pentagrama
Lectorium Rosicrucianum
a crise / ouse viver cruz@mento muito além do horizonte luz próxima ayn rand e a virtude do egoísmo o mal e o senhor do mar a árvore e a floresta
2013
número
6
Edição Rozekruis Pers Redação Final P. Huijs Redação K. Bode, W.v.d. Brul, A. Gerrits, H.v. Hooreweeghe, P. Huijs, H.P. Knevel, F. Spakman, A. Stokman-Griever, G. Uljée, L. v.d. Brul Diagramação Studio Ivar Hamelink Secretaria K. Bode, G. Uljée Redação Pentagram Maartensdijkseweg 1 NL-3723 MC Bilthoven, Países Baixos e-mail: info@rozekruispers.com Edição brasileira Pentagrama Publicações www.pentagrama.org.br Administração, assinaturas e vendas Pentagrama Publicações C.Postal 39 13.240-000 Jarinu, SP livros@pentagrama.org.br assinaturas@pentagrama.org.br Assinatura anual: R$ 80,00 Número avulso: R$ 16,00 Números de anos anteriores R$ 8,00 Responsável pela Edição Brasileira R. Dias Luz Coordenação, tradução e revisão M.V. M. de Sousa, N. Soliz, M.M.R. Leite, M.B.P. Timóteo, M.D.E. de Oliveira, M.R.M. Moraes, R.D. Luz, F. Luz, A. Nunes-Hänel Diagramação, capa e interior D.B. Santos Neves Lectorium Rosicrucianum Sede no Brasil Rua Sebastião Carneiro, 215, São Paulo - SP Tel. & fax : (11) 3208-8682 www.rosacruzaurea.org.br info@rosacruzaurea.org.br Sede em Portugal Travessa das Pedras Negras, 1, 1º, Lisboa www.rosacruzlectorium.org escola@rosacruzaurea.org © Stichting Rozekruis Pers Proibida qualquer reprodução sem autorização prévia por escrito ISSN 1677-2253
tijd voor leven 4
Revista Bimestral da Escola Interna cional da Rosacruz Áurea Lectorium Rosicrucianum A revista Pentagrama dirige a atenção de seus lei tores para o desenvolvimento da humanidade nesta nova era que se inicia. O pentagrama tem sido, através dos tempos, o sím bolo do homem renascido, do novo homem. Ele é também o símbolo do Universo e de seu eterno de vir, por meio do qual o plano de Deus se manifesta. Entretanto, um símbolo somente tem valor quando se torna realidade. O homem que realiza o penta grama em seu microcosmo, em seu próprio pequeno mundo, está no caminho da transfiguração. A revista Pentagrama convida o leitor a operar essa revolução espiritual em seu próprio interior.
pentagrama
ano 35 2013 número 6
© L. Meeter
“Deixar aos hippies desapegados o verdadeiro protesto caracteriza nossa falta de imaginação. Uma geração que não quer sonhar perde o direito a um mundo melhor.” Eis oque escreveu recentemente Rutger Bregman (histo riador e publicitário) em um artigo. Ele atribui a causa da crise mundial a uma falta de utopia, uma lacuna do poder imaginativo. A presente edição da pentagrama traz a ideia de que o verdadeiro protesto se situa em outro nível, o do estado interior de cada ser pensante. Sim, é a crise – devido ao fato de termos perdido o justo equilíbrio entre o interior e o exterior, entre você e eu, entre o homem de verdadeira grandeza que é Um e os inúmeros indivíduos solitários. “Retorne à unidade” é o chamado das escolas de sabe doria de todos os tempos. “Você pertence a uma ideia sublime, a uma humanidade espiritual. Aprenda a se co nhecer como ser humano, como pessoa, como minutus mundum (pequeno mundo) que não pode viver sem a água que bebe, sem o ar que respira, sem a terra que o nutre, sem o fogo que lhe dá o calor, e sem o Outro que é o sentido da sua vida.”
o pensamento de jan van rijckenborgh a crise da humanidade e as sete
forças do espírito 2
a crise, como enfrentá-la? 6
ouse viver! 8
imagens do mundo 12, 20, 28, 46
julgar ou escrever na areia? 14
cruz@mento 22
muito além do horizonte 26
não tenha medo das sombras 30
círculos de luz 32
ayn rand
a virtude do egoísmo 36
a árvore a floresta 40
o mal e o senhor do mar 42
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O PENSAMENTO DE JAN VAN RIJCKENBORGH
A crise da humanidade e os sete poderes do Espírito O que caracteriza a humanidade de hoje é o fato de que o egoísmo humano atingiu a maturidade plena: seus instintos naturais têm curso livre, não há mais nenhum controle. Sob o domínio de muitas influências negativas, a humanidade luta para sobreviver nessa tempestade. Essa é a causa da crise que atualmente assola todo o mundo.
J. van Rijckenborgh
I
U
ma crise que sempre foi objeto de muitos avisos prévios. Uma crise anunciada como inevitável, a menos que o homem f izesse a escolha do único caminho justo, o de Cristo, guiado pelo Espírito Santo, que se manifesta em todo o planeta. Ao longo dos últimos séculos, a humanida de, infelizmente, foi privada de uma infor mação importante, o que a levou a erro. É por isso que ela vive nesta tempestade que continua a se intensif icar. Será com suas próprias forças, portanto, mediante as opor tunidades que lhe são oferecidas, que ela deverá atravessar “o mar de experiências acadêmicas” para chegar à costa de Caphar Salama, a cidade da paz. Sem dúvida, o leitor tem conhecimento do sublime plano da origem da existência humana, que tem por objetivo desenvolver
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uma personalidade perfeitamente organi zada que possa participar efetivamente em seu desenvolvimento num plano superior, mediante um processo de autorrealização destinado a alcançar um nível sempre mais elevado. A semente mergulha nas profundezas da terra, até o nadir. É daí que nasce e depois desabrocha a f lor maravilhosa. Assim se demonstra, desde a base, a f inalidade da criação divina. No entanto, durante essa jornada, uma série de problemas e peri gos aparece. Como temos repetidamente sublinhado, o Logos def ine o plano. Uma vez que esse plano está em execução e que o homem é capaz de “viver” realmente, ele é convidado a colaborar. Isso porque o homem é criado e dotado das faculdades necessárias para essa realização. Na verda de, é sua responsabilidade testemunhar a grandeza e a beleza do plano. Portanto, o
J. van Rijckenborgh e Catharose de Petri são os fundadores da Escola Espiritual da Rosacruz Áurea. Nessa escola eles explicaram aos alunos a senda da libertação da alma de várias maneiras, utilizando-se muitas vezes de textos originais da doutrina universal, tendo sido um exemplo para os alunos, pois além de estudar seriamente a senda, realizaram-na em suas vidas.
... então, em auto realização, a flor maravilhosa aparecerá. Miniatura persa, séc. XVII
a crise da humanidade e os sete poderes do espírito 3
A prática do aprendizado é uma arte que pode ser aprendida por todos homem se lança à obra. Algumas pessoas aplicam todas as faculdades que receberam do Logos, dentre as quais, naturalmente, o intelecto, que pode ser utilizado de duas maneiras. Depois de numerosas experiên cias durante a construção da personalidade, o homem pode ou empregá-lo a serviço do verdadeiro poder do pensamento, que leva da natureza à divindade, ou considerá-lo o poder divino supremo. E muitas pessoas pensam assim, o que tem suas consequên cias. Uma das causas é a falta de compreen são do signif icado mais profundo e das intenções das religiões do passado que, sem exceção, dirigiram-se à humanidade ape nas em sentido simbólico. Em nosso tempo, uma das consequências perturbadoras do mau uso do intelecto é a alteração do cór tex que, desse modo, não está em condição de captar uma inf luência superior e já não pode ser utilizado de forma adequada. Os homens que entenderam isso e utilizaram suas capacidades intelectuais de forma justa, ou seja, de acordo com o plano divino, são chamados, há séculos, os “rosa-cruzes”. Esse nome ref lete exatamente esse desenvolvi mento que visa o emprego adequado das faculdades intelectuais. 4 pentagrama 6/2013
II Observamos que, com o correr dos tempos, houve épocas em que o desenvolvimento dos processos de vida se transformou radical mente. Agora estamos nos aproximando, em grande velocidade, de um período desses: uma crise verdadeiramente mundial e huma nitária, uma revolução intensa se delineia. É uma situação que não se postergará e, por isso, tratamos do assunto tentando, entretan to, não exercer qualquer pressão. Esperamos que nenhum de vós seja sur preendido pela violência e força dos acon tecimentos vindouros. Porque é claro que a humanidade não preparada enfrentará gran de quantidade de dif iculdades importan tes. É por isso que a Fraternidade universal trabalha para salvar dessa violência o maior número possível de pessoas. A presença e a atividade da Escola Espiritual moderna têm aqui sua razão de ser. A Fraternidade dos rosa-cruzes sempre aparece em períodos de grandes mudanças. Ela se manifesta sob di ferentes “vestimentas”, sob os mais diversos aspectos, de modo que todos possam parti cipar de suas atividades. Mas ninguém pode escapar da necessidade de aprendizagem. Quando se aproxima um período muito crítico, está sempre presente uma Escola
espiritual. Se estiverdes dispostos a aceitar todas as consequências que implicam tomar o caminho que a Rosa-Cruz vos mostra, sereis salvos do declínio relacionado aos processos da natureza e sereis acolhidos no novo grupo dos “f ilhos de Deus”, segundo a terminologia da Bíblia. A Escola Espiritual é constituída de um corpo vivo composto por sete aspectos, sete degraus, dos alunos preparatórios até os membros do sexto aspecto. Acima, há ainda um sétimo aspecto ao qual algumas pessoas desta comunidade pertencem. Na comunidade, que inclui dos alunos inician tes aos mais avançados, é proposto aceitar as leis do Espírito Santo e se conformar a elas internamente. Imaginai que decidais agora, com gran de determinação, abrir-vos à efusão do Espírito Santo sétuplo. Este não se mani festará de repente em vós com a força de todos os seus poderes, com todos os seus quarenta e nove aspectos. Pois qual de nós seria capaz de suportá-los ou responder a eles? Não, o Espírito Santo apenas se reve lará a vós com a intensidade corresponden te a vosso estado atual. Recebereis apenas o que puderdes suportar, ou seja, aquilo a que estais em condição de responder. Esse espírito, nós o recebemos em nosso próprio ser. Então, vós permitis que a luz da comu nidade da Rosa-Cruz Áurea irradie neste mundo de trevas.
Durante os futuros eventos mundiais, mui tas pessoas se aproximarão da Escola para poder participar, se possível, desta comu nidade vivente. Se vos juntardes a nós, a força de todos se tornará uma força para todos. Nossa comunidade seguirá seu cami nho para o alto. O forte protegerá o fraco, porque a magia do amor divino cuidará para que isso aconteça. No entanto, uma condição é absolutamen te essencial, a saber: que depois de tomar a decisão de participar da comunidade do Espírito Santo, vós a conf irmeis mediante uma vida positiva. Somente então pode exis tir, em verdade e em realidade, uma Escola Espiritual que atenda a esses objetivos. Ela será capaz de “levar para casa” os que fazem parte do corpo vivo. µ
a crise da humanidade e os sete poderes do espírito 5
como encarar a crise?
O conceito “Hermes” ou “Mercúrio” designa o homem em quem a nova consciência anímica des pertou, o homem para quem a sabedoria divina se abre e que, portanto, eleva o santuário da cabeça à sua mais sublime vocação. Mas essa vocação não pode ser realizada se o aluno não aprender antes a abrir em silêncio o seu coração ao espírito. A rea lização do silêncio do coração é uma tarefa dada a todos os que verdadeiramente buscam a Gnosis. Ela mostrará, consequentemente, que o coração deve ser purificado, totalmente serenado, equilibrado e aberto. (...) Quando o coração permanece em seu estado comum de impureza natural – e isso ocorre quando todo o vosso ser está e permanece sintonizado com a natureza da morte – não podeis escutar nem com preender bem, pois a essência da natureza da morte é sempre o caos (...). Assim, vereis que a chave dos mistérios gnósticos está no coração. Rijckenborgh, J. v. A Gnosis original egípcia, t. 1, cap. 29. Jarinu, Rosacruz, 2005
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amos nos afastar dessa enxurrada de informações sobre práticas ilícitas na área socioeconômica e suas inúmeras con sequências para os cidadãos. Precisamos nos afastar para silenciar dentro de nós. Podemos conseguir isso no meio dessa agita ção insana? Podemos dizer para nós mesmos: “Pertenço a este mundo, onde tudo isso está acontecendo? Uma vez que estou mergulha do neste mundo, tenho alguma escolha? É de surpreender se o medo às vezes toma conta de mim? Não é compreensível que às vezes eu 6 pentagrama 6/2013
ferva de indignação e que, logo em seguida, fique desesperado? Isso não é lógico?” Se alcançarmos o silêncio, plenamente, então teremos apenas uma certeza: a certeza do fun cionamento lento e inelutável da roda. Mesmo quando nossos líderes não param de proclamar que a crise será de curta duração, verificamos que o barco continua navegando sem rumo. Como você encararia essa situação? Construiria barricadas? Se isso ajudasse, talvez fosse bom. Não! Ignorar a crise exterior pode, no mínimo, levar a uma crise interior! Tantas pessoas, tanto sofrimento. Embora muitos se banhem aos raios do sol, muitos de seus conhe cidos são violentamente tirados de seu equilí brio. Qual é o sentido de tudo isso? Qual é a nossa responsabilidade? O que você pode fazer com sua compaixão, se é que ainda a tem? Com nosso atual estado de consciência aparen temente não podemos fazer mais do que vemos ao nosso redor, e com o atual estado de cons ciência nada será resolvido. Precisamos de uma nova dimensão, de um novo ponto de partida, mas em outro nível. Voltemos ao silêncio interior, ao puro silêncio que forma uma região de transição para uma dimensão superior. No repouso, a energia da Luz pode transformar nosso ser e nossas ações, nossa disponibilidade para os outros, e pode mos sentir uma atmosfera de bem-aventuran ça. Isso ajuda e é extremamente efetivo. Essa é nossa responsabilidade, por amor à humanida de. A alegria de agir assim pode repercutir de forma contagiosa. µ
Um dos três America Windows – obra popularmente chamada “vitrais” – no Instituto de Arte de Chicago. Marc Chagall, 1977.
como encarar a crise? 7
tome a vida em suas próprias
Esta é sua época. Você não conhece outra. É aqui e agora que você está aprendendo a ser adulto, assim como fizeram as gerações anteriores à sua. As crianças que virão depois também terão, como você, uma visão de mundo própria, determinada por suas condições de vida. No entanto, só se fala da juventude de hoje. Os adultos avaliam desde as crianças do jardim da infância, passando pelas maiores, até os jovens. E, na tentativa de nomear determinadas características comuns à geração atual, criaram vários rótulos para ela: gera ção Einstein, geração X, geração Z, geração diversão.
O
s jovens de hoje têm a fama de ser rápidos, inteligentes e sociais. Diz-se também que nenhum adulto consegue ultrapassá-los e nenhum professor pode enganá-los. Quem tem atualmente vinte e tantos anos perten ce à Geração Einstein, porque pensa de maneira 8 pentagrama 6/2013
multidisciplinar, como o grande físico. Outros a chamam de Geração Y, porque os jovens de hoje têm a coragem questionar, enquanto os membros da geração anterior, a Geração X, que preferiam os trabalhos não usuais, hoje com quarenta ou cinquenta anos, estão todos muito bem situados na
mãos!
sociedade. Agora está chegando a Geração Z – e não é por acaso que carrega no seu nome a última letra do alfabeto. Quase crianças ainda e, no en tanto, já foram rotuladas de totalmente cosmopoli tas. Elas cresceram com as novas mídias e têm um grande desejo de melhorar o mundo – se estivesse em seu alcance decidir o quê fazer e como. Como quer que sejam chamados, esses rapazes e moças, nascidos a partir de 1985, cresceram em um mundo digitalizado, plugados à Internet como parte de sua vida real e conectados em redes, que determinam seu cotidiano. São jovens para quem o mundo é um grande tabuleiro, ou melhor, uma grande quadra de jogos, onde tudo é possível. Eles têm uma autoestima elevada, são bonitos, bons, formidáveis e autoconfiantes. E felizes, além do mais. Em tudo o que fazem, pensam em si pró prios: “O que eu posso fazer com isso? O que quero fazer com isso? Qual é o valor disso para mim? – não no futuro, mas aqui e agora”. Os mais velhos entre eles tinham acabado de fazer vinte anos quando a crise econômica eclo diu, desencadeando uma recessão mundial. Após uma adolescência com possibilidades ilimitadas, promessas que de imediato se cumpriam e muita liberdade, seu mundo despreocupado bruscamen te mudou. De repente, já não havia garantia de emprego. O desemprego começou a aumentar, chegando a atingir mais da metade dos jovens do sul da Europa. Em outros países, a única alterna tiva foi criar pequenas empresas, sem escritório próprio nem funcionários, e muitas vezes, sem rendimento algum. Após o período despreocupado
dos estudos, quando moravam com os pais, desfru tando de muita liberdade, viram-se confrontados com um enorme vazio. E quem se acostuma com isso? A vida está repleta, não há espaço para desco bertas, não há espaço para nada. Tudo exige uma reação, tudo está em ação, em movimento. Um fluxo constante de opções preenche a atmosfera, o pensamento, a vida. O homem contemporâneo não está consciente apenas do lugar onde está, mas também de vários outros lugares, aos quais está conectado e de onde vêm sinais. No entanto, em meio à densidade de informações, às mídias virtuais e sociais e ao estresse psíquico, surge uma sensação de vazio, um abismo entre a descontração juvenil e a responsabi lidade da vida adulta. A obrigação de ser feliz tem seu preço. O número de pessoas que se sentem sozinhas é cada vez maior. Alguns pais podem dizer que não preparamos suficientemente nossos filhos para a vida como ela realmente é. Mas nós também poderíamos dizer: nós mesmos não estamos preparados o suficiente. Quem sabe lidar com uma crise? Nós fugimos dela até o momento em que isso já não foi possível. Todos chegam a um ponto em que não conseguem mais avançar, em que se fica confuso, desorien tado. Talvez nunca tenhamos sido confrontados com o fato de que todas as nossas crises internas, que costumávamos encobrir, levaram a uma crise mundial. O ser humano repete seus erros e falhas até criar a coragem de mudar a si mesmo. Ele tem pres sa, porque não tem confiança. Enche a vida com tome a vida em suas próprias mãos 9
Mas quem sou eu? Essa é a pergunta essencial, que cada ser humano pode fazer a si mesmo a qualquer momento. Essa indagação marca o começo de se tomar a vida nas próprias mãos, conscientemente tantas exigências em relação ao trabalho, à famí lia e ao desenvolvimento pessoal, que o mantra “estresse, estresse e mais estresse” virou símbolo de status. De onde tirar a coragem para tomar a vida em suas próprias mãos, conscientemente? Uma criança precisa de espaço, liberdade e au tonomia para se desenvolver. As crianças de hoje ficam, às vezes, perdidas nesse espaço que parece ilimitado, nessa imensa liberdade e independência que exigem delas respostas a perguntas do tipo “O que você acha disso?” ou “O que você pensa deste assunto?” A criança, porém, não age baseada na própria experiência. Ela possui um conhecimento interior que as expectativas dos pais, educadores e professores não deveriam tirar-lhe. Espera-se hoje que a criança agarre a chance que seus próprios pais deixaram escapar. Espera-se que ela seja livre, autônoma, sem fronteiras. Muitas crianças têm uma agenda sobrecarregada em tenra idade. O es gotamento ou burnout já não sinaliza que uma crise da meia-idade está se aproximando; ele atinge até mesmo jovens de vinte anos, que não param de se indagar: “Será que isto é para mim?” A época em que um jovem vive nunca é fácil para ele. Cada adolescente passa por altos e baixos, e assim acaba achando seu caminho. Cada geração recebe uma etiqueta. A geração anterior sempre se preocupa com a atual que, no final das contas, acaba se saindo bem. Afinal, cada um é o que 10 pentagrama 6/2013
é – um ser humano que anseia por liberdade, que usa sua força de vontade para criar uma vida maior do que uma rede mundial de contatos. Uma vida com maior alcance do que usufruir de notícias ve lozmente veiculadas ou transmissões ao vivo. Uma vida mais autêntica, sem atualizações constantes e linha do tempo nas redes sociais. Uma vida com características e modelos próprios. Crescer nos nossos tempos também significa crescer sem certezas e que ninguém permane cerá no seu pedestal. Num mundo em que nada se oculta e tudo se torna transparente, alguns jovens pensam que saber mentir é uma solução pragmática. De que vale a verdade quando se cresceu com o pensamento pós-moderno de que a verdade não existe, de que cada qual luta pela própria verdade? Que imagem de mundo é essa, quando se cresce rodeado por mentiras, quando tudo gira em torno de se ganhar algo, começan do pelos bônus dos banqueiros, passando pelos bonitos adesivos de recompensa para as crianças que comem todo o prato de comida, até muitos divórcios? Nada mais acontece incondicionalmen te – já não há fatos sem promessas, nem ações sem recompensa. A concorrência tornou as pes soas menos humanas. Os jovens participam dela e poderão sair vitoriosos ou alquebrados desse jogo. Ainda não se sabe como será.
Nos anos oitenta do século xx, os altos índices de desemprego, a ameaça de catástrofes ambien tais, o perigo iminente do uso de armas nucleares levaram à apatia e ao cinismo, após algumas ma nifestações iniciais de protesto. Agora as pessoas se voltam para dentro. Diminui rapidamente até mesmo a fé na democracia. Os jovens se inte ressam por histórias autênticas, por ideias que levaram a mudanças. Contudo, estão acostuma dos a escutar opiniões que, proferidas pela ma nhã, à tarde já são revidadas. Um adolescente já sabe que nada é permanente. Até uma criança da pré-escola percebe que tudo é ilusão. Justamente por isso, descobre que a história na qual ela vive pode tornar-se verdadeira. Nenhuma geração precisa de rótulos. Mesmo uma pequena etiqueta não permanece colada para sem pre. Mas quem sou eu? Essa é a pergunta essencial, que cada ser humano pode fazer a si mesmo a qualquer momento. Essa indagação marca o come ço de se tomar a vida nas próprias mãos, cons cientemente. Ao buscar a resposta, o homem pode solucionar sua própria crise. Há muitas tensões no mundo atual. A atmosfera está carregada, cheia de energias entrelaçadas, que se impelem e se repudiam. Não há paz. No entanto, o que o homem procura é o que o im pele e o que ele pode encontrar em si mesmo: o silêncio para chegar a um insight, o silêncio para iniciar, de fato, a conexão com a unidade e a verdade. Isso é fato sabido. Como adultos, facilmente fazemos coisas das quais nos arrependemos depois. Julgamos os demais, somos ciumentos, desconfiados ou simplesmente
acreditamos saber o que é melhor para os outros. Damos conselhos sem que nos peçam. Somos espertos, sabemos tudo melhor, sem ouvir real mente, nem ao outro, nem a nós mesmos. Seria possível viver de maneira diferente? Como poderia o homem superar-se? Como poderia unir-se àquilo que realmente era e que poderia voltar a ser? “Viva de modo que não precise vir a se descul par”, aconselhou o filósofo alemão Peter Sloterdijk, como resposta à crise. Segundo ele, nossa reação à crise é “uma consciência de infelicidade”, ao passo que a crise, em si mesma, “nos incita a melhorar”. E querer melhorar é algo próprio do ser humano. O filósofo britânico John Armstrong disse em toda a sua simplicidade: “Os consumidores não pensam sobre seus verdadeiros anseios”. A crise global obriga o homem a refletir sobre seus anseios, sobre o que é realmente autêntico e o que significa ser um ser humano. Quais são os desejos que nos impulsionam de fato? Quem ou o quê provoca uma crise? Em menor ou maior medida, o próprio homem. Viva de forma a não precisar se desculpar. Viva de acordo com o seu único anseio verdadeiro. Então, você já não será uma pessoa impelida por falsos desejos, e sim alguém em busca da verdade. O desenvolvimento interior pode nos ajudar a banir a crise. Como disse Catharose de Petri aos jovens: “O valor do nosso trabalho foi comprovado pelas ativida des, pela atenção e pela perseverança de vocês. Mantenham seu espírito empreendedor! Tomem a vida em suas próprias mãos! Para quem aceita a vida conscientemente e aprende suas lições, mes mo as mais amargas, tudo acaba bem”. µ tome a vida em suas próprias mãos 11
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O HOMEM NO M EIO DA INDIGNAçãO DA MASSA – SERIA A FRUSTRAçãO DA ENERGIA CRIADORA INEXPLORADA QUE TRAçA SEU CAMINHO?
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O HOMEM NO R EPOUSO CRIADOR DA AUTORREALIZAçãO – OS MUNDOS DA CONSCIêNCIA SE DESDOBRAM?
imagens do mundo 13
julgar ou escrever na areia?
Toda crise exige uma reflexão intensa sobre os valores válidos até então, pois, com frequência, desmascara implacavelmente casos de corrupção e egoísmo. Ela põe em evidência culpados, trapaceiros e aproveitadores, e levanta o clamor por castigo para os pretensos responsáveis.
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STRACISMO Tribunal popular ou
ostracismo? Uma história de mistérios sobre Jesus revela como uma pessoa que atingiu a consciência-Jesus lida com os mo delos de julgamento e crítica. Ao se dirigir aos homens, Jesus aponta para uma nova dimensão: “Vós julgais segundo a carne, eu a ninguém julgo. Se eu julgo, o meu juízo é verdadeiro, porque não sou eu só, porém eu e aquele que me enviou” (João 8: 15-16). “...porque eu não vim para julgar o mundo, e sim para salvá-lo....” (João 12: 47). “Não julgueis” – muitas vezes o discípulo no caminho gnóstico tem dificuldade em assimilar esse ensinamento, sobretudo em situações de crises pessoais ou sociais. Talvez por isso, ao abordar este aspecto do discipulado em alguns trechos de sua obra, Jan van Rijckenborgh tenha feito algu mas contraposições que têm um efeito revigoran te: “Cada pessoa vive em seu próprio mundo de ideias, com base no qual julga o seu entorno. Com isso, alcançamos a condição de pleno isolamento. Vivemos encarcerados plenamente no nosso eu, no mundo do eu. Somos altamente anormais, para não usar uma expressão ainda mais enérgica. Por isso, uma onda de ideias é despejada sobre nós. Por isso, nunca compartilhamos das mesmas opiniões. Por isso, existe uma fragmentação extrema, um egoísmo ilimitado e a autoafirmação com suas 14 pentagrama 6/2013
amargas consequências. Percebeis que esse é o cer ne da nossa miserável existência? Um juízo é uma decisão, uma imagem-pensamento concreta, que sempre provoca uma reação – no mundo ao nosso redor e em nós mesmos. Somos sempre medidos com a mesma medida que utilizamos para medir os demais. Por isso, vivemos em tremenda confu são. O que uma pessoa constrói, a outra destrói. O que um acha bom, o outro acha ruim. Se agora a Escola vos dá o conselho de abrir mão do ‘direito’ de julgar e criticar, é com o intuito de curar-vos de grave doença. Sim, trata-se de redimir-vos de uma espécie de demência, de uma forma de trans torno psíquico mais perigoso do que imaginais”.
Crise: eu decido o que eu sou Diz-se que uma crise é uma forma intensa de conscientização pessoal e coletiva. Ou então que uma crise é um período de “renún cia ao ego”, ou seja, uma forma de desapropriação do eu. Essa descrição se aproxima do signifi cado etimológico da palavra grega “crisis”, que significa “eu decido”. Não é de admirar, por tanto, que a crise atual tenha semelhança
A ADÚLTERA Também encontramos o “não
julgueis” em outra parte da Bíblia, na estória da mulher adúltera, que foi levada a Jesus para que ele se pronunciasse sobre seu ape drejamento ( João 8). Essa passagem apresenta várias associações com o caminho espiritual. Ela é mais atual do que nunca, se compreen dermos a mulher adúltera como metáfora
com diversas crises que ocorreram anteriormente na história da humanidade. Se é o “eu” quem decide, geralmente podemos prever as consequências. O eu, o ego, é sempre impelido pela auto-afirmação e é, por definição, corrupto. No início do século passado, o sábio búlgaro Peter Deunov relembrou-nos a origem da palavra “eu”, baseando-se nos seus estudos sobre os godos orientais, que viviam no território da atual
do nosso mundo em crise. Um mundo que cometeu adultério, isto é, corrompeu princí pios econômicos e financeiros e traiu a causa ecológica. Um mundo que cobiça, consumo e egoísmo levaram à beira do precipício. Um mundo que, em termos de finanças e eco logia, deixa apenas uma pálida perspectiva de futuro para as próximas gerações. “Os
Bulgária. O famoso bispo Wulfila (311-383), considerado herege pela igreja da época, lançou a base das línguas germânicas ao tradu zir a Bíblia para o godo. Ele foi considerado também o primeiro iniciado europeu. Durante o trabalho de tradução, Wulfila criou a palavra goda “ik” com base nas primeiras letras do nome Iesu Krist (Jesus Cristo). Segundo os linguistas, ela deu
origem à palavra alemã “ich”, à inglesa “I” e à holandesa “ik”, todas com o significado “eu”. Quem permite que a força crística fale e decida em si, age bem dife rente de quem é governado pelo ego e pela auto-afirmação. Essa pessoa não se afirma mais ainda quando seus interesses pessoais estão ameaçados, mas irradia, em qualquer circunstância, a conciliadora força do amor divino.
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tempos mudam”, afirmava Agostinho, acres centando logo a seguir: “Mas nós somos os tempos”. Nesta época de crise, não é nenhum exagero afirmar que nós mesmos somos a crise. Mas voltemos à estória da mulher adúltera. Algo de extraordinário acontece quando a situação se inverte e os supostos responsáveis pela crise são colocados no banco dos réus. “Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra”. No Oriente, quando as pes soas a quem se apresentava publicamente um caso para julgamento não se sentiam com petentes, elas davam de costas e escreviam com o dedo na terra. Com isso, demons travam que quem tivesse vindo consultá-las deveria resolver o caso sozinho, deixando de importuná-las. Numa história de mistérios, tal costume – de não escolher nenhum dos lados – adquire outra dimensão. Ao escrever
Jesus Cristo não trouxe a este mundo de crises o caminho do “eu decido”, e sim a força do “eu sou” – uma força que absolutamente não é deste mundo. Uma crise é um grande desafio para os discípulos na senda. Tente manterse neutro e seguir sem rixas seu caminho, quando suas economias, juntadas a duras penas, são aniquiladas por bancos mal gerenciados, enquanto os executivos que causaram a crise
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na terra, o homem-Jesus mostra que não é indiferente, embora se recuse a atuar como juiz. Pelo contrário: o ato de escrever na ter ra é uma ação vinculante, que confia o caso à terra. Proferir uma sentença, como exigido aqui, significaria que a pessoa consultada não estaria em consonância com o Espírito, mas ligada ainda à região onde impera a lei cár mica, a escola da humanidade. INFIDELIDADE GERAL A inf idelidade da mulher, metáfora da alma adúltera tanto feminina quanto masculina, é um símbo lo da inf idelidade espiritual estrutural que caracteriza o mundo – com ou sem crises. Este mundo das trevas, regido pelo ego corrupto, não tem a menor af inidade com as leis do mundo espiritual. A alma humana vive em estado de adultério, tendo-se dis tanciado do mundo divino original. A alma
somem do mapa, após receber bônus gigantescos! Vimos isso acontecer em várias partes do mundo nos últimos anos, como na Holanda em fevereiro de 2013. O diretor do banco responsável pelo fiasco foi recompensado por seu procedimento errôneo com um bônus de quase dois milhões de euros. A consequência foi um julgamento popular! O executivo sofreu sérias ameaças, a ponto de ter de fugir para o exterior. Foi como se a antiga assembleia popular da
Grécia do século VI antes de Cristo tivesse voltado a entrar em ação e votado pelo ostracismo. Naquela época, quando os cidadãos de Atenas achavam que um político tivera um mau desempenho, ou estava se tornando demasiado poderoso, num determinado dia, podiam escrever o nome desse líder num caco de barro. Quando se juntavam seis mil cacos de barro, a pessoa cujo nome fora escrito mais vezes era banida da cidade por dez anos.
“A terra produz o suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não a avidez de cada um.” Mahatma Gandhi
– representada nesta história pela mulher – rompeu o vínculo conjugal com o Espírito, que anima o corpo de uma maneira com pletamente diferente. Nisso reside a causa estrutural de vivermos em crise permanente, ou, para citar J. van Rijckenborgh, numa “tremenda confusão”. Em outras histórias de iniciação, a humani dade muitas vezes também é descrita como infiel espiritualmente (adúltera) ( Jeremias, 17:13). De acordo com esse livro, a alma humana se deixa guiar pelo sangue, pela vontade do ser humano e da carne, ao invés de guiar-se pela palavra de Deus. Ela voltouse inteiramente para os ídolos terrestres, que
ainda hoje exercem profunda influência sobre este mundo assolado por crises. O seguinte fragmento traça um paralelo com a nossa his tória: “Ó Senhor, esperança de Israel, todos aqueles que te deixam serão envergonhados; os que se apartam de mim serão escritos sobre a terra; porque abandonam o Senhor, a fonte das águas vivas”. ( Jeremias 17:13). Mais adiante na estória da mulher adúltera nos deparamos com esta afirmação especial: “Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela”. Com essas palavras, a situação é elevada, de modo irreversível, a um plano espiritual. E Jesus escreve novamente na terra! julgar ou escrever na areia? 17
Dito de outra maneira, a terra é convoca da como testemunha. O caso é confiado à consciência dos acusadores e entregue à sua ligação cármica com a terra. Ou seja, nada de apedrejamento, tribunal ou ostracismo! Ao que tudo indica, os acusadores ouvem sua voz interior a recordar-lhes que eles também não estão isentos de máculas. Eles acabam desistindo de apedrejar a mulher e desapare cem. O doutor da lei – a cabeça e o pensa mento da personalidade – renuncia ao julga mento da alma, que se situa na intercessão entre a personalidade e o Espírito. “Nem eu também te condeno”, escuta a mulher de Jesus, no final da estória. Ou seja, ninguém profere uma sentença, e tudo isso não segue os parâmetros sociais, terrenos. Sim, nada de julgamento, embora uma situa ção de crise pareça exigi-lo. CARMA
O texto ganha uma dimensão mais profunda quando o relacionamos à estória de um cego De manhã cedo, ele dirigiu-se ao templo. O povo reuniu-se ao seu redor. Ele sentou-se para ensiná-los. Eis que os escribas e os fariseus lhe trouxeram uma mulher que havia sido flagrada cometendo adultério. Eles a colocaram no centro da multidão e disseram: “Mestre, esta mulher foi apanhada no próprio ato, adulterando. E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam
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que é curado ( João 9:6). Jesus cura-o ao es fregar em seus olhos um pouco de terra mis turada à sua saliva. Por meio de Jesus, Cristo se uniu ao coração do planeta Terra. Ele é a força curadora que atua aqui, por meio da união entre a Terra e o Espírito. Quem con fia nessa força crística não condena ninguém, pois prefere deixar o julgamento para as leis cármicas. “O que quer que tenhas feito, eu não te condeno!” Isso não é necessário, pois o carma atua por si só, durante nossa passagem pela Terra. O carma que cada um chama sobre si fica a cargo da justiça divina. Poderíamos até nos dirigir aos acusadores terrestres da seguinte maneira: “Cuidem de seus próprios assuntos! A lei do carma já está atuando! Cada qual que resolva o caso de acordo com sua própria consciência. Deixem -nos escrever no pó da terra, onde o carma está registrado”. Agora fica claro o significa do da frase anteriormente citada: “Porque eu vim, não para julgar o mundo, mas para sal var o mundo” ( João 12:47). A compensação
apedrejadas. Tu, pois, que dizes?” Queriam testá-lo com essa pergunta, a fim de ter um motivo para denunciá-lo. Jesus, porém, se agachou e escreveu com o dedo na terra. As perguntas continuavam sem cessar. Então Jesus levantou-se e lhes disse: “Aquele que entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela”. E tornando a inclinar-se, escrevia na
terra. Ao ouvir suas palavras, a multi dão começou a se dispersar, um após o outro, a começar pelos idosos. Jesus permaneceu sozinho com a mulher. Ele levantou-se e disse-lhe: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?” E ela disse: “Ninguém, Senhor”. E disse-lhe Jesus: “Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais.” (João 8:2-11).
“O passado nos determina. Podemos ter boas razões para tentar nos subtrair ou escapar ao que ele tem de mau, mas só conseguiremos se lhe oferecermos algo melhor.” Wendell Berry, filósofo e ecologista
dialética de Carma-Nêmesis já está em ação. Para isso não é preciso Jesus. A força crística vem ao homem para lhe abrir perspectivas completamente novas. UNIDO AO ESPÍRITO
E por fim a frase final: “Vai-te, e não peques mais!” Numa situação dessas, o que se deve fazer é começar a melhorar a própria vida. “Não peques mais” significa: seja fiel à ima gem do novo homem, que é ao mesmo tempo o homem primevo. Mikhail Naimy descreve muito bem o pecado neste mundo em crise: “Restringir as necessidades do corpo é uma virtude. Restringir as necessidades da alma é um pecado!” Mediante o não-julgamento, Jesus ungiu a mulher adúltera. Ele vinculou sua essência li bertadora à matéria da mulher, à alma. Agora o importante é já não cometer o “adultério” e entregar-se à união com o Espírito. Somente por meio dessa união a alma pode se liber tar da região cármica das crises, da escola de aprendizado da humanidade. Além do ca minho de experiências do homem por este mundo, ele pode passar por uma crise tripla e empreender uma via-crúcis libertadora.
Quando a força gnóstica desmascaradora toca o homem, a personalidade deseja compreen dê-la e utilizá-la. Mas essa força diferente não pode ser usada conforme os padrões habituais. Quando entende isso e percebe que ele pró prio já nada pode fazer por sua libertação, o homem começa a deixar a Gnosis agir na sua vida. Assim, a alma pode ser purificada pela força e pela sabedoria gnósticas. A alma ungida dessa forma internaliza a união com o Espírito, torna-se uma alma-Espírito, e já não abandonará tal união. µ
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UM DIA, NUM SONHO, UM PEREGRINO VIU O ANJO GABRIEL. O ANJO
TINHA NA MãO UM LIVRO. O PEREGRINO LHE PERGUNTOU O QUE
ESTAVA ESCRITO NO LIVRO. O ANJO RESPONDEU:
“NESTE LIVRO ESCREVO O NOME DOS AMIGOS DE DEUS”.
“MEU NOME ESTÁ Aí?”, PERGUNTOU O PEREGRINO.
“PEREGRINO, VOCê NãO É AMIGO DE DEUS.”
“É VERDADE, MAS SOU AMIGO DE ALGUÉM QUE CONHECE OS AMIGOS
DE DEUS.” O ANJO FICOU SILENCIOSO DURANTE UM MOMENTO,
DEPOIS DIRIGIU-SE AO PEREGRINO: ...
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“...FOI-ME DITO PARA ESCREVER O SEU NOME BEM NO ALTO DESTA LISTA.
DE FATO, A ESPERANçA NASCE DA FALTA DE ESPERANçA.”
SABEDORIA DO IRã
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Desde há muito permanecemos com o olhar voltado para nossos líderes. Mas o que há de tão especial nesse tipo de autoridade? Hoje, esse conceito de lideran ça, segundo a qual a responsabilidade e a administração sempre recaem sobre outros, está completamente ultrapassado. Entretanto, uma verdadeira crise nos retira de nossos hábitos e oferece a possibilidade de algo realmente novo.
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perigo de uma crise, e da perda de confiança que ela gera em relação às instituições e poderes estabelecidos, é que já não levemos muito a sério nossas pró prias responsabilidades e deveres morais, que tendamos a limitar nossas ações e gestos ao que nos atrai, deixando de lado o interesse comum, que, desse modo, nos esqueçamos completa mente nossa profunda conexão com o grande Todo ignorando os interesses de nosso próximo – se é que algum dia já os levamos em conta – sem nos chocarmos com isso. Nossos atos já não são prioritariamente orien tados por velhas ideias herdadas ou impostas, no entanto, ainda estamos longe de fazer o que deveríamos, isso sem levar em conta nossos va lores interiores mais profundos, pois, para isso, seria necessário saber o que realmente quere mos, e, nesse campo, todos buscam e duvidam. Entretanto, cada um parece crer e confiar em sua busca. A ideia muito atraente de que tudo pode ser comprado nos coloca numa realidade ditada pelas leis do consumismo, segundo as quais só poderíamos nos liberar de nossos desejos satis fazendo-os imediatamente. Ao invés de sondar a origem de tais desejos, nós os esvaziamos do conjunto maior ao qual pertencem, destituindo -os de seu sentido profundo. Agora que mudanças inevitáveis nos alcan çam, assim como tratam os outros artigos desta Pentagrama, somos confrontados com a questão de saber qual realidade, qual futuro escolhe remos. Deveríamos, por exemplo, deixar-nos
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Quando já não experimentamos “deixar o controle” como contranatureza, a impressão que ele conduz a um caos crítico some, e ele parece mesmo completamente natural
guiar por pensamentos de um fim dos tempos, um Armagedom, e viver uma batalha de todos contra todos? Durante uma crise existencial, devemos pensar que se trata simplesmen te de uma fase terminal, ou ter confiança e considerá-la um momento decisivo crítico, um processo de separação ou seleção, um período de transição? Diante dessa possibilidade, enca raremos esse prognóstico de crise como se fosse uma previsão de chuva, ou seria melhor procu rar as oportunidades que ela pode nos oferecer? RECUSAMOS A MUDANÇA? A cada mudança natural, a lei da inércia engendra uma resis tência que é preciso vencer. Não nos referimos aqui à incompreensão ou resistência que opo ríamos à mudança. Uma verdadeira crise exis tencial caminha lado a lado com quem vive de modo consciente. Entretanto, uma crise dessa amplitude abala nossos hábitos e nos conduz a um momento decisivo; de fato, cada um de nós é esse momento decisivo. Mas podemos recair no hábito e nos furtar a esse momento de crise, relacionando-o ao passado ou ao fu turo, por meio de lembranças ou expectativas. Nesse caso, somente serão possíveis reações ou de perda ou de conservação. Em uma crise real podemos ter a sensação de total perda de controle sobre o curso dos acontecimentos. Somos brutal e consciente mente colocados no presente, o único mo mento que pode ser realmente observado. Entretanto, quando o controle nos é retirado uma abertura se torna possível. Nesse instante,
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a ordem natural das coisas pode ser reestabe lecida a despeito de nós mesmos. Na verda de, perturbamos constantemente o equilíbrio natural, enquanto a natureza busca restabele cê-lo. Mas temos consciência suficiente desse possível restabelecimento? Sentimo-nos uni dos a esta natureza, ou somos impulsionados pelo medo? E, considerando uma escala mais abrangente, quando uma perturbação do nosso campo de vida é corrigida no corpo do nosso planeta, sabemos responder com a organiza ção, tão rápida quanto possível, de uma nova ordem mundial, de um sistema social diferen te, de uma outra civilização? Em que se baseia essa ordem, essa civilização? E afinal, o que é uma pessoa civilizada? VER O MOMENTO DECISIVO EM SI MESMO
“Os que possuem o Tao não se ocupam com a civilização”. Essa declaração relativiza to dos os desenvolvimentos culturais, conferin do-lhes um ponto de vista mais amplo, o de uma realidade superior que, durante todos os períodos de desenvolvimento, jamais aban dona a humanidade e a leva a outra onda de vida, à qual ela não está acostumada, onde ela estará livre de qualquer opinião particu lar e de todo desejo de explicar as situações de crise e caos. Essa realidade superior leva a humanidade para além de toda forma de crítica e oposição que a prendem de modo cada vez estreito às mesmas crises e ao caos. Mas atenção: a orientação para uma realidade superior leva-nos a nós mesmos.
Ela simplesmente coloca cada um diante de uma possibilidade, uma oportunidade que, definitivamente, diz respeito a todos. Aprendemos a ver a crise, tanto em nós quanto na sociedade, como a perturbação de um campo eletromagnético que parece orga nizado por nós mesmos. Todavia, um campo eletromagnético de uma realidade mais elevada exerce sobre nosso campo uma influência oculta. Além de rees tabelecer o equilíbrio natural, ele penetra e sustenta, mediante a evolução, certas condi ções cósmicas que engendram em nosso do mínio particular uma reversão, uma mudança de realidade; penetramos em outra dimensão. À luz dessa realidade superior, fica evidente que não devemos acusar os centros de po der exteriores a nós, pois em maior ou me nor escala eles apenas refletem nossa própria realidade. Se compreendemos isso, podemos então abandonar a crítica e a indignação. Como seres que vivem juntos, estamos den tro da mesma atmosfera, somos essa atmosfe ra, respiramos o mesmo ar. Nós somos um só corpo, e cada átomo desse corpo traz, a seu modo, a sua contribuição. NÓS SOMOS O TEMPO É interessante ter em
mente que se uma crise nos priva de algo, ela também nos oferece muito. Nossas próprias ações determinam o que vivenciamos. Sem cessar criamos nossa realidade, no entanto somos parcialmente conscientes dela, pois o que criamos é muito parecido com nossa
realidade anterior. Nossa maior ou menor consciência da realidade que criamos depen de do nosso ponto de partida, e determinará, ao mesmo tempo, onde essa transição nos levará. Optaremos, mais uma vez, por ou tro caminho, ou nos dirigiremos ao centro, à alma, à essência das coisas? Saberemos nos abrir ao Tao atemporal? Todos nós vivenciamos atualmente uma transformação societária, mas a transfor mação interior, acima da existência espaço temporal, de nosso verdadeiro ser, é sempre atual. E nosso critério essencial é saber se aceitamos nos entregar a esse misterioso cruzamento das dimensões para atravessar a fronteira que separa a realidade virtual da única realidade. Podemos viver a vida sem nossas próprias projeções e expectativas. É possível adentrar o grande silêncio e paz interior onde habita nosso verdadeiro ser. Quando estamos pron tos a abandonar o controle e deixar de viven ciá-la como algo da contranatureza, a crise já não será caótica, não colocará nossa vida em risco, mas se revelará algo evidente e muito natural. Uma vez tendo chegado a esse estado de silêncio, adentramos imediatamente outra realidade, uma realidade não almejada, prevista ou criada por nós, mas sim pelo Tao, pois ele é tudo e recria tudo. Uma confiança infinita aflui em nós, o eu comum já não está no centro e tudo e se coloca na devida pers pectiva: a de um servidor devotado ao gran dioso processo da mudança infinita. µ cruz@mento 25
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s ensinamentos mais interiores permitem que nos aproximemos do que, a princípio, parecia ser in compreensível. Ou seja: que já somos tudo no que é o Outro. A eternidade manifes ta-se no presente. Cada desenvolvimento a que nos dedicamos conduz à totalidade das dimensões que conscientizam dessa verdade única de que somos tudo, de que somos o Todo. Como diz a antiquíssima sabedoria: Tat twam asi (tu és o Isso). À luz dos ensinamentos universais, elevamonos progressivamente à compreensão de que nós mesmos criamos nossa própria realidade dentro das dimensões do tempo e do espaço. Como personalidades limitadas, estamos a caminho desse Isso, rumo ao Todo. Ao mesmo tempo em que, em nosso ser mais profundo, já somos tudo, no entanto, como buscadores de uma experiência de vida profunda, percebemos que a personalidade limitada nos isola de nosso ser interior. O que nos faz efetivamente ser buscadores, alunos, é essa compreensão de que as es sências vitais superiores não conseguem se manifestar em nós. Mediante nossa represen tação pessoal da realidade, mediante nosso pensamento, criamos o tempo, a duração, o futuro. Do mesmo modo, antes mesmo de começarmos a pensar em seguir o caminho de libertação, nosso raciocínio nos impe de de vivenciar a eternidade no presente. Sempre situada no passado ou no futuro, 26 pentagrama 6/2013
fugidia, a contemplação imediata da Luz su blime nos escapa. Não há nada para saber, nada para conhecer. Há uma liberdade no instante, uma liberdade que dura enquanto respeitamos as condições exigidas: um anseio ardente e espontâneo, uma atitude interior que acolhe, abraça e religa tudo e todos. Não há nada para saber, apenas vivenciar o instante que não é resultado do passado. As verdadeiras ideias do Espírito e do pensa mento abstrato, tão ricas de possibilidades para o futuro, não alcançam nossa inteligên cia. Esta só se importa com o que está acon tecendo, com certas possibilidades que se oferecem a ela. A inteligência jamais domi nará o que vai acontecer, embora gostemos de pensar que sim. Sem cessar ela retém o tempo ao qual, posteriormente, reconhece mos estar ligados. AS POSSIBILIDADES DE AQUÁRIO A inspira ção e a criação de ideias nos vêm de nosso ser espiritual, “o Outro”, que está ligado à plenitude do Ser. No entanto, se a pessoa for receptiva, a compreensão limitada da per sonalidade consegue captar a ideia. Nesse caso, essa faculdade mental específica, capaz de contemplar e de traduzir em imagens as ideias abstratas, é particularmente útil e permite colocá-la em prática. Essa faculdade converte a ideia em representações que fa vorecem um estado de receptividade perma nente. Nessas circunstâncias, nosso estado
de ser, esquecido de que existe um eu e um você, é fundamental. Também é essencial compreender que cada imagem deve estar em concordância com esse instante para que possa ser aplicada. Apesar de sua origem elevada, até essa ideia permanece incompleta em nós e fatalmente limitada. O que é real e fundamental sempre desliza por detrás do horizonte, pois não é permitido ao homem natural “caminhar no jardim dos deuses”. E cada ideia recebida, cada conhecimento adquirido serão aban donados, em total autorrendição, para que uma nova inspiração seja recebida. Isso não significa que precisamos ver para crer. Não, a verdadeira fé criadora é visão. Isso é o que significa viver: sempre começar expirando, para realizar tudo inspirando. Essa nova compreensão, essa nova visão, pertencem à faculdade que nos eleva além dos limites de nossa personalidade. Essa faculdade contemplativa surge da visão, da
vivência do ser inteiro. Ela nasce de um pri meiro toque no coração, ponto onde o puro centro espiritual pode se expressar, cerne do microcosmo. Dele emana uma energia luminosa que a Escola espiritual chama frequentemente de “a cundaline do coração”. Essa nova faculdade, nascida desse toque espiritual, gera em nós imagens e metáforas que renovam nossa vida. Nada temos de especial a fazer além de acei tar essa síntese criativa de nosso ser essencial. Isso é o que realmente significa “assumir suas responsabilidades”: integrar-se na unidade universal do Tao. Desse toque nasce a fé ina lienável, seja qual for a crise ou o caos que atravessamos. Então, nosso ser é preenchido por uma grande alegria, que substitui todas as preocupações e medos. Em cada cruzamento do caminho, uma porta dá acesso a uma completa transformação das realidades. Assim criamos a atmosfera capaz de sustentar e salvar toda a humanidade. µ muito além do horizonte 27
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O HOMEM E M SUA BUSCA: QUANTO M AIS PODEROSAS S達O A S CREMALHEIRAS DE SEU PENSAMENTO...
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...MAIS A ATITUDE DE SUA CONDUTA É FOCALIZADA NO CAMINHO PARA A LU Z.
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não tenha medo das
sombras em algum lugar, bem
perto de você existe luz!
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inda não somos passantes; somos mais participantes que buscam acima de tudo os próprios interesses. Portanto, somos levados a tomar partido em cada conflito, até tomarmos consciência de que tudo não passa de uma repetição do mesmo cenário, adaptado ao nosso tempo: a maça do homem pré-histórico transformouse em arma tecnológica, mas as mãos que se servem delas continuam as mesmas! Quando reconhecemos, depois de alguns anos passados nesta terra, que as mesmas situações insuportáveis que necessitam de uma intervenção imediata não têm solução, conseguimos compreender que simplesmen te culpá-las não traz qualquer alívio! A face sombria do mundo chama nossa atenção para seu lado iluminado, para o indivisível, que muitas vezes está fragmentado. Em tudo o que é intolerável há malfeito res e vítimas, alguns a punir e outros a recompensar. Pelo menos acreditamos que seja assim. No entanto, muitas vezes a vítima é ignora da, obrigada a assumir a situação sozinha. Precisamos refletir sobre isso, pois este mun do está do avesso! Afinal, quem é a vítima e quem é o culpado? Cada vez mais assistimos a tentativas de instaurar um diálogo entre vítima e carras co! Por exemplo: Bill Perke perdoou a mu lher que assassinou sua avó. Ela havia sido condenada à morte aos 15 anos, em 1985, mas Perke empenhou-se em fazer que a 30 pentagrama 6/2013
Ruth Renkle
liberassem em 2013 a fim de que ela pudesse reconstruir sua vida. Às vezes este mundo é atravessado por ações que provêm de uma outra consciência e apagam a separação entre direito e injustiça, entre carrasco e vítima. Atentados, banhos de sangue, torturas, per turbações de alguns seres humanos... Que escolha fará o homem que tem coração e reconhece esses horrores? Continuar a ser um espectador mudo, paralisado pela emoção? Gritar sua repugnância e berrar suas críticas? Explicar como devem ser punidos e tratados os desprezíveis desordeiros? Sempre haverá uma plateia pronta para delei tar-se com a amargura dos outros, apontá-los com o dedo... Ah, a alma humana! E, é cla ro, “ser do contra” fortalece o ego! Tudo isso é humano, mas não tem valor agregado. Nesse caso, nem o espectador nem o passante ficam ilesos: todas as suas facul dades são postas de lado. Os que berram e criticam (e quantas vezes não caímos nes sa armadilha?) tornam mais densa a nuvem tenebrosa sobre a humanidade. Com essa concentração invisível e desconhecida, cheia de avidez, ódio e corrupção, a coletividade humana polui a atmosfera, destila um veneno que, em um momento de fraqueza, impulsio na o homem mais respeitável às ações mais imprevisíveis. Esse homem, levado diante de um juiz, é simplesmente o produto daquilo que nós, imperceptivelmente e dia após dia, geramos e tornamos possível como comuni dade! Quem é o malfeitor?
Encaremos a ansiedade que existe nesta terra e a insensatez que se segue, incompreensível. Longe de nós e tão perto estão: a indignação, a piedade, a revolta e a instabilidade – apenas algumas das emoções que sempre nos assaltam. E, no entanto, nos é dito: “Tornai-vos passantes”!1
Quem é a vítima? Quando confrontamos a nós mesmos, somos levados a nos indagar se somos melhores. Entre confrontações e con tradições, somos levados a um novo modo de pensar. O autoconhecimento nos ajuda a reconhecer os rastros da luz à nossa volta. As correntes de sabedoria de todos os tempos testemu nham de um mundo no qual não existe nem pior nem melhor, nem pró nem contra. O homem é o ponto de encontro dos opostos que o atormentam e o moldam, mesmo sem ter consciência disso. O homem que descobre em si mesmo o campo de luz, que Hermes chama de Noûs, segue esse novo campo. Livre de todo julgamento, ele descobre a compaixão isenta de emoções paralisan tes que lhe devolverá a plena posse de suas Se te ligares ao coração, ó alma, tua luz aumentará de tal modo que reconhecerás a maneira certa de agir com os olhos do espírito, mas se te desligares do coração e te deixares guiar pelos sentidos [...] serás envolta pelas trevas. Este mundo material daqui de baixo, ó alma, é a morada dos desejos insaciados, do medo, da indignidade e da af lição; no alto encontra-se o mundo do espírito, do repouso, inacessível ao medo, que testemunha de uma dignidade e de uma alegria elevadas. Tu vês esses dois mundos, tu vives nesses dois mundos. Faze agora uma escolha de acordo com tua experiência. Nos dois podes morar; por nenhum dos dois serás rejeitada ou abandonada. Do castigo da alma (Hermes)
capacidades. Através das sombras opressoras, seu olhar lúcido (de luz) descobre as clari dades nascentes das quais ele é um correali zador, os sinais de um novo tempo no qual tudo tem um sentido, uma função, tanto o pró quanto o contra, tanto a vítima quanto o carrasco. Assim como todo ser humano inconsciente alimenta e aumenta a nuvem da ignorância, quem participa do renascimento pode trans formar todo impulso tenebroso em luz, a serviço de todos os que anelam por essa Luz. Cada momento de crise, individual ou cole tiva, abre a porta para uma nova maneira de pensar, para uma criação vivificante. A escolha pertence a nós: podemos optar por deixar o vinho novo se azedar em ve lhos barris, ou criar o espaço para conduzir a Terra e seus habitantes a uma espiral superior em direção a seu destino. µ
1. Evangelho de Tomé, logion 42.
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“Mas, em teu caso, Boécio, devemos ser reconhecidos ao dispensador de toda saúde por ainda não ter permitido que percas tua própria natureza. A convicção de que de qualquer maneira o mundo é dirigido deve esconder alguma brasa fumegante de tua saúde, pois tu crês que o mundo não é gover nado pelo acaso, mas que se submete à razão divina. Também nada temas, pois graças a essa centelha teu calor vital poderá depressa ser reavivado.”
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mbora a sabedoria antiga afirme que podemos acreditar estarmos envolvidos por um círculo de luz divina, parece evidente que entre esse círculo de luz e nós existe uma cortina negra, um círculo tene broso que absorve toda luz. Diversos escritos antigos esclarecem melhor esse tema. No Evangelho da Verdade, atribuído a Valentino, gnóstico do século 2, podemos ler: “A ig norância sobre o Pai engendrou medo e angústia. Esse medo tornou-se denso como uma nuvem, de modo que ninguém conse gue ver. Ele deu sua força ao Demiurgo”. E Boécio (480-525) explica em A Consolação da Filosofia: “É uma particularidade do espírito humano que falsas concepções substituam as verdadeiras, das quais estão separadas. São precisamente essas falsas concepções que ex pelem uma nuvem de confusão que encobre a visão da verdade. Eu (a senhora Filosofia) dissolverei progressivamente essa nuvem e os meios utilizados terão a doçura de um tera peuta, na esperança de que, quando as trevas de tuas paixões enganadoras forem dissipa das, possas novamente desvelar o brilho da verdadeira luz”. No Evangelho da Verdade são a ignorância e o medo que nos impedem de ver, e Boécio invoca as paixões enganadoras que escondem de nós a verdadeira luz. O homem até mes mo esqueceu de que se esqueceu. Porque ele já nem mesmo sabe que está privado de luz, há, no devido tempo, tentativas de quebrar esse estado de esquecimento. A atenção
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do homem é dirigida para a luz como, por exemplo, no Evangelho de João 1:6-8: “Houve um homem enviado por Deus cujo nome era João. Este veio como testemunha para que testificasse a respeito da luz, a fim de todos virem a crer por intermédio dele. Ele não era a luz, mas veio para que testi ficasse da luz”. Uma ou várias testemunhas vêm do círculo de luz que tudo envolve anunciar a luz em nossas trevas. Mas, elas apenas terão êxito se a mensagem encontrar eco nos seres em quem a centelha de luz ori ginal ainda está ativa. Para citar A Consolação da Filosofia: “Mas em teu caso (Boécio), deve mos ser reconhecidos ao dispensador de toda saúde por ainda não ter permitido que percas tua própria natureza. A convicção de que, de uma maneira ou de outra, o mundo é dirigi do, deve esconder alguma brasa fumegante de tua saúde, pois tu crês que o mundo não é governado pelo acaso, mas que se subme te à razão divina. Também nada temas, pois graças a essa centelha teu calor vital poderá depressa ser reavivado”. Como João, Boécio fala de um mesmo alento de luz e vida. A centelha de luz que repousa em nós coincide anatomicamente com nosso coração. Isso explica por que na antiga sabe doria hermética Pimandro dá este conselho a Hermes: “Dirige teu coração para a luz e co nhece-a”. Um conselho que encontramos em O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, quando a raposa diz: “Adeus. Este é o meu segredo, e ele é bem simples: só se vê verdadeiramente 34 pentagrama 6/2013
bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos”. As testemunhas da luz não querem, portanto, dirigir-se à cabeça e ao coração, mas ao coração interior, o Noûs. Essa é a razão de muitas ideias e modos de apresentar as coisas nos textos sagrados per manecerem velados para nós. Nosso pensa mento, nosso raciocínio, não tem nenhum poder sobre elas, nem tampouco nossas sensa ções. Entretanto, quem tem uma sensibilida de de outra ordem é tocado, é atraído pelos testemunhos, porque a linguagem dos mensa geiros da Luz oferece à centelha adormecida em nós um “combustível”. A geometria nos ensina que podemos traçar um círculo usando três pontos. Isso signi fica que se marcarmos três pontos equidis tantes no papel podemos traçar um círculo. Curiosamente, isso também é válido para os círculos de luz constituídos a serviço da hu manidade mergulhada na escuridão. Quando Jesus chama seus dois primeiros apóstolos, Simão chamado Pedro e André, ele diz: “Vinde após mim, e eu vos farei pesca dores de homens” (Mt 4:19). Esse trio mágico que representa o triângulo vivente originado do círculo da eternida de pode ser encontrado no início do século 17 no Círculo de Tübingen da Rosa-Cruz clássica nas figuras-chave de Tobias Hess, Christoph Besold e Johann Valentin Andreæ. Quanto à Rosa-Cruz moderna, no início ela contava com os irmãos Wim e Jan Leene e Cor Damme. Depois da guerra de 1940-45,
foram Antonin Gadal, Catharose de Petri e Jan van Rijckenborgh que representaram a Tríplice Aliança da Luz “Graal – Cátaros – Rosa-Cruz”. Assim como nos escritos da Rosa-Cruz clás sica encontramos a Morada Sancti Spiritus, podemos vê-la novamente edificada na Escola Espiritual moderna. Ela é um puro campo as tral que permite que os candidatos aos misté rios se conheçam interiormente e comecem a purificação de si mesmos. É um campo onde o buscador pode, em liberdade e segurança, abrir seu coração à luz, o que está explíci to nos relatórios da Inquisição do século 13 (Pratica inquisitiones, p. 238), que nos escla rece sobre o pensamento dos cátaros: “No que concerne à origem de nosso senhor Jesus Cristo nascido do seio da bem-aventurada Maria, sempre virgem, eles (os cátaros) a negam. Eles declaram que Cristo não possuía um corpo humano real, nem carne humana real como as outras pessoas. Eles negam que a virgem Maria tenha realmente sido a mãe de nosso senhor Jesus Cristo e mesmo que ela tenha realmente sido uma mulher. Eles dizem que sua própria seita é a virgem Maria, dito de outra forma, o verdadeiro perdão e a ver dadeira pureza, castidade e virgindade que faz surgir no mundo os filhos de Deus”. Assim, vemos que os cátaros tinham uma visão gnóstica da ideia de Natal. Os diri gentes espirituais dessa escola de iniciação, qualificada como seita, representavam o aspecto procriador “José”, e a própria escola
de iniciação, a Igreja propriamente dita, re presentava o princípio gerador “Maria”. Cada filho de um dos dois era um “filho de Deus”, ou seja, um seguidor da Igreja cátara que alcançou a libertação, chamado “perfeito” pelos cátaros. No logion 10 do Evangelho de Tomé, Jesus diz: “Eu lancei fogo sobre o mundo, e eis que estou cuidando dele até que queime”. Como a mão estendida da Gnosis, três raios, três testemunhas da Luz vêm do círculo uni versal da Luz, que encerra a criação inteira, para despertar as centelhas que soçobraram na escuridão de nossa existência. Uma vez que um primeiro círculo de luz é formado, no interior dessa “fortaleza de luz” novos círculos de luz podem se formar reunindo, juntando todas as centelhas prontas para a libertação. Amparado pela Luz, o espírito humano abandonará sua tenebrosa nuvem de confusão assim que a verdade surgir outra vez claramente. µ
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ayn rand – a virtude do egoís
Os leitores do The Times elegeram o livro de Ayn Rand, publicado em 1957, Atlas Shrugged (A revolta de Atlas), também conhecido pelo título Quem é John Galt?, o livro mais significativo do século XX, depois da Bíblia, naturalmente. Ayn Rand é a fundadora do “objetivismo”, um sistema filosófico que enaltece o indivíduo e o egoísmo.
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ascida na Rússia, a filósofa Alissa Rosenbaum (1905-1982) teve uma juventude agitada, que transcorreu entre São Petersburgo e a Crimeia. Após o confisco da farmácia de seus pais, durante a guerra civil russa, a família fugiu para a Crimeia, então sob o controle do Exército Branco, a fim de escapar ao regime bolche vista de Lênin. Depois de estudar Filosofia e História em São Petersburgo, Alissa recebeu, em 1926, um visto de saída para visitar fami liares nos Estados Unidos. E não voltou mais à Rússia, mudando seu nome para Ayn Rand. A filosofia que desenvolveu, o objetivismo, pode ser considerada a base do neolibera lismo (maximização dos lucros e poder dos acionistas). Ayn Rand também escreveu vários livros, dos quais The Fountainhead (A Nascente) e Atlas Shrugged são os mais conhecidos e influentes. A interpretação que seus seguidores fizeram de sua filosofia acabou contribuindo para a crise atual. E aqui gostaríamos de fazer uma advertência: em todo o seu pensamen to não há nada de espiritual, mas o leitor da Pentagrama que quiser entender a natureza humana e a razão da ampla crise global, en contrará nele uma visão muito aguçada sobre as leis desta natureza. Em sua filosofia, ela parte do princípio de que somente um ser humano com a autoestima completamente intacta será capaz de sentir o verdadeiro amor. Uma pessoa com baixa autoestima, ou cuja percepção de autoestima 36 pentagrama 6/2013
não esteja intacta, e que, portanto, duvide, de alguma maneira, de suas próprias caracterís ticas, não é capaz de sentir um amor sincero, porque amar verdadeiramente é estimar uma virtude de outro indivíduo, que a própria pessoa também possui. Ayn Rand denomina isso de “a virtude do egoísmo” (The virtue of selfishness). Egoístas e altruístas concordam em que, segundo Ayn Rand, o amor é “um paga mento espiritual pelo prazer pessoal e egoísta que resulta das qualidades de outra pessoa”. Em outras palavras, quem afirma que o amor, o afeto, a amizade, acontecem de forma desin teressada e, portanto, não para si mesmo, mas por outrem, poderia compartilhar o amor da mesma maneira com qualquer outra pessoa – um andarilho, um criminoso, um palhaço ou um herói, pouco importa –, pois o objeto não se destina ao doador. Essa é uma forma extremamente interessante de considerar o amor, porque nos aponta al gumas duras verdades. Faça você mesmo um teste. Pergunte a algum conhecido o que ele (ou ela) acha melhor, mais bonito ou agradá vel no seu parceiro (ou parceira) e receberá respostas como estas: “ela me faz rir”, “ele cuida bem de mim”, “ele me dá a sensação de ser uma princesa”, “ela (ou ele) me faz feliz”. Quase sempre, as qualidades tão apre ciadas no outro fazem bem principalmente para quem as recebe. Esse é o lado prático do amor: ele vê as dificuldades que você, ser humano, encontra na vida. Não é fácil não ser egoísta. No avião, as belas comissárias
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Retrato estilizado de Ayn Rand, pelo pintor Leonebel Jacobs, 1948
ayn rand – a virtude do egoĂsmo 37
Não há nada de errado em ajudar os outros, se eles merecem e você pode se permitir ajudá-los. Ayn Rand, 1964
explicam que em situação de emergência você deve pensar primeiro em você mesmo, e só depois auxiliar outra pessoa. Simplesmente porque ambos poderiam morrer se você fizes se o inverso. Por isso, é sábio o que Tao diz: “A onima nifestação não é humanitária”. De fato, a onimanifestação é objetiva e neutra. Nesse sentido, ela desconhece o amor, e não mima o ser humano com sentimentalismos. Para 99% dos habitantes deste mundo, a vida é dura, é sofrimento infinito. Seria então a filosofia de Ayn Rand a melhor regra para a vida? Ou: deveria ser? Contudo, travar luta contra as boas ações egoístas não é algo tão relevante. Existe algum problema se o seu amor por outra pessoa também faz você feliz? Um gesto simpático em relação a um mendigo pode fazer bem tanto a você quanto a ele, porém isso não quer dizer que ambos sejam felizes. Os altruístas também são, no mínimo, cruéis, afirma Ayn Rand. O paradoxal em seus textos é que, se não há pessoas capazes de praticar boas ações sem visar proveito pró prio, também não existem altruístas “duros”, tais como ela os descreve. O altruísmo é de interesse pessoal do altruísta e o torna feliz. Desse modo, ele embasa a própria existên cia e assume responsabilidade por sua vida: “Embora possa ver os vizinhos do outro lado da rua, os galos cantar e os cães ladrar, ele deixa-os viver em paz, envelhecer e morrer”, ensina Lao Tsé. 38 pentagrama 6/2013
O altruísta, naturalmente, pensa ser de pouco ou nenhum interesse próprio a ação prati cada em benefício do outro, e pode ser que assim seja. O altruísta é da opinião de que os indivíduos têm obrigações morais uns com os outros. Essas obrigações podem excluir por completo as vantagens e os interesses próprios, ou torná-los secundários. “É sábio cumprir as próprias obrigações e ser brando ao exigir os próprios direitos”, diz Lao Tsé. “Quem vive de sua força interior cumpre suas responsabilidades. Quem vive menos de sua força interior exige que os outros cumpram suas responsabilidades.” “O Tao celeste não toma partido e sempre está do lado do bem”. Neste ponto das considera ções, podemos referir-nos ao filósofo francês Jean-Jacques Rousseau. Ele fez uma distinção entre o egoísmo ou amor próprio arrogan te (amour propre) e a auto-estima natural e saudável (amour de soi). A auto-estima natural tem a consciência como instrumento, ou me lhor, como motor. Esse motor é bom em todo ser humano original, natural. A capacidade inata da consciência é mais forte do que a ca pacidade do intelecto. Desse modo, Rousseau está em aberta contradição com Rand, que nega isso, explicando que a consciência teve sua origem na era em que o homem era um ser tribal. Com base nisso, ela justifica tan to a conquista brutal dos territórios indí genas em toda a América, como também o direito de Israel de manter os árabes fora de suas fronteiras. Ayn Rand fala sobre isso
A primeira publicação de Rand, “Pola Negri”, um ensaio sobre sua artista preferida da época. Moscou, 1925
diretamente e sem rodeios. Seu pensamento é bem ao gosto dos apreciadores de Nietzsche, pessoas muito autoconfiantes, ocidentais em sua maior parte, que vivem conforme lhes dita seu livre arbítrio, tomam o que acham necessário e, agindo dessa maneira, moldam o mundo. Porém, seus fãs e adeptos simples mente esqueceram-se de algo: que o “pegue o que quiser”, da filosofia de Rand, vem expressamente acompanhado de outra coisa: ... “e pague”! Esta é certamente uma varian te bem mais ampla da sobrevivência do mais forte, cujo perfume conforta os egoístas, mas cujos discípulos estão longe de compreender o sentido superior, feito de nuanças e equilí brio, oferecidos por Ayn Rand. Ora, justamente os adeptos de Rand são os detentores do poder, os banqueiros e presi dentes gerais, que frequentemente não atuam como pensadores, mas como executivos. E assim, tudo dá errado. Vemos que são eles os construtores e criado res das inúmeras crises mundiais em pratica mente todos os setores da vida em sociedade, porque falta o equilíbrio. Enquanto, na visão de Rand, caberia justamente ao capitalis mo, entendido da maneira correta, cuidar para que a vida em sociedade fosse saudável e transparente, o que – no seu pensamento – baseia-se na máxima aplicação de capital. Dessa forma seria possível obter os mais altos dividendos para os acionistas. Ayn Rand também afirma que isso somente seria possível a um empresário que operasse
prática e objetivamente, um chefe que não temesse nada e fosse direto ao seu objetivo, mas que fosse justo. Desde o ano 2000 os amigos de Rand con quistaram a primazia, tanto no Ocidente como Oriente. E eis que nos encontramos no limiar, no fim de uma cultura, e se não prestarmos atenção, no fim de um mun do. Porque assim diz a raposa em O pequeno príncipe: “Eis o meu segredo. E ele é muito simples: só se vê bem com o coração. O es sencial é invisível para os olhos... Os homens esqueceram essa verdade. Mas tu não deves esquecê-la. Tu te tornas eternamente respon sável por aquilo que cativas. Tu és responsá vel pela rosa...” Quem não deixa seu coração falar em tudo o que vê, diz, experimenta ou faz, transfor ma seu mundo num deserto. É verdade que sempre dizemos que o nosso mundo é uma morada provisória, um campo de desenvolvi mento para a consciência da alma. Mas quem não cuida bem de sua casa já não terá lugar algum onde morar. µ
ayn rand – a virtude do egoísmo 39
a árvore e a f loresta
Ao meio da jornada da vida,
tendo perdido o caminho verdadeiro,
achei-me embrenhado em selva tenebrosa.
N
o início do primeiro canto de sua imortal Divina Comédia, Dante faz uma descrição muito precisa da situação de profunda crise existencial que atravessamos. A árvore esconde a floresta de nós. Estamos perdidos e não sabemos para onde nos dirigir. Ficamos exaustos fazendo perguntas sobre ques tões para as quais não há resposta. Perguntamonos, por exemplo, em que momento as coisas deram errado em nossa vida. Entretanto, apenas sabemos que deram errado, que tomamos o ca minho errado e que nos perdemos. Lamentamos o tempo em que tudo poderia ter ocorrido de outra forma, mas duvidamos de que tivéssemos podido agir de outra forma. Em Ivan Osokin, Ouspensky conta a história de um soldado a quem um mago dá muitas vezes a oportunidade de recomeçar sua vida desde o momento em que ele pensava ter feito uma escolha errada. Para grande espanto do soldado, a cada retomada e após muitas tribulações, ele voltava ao mesmo ponto... entretanto, ele estava pronto para ser iniciado na verdadeira sabedoria, com esse mes mo mago. Com relação à nossa situação na sociedade atual, seria talvez preferível abandonar nossas análises e nossas pesquisas para encontrar os culpados. A conclusão normal poderia ser de que as coisas dariam errado, mas é melhor se questionar sobre as raízes do mal. De fato, todos carregam o mal, seja individual seja coletivamente. Não devido a um passo er rado dado uma vez, mas devido à estrutura que, desde há muito, é parte integrante de nosso ser. 40 pentagrama 6/2013
Queremos e queremos sempre mais; jamais esta mos satisfeitos. O resultado é um cansaço de nós mesmos, dos outros e, por extensão, do planeta inteiro com seus produtos e matérias primas. Vemos a paixão possessiva, parte da estrutura de nossa natureza, operando em todos os lugares. Ainda que tenhamos de nos sentir culpados até o fim de nossos dias, não poderíamos nem pode mos agir de outra forma. Porque somos assim! A explicação não está muito longe. Sofremos uma carência desesperada, a penosa e profunda au sência de uma vida verdadeira, a falta que sente quem está perdido, a falta de conhecimento. É compreensível que preenchamos essa falta com todos os meios disponíveis, que tentemos acal mar a sede a qualquer preço. Entretanto, quanto mais comemos, mais nossa fome parece crescer. Simultaneamente, nossa busca por alimentos adequados causa a diminuição dos recursos. Durante muito tempo acariciamos o sonho de que conseguiríamos enquanto os meios, sempre mais numerosos e refinados, nos ofereceriam a possibilidade de encontrar a substancia vital buscada. Pensamos ser um bom começo nos apropriarmos dela, e tudo terminaria como havíamos desejado. Nesse meio tempo, ganha mos experiência. O que a ciência e a técnica delinearam para nós mostrou-se irreal. O fruto prometido está nos limites do tempo, porém o que alcançamos foi o limite do nosso progresso. Aparentemente só conseguimos andar para trás. Entretanto, nossa natureza humana não aceita isso. A despeito do andar das coisas, seguimos nosso curso frenético. Resultado: desperdiçamos
inutilmente muita energia. É claro como cris tal: lutamos contra a fatalidade das leis de uma natureza que, após ter sido perturbada por longo tempo, nos faz descer dos cumes escalados por meios artificiais. Em física, fala-se a esse propósito de entropia: tudo o que cresce, um dia decresce. Não é isso que chamamos “crise”? Agarramo-nos a nossas aquisições, mas inevita velmente vamos perdê-las; queremos bloquear o movimento de tudo que provoca mudança. Melhor seria seguir a mudança em curso e aceitar abandonar o que deve ser abandonado, do contrário isso será brutalmente arrancado de nós. O mais poderoso símbolo para representar essa crise existencial é a cruz. Seria uma crise outra coisa senão um caminho de cruz? Ela nos coloca no cruzamento de caminhos que conduzem ao ponto extremo da total autorrendição, ou seja, acompanhar o declínio ou fazer a roda girar mais
uma vez. Cada homem é levado a fazer uma escolha interior. Mas podemos também acompa nhar esse movimento de declí nio para colocar definitivamente um fim à rotina cíclica da roda. Como? Fazendo a escolha por uma vida interior profunda e transbordante de amor, optando pela alma, por uma vida plena e rica de sentido. No meio de todas as novidades desastrosas há algo que traga esperança e que acolheríamos de braços e mãos abertos? Não para nos agarrar a velhas verda des e salvar nossa necessidade existencial, mas para abraçar uma nova forma de vida, para nos preparar para uma vida absolutamente nova, religada a um mundo radiante de luz, um mun do que, ao longe, principia a iluminar o velho mundo. Dante já havia vislumbrado que a crise de hoje provinha da cegueira temporária devida a um aumento de força de radiação proveniente do novo mundo. Como ele vagamente pressenti ra no início de seu tenebroso Inferno, ao che gar ao fim de seu longo caminho iniciático ele encontrou a resposta, ele compreendeu que no segundo plano das agitações do mundo trabalha a força animadora do Amor divino: Mas, então, o meu querer, qual roda obediente ao mando que a faz mover-se, pusera-se conforme a vontade divina, esse Amor que move o Sol e as mais estrelas. µ a árvore e a floresta 41
o mal e o senhor do mar
42 pentagrama 6/2013
O que está além da medida perece no mal sem medida... Torrentius
À
s vezes o mal é designado como a menor parte do bem. Então, onde ele se esconde? Por que ele se esconde? Aparentemente, ele se esconde da luz, mas onde ele se oculta? Seria o mal causado ape nas pelo que os seres humanos fazem uns aos outros? Seria também o mal o dano que eles causam ao seu meio ambiente, à natureza? Ou as duas coisas se confundem? Seria possível que o mal fosse uma ener gia maligna, exterior aos seres humanos – o salniter corrompido ( Jacob Boehme) ou as potestades do ar (Paulo) –, uma energia corrompedora? Esse surgimento do mal seria a menor parte do bem? Ou seria como sugere a canção pop lendária Please allow me to introduce myself, I’m a man of wealth and taste (Permita que me apresente, eu sou um homem rico e refinado). Existem efetivamente potestades do ar no céu, como em certas peças de Shakespeare e certas advertências de Paulo? O mal seria impossível de ser desarraigado e rastreado ou seria algo bem mais comum, uma banalidade, como pretende Hannah Arendt? Ele precisaria de um gênio do mal para se manifestar, uma vez que existe naturalmente em cada ser humano, ou para manifestar-se no homem comum em situações constrangedoras, como, por exemplo, em tempos de crise ou o mal e o senhor do mar 43
guerra? Ou não teríamos nenhuma consciência do mal, porque nós o rejeitaríamos ou porque simplesmente não quereríamos tomar conheci mento de determinadas coisas? Uma crise quase mundial como a dos anos trinta do século passado certamente tem relação com o mal, seja esse mal a causa ou o efeito. O fascismo e o nazismo pareciam, nesses tempos, ser um mal impossível de suprimir, tomando uma amplidão desco nhecida até então. As coisas parecem menos claras na crise atual. Entretanto, é inegável que o cinismo de uma ética prof issional e existencial desempenha um papel relevante irrefutável, que só não continua escondido devido ao mundo virtual. Cedo ou tarde tudo vem à luz, e hoje mais frequentemente cedo que tarde. Como ser humano, você não pode escapar dos limites que você mesmo coloca. O mal existe? Ele procura se afastar do bem? O que é, então, o bem? Ele existe? E por que você não o pratica? Fazer experiências é o que você quer? Então, não seria muito mais sim ples conectar o mal com a morte? Esclerosar -se, cristalizar-se, depois dissolver-se em elementos, em uma palavra, morrer, não seria um efeito da ação do mal? Na tradição hermética gnóstica, o mal é a ignorância, a falta do verdadeiro conheci mento. Como “saber do coração”, a Gnosis preenche e forma a consciência, de modo que não sobra nenhum espaço para a igno rância, para o mal. Podemos interpretar o 44 pentagrama 6/2013
paradoxo do mal como uma qualidade supe rior, apesar de portadora de inf luências más, malignas? I am a man of wealth and taste. Isso é verdadeiro tanto no campo da cultura quanto da ciência. Da ciência que pretende ser neutra e da cultu ra que se deleita com a ostentação e o refina mento técnico. Por outro lado, essa perfeição técnica não teria grandes qualidades? A informação obtida sobre o caos seria a chave do adeus ao mal? O mal e o bem não constituiriam uma contradição aparentemente ética? De fato, não há vida concebível sem um e outro, sem os dois, sem a dualidade. Entretanto, se é assim, o bem e o mal não seriam Um? Não ouso ir além. Uma vez tentei encontrar palavras para os as pectos do mal que não tivessem prefixos como “im” ou “in” como em infidelidade, indigni dade, impotência, impaciência. Nem prefixos como “contra” ou “des” como em desobedecer, destruir, contrariar, controlar etc. Encontrei: ódio, morte, medo, sombra, roubar, pilhar e muitos outros termos muito carregados para uma pessoa de bem. Coisas que apenas existem quando não há lugar para o coração, quando não estamos inclinados a ouvi-lo. Por outro lado, aprendi que numerosos en sinamentos de sabedoria e de religiões con cordam sobre o importante papel de ver o Destruidor como divino, como por exemplo, Shiva-Shakti, a energia que destrói o que é perecível. E entendi as histórias dos mártires, que fazem pensar que não há manifestação do bem sem o mal. “Por que devo combater?”, pergunta Arjuna, e o próprio divino Krishna não via mal em guerrear num mundo de ilusões isento de pura compreensão: “O homem não escapa das cadeias das ações evitando agir; nem alcan çará a perfeição negando a si mesmo. Com efeito, ninguém pode deixar de agir, nem mesmo por um instante, pois a cada instante ele é impulsionado a agir conforme suas qua lidades inatas”.
“A guerra é um mal necessário?”, perguntou um major inspetor a um candidato a oficial mi litar durante uma inspeção. Por ter respondido “O exército é um mal não necessário”, ele não obteve seu brevê. Essa resposta, que não figura va no formulário, não agradou o major... A crise dos anos trinta terminou com a aniquilação de dezenas de milhões de seres humanos, e ninguém ousaria dizer que esse mal excessivo era necessário para o desen volvimento da consciência humana. Não, o caminho da paz é suficiente e o da harmo nia é excelente do ponto de vista espiritual, porque a violência e o sofrimento excessivos só podem desembocar em traumatismos e pós-traumatismos. Se pudermos compreender isso, correríamos então o perigo de dar ao mal a possibilidade de ressurgir e de provocar uma nova onda de violência gratuita, de sofrimentos desumanos e, portanto, um acréscimo de trevas para a alma? Para nossa alma, o fogo interior, o motor espiritual, é de caráter clemente, ele não machuca, é ardente sem ser violento. Esse fogo não necessita de experiências, choques e traumatismos para se inflamar; pelo con trário, o equilíbrio da alma onde esse fogo clemente, origem da transmutação, pode se inflamar não pode ser perturbado por violên cias malévolas. O perigo, hoje, é que a crise gere uma pro fusão de ocasiões para engendrar mais mal no seio da história do mundo. É dito que o dinheiro é a raiz de todo mal. Mas a raiz do dinheiro é o homem propenso ao mal, confor me diz Paulo como se se tratasse dele mesmo, ou de mim, e ele podia falar assim, pois, como eu, ele o reconhecia em si mesmo. E Paulo nos faz compreender que há potestades más no ar, que, aliás, também eu detecto, sedutores que tentam exercer poder sobre meus pensa mentos, se é que já não é o caso. A esse propósito, que oportunidades oferece uma crise? Bem, atualmente não há apenas potestades malignas no ar, há também forças
atmosféricas que buscam nutrir outro desejo, um desejo que ultrapassa a avidez e o interes se pessoal. Há forças que respondem a outro estado natural: à simplicidade, à quietude, à cortesia e ao desejo pelo Um. Sobre esse as sunto, prefiro falar do “banal genial”, do que é simplesmente normal e bom, pois sempre há como fazer as coisas mais simplesmente, mais sadiamente, em pureza total. Há um mar de espaço para o “banal genial” do bem. E o canal que conduz às portas das eclusas que desembocam nesse mar é uma mentalida de sã. Quanto à eclusa, ela é o coração. E o senhor do mar é a força unificadora. Minha mentalidade sã é constituída de um pensamento leve, não o pensamento de mercado nem o de produção nem o de forne cimento. Em sua busca, meu pensamento se eleva. A eclusa que é meu coração funciona em um sentido espiritual que faz as portas se abrirem. Veja, a força unificadora do senhor do mar e meu campo de respiração adquirem um azul sereno. Ah, Netuno, força planetária que renova o santuário da cabeça, dissolve as potestades más dos ares... É o “ser ou não ser” que resolve minha crise? Ouso seguir novamente minha reflexão. E mi nha alma responde: “Eu sou para o mundo e a humanidade, e para mim mesma; ou seja, para a vida”. A vida é luz quando preenchida pelo Um, pois então ela verdadeiramente é. µ
o mal e o senhor do mar 45
I
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A
G
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N
S
O HOMEM É UM PENTAGRAMA, OU UM SíMBOLO, DO MESMO MODO
QUE UM OBJETO OU UM DESENHO. TRATA DE PENETRAR MAIS
LONGE QUE A REPRESENTAçãO SIMBÓLICA, SENãO VOCê NãO
PODERÁ ACORDAR. NO INTERIOR DO SíMBOLO HÁ UM PLANO EM
MOVIMENTO! APRENDA A DECIFRÁ-LO. PARA CONSEGUI-LO, VOCê
PRECISA DE UMA ESCOLA, MAS ANTES QUE ELA POSSA AJUDÁ-LO,
VOCê DEVE ESTAR PREPARADO. VOCê ESTARÁ, SE SE MOSTRAR
HONESTO EM SUA BUSCA...
46 pentagrama 6/2013
D
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...O SEGREDO DA ALMA ESTÁ AQUI: QUANDO VOCê BUSCA A
VERDADE E O CONHECIMENTO, VOCê OS ENCONTRA. SE BUSCA
ALGO APENAS PARA VOCê MESMO, TALVEZ O OBTENHA, MAS
PERDERÁ TODOS OS PODERES SUPERIORES...
SABEDORIA DO IRã
imagens do mundo 47
Visões, mistérios e rituais Ecos da Gnosis – parte II George Mead e sua visão sobre os textos magníficos de Arideus, Mitra e os mistérios caldeus
Capa dura | 260 págs. | € 27,50 lançamento: novembro 2013, na Holanda
Era mais fácil, na Alexandria dos primeiros séculos de nossa era, encontrar magos
babilônicos e sacerdotes nativos de Ísis e Amon-Rá do que hindus e budistas. Isso
podia ser visto na famosa biblioteca da cidade: ela oferecia um reflexo da busca pelo
conhecimento universal, que a inteira cidade respirava. Nela, em um lugar separado,
aconteciam os mistérios religiosos.
Mitra, Arideus, Zoroastro e a doutrina dos mistérios caldeus atraíam milhares de
interessados e aventureiros, mas também buscadores sérios de uma verdade superior.
Estes últimos eram atraídos pelo título do lugar: local para a cura da alma.
Na parte II de Ecos da Gnosis, vemos o mérito de George Mead, o primeiro gnóstico
moderno, ao colocar os ensinamentos exóticos e desconcertantes, à primeira vista,
dos mistérios daquela época no contexto do pensamento ocidental.
Mead torna claro que, apesar de parecerem distantes, estranhos e matizados pelas
cores variegadas da época, esses ensinamentos fazem parte do conhecimento univer sal do homem, a Gnosis do coração, e trespassam os mundos ocultos da mente.
George Robert Stowe Mead, com suas traduções e artigos, marcou de maneira
importante a investigação das correntes gnósticas no início do período greco-egípcio
de nossa era. Seu desejo ardente era revelar e tornar acessível para uma audiência
ampla a profundidade, o conhecimento e a beleza da Gnosis, e sua ressonância eterna
no espírito humano.
Ele foi o primeiro teósofo a desenvolver uma teosofia ocidental, apoiada no Corpus
Hermeticum e nos sistemas gnósticos de Valentino, Basilides e outros. Os estudos
profundos sobre a Gnosis de eminentes estudiosos como C.G. Jung, Stephan Hoeller,
Gilles Quispel e J. van Rijckenborgh seriam impensáveis sem a obra de Mead.
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O dever, e também o privilégio, do buscador espiritual é interessar-se pela alma e pelo espírito do homem, pelos segredos do espaço cósmico e pelas causas espirituais da existência. Lentamente, muito lentamente, o homem moderno começa a entender seu dever. Um novo tempo se anuncia.
Deixamos a outros a ligeira vantagem da liberdade máxima. Nós, que sabemos, queremos elevar nossa responsabilidade ao máximo. Aproximamo-nos das esferas dos que têm uma visão, que fazem crescer, em alegria, cada grão de seu dever e fazem o novo tempo chegar com grande velocidade.
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Ele destaca a responsabilidade do ser humano de trabalhar por sua casa, seu ambiente, seu país, sua comunidade, seu mundo – não pelo lado exterior enganador, mas sobretudo por seu estado interior, pela atmosfera na qual a vida se desenrola. Lentamente, muito lentamente, os homens de boa vontade querem tomar para si essa tarefa. Uma nova atmosfera é criada.