previnem a remoção das extensões carboxiterminais dos pró-colágenos tipos I e II durante a conversão extracelular de pró-colágeno em colágeno. Como estas moléculas precursoras parcialmente processadas são incapazes de unir-se às fibras funcionais, o depósito extracelular de colágeno fica reduzido. Nitrilos e sais de silício O primeiro passo na formação de ligações cruzadas do colágeno é a desaminação oxidativa, cuja catalização pela lisil oxidase requer Cu como cofator. Tal enzima é inibida pelos nitrilos, beta-aminopropionitrilo e por sais de silício (salicilato de monometil-silanetriol). Mecanismo enzimático de degradação do colágeno extracelular O mecanismo fisiológico pelo qual o colágeno é degradado é único, pois requer uma enzima “específica”, a colagenase, capaz de atacar a tríplice hélice. Esta colagenase tissular compreende uma classe distinta de metaloendoproteases que catalizam a ruptura das cadeias polipeptídicas da molécula de colágeno. Formam um grupo de proteases neutras, nas quais o zinco é o metal no sítio-ativo e que também requer a participação do cálcio extrínseco. A enzima é secretada pelos fibroblastos na forma inativa, como a pró-enzima pró-colagenase ou zimógeno, o qual é ativado por dois mecanismos: (1) ruptura proteolítica (tripsina) e (2) processo de autoativação, por meio de mecanismos ativadores de diversas origens (como a progesterona e os corticoides, por exemplo). A colagenase ativa é reversamente inativada por inibidores tissulares das metaloproteases (ITMP), próprios dos fibroblastos, e este seria o mecanismo de regulação da degradação lenta nos diferentes tipos de colágenos (I, II, III e IV). No mecanismo enzimático da degradação, primeiramente atuaria a colagenase e a seguir a gelatinase, com sua ação sobre os produtos finais gelatinosos da degradação do colágeno, ambas sob o controle dos ITMP. A gelatinase também é inibida farmacologicamente pela cortisona.
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Participam na regulação da síntese da colagenase os hormônios-sensíveis da adenilciclase – AMPc, bem como as substâncias que inibem a fosfodiesterase (metilxantinas, por exemplo). A inibição da produção da colagenase e gelatinase pode ser realizada pelos corticoides, retinoides e fenitoínas. Pelo contrário, a colchicina estimula a produção da colagenase. SUBSTÂNCIA FUNDAMENTAL A matriz extracelular do tecido conjuntivo constitui-se de uma parte fibrilar (fibras colágenas e fibras do sistema elástico), entre a qual se interpõe a substância intercelular amorfa, composta por proteoglicanas, ácido hialurônico e glicoproteínas. Juntamente com o colágeno e os componentes elásticos, as proteoglicanas constituem as principais macromoléculas da matriz extracelular do conjuntivo, estando também relacionadas com as lâminas basais e com o revestimento das superfícies celulares. Todas as macromoléculas da matriz extracelular são secretadas pelos fibroblastos. As proteoglicanas são formadas por união covalente das proteínas às glicosaminoglicanas (antigamente denominadas mucopolissacarídeos ácidos). As moléculas de glicosaminoglicanas e de proteoglicanas formam um gel amorfo, muito hidratado, no qual as fibras colágenas e elásticas ficam embebidas. Enquanto as fi bras colágenas dão resistência e sustentação, ajudando a organizar a matriz, a fase aquosa do gel, constituída de polissacarídeos, permite a difusão dos nutrientes, metabólitos e hormônios entre o sistema circulatório e as células teciduais. As moléculas de elastina também estão presentes para aumentar a resiliência da matriz. Entre as glicoproteínas, a de maior importância na matriz extracelular é a fibronectina, que é amplamente distribuída no tecido conjuntivo, e a laminina na lâmina basal. Quimicamente as glicosaminoglicanas são caracterizadas por cadeias de carboidratos altamente polimerizados. Contêm de 150 a vários milhares de unidades de sacarídeos, com uma sequência de repetição regular, usualmente com dois tipos de açúcar, hexamina e ácido hexurônico, alternando-se por todo o comprimento da cadeia molecular. A hexamina é derivada de hexoses simples pela substituição de uma hidroxila por um radical amino. O ácido hexurônico é derivado das hexoses por oxidação do C6 resultando num radical carboxila. Este grupo confere propriedades levemente ácidas aos polímeros que os contêm. As glicosaminoglicanas são assim denominadas porque um dos dois sacarídeos da sequência de repetição é sempre um amino açúcar (N-acetilglucosamina ou N-acetilgalactosamina). São altamente amônicas devido à presença
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de grupos carboxila, de radicais sulfato ou ambos na maioria dos açúcares que constitui a cadeia molecular. Sete grupos de glicosaminoglicanas podem ser distintos, seja pelo tipo de sacarídeos de sua cadeia, seja pela ligação entre estes sacarídeos ou pelo número e localização dos grupos sulfato. Enumeramos a seguir os sete grupos: 1. ácido hialurônico (único em que nenhum dos sacarídeos é sulfatado); 2. condroitina-4-sulfato; 3. condroitina-6-sulfato; 4. sulfato de dermatana; 5. sulfato de heparana; 6. sulfato de queratana; e 7. heparina. O ácido hialurônico é o mais importante componente da substância amorfa. As outras glicosaminoglicanas, por ligações covalentes, unem-se às proteínas formando as proteoglicanas, que no passado eram denominadas mucoproteínas. Proteoglicanas são macromoléculas complexas que contêm um núcleo proteico no qual, por ligação covalente, pelo menos uma cadeia de glicosaminoglicanas está ligada. Esta simples definição engloba um enorme número de estruturas envolvendo diferentes núcleos proteicos, diferentes números e tamanhos de cadeias de glicosaminoglicanas. Esta enorme versatilidade em nível molecular permite que as proteoglicanas tenham as mais variadas funções biológicas nos tecidos. As proteoglicanas são organizadas na matriz extracelular por meio de um processo de agregação muito específico que envolve duas macromoléculas adicionais: o ácido hialurônico e a proteína de ligação. A associação entre as três moléculas, ácido hialurônico, proteoglicanas e proteínas de ligação, determina um complexo estruturalmente estável denominado macroagregado de proteoglicanas. As enzimas proteolíticas têm ação degradante sobre estes agregados. Importância e funções biológicas das glicosaminoglicanas e proteoglicanas Recentemente tem ocorrido um interesse considerável não só em relação à estrutura e ao metabolismo das proteoglicanas, mas também em sua influência nas propriedades funcionais das células e dos tecidos, bem como no seu papel na diferenciação celular e na interação célula e célula-matriz. Muitas são as funções biológicas em que Zucharelli et al. consideram o compartimento intersticial um sistema biofísico-químico de duas fases: uma fase gel e uma fase sol. A fase gel, rica em proteoglicanas, é impermeável às grandes moléculas e proteínas, enquanto a fase sol é formada por verdadeiras “lacunas líquidas” que circundam as proteínas. Água, eletrólitos, substâncias de baixo peso molecular circulam nas duas fases, mas na fase gel o fazem mais lentamente. A fase gel é considerada a mais característica do compartimento extracelular e desempenha numerosos e importantes papéis.
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Devido à presença das glicosaminoglicanas, o gel intersticial adquire uma capacidade físico-química de fi xar líquidos para dentro da sua estrutura, o chamado “efeito esponja” causado por sua pressão osmótica (2 mmHg) e por um fenômeno de sucção hidráulica. Com estas propriedades, a substância fundamental na fase gel proporciona: • Maior resistência à compressão, fato importante para os tecidos moles (mucosa, pele, celular subcutâneo), já que tensionam a rede de colágeno pela absorção de água ocasionada por sua elevada densidade de carga elétrica (radicais carboxila e sulfatos), segundo Pedlar (1984). • Diminuição do fluxo do líquido livre que auxilia a dar formas ao corpo por meio de um suporte elástico (arcabouço). Sem essas forças retentoras, o líquido livre, por ação da gravidade, apareceria nas partes pendentes do corpo. • Barreira protetora, impedindo a disseminação das bactérias, a não ser que elas possam dissolver o próprio gel, pois são incapazes de movimentar-se nesse tipo de meio dentro dos tecidos. • Espaço apropriado entre as células para uma nutrição favorável. • Distância ótima entre os capilares e as células, garantindo os benefícios das trocas de nutrientes e metabólitos. Para Dallof (1986) as proteoglicanas, além de criar alta pressão osmótica, com consequente microedema, afetam o transporte e a retenção de íons na matriz extracelular. Segundo Bartold et al. (1982), a difusão dentro da matriz (passagem de metabólitos de e para as células) estaria afetada em diversas circunstâncias. Mudanças no seu estado e composição química influenciariam profundamente tanto as células, em particular, quanto o tecido como um todo. Ruggeri e Benazzo (1981) afirmam que a importância das proteoglicanas não se restringe somente a seu aspecto de sustentação e transporte molecular. Colágeno e proteoglicanas sempre coexistem na matriz extracelular do tecido conjuntivo e têm grande interação molecular. Acredita-se que as proteoglicanas influenciem a produção de colágeno, a montagem das fibrilas colágenas, seu crescimento e arranjo espacial tridimensional de acordo com a função específica do tecido. Myers et al. (1973) mostraram que a maioria dos filamentos interfibrilares divide-se perto do lugar de adesão às fibrilas colágenas. Sugeriram ainda que estes filamentos representam, na realidade, agregados lineares de glicoproteínas e proteoglicanas conectando fibrilas colágenas. Desta forma, estes agregados, presumivelmente unidos por pontes de hidrogênio e interação iônica, proveriam ligação mecânica de curta duração entre fibrilas colágenas (Fig. 1.7).
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Colágeno (tipo I)
ca gli teo Pro na
Proteína de ligação Proteoglicana
Ácido hialurônico Sulfato de condroitina
Colágeno (tipo I)
Figura 1.7 Aspectos moleculares de proteoglicana e “macroagregado”.
Mickalites e Orlowki (1977) notaram que as proteoglicanas representam um papel importante na estabilidade da fibra colágena, já que tem um efeito significativo na determinação do comprimento e do diâmetro delas. Segundo Bartold e Page (1986), as proteoglicanas têm o poder de aumentar o depósito de colágeno e reconstituir a matriz extracelular. Smith e Bernfield (1982) demonstraram que as glicosaminoglicanas da lâmina basal são degradadas pelo mesênquima, evidenciando um importante mecanismo de interação epitélio-mesênquima. Trabalhos como os de Lau, Linde e Kofoed demonstram o turnover das macromoléculas. As glicosaminoglicanas não estão num estado estático, em vez disto estão continuamente sendo sintetizadas e degradadas. O turnover de cada tecido varia quantitativa e qualitativamente em diferente espaço de tempo e é influenciado por inúmeros fatores, tais como: • Variação topográfica: as proporções relativas variam com a espécie, entre indivíduos da mesma espécie e nas diferentes regiões corporais de um mesmo tecido. • Idade: Tomanczyk e Pankiewicz (1972) postularam que o conteúdo das proteoglicanas no organismo é maior na idade embrionária, decrescendo no período pós-embrionário, estabilizando-se na fase adulta, para decrescer novamente na fase senil. • Estrógenos: produzem o aumento do ácido hialurônico e condroitina-6-sulfato.
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• Gravidez: há aumento do ácido hialurônico e das glicosaminas, tanto ácidas quanto neutras ao se comparar com mulheres não grávidas. • Hipotireoidismo: em que se observa que o material mucinoso do “mixedema” contém grandes quantidades de ácido hialurônico e sulfato de condroitina. • Diabetes: observa-se uma redução da concentração total de glicosaminas e aumento de heparina. Com a administração de insulina restaura-se quase inteiramente o nível de todas, exceto o da heparina. • Corticoides: a hidrocortisona diminui o ácido hialurônico, sulfato de condroitina e heparina. A prednisona e outros fluorados diminuem o sulfato de condroitina e aumentam o ácido hialurônico. • Hormônio de crescimento: administrado em animais jovens hipofisectomizados aumenta o recâmbio de ácido hialurônico e sulfato de dermatana que estava diminuído. • Difenil-hidantoinato de sódio: aumenta tanto as glicosaminoglicanas como a quantidade de colágeno. • Prostaglandinas: as glicosaminoglicanas foram estimuladas de maneira dose-dependente e, segundo Greene (1982), o AMPc deve ter um papel regulador. • Propiltiuracil: aumenta o ácido hialurônico e diminui o condrointina-6-sulfato e o sulfato de dermatana. • Enzimas: que degradam as glicosaminoglicanas extraídas do veneno de abelhas, cobras, sanguessugas e bactérias o fazem com especificidade variável. A enzima hialuronidase rompe a cadeia de glucosaminoglicanas para produzir uma família de oligossacarídeos pares de diferentes tamanhos, contudo é menos ativa para os sulfatos de condroitina (mais lentamente) e não degrada o dermatana, heparana e heparina. Outra enzima proteolítica é a papaína que recambia as proteoglicanas nos tecidos (experimentalmente). Finalmente, temos a mucopolissacaridase com atividade condroitinásica mais específica. • Outros fatores: pH, O2, vitaminas A e C participam como reguladores da síntese e secreção das glicoproteínas e glicosaminoglicanas. Bartold et al. estudaram o efeito do fluxo de radicais de oxigênio livre no ácido hialurônico e nas proteoglicanas. Os resultados refletiram a capacidade de o oxigênio livre despolimerizar o ácido hialurônico das proteoglicanas e acreditam que este mecanismo seja responsável pela destruição destas macromoléculas na inflamação, já que os polimorfonucleares (neutrófilos) são muito ativos em reduzir O2 a O, quando expostos a estímulos que induzam fagocitose. O ácido hialurônico é degradado pelo calor.
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Capilares Plexo superficial
Vasos comunicantes
Plexo profundo
Figura 1.8 Vasculatura da derme e hipoderme.
seus trajetos são sempre paralelos ao desenho anatômico do sistema venoso. Porém, há uma grande diferença, pois o venoso é um sistema tubular “fechado”, enquanto o linfático caracteriza-se por ser um sistema canalicular “aberto” ao interstício para a sua drenagem, sendo esta a sua função específica, assegurando o transporte das grandes moléculas proteicas desde os tecidos até o sistema circulatório. MICROCIRCULAÇÃO O capilar sanguíneo é unanimemente reconhecido como a peça mestra da microcirculação, porém está longe de constituir o elemento de união de todo o sistema circulatório. Este sistema é formado por um conjunto complexo composto de microvasos, cujos diâmetros são inferiores a 50 mícrons (capilar = 3,5 mícrons; arteríola final = 15 mícrons; vênula inicial = 20 a 30 mícrons e canalículo linfático = 30 a 50 mícrons). Esta intrincada rede com elementos linfáticos e banhada pelo conjuntivo intersticial, formando uma “unidade elementar de função”, é chamada de Angéion por Zweifach Tischendorf (Fig. 1.3).