As Mulheres e o Trabalho | A Indústria de Vestuário no Concelho da Moita

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MULHERES TRABALHO

EO

A INDÚSTRIA DE VESTUÁRIO NO CONCELHO DA MOITA



FICHA TÉCNICA

TÍTULO: As Mulheres e o Trabalho: A Indústria de Vestuário no Concelho da Moita

ORGANIZAÇÃO: Câmara Municipal da Moita / Departamento de Assuntos Sociais e Cultura / Divisão de Cultura e Desporto

INVESTIGAÇÃO E ELABORAÇÃO DE TEXTOS: Departamento de Assuntos Sociais e Cultura / Divisão de Cultura e Desporto / Vitor Mendes CONCEÇÃO GRÁFICA: Carlos Jorge

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS: Arquivo de História Social do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Arquivo do PCP; Arquivo Fotográfico CGTP-IN; Arquivo Histórico Militar; Arquivo Municipal da Moita; Arquivo Municipal de Lisboa; Arquivo Nacional Torre do Tombo; Biblioteca da Universidade de Coimbra; Biblioteca e Arquivo Histórico da Secretaria Geral do Ministério da Economia; Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas; Biblioteca Municipal da Moita; Biblioteca Municipal de Santarém; Biblioteca Nacional de Portugal; Biblioteca Pública Municipal do Porto; Câmara Municipal da Moita, Arquivo da Divisão de Administração Urbanística; Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto; Câmara Municipal da Moita, Gabinete de Informação e Relações Públicas; Centro de Documentação Museu Industrial Baía do Tejo; Centro de Informação Geoespacial do Exército; Centro Português de Fotografia; Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema; Clube Recreio e Instrução; Ecomuseu Municipal do Seixal; Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar/Direção de Infraestruturas do Exército; Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Boa Viagem, Moita; Nova Vega; Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Corticeira do Sul; Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul; Antónia Conde Paixão; António Gonzalez; António N. Policarpo; Carolina Medeiros; Cristina Campante; Dolores Marques; Filipe Campante; Guilhermina Varela; Ivone Camacho; J. Brito Apolónia; Jorge Pereira de Sampaio; Judite Faquinha; Júlio Serra; Lucinda Carrusca; Maria Clara Mourato Santos; Maria Luísa Figueira; Miguel Canudo; Teresa Araújo; Teresa Santos; Vitor Mendes. DIGITALIZAÇÃO DE IMAGENS: António Vieira, João Hortelão Silva, Joaquim Rodrigues.

AGRADECIMENTOS: Arquivo de História Social do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; Arquivo do PCP; Arquivo Fotográfico CGTP-IN; Arquivo Histórico Militar; Arquivo Municipal da Moita; Arquivo Municipal de Lisboa; Arquivo Nacional Torre do Tombo; ANIVEC-APIV Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confecção; Biblioteca da Universidade de Coimbra; Biblioteca e Arquivo Histórico da Secretaria Geral do Ministério da Economia; Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas; Biblioteca do Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; Biblioteca Municipal da Moita; Biblioteca Municipal de Santarém; Biblioteca Nacional de Portugal; Biblioteca Pública Municipal do Porto; Câmara Municipal da Moita, Arquivo da Divisão de Administração Urbanística; Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto; Câmara Municipal da Moita, Gabinete de Informação e Relações Públicas; Centro de Documentação Museu Industrial Baía do Tejo; Centro de Informação Geoespacial do Exército; Centro Português de Fotografia; Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema; Clube Recreio e Instrução; Ecomuseu Municipal do Seixal; Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar/Direção de Infraestruturas do Exército; Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Boa Viagem, Moita; Nova Vega; Núcleo de Arquivo e Documentação do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social; Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Corticeira do Sul; Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul; União das Freguesias de Alcanena e Vila Moreira; União dos Sindicatos de Setúbal/CGTP/IN; Alzira Mendes; Anabela Regula; Antónia Conde Paixão; António Gonzalez; António N. Policarpo; Carolina Medeiros; Cristina Campante; Dolores Marques; Elias Torres; Elisabete Moura; Fátima Falé; Filipe Campante; Guilhermina Varela; Ivone Camacho; J. Brito Apolónia; Jorge Pereira de Sampaio; Judite Faquinha; Júlio Serra; Lucília Lourinhã; Lucinda Carrusca; Luís Leitão; Manuela Prates; Maria Clara Mourato Santos; Maria de Jesus Fernandes; Maria de Jesus Torres; Maria Luísa Figueira; Miguel Canudo; Teresa Araújo; Teresa Santos; Vitória Romão. IMPRESSÃO: Regiset, SA

EDIÇÃO: Câmara Municipal da Moita / Departamento de Assuntos Sociais e Cultura / Divisão de Cultura e Desporto DATA DA EDIÇÃO: Março de 2017

ISBN: 978-989-98166-9-5

DEPÓSITO LEGAL: _______________ TIRAGEM: 500 exemplares




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ÍNDICE

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NOTA DE APRESENTAÇÃO

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PREFÁCIO

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INTRODUÇÃO

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1. AS PRIMEIRAS FÁBRICAS 1.1 A FÁBRICA DA SOLA DA MOITA 1.2 A FÁBRICA DA SOLA DO ROSÁRIO 1.3 A FÁBRICA DE ESTAMPARIA DE ALHOS VEDROS

21 27 34 38

2. PROLETARIZAÇÃO E INDUSTRIALIZAÇÃO 2.1 A AGRICULTURA E O OPERARIADO RURAL 2.2 A AGRICULTURA E A IDENTIDADE RURAL DO CONCELHO 2.3 A INDUSTRIALIZAÇÃO EM ALHOS VEDROS

47 53 62 68

3. AS FÁBRICAS DE CONFEÇÃO DE VESTUÁRIO: FATORES DE INSTALAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO 3.1 A MODA DO PRONTO-A-VESTIR 3.2 O ESTADO NOVO E A MÃO-DE-OBRA BARATA 3.3 A ADESÃO À EFTA 3.4 CORPORATIVISMO 3.5 A INSTALAÇÃO DE FÁBRICAS DE CONFEÇÕES DE VESTUÁRIO NO CONCELHO

73 76 78 80 82 84


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4. O PROCESSO PRODUTIVO RITMOS DE TRABALHO

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5. AS TRABALHADORAS 5.1 AS DOMÉSTICAS 5.2 PADRÕES CULTURAIS 5.3 A PROFISSÃO DE COSTUREIRA 5.4 TRABALHADORAS DE BAIXOS SALÁRIOS

117 119 136 146 161

6. AS LUTAS OPERÁRIAS 6.1 AS LUTAS LABORAIS DURANTE A DITADURA 6.2 AS LUTAS DOS TRABALHADORES E O 25 DE ABRIL 6.3 AS MULHERES E O SINDICATO 6.4 OS JORNAIS LOCAIS E AS LUTAS LABORAIS 6.5 AS AUTARQUIAS LOCAIS NA DEFESA DOS TRABALHADORES DAS FÁBRICAS DE CONFEÇÕES DE VESTUÁRIO

167 172 183 198 213 215

7. O ENCERRAMENTO DAS FÁBRICAS FIM DE UM CICLO 7.1 CRESCIMENTO SEM MODERNIZAÇÃO 7.2 A INTEGRAÇÃO NA COMUNIDADE ECONÓMICA EUROPEIA 7.3 FALÊNCIAS DA CONVEX, GEFA, NORPORTE E BORE

223 225 231 235

BIBLIOGRAFIA

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NOTA DE APRESENTAÇÃO

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s mais novos e os que só conheceram o Concelho da Moita e em particular a vila de Alhos Vedros mais recentemente não sabem e terão dificuldade em imaginar o cenário de centenas, em alguns momentos até milhares de trabalhadoras – sim no feminino porque eram na esmagadora maioria mulheres – a espalharem-se pelas ruas da Vila após a saída das fábricas. Hoje, nos edifícios abandonados, agora propriedade de instituições financeiras, não restam senão os fantasmas de uma indústria que marcou uma época no Concelho. No interior destes espaços agora desertos, parecem ainda ecoar o ruído das máquinas de costura e os risos e as lágrimas, as lutas e os sonhos dos milhares de operárias que ali confeccionaram roupa – que foi vestida, na maioria dos casos, a milhares de quilómetros de distância. Em torno destes milhares de operárias e do ritmo diário das fábricas se desenvolvia a vida da terra, numa cadeia económica de comércio e serviços que


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ampliavam a riqueza produzida na indústria. Mas por detrás desta realidade aparente de saúde económica, estava desde sempre latente a inevitável consequência das características dominantes na indústria do vestuário: Capital estrangeiro em busca de mão-de-obra barata, Capital sem terra e sem pátria, que vai para onde encontrar mais favoráveis condições de exploração dos trabalhadores. A liberalização do comércio internacional e da circulação de capitais – eixo central da globalização capitalista – ditou o rumo das fábricas e das empresas instaladas no Concelho: partiram ao encontro de ainda maior exploração, do Trabalho ainda mais barato e em condições impraticáveis em Portugal, para outros países e outros continentes. São os trabalhadores os maiores – quando não os únicos – defensores das “suas” fábricas, dos seus postos de trabalho – assim ficou mais uma vez demonstrado no decurso do processo de desmantelamento do sector do vestuário e confecções. Foi lutando, vendendo caro cada passo atrás, cada posto de trabalho destruído, cada fábrica encerrada, que as operárias têxteis no Concelho da Moita desenvolveram uma tenaz resistência ao desmantelamento do sector, contando com a solidariedade activa das suas comunidades, em que, aliás, predominavam os operários e trabalhadores, muitos deles temperados nas grandiosas lutas travadas em defesa da indústria e da produção nacional. Nós, na Câmara da Moita, consideramos que é também função do Poder Local promover a fixação da História Local e que deve ser dedicado maior esforço de investigação e divulgação à época mais recente, designadamente o século XX. É esse o propósito deste trabalho. Mas não só. O que aqui também fica expresso e fixado para conhecimento futuro é a história da luta – essa mesmo: a luta de classes – que também aqui, no Concelho da Moita, marcou a sua história e o devir das suas gentes. Este trabalho é, fundamentalmente, uma Homenagem, às operárias e aos operários, a todas e a todos os que lutaram, na fábrica e na vida, por liberdade, por direitos, por uma sociedade mais justa e mais desenvolvida. Obrigado, é o vosso exemplo que nos inspira. Rui Garcia Presidente da Câmara Municipal da Moita




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PREFÁCIO

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livro “As Mulheres e o Trabalho A Indústria de Vestuário no Concelho da Moita” mais que um contributo para a história do Concelho da Moita retrata a consciência social que desde de bem cedo a população da Moita começou a adquirir, acreditando que o destino delas estava também nas suas mãos e na sua vontade. Assim foi desde de bem cedo, com a queda da Monarquia e a implementação da República, sempre na tentativa de melhorar o seu nível de vida e de todos que os rodeiam, não se deixando vencer pelas inevitabilidades, mesmo com expectativas defraudadas pela 1ª República mais de 10 000 operários agrícolas saíram à rua para exigirem melhores salários e melhores condições de trabalho.


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A procura de uma vida melhor, levava à altura, as gentes do Alentejo a abandonar o duro e mal pago trabalho agrícola, para procurar trabalho na indústria que começava a estabelecer-se nos concelhos vizinhos, mas se o homem encontrava trabalho na indústria, a mulher ainda ia para o trabalho agrícola, só mais tarde iria encontrar algum trabalho na indústria corticeira. Com o estabelecimento da indústria do vestuário em Alhos Vedros que na sua esmagadora maioria iria empregar mão-de-obra feminina, dá-se o início do papel de destaque da Mulher na indústria do vestuário no Concelho da Moita, a intervenção das mulheres na sociedade, começa a ser mais preponderante seja ela efectuada no seu local de trabalho ou na sociedade civil do Concelho da Moita. Vai ser preponderante para a história o conhecimento e o sentimento de exploração sentido pelas trabalhadoras da indústria Corticeira, para o desenvolvimento da consciência social e de classe que as trabalhadoras da Indústria do Vestuário irão passar a adquirir, consciência que não mais abandonará estas Mulheres, que estiveram no eixo de várias e diversas lutas por melhores condições de trabalho e por trabalho com direitos, e que contribuirá de forma decisiva para a luta em muitos locais de trabalho no distrito, mesmo após o desaparecimento da Indústria do Vestuário. Foi por via do seu exemplo de organização em conjunto com as suas organizações de classe sindicatos e partidos políticos, na luta entre capital e o trabalho, que também se pode afirmar que ao lutarem por melhores condições de vida estavam a deixar um conjunto de direitos para as gerações futuras de trabalhadoras, deixando a mensagem que só com a luta e a resistência é que podemos construir um futuro melhor. Mais que relatar o desenvolvimento da Indústria do Vestuário no Concelho da Moita, a dimensão da exploração do trabalho que nos é dada a ler e interpretar é parte do muito que ainda existe para relatar numa relação de trabalho, ao abordar com clareza a relação de trabalho diária o livro abre-nos a porta para o dia-a-dia do local de trabalho. A inteligente e real abordagem que faz da exploração de mão-de-obra barata para aumentar a margem de lucro das entidades patronais em detrimento da modernização e do desenvolvimento do processo produtivo é espelho da natureza das multinacionais, procura de mercado de mão-de-obra barata, institui fracas condições de trabalho, total desrespeito pela saúde de quem trabalha, trabalhadoras a serem vistas como simples objectos descartáveis, como nos é dado a conhecer no processo produtivo ritmos de trabalho, capitulo IV. Ao abordar vários sentimentos com o contributo na primeira pessoa é nos dado a conhecer a solidariedade e a camaradagem entre trabalhadoras, sentimento expresso por vários testemunhos e que mostram a dimensão real das operárias do vestuário e o contributo da Mulher no Mundo do Trabalho, mostrando o sentimento de que quem vende a força do seu trabalho, não a vende a qualquer preço e quer ver valorizado o trabalho que faz, o seu papel na sociedade, contribuindo assim para criar o mundo melhor.


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As muitas lutas relatadas desde o pagamento integral e pontual dos salários, às reivindicações por melhores salários, ao respeito pelos direitos e condições de trabalho e a defesa do seus postos de trabalho constituem um contributo inestimável das trabalhadoras da Indústria do Vestuário no Concelho Moita para o movimento operário e sindical, contributo este que não pode nem deve ser só uma peça histórica mas sim o exemplo de que até no período mais negro da ditadura, foi possível lutar e resistir tendo em vista alcançar melhores condições de vida e de trabalho. A todas as trabalhadoras que assumiram a frente da luta, Muito Obrigado por não se resignarem, Muito Obrigado pelo vosso exemplo, Muito Obrigado por mostrarem que em unidade, com organização, podemos tomar nas nossas mãos os destinos das nossas vidas, a vossa luta não foi em vão.

Luís Leitão Coordenador da União dos Sindicatos de Setúbal/CGTP-IN



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INTRODUÇÃO

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luta das mulheres não foi menor nem diferente da luta dos homens, apenas mais esquecida. A história mostra-nos, categoricamente, como o seu trabalho foi depreciado e segregada a sua participação na sociedade. Os estudos mais gerais sobre os movimentos operários e os conflitos laborais também não têm dedicado muito protagonismo às mulheres. Se podíamos eleger a raiz de tanto silêncio como um primeiro problema e procurar que factos contribuíram para a subalternização e discriminação da mulher, para a desvalorização do seu labor, colocar as protagonistas a falar e a testemunhar de suas vidas apresentava-se, à primeira vista, como um desafio. O tempo não era muito e havia que criar relações de confiança e proporcionar que se sentissem à vontade para falar das suas recordações, dos seus episódios de vida, das histórias de luta e de resistência, do trabalho infantil, lembrar a exploração nas fábricas, o seu encerramento e o fim da indústria de vestuário, os despedimentos, a camaradagem e a solidariedade. Queríamos conhecer quem eram as mulheres operárias na indústria de vestuário e quais as suas raízes, saber que ligações possuíam ao meio operário industrial e que lutas laborais travaram, compreender que valores defendiam e como geraram a sua própria consciência de classe, entre muitas outras questões. Felizmente, na realidade e no terreno, o que encontrámos foi uma ampla disponibilidade e generosidade de todas as mulheres que aderiram a este projeto, o que muito facilitou o nosso trabalho e por isso a nossa gratidão.



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AS PRIMEIRAS FÁBRICAS


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importância ou dimensão da atividade têxtil ou de fiação no termo de Alhos Vedros durante a Idade Média é um tema pendente, não se conhecendo referências sobre o assunto, mas também é certo não divisarmos que alguma vez tivesse merecido a atenção de olhares mais atentos e demorados. Também é verdade que, no período em questão, ainda nos encontrávamos bem longe da emergência da formação de um mercado nacional e, quanto muito, o alcance do horizonte económico seria Lisboa e termos limítrofes, um mercado naturalmente proporcionado e enquadrado pela navegação no Tejo. Contudo, cingindo-nos ao têxtil, não podemos deixar de mencionar que, nos terrenos de Alhos Vedros, se apanhava a grã do carrasco, em 15411. Trata-se de "... um corante de luxo, que confere o tom escarlate, está documentado no reino pelo menos desde o século XII. A sua presença na vasta lista de mercadorias taxada pela Lei da Almotaçaria de 1253 revela que era um produto de comercialização corrente no país. (...) segundo a mesma lei, os panos mais caros eram precisamente aqueles tingidos com esta substância"2. O Foral de Alhos Vedros, de 1514, nada nos diz sobre esta substância tintória, mas refere Joana Sequeira que "No regimento da Fábrica dos Panos, de 1573, a aplicação de grã era reservada apenas aos tecidos de melhor qualidade (...) Este colorante conheceu o seu apogeu na Europa

Regimento da Fabrica dos Panos de Portugal, ordenado no anno de 1690. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cotas: RES. 1518//18 V., RES. 3687 V. e http://purl.pt/14991. Capa, p. 1 e p. 48 do Regimento das Fabricas dos Pannos destes Reynos. O Regimento das Fabricas dos Pannos destes Reynos data de 1573, ordenado por D. Sebastião, para organizar o fabrico de panos no reino. Em 1690, D. Pedro II volta a promulgar o Regimento, acrescentando-lhe onze capítulos. A fiação era uma atividade feminina. No capítulo CI é determinado "Que as fiadeiras nam falsifiquem os fiados".

LOPES, João Baptista da Silva – Corografia ou Memoria Economica, Estadistica e Topografica do Reino do Algarve. Lisboa: Tipografia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1841, p. 166. Refere a existência de um regimento, a pedido do Mestre da Ordem de S. Thiago, para regular "... o modo de apanhar a grã do carrasco nos terrenos de Setubal, Palmella, Cezimbra, Coina, Barreiro, Alhos Vedros, Aldeia Gallega, Alcochete, Samora Correia, e Alcacer...". 2 SEQUEIRA, Joana – O Pano da Terra Produção têxtil em Portugal nos finais da Idade Média. Porto: Universidade do Porto, 2014, p. 112. 1


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Livro de Atas da Câmara de Alhos Vedros, 1766-1777, capa e fl. 153. Imagem: Arquivo Municipal da Moita (AMM). Em 1776, determinou o corregedor da comarca que os moradores com fazendas em Alhos Vedros e seu termo e que tivessem capacidade, que plantassem amoreiras brancas ou pretas. Mandou fazer rol das amoreiras existentes e das pessoas que criassem seda.

durante a Idade Média e era com ele que se tingiam os panos, de seda ou de lã, utilizados nas vestes da realeza (...) A grã é extraída de um tipo de insetos (kermes vermilio) que se aloja em arbustos conhecidos como carrasqueiros ou carrasqueiras..."3. Era um produto exportado e com grande procura por parte de mercadores estrangeiros4. De facto, também António Ventura, na sua tese de doutoramento, refere a existência de carrasqueiras, abundantes, nas matas da "outra banda", incluindo Alhos Vedros, que o rei D. Manuel I intenta proteger, proibindo o seu corte5. O concelho de Lavradio, que pertencera a Alhos Vedros, possuía mesmo no seu termo um lugar com o topónimo "Carrasqueira"6. Por esta altura (séculos XV e XVI), o vestuário era expressão de classe social. Enquanto a nobreza vestia sumptuosamente, com tecidos ricos, sedas, veludos, bordados a ouro ou a prata, decorados com motivos, e de acordo com pragmáticas, no caso do povo era "... o vestuário simples e pouco variado nas formas, fabricado por ele próprio, apenas tinha um significado utilitário"7 e refletia a sua condição de dependência8. Os centros manufatureiros importantes localizavam-se

Ibidem, p. 113. Ibidem, p. 114. 5 VENTURA, António – A "Banda d'Além e a cidade de Lisboa durante o Antigo Regime: uma perspectiva de história económica regional comparada. Doutoramento em História, especialidade: História Moderna. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2007, p. 99. O texto publicado por António Ventura é o seguinte: "(...) que vendo nós como he cousa neçesaria e proveitosa a bem de nossos regnos e a nosso serviço aver hy mujtos pinhaaes de que se possam fazer navios (...) determinamos e mandamos que em a villa dalmada cezimbra e couna alhos vedros alcouchete adea guallegua e a todos termos destes loguares e assy em todollos outros lugares de todo o ribatejo e todos seus termos daqui em diante toda e quallquer pessoa de quallquer condiçam e calidade que seia possa tirar e cortar de dentro de todos e quaaesquer pinhaes que nos dictos lugares e seus teermos ouver o mato a saber toyo billoto e todo outro mato (...) nam cortando pinho nem Rama delle nem sovaro nem lenha delle porque os pinheiros e os sovaros queremos que seiam guardados como sempre forom Nem isso mesmo nenhuas carrasqueiras (...)". 6 Ibidem, p. 372. 7 OLIVEIRA, Fernando – O Vestuário Português ao tempo da Expansão – Séculos XV e XVI. |s.l.|: Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para os Descobrimentos Portugueses, 1993, p. 40. 8 Ibidem. 3 4


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no Minho, Silves, Lisboa e Coimbra9. O norte e centro do reino produziam, essencialmente, linho, uma indústria caseira em que “… grande parte das tarefas finais estão entregues à mulher”10, deixando-se o encargo da comercialização aos homens, assinalando António Ventura a presença de mercadores de linho da Beira, em Alhos Vedros, em 1670, 1680 e 168111. A indústria do algodão só se desenvolverá a partir do século XVI, com a matéria-prima que chegará de Cabo Verde e do Brasil12. A produção de lã, embora dispersa por todo o reino, incidia particularmente entre a Beira Baixa e o Baixo Alentejo13. No âmbito do têxtil, esta margem do Tejo estaria sinalizada como lugar de matérias-primas, concretamente as destinadas à indústria da seda, tendo sido ordenado pelos oficiais da Câmara de Alhos Vedros, em 1678, que as pessoas da vila e seu termo plantassem pés de amoreira14. A questão regressa, passado um século, em 1776, na sequência de determinação do corregedor da comarca15. Alhos Vedros e Moita constituíam, assim, áreas de interesse no que se refere à extração ou colheita e comercialização de matérias-primas para a indústria têxtil.

Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente a qual se reparte em cinco livros. O primeyro he de todas suas cousas de devaçam. O segundo as comedias. O terceyro as tragicomedias. No quarto as farsas. No quinto às obras meudas. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: http//purl.pt/15106. Páginas 145, 205 e 237, da compilação das obras de Gil Vicente, por Andres Lobato, 1586. As figuras do teatro de Gil Vicente expõem a distinção no trajar na sociedade do século XVI.

Ibidem, p. 13. GARCIA, João Carlos – Os têxteis no Portugal dos Séculos XV e XVI. In Finisterra: Revista Portuguesa de Geografia, vol. 21, n.º 42. Lisboa: Centro de Estudos Geográficos, 1986, p. 331. 11 VENTURA, António, ibidem, p. 81. 12 Ibidem, p. 339. 13 Ibidem, p. 333. 14 VENTURA, António, ibidem, pp. 5-6. 15 Ibidem. Transcrevemos o texto publicado por António Ventura, na obra citada, e que merece toda a nossa atenção, dado o interesse para o trabalho em desenvolvimento. Determinava então o corregedor a feitura de "(...) um mapa de todas as fazendas dos moradores desta vila e seu termo que tivessem capacidade para nelas se plantarem estacas de amoreiras brancas ou pretas, cuja quantidade se lhe declarará no mesmo mapa, notificando-os para no termo de um mês as plantarem (sob) pena de dois mil réis de condenação a todos aqueles que faltarem a plantarem as mesmas estacas, e de se mandarem pôr à sua custa, cujo mapa se copiará no livro respectivo que há nesta Câmara, como também presente determinação em observância do determinado no dito livro pelo mesmo actual doutor corregedor, a folhas nove, e executando-se outrossim o mesmo parágrafo quarto do mesmo provimento a respeito de se tomar a rol o número de todas as amoreiras que estiverem no distrito desta vila e seu termo que se não acharem descritas no referido livro, descrevendo-se no mesmo o nome daquelas pessoas que nesta vila criarem seda, com declaração da sua quantidade em miada ou em casulo, para de tudo se dar conta na forma do mesmo parágrafo (...). ARQUIVO MUNICIPAL DA MOITA (AMM), Livro de Atas da Câmara de Alhos Vedros, 1766-1777, fls. 153v-154v. 9

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No final do século XVIII, existiam três fábricas no território que compreende o atual concelho da Moita: na Moita, uma fábrica de sola (curtumes); em Alhos Vedros, uma de estamparia; e no Rosário, outra de sola. Exigentes em consumo de água, foi junto ao rio que se instalaram. As plantas das vilas da Moita e de Alhos Vedros, levantadas por Maximiano Joze da Serra, Coronel do Real Corpo de Engenheiros, em 1805, dão-nos a localização exata das primeiras. Em relação à do Rosário, uma intervenção arqueológica de urgência, em 2005, junto à praia do Rosário, no local onde hoje se encontra um restaurante, colocou algumas estruturas a descoberto, cuja finalidade, segundo o arqueólogo António Gonzalez, poderia ser a de controlar a admissão e descarga de águas necessárias à indústria de curtumes, o que nos permite, pelo menos, poder equacionar como hipótese ter sido ali a localização da fábrica da sola de Leonardo Pinto (1790). Estamparia e sola inscreviam-se no ramo das indústrias com mais representatividade no reino, os têxteis e os curtumes. Quanto aos fatores de instalação das referidas fábricas nas margens do Tejo, em redor de Lisboa, não terá sido alheio o facto de ser nas grandes cidades, particularmente na capital do império, que a concorrência dos fabricos estrangeiros mais se fazia sentir e, como refere Borges de Macedo, "... são essas regiões que é necessário abastecer para afastar o consumo da produção estrangeira"16. Era em Lisboa e Porto, segundo a Relação das Fábricas de 1788, que se concentravam a maior parte das fábricas do reino. As vilas da Mappa demonstrativo do Estado das Fabricas existentes nesta Comarca de Setubal Ordenado pela Regia Provizão expedida da Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação, com data de 30 de Outubro de 1813. Imagem: Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas (BAHOP), Junta do Comércio, JC 12. Mapas e contas dos ministros territoriais acerca das fábricas existentes, bobine 83. O Mappa referencia a existência de fábricas em Setúbal (sola), Almada (sola), Moita (sola), Rosário (sola), Coina (xitas) e Azeitão (xitas).

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MACEDO, Jorge Borges de – A Situação Económica no Tempo de Pombal. 2.ª edição. Lisboa: Moraes, 1982, p. 181.


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Moita e de Alhos Vedros, e seus termos, contemplavam, neste período em que o reino intentava um novo impulso industrializador, como resposta à crise económica da segunda metade do século XVIII, algumas características que interessava considerar: existência de cais de pedra; considerável frota para transporte de pessoas e mercadorias; ligações regulares com Lisboa, que as beneficiam em termos de circulação e acesso à informação; possuem marinhas e fornos de cal, que importam à indústria de curtumes; implantação de inúmeras estruturas (moinhos) que aproveitam a energia hidráulica, principal força motriz, além da humana e da força animal; terrenos amplos e planos junto às margens, para estendedouros; acesso fácil à água, para admissões e escoamentos; inserem-se num território que constitui um mercado vasto e estruturado por relações mercantis seculares, capitalizado por Lisboa, que absorve as produções locais. A Moita tem, por esta altura (1798), 330 fogos, e Alhos Vedros 119 fogos17. O termo "fábricas" aqui empregue expressa significado idêntico ao adotado pela Junta do Comércio destes Reinos e seus Domínios (1755), depois Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação (1788), que possuía, entre outros âmbitos, a fiscalização da indústria do reino e cuja documentação constituiu a principal fonte sobre a história das fábricas de Alhos Vedros e Moita, entre o final do século XVIII e o princípio do século XIX. Mappa de todas as Fabricas que se achão estabelecidas no Districto de. Imagem: Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas (BAHOP), Junta do Comércio, JC 12. Mapas e contas dos ministros territoriais acerca das fábricas existentes, bobine 85. O Mappa data de 1823 e refere-se às fábricas identificadas pelo juiz de fora: Rosário (Fábrica de curtumes de couros); Mouta (Fábrica de curtumes de couros); Coina (Estamparia); Alhos Vedros (Estamparia).

ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR (AHM), Livro que contém as freguesias que há em Lisboa, no seu termo e nas diversas terras deste Reino com a individuação das comarcas e províncias, a que estas pertencem e do número de fogos de que cada uma daquelas se compõem, feito por ordem do Intendente-Geral da Polícia da Corte e Reino, Diogo Inácio de Pina Manique na sua secretaria no ano de 1798. Código de referência: PT/AHM/DIV/1/11/22/2.

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1.1 ADAFÁBRICA SOLA DA MOITA

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a Relação das Fábricas de 1788, consta a existência de duas fábricas na Moita, uma de ”Atanados, Sola e mais curtumes”18, licenciada em 19 de junho de 1786, e outra de “Marroquins”19, licenciada em 10 de julho de 1786, ambas propriedade de José Vicente Soares que atingiu o posto de Capitão do Real Corpo de Engenheiros. Tratam-se de manufaturas de curtimento de couros, para produção de sola (cabedais grossos) e de peles finas (cabra, bode) destinadas a aplicações mais delicadas. As duas fábricas encontrar-se-iam a laborar num mesmo estabelecimento, conhecido como Fábrica da Sola e localizado, conforme a Planta da Villa da Moita, levantada em 1805, por Maximiano Joze da Serra, do Real Corpo de Engenheiros, no esteiro, junto ao porto da Moita, sensivelmente na confluência das atuais artérias Travessa do Conde de Ferreira e Avenida Marginal. A sola ou couro é a pele curtida dos animais, matéria que tem conhecido múltiplas aplicações pelo homem, como agasalho, calçado, cintos, arreios, pergaminhos, entre outros. Terá sido uma das primeiras indústrias desenvolvidas pelo homem e, como tantas descobertas, o surgimento da curtimenta

Relação das fábricas em 1788. Imagem: Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas (BAHOP), JC 12 Mapas e contas dos ministros territoriais acerca das fábricas existentes. Capa, p. 3 e p. 16. da Relação das Fábricas. Constam no mapa as fábricas de Jozé Vicente Soares, de Atanados, Solas e mais curtumes (de 19 de junho de 1786), e Marroquins (de 10 de julho e 1786).

BIBLIOTECA E ARQUIVO HISTÓRICO OBRAS PÚBLICAS (BAHOP), Junta do Comércio, 12, Mapas e Contas dos Ministros Territoriais Acerca das Fábricas Existentes. 19 Ibidem. 18


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terá acontecido por acaso: "A primeira «fábrica» de curtimenta por processos vegetais foi, porventura, um charco ou lagoa onde apodreciam folhas, cascas, raízes, troncos de velhas árvores que libertavam, pela imersão, os taninos e ácido tânico que continham e estes realizavam, lentamente, uma autêntica curtimenta. Deste modo, o couro transformava-se em matéria imputrescível"20. O processo evoluiu, transformando os curtumes numa grande indústria, mas mantendo-se, durante milhares de anos, a utilização de produtos naturais como a casca de carvalho e outras substâncias, a cal e os excrementos de pombos, e água, muita água, para descabelar as peles e prepará-las para a curtimenta. As peles eram lavadas em água corrente, imersas em tanques com água, cal e lixo de pombos, novamente lavadas e mergulhadas em substâncias taninosas. As grandes necessidades de água por parte desta indústria levaram-na a localizar-se junto a ribeiras ou nos esteiros, facto que terá influenciado a instalação de fábricas da sola na Moita e no Rosário, junto ao rio e próximo de um grande mercado, Lisboa.

Registo Geral de Mercês de D. Maria I, liv. 24, f. 194. Imagem: PT/TT/RGM/E/001/114757. “Imagem cedida pelo ANTT”. Em 1789, D. Maria I concedeu a propriedade dos terrenos da fábrica da sola a José Vicente Soares.

D. Maria I, Rainha de Portugal. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: http//purl.pt/4205.

20 AMADO, António Peres Correia – A Indústria de Curtumes, Evolução e Aspectos Químicos. In Revista Portuguesa de Química, vol. I. Porto: Sociedade Portuguesa de Química, 1958, pp. 209-210.


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Ainda em relação ao aproveitamento da casca de carvalho no processo de curtimenta, ela era moída num engenho que aplicava uma roda de pedra dentada, rodando sobre um eixo e procedendo assim ao esmagamento da matéria. No local onde existiu a fábrica da sola da Moita, foi encontrada uma roda dentada de pedra que, segundo o seu antigo proprietário, João da Costa21, pertencia à dita fábrica. O complexo da fábrica da sola da Moita contemplava quinta, sapal adjacente, casas altas, oito moradas de casas térreas, adega, lagar, poço e nora. Por ser de grande utilidade à nação o estabelecimento da dita fábrica, D. Maria I concedeu a José Vicente Soares, em 1789, a propriedade dos terrenos, casas e quinta da mesma: "Eu a Rainha faço saber que tendo consideraçam ao bem que me tem servido José Vicente Soares no posto de ajudante de infantaria com exercício de engenheiro e haver estabelecido huma fabrica de sola na villa da Moita em utilidade da naçam e em grande adiantamento: Hey por bem em atençam ao referido fazer mercê da propriedade de cazas e quinta sita na sobredita villa, onde se acha estabelecida a dita fabrica de sola (…) que o sobredito José Vicente Soares fique tendo e possuindo a mesma propriedade de cazas e quinta como sua própria e com a natureza de bens livres e aludiaes e quando eu lhe houver de fazer remuneração de seus serviços haverá respeito a mercê que agora lhe faço.»22

NOTÍCIAS DA MOITA, edição de 1 de abril de 1996, p. 6. ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO (ANTT), Chancelaria de D. Maria I, liv. 24, fl. 194. In SEPULVEDA, Christovam Ayres de Magalhães - História Organica e Política do Exército Português: Provas, volume XVI. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929, pp. 314-315. 21 22


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Planta da villa da Moita/levantada no anno de 1805 por Maximiniano Jozé da Serra, Coronel do Real Corpo de Engenheiros; desenhada por Jozé António Mourão, 2º Tenente do mesmo Corpo debaixo das direcçõens do mesmo Coronel, em 1820. Imagem: Cota - Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar/Direção de Infraestruturas do Exército, 3106-2A-25-35. Nesta planta de vila da Moita, de 1820, podemos observar a localização da fábrica da sola, junto ao esteiro, e o desenvolvimento urbano ao longo da orla ribeirinha.


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Contrato de arrendamento da fábrica da sola da Moita, entre Francisco Manuel Calvet e José Vicente Soares, 1812. Imagem: Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas (BAHOP), JC 8 Processos de Licenciamento de fábricas e matrículas de servidores, bobine 18 (curtumes), p. 2634. A fábrica da sola da Moita não terá funcionado durante muito tempo. Possuía dívidas avultadas, acumuladas desde 1801, e sinais de ruína.

Curtidores raspando couros. Imagem: Biblioteca Municipal da Moita. Reservados. Ilustração Portugueza, n.º 350, de 4 de novembro de 1912, p. 604.

Estabelecido também com fazendas na Moita, José Vicente Soares foi premiado pela Academia das Ciências de Lisboa pela cultura da batata23, em 1797, com um prémio de 8$000 e uma medalha de prata “... por ter feito sementeira de batatas em terreno que arroteara de novo, e colhido dez moios”24. Numa descrição da vila da Moita no Jornal de Coimbra, de junho de 1812, é referido que a Moita “Tem só duas Fábricas, huma na Villa, outra no Têrmo, ambas de sóla. A da Villa he grande, boa, e bem situada, mas por motivos alheios d’este lugar, e particulares, se acha em decadência. A do Têrmo he muito mais pequena, e no mesmo estado que a outra com pequena diferença”25. Em 1811, a fábrica da sola da Moita encontrava-se sequestrada por avultadas dívidas contraídas pelos arrendatários, Francisco Manuel Calvet, Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo e Provedor dos Seguros da Cidade de Lisboa, que falecera26, e o irmão João Maria Calvet. Ao que tudo indica, pela documentação existente, as dificuldades financeiras já se arrastavam desde 1801, altura em que pela dívida acumulada, superior a dez contos, à Real Fazenda, pela Repartição da Mesa das Carnes, José Vicente Soares obtivera autorização régia para o seu pagamento em prestações anuais. Pelo Mappa demonstrativo do Estado das Fabricas existentes nesta Comarca de Setubal Ordenado pela Regia Provizão expedida da Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação27, de outubro de 1813, a fábrica de sola da Moita continuava arrendada a João Maria Calvet, mas no estado de danificada e inativa. Em 1814, as dívidas acumuladas eram já superiores ao valor da hipoteca da fábrica, apesar da superintendência do juiz de fora da Moita, desde 1801, que teria então por obrigação comunicar ao erário régio os balancetes da fábrica. Entretanto, em 1815, a fábrica de curtumes de José Vicente seria uma das melhores do país, pela sua situação local, construção, boa JORNAL DE COIMBRA, junho de 1812, n.º VI, p. 419. RIBEIRO, José Silvestre – Historia dos Estabelecimentos Scientificos Literarios e Artisticos de Portugal nos Sucessivos Reinados da Monarchia, tomo II. Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1872, p. 278. 25 JORNAL DE COIMBRA, ibidem, p. 417. 26 BAHOP, Junta do Comércio, 17, Processos de Licenciamento de Fábricas e Matrícula de Servidores. 27 BAHOP, Junta do Comércio, 12, Mapas e Contas dos Ministros Territoriais Acerca das Fábricas Existentes. 23

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economia e ordem para a sua laboração28, segundo o anúncio publicado na Gazeta de Lisboa. Contudo, no Mappa de todas as Fabricas que se achão estabelecidas no Districto da Mouta, vila anexos, produzido no mesmo ano, é mencionado que a mesma fábrica de sola da vila se encontra “totalmente arruinada”29. No Mappa de todas as Fabricas que se achão estabelecidas no Districto desta Villa da Mouta, de 1817, é citado que a referida fábrica se encontra sequestrada pela Fazenda Real30. Em 1821, a fábrica da sola da Moita é colocada em hasta pública e arrematada em leilão por Pedro de Sousa, negociante matriculado na cidade de Lisboa. Face ao requerimento de Pedro de Sousa, para obtenção de privilégios pela reativação da fábrica, o juiz de fora da Moita comunica ao Rei que “Não há duvida que aquela Fabrica não trabalha a muitos anos, e que se tem arruinado muito em todas as suas partes”. Apesar dos méritos da fábrica e das reparações por Pedro de Sousa, no Mappa de todas as Fabricas que se achão estabelecidas no Districto de Moita, de 1823, é referido ser Pedro de Sousa o proprietário da fábrica da sola, mas sem laboração31. Desconhece-se que tipo de funcionamento terá desenvolvido nos anos posteriores, surge apenas a informação que, em 1832, se encontrava novamente à venda: “Vende-se o edifício, pertenças, e logradouros da fabrica da sóla, sito no porto da Villa da Moita, pagamento a prazo, e mesmo ficando o seu produto na mão do comprador a juro da Lei”32. Gazeta de Lisboa, n.º 41 de 17 de fevereiro de 1832. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cotas: J.2510 M. e J. 4652 M. (encontra-se microfilmado). Páginas n.ºs 207 e 210 da Gazeta de Lisboa. A fábrica foi arrematada em leilão por Pedro de Sousa, em 1821. Em 1832, é colocado anúncio na Gazeta de Lisboa, para venda do edifício, pertenças e logradouros.

GAZETA DE LISBOA, n.º 303, 23 de dezembro de 1815. BAHOP, Junta do Comércio, 12, Mapas e Contas dos Ministros Territoriais Acerca das Fábricas Existentes. 30 BAHOP, ibidem. 31 BAHOP, ibidem. 32 GAZETA DE LISBOA, n.º 41, de 17 fevereiro de 1832, p. 210. 28 29


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1.2 ADAFÁBRICA SOLA DO ROSÁRIO

o então sítio do Rosário, existiu também uma fábrica de marroquins, da qual era proprietário, em 1790, Leonardo dos Santos Pinto, importante negociante da cidade de Lisboa, acionista da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, e que, em 1769, já negociava em marroquins33, além de manter interesses em outros negócios no Brasil. Também há notícia de que Leonardo Pinto possuía, na Quinta de Martim Afonso, em 1758, três fornos de cal, no qual se ocupavam pessoas de fora34. Por falecimento de Leonardo Pinto, a fábrica acabou herdada pelo genro, Francisco Carneiro Homem de Sotomayor, que solicitou à rainha direitos idênticos aos concedidos às outras fábricas35. Face ao pedido de Francisco Sotomayor, manda D. Maria I inquirir sobre "... o estado actual da Fabrica do Suplicante, e da perfeição das suas manufacturas", ao juiz de fora da Moita, que responde ser a dita fábrica a melhor de todas da jurisdição: "... nella ha boas agoas: a Fabrica he de pedra de cantaria: e por isso mesmo digna de continuar no exercicio das suas manufacturas"36. O juiz Solicitação de Francisco Carneiro Homem de Sotomayor à rainha D. Maria I, para obtenção de privilégios para a fábrica da sola do Rosário, 1790. D. Maria I ordena ao juiz de fora da Mouta para que informe sobre o estado da fábrica da sola do Rosário, 1790. Imagem: Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas (BAHOP), JC 8 Processos de Licenciamento de fábricas e matrículas de servidores, bobine 17 (curtumes), p. 1371 e p. 1372. Por falecimento de Leonardo Pinto, a fábrica da sola do Rosário foi herdada por Francisco Carneiro Homem de Sotomayor, genro do primeiro, que solicita à rainha privilégios e isenções idênticos aos das outras fábricas. Na sequência da solicitação, D. Maria I manda o juiz de fora da Moita informar sobre o estado da fábrica e seu merecimento.

ANTT, Feitos Findos, Diversos (documentos referentes ao Brasil), mç. 6, n.º 67. ANTT, Memórias Paroquiais, 1722/1832, “Dicionário geográfico de Portugal, tomo 25, M, N”, 1758/1758, 247, Moita, Setúbal 1758/1758, Cota: Memórias paroquiais, vol. 25, nº 247, p. 1841 a 1854. Código de referência PT/TT/MPRQ/ 25/247. O documento refere que nos três fornos da cal do Conde da Ribeira, nos três fornos da cal de Leonardo Pinto, e nas obras de Francisco Xavier Caro, trabalham 76 pessoas de fora. Os fornos da cal de Leonardo Pinto foram construídos posteriormente ao terramoto de 1755. 35 BAHOP, Junta do Comércio, 17, Processos de Licenciamento de Fábricas e Matrícula de Servidores. 36 BAHOP, ibidem. 33 34


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10º Cartório Notarial de Lisboa, Livro de notas 230, Cx. 42, fl. 91 e 91v. Imagem: “Imagem cedida pelo ANTT”. Contrato de arrendamento da fábrica da sola do Rosário a Jerónimo Marques, 1811. Em 1813, a fábrica laborava com um mestre, um oficial e três serventes, exportando para todas as partes do reino.

de fora, João Ferreira Cidades, terá ficado impressionado com a qualidade da obra, descrevendo na carta todo o processo de examinação das manufaturas que viu e lhe pareceram boas: "... e não me fiando em mim, as fiz ver por sujeito inteligente, e desinteressado, a quem igualmente parecerão boas: e depois informamdome de hum dos que na dita Fabrica tem trabalhado, e inquirindo-o sobre os differentes lotes dos marroquins me disse que os que eu via, e lhe mostrava não erão dos melhores, que ali se tem fabricado". Em conclusão, informa a rainha que merece "... esta Fabrica a protecção de V. Magestade"37. Francisco Carneiro Homem de Sotomayor, Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo, “fidalgo de antiga linhagem”, alcançou o posto de Coronel e de Governador Militar da Vila de Mafra, não se tendo ocupado muito da laboração da fábrica do Rosário, uma vez que levou a efeito sucessivos arrendamentos da mesma. Primeiro, a José Caetano Pereira Chaves, em 1793, tendo o mesmo obtido da rainha privilégio para colocar as “Reaes Armas sobre o pórtico” da fábrica, entre outros privilégios como: “Que a mesma fabrica, e todas as pessôas empregadas na sua laboração sejão isentas de toda a jurisdição civil e criminal, ficando imediatamente sobordinadas à Minha Real Junta do Comércio, e tendo por seu Juiz Privativo, o Juiz de Fora da Vila da Moyta, com apelação e agravo para Dezembargador conservador dos Privilegiados da mesma Real Junta e seus Adjuntos na Casa da Suplicação desta cidade”; “Que o Erector da dita fabrica, emquanto presistir no arrendamento e costeamento dela, os seus Administradores, caixeiros, e mais Pessôas que nela se ocuparem gozarão de aposentadoria passiva” e que não poderão ser tomados nem embargados “… os cavalos e cavalgaduras, que se empregarem no serviço da sobredita fabrica, excepto quando forem precisos para o Meu Real Serviço, porque neste caso cessará o Privilegio”38.

37 38

BAHOP, ibidem. BAHOP, ibidem.


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Tribunais e os oficiais judiciais não possuíam jurisdição sobre a fábrica e pessoas que nelas trabalhavam, uma vez que estas se encontravam sob a autoridade da Real Junta do Comércio. Em 1803, Francisco Carneiro Homem arrenda a fábrica a Jerónimo Marques, da cidade de Lisboa, por seis anos, pelo valor de duzentos mil reis anuais, livres da Décima39, criando com este fabricante uma relação duradoura, expressa na sucessiva prorrogação dos arrendamentos. Jerónimo Marques será mesmo constituído procurador por Francisco Carneiro Homem na escritura de arrendamento da sua fábrica de curtumes da Junqueira a Josefa Maria Travega40. Em 1813, segundo o Mappa demonstrativo do Estado das Fabricas existentes nesta Comarca de Setubal Ordenado pela Regia Provizão expedida da Real Junta do Commercio, Agricultura, Fabricas e Navegação, a fábrica do Rosário, arrendada a Jerónimo Marques, laborava com um

“Planta da fábrica de curtumes de Francisco José Marques, no sítio da Junqueira, freguesia de Santa Maria de Belém”. Imagem: PT/TT/MR/1/138. “Imagem cedida pelo ANTT” Esquema de uma fábrica de curtumes, de 1855, encontrando-se assinalados os tanques de curtume de casca, tanques de cal, o pátio de criação, armazéns de casca, armazém de fazendas curtidas e outros.

39 40

BAHOP, ibidem. BAHOP, ibidem.

Estruturas colocadas a descoberto, durante uma intervenção arqueológica junto à praia do Rosário (esplanada do Marítimo), em 2005. Imagem: António Gonzalez. Segundo António Gonzalez, a finalidade das estruturas poderá estar relacionada com o controlo da admissão e descarga de águas utilizadas na indústria de curtumes.


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mestre, um oficial e três serventes, e exportava “... para Lisboa e mais partes do Reino”, empregando como géneros “Couros verdes, cal, casca e lixo de pombos”. Produzia 800 couros, anualmente. Pelo Mappa de todas as Fabricas que se achão estabelecidas no Districto da Mouta, vila anexos, de 1815, esta fábrica estaria em expansão, uma vez que aumentou quer o número de trabalhadores, de cinco para sete, quer a produção, de 800 para 1200 couros41. Em 1817, a fábrica já integrava mais um trabalhador, aumentando a sua produção para 1400 couros, mas encontrava-se também ela, à semelhança da fábrica da Moita, sequestrada pela Fazenda Real. Em 1818, segundo o juiz de fora, apesar da redução de trabalhadores (menos um), a produção de couros manteve-se ou até mesmo aumentou (1400 a 1500 couros)42. Na sequência de novo arrendamento, a necessidade de renovação dos privilégios impunha a respetiva petição ao rei e a consequente vistoria pelo juiz de fora sobre o estado da fábrica e o seu merecimento. Em 1825, face à súplica de Jerónimo Marques, o juiz de fora informa o desembargador procurador fiscal que “... a referida Fabrica se acha em atual exercício laborando com aqueles operários, de que a sua capacidade hepocivel, em vista do que me parece estar o recorrente nas mesmas circunstancias, em que se achava quando obteve a primeira Provisão dos Privilegios, que se concedem a taes Fabricantes”43. Propõe a prorrogação dos Privilégios em causa. O arrendamento é prorrogado até 1827, pelos mesmos duzentos mil reis, que incluem o pagamento da décima do senhorio, no valor de dezoito mil reis. Em 1826, a fábrica da sola do Rosário pagava 9$000 pela repartição do lançamento do cabeção das sisas44, o segundo valor mais elevado do registo.

BAHOP, Junta do Comércio, 12, Mapas e Contas dos Ministros Territoriais Acerca das Fábricas Existentes. BAHOP ibidem. 43 BAHOP, Junta do Comércio, 17, Processos de Licenciamento de Fábricas e Matrícula de Servidores. 44 ARQUIVO particular, Traslado do Lançamento do Cabeção das Sisas da Vila da Moita no anno de 1826. 41 42


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1.3 ADEFÁBRICA ESTAMPARIA DE ALHOS VEDROS

m finais do século XVIII, a indústria de estamparia era uma das mais importantes do país, situação que se manteria até finais do século XIX45. Nas proximidades de Alhos Vedros, existiam três fábricas que estampavam tecidos de algodão: a Fábrica de Tecidos e Estamparia de Vila Nogueira de Azeitão, com alvará de 1775, de Magalhães e Larcher; a fábrica de xitas da vila de Coina, de Christiano Marolf, que terá funcionado entre 1781 e 1814; e a fábrica de estamparia de João Henrique Hanewinkel, também em Coina, que terá trabalhado entre 1783 e 178946. A fábrica de estamparia de Alhos Vedros, também referenciada como fábrica de chitas ou de xitas, é de 1793, altura em que a rainha D. Maria I concedeu a Dohrman de Garon47 "... erector

Arte de fazer chitas: e de compor as mais bellas cores, boas tintas para esta manufactura, de pintar os pannos de seda, e em miniatura…, Por Mr. de Lormois. Lisboa: Impressão Regia, 1804. Imagem: Biblioteca Municipal de Santarém. Fundo Reservados, n.º registo 68986, cota A 243-BM. Em finais do século XVIII a estamparia era uma das indústrias mais importantes do país. A tradução do livro de Mr. de Lormois do francês (1780) para o português (1804), expressa a relevância crescente da indústria de estamparia.

Ministério do Reino, Colecção de plantas, mapas e outros documentos iconográficos, doc. 167. Imagem: PT/TT/MR/1/167. “Imagem cedida pelo ANTT” Fabrica de Estamparia de chitas, pertencente a António Pinto da Silva, no sitio da Ponte Nova, freguesia de Santa Isabel, entramuros, Concº de Belem pela Freg.ª de S. Pedro em Alcant.ª. A fábrica de Alcântara situa-se junto a um rio (rio de Alcântara), como a fábrica de chitas de Alhos Vedros (rio Tejo), e possui tanques, caldeiras, depósito de águas, estendal, tinturaria, dornas, estamparia.

45 PEDREIRA, Jorge Miguel - Indústria e negócio: a estamparia da região de Lisboa, 1780-1880. In Análise Social, vol. XXVI, n.º 112-113. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1991, p. 537. 46 FERREIRA, Maria Augusta L. P. Trindade (comissária.) - Lenços e Colchas de Chita de Alcobaça. |s. l.|: |s. n.|, 2001, p. 36. 47 Trata-se de um negociante estrangeiro abastado, natural dos Países Baixos. Cf. CUNHA, Carlos Guimarães da – Negociantes, Mercadores e Traficantes no Final da Monarquia Absoluta, dos Anos Finais do Século XVIII até ao Início da Revolução Liberal. Lisboa: Colibri, 2014, p. 99.


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Dictionnaire des arts et manufactures et de agriculture : description des procédés de l'industrie française et étrangére / par M. Ch. Laboulaye... [et al.], 2.º, vol. (1877), p. 34 e p. 44. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: S.A. 62358 V. Tábua de impressão de estamparia e máquina de impressão a diversas cores.

de huma Fabrica de Tecidos de Algodão" e inventor de uma "... Machina de estampar, com perfeição e delicadeza, toda a qualidade de Panos e Papel, totalmente nova, e desconhecida, não só nestes, mas em outros Reinos" alvará para “... collocar, em qualquer margem do Tejo, a sua invenção"48. Em sociedade com Nicolau Etur e João Michelin, também estrangeiros, estabeleceu Dohrman de Garon a fábrica na Quinta de S. Pedro, Alhos Vedros, tomada de arrendamento por seis anos49. Situava-se a fábrica, como assinala a Planta de Alhos Vedros, por Maximiano Joze da Serra, Coronel do Real Corpo de Engenheiros, levantada em 1805, junto ao esteiro. Os tecidos estampados ou chitas foram trazidos da Índia pelos portugueses que os difundiram na Europa, transformando a Lisboa do século XVII no principal porto de comércio50 de algodão estampado. Os tecidos indianos estampados fascinaram os europeus, pelas cores vivas, pelos padrões e motivos, conferindo prestígio a quem os usava, tanto como vestuário como elemento decorativo. Enquanto os portugueses se ficaram pela comercialização da mercadoria, os ingleses, holandeses e franceses interessaram-se pela sua produção, resultando da parceria entre um inglês e um holandês a primeira manufatura de impressão, em 169051. Em Portugal, a primeira fábrica de estamparia instalar-se-ia em Azeitão, em 1775. Segundo Jorge Custódio, no século XVIII, não seria muito difícil montar uma oficina de estampagem, dada a

BAHOP, Junta do Comércio, 17, Processos de Licenciamento de Fábricas e Matrículas de Servidores. BAHOP, ibidem. 50 FERREIRA, Maria Augusta L. P. Trindade, ibidem, p. 9. 51 SAMPAIO, Jorge Pereira de, (coord.) - Exposição Chitas de Alcobaça. |s. l.|: IGESPAR, IP/Mosteiro de Alcobaça, 2011, p. 15. 48 49


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simplicidade da estrutura técnica52. A banca de estampar os algodões era a principal unidade técnica: "Em cada banca trabalhavam os artistas da estamparia: o impressor e o pintor da cor coadjuvados por aprendizes. A montante encontravam-se o oficial debuxador, o carpinteiro, o abridor de cunhos, o preparador de tintas e dos mordentes, o auxiliar de lavagem. A completar a actividade da branquearia, a secagem dos panos em estendedouros ao ar livre, para que os panos fossem expostos ao Sol. A jusante alguns acabamentos, depois da calandra e da prensa"53. Necessitadas de grandes quantidades de água, as estamparias localizavam-se junto a linhas de água54 ou nas margens de rios que disponibilizassem também grandes áreas para estendedouros dos panos, para branqueamento dos algodões, condições que a fábrica de chitas, instalada na Quinta de S. Pedro, Alhos Vedros, satisfazia, além da proximidade a um grande centro consumidor, Lisboa. À revelia dos sócios, Garon obteve privilégio para a fábrica por um período de dez anos. Contudo, em 1796, já se encontra o mesmo fugido, deixando casa e bens em administração, mandando então o juiz administrador retirar toda a fazenda da fábrica e lançar travessas nas portas. A tecnologia na indústria de estamparia estaria em contínua evolução, uma vez que Nicolau Etur, um dos sócios de Garon, e co-inventor do engenho colocado em Alhos Vedros, solicitava à rainha D. Maria I, em 1798, privilégios para um novo invento de sua autoria "... mais perfeito e fácil do que aquelle havia

Alvará concedido por D. Maria I a Dohrman de Garon para instalar uma máquina de estampar em qualquer margem do Tejo, 1793. Imagem: Biblioteca e Arquivo Histórico Obras Públicas (BAHOP), JC 8 Processos de Licenciamento de fábricas e matrículas de servidores, (estamparia). Nome do fabricante: Nicolau Carlos Benjamim Etur, pp. 4938-4940. Dohrman de Garon instalou com os sócios, Nicolau Etur e João Michelin, a fábrica de estamparia na Quinta de S. Pedro, Alhos Vedros.

52 CUSTÓDIO, Jorge – Notas históricas acerca da primitiva indústria de tecidos de Alcobaça e das estamparias portuguesas no antigo regime |1775-1834|. In FERREIRA, Maria Augusta L. P. Trindade (comissária.) – Lenços e Colchas de Chita de Alcobaça. |s. l.|: |s. n.|, 2001, p. 30. 53 Ibidem, pp. 30-31. 54 Ibidem, p. 40.


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Livro de Termo de Juramento que assignou Jozé Cardozo de Magalhaes Mestre e Dono da Fábrica de Estamparia Cita na quinta de São Pedro termo desta villa de Alhos Vedros, das fazendas que remete para a cidade de Lisboa. 1804. Imagem: Arquivo Municipal da Moita. Capa do Livro de Juramento, com sua estampagem. A fábrica de estamparia de Alhos Vedros trabalhava sobre papel e tecidos. O Livro de Juramento contém a descrição dos carregamentos de chitas enviados para a cidade de Lisboa, entre 3 de abril de 1804 e 1 de novembro do mesmo ano. A expedição era acompanhada pelo escrivão e pelo juiz de fora, superintendente da décima e novos impostos das vilas da Moita e de Alhos Vedros.

colocado na sobredita Fabrica da Vila de Alhos Vedros", a instalar numa fábrica de estamparia que então possuía em Sacavém55. Em maio56, julho57 e dezembro58 de 1798, a fábrica de Alhos Vedros é colocada em arrematação, sendo adquirida com seus privilégios em 1799, por Joaquim Chaves, Germano Ferreira e Bernardo Costa59. Em 1804, a fábrica de estamparia de Alhos Vedros encontra-se já em posse de José Cardoso de Magalhães, conhecido negociante de vinhos em Londres, que estabelecera em sociedade com Estêvão Larcher, mestre tintureiro que trabalhara na Real Fábrica de Lanifícios de Portalegre, a Real Fábrica de Tecidos e Estamparia de Azeitão, em 177560. Em Alhos Vedros, José Magalhães é dono e mestre da fábrica61. Pelo Livro de Termos de Juramento de 180462, sabemos que entre 3 de abril de 1804 e 1 de novembro do mesmo ano, a fábrica de estamparia de Alhos Vedros despachou para a cidade de Lisboa, ao cuidado de Freitas, Cardoso e Companhia, 22 cargas de chitas e de chitas falsas, totalizando 5032 peças de fazenda, ao preço respetivo de 0$120 e 0$080 a BAHOP, ibidem. No capítulo “arrematações”, do Correio Mercantil de 1798, se refere que“... nas casas aonde residio o ausente Jorge Dohrman de Garon, na rua da Horta Seca, se há de proceder a leilão para efeito de se arrematar por expressa ordem de S. M. a Fabrica de Estamparia, que o mesmo ausente deixou estabelecida em Alhos Vedros, com todas as suas pertenças, entre as quaes se compreende huma Máquina de nova invenção, e o Privilegio exclusivo para se usar della por mais sinco anos e meio, que ainda faltão para se completar o tempo por que fôra concedida. A Relação exacta de todo este trem, com as suas competentes avaliações, se poderá ver todos os dias nas referidas casas”. In CORREIO MERCANTIL E ECONOMICO DE PORTUGAL, n.º 21, 22 de maio de 1798, p. 168. 57 Em julho do mesmo ano, volta a sair um anúncio, na secção “Avisos” da Gazeta de Lisboa, relativa à arrematação dos bens de Jorge Dohrman de Garon, incluindo o leilão de “…algumas fazendas de algodão e seda, e chitas estampadas em diversas Fabricas; e bem assim duas Fabricas, huma de Tecidos sita na Appelação, e outra de Estamparia, com sua Máquina de nova invenção, estabelecida em Alhos Vedros…”. In GAZETA DE LISBOA, n.º 27, 3 de julho de 1798. 58 GAZETA DE LISBOA, Segundo Supplemento, 8 de dezembro de 1798. 59 BAHOP, ibidem. 60 PEDREIRA, Jorge Miguel, 1991, p. 541. 61 AMM, Livro de Termo de Juramento de José Cardoso Magalhães mestre director e dono da fábrica de estamparia sita na Quinta de S. Pedro, no termo da vila de Alhos Vedros, das fazendas que remete para a cidade de Lisboa, 1804. 62 Ibidem. 55 56


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Planta de Alhos Vedros/levantada por Maximiniano Jozé da Serra, Coronel do Real Corpo de Engenheiros, no anno de 1805; desenhada por Jozé António Morão, 2º Tenente do mesmo Corpo debaixo das direcçõens do mesmo Coronel, em 1820. Imagem: Cota - Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar/Direção de Infraestruturas do Exército, 3105-2A-25-35. Nesta planta de Alhos Vedros, de 1820, podemos observar a localização da fábrica de chitas da Quinta de São Pedro, junto ao rio.


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unidade. O volume do negócio ascendeu a 7.800$970 e deixou nos cofres do reino 234$028 de impostos (3%). Na sequência das pilhagens e destruição do património pelas invasões francesas, a Real Junta do Comércio pretendeu conhecer o estado em que ficaram as fábricas do reino após a derrota do inimigo, produzindo, em 1814, o Mapa das Fábricas Estabelecidas na Cidade de Lisboa e nas Comarcas do Reino, Seus Proprietários, Estado Actual, Consumo e Exportação das Suas Manufacturas, que menciona ser a fábrica de estamparia de Alhos Vedros propriedade de Freitas, Cardoso, e Companhia63. No Mappa de todas as Fabricas que se achão estabelecidas no Districto de Moita, de 1823, da jurisdição do juiz de fora Francisco Ribeiro de Figueiredo, a fábrica de estamparia de Alhos Vedros é referida tendo como proprietário José Cardoso e encontra-se danificada64. Não foi possível historiar com mais desenvolvimento os factos e acontecimentos alusivos às fábricas da sola da Moita e do Rosário e à fábrica de estamparia de Alhos Vedros. Desconhecemos, pela ausência de registos, os processos técnicos envolvidos nos fabricos que, porventura, não deveriam diferir muito dos utilizados noutras fábricas, no mesmo período. Não foi possível identificar os operários, apenas os proprietários, nem perceber a ordem de grandeza ou a importância das fábricas na economia da época. Também não sabemos motivos ou datas do encerramento, entre outras questões a requerer uma pesquisa mais aprofundada. Mas foi possível apreender que, no final do século XVIII, na área que compreende o atual concelho da Moita, esta margem ribeirinha despertou o interesse de negociantes e investidores que aqui instalaram as suas manufaturas. Contudo, a Guerra Peninsular, no princípio do século XIX, com a consequente instabilidade, o saque e a devastação do património pelos invasores franceses, a desorganização económica, mas também o ciclo de lutas internas

Padrões de colchas de chitas encarnadas. Imagem: Coleção Pereira de Sampaio, Alcobaça. Fotografia Pedro Coelho.

63 NEVES, José Acúrsio das – Obras Completas de José Acúrcio das Neves, vol. 3: «Variedades sobre Objectos Relativos às Artes, Comércio e Manufacturas, Consideradas Segundo os Princípios da Economia Politica», tomos I e II. Porto: Edições Afrontamento, 1987, p. 267. 64 BAHOP, Junta do Comércio, 12, Mapas e Contas dos Ministros Territoriais Acerca das Fábricas Existentes.


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Roda de pedra dentada Imagem: António Gonzalez. A roda de pedra dentada foi encontrada no local onde se localizava a antiga fábrica da sola da Moita.

que sobrevieram entre as fações liberais e absolutistas, foram adiando a necessária estabilidade à concretização de grandes projetos de industrialização. Este primeiro impulso de incremento industrial acabaria por perder efeito e o concelho, particularmente a sua sede, consolidaria a sua vocação agrícola, de terra de proprietários e lavradores, de trabalhadores rurais, de “Terra da batata e do repolho”65, imagem que se prolongaria até à segunda metade do século XX, período durante o qual (1946 a 1954) a Moita foi o principal fornecedor de produtos hortícolas da margem sul a Lisboa66. Na Moita, a fábrica de cortiça Socorquex só entraria a laborar em pleno em 194867 e a E. S. Brito e Irmãos LDA., posteriormente. Será em Alhos Vedros que a industrialização do concelho se afirmará, nitidamente, primeiro com a instalação da indústria corticeira, no princípio do século XX, e depois com a instalação da indústria de confeções de vestuário, já na segunda metade do mesmo século. Das velhas fábricas da sola (curtumes), da Moita e do Rosário, e de estamparia, que laboraram entre finais do século XVIII e primeiro quartel do século XIX, não ficou muita memória, talvez uma roda em pedra, dentada, enigmática, a aguardar uma análise mais pormenorizada que permita esclarecer o uso a que foi sujeita, um livro de termos de juramento e algum vestígio que possa um dia surgir na sequência de alguma escavação. COSTA, João Rodrigues da – Intercâmbio Luso-Astur Histórias da História. Moita: João Rodrigues da Costa, 1998, p. 355. 66 Informação publicada nos Anais da Câmara Municipal de Lisboa, no capítulo da Direcção dos Serviços de Abastecimento, Mapas Estatísticos, disponível on-line pela Hemeroteca Municipal de Lisboa. 67 SILVA, Eduarda, ABREU, Ilda, VICTOR, Isabel, GONÇALVES, Luís Jorge – A Indústria Corticeira e o Concelho da Moita, Projecto de Musealização da Fábrica Socorquex. Moita: Câmara Municipal da Moita, p. 21. 65



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PROLETARIZAÇÃO E INDUSTRIALIZAÇÃO


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Moita integra uma zona de implantação operária, a cintura industrial de Lisboa, a sul, que conheceu durante o século XX um afluxo migratório notável, apenas superado pelos concelhos do distrito de Lisboa, na margem norte do Tejo. Em vários períodos do século XX o distrito de Setúbal foi a região que registou as taxas de crescimento demográfico mais elevadas do país: 1940-50 (+1,89%); 1950-60 (+1,48%) e 1970-80 (+3,38%)1. Em 1930, quando figura pela primeira vez nos censos como distrito administrativo – criado em 1926 – ocupa o 14º lugar entre os 18 distritos continentais, no que se refere ao recenseamento de população. Em 1970, já ocupa o 5º lugar, em 1981, o 4º, e em 2011, o 3º. No distrito de Setúbal, em 1941-50, a atração da Moita (+ 5636), apenas foi superada por Almada (+12286) e Montijo (+6108), e em 1951-60, com uma atração de +7723, apenas ultrapassada por Almada (+21427)2. Posteriormente, associado a outro fenómeno migratório (chegada de população das ex-colónias), entre 1973 e 1981 a Moita registou o segundo saldo migratório mais elevado (19,47%), só superado pelo Seixal (31,85%). Na base das migrações, a repulsa pelos campos de trabalho, nas zonas rurais, e a atração pelos empregos gerados na indústria, junto às grandes cidades, que adensaram a concentração operária nas regiões de Setúbal e Lisboa: “A região compreendida pela cidade de Lisboa e as suas cinturas industriais, a norte e a sul do Tejo, respectivamente até Vila Franca de Xira e Setúbal. É a concentração mais «puramente» operária, no sentido em que é aquela onde o processo de desenvolvimento do capitalismo industrial operou uma mais extensa e radical separação dos produtores assalariados da indústria dos seus instrumentos de produção, isto é, da terra, da pesca ou de actividades complementares. Ou seja, é a zona onde o operário vive sobretudo da venda da sua força de trabalho, onde a relação assalariada surge com maior nitidez, onde a conflitualidade social tende a ser mais exacerbada e a propensão para a acção reivindicativa, a organização colectiva e a politização do operariado é mais afirmada.”3 A dissociação entre o trabalhador e os meios de produção, a sua integração no sistema económico como força de trabalho, assalariada, começou, no entanto, a desenhar-se e a acentuar-se antes do surto industrial da segunda metade do século XIX. Foi nos campos, nas explorações agrícolas, que o modo de produção capitalista

NAZARETH, J. Manuel – A demografia portuguesa do século XX: principais linhas de evolução e transformação. In Análise Social, vol. XXI, n.º 87-88-89. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1985, p. 976. 2 ALARCÃO, Alberto de – Êxodo rural e atracção urbana no Continente. In Análise Social, vol. II, n.º 7-8. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, Gabinete de Investigações Sociais, 1964, p. 548. 3 ROSAS, Fernando – O Estado Novo (1926-1974). In MATTOSO, José (direção) – História de Portugal, vol. VII. |s.l.|: Círculo de Leitores, 1994, p. 91. 1


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Plenário de trabalhadoras na Gefa, a seguir ao 25 de Abril. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. A Moita integra uma zona de implantação operária, absorvendo as indústrias de confeções de vestuário grande parte da mão-de-obra feminina.

primeiro se manifestou, com a exploração de multidões de trabalhadores rurais sem terras, vendendo a sua força de trabalho a proprietários e agricultores. Nos campos do Sul ou nas zonas hortícolas envolventes à cidade de Lisboa, compreendendo a Moita, Montijo e Alcochete, os salários e as formas de contratação não proporcionavam mais que miséria e escravidão. Outrora zona de baixa densidade populacional, a margem sul conheceu ao longo do século XVIII um extraordinário crescimento demográfico, que se replicou nos séculos seguintes, com diversas fases de desenvolvimento e períodos diferentes de afluxos migratórios. Algumas dessas migrações e fases de desenvolvimento tecnológico gerarão novas linhas de força na estruturação das economias locais. Assim aconteceu com a Moita e Alhos Vedros, com as migrações das gentes das Beiras, no final do século XVIII, que trouxeram a novidade da cultura da batata, arrastando "oficialmente" a identidade agrícola da Moita, até aos anos 60 do século XX. Novo fenómeno migratório sucedeu em Alhos Vedros quando a grande concentração da indústria corticeira, impulsionada por empresários algarvios, firmou a identidade industrial da terra, no início do século XX. Entre 1940 e 1970, o concelho conhece um grande afluxo migratório, gerado pela oferta de emprego na região de Lisboa, que fará emergir uma nova zona de residência operária: a Baixa da Banheira, em poucos anos um dos principais aglomerados populacionais do país, que exercerá uma forte atração nas populações do Alentejo interior4. Numa carta topográfica do Estado CRUZ, Maria Alfreda – Margem Sul do Estuário do Tejo Factores e Formas de Organização do Espaço. Montijo: Maria Alfreda Cruz, 1973, p. 204.

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Maior do Exército, a Carta dos Arredores de Lisboa, retificada em 1916, a zona onde evoluiu a Baixa da Banheira encontra-se assinalada como “Alto do Lavradio”, sem edificações. Noutra carta militar dos Serviços Cartográficos do Exército, de 1941, a denominação adotada é “Cabeço de Alhos Vedros”, já com uma mancha urbana encostada aos limites concelhios da Moita e Barreiro, na zona do Lavradio, e em 1961 já figura como Baixa da Banheira. No final de 1971, a poucos anos de Abril, a Moita possuía, segundo o inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE) de 31 de dezembro, 19 estabelecimentos industriais com 20 ou mais pessoas5. Era menos de metade dos valores dos concelhos mais industrializados da margem sul: Almada (65), Barreiro (55), Montijo (52) e Seixal (47). Próximo aos valores da Moita, só Alcochete (12)6. No que se refere à dimensão das indústrias, o resultado para o número médio de empregados por estabelecimento das indústrias inquiridas, era o seguinte: Moita, 105 empregados; Alcochete, 148; Almada, 246; Barreiro, 164; Montijo, 86; Seixal, 1497. Quanto ao número de operários a laborar nas indústrias, assim ditava o apuramento: Moita, 1833 operários; Alcochete, 1413; Almada, 14271; Barreiro, 8174; Montijo, 4125; Seixal, 61788. Os valores apresentados para a Moita podem apenas, num ou noutro

Extrato da Carta dos Arredores de Lisboa, do Estado Maior do Exército (1916). Imagem: Carta Militar do Centro de Informação Geoespacial do Exército. Centro de Informação Geoespacial do Exército, cota B1HB-G3/20, |Alhos Vedros, Moita|/Estado-Maior do Exército; rectificada em 1916 por Arnaldo de Mello; Vª Pereira, des.. |Ed. 2|. |Lisboa| E. M. E., 1916. Ao longo do caminho entre o Lavradio e Alhos Vedros, em 1916, não se contam mais que três ou quatro habitações. Pinheiros, sobreiros, arvoredo diverso e salinas dominam a paisagem.

BIBLIOTECA E ARQUIVO HISTÓRICO DA SECRETARIA GERAL DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA (BAHSGME), cota MO16/406. MARTINS, António (presid. da comissão) – Localização Industrial e Emprego na Região – Plano de Lisboa 1971. |s.n.|: Ministério da Administração Interna, Comissão de Planeamento da Região de Lisboa, 1974, p. 24. 6 Ibidem. 7 Ibidem. 8 Ibidem, p. 100. 5


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caso, assemelhar-se comparativamente aos dos concelhos de Alcochete ou do Montijo, também eles com um longo historial de predominância da atividade agrícola. A diversidade da atividade industrial a nível local também não é assinalável, predominando as cortiças e as confeções de vestuário. Contudo, se desviarmos o nosso olhar da informação sobre a localização ou dimensão das indústrias e atendermos ao local de trabalho da população ativa do concelho da Moita, em 1971, podemos verificar que mais de metade trabalha fora da zona de domicílio (51%). A percentagem de população da Moita que trabalha noutro concelho é superior à de qualquer um dos outros concelhos da margem sul: Alcochete (26%), Almada (45%), Barreiro (36%), Montijo (7%) e Seixal (27%). No caso da Moita, a população ativa a trabalhar noutros concelhos é estimada em 7165 pessoas. Para os outros concelhos, os valores são: Alcochete, 1130; Almada, 19210; Barreiro, 7845; Montijo, 1495; Seixal, 4415. Se a necessidade de migrações diárias entre o local de residência e o posto de trabalho, os movimentos pendulares, denunciavam a debilidade local ao nível da oferta de emprego, a ausência de fábricas, de estruturas industriais, não é menos verdade que esse fenómeno nunca obstou à realização coletiva da classe operária, quer nos locais de emprego, através de ações de luta nas empresas e contra o regime do Estado Novo, quer nos locais de residência, edificando casas de cultura, sedes de resistência e de emancipação social. A história de dependência externa em relação a outros concelhos, no que se refere aos postos de trabalho, não conta a história de insubmissão e autonomia que os trabalhadores conseguiram construir nos locais de residência, que se transformarão, por via da iniciativa e da solidariedade operária, com a edificação de associações, coletividades e a criação de cooperativas de consumo operárias, em locais de afirmação do operariado e de reprodução identitária, com uma ação política muito vincada. O 25 de Abril e todo o desenvolvimento local que sobreveio com a instituição do Poder Local Democrático, na cultura, na educação, no desporto, no saneamento básico, entre outros, é reflexo dessa consciência social operária, com uma nova ideia de serviço público, ao serviço do povo, por uma sociedade livre e justa, democrática, participativa e progressista9. Em Alhos Vedros, na segunda metade dos anos 60 do século XX, onde se encontrava a indústria corticeira começou a florescer a indústria de confeções de vestuário, que se desenvolveu extraordinariamente. Por exemplo, no final dos anos 80 do século XX, o concelho da Moita criará, aproximadamente, metade dos empregos na indústria do vestuário instalada no distrito de Setúbal, e entre 1989 e 1990, investir-se-ão na Moita mais de 2 milhões de contos do Investimento SIRB (Sistema de Incentivos de Base Regional), mais de metade de tudo o que foi aplicado na região10, no mesmo período.

Vd. MENDES, Vitor – Serviço Público em Liberdade. Moita: Câmara Municipal da Moita, 2014. ARQUIVO DA DIVISÃO DE ADMINISTRAÇÃO URBANÍSTICA – CÂMARA MUNICIPAL DA MOITA (ADAU-CMM). COMISSÃO de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo – Estudo de Localização Industrial na Península de Setúbal, Relatório de Análise, Capítulo 3, Complementaridade do Tecido Industrial Serviços Ligados. |s.n.|: 1991. 9

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Extrato de Carta Militar de Portugal (1942). Imagem: Carta Militar do Centro de Informação Geoespacial do Exército. Centro de Informação Geoespacial do Exército, cota B2VA-PT25-443/2. Moita. Serviços Cartográficos do Exército; lev. Pelo Instituto Geográfico e Cadastral: actual. pelo Cap. Loureiro; des. Viegas Junior. |Ed. 2|. |Lisboa|: S.C.E., 1942. Começa a formar-se ao longo da estrada que liga Alhos Vedros e Lavradio, junto à demarcação territorial entre os concelhos da Moita e do Barreiro, um novo núcleo populacional, de génese operária.

O crescimento demográfico teve origem em motivações de ordem económica, de homens e mulheres que aqui procuraram trabalho e melhores condições de vida para si e para os seus, atraídos pela agricultura e pela indústria. Independentemente do local de origem, da profissão ou atividade, possuíam em comum um historial de dificuldades, de desenraizamento, de exploração. Souberam também construir e afirmar, pelo espírito de unidade e de solidariedade, com criatividade, nos locais de trabalho e áreas de residência, a matriz identitária que caracteriza esta região de acolhimento de gente de trabalho.

Extrato de Carta Militar de Portugal (1961). Imagem: Carta Militar do Centro de Informação Geoespacial do Exército. Centro de Informação Geoespacial do Exército, cota B2VA-PT-25-443/3. Moita. Serviços Cartográficos do Exército. Ed. 3. |Lisboa|: S.C.E, 1961. No final dos anos cinquenta do século XX, o lugar da Baixa da Banheira já apresenta um núcleo urbano mais denso que o da sede de freguesia, Alhos Vedros.


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2.1 AE AGRICULTURA O OPERARIADO RURAL

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té finais do século XVIII, os concelhos de Alhos Vedros e Moita estruturavam a sua economia na produção de sal e de vinho, nas lenhas, que faziam transportar para Lisboa, estabelecendo uma relação de dependência económica com a capital. Durante o domínio espanhol (1580-1640) a Moita começa a assomar como um importante local de embarque e desembarque de pessoas que transitam entre Madrid e Lisboa (estrada dos espanhóis), fomentando o desenvolvimento da atividade de tráfego fluvial, construindo um novo cais (1722), avolumando a frota, também para o transporte de mercadorias e bens, criando oportunidades para o florescimento de outros negócios e ofícios associados, como “Estalagens, Casas de Pasto, Carreteiros, Arrieiros, etc.”11. Mas é, também, o período em que a Moita sofre grande transformação causada pelas migrações das gentes das Beiras que trazem consigo uma nova cultura, que irá prosperar e tornar-se preponderante na alimentação, a par dos cereais: a batata, que viria a ser conhecida por “pão dos pobres”. A bibliografia dedicada à cultura da batata na Moita não é extensa e o assunto também não tem cativado particular atenção, mas não deixa, no entanto, de ser clara, e as informações coligidas na diversa estatística industrial permitem-nos compreender

Cais da Moita no final do século XIX. Imagem: Vitor Mendes O cais dará escoamento aos produtos hortícolas, à batata, repolhos, mas também às cortiças, já na segunda metade do século XX.

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JORNAL DE COIMBRA, n.º VI, junho de 1812, p. 417.


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um pouco o trajeto de uma região rural (Moita e Alhos Vedros) que nos finais do século XVIII já contava com três fábricas, embora manufatureiras, situação de alguma excecionalidade nesta banda. Por exemplo, na Relação das Fábricas de 1788 não é mencionada qualquer fábrica no Barreiro ou Aldeia Galega, e quanto ao fabrico de marroquins, peles finas, apenas existências na Moita, Lisboa e Alcanena. Mas é, também, o momento em que se introduz a cultura da batata na Moita e sucedem, pouco depois, as invasões francesas e as guerras liberais que, além da destruição e desorganização, impedem a estabilidade necessária à implantação de fábricas. Uma carta do juiz de fora de Setúbal, de 1800, permite-nos, em retrospetiva, perceber a grande transformação da Moita no período entre os finais do século XVIII e inícios do XIX. Descreve-nos o juiz, depois de cumprida a missão de distribuição pela comarca de seis exemplares de um tratado sobre a cultura da batata, como era a região: “E a maior parte do terreno desta Comarca arenoso, e por isso a maior porção se acha de pinhal, que os continuados incêndios tem reduzido a vastas e estereis charnecas, absolutamente infrutíferas: os valles, e terras baixas, por se não dar sahida âs agoas que a chuva do Inverno ali deposita, se achão reduzidos a Lagoas, e pauis, de onde com os calores do estio se difunde um ár empestado e insalutifero, q’ataca a vida e saúde dos miseráveis abitantes.”12 A Moita era, entre 1794 e 1798, quando o magistrado por ali passou, uma terra em que os habitantes se ocupavam unicamente do ofício marítimo. Mas é, também, nas palavras do magistrado, o momento crucial em que tudo se parece transformar13: “Neste pequeno período mudou esta terra inteiramente de figura, porque algumas famílias dos campos de Coimbra, onde as terras no Inverno se não podem cultivar por se acharem inundadas pelas agoas do Mondego, para ali se transportarão, e conseguindo de aforamento algumas porçoens de pauis estereis, o lotearão, e enxugarão, abrindo-lhe valas, e principiarão a semear batatas”. Pelos registos paroquiais existentes no Arquivo Distrital de Setúbal o movimento migratório daquelas populações terá ocorrido um pouco antes, pelas cheias regulares, pelas intempéries cíclicas, as de 1754 ou de 1788, esta última bem grave, a ponto de “ser a maior de que havia lembrança”14, com grande devastação e prejuízo, “… inundando as ruas, entrando pelas casas, e derribando varias, em cujas ruinas ficarão sepultados

ANTT, Ministério do Reino, mç. 369. Ibidem. 14 GAZETA DE LISBOA, Suplemento à Gazeta de Lisboa n.º 10, 7 de março de 1788. 12 13


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Ministério do Reino mç. 369. Imagem: PT/TT/MR/EXP/021/03. “Imagem cedida pelo ANTT”. Carta do juiz de fora de Setúbal, de 1800, relatando a grande transformação que sucedeu na Moita com a introdução da cultura da batata pelas gentes da Beira. O documento é constituído por seis páginas.

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Costumes Portugueses/Palhares Lith. (1850). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: ea-67-v e http//purl.pt/22226. Estampa n.º 24, representando um trabalhador da Beira.

os moradores: chegou a agua até á Igreja de Santa Cruz. Em vários armazéns danificou muitas mercadorias”15. Outros fatores poderão também ter contribuído para encorajar aquelas populações a deixar de reparar suas casas e a empreender a viagem, deixando-se do ir e vir e a fixar-se definitivamente, como os aumentos das rendas: “Nas Beiras e noutras regiões desenvolve-se uma tendência para o aumento das rendas, estabelecidas acima dos limites assinalados pelos forais e outros títulos (…) o que evidentemente esmagava as possibilidades de ulterior progresso, vendo-se muitos cultivadores compelidos a abandonar as terras”16. Aos fatores de repulsa das terras de origem acrescente-se a atração da terra de destino ou mesmo da região. Sabemos que no início do século XVIII (1706)17 a Moita e Alhos Vedros se inseriam numa zona de baixa densidade populacional e que ao longo do século a Moita conheceu um ritmo de crescimento rápido, a que não terá sido alheio o desenvolvimento do tráfego marítimo e a recente elevação a vila, no seguimento de um processo de desenvolvimento que continuará a acentuar-se. O litoral sul será a região que mais crescerá entre 1706 e 180118, estimulando a produção agrícola. A plantação da batata na Moita, nos finais do século XVIII, foi um sucesso: “Foi tal a produção e interesse que perceberão os primeiros cultivadores, que logo os

Ibidem. CASTRO, Armando – Expansão económica e transformações pré-estruturais no último quartel do século XVIII. In SARAIVA, J. Hermano – História de Portugal, vol. V. Lisboa: Alfa,1983, p. 245. 17 SERRÃO, J. Vicente – O quadro Humano. In MATTOSO, José (direção) – História de Portugal, vol. IV. |s.l.|: Círculo de Leitores, 1993, p. 57. 18 Ibidem, p. 58. 15

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mais habitantes se aplicarão à mesma agricultura, aforando os pauis das vizinhanças, e estes terrenos infrutíferos se achão hoje cultivados dando aos proprietários muitos lucros, e os habitantes daquela Villa respirão hum ár saudável, conhecendo-se hoje hum grande aumento da Povoação”19. Os rendimentos deverão ter sido elevados uma vez que começaram logo “… os cultivadores a ser perseguidos com a exação de muitos e diferentes tributos”20. Sobre o mesmo assunto e no mesmo período, não é isolada a observação do juiz de fora de Setúbal, relevando também o intendente Pina Manique, em 1799, os prodígios da batata da Moita: ”Mandei vir de Inglaterra 600$000 réis de batata, que espalhei grátis pelas povoações do Ribatejo, e em algumas terras tem sido prodigiosa a produção, e principalmente na villa da Moita, onde o dizimo que d’ella se paga já monta ao valor de 240$00 réis”21. Na mesma década, em 1795, registamos também o testemunho de Manuel José Fernandes sobre as maravilhas da batata da Moita, em produção e lucros: “(…) os moradores podiam informar os lucros que lhes estavam produzindo as lamas de Lisboa, com elas adubavam os brejos ou sapais da sua terra, tendo por isso abundantes colheitas de batatas, que duas vezes no ano eram colhidas, depois que para (lá) haviam ido uns homens a que chamavam caramelos (…)”22. Recordemos ainda José Vicente Soares, o proprietário da fábrica da sola da Moita que naquele tempo, em 1797, fora premiado pela Academia das Ciências de Lisboa pelos resultados na cultura da batata. De terra de vinhas, marinhas e pinhais, a região transforma-se também em terra de batata. Refere, assim, o Jornal de Coimbra, de 1812, a preponderância que aquele tubérculo aqui adquiriu: “No Reino, ou ao menos nas vizinhanças de Lisboa não há terra, em que proporcionalmente seja mais extensa a cultura da batata. Este ano principalmente não se observa senão sementeiras de batatas: 200 moios se julga a sua colheita em anos bons: este ano excede muito esta somma, (assim como he de esperar, que a de vinho chegue a 300 pipas): ainda actualmente se semeia batata, e se continua a semear”23. Por esta altura, a migração das gentes das Beiras já se teria normalizado, registando os róis de confessados de Alhos Vedros 59 trabalhadores da Beira em 1782, 83 em 1784 e 73 em 178524. Passados mais de cinquenta anos, o periódico O Archivo Rural, louvando o progresso agrícola de Portugal sublinha em abono, em 1874, o exemplo da Moita: “As imediações da Moita, constituídas por areaes, antes bravios, incultos e improductivos, salpicados por algumas manchas de pinhal, foram transformadas em campinas destinadas especialmente á cultura da batata, e é a Moita, que dá o maior contingente para a exportação d’este tubérculo”25. A transformação dos areais da ANTT, Ministério do Reino, mç. 369. Ibidem. 21 COELHO, J. M. Latino – Historia Politica e Militar de Portugal, Desde os fins do XVIII século até 1814, tomo I. Lisboa: Imprensa Nacional, 1874, p. 336. 22 ARQUIVO DISTRITAL DE SETÚBAL (ADS), Arquivo de Almeida Carvalho, cx. 104/35. Op. cit. In VENTURA, António – A “Banda D’Além e a cidade de Lisboa durante o antigo regime: uma perspectiva de história económica regional comparada. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2007. Tese de doutoramento, p. 309. 23 JORNAL DE COIMBRA, n.º VI, junho de 1812, p. 418. 24 VENTURA, António, ibidem, p. 81. 25 O ARCHIVO RURAL, Jornal de Agricultura Artes e Sciencias Correlativas, vol. XV. Lisboa: Typographia Universal, 1874, pp. 568-569. 19 20


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Produção de batata por concelhos, em 1852. Imagem: in: JUSTINO, David - A Formação do Espaço Económico Nacional, Portugal 1810- 1913, vol. I. Lisboa: Vega, 1989, p. 43. (NOVA VEGA Edição e Distribuição de Publicações, Lda.) Moita, Aldeagallega e Alcochete, constituem-se como os principais produtores de batata em toda a orla do Tejo (norte e sul) e sul do país.

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Fotograma do documentário “Batatas” (1931). Uma experiência com batata temporã; nas propriedades do Sr. J. C. Charles (Quinta do Esteiro Furado – Moita). Imagem: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema. Filme mudo realizado em 1931 sobre os ganhos na produção de batata, com o emprego de sulfato de amónio numa exploração do Esteiro Furado.

Moita em áreas produtivas fora conseguida com o proveitoso negócio da estrumeira da cidade de Lisboa, transportada por fragatas e varinos para o porto da lama, localizado a escassa centena de metros da vila, de onde seguia para as explorações. Não é só a terra, de onde brota a nova cultura, que se transforma, são também as populações e as suas atividades. Uma relação dos habitantes da Moita que compuseram uma força de voluntários para combater “miguelistas”26, em 1834, proporciona-nos uma ideia, ainda que parcial, da ocupação e naturalidade dos homens da região. Num total de 168 nomes, 81 são naturais das Beiras e somente 71 nasceram na Moita. Enquanto os da Moita se dividem por ocupações tão diversas como barbeiro, negociante, fazendeiro, carpinteiro, sapateiro, trabalhador, ferrador, alfaiate, pedreiro, ferreiro, arrieiro, os das Beiras são já fazendeiros (25) ou trabalhadores (55), além de 1 mateiro. Constata-se ainda, relativamente aos naturais da Moita, que as ocupações mais representativas são trabalhadores (25), negociantes (12) e fazendeiros (7). Trata-se, claro, de uma amostra da população masculina, de adeptos liberais, ignorando-se os de sentimento absolutista, mas manifesta, inequivocamente, a preponderância dos homens das Beiras na agricultura local. Existe também um Mapa da Companhia de Voluntários Nacionaes da Villa de Alhos Vedros, com 148 liberais. Integram essa companhia três vereadores e um procurador, gente da governação, o que nos proporciona logo uma ideia sobre a inclinação política da administração. No que se refere à ocupação ARQUIVO HISTÓRICO MILITAR (AHM), cota: PT/AHM/DIV/1/19/278/44. Correspondência entre várias entidades sobre a organização de um batalhão nacional fixo e outro móvel na Moita e relações de voluntários (1834).

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Correspondência entre várias entidades sobre a organização de um batalhão fixo e outro móvel na Moita e relações de voluntários. Imagem: Arquivo Histórico Militar, cota PT/AHM/DIV/1/19/278/44, p. 22. Relação dos indivíduos que integravam a Força da Compª de Voluntários Nacionaes da Villa da Moita e seu Termo, no final das Guerras Liberais.

Correspondência entre várias entidades sobre a organização de um batalhão fixo e outro móvel na Moita e relações de voluntários. Imagem: Arquivo Histórico Militar, cota PT/AHM/DIV/1/19/278/44, p. 25. Relação dos indivíduos que integravam a Força da Compª de Voluntários Nacionaes da Villa da Moita e seu Termo, no final das Guerras Liberais, constituída por uma maioria de homens oriundos da Beira e de Mira.

Mapa da Companhia de Alhos Vedros. Imagem: Arquivo Histórico Militar, cota PT/AHM/DIV/1/19/279/16, p. 2. Relação dos indivíduos que integravam a Companhia de Alhos Vedros. Entre os apoiantes dos liberais encontravam-se três vereadores e um procurador, 85 trabalhadores e 36 proprietários.

das pessoas, 85 são trabalhadores e 36 proprietários. No citado Mapa da Moita (lista) não consta sequer um proprietário ou qualquer elemento da administração, e marítimos também não. O documento de Alhos Vedros não refere naturalidade. Apesar da bibliografia reunida e aqui citada referir-se à cultura da batata na Moita, o facto é que quer o seu cultivo quer as migrações das populações se alargaram particularmente a Alhos Vedros, onde a gente das Beiras desbravou terras e lavrou, fundando colónias nas Arroteias, Barra Cheia e Brejos. No caso concreto dos movimentos sociais e laborais dos camponeses constituem as Beiras uma das regiões onde se terá registado maiores conflitos anti senhoriais27, no período em causa, decorrentes da excessiva carga de imposições tributárias a que os camponeses se encontravam sujeitos. É também o momento em que emerge uma burguesia rural, ligada a uma agricultura comercial, que procura libertar a terra do domínio dos privilégios e poderes dos senhorios do Antigo Regime e que sairá triunfadora na revolução de 1820. Segundo Tengarrinha, os movimentos de reivindicação na Beira são suscetíveis de mudar a atitude mental em relação aos seus valores tradicionais perante a Igreja28 e, como nos apercebemos no mapa da Força da Companhia de Voluntários Nacionaes da Villa da Moita e seu Termo, apoiam os liberais. Despojados de terras, mas não da vocação 27 TENGARINHA, José – Movimentos camponeses em Portugal na transição do Antigo Regime para a sociedade liberal. In PEREIRA, Miriam (coord.) – O Liberalismo na Península Ibérica na primeira metade do século XIX, vol. 2.º. |s.l.|: Sá da Costa Editora, 1982, p. 156. 28 Ibidem.


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empreendedora e comercial, as gentes da Beira irão conseguir arrendamentos, empregarão camponeses assalariados, alargarão o cultivo da batata, aproveitando a alta dos preços dos cereais. O desenvolvimento da agricultura atrairá empresas exportadoras e uma massa de gente assalariada, que povoará e enraizará na região novas gentes, de identidade bem vincada e com um folclore bem vivo: os caramelos. Em meados do século XIX, a região da Moita era a principal produtora do tubérculo a sul do país29. É também o período em que a estabilização política permite o desenvolvimento de um mercado nacional. Contudo, o desenvolvimento da agricultura e o alargamento do mercado terão um impacto negativo nos pequenos proprietários, arruinando uns e levando outros à miséria e à emigração30. E quando o país se transformar numa "granja para exportação", no período subsequente, a Moita despertará também o interesse de empresas vocacionadas para a exportação. No Rol de Confessados da Moita do Ribatejo, 1907 a 1914, no que é referido como Casas de Campo da Freguesia da Moita, que inclui Chão Duro, Broega, Sítio de S. Sebastião, Pinhal da Areia, Alto da Malhada, Carvalhinho, Abreu e Brejos, os homens são, quase em exclusivo, ou proprietários ou jornaleiros. As mulheres são domésticas, trabalham em casa e auxiliam nos campos. Na vila, existem também jornaleiros e jornaleiras, assalariados. Será esta gente sem terra, constituída como força de trabalho, proletários, que intervirá nas grandes manifestações rurais de 1911, uma das quais leva à concentração, na Moita, de dez mil trabalhadores31, que reivindicam melhorias na condição de vida da classe e a instituição de uma tabela de preços dos trabalhos agrícolas. O Sindicalista, dá-nos uma ideia do movimento dos trabalhadores rurais, naquela greve de 1911, na Moita: "O movimento do proletariado vae tomando de dia para dia um grande incremento, com especialidade o dos camponezes, que ultimamente teem feito sucesso em Portugal pelo seu gesto de revolta contra tanta exploração de que eram victimas. Os trabalhadores do campo, que em todo o mundo são os productores mais explorados, comprehenderam emfim que era tempo de se levantarem. E então, revoltando-se, largaram o trabalho e proclamaram a gréve geral n'esta região, dispostos a não o retomar emquanto justiça não lhes fosse feita. É indiscriptivel o magestoso movimento que aqui se levou á pratica; talvez, sem exaggero, fosse uma gréve de 10:000 pessoas, que se armaram de grossos varapaus, foices roçadoiras e outras armas munidas para responder a qualquer infamia dos seus antagonistas."32

JUSTINO, David – A Formação do Espaço Económico Nacional 1810-1913, vol. I. Lisboa: Vega, 1989, p. 43. COSTA, F. Marques – Sociedade e grupos sociais no período constitucional. In SARAIVA, J. Hermano – História de Portugal, vol. VI. Lisboa: Alfa, 1983, p. 175. 31 RIBATEJO, Lisboa, 9 de novembro de 1911, p. 3. 32 O SINDICALISTA, n.º 33, 25 de junho de 1911, p. 3. Outras greves, conflitos e prisões de trabalhadores, neste período e na Moita, serão acompanhas pelo jornal. 29

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Manifestação de campinos no Largo da República. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa. PT/AMLSB/ACU/001999. Trata-se de uma manifestação de trabalhadores rurais realizada na Moita, em 1911. A maioria dos trabalhadores encontra-se descalça e armada com paus, cajados e cacetes.

O trabalhador rural é o que vive em piores condições económicas, pois são aqueles que vivem somente do salário de trabalhadores agrícolas33. O jornal O Domingo, em 1913, editado em Aldegalega, é mais incisivo na caracterização da situação dos trabalhadores, referindo-se à classe como "... uma legião enorme de pessoas em luta constante com a miséria, dando um trabalho superior ao seu custo, vivendo n’uma situação deprimente de inferioridade material e moral”34. Outros autores são ainda mais objetivos em relação à realidade concreta do trabalhador rural e referem-se à praça de jorna como “leilão de carne humana, um mercado de escravos”35. Mesmo com o advento da República continua a “desenfreada exploração” dos trabalhadores rurais, forçados a vender a sua força de trabalho aos proprietários e empresários agrícolas. Foi nos campos que o modo de exploração capitalista primeiro se desenvolveu. Neste período, a agricultura abarca 3/5 da população ativa, verificando-se uma queda nítida entre 1911 e 1930. Entre 1930 e 1940 o sector agrícola volta a subir, exceto no Porto e Setúbal36. Entre os finais do século XIX e o princípio do século XX, o processo de industrialização e urbanização da região acentua-se. Contudo, o concelho da Moita passa à margem do fenómeno. A indústria não possui expressão e é o único AMM, Saúde e robustez da população do concelho da Moita, 1911. O DOMINGO, Semanário Republicano Radical, 25 de maio de 1913, p.1. 35 BARRETO, Jorge – Jorge Coutinho e «O despertar dos trabalhadores rurais» (1911). In Análise Social, vol. XX, n.º 83. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1984, p. 529. 36 NUNES, A. Bela – A evolução da estrutura, por sexos, da população activa em Portugal – um indicador do crescimento económico (1980-1981). In Análise Social, vol. XXVI, n.º 112-113. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1991, p. 709. 33 34


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concelho entre os já aqui citados (Alcochete, Almada, Barreiro, Montijo e Seixal), que perde população, entre 1900-1911. Uma extensa região do território do distrito de Setúbal, que no século XIX relevava pela empresa agrícola, reorganizava-se espacialmente e especializava-se. No início do século XX, pelo comboio do sul e sueste, chegavam a Alhos Vedros as cortiças e populações migrantes, desenvolvendo a indústria da cortiça e gerando bairros operários, muitas das vezes sem condições de habitabilidade. Por seu lado, a Moita mantinha o seu ancestral processo de produção e escoamento de produtos hortícolas pelo Tejo. Se a migração das Beiras dos finais do século XVIII e princípios do XIX está ligada aos trabalhos agrícolas, a grande massa migratória do Alentejo, na segunda metade do século XX é uma força de trabalho que parece adaptar-se à multiplicidade de trabalhos e oportunidades que se oferecem num distrito em transformação. E o facto é que esta massa, que engrossará o operariado fabril, a construção civil, vem do trabalho do campo e não possui tradição de trabalho na indústria. Não é só o distrito que exerce uma força de atração, também o Alentejo causa repulsa. Quando o desemprego atinge o trabalhador, atinge toda a família. Leva o trabalhador à miséria, à degradação, sem vislumbre de resolução da sua situação. Um relatório produzido pelo Estado, em 1956, identifica algumas causas do desemprego: mecanização da agricultura, desaparecimento dos seareiros, o regime de arrendamentos, incremento da cultura do trigo, desenvolvimento dos meios de comunicação37. É neste período, entre 1940 e 1960, que o concelho passa de 12384 habitantes para 29110, a taxa de crescimento mais elevada que se verificou até agora38, e em parte muitos provêm do Alentejo. A Baixa da Banheira levantar-se-á pelas vagas de migrantes que encontrarão senão emprego pelo menos residência na terra. Vêm das zonas rurais, dos campos do Alentejo, para as indústrias, para as oficinas, para a construção, na Área Metropolitana de Lisboa. Uma análise à naturalidade dos chefes de família produzida no Relatório Diagnóstico – Demografia e Emprego do Plano Director do Concelho da Moita, de 1980, concluía que somente 23% eram naturais do concelho, e dos provenientes de áreas rurais (59%) 42% vieram do Alentejo39.

37 BAHOP, cota: PP0260. MINISTÉRIO das Obras Públicas, Comissariado do Desemprego – Primeiro Relatório Anual da Comissão Coordenadora das Obras Públicas no Alentejo. Lisboa: |s.n.|, 1957. 38 CÂMARA Municipal da Moita – Plano Director do Concelho da Moita, Relatório Preliminar, 1.º vol. Moita: Câmara Municipal da Moita, p. 8. 39 Ibidem, p. 13.


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2.2 AE AGRICULTURA A IDENTIDADE RURAL DO CONCELHO

m 1965, na introdução ao Plano de Actividades da Câmara Municipal da Moita, para o ano de 1966, o então executivo municipal reafirmava textualmente a identidade rural do concelho, em detrimento do que se lhe afigurava uma ilusão: a industrialização. Por aquela altura, o Estado Novo já adotara uma estratégia de crescimento económico através do fomento industrial, já aderira a uma zona de comércio livre, a EFTA, na margem sul instalava-se a Siderurgia Nacional (Seixal), a Lisnave transitava para a Margueira (Almada), e a inauguração da ponte sobre o Tejo iria arruinar de vez o que restava da economia marítima da Moita, Rosário e Sarilhos Pequenos. Haviam passados já muitos anos desde que a instalação da CUF, no Barreiro, atraíra trabalhadores de toda a parte e levara ao despontar da Baixa da Banheira. Todos os dias as nuvens de fumo das chaminés das fábricas do Brito e da Socorquex aclaravam a indústria emergente na sede do Município, mas a nível local a direção política permanecia agarrada a uma conceção tradicionalista da economia e da sociedade, conservadora, obstinada na agricultura, inabalável na valorização da lavoura e do proprietário, professando uma espécie de doutrina pouco consentânea com a ciência económica: o “amor à terra”. O impulso modelador de Alhos Vedros, terra de ferroviários, de fábricas de cortiça e de corticeiros, e em breve também de fábricas de confeções de vestuário, e a transformação acelerada da Baixa da Banheira, terra de acolhimento de populações que não encontraram nem trabalho nem futuro nas terras de origem, expandindo-se urbanística e demograficamente, não conseguiram converter padrões culturais que deviam ao mundo rural todo o seu sentido. A Moita, sede do município, local de residência dos principais contribuintes, proprietários de quintas, fazendas e marinhas, com fortes interesses no desenvolvimento da exploração agrícola e na Relação que a Repartição de Fazenda do Concelho da Moita envia à Câmara Municipal da Moita, em 1911, com os nomes dos 60 maiores contribuintes do concelho. Imagem: Arquivo Municipal da Moita. Na relação constam 37 nomes da Moita e 11 de Alhos Vedros, sendo que os 10 principais contribuintes são todos da Moita. Os dois principais contribuintes da Moita pagam mais imposto que os 11 contribuintes de Alhos Vedros.


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manutenção das condições de escoamento dos seus produtos, centro do poder político e económico, não abdicava de trilhar a história de sucesso que a terra havia construído desde finais do século XVIII, quando da introdução da cultura da batata na região. Da importância do “amor à terra” derivava, na realidade, todo um conjunto de comportamentos e “virtudes”, de deferências, que se reproduziam socialmente quer através da atividade laboral, das relações entre proprietários e trabalhadores, quer através do sistema de valores e crenças que se transmitiam pela vivência comum de diversas celebrações e festividades, pelas tradições culturais. A título de exemplo, na altura em que o fenómeno desportivo, particularmente o futebol, se consolidou como um fenómeno de massas, a Sociedade Moitense de Tauromaquia pede à Câmara Municipal, em 1949, autorização para a "...construção da nova praça de touros no lugar destinado a campo de futebol", no cimo da moderna Av. Dr. Teófilo Braga, próximo do antigo campo do Moitense, que acabou instalado no juncal, do outro lado do rio, junto à divisão territorial com a freguesia de Alhos Vedros. Apesar do paradigma cultural vigente, Alhos Vedros industrializa-se, a Baixa da Banheira cresce aceleradamente, sem condições de salubridade (sem água potável, sem luz, sem esgotos, sem escolas) e sob os desígnios da especulação imobiliária, numa clara demonstração que as transformações do território são mais resultado de agentes externos do que dos poderes de decisão locais. Em 1969, pelo Decreto n.º 49322, de 27 de outubro, a Moita passa a ser classificada concelho urbano de 1ª ordem e no núcleo populacional da Baixa da Banheira é criado um bairro administrativo. Esgotado o filão da agricultura, quer pela força da concorrência, quer pela pressão urbanística, as antigas quintas acabarão por dar lugar a urbanizações, como a da Quinta da Fonte da Prata, que a Companhia Imobiliária de Turismo Comitur, S.A.R.L., apresenta à Câmara da Moita, em 1972, como um moderno núcleo habitacional,

Carta da empresa de exportação de frutas, Cordeiro, Pinhão & Com. à Camara Municipal da Moita, 1910. Imagem: Arquivo Municipal da Moita. Centro produtor, a Moita despertava o interesse de empresas de exportação de produtos agrícolas. Em 1911, a firma Cordeiro, Pinhão & Com., com sede em Lisboa, informa a Câmara Municipal da Moita que pretende estabelecer na praia da Moita (borda d’água) um armazém para embarque de frutas.

Ilustração do título do jornal local “O Futuro”, de 1917. Imagem: Biblioteca da Universidade de Coimbra, cota: G.N.-5-10. Em 1917, a industrialização já arrancara, mudara o regime, mas o jornal O Futuro destacava a agricultura.


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a constituir como "cidade satélite" de Lisboa40. Um pouco por todo o concelho as novas urbanizações adotarão a denominação das antigas quintas. O histórico de dependência da agricultura e a incapacidade em acompanhar o processo de industrialização da região revelam-se verdadeiros obstáculos nos primeiros tempos da democracia, não permitindo aos poderes recentes grande autarcia no domínio do planeamento da economia local, quando são já visíveis os sinais de desindustrialização do país. Uma tentativa de inversão da situação surge no primeiro Plano Director Municipal da Moita, no diagnóstico preliminar, onde é sugerida orientação para a resolução do desemprego, através da criação de parques industriais: “Dada a fraca fixação de emprego industrial no Concelho, é urgente que se definam critérios para a fixação de novas unidades, o que implica a delimitação duma área industrial, no Concelho ou em associação com os concelhos limítrofes”41. Sublinha o diagnóstico, no entanto, ser difícil “... localizar grandes unidades no Concelho sem que isso acarrete a destruição de terrenos agrícolas42. Contudo, o concelho continuará a atrair população do exterior e a crescer demograficamente, mas será um processo mais associado à oferta de alojamento do que à disponibilidade local de postos de trabalho. A existência ou não de grandes unidades industriais locais não influirá, na verdade, nas características operárias da população do concelho. A cultura da batata foi introduzida na Moita nos finais do século XVIII, ocasionando o seu extraordinário desenvolvimento a captura do empreendedorismo local. E porque razão mudar se, como escrevia Domingos António Soeiro, no final do século XIX, a Moita era um “centro comercial importantíssimo, é á agricultura, exercida em larga escala, que deve o seu grande desenvolvimento”43. Também outro conterrâneo, republicano, não escondia, na apelação à acalmia do operariado rural da Moita, em 1911, durante as greves dos trabalhadores rurais e sobre a formação de um sindicato de classe, a sua ideia de que a Moita era uma espécie de paraíso na terra, vivido em harmonia por senhores e proprietários, gente das rendas e do lucro, e trabalhadores e explorados, gente da miséria: “A Moita não pode permanecer, nem mais um momento, – fique-se sabendo! – sob este estado de inquietação latente que traz todas as famílias da localidade, costumadas ao viver calmo e proverbial de aldeia, em cons t a n t e 44 sobresalto” . Em meados do século XX, a questão agrícola é tão presente que a produtividade da terra, propriamente a cultura da batata, que ocupa mais de 90% da produção agrícola da terra, é enfatizada num instrumento fundamental de desenvolvimento e ordenação do território: o “Anteplano de urbanização da Vila da AMM, Livro de atas da Câmara Municipal da Moita, reunião de 25 de julho de 1972, fl. 1v. AMM, Plano Director do Concelho da Moita – Diagnóstico Preliminar, 1980, p. 2. 42 Ibidem, p. 3. 43 SOEIRO, Domingos A. – Moita Centro comercial importantíssimo, é á agricultura, exercida em larga escala, que deve o seu grande desenvolvimento. In FERREIRA, Armando (diretor) – Portugal: Revista de Propaganda, nº 2. Lisboa: Publicidade Turística, Limitada, setembro de 1930, p. 37. O texto foi publicado originalmente em 1892, no número 56 da “Revista Ilustrada”. 44 A VICTORIA, 2 de julho de 1911, p. 1. 40 41


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Moita”, de 1949. E sobre os campos da Moita, refere: “... a sua fertilidade é continuamente aumentada pelas adubações orgânicas dos lixos de Lisboa, que nelas são incorporados. Esta é a causa do grande desenvolvimento hortícola da margem sul do Tejo e torna os campos da Moita uma das mais importantes zonas abastecedoras da capital, de produtos hortícolas e especialmente de batata”45. Em meados do século ainda funcionava, então, o porto da lama, viveiro de enxames de moscas, que afetava as condições de vida da população. Como nota a descrição do Anteplano, no que respeita à vila: “... as suas condições higiénicas não são satisfatórias, pela existência de numerosas estrumeiras de lixos provenientes de Lisboa”46. Enquanto em Alhos Vedros se construíam bairros operários, para os trabalhadores da indústria corticeira,

Mapa Turístico e Económico da Moita, 1952. Imagem: Coleção particular. Mapa ROTEP, n.º 217, Moita, organizado por Camacho Pereira. Lisboa: Lit. Amorim. Mapa com a representação das principais atividades económicas do concelho da Moita, destacando-se o sector primário: batata, couve-flor, laranjas, repolhos, morangos, gado suíno, gado vacum, gado lanígero, vinhos, queijos, carnes fumadas, salinas, ostras. Na indústria: cortiças, alcatrão, cerâmica, velas de sebo. 45 BAHOP, Anteplano de Urbanização da Moita. |s.n.|: Ministério das Obras Públicas e Comunicações, processo n.º 2032/49, 1949, p. 6. 46 Ibidem, p. 4.


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o Anteplano da Moita considerava uma área para habitações dos trabalhadores rurais. A ideia que os poderes e entidades distritais do Estado Novo divisavam sobre a terra também não era muito diferente, quando se tratava de exaltar o equilíbrio de um distrito idealmente complementar, simultaneamente industrial e agrícola. No relatório de contas apresentado pela Comissão das Festas da Exposição Regional do Distrito de Setúbal, de 1930, refere-se a dualidade das atividades económicas do distrito: “... evidenciaram-se extraordinariamente progressivos, sob o ponto de vista agrícola e pecuário, os concelhos de Alcácer do Sal, Alcochete, Grândola, Moita, Palmela e S. Tiago do Cacém, como surpreendeu os visitantes a riqueza industrial dos concelhos de Almada, Barreiro, Montijo, Seixal, Setúbal, Sezimbra e Sines”47. Na verdade, o provimento do mercado da batata portuguesa no Brasil tinha por centro os municípios “agrícolas” da margem sul (Moita, Aldeagalega, Palmela)48, que abasteciam também Lisboa, o Alentejo e parte do norte do país. Em 1941, a Moita, apesar de ser a região que produz batata de mais elevado preço, ainda consegue gerir equilibradamente a exportação da sua produção, particularmente através da ação do Grémio da Lavoura local, mas enfrenta a concorrência de outros centros produtores emergentes, como Aveiro, Chaves e zona Oeste (Lourinhã, Torres Vedras, Bombarral). A zona Oeste produz batata a $11,8 o quilograma, enquanto na Moita o preço quase que quadruplica: $42,4. Em meados do século XX, apesar do incremento industrial, a Moita ainda é um concelho rural (2ª ordem) e “Predominantemente agrícola, reveste o concelho posição de relevo no mercado abastecedor da Capital”49. O Relatório da Inspecção à autarquia, de 1956, acentua a ruralização mas expõe também a realidade de um concelho em profunda mutação, pelo crescimento populacional da freguesia de Alhos Vedros que no espaço de 10 anos (1940-1950) mais que duplica a sua população (103,1%), enquanto a vila sede de concelho não cresce mais de 22,04%50, fenómeno que se explica “... no facto da freguesia de Alhos Vedros assentar a cerca de meia distância entre a Moita e a vila do Barreiro, entre 4 a 4,5km desta última, e a sua quase totalidade da população masculina exercer a sua profissão nas fábricas da região e até de Lisboa, onde se desloca diariamente, dados os meios fáceis de locomoção"51. Deslocações rápidas e diretas com o Barreiro e Lisboa influenciam o desenvolvimento populacional de Alhos Vedros e de um então lugar desta freguesia: Baixa da Banheira. No capítulo industrial regista o Relatório a “... existência de importantes fábricas de cortiça na zona de Alhos Vedros, uma fábrica de aglomerados do mesmo produto próximo da vila, e uma outra de cerâmica”52. Por esta altura, já a freguesia de Alhos Vedros se havia transformado numa terra de cariz operário, quer pelo trabalho nas fábricas EXPOSIÇÃO Regional do Distrito de Setúbal em 1930. Setúbal: Tip. A. Cândido Leireiro, 1931, p. 13. LOUREIRO, M. J. – A traça da batata e a exportação da batata portuguesa para o Brasil. In Revista Agronómica, ano XVIII, n.º1. |s.l.|: Sociedade de Sciências Agronómicas de Portugal, 1930, p. 32 49 AMM, Relatório da Inspecção à Câmara Municipal da Moita, 1956, p. I. 50 Ibidem. 51 Ibidem, p. I e II. 52 Ibidem, p. IV. 47 48


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de cortiça locais, quer pelo emprego gerado nas instalações fabris dos concelhos limítrofes. Contudo, em 1963, as imagens que a administração local detém da Moita, são de “... dormitório dos importantes centros fabris seus vizinhos”, e de continuar a ser também “…um concelho estruturalmente rural”53. No final de 1965, a Câmara Municipal reconhecia que a abertura da ponte sobre o Tejo, a inaugurar em 1966, constituiria uma oportunidade para a fixação de novas indústrias no concelho, "...trazendo novas fontes de trabalho de progresso e de riqueza"54. No entanto, era convicção da administração local que esse reconhecimento não deveria significar que a Moita abdicasse da sua orientação ancestral, pelo contrário. De facto, enquanto a região de Lisboa se transformava rapidamente, pela industrialização, pelo crescimento demográfico, pela urbanização, aliás bem visíveis na industrial Alhos Vedros e na populosa Baixa da Banheira, na sede do concelho reafirmava-se o passado de sempre e continham-se os ânimos: "Apesar da euforia da industrialização, não podemos perder de vista que o concelho da Moita tem sido e continuará a ser essencialmente um concelho agrícola, e que há que estimular esta actividade como base da sua economia, estimular o pequeno proprietário no amor à terra, criando-lhe condições para a valorização dos seus produtos."55 Contudo, nos anos 70 e 80 do século XX a importância da agricultura já era residual, considerando-se que a população ativa no sector primário registava 8,6% e 4,2%, respetivamente, enquanto para os mesmos períodos o sector secundário apresentava os valores de 52,7% e 50,8%, englobando indústrias transformadoras, construção civil e obras públicas e da eletricidade, água, gás e saneamento56.

ARQUIVO FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, Carta do presidente da Câmara Municipal da Moita, de 13 agosto de 1963. 54 AMM, Livro de atas de Reunião de Câmara de 1965, reunião extraordinária de 15 de novembro de 1965, p. 4. 55 Ibidem. 56 CÂMARA Municipal da Moita – Plano Director do Concelho da Moita: Relatório Diagnóstico, vol. 1. Moita: Câmara Municipal da Moita, 1980, p. 22. 53


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2.3 AEMINDUSTRIALIZAÇÃO ALHOS VEDROS

uando em 1929 foi configurado o brasão de armas do concelho da Moita, a Secção de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses salientava, entre as características do concelho, a riqueza da agricultura e o extraordinário desenvolvimento da indústria da cortiça. E em relação à cortiça referia-se, naturalmente, a Alhos Vedros, uma vez que Moita não possuía indústria corticeira. A emergência industrial de Alhos Vedros não foi, no entanto, pacificamente aceite por todos os dirigentes locais. Por exemplo, João da Costa, vice-presidente da câmara durante o Estado Novo, deixou escrito que “…o desenvolvimento industrial de Alhos Vedros foi originado com prejuízo da Moita (Vila) pela inaptidão de alguns dirigentes moitenses”57, adeptos, como vimos, das teorias fisiocráticas. O facto é que no final do século XIX, o concelho da Moita era um lugar apartado da industrialização, constando no Inquérito Industrial de 1881 a existência de uma fábrica ou oficina de “obras de ferro malhado”, fundada em 1877, somente com três operários58, auferindo o segundo pior rendimento da tabela, entre as 23 declarações. Apesar das lacunas do Inquérito, com relações incompletas, não se trataria na verdade de uma fábrica, segundo o administrador do concelho, que na informação que remete relativa à “Visita ás Fabricas”, refere: “... não havia fabricas que podessem ser visitadas”59. O Inquérito Industrial de 1890 refere um conjunto mais abrangente de atividades incluindo a “pequena indústria” (alfaiataria, cal, calçado, carpintaria, carruagens, cortiça, funileiro, moagem, padaria, serração, serralharia, tanoaria)60, destacando-se a fábrica de Herdeiros de Thomaz Crewell, localizada no Esteiro Furado. Trabalhava com oito operários e possuía de motor uma máquina a vapor fixa de 20 cavalos de força61, novidade, única no concelho. Nesta banda do Tejo, as máquinas a vapor também não abundam, mesmo em concelhos que vieram a conhecer grande industrialização, como o Seixal (4 cavalos de força, na fábrica de vidros da Amora) ou o Barreiro (38 cavalos de força, nas oficinas do caminho de ferro do sul). O Inquérito Industrial de 1890 carece também de exatidão, pela resistência que os industriais ofereceram, que foi o caso da Moita, conforme o relatório da comissão distrital: “Alguns industriaes

COSTA, João da – Intercâmbio Luso-Astur Histórias da nossa História. Moita: João da Costa Rodrigues, 1998, p. 95. RESUMO do Inquérito Industrial de 1881, Ministério das Obras Publicas, Commercio e Industria, Repartição de Estatística. Lisboa: Imprensa Nacional, 1883, p. 33. 59 INQUÉRITO Industrial de 1881, Inquérito Directo, Segunda Parte, Visita ás Fabricas, Livro Primeiro, Comissão Central Directora do Inquerito Industrial. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881. 60 INQUÉRITO Industrial de 1890, Volume IV Industrias Fabris e Manufactureiras (Inquerito de Gabinete), Ministério das Obras Publicas, Commercio e Industria, Direcção Geral do Commercio e Industria. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891, pp. 41-42. 61 Ibidem, p. 228. 57

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recusaram-se a assignar as respostas ao questionário e a fornecer certos esclarecimentos”62. No Relatório Annual de 190563, sobre a indústria nos distritos de Leiria, Lisboa, Portalegre e Santarém, não consta qualquer referência à existência de motores a vapor no concelho da Moita, presumindo-se que a máquina do Esteiro Furado já teria deixado de funcionar no local. O Barreiro e o Seixal, por exemplo, que poucos anos mais tarde viriam a constituir-se como pólos de atração do operariado da Moita, conseguiram aumentar o número de máquinas a vapor e de força em cavalo-vapor, com 3 máquinas e 53 cavalo-valor e 14 máquinas e 760 cavalo-vapor, respetivamente. A Estatística Industrial de 1917 expõe com clareza o atraso na instalação da indústria fabril no concelho da Moita, registando unicamente sete estabelecimentos64, todos da indústria corticeira, e 65 operários, dos quais 5 são mulheres. Uma das fábricas, indicada como de “Cortiça em fardos e quadros (preparação de). Rôlhas (fabricação de)”, emprega 41 operários65, 60% do total. Nenhuma das fábricas referenciada possui ou utiliza “Caldeiras e Motores de vapor” ou “Motores de explosão”, maquinaria presente já em grande parte dos concelhos que integram atualmente o distrito. O inquérito não refere a localização das fábricas no concelho da Moita mas tratar-se-ia, sem dúvida, de unidades instaladas em Alhos Vedros, as únicas referidas no Anuário Comercial66, no período em causa. A indústria afirma-se em Alhos Vedros, não sem alguns conflitos entre o potentado agrícola, com raízes, conservador, e os industriais recém-chegados da província, com outra perspetiva de exploração das

Fábrica de Pólvora de Vale de Milhaços – casa da máquina a vapor. Perspetiva da máquina de vapor. Imagem: © EMS-CDI –Nelson Cruz, 2012. É referido no Inquérito Industrial de 1890 a existência de uma máquina a vapor na fábrica de cortiça de Herdeiros de Thomaz Crewell. Em 1917, são referidos sete estabelecimentos de cortiça, sem motor.

Ibidem, p. 347. BOLETIM DO TRABALHO INDUSTRlAL, n.º 2, (1907), Relatorio Annual 1905, Districtos de Leiria, Lisboa, Portalegre e Santarem. Lisboa: Ministerio das Obras Publicas, Commercio e Industria, 1906, p. 70. 64 BOLETIM DO TRABALHO INDUSTRIAL, n.º 116, Estatística Industrial Ano de 1917, República Portuguesa Ministério do Trabalho, Direcção Geral do Trabalho, Repartição Técnica do Trabalho – 2.ª Secção. Lisboa: Imprensa Nacional, 1926, p. 18. 65 Ibidem. 66 ANNUARIO COMMERCIAL DE PORTUGAL. Lisboa: Empreza Typographica do Annuario Commercial. Cota da BNP: F. 7480. 62 63


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potencialidades locais, da força de trabalho. Um dos conflitos67, em 1933, seria centrado nas condições da cala e no cais de Alhos Vedros68. Contudo, o conflito principal respeitava à concorrência que indústria fazia à agricultura, na captação de mão-de-obra, desestabilizando o mercado de trabalho, como havia sucedido anos antes com a instalação da CUF, que absorveu muito do operariado agrícola. De resto, o florescimento da indústria em Alhos Vedros iria atentar aos modos de vida ancestrais. Refere João da Costa: “Os autarcas de Moita ao tempo viram com maus olhos essa pretensão (instalação da indústria corticeira por algarvios, comerciantes e outros industriais) pois seria o arranque de uma indústria que iria contender fortemente com os usos e costumes tradicionalmente agrícolas e para o evitar procuraram por todas as formas, que eles se fixassem antes em Alhos Vedros, onde alguns lavradores da Moita e outros daquela antiga Vila tinham propriedades onde já se lutava com a falta mão de obra agrícola.”69 Relação de fábricas de cortiças da Secção do Barreiro do Sindicato Nacional dos Operários Corticeiros do Distrito de Setúbal, 1956. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Corticeira do Sul Na relação de fábricas de cortiça abrangidas pelo Sindicato, em 1956, constam 37 fábricas em Alhos Vedros, 34 fábricas no Barreiro e 3 fábricas na Moita.

O assunto evoluiu ao longo de algumas reuniões da Comissão Administrativa da Câmara Municipal da Moita, de 1933 a 1934. Em síntese, os industriais requeriam que a Câmara Municipal da Moita reparasse o cais e desassoreasse a cala de Alhos Vedros, vital para o embarque e transporte das cortiças. Recusaram-se a pagar o imposto do cais. A Comissão Administrativa, então presidida por Manuel de Mora Feria, industrial estabelecido em Alhos Vedros, enviou a Corchera Portuguesa e a J. Gomes de Oliveira & Companhia, de Alhos Vedros, para tribunal, além do fiscal municipal ter mandado prender alguns industriais, em 23 de junho de 1933. 68 GAZETA DOS CAMINHOS DE FERRO, edição de 16 de julho de 1933, p. 427. 69 COSTA, João da, ibidem, p. 210. 67


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O Inquérito Industrial de 1957 confere-nos uma panorâmica do estado de incremento das indústrias têxteis e de vestuário no distrito de Setúbal, mas ainda sem a expressão que viria a adquirir com a adesão à EFTA. O distrito regista 24 estabelecimentos de têxteis, com 4297 operários, sendo significativo o número de trabalhadores no Barreiro (3433) ocupando 79,89% do total, seguindo-se-lhe Seixal (486) e 11,3%, e Almada (314) e 7,3%. Alcochete, Moita, Montijo, Palmela, não apresentam registos e nos restantes o resultado é inexpressivo. Relativamente à “Fabricação de calçado, artigos de vestuário e têxteis em obra”, conforme o CITA, 207 estabelecimentos do distrito ocupam 844 pessoas, média de 4 pessoas por estabelecimento. Na Moita, os dados revelam 49 trabalhadores distribuídos por 15 estabelecimentos (média de 3,2 trabalhadores por estabelecimento) indicando estarmos perante pequenas oficinas, um retrato que se repercute, afinal, pelos restantes concelhos do distrito. O facto relevante é que, à data do Inquérito Industrial de 1957, as grandes fábricas de confeções ou vestuário ainda não se instalaram em Alhos Vedros. A indústria resume-se, praticamente, a fábricas de cortiça. O recenseamento industrial de 1971 apresenta já uma realidade completamente diferente no âmbito da indústria de fabrico de vestuário, com a instalação de 24 estabelecimentos no concelho da Moita, dando trabalho a 780 pessoas, logo atrás do Concelho de Almada, com 121 estabelecimentos e 1300 pessoas. Considerando os estabelecimentos de “5 e mais pessoas ao serviço”, 5 dos estabelecimentos de fabricação de vestuário empregam 748 pessoas (média de 149 pessoas por unidade), e nas cortiças e madeiras 30 empresas empregam 1205 pessoas (média de 40 pessoas por unidade). As cortiças e as madeiras empregam, em 1971, 1254 trabalhadores. Em 1974, são estimados 1113 trabalhadores na cortiça70. Enquanto a crise alastra entre as fábricas de cortiça, prenunciando o fim de um ciclo de atividade industrial, com encerramento de fábricas e despedimentos, a indústria do vestuário, que se instalara inicialmente em Alhos Vedros, desenvolve-se e expande-se. Em 1989, a Moita já é um concelho altamente especializado na indústria do vestuário, com 40% dos trabalhadores afetos ao sector71. A nível nacional, só os concelhos de Belmonte e Lousada se especializaram mais que a Moita. No distrito de Setúbal, a Moita, com um total de 2188 trabalhadores na indústria do vestuário, era o maior empregador do sector, seguindo-se-lhe Almada (2001) e Seixal (683)72. Com as indústrias da cortiça e das confeções de vestuário Alhos Vedros constitui-se como o embrião da industrialização do Concelho da Moita, vincando a identidade industrial do território, marcando a vivência de gerações de trabalhadores, homens e mulheres.

SILVA, Eduarda, ABREU, Ilda, VICTOR, Isabel, GONÇALVES, Luís Jorge – A Indústria Corticeira e o Concelho da Moita Projecto de Musealização da Fábrica Socorquex. Moita: Câmara Municipal da Moita, 1993, p. 23. 71 RODRIGUES, M. João (coord.) – A Localização dos Sectores em Reestruturação no Território Português, 2.º vol. Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Dinamia – Centro de Estudos Sobre a Mudança Socioeconómica, 1992, p. 15. 72 Ibidem. 70



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AS FÁBRICAS DE CONFEÇÕES DE VESTUÁRIO: FATORES DE INSTALAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO


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confeção de vestuário é uma indústria ainda muito determinada pelos custos da mão-de-obra, apesar do desenvolvimento e aplicação de alguma automação na cadeia de produção. A produção em série de vestuário apartou o cliente da relação muito direta e próxima com o alfaiate ou com a modista, entre consumidor e autor da peça, mas ainda não despediu totalmente a máquina de costura e a mão que a opera. Apesar do desenvolvimento da informática e da aplicação da robótica a cada vez mais aspetos do trabalho, com vista à redução de custos e da intervenção humana no processo de fabrico, ainda subsistem algumas características “manufatureiras" em determinados segmentos da produção de vestuário e, concretamente o tempo de costura, a junção de duas peças por linha e agulha, continua a ser determinante na rentabilidade das empresas. O custo da mão-de-obra na produção em série de vestuário não é, assim, de modo algum, desprezado, antes valorizado na gestão do produto, e por isso a deslocalização de empresas, sempre com o objetivo de beneficiar de mão-de-obra mais económica, barata, tem sido um fenómeno evidente na indústria do vestuário. A terminar a II Guerra Mundial, o Estado avança, em março de 1945, com uma lei1 para o estabelecimento de novas indústrias

Costureiras numa fábrica local (Gracinda Flores). Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. Na segunda metade do século XX, foram várias as empresas da indústria do vestuário que se transferiram para Portugal. Beneficiavam de uma legislação laboral favorável e dos baixos salários pagos aos trabalhadores.

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DIÁRIO DO GOVÊRNO, 14 de março de 1945, I série - n.º 54, Lei n.º 2:005.


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e reorganização das existentes, numa estratégia de incremento da industrialização do país. Na segunda metade do século XX, Portugal assomou à Europa como paraíso da mão-de-obra muito barata, numa altura em que se acentuava também a internacionalização da produção têxtil, privilegiando as grandes empresas a instalação em regiões subdesenvolvidas, que lhes garantissem maior rentabilidade, através do baixo custo de salários e poupança em investimento tecnológico. A indústria do vestuário transferiu-se dos países de origem, onde os trabalhadores já auferiam ordenados consideráveis, e implantou-se em Portugal, país europeu que se pautava por salários miseráveis. No período entre 1965 e 1977, foram vários os países mais desenvolvidos da Europa que viram reduzidas as suas taxas de emprego na indústria têxtil e do vestuário: Reino Unido (-31%), Bélgica (-32%), França (-24%), Holanda (-59%), República Federal da Alemanha (-24%), Dinamarca (-45%) e Suécia (-52%). Parte dos ganhos de emprego transitaram para os países menos industrializados do sul da Europa: Portugal (+55%), Espanha (+24%), Itália (+20%) e Grécia (+70%)2. Em Alhos Vedros, além da abundância de mão-de-obra pronta a explorar, as empresas estrangeiras encontraram ainda instalações disponíveis adequadas. Não foi preciso construir, as velhas fábricas de cortiça serviam, gerando concentração de empresas, acentuando um tipo de mono-indústria.

BIBLIOTECA E ARQUIVO HISTÓRICO DA SECRETARIA GERAL DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA (BAHSGME), cota IND/542. MESQUITELA, Teresa – Análise do Emprego e da Produtividade no Sector Têxtil Português. In A situação da Indústria Têxtil e do Vestuário em Portugal e a sua integração na Comunidade Europeia (artigos do “Boletim Euroexpansão”, n.º 5/83 a n.º 14/83). |s.l.|: Ministério da Economia, Secretaria-Geral, Centro de Documentação, p. 39. 2


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3.1 ADOMODA PRONTO-A-VESTIR

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Antiga fábrica da cortiça de Manuel de Sousa Serro Júnior, onde se instalou a Bore Confeções, Lda., Alhos Vedros. Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto. Em Alhos Vedros, as empresas de confeções encontraram mão-de-obra e instalações disponíveis.

Publicidade da Lander – Confecções, Lda. Imagem: Vitor Mendes. Publicidade da Lander no programa das Festas da Moita, em 1975. A fábrica de pronto-a-vestir da Lander localizava-se na Estrada Nacional, Moita, na antiga fábrica de cortiça de João Calvário.

uando, por alvará de 15 de junho de 1950, foram aprovados os estatutos do Sindicato Nacional dos Profissionais das Indústrias Têxteis do Distrito de Setúbal (abrangendo os distritos de Beja, Évora, Faro e Portalegre), o Sindicato representava os indivíduos que exerciam profissão no domínio da Indústria Algodoeira e de Redes de Pesca, da Indústria de Sedas, da Indústria de Passamanarias e Sirgaria, e da Indústria de Malhas3. De fora ficava o sector do vestuário, circunscrito praticamente às oficinas de alfaiataria e costura, algumas de grandes dimensões, com diversos trabalhadores, e outras de dimensões familiares, empregando ainda como mão-de-obra dois ou três assalariados, na produção de fatos por medida, com “ordenados e salários, inferiores ao mínimo indispensável”4. As costureiras, afetas ao sector do

ESTATUTOS do Sindicato dos Profissionais das Indústrias Téxteis do Distrito de Setúbal, Barreiro, Tipografia Comercial. BAHSGME, cota IND. 6841/59. MINISTÉRIO DA ECONOMIA, Secretaria de Estado da Indústria, Comissão do Plano de Fomento – Indústrias Têxteis, de Calçado e de Vestuário (Classes 23 e 24). Lisboa: Comissão do Plano de Fomento, 1964. 3 4


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vestuário, estavam agregadas no seu próprio sindicato. Têxteis e vestuário, constituíam sectores separados, vindo só mais tarde, após o grande desenvolvimento da indústria do vestuário, a constituir-se o sector das ITV (indústrias têxteis e vestuário). Em 1959, existiam em Portugal 7090 empresas de artigos de vestuário, empregando 27983 indivíduos (3,94 indivíduos por empresa), que trabalhavam em média 153 dias por ano5. No distrito de Setúbal a média reduzia-se para 142 dias de trabalho por ano. Era o reflexo de um sector ainda artesanal, uma arte que contava com a sensibilidade, o gosto e a habilidade e à qual repugnava “a produção em série e a mecanização”6. O mundo industrializado, da produção em série de produtos padronizados, do imediatismo e do quotidiano frenético, acabaria por operar também a transformação nos hábitos de vestir das populações levando à adoção, generalizada, do “pronto-a-vestir”, em detrimento dos fatos feitos por medida, moldados ao corpo. O tempo da compra do tecido no retalhista, da encomenda da confeção da peça ao alfaiate local, das deslocações sucessivas à alfaiataria ou atelier de costura para provas, deu lugar à roupa feita em série, mecanizada, desenvolvendo-se a indústria de confeções, para todo o tipo de roupa: para homem, para mulher e criança, roupa exterior e interior. A fabricação em série reduz os preços do vestuário e o consumo massifica-se. Muda a moda, modifica-se a produção, e altera-se a integração corporativa da atividade, reformando-se os estatutos do Grémio Distrital dos Industriais de Alfaiataria de Lisboa, com estatutos de 1939, que passará denominar-se Grémio Regional da Indústria de Vestuário do Sul, em 1966.

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Ibidem. Ibidem.


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NOVO 3.2 OE AESTADO MÃO-DE-OBRA BARATA

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Atelier de costura da Casa Paris em Lisboa (1911). Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa. Coleção Joshua Benoliel. PT/AMLSB/JBN/002339. Costureiras executando um vestido.

Estatuto dos Sindicato Nacional dos Profissionais das Indústrias Têxteis de Setúbal (1950). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: S.C. 16034//10 P. Em 1950, têxteis e vestuário constituíam sectores separados.

onsolidado o padrão da moda do “pronto-a-vestir”, intensificando as solicitações dos mercados, o crescimento da indústria de confeções e a procura da otimização das taxas de lucro por parte das empresas, da rentabilidade, apesar dos progressos tecnológicos que permitem a produção em série, privilegiará a redução de custos com recurso ao controlo de salários, recorrendo à mão-de-obra barata. E é, precisamente, a vantagem da mão-de-obra barata que os capitais estrangeiros encontram em Portugal, instalando indústrias orientadas para a exportação: “… a barateza da nossa mão de obra, reduzindo consideravelmente o custo de produção, cria condições óptimas de concorrência”7. A possibilidade de explorar o trabalho intensivo e a muito baixo preço, num quadro de legislação laboral do Estado Novo, muito favorável às empresas, constituiu um dos fatores para a instalação da nova indústria de confeções. O rendimento per capita dos portugueses era, em 1955, antes da adesão à EFTA, de 200 dólares8, o mais baixo entre os países da Organização

7 8

Ibidem. LEITÃO, N. Andresen – Estado Novo Demografia e Europa 1947-1986. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007, p. 48.


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Europeia de Cooperação Económica (OECE), mais tarde OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico). Suecos e britânicos tinham um rendimento per capita de 850 e 780 dólares, respetivamente9. Os salários são baixos, mas a produtividade da mão-de-obra portuguesa também é baixa, muito inferior. Determinante, então, para a instalação das empresas, é a questão da rentabilidade obtida em todo o processo de produção, atingida pela redução de custos e não pelo aumento da produtividade. Para a manutenção da mão-de-obra barata contribuía a "... manutenção artificial de um baixo custo de vida, resultante da fixação de preços baratos à agricultura nacional"10. No final dos anos 70 do século XX, a baixa produtividade no sector têxtil ainda era relevante, derivado de problemas estruturais: “Se compararmos com a CEE os índices de produtividade do sector têxtil verificamos que em Portugal tais índices são mais baixos, passando-se o mesmo com os salários médios praticados em Portugal. É que, enquanto a produtividade líquida por empregado é 22,5% da da RFA, 31,7% da da França, 55,6% da do Reino Unido e 66,6% da da Itália, o salário médio horário têxtil português é 19,7% do da RFA, 28,3% do da França, 28,9% do do Reino Unido, 41,7% do da Itália e 20,4% do do conjunto do Mercado Comum”11.

Costureiras. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. A vantagem da mão-de-obra barata constituiu um atrativo para a instalação de empresas estrangeiras de confeções de vestuário no país.

Ibidem. LAINS, Pedro – O Estado e a industrialização em Portugal, 1945-1990. In Análise Social, vol. XXIX, n.º 128. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1994, p. 933. 11 CARVALHAS, Carlos (diretor) – O sector têxtil e o Mercado Comum. In Economia: Questões Económicas e Sociais, n.º 30. Lisboa: Editorial Avante!, 1980, p. 19. 9

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3.3 AÀ ADESÃO EFTA

ortugal apresentava, nas vésperas da assinatura da Convenção de Estocolmo, que instituiu a EFTA (European Free Trade Association), (Associação Europeia de Comércio Livre), em 1960, o mais baixo PIB per capita da OECE, quase cinco vezes inferior ao da Suécia12. Era o reflexo de um país dominado por uma filosofia conservadora, que privilegiava o mundo rural e que poucas oportunidades tinha concedido à modernização da indústria. A EFTA proporcionará ao país um campo de comércio livre, mas protegido, uma vez que Portugal se encontrava muito distante dos índices de desenvolvimento industrial dos seus parceiros, pelo que a concessão de um regime especial de proteção tarifária da produção das indústrias portuguesas não afetaria nocivamente os outros países. Através da EFTA Portugal acede a novos mercados, mais exigentes, que aconselham a melhoria e a constância do produto, a entrega atempada, provocando o aumento da qualidade e beneficiando as exportações13. Portugal aproveita a adesão à EFTA. O vestuário foi o subsector que registou um maior dinamismo “… manifesto na instalação de novas unidades que procuraram aproveitar as vantagens que jogavam a nosso favor em termos de comércio internacional”14. Como salienta Martins et. al: "... o acordo com a E.F.T.A. em 1958 esteve na origem de um boom nas exportações de vestuário para aquela zona mormente pela instalação em Portugal de múltiplas unidades montadas com capitais ingleses, suecos, alemães e franceses”15. O investimento estrangeiro, que se orientou quase exclusivamente para a indústria do vestuário, procurou “… tirar partido dos baixos salários praticados em Portugal, das facilidades concedidas ao capital estrangeiro e, ainda, das vantagens que o acordo EFTA concedia às exportações portuguesas”16. Os investimentos das filiais estrangeiras orientaram-se “… sobretudo para os sectores de exportação e de maior intensidade do factor trabalho, atraídos pelas extraordinárias condições que permitiam a produção a baixo custo (mão-de-obra barata, matérias-primas coloniais a bom preço, etc.) e ainda pelas facilidades concedidas quanto à repatriação de lucros e as decorrentes do acordo comercial com a EFTA”17.

RAMOS, Rui (coord.) – História de Portugal, 3.ª edição. |s.l.|: A Esfera dos Livros, 2010, p. 685. SOUSA, Alfredo – Os anos 60 da nossa economia. In Análise Social, vol. XXX, n.º 133. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1995, p. 615. 14 BAHSGME, cota IND/1826. MARTINS, Vitor |et al.| – Elementos para uma análise da situação das indústrias têxteis e do vestuário em Portugal. |s.l.|: Ministério da Indústria e Tecnologia, Direcção-Geral das Indústrias Têxteis e do Vestuário, 1977, p. 13. 15 Ibidem, p. 14. 16 Ibidem, p. 102. 17 FERREIRA, Ilda – O sector têxtil e o Mercado Comum. In CARVALHAS, Carlos (diretor) – Economia: Questões Económicas e Sociais, n.º 30. Lisboa: Editorial Avante!, 1980, p. 66. 12

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Em 1964, o incremento da produção de artigos de vestuário confecionados, derivado da limitada capacidade produtiva, ainda não permitia responder convenientemente às solicitações dos mercados estrangeiros, pela dificuldade em produzir grande número de peças. Contudo, assinala o Relatório preparatório do Plano de investimentos para 1965-67, que é incontestável o “… prestígio no estrangeiro da nossa indústria de confecção”18, e refere ainda: “Quer as confecções masculinas e femininas quer as de criança têm evoluído sob o ponto de vista técnico e artístico, podendo competir com qualquer produção estrangeira, especialmente o vestuário para criança está a ser alvo da atenção do mercado externo (países do mundo ocidental, designadamente a Alemanha e Estados Unidos da América do Norte)”19. Nos anos 60 do século XX o sector têxtil representa, ao nível do emprego, 1/3 da indústria transformadora e ¼ do valor das exportações portuguesas20. Dentro da EFTA, a Grã-Bretanha foi o parceiro económico que mais comprou a Portugal21.

Fiação. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. Nos anos sessenta do século XX, o sector têxtil emprega 1/3 dos trabalhadores da indústria transformadora. O subsector do vestuário foi o que mais beneficiou com a adesão à EFTA.

BAHSGME, cota IND. 6841/59. MINISTÉRIO DA ECONOMIA, Secretaria de Estado da Indústria, Comissão do Plano de Fomento – Indústrias Têxteis, de Calçado e de Vestuário (Classes 23 e 24). Lisboa: Comissão do Plano de Fomento, 1964. 19 Ibidem. 20 MESQUITELA, Teresa, ibidem, p. 33. 21 Ibidem. 18


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3.4 CORPORATIVISMO

uando Portugal adere à EFTA, em 1960, a economia encontra-se subjugada à doutrina corporativista imposta pelo Estado Novo. O controlo das atividades económicas é exercido por grémios, que definem orientações, dirigem e fiscalizam o exercício da atividade, compreendendo a limitação da concorrência, a cooperação entre industriais, o equilíbrio ou concertação da atividade, entre outros, revelando-se o condicionamento industrial como um importante instrumento do controlo da produção. Em causa, a concretização de políticas de concertação de interesses e harmonização da economia. Com a implantação e desenvolvimento célere da indústria do vestuário o Estado depara-se com uma atividade em franco progresso, mas sem controlo corporativo. Para a superação dessa lacuna aponta o relatório preparatório do Plano de Investimentos do Estado, para 1965-67, sugerindo, concretamente: “a) Que se regulamente o acesso à indústria do vestuário condicionando-a à prova antecipada de um mínimo de idoneidade técnica, financeira e moral; b) Que se estenda a todo o país e a todas as secções da indústria de vestuário, a organização corporativa (alargamento de área e âmbito dos Grémios existentes); c) Que se estabeleça, através dos Grémios, o regulamento económico-disciplinar para prevenir os actos abusivos e fraudulentos”22. O relatório preconiza, ainda, a criação de escolas técnicas e de preparação profissional, a abertura de créditos à pequena indústria, a abolição dos encargos alfandegários da importação de máquinas para a indústria do vestuário, bem como a eliminação dos encargos alfandegários sobre os produtos destinados à exportação23. Não demorou muito, em 13 de dezembro de 1966 a indústria do vestuário era incorporada na organização corporativa, com a aprovação dos estatutos do Grémio Regional da Indústria de Vestuário do Sul, substituindo o Grémio Distrital dos Industriais de Alfaiataria de Lisboa, de 1939. O Grémio integrava e representava as pessoas singulares ou coletivas que se dedicassem às seguintes atividades:

BAHSGME, cota IND. 6841/59. MINISTÉRIO DA ECONOMIA, Secretaria de Estado da Indústria, Comissão do Plano de Fomento – Indústrias Têxteis, de Calçado e de Vestuário (Classes 23 e 24). Lisboa: Comissão do Plano de Fomento, 1964. 23 Ibidem. 22


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“1.º – Confecções por medida de trajos civis, fardamentos militares e civis, vestes sacerdotais, trajos universitários, forenses e profissionais; 2.º Fabricantes de fatos, calças, coletes, sobretudos, casacos, de homem, senhora e criança, vestidos, saias, blusas, gabardines, uniformes e fardas; 3.º – Modistas e costureiros que trabalhem com artigos seus – tecidos de lã, seda, algodão, pele de abafo, etc. – as que confecionam com artigos fornecidos pelos clientes e as bordadoras; 4.º – Fabricantes de camisas, pijamas, roupões, cuecas, roupas interiores de senhora e criança, gravatas, ligas e lenços.”24 Estatutos do Grémio Regional da Indústria de Vestuário do Sul (1966) e Estatutos da Associação dos Industriais de Vestuário do Sul (1975). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cotas: S.C. 27362 V. e S.C. 40339 V. Durante o Estado Novo a economia encontrava-se subjugada à doutrina corporativista. Após Abril, a constituição de associações é livre.

Além da promoção e manutenção dos interesses económicos dos industriais, o Grémio deveria assegurar as funções políticas a que se obrigava enquanto instituição do Estado Novo, entre os quais repudiar a luta de classes25. Na prática, a proteção do Estado favorecia a concentração da riqueza nacional nas mãos dos industriais. Com o 25 de Abril o Grémio passou a Associação dos Industriais de Vestuário do Sul, em 1975, como “… entidade livremente constituída…”26, e tinha por fim “… o estudo e defesa dos interesses relativos à indústria, competindo-lhe, para tanto, promover e praticar tudo quanto possa contribuir para o respectivo progresso técnico, económico ou social…”27. A Associação velará pelos interesses dos industriais, definindo linhas comuns de atuação, pela estruturação e dimensão do sector, pelas representações oficiais junto de organismos congéneres, promoção da formação e qualificação da mão-de-obra28, entre outros.

ESTATUTOS do Grémio Regional da Indústria de Vestuário do Sul – Lisboa. 1967, pp. 5-6. Ibidem. 26 ESTATUTOS dos Industriais de Vestuário do Sul – Lisboa. 1975, p. 3. 27 Ibidem, p. 5. 28 Ibidem. 24 25


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DE FÁBRICAS 3.5 ADEINSTALAÇÃO CONFEÇÕES DE VESTUÁRIO NO CONCELHO

m meados dos anos 60 do século XX, a dinâmica da região de Setúbal no âmbito do desenvolvimento da indústria corticeira perde fulgor, emergindo em seu lugar, como centro do negócio das cortiças, o distrito de Aveiro. Além da iniciativa da região norte, que se especializou na indústria rolheira, com mais valor acrescentado, entre outros fatores decisivos, os salários na indústria corticeira da zona de Setúbal eram mais elevados, verificando-se em alguns casos diferenças superiores a 10% entre as tabelas praticadas, o que terá contribuído também para a perda de primazia no sector. De facto, no Contrato Colectivo de Trabalho de 1962, aplicado à indústria corticeira, na tabela de salários um escolhedor de prancha em Setúbal (2.ª zona) recebia 52$00, enquanto em Aveiro (1.ª zona) a mesma categoria profissional auferia 46$0029. Os salários em Setúbal eram ainda superiores aos da 3.ª zona (Portalegre, Évora, Beja e Faro). Mas não é na constatação das diferenças de salários que encontraremos o despontar da crise, antes assomará das próprias características das indústrias locais, muito ligadas à preparação de prancha. Os próprios alhosvedrenses possuíam uma visão muito cética em relação à tecnologia das fábricas de cortiça locais: "Assim observamos aqui e por outras terras a montagem do que para ahi chamam fabricas de cortiça. É a perfeita negação do termo. Acaso essas casas modernamente construídas veem desenvolver a indústria rolheira e seus derivados? Não vimos que assim seja. Essas sumariamente adequadas ao comercio da cortiça, montam uma caldeira onde dão um banho em água quente aquella; uma escolha e calibre desconexo, e ei-la ahi vai alimentar a grande indústria em paizes onde o clima não cria cortiça".30

CONTRATO Colectivo de Trabalho entre os Grémio dos Industriais de Cortiça do Centro, Grémio Regional dos Industriais de Cortiça do Sul e os Sindicatos Nacionais dos Operários Corticeiros dos Distritos de Lisboa, Setúbal, Évora, Faro, Portalegre e Sindicato Nacional dos Contínuos, Porteiros e Profissões Similares do Distrito de Lisboa (1962) – |s.l.|: |s.n.|, p. 29. 30 ORIENTE, Orgão quinzenário, propriedade do Clube Recreio e Instrução, edição de 19 de março de 1922, p. 2. 29


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Contrato Colectivo de Trabalho entre os Grémio dos Industriais de Cortiça do Centro, Grémio Regional dos Industriais de Cortiça do Sul e os Sindicatos Nacionais dos Operários Corticeiros dos Distritos de Lisboa, Setúbal, Évora, Faro, Portalegre e Sindicato Nacional dos Contínuos, Porteiros e Profissões Similares do Distrito de Lisboa (1962). Imagem: Vitor Mendes. A tabela de salários encontrava-se dividida em três zonas. As indústrias do distrito de Setúbal pertenciam à 2ª zona, com vencimentos mais elevados.

Em Alhos Vedros também se produzem rolhas de cortiça e outros artigos com mais valor acrescentado. Contudo, a dedicação ao trabalho de preparação da cortiça em prancha tornará as fábricas mais suscetíveis às variações no mercado da matéria-prima, problema que, um pouco mais tarde, em 1974, os industriais reunidos em Alhos Vedros deixarão transparecer, alertando para a necessidade de criação de uma associação dos industriais para se conseguir "… menor concorrência na compra de matéria-prima; defesa da indústria da acção parasitária dos intermediários; obtenção de menores custos de produção pela mecanização das empresas"31. Pelas preocupações dos industriais de Alhos Vedros, alterações na ascendência sobre o negócio da compra das cortiças nos montados de sobro terão tido consequências na viabilidade das empresas. Saliente-se, no entanto, que o principal produto e o mais valioso das cortiças, as rolhas, foi transitando ao longo dos anos do distrito de Setúbal para o distrito de Aveiro. Em 1955, a produção de rolhas em Setúbal (3090 toneladas) é superior à de Aveiro (2925 toneladas)32. Contudo, passados 25 anos, a produção de rolhas em Aveiro já é 15 vezes superior à de Setúbal33. Em 1948, no Jornal do Comércio34, é publicado um extenso artigo de opinião de Aldemiro Mira, industrial de Alhos Vedros, sobre a crise da indústria rolheira. Sublinha o industrial a questão das diferenças nas tabelas salariais, que permitem ao norte economias nos salários em 50%, propondo por isso a igualdade de salários no sector. Avança ainda, entre outros, com a sugestão da extinção da indústria caseira, bem como da obrigatoriedade de 3 dias de trabalho semanal. Na prática, circunscreve-se a questões de rentabilidade e de manutenção de garantia dessa mesma rentabilidade e passa ao lado da modernização do sector ou da evolução da maquinaria. No mesmo jornal, mas em edição de 12 de junho de

O SÉCULO, edição de 19 de maio de 1974, p. 7. BOLETIM do Instituto dos Produtos Florestais, Cortiça, n.º 532, 1983, p. 40. 33 Ibidem. 34 JORNAL do Comércio, edição de 15 de maio de 1948, p. 1 e 5. 31 32


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194835, é publicada uma resposta à opinião de Aldemiro Mira, da autoria de Manuel Martins, sob a crise na indústria rolheira, que contesta, com números, que a indústria rolheira não tem sofrido um retrocesso, mas sim uma evolução, espelhada no aumento regular da exportação de rolhas. No princípio dos anos 80 do século XX as fábricas de cortiça em Aveiro são quase exclusivamente dedicadas à rolha (indústria rolheira) enquanto no distrito de Setúbal esse valor se fica por metade. No coração da crise, depois de sucessivos anos de crescimento da indústria corticeira em Alhos Vedros o ciclo inverte-se, obrigando alguns industriais locais a cancelar inscrições da atividade na Junta Nacional de Cortiça, levando ao despedimento de trabalhadores e ao encerramento de fábricas. Por exemplo, os boletins da Junta Nacional da Cortiça36 mencionam, nos anos de 1967 e 1968, alguns pedidos de baixa ou cancelamento de inscrições dos seguintes industriais de Alhos Vedros: Francisco Afonso Madeira, João Afonso Madeira, Joaquim da Silva Matias, Manuel José da Silva Matias, Amadeu Correia Caleiras, Corchera Portuguesa, Lda., J. M. Sancho e Filhos, Lda., J. J. Carvalho, Lda., João José Sancho e C., Rodrigo dos Santos, Lamartine dos Anjos Liz, Corça – Fábrica de Aglomerados de Cortiça, Lda., Manuel de Brito Junior e João Martins. É nos grandes armazéns de cortiça, amplos e disponíveis, que se irão instalar as primeiras fábricas de confeções de vestuário, casos da Sejotex, Fex, Gefa. Na fábrica de cortiça de Manuel de Sousa Serro Júnior será instalada a Bore, em 1967. No pedido de instalação da fábrica de confeções Gracinda Flores, Lda., de 1971, percebemos que não são apenas as instalações da cortiça que se adaptam à indústria de vestuário, antevê-se que os trabalhadores da cortiça transitem também de funções:

A Gefa implantou as suas instalações em três fábricas de cortiça desativadas. Imagem: Júlio Serra.

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JORNAL do Comércio, edição de 12 de junho de 1948, p. 1 e 3. BOLETIM da Junta Nacional de Cortiça, vol. XXIX, n.º 347, edição de setembro de 1967, p. 167.


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"Sobre o pedido de instalação de uma indústria de confecção de vestuário em Alhos Vedros requerido por Gracinda Flores, Lda., a Câmara Municipal: Considerando que o edifício já se encontra construído e que nele já funcionou a mesma indústria; Considerando que anteriormente o edifício se destinou a fábrica de cortiça e que a indústria agora pretendida substitui aquela com vantagem pois não é nociva nem poluidora; Considerando que é do maior interesse para o concelho e para a Vila de Alhos Vedros esta instalação quer no aspecto económico quer ainda no aspecto social; Considerando que é um dos meios para absorver a mão de obra deixada pelo encerramento da indústria corticeira a atravessar grave crise; Considerando que a instalação pretendida não altera o actual condicionalismo em relação à futura execução do ante-plano de urbanização em apreciação. Delibera por unanimidade dar parecer favorável à instalação da referida indústria que reputa do maior interesse para a vila de Alhos Vedros e corresponde aos superiores interesses do concelho."37 A identidade industrial de Alhos Vedros, a identidade operária, a familiarização com a vida de fábrica, constituem fatores relevantes para instalação das fábricas de confeções de vestuário. O avolumar de unidades industriais, a concentração industrial, atrai também mais trabalhadoras, facilitando o recrutamento ou a mobilidade. As fábricas terão sempre mão-de-obra disponível, e as trabalhadoras vagueiam de fábrica em fábrica. Multinacionais, como a Gefa, e a instalação de outras fábricas de menores dimensões, irão promover o desenvolvimento da especialização local na produção de artigos de vestuário. Enquanto a indústria de confeções de vestuário de Alhos Vedros se instala nas antigas fábricas de cortiça, na Moita algumas das fábricas de confeções, embora de menores dimensões, irão instalar-se em antigos armazéns de apoio às explorações agrícolas, casos da Charepe – Confecções, Lda, na Rua Liége, da Modimoita – Confecções, Lda., na Rua do Parque. A Lander Confecções, Lda., instalar-se-á numa velha fábrica de cortiça, de João Calvário, na Estrada Nacional, e a Convex construirá as suas próprias instalações em terreno agrícola, no Chão Duro. Durante toda a década de 60 a economia do país transforma-se e em 1970 dois terços das exportações “… eram geradas pela indústria, que empregava um milhão de portugueses (33% da população activa) em três sectores principais: têxteis, vestuário e calçado (36% da mão-de-obra industrial), metalurgia e máquinas (21%), e madeira, cortiça e mobiliário (15%)”38. Em 1978, dos 434 estabelecimentos de confeções de vestuário existentes, mais de metade situava-se entre os escalões de

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ARQUIVO MUNICIPAL DA MOITA, Livro de atas de Reunião de Câmara de 1971, reunião de 17 de dezembro de 1971, fl. 2. RAMOS, Rui (coord.), ibidem, p. 687.


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Contentores com carregamento destinado à cidade de Tranemo, Suécia, sede da Gefa. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. Nos anos de 1974, 1975 e 1976, o subsector do vestuário lidera as exportações no sector da indústria têxtil e vestuário. No final dos anos oitenta do século XX, a Moita é considerada altamente especializada na indústria do vestuário e é o maior empregador do sector no distrito de Setúbal.

20-49 pessoas e 50-99 pessoas39. Acima de 500 pessoas, haviam 7 empresas, nenhuma chegava aos 1000 trabalhadores. Entre 1971 e 1981, o valor bruto da produção das confeções passa de 11,5% para 19,7% do total do sector40. A maior subida regista-se entre 1974 e 1975, de 13,4% para 16,5%41. Os indicadores do valor acrescentado bruto acompanham, passando de 9,4% (1971) para 19,1% (1979), com a maior subida também entre 1974 (11,7%) e 1975 (14,8%)42. Entre 1970 e 1973, o fabrico de vestuário de tecido ocupa o segundo lugar nas exportações dos subsectores da indústria têxtil e vestuário43. Contudo, nos anos de 1974, 1975 e 1976, já ocupa o primeiro lugar da lista, apesar de ligeira quebra em termos de valores absolutos. A Moita destaca-se como concelho altamente especializado na indústria do vestuário e o maior empregador do sector no distrito de Setúbal, no final dos anos 80 do século XX.

BAHSGME, cota IND/2315. MENDES, Carlos M. S., DUARTE, F. R. G., ANDREZ, Jaime, SUMMAVIELLE, Teresa M. A. B., – Situação da Indústria Têxtil e do Vestuário Enquadramento do seu Desenvolvimento. Lisboa: Ministério da Indústria e Energia, Direcção Geral da Indústria, 1984, p. 154. 40 Ibidem, p. 156. 41 Ibidem, p. 157. 42 Ibidem, p. 159. 43 Ibidem, p. 171. 39


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A história44 da indústria de confeções de vestuário no concelho da Moita terá tido início, pelos registos que conseguimos consultar, em meados dos anos 60 do passado século, com a instalação da Sejotex45, em Alhos Vedros. Em janeiro de 1965, a Sejotex – Indústria e Exportação de Texteis, Lda. solicitava, ao Gabinete do Plano Director da Região de Lisboa, autorização para explorar uma indústria de confeções de roupa, fabrico de botões, fabrico de malhas e bordados. A sede era no lado sul da Rua Miguel Bombarda, Alhos Vedros46. Em abril de 1966, a Fex – Fabrico e Exportação de Texteis, Lda., indústria de confeção de roupas, fabrico de botões, fabrico de malhas e bordados, com sede na Rua Miguel Bombarda, solicitava ao Gabinete do Plano Director da Região de Lisboa para ser dispensada de usar a anterior denominação de Sejotex – Indústria e Exportação de Texteis, Lda47. Em maio de 1966, a Fex requeria autorização para instalar na sua sede uma nova unidade de fabrico de roupas e vestuário. Anexo ao requerimento, a descrição do pessoal e recursos: 400 mulheres e 60 homens, diversa maquinaria, entre as quais 270 máquinas de costura48. Em Abril de 1967,

Planta de implantação da Sejotex, Indústria e Exportação de Texteis, Lda., na Rua Miguel Bombarda, Alhos Vedros. Imagem: Biblioteca e Arquivo Histórico da Secretaria Geral do Ministério da Economia. Processo: Guston – Confecções, Lda. Direcção Regional da Economia de Lisboa e Vale do Tejo. Cota: PT/ACE/DRELVT/DSIRG/001/01258. A Sejotex implantou as suas instalações numa antiga fábrica de cortiça, em 1965. Sucederam-lhe, no mesmo local, a Fex e a Gefa.

O âmbito deste trabalho não é historiar de modo desenvolvido a génese e evolução individual das empresas de confeções de vestuário que se localizaram na Moita, pretende apenas indicar algumas referências que foi possível situar durante a pesquisa. Esta perspetiva não afetará, certamente, a ideia de conjunto que queremos iluminar sobre a indústria de vestuário na Moita. 45 BAHSGME, Guston – Confecções, Lda. Direção Regional da Economia de Lisboa e Vale do Tejo. Cota: PT/ACE/DRELVT/ DSIRG/001/01258. 46 Ibidem. 47 Ibidem. 48 Ibidem. 44


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era constituída uma sociedade comercial por quotas, com sede na Baixa da Banheira, tendo como objeto as confeções de vestuário. A sociedade denominava-se Gefa A.B. e possuía como sócios Erik Robert Lennart Gustavson e Helhis Ingegerd Viola Gustavson, ambos suecos. Em 1971, a Gefa – Confecções. Lda., pede para averbar o seu nome à Fex. A laboração da Gefa repartia-se, então, entre os edifícios localizados nos números 9 e 10 da Rua Miguel Bombarda, respetivamente, de um e do outro lado da estrada nacional49. Em março de 1971, é feita uma averiguação às máquinas instaladas na Gefa. No relatório do agente fiscal, consta a seguinte descrição, que nos dá uma ideia do trabalho desenvolvido, bem como da dimensão da fábrica: “263 máquinas de ponto corrido, 21 máquinas de bainhas, 49 máquinas de cose corte, 37 máquinas de mosquear, 40 máquinas de pedestais, 19 máquinas de cosas, 1 máquina de elásticos, 3 máquinas de passadores, 53 máquinas de duas agulhas, 23 máquinas de casear, 19 máquinas de pregar botões, 2 máquinas de vácuo, 1 máquina de rebites, 5 máquinas de botões rápidos, 13 prensas de engomar, 1 máquina de secagem, 3 máquinas de fitas de serra 6 carros de estender tecido.”50 O relatório contabilizava 559 máquinas. Em abril de 1971, nova visita do agente fiscal da Direcção-Geral dos Serviços Industriais. São enumeradas novas máquinas: 3 de pregar grampos, 3 de pregar etiquetas, 1 de ponto invisível, 7 de cose e corte com ponto de segurança, 28 de meter algibeiras, 6 ferros de engomar a vapor, 4 mesas com tapete rolante. O técnico conclui: “… em face do presente inventário e do estudo comparativo com o respectivo processo, verifica-se que a firma alterou o ciclo fabril com ampliação do equipamento e das secções oficinais, encontrando-se em laboração com inobservância das disposições regulamentares, nomeadamente, sem aprovação das condições de salubridade, higiene, segurança, comodidade e técnico-funcionais”51. Foi levantado o respetivo auto. O ciclo de crescimento da indústria Ibidem. Ibidem. 51 Ibidem. 49 50


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Trabalhadoras nas máquinas de costura (Gefa). Imagem: Teresa Araújo.

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Trabalhadora junto a prensa (Gefa). Imagem: Teresa Araújo.

de vestuário leva também à ampliação das fábricas e incorporam-se novas máquinas. Fazem-se remodelações, muitas das vezes mais rápidas que os processos de licenciamento e as transgressões parecem constituir-se como padrão de ação, não constituindo as multas fator de dissuasão. Pela transgressão em causa foi aplicada à Gefa a multa de 1.250$0052. Os pedidos de prorrogação para regularização de situações, aprovação de projetos e execução de obras são também recorrentes. Em outubro de 1974, nova informação do agente fiscal, relatando que a Gefa “… se encontrava em laboração sem a aprovação das condições prescritas no R.I.L.E.I., pelo que foi levantado o auto de transgressão”53. Em 1976, a 3ª Circunscrição Industrial, após vistoria, autoriza o funcionamento experimental por 90 dias, desde que sejam cumpridas as seguintes condições: “1º - Melhorar a temperatura ambiente nas oficinas de corte e na oficina de costura n.º 2; 2.º - Nas operações de soldadura eléctrica devem observar-se a seguintes condições de segurança: a) Durante a soldadura o local deve estar resguardado da vista do restante pessoal por biombo ou outro meio adequado; b) O pessoal deve trabalhar sobre estrados isoladores e usar calçado próprio, avental de couro, luvas e óculos ou viseira com vidros inactíneos. 3.º - Manter devidamente resguardada a serra circular de molde a não resultar perigo do seu funcionamento e uso.”54 Ibidem. Ibidem. 54 Ibidem. 52 53


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A descrição das beneficiações necessárias, revela as situações de insegurança e saúde a que os trabalhadores se encontravam sujeitos. Em 1979, outra notificação dos serviços da indústria informando que ainda não foram cumpridas as condições de laboração exigidas em 1975, designadamente: “– Boa iluminação natural nos locais de trabalho; – Ventilação da Secção de prensas; – Porta a abrir para fora; – Lanternas de emergência; – Resguardo das esmeriladoras e palas de protecção; – Protecção lateral do monta-cargas; – Instalações sanitárias e sociais de harmonia com os regulamentos em vigor, quer em número em função do pessoal, quer ainda de forma de construção, lambrim impermeável e liso nas paredes das retretes, chuveiros nos recintos de retretes, etc.”55 Em 1977, a Gefa – Confecções Lda., ocupa um lugar de destaque no volume de exportações (35.º), segundo o Fundo de Fomento de Exportação. Enquadra-se no grupo de empresas que exportam entre 100.001 a 200.000 contos56. A Gefa integra-se no grupo de 19 empresas suecas no sector das confeções, que representam 32,2% do total57. Em 1981, o capital social da empresa é aumentado para 20.000.000$00, distribuídos entre uma sociedade alemã, a AG Fur Beteiligung Und Beratung (18.000.000$00) e os sócios fundadores (2.000.000$00). Em 1983, a Gefa decide ampliar as instalações. Máquinas de costura a laborar: 536. A Administração Regional de Saúde de Setúbal, após visita à fábrica, informa, assim, o diretor da Delegação Regional de Évora: “As instalações em causas são antigas, tanto nas zonas de trabalho como também nas instalações sanitárias. Nesta altura andam em obras para melhorar as condições de trabalho, que para alem de serem ligeiramente insuficientes, não têm luz natural suficiente, o que obriga à luz artificial durante todo o dia, o que prejudica a vista dos trabalhadores. As instalações sanitárias antigas não têm pé-direito suficiente e, para além disso, têm falta de ventilação, não dispõem de cabine de chuveiro e, por vezes, é na própria instalação da retrete que se encontra o chuveiro.”58

Ibidem. FERREIRA, Ilda – O sector têxtil e o Mercado Comum. In CARVALHAS, Carlos (diretor) – Economia: Questões Económicas e Sociais, n.º 30. Lisboa: Editorial Avante!, 1980, p. 61. 57 Ibidem, p. 63. 58 BAHSGME, ibidem. 55 56


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As referências à melhoria das condições de laboração dos trabalhadores são uma constante. Em novembro de 1984, novo auto de transgressão levantado à Gefa, com multa de 3750$0059. Em julho de 1985, outro auto, por se encontrar a laborar sem vistoria60. Em julho de 1986, mais um auto de transgressão61. Em 1985, a Gefa e a Reyran – Gabiente de Estudos Técnicos e Traduções, constituem uma sociedade que adota a denominação de Guston – Confecções Lda. Em fevereiro de 1985, a empresa adquiriu o terreno onde se encontrava instalada, e construiu “… nele três naves com 8.000 m2 de área coberta no total, operação em que despendeu (terreno e construção) 241.000 contos”62. Em 1988, a Gefa constrói “… mais quatro naves com cerca de 13.800 m2 de área coberta”, passando a dispor de “… área coberta industrial de cerca de 21.800 m2”63. Em outubro de 1988, entram no capital da sociedade a Denison Limited, com sede no 31-B Dervy Road Douglas, Ilha de Man, Grã-Bretanha, e a Trentworth Limited, na mesma sede, por cedência de quotas da AG Fur Beteiligung Und Beratung. Em novembro de 1988, os sócios fundadores cedem a sua parte à Trentworth Limited. Em fevereiro de 1990, foram nomeados gestores da sociedade Hellis Ingegerd Viola Gustavson e Marcus Lennart Joachim Gustavson. Em abril de 1990 foi aumentado o capital da sociedade para 764.533.500$00. Em 1990, a Câmara Municipal da Moita solicita vistoria à Gefa, por alegadamente se encontrar a lançar “… as águas residuais não tratadas, para as marinhas existentes”64. Em 1992, muda a administração da Gefa. A empresa, então em situação difícil, com 500 trabalhadores, solicita uma audiência ao Secretário de Estado da Segurança Social, para regularização da dívida à Segurança Social65. Em 1996, é decretada a falência provisória da Gefa.

Trabalhadoras na seção de corte (Convex). Imagem: Cristina Campante.

Ibidem. Ibidem. 61 Ibidem. 62 NÚCLEO DE ARQUIVO E DOCUMENTAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO, SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL (NADMTSSS), Cx. 7602. Ofício da GEFA - CONFECÇÕES, LDA., de 8 de setembro de 1992, ao Secretário de Estado da Segurança Social. 63 Ibidem. 64 Ibidem. 65 Ibidem. 59 60


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A implantação da indústria de vestuário na freguesia da Moita é posterior à de Alhos Vedros, e a Convex, instalada no Chão Duro, é a mais representativa. Em meados de 1970, a Sociedade Industrial de Penteação e Fiação de Lãs, S.A.R.L., com sede em Unhais da Serra, Covilhã, proprietária de um terreno com a área 12.000m2 no Chão Duro, requer à Câmara Municipal da Moita autorização para construção de um edifício fabril, destinado a fábrica de confeções66. A unidade industrial que a requerente pretende instalar situa-se fora da área que o anteplano do concelho prevê como zona industrial. No entanto, dado se constatar que aquele tipo de indústria não afetaria o aglomerado populacional o parecer é favorável. Em agosto de 1970, é informado o deferimento. O Gabinete do Plano Director da Região de Lisboa também dá parecer favorável, em novembro de 1970, mas alerta a Câmara para "... os inconvenientes de consentir na sistemática disseminação das instalações industriais ou de apoio industrial que prossegue, relegando-se para segundo plano a concretização de áreas industriais organizadas – situação de que não poderá deixar de resultar inconveniente e que importa controlar pela criação de medidas de fomento de fixação industrial urgentes, nas zonas a tal identificadas". O processo foi acompanhado pela empresa Manalco, Manufactura Nacional de Confecções, Lda., localizada em Lisboa, na Rua Saraiva de Carvalho, empresa da qual transitarão os trabalhadores que irão, mais tarde, abrir a Convex. Em 31 de dezembro de 1971, o engenheiro responsável pela obra declara que a fábrica se encontra concluída. Em 1972, a empresa solicita vistoria e licença de ocupação e começa a laborar. Em 1986, os acionistas da Convex decidem aumentar o capital social da firma de 29.539.000$00 para 120.000.000$. Em 1987, os acionistas apreciam o contrato de viabilização, com os bancos Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa e Banco Totta & Açores. Em março de 1989, apesar dos resultados de gestão gerarem lucros de 2.930.348$70, são relatadas as "... dificuldades que a empresa sofreu devido à falta de definição, da Segurança Social e da Banca, duma situação excepcional, já devidamente apresentada, como essencial para a sobrevivência da empresa". Foi, ainda, destacado que "... devido à falta de investimento nos últimos exercícios acentuou-se mais a absolescência do equipamento, o que veio confirmar a urgência de novos investimentos, isto tendo em vista que a empresa continue com uma boa carteira de encomendas, como já aconteceu no ano anterior". Passados 20 anos, em agosto de 1992, era decretada pelo Tribunal do Barreiro a falência da firma "Convex – Sociedade de Vestuário – Ldª.", e nomeado administrador da falência. Os bens são arrolados e postos em venda, em leilão público. Junto, vai o imóvel, a fábrica, que nunca tinha sido acabada conforme o projeto e não tendo sido também encontrada licença de utilização.

66 As referências à Convex são fundamentadas no processo n.º 298/70, existente no Arquivo da Divisão de Administração Urbanística, da Câmara Municipal da Moita.


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Ao longo dos anos foram muitas as empresas de confeções de vestuário que aqui se instalaram. Algumas, apenas mudaram de nome. As denominações que conseguimos referenciar: Avisco – Confecções, Lda. Batista & Baía, Confecções Íntimas, Lda. Bebé Malhas – Confecções para Crianças, Lda. Benete – Confecções, Lda. Bore – Confecções, Lda. Calhau & Batista – Sociedade Industrial de Confecções, Lda. Charepe – Confecções, Lda. Confecções Soeiro & Serra Lda. Consertextil – Prestação de Serviços na Indústria Têxtil, Lda. Convex – Sociedade de Vestuário, Lda. Despertar – Soc. Coop. Prod. Mal. Conf., SCARL. Fepar – Confecções, Lda. Fex – Fabrico e Exportação de Têxteis, Lda. Fristads – Confecções, Lda. Gefa – Confecções, Lda. Gracinda Flores Guston – Confecções, Lda. Helly Hansen, Confecções, Lda. Lander Confecções, Lda. Lingerimoda – Confecções e Modas, Lda. Malhas Amoroso, Lda. Margem Sul Sociedade de Confecções, Lda. Maria de Lourdes Rosa Viegas Modimoita – Confecções, Lda. Montreal Norporte – Confecções, Lda. Oito de Março – Coop. Op. Tricot. SCARL. Oskman – Confecções, Lda. Petodan – Confecções, Lda. R.A.F. Budd Lda. Sofardas – Sociedade Confecções, Lda. Sejotex – Indústria e Exportação de Têxteis, Lda.



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O PROCESSO PRODUTIVO RITMOS DE TRABALHO


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N

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os anos 60 do século XX, Portugal começa a assistir à montagem de unidades industriais de confeção de vestuário oriundas de outros países: Suécia, Inglaterra, Itália, Estados Unidos da América, Holanda. Um relatório da Comissão do Plano de Fomento, de 1964, dá-nos uma ideia da organização da produção na indústria do vestuário e o seu desenvolvimento, segundo dois sistemas:

"– A fabricação de roupas interiores e exteriores, em unidades industriais, altamente mecanizadas, em que a mão de obra é mínima; – A confecção dos mesmos artigos por divisão de trabalho, em que a maior parte da obra é confeccionada por pessoal externo. Há uma secção de corte na empresa que, por números e escalas, divide a matéria prima nos “aviamentos” necessários para a confecção das peças de vestuário. Estes “aviamentos” são entregues a pessoal externo que executam o produto acabado à tarefa, a um tanto por peça.”1

Este último sistema de trabalho externo, que o relatório referiu em progresso, pago à peça e mal remunerado, foi inclusivamente utilizado pelo Estado durante o esforço de guerra no tempo dos conflitos do ultramar. No Casão Militar, em Lisboa, as mulheres levantavam as peças já cortadas e cosiam-nas nas máquinas de costura, em casa. Feitos os fardamentos, embrulhavam-nos em fardos e entregavam-nos no Casão Militar. Na contratação do pessoal externo, a questão da produtividade do operário para a empresa é marginal, uma vez que a trabalhadora recebe à peça, quanto mais produz mais recebe. Se não trabalhar, por algum motivo, por doença, assistência à família ou outro, não recebe. Este sistema de trabalho, domiciliário, em que o salário depende da produção do trabalhador, iliba ainda o empregador de responsabilidades laborais ou sociais. As fábricas de confeções de vestuário instalaram-se e desenvolveram-se pela adoção das roupas feitas em série, em detrimento das roupas feitas por medida, prática que se disseminou largamente a partir da segunda metade do século XIX. Na fábrica, desenvolvia-se o trabalho de diversas costureiras reunidas num mesmo espaço e sob as orientações de um mesmo patrão que planificava e controlava a produção. Posteriormente, o parcelamento das tarefas irá aumentar a produtividade do trabalhador, ampliada ainda mais com o desenvolvimento de maquinaria e motores, bem como com a reformulação dos processos de trabalho que irá permitir a produção em massa de artigos de vestuário. A confeção de vestuário em unidades fabris

MINISTÉRIO da Economia, Secretaria de Estado da Indústria, Comissão do Plano de Fomento – Indústrias Têxteis, de Calçado e de Vestuário (Classes 23 e 24). Lisboa: |s. n.|, 1964.

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Costureiras numa fábrica em Guimarães (1913). Imagem: Biblioteca Municipal da Moita. Reservados. Ilustração Portugueza, n.º 373, de 14 de abril, p. 466.

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Oficina de costura (191-). Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa. Coleção Carlos Alberto Lima. PT/AMLSB/LIM/001607.

baseia-se na observação dos Princípios de Administração Científica, definidos por Frederick Taylor, aplicados ao trabalho. Resultam da observação e do estudo dos aspetos que podem melhorar o rendimento dos trabalhadores, com vista ao desenvolvimento da produção na empresa, de forma metódica, organizada e parcelada. A meta da organização é a padronização dos procedimentos, decompondo o processo em parcelas, simplificando o trabalho exigido, eliminando movimentos desnecessários por parte do trabalhador. O processo de obras registado com o n.º 413/83, na Câmara Municipal da Moita, relativo ao projeto de ampliação da fábrica de confeções GEFA, de 1983, permite-nos perceber como a fábrica organizava o seu processo de fabrico, segundo os princípios de divisão do trabalho: "A fabricação praticada nesta empresa, é uma fabricação estudada sobre a divisão do trabalho, simplificação de operações e sua sequência lógica processada em linhas de fabricação (bandas), processo de fabricação em série ou contínuo. Os tecidos, importados, são fornecidos ao departamento de corte (secção 2) que através do molde dos modelos são cortadas as peças. Depois de efectuados os cortes são remetidos à secção respectiva onde se procede à costura e acabamentos (secções 8, 11, 12 e 13). Uma vez a peça concluída, segue para a secção de prensas (secções 12 e 13, 1.º piso) onde é submetida à operação de engomagem e vincagem, passando ao estado de acabada, entrando seguidamente na secção de peças terminadas. Aí, a peça é embalada e expedida ao seu destino."2

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ADAU-CMM, processo de obras 413/83.


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Secção de corte e numeração. Imagem: Cristina Campante. As fábricas de confeções de vestuário adotaram os pressupostos tayloristas de divisão do trabalho, segmentando e simplificando o processo de produção.

Trabalhadoras na Gefa (197-). Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. Imagens de uma paralisação na Gefa, após o 25 de Abril, podendo-se observar a esteira rolante para transporte de materiais.

A aplicação dos pressupostos tayloristas na indústria do vestuário levou ao parcelamento de diversas funções e esquematizou o processo de produção em linha. Um artigo de vestuário é estudado e espartilhado em componentes, programando-se a sua execução, desde os desenhos ao corte dos tecidos, a distribuição e circulação das peças pelas costureiras, em que umas fazem a manga esquerda, outras a direita, outras a gola, os bolsos, pregam os botões, passa pelo acabamento e, no fim, tudo se completa. Cristina Campante, proporciona-nos uma perspetiva de como se desenvolvia a laboração na Convex, Moita: “A Convex tinha moldes dos fatos e máquina para dos moldes se fazer a impressão para papel colante, trabalho que era realizado na sala de desenho. O papel colante era depois colocado por cima do tecido. Continha os desenhos todos, tinha a parte da frente do casaco, a parte de trás, as mangas, a gola, portanto tinha tudo do casaco, tinha tudo da calça. Passava-se depois para a parte do cortador, que recortava os tecidos em peças, pelo bordo do desenho. Para as peças mais pequenas, mais específicas, tínhamos máquinas de corte fixas. Fazia-se o corte em 60 peças, entre 10 a 20 metros de comprimento, numa mesa enorme. Nessa secção de corte, estavam sempre para mais de 20 trabalhadores. Os tecidos vinham, em grande parte, da Penteadora, a mãe da Convex, onde tínhamos as ovelhas, onde fazíamos a fiação. Era na Penteadora que faziam os tecidos que vinham para cá. Não tínhamos uma secção criativa porque o que nós fazíamos era o fato clássico de homem, só trabalhávamos para homem. Fazíamos blazers e a calça separada, mas o essencial era o fato. Trabalhávamos muito com o tecido de riscas. Fazíamos fatos de quadrados e de riscas e tínhamos de acertar, no corte, as peças todas, os quadradinhos. Tínhamos


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que unir aquilo tudo. O cortador cortava aquilo em bruto. Quando era tecido que não era liso, principalmente os quadrados, o cortador cortava e depois nós descolávamos o papel e tirávamos peça por peça para unir, por exemplo, a parte da frente com a parte de trás, para as riscas e os quadrados darem tudo certinho. Depois da peça estar cortada ia para a secção de numeração. Todas as peças eram numeradas com rolos de fita de diferentes cores, para distinguir os lotes. As peças dos casacos eram numeradas do 1 ao 60, a parte de trás do casaco, a parte da frente, a manga, a gola, as bandas, os bolsos, tudo era numerado. Noutra série, entrava outra cor de fita. Depois de numeradas as peças, eram distribuídas pelas linhas de produção. Por exemplo, havia uma linha de produção que fazia só mangas, nós colocávamos lá as mangas. Depois de cosida a manga, passava para a costureira que já tinha cosido a parte de trás, depois passava para a que tinha cosido a frente do casaco e, de seguida, a outra secção à frente iria coser a manga à frente do casaco, outra cosia a gola, outra ia por as bandas, os forros, e assim sucessivamente. A última fase era a picagem dos casacos ou o pespontar. Depois era passado a ferro e seguia para as prensas. Por fim, ia para a secção de expediente, para ser numerado e embalado. Com as calças, o procedimento era o mesmo.”3

Planta do 2.º piso da Gefa (1983). Imagem: Arquivo da Divisão de Administração Urbanística da Câmara Municipal da Moita. Planta da Gefa, podendo-se observar os esquemas do varão para pendurar trabalho e do tapete rolante, que percorriam os postos de trabalho das costureiras.

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Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 17 de junho de 2016).


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O tecido entra na fábrica, passa então por diversas secções e múltiplas mãos, até se transformar em vestuário e ser expedido. Acaba como artigo de vestuário feito por diversas costureiras. O "artesão" ou o trabalhador qualificado e capaz tecnologicamente de executar um produto, do princípio ao fim, deixa de fazer sentido, segundo a nova organização do trabalho. A ideia que cada trabalhador tem também o seu próprio ritmo ou cadência de trabalho é também rejeitada. A norma de cadência é a imposta pela organização. Na prática, esta reestruturação do processo de trabalho serviu também para controlar a autonomia e o poder do velho operário: "A polivalência e qualificação elevadas dos trabalhadores profissionais conferiam-lhes uma autonomia e uma iniciativa consideradas excessivas pelos empresários. Preenchendo o objectivo de as limitar, o scientific management permitiu aos capitalistas industriais o ataque ao poder e ao saber dos operários de ofício, mediante a instauração de normas sobre os métodos de trabalho: plano e ritmo de produção, qualidade, modos operatórios, tempo de ciclo, duração das operações. Estudaram-se e mediram-se sistematicamente os tempos e os movimentos; separou-se a concepção da mera execução do trabalho; uniformizaram-se e estandardizaram-se os equipamentos e os métodos; dividindo-se progressivamente o trabalho, seleccionaram-se os operários, reduzindo o tempo de aprendizagem e de formação."4

Planta do 1º piso da Convex (1970). Imagem: Arquivo da Divisão de Administração Urbanística da Câmara Municipal da Moita. Planta da zona fabril da Convex.

LIMA, Marinús – Notas para uma história da organização racional do trabalho em Portugal (1900-80) – alguns resultados preliminares de uma investigação em curso. In Análise Social, vol. XVIII, n.º 72-73-74. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1983, p. 1300.

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Este sistema de produção destaca a organização do trabalho dos aspetos da sua execução, gerando a diferença entre quem pensa o produto e os procedimentos de trabalho e os operários, executantes, que se especializam na realização de uma tarefa, garantindo-se, através da simples repetição de gestos, a eficiência do trabalhador e a melhor produtividade. Esta metodologia de organização do trabalho, que reduz o tempo de aprendizagem ou simplesmente desvaloriza-a, amplia o universo de recrutamento de operários pelas empresas. Em alguns casos, o parcelamento do trabalho permite o recrutamento para costureiras de mulheres que nunca tiveram contacto com uma máquina de costura ou que possuem experiências muito rudimentares, tal o controlo sobre todo o processo de produção. Assim aconteceu com Carolina Medeiros, natural de Alhos Vedros, mas então residente na Baixa da Banheira. Os pais eram naturais da Salvada, Alentejo, tendo migrado para a Baixa da Banheira, a mãe fora costureira na Gefa e o pai trabalhador na siderurgia. Com 20 anos e 2 filhos, foi para a fábrica: "Estudei até ao 9.º ano, mas não acabei. Casei muito novinha, fui mãe aos 17 anos, depois aos 19. Aos 20, fui para fábrica, foi o meu primeiro emprego, em 1986. Era muito difícil entrar na Norporte, porque era uma empresa muito exigente e qualificada. Para podermos entrar para a empresa, quando abriam as inscrições, tínhamos que dormir à porta do escritório. Inscrevíamo-nos, mas não era garantido que entrássemos. Faziam exames psicotécnicos, exames de costura. Fiz os testes e passei nos psicotécnicos e na parte de costura, que era mais difícil, em que tínhamos de equilibrar os pés nos dois pedais da máquina, que era, normalmente, onde as pessoas não passavam. Quando entrei para a fábrica, não tinha experiência nem de costura nem de trabalho."5

Carolina Medeiros. (Trabalhadora da Norporte e dirigente sindical). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto.

5

Costureira. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. O trabalho na máquina exige grande concentração às costureiras, apesar de repetitivo.

Carolina Medeiros (testemunho oral, gravado em 20 de junho de 2016).


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A integração na fábrica, que já se encontra estruturada para a produção em série, não é difícil. Os gestos e movimentos são repetitivos e o jeito encontra-se mesmo quando se desconhece o funcionamento da máquina que se tem por diante. Foi o caso de Ivone Camacho, natural de Água Derramada (Grândola), mas a residir na Baixa da Banheira, quando entrou para a fábrica Multifirmas. Já possuía experiência de costura, mas desconhecia o funcionamento da máquina que lhe puseram diante. Adaptou-se: "Fui lá pedir (trabalho) e perguntaram-me: «Tem experiência?». Eu disse: «Tenho umas luzes!». Mas não tinha. A senhora deu-me trabalho. Quando fui começar a trabalhar, colocou-me na máquina de cose e corte. Para meu espanto, que nunca tinha trabalhado numa máquina daquelas, a linha parte-se. Peço à mestra e digo, assim: «Zulmira, venha cá ajudar-me porque a linha partiu-se e eu não sei onde fica a canela!». Diz ela, assim: «Então, você disse que tinha umas luzes e não sabe onde fica a canela da máquina?». Respondi que tinha procurado e não encontrei. E ela responde: «Desculpa lá, essa máquina não tem canela, é uma máquina de cose e corte, trabalha com linha direta.». Foi mais uma que eu aprendi. Depois a fábrica faliu. Fazíamos fardas para trabalho, jardineiras, colchas, edredons, almofadas. Fazíamos trabalho para a Fristads. A empresa tinha umas 30 a 40 mulheres. De homens era só o patrão."6

Ivone Camacho, costureira, sentada à máquina. Imagem: Ivone Camacho.

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Ivone Camacho e colegas da fábrica Multifirmas. Imagem: Ivone Camacho.

Ivone Camacho (testemunho oral, gravado em 16 de junho de 2016).


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Nesta organização racional do trabalho, que substitui o empirismo pela "ciência", a seleção dos trabalhadores ou acesso ao trabalho é generalizado a todos os que possuam condições normais de aptidão para responder a determinadas exigências da cadeia de produção, sem necessidade de qualquer qualificação específica. Na realidade, o homem, neste caso a mulher, ocupa o lugar da peça que falta à grande máquina. O processo de estudo do tempo e dos movimentos encontra-se descrito, assim, em Taylor: "1.º - Encontrar, digamos, 10 ou 15 trabalhadores (preferentemente de várias empresas e de diferentes regiões do país) particularmente hábeis em fazer o trabalho que vai ser analisado. 2.º - Estudar o ciclo exacto das operações elementares ou movimentos que cada um destes homens emprega, ao executar o trabalho que está sendo investigado, como também os instrumentos usados. 3.º - Estudar, com o cronómetro de parada automática, o tempo exigido para cada um destes movimentos elementares e então escolher os meios mais rápidos de realizar as fases do trabalho. 4.º - Eliminar todos os movimentos falhos, lentos e inúteis. 5.º - depois de afastar todos os movimentos desnecessários, reunir em um ciclo os movimentos melhores e mais rápidos, assim como os melhores instrumentos."7

Guilhermina Varela, costureira, na Norporte. Imagem: Guilhermina Varela.

7

Carta da Norporte dirigida a Guilhermina Varela, informando sobre a admissão da trabalhadora na fábrica (1980). Imagem: Guilhermina Varela.

TAYLOR, Frederick W. – Princípios de Administração Científica. São Paulo: Editora Atlas S. A., 1990, p. 86.


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A eficiência do fator humano, numa indústria que se caracteriza pelo trabalho intensivo, é decisivo na rentabilidade da empresa, pelo que a verificação do tempo despendido pelas trabalhadoras na manipulação das peças, durante as diversas fases de trabalho, é recorrente. Apesar dos incrementos tecnológicos, a indústria de confeções ainda depende do sistema de costurar difundido pela velha máquina de costura do século XIX, operada por uma trabalhadora. Na impossibilidade da automatização total, o tempo gasto pela trabalhadora é regularmente avaliado, com vista à otimização dos tempos gastos em qualquer das operações, seja a pregar bolsos ou botões ou a costurar bainhas. Na prática, o controlo ou mensuração dos tempos tem como objetivo justificar e exigir que as trabalhadoras melhorem a sua produção, façam mais em menos tempo e com o mesmo vencimento. Em 1997, o trabalhador responsável pela organização da produção e procedimentos de cronometragem era denominado "Agente de Métodos e Tempos"8, com a seguinte descrição do "Saber-fazer técnicos": "Integrar informações relativas ao processo de fabrico, à capacidade das máquinas, à produtividade média por posto de trabalho e às possíveis práticas de optimização das máquinas e equipamentos de modo a identificar as hipóteses de adaptação das condições às exigências da produção. Executar cronometragens em mais do que um ciclo de modo a determinar a constância e o ritmo de trabalho. Calcular e definir os tempos de homem/máquina de execução das tarefas e os respectivos ritmos. Definir normas de produtividade e de rendimento por posto de trabalho. Calcular taxas de absentismo. Calcular o rendimento da mão-de-obra quer individualmente, quer em grupo com vista a controlar prazos. Comparar a quantidade de peças produzidas por hora com os tempos previstos e avaliar desvios. Identificar os factores que contribuem para os desvios. Construir e manter actualizadas as bases de dados relativas às diferentes linhas e postos de trabalho. Definir as sequências das operações e os modos operatórios de modo a rendibilizar tempos."9

BAHSGME, cota MO 38553. VALENTE, Cláudia, SOUSA, Cristina, GOMES, Jorge, MARTINS, Pedro – O Sector do Vestuário em Portugal. Separata. Lisboa: Instituto para a Inovação na Formação, 1997, p. 14. 9 Ibidem, pp. 14-15. 8


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As costureiras estão sujeitas a grande pressão para aumentar a produtividade. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

Nas fábricas de confeções em que conseguimos apurar o processo de produção, todas se regiam pelo controlo dos tempos para execução das tarefas. Por vezes, a mensuração dos tempos era realizada pelas encarregadas, em outras ocasiões vinham mesmo especialistas da sede, do estrangeiro, para o efeito. Eram momentos de grande tensão, em que a trabalhadora era pressionada a executar o maior número de peças num determinado período de tempo. O impacto da pressão desestabilizava as costureiras, levando-as a cometer erros ou a registarem ritmos de trabalho difíceis de normalizar na fábrica. Carolina Medeiros relata, assim, a sua experiência da medição dos tempos, na Norporte: “Aquilo era uma pressão muito grande, uma repressão, nós não podíamos levantar a cabeça da máquina. De vez em quando, vinham tirar-nos o tempo e ficávamos todas a tremer. Eles queriam 360 minutos por dia e havia colegas que não conseguiam fazer. Com um relógio, punham-se ao nosso lado, um dia inteiro ou uma manhã inteira, e nós a trabalhar, e elas punham-se a ver quanto tempo é que nós levávamos a fazer uma peça e se podiam tirar mais minutos, porque tudo aquilo que nós fizéssemos para além dos 360 minutos era prémio de produção. Por vezes, com a experiência, aquilo que fazíamos em 4 minutos já conseguíamos fazer em 3. E esse minuto, por cada 25 peças do maço, já era nosso, era empreitada.”10

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Carolina Medeiros (testemunho oral, gravado em 20 de junho de 2016).


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Os trabalhadores eram constantemente instados a atingir o limiar da capacidade de esforço, para aumentar a produção, fustigados com ameaças sobre a viabilidade da empresa e sobre a perda do posto de trabalho, o desemprego, que era o que mais temiam. Cristina Campante conta-nos como eram espicaçados os trabalhadores da Convex, antes do 25 de Abril, num período sem grandes reservas na linguagem: “Antes do 25 de Abril, nós chegámos a ter meia-hora para o almoço. O trabalho era imenso e as pessoas cansavam-se muito. Exigia-se 300 peças por dia, era muito trabalho. Haviam tecidos mais fáceis, haviam tecidos mais complicados e a pressão era a mesma, era uma pressão enorme. E quando os trabalhadores não conseguiam esses objetivos havia sempre zaragata, repreensões, ameaças. Eles diziam «A fábrica tem de trabalhar mais, para sobreviver e garantir os salários, a fábrica tem de fazer 300 ou mais fatos por dia!». Diziam também que «Para levantar a fábrica tínhamos que trabalhar noite e dia!».”11 O controlo dos tempos não é apenas uma forma de garantir a total ocupação da trabalhadora, acaba também por estimular a sua eficiência ao máximo, através de um sistema de compensações pelo trabalho produzido a mais. A gratificação, a par da tarefa, constitui “…um dos mais importantes elementos do funcionamento da administração científica”12. Na Gefa, o sistema de gratificação começou por ser coletivo, uma vez que a cadeia de produção era integrada. A produção de uma trabalhadora estava dependente da que a antecedia e quando uma parava, por alguma razão, por avaria na máquina, por exemplo, as trabalhadoras subsequentes paravam também, acumulando-se o trabalho. Enquanto não fosse resolvido o problema da máquina, a linha parava. Sob a expectativa da gratificação, para compor um ordenado diminuído,

Recibo de ordenado de Teresa Araújo (Gefa), 1985. Imagem: Teresa Araújo. O bónus de produção ultrapassa os 50% do ordenado base da trabalhadora.

11 12

Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 17 de junho de 2016). TAYLOR, Frederick W., ibidem, p. 89.

Teresa Araújo sentada à máquina de costura. Imagem: Teresa Araújo.


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as trabalhadoras incentivavam-se coletivamente com vista à concretização de determinado objetivo de produção. Mais tarde, com o patrocínio de prémios de produção individuais, a motivação passou a ser individual também. Em virtude dos prémios individuais, os salários passaram a diferir entre trabalhadores, dissipando-se alguma solidariedade que salários iguais poderiam vincular. Com o tempo e a experiência, as trabalhadoras desenvolviam automatismos que lhes permitiam realizar mais trabalho e em menos tempo, beneficiando dos prémios de produção. Mas era também uma situação que cedo ou tarde acabaria por gerar tensões entre as trabalhadoras e a empresa que, na expetativa de economizar, tendia a integrar os "ganhos" das trabalhadoras nos padrões de produção. Carolina Medeiros, relata-nos como era gerida a "negociação" da produção: "Tínhamos de fazer uma folha diária e quando eles viam nas folhas que nós já estávamos a ganhar prémio de produção a mais, na ótica deles, mandavam alguém vir controlar-nos com o relógio, dias inteiros, quanto é que nós conseguíamos fazer e em quanto tempo. Muitas vezes vinham da Noruega. Elas punham-se ao nosso lado o dia inteiro e nós com a pressão, em vez de fazermos o trabalho em 8 – porque com a prática já não fazíamos em 10 – fazíamos em 6. Então tiravam-nos logo esses 4 minutos. Muitas das vezes eram os nervos que nos faziam trabalhar mais. Às vezes, haviam colegas que ficavam chateadas umas com as outras – chateadas, no bom sentido – porque algumas faziam tudo depressa e depois tiravam minutos a todas, já não tínhamos muito prémio de produção. Eles exigiam 360 minutos por dia e nós chegávamos a fazer mais de 400. Então, para não nos tirarem, nós é que geríamos o que colocávamos na folha. Eles queriam que fizéssemos o mesmo por menos salário. Assim que viam nas folhas que nós conseguíamos fazer as peças em menos tempo do que eles tinham estipulado, tentavam sempre tirar... Qual era, então, a nossa luta? Era nós combinarmos e fazermos sempre menos produção do que eles exigiam, para reporem o que nos tinham retirado. Aquelas horas todas exigiam muito esforço, não era fácil estarmos ali aquelas horas todas, com dores nas costas, com dores nos braços. Eram kispos e calças muito pesadas, com botas agarradas. Os kispos eram forrados, soldados. Quando nós pegávamos num casaco quase pronto já levávamos uma dor nas costas e nos braços que era tremenda. Hoje, fala-se em doenças profissionais, na altura não, ia-se para a baixa médica, não aguentavam com dores nos pulsos, nas articulações, na coluna vertebral, outras com depressão, porque a exigência era muita, também porque a forma como eles lidavam e falavam com as trabalhadoras não era a melhor. E falavam da mesma maneira com as chefes de cada linha. Quando a produção baixava, elas eram as primeiras a serem chamadas, depois éramos nós."13 13

Carolina Medeiros (testemunho oral, gravado em 20 de junho de 2016).


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Lucinda Carrusca. (Trabalhadora da Helly-Hansen e dirigente sindical). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto.

Lucinda Carrusca com colegas (Helly-Hansen). Imagem: Lucinda Carrusca.

Lucinda Carrusca, natural de S. Bráz de Alportel, mas a residir em Alhos Vedros, relatou-nos um episódio na Norporte, sobre a exigência de cumprimento de tempos, que se concluiu serem praticáveis na Noruega, mas impraticáveis em Alhos Vedros, dado o arcaísmo tecnológico das máquinas aqui instaladas que influenciam determinantemente a produtividade das trabalhadoras: "Eles (empresa) quiseram ensinar-me para controlar as minhas colegas e eu recusei. Para elas não se queixarem que o tempo estava mal controlado queriam que fosse eu a controlar. Os tempos já vinham controlados da Noruega e as pessoas queixavam-se: «É impossível, não se consegue fazer neste tempo!». E então houve uma altura em que quiseram dar-me a volta e disseram-me: «A Lucinda vai aprender a controlar que é para depois elas acreditarem no que a Lucinda diz!». E eu disse: «Não! Para já, as máquinas da Noruega são modernas e estas são velhas, têm outro desenvolvimento. Depois, eu não sou polícia de ninguém!». E depois tivemos uma prova. Mandaram um modelo já cortado para fazer e nós aqui não conseguíamos fazê-lo. Sobrava de um lado, faltava do outro. Eles mandaram para lá a informação sobre o que se passava. Nas máquinas de lá, da Noruega, que eles tinham, estava tudo bem, tudo certinho. Depois mandaram vir de lá uma máquina e disseram: «Cuidado com quem vai trabalhar nesta máquina, custa 1500 contos! Não podemos ter muitas máquinas destas.». Lá, toda a fábrica tinha aquelas máquinas, mas aqui já não as podíamos ter. Como nós não conseguíamos fazer o trabalho, vieram duas mestras da Noruega para nos ensinarem a fazer aquele modelo, que era um modelo diferente. Elas chegaram ali e ficaram espantadas, os olhos arregalados, a olharem, e as portuguesas à espera que elas ensinassem como é que se fazia. Depois, veio a tradutora e disse que a senhora (norueguesa) não conhecia estas máquinas (as instaladas em Alhos Vedros), que são do


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tempo da avó dela. As norueguesas nunca mexeram numa máquina, nunca puseram o pé no pedal de uma máquina. E eles depois tiveram que fazer uma revisão dos tempos. A máquina que eles enviaram para cá, para amostra, quase que nem precisava de costureira nenhuma, a máquina fazia praticamente tudo. Controlavam-nos com os tempos de lá, mas era com as máquinas de lá. Aqui não conseguíamos, as máquinas estavam sempre a avariar. Havia 3 ou 4 homens na oficina que não davam vencimento a arranjar máquinas, estavam sempre a arranjar máquinas. As nossas máquinas eram muito velhas."14 Outro aspeto que caracteriza as fábricas de confeções é o transporte ou circulação das peças entre as trabalhadoras, que têm os seus postos de trabalho fixos e não os devem abandonar. É o trabalho que vai ter com elas. Quando a Gefa iniciou a sua produção o trabalho realizado era transportado por adolescentes, entre os 13 e 15 anos, de costureira para costureira. Mais tarde, foi introduzido um tapete rolante e, posteriormente, o transporte do trabalho passou a fazer-se por um sistema aéreo. O ritmo e a velocidade do trabalho são determinados pela organização que procura, durante a jornada de trabalho, intensificar a produção. Como o trabalho exigido assenta na repetição de gestos, cada vez mais rápidos, a rotina e a sobrecarga provocam, a prazo, incapacidades motoras e depressões nos trabalhadores que dependem do salário para subsistir. A empresa, no entanto, já conta que a sobrecarga de trabalho se repercuta na assiduidade dos trabalhadores, daí que uma competência do "Agente de Métodos e Tempos", a que já nos referimos, fosse o cálculo das taxas de absentismo esperadas. O Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal (CITEVE), num estudo publicado em 2012, determinou que o stress no trabalho produzia como efeitos a "desmotivação, irritabilidade, maior absentismo e perturbações das capacidades físicas e mentais (esgotamento, diminuição da atenção e rendimento)"15. Segundo o estudo, a probabilidade de ocorrer stress será "... mais relevante nas etapas produtivas em que os trabalhos são monótonos, repetitivos ou pouco estimulantes, em situações de excesso de trabalho ou falta de organização, etc."16. Considera ainda que o stress pode ser potenciado pelas seguintes situações: "Falta de variedade nas tarefas executadas, ou execução de tarefas desagradáveis; Excesso de trabalho e pressões para o cumprimento de prazos; Pouco envolvimento na tomada de decisões; Baixas perspetivas de promoção ou evolução; Inexistência de sistemas de avaliação ou desempenho; Papel do trabalhador dentro da empresa; Supervisão inadequada, pouco atenciosa ou que não presta qualquer apoio; (...) Fatores ambientais no local

Lucinda Carrusca (testemunho oral, gravado em 26 de setembro de 2016). CITEVE (Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal) – Plano de ação setorial da melhoria das condições de higiene e segurança no trabalho no setor têxtil e do vestuário. 2012, p. 23. Consultado em 4 de dezembro de 2016, disponível em https://www.citeve.pt/filedownoad.aspx?schema..., 16 Ibidem. 14 15


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O trabalho intensivo e a rotina provocam o desgaste rápido das trabalhadoras. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

de trabalho, tais como a ocorrência de acidentes de trabalho, as condições de ergonomia, a exposição a agentes químicos no local de trabalho, entre outros"17. Um estudo publicado no Brasil, em 2000, considera como doenças mais comuns na indústria do vestuário as cervicalgias, lombalgias e hérnias de disco18 que afetam a coluna. Quando Lucinda Carrusca foi trabalhar para a Gefa, em 1973, então com 35 anos, já era considerada com alguma idade. Conta-nos a resposta que um médico da empresa lhe deu, quando se foi queixar da coluna: "Eles queriam pessoas de 20 ou 25 anos, de preferência que tivessem mesmo 14 ou 15 anos. Na altura, a idade mínima de admissão era 14 anos. Compreende-se porquê. Uma vez, fui queixar-me ao médico do trabalho por causa de dores na coluna e ele disse-me que era natural queixar-me da coluna, porque bastava olhar para as condições em que trabalhávamos para ver o problema. E depois acrescentou «Eu tenho dó das raparigas que estão aqui com 15 anos, porque daqui a dois anos têm a coluna toda torta. E a senhora, com essa idade, não admira que tenha problemas!». Ele sabia o mal que aquela posição fazia à coluna. Era por isso que queriam moças mais novas, porque ainda tinham condições de aguentar. O ritmo de trabalho era tal que ao fim de pouco tempo estavam arrumadas. Também queriam as mais novas porque não queriam pessoas que viessem já com problemas ou deficiências de outras fábricas."19 Ibidem. BARRETO, Margarida – A indústria do vestuário e a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. São Paulo: Instituto Nacional de Saúde no Trabalho, 2000, pp. 17-18. Consultado em 4 de dezembro de 2016, disponível em http://www.cerest.piracicaba.sp.gov.br/site/imnages/caderno10_vestuario.pdf. 19 Lucinda Carrusca (testemunho oral, gravado em 26 de setembro de 2016). 17 18


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A costura, que exige olhar atento e concentrado, é uma das tarefas responsáveis pelo cansaço visual. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

Nas mulheres, a doença mais comum é a cervicalgia (dor no pescoço) pelo facto de executarem tarefas que necessitam de manter cabeça fletida (costureiras). Outros dos problemas de saúde que afetam as trabalhadoras têm como causas os "... movimentos repetitivos, posturas inadequadas por muito tempo; (...) ritmo intenso e imposto..."20 que produzem lesões dos "... tendões, fáscias, ligamentos, nervos e músculos mais comuns nos membros superiores. A queixa dominante é dor, adormecimento e formigamento. Evolui de incapacidade temporária inicial para incapacidade permanente..."21. A costura, que exige um olhar atento, minucioso e concentrado, é uma das tarefas onde o cansaço visual se manifesta. O estudo encara ainda o assédio moral e o assédio sexual no trabalho como fatores de risco à saúde dos trabalhadores22. A figura da autoridade na fábrica é omnipresente no espaço laboral, localizando-se as instalações das chefias junto às bandas ou secções, para um controlo eficiente das trabalhadoras. Conta-nos Carolina Medeiros, como era na Norporte: "Os gabinetes dos superiores eram dentro das secções e era tudo em vidro, portanto eles estavam sempre a controlar-nos. Viam quando nos levantávamos, quando íamos à casa de banho e quantas vezes íamos à casa de banho."23

BARRETO, Margarida, ibidem, pp. 17-18. Ibidem. 22 Ibidem, pp. 22-23. 23 Carolina Medeiros (testemunho oral, gravado em 20 de junho de 2016). 20 21


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O objetivo das chefias que se encontram mais próximas das trabalhadoras é o cumprimento ou suplantação dos objetivos de produção. As trabalhadoras, além do ordenado base, também vencem pela produção realizada, mas os prémios pelos objetivos alcançados também chegam às chefias. A produção em série, o incentivo aos trabalhadores para serem mais rápidos, para aumentar a produção, aviva, inevitavelmente, a questão da qualidade do produto acabado, daí a necessidade da implementação de um controlo de qualidade. Maria de Jesus Fernandes, depois de ter passado pela Fex, em criança, de se formar como costureira em diversas casas de costura e alfaiataria, habituada a trabalho exigente e de perfeição, voltou à Gefa em 1986. Deixa-nos, assim, a sua perceção sobre a qualidade dos artigos de vestuário ali produzidos: "Já sabia (de costura) mas era um problema. Porque eu trabalhei em alfaiate por medida e em coisa feitas com perfeição, feitas à mão. Cheguei a fazer calções de montar, tudo à mão, tudo picadinho feito à mão. Cheguei ali (Gefa) e aquilo era tudo rápido, queriam que a gente fizesse produção. Então a minha mestra dizia assim «Oh, Jesus! Isto aqui não é nenhuma boutique, tens que fazer produção, tens que fazer bónus!». (...) Mas vinham muitas coisas para trás, para arranjar, e calhava um pouco a cada uma."24 Os ritmos de trabalho na indústria de confeções são frenéticos e as rotinas entediantes e desumanizantes. O trabalho é repetitivo, o desgaste físico é muito, e exige-se rapidez, com prejuízo sério da saúde das trabalhadoras, que ficam com sequelas que as acompanham para o resto da vida. As empresas estavam organizadas como máquinas.

45

Maria de Jesus Fernandes (testemunho oral, gravado em 26 de outubro de 2016).


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Sector de produção da Gefa (1972). Imagem: Dolores Marques.

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AS TRABALHADORAS


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o início do século XX, quando a indústria da cortiça começa a sedimentar-se definitivamente em Alhos Vedros, e mesmo na segunda metade do século, quando surgem as primeiras fábricas de confeções de vestuário, a mulher encontrava-se ainda, em muitos aspetos da vida, sob a tutela do chefe de família. Na generalidade, para a grande massa de trabalhadoras, o trabalho que desenvolviam não valia por si, em parte era ignorado nos inquéritos oficiais e, como trabalhadoras de baixos salários, a remuneração entrava no orçamento familiar como complemento ao vencimento do homem que era o principal. A discriminação salarial era um facto, tal como as dificuldades na progressão ou o acesso a determinados empregos. A escola também não lhes ditava as mesmas oportunidades de prosseguimento dos estudos. Mesmo trabalhando fora de casa, o seu lugar era no lar, apartada da vida pública. Não causa pois estranheza que a Cooperativa Operária de Alhos Vedros registe e destaque como efeméride a primeira vez que uma mulher usou da palavra numa assembleia geral: "Em 1948, pela primeira vez, fala uma associada na Assembleia Geral"1. Haviam passado 32 anos da fundação da Cooperativa. Lentamente, mas com firmeza e confiança nas reais capacidades e força, as mulheres começavam a libertar-se dos estigmas e preconceitos que as amarravam ao ideário doméstico, derrubando o esquecimento que se abatera sobre o seu historial de trabalho e, em muitos casos, lado a lado do homem, recordando e reafirmando as suas competências e exigindo direitos, de igual para igual. No princípio dos anos 50 do século XX, como nos contou Lucinda Carrusca2, referindo-se ao operariado de Alhos Vedros, ter a 4ª classe, saber ler e escrever, era um luxo. A transformação da condição feminina, as lutas desenvolvidas pelas mulheres pela igualdade de direitos, os movimentos políticos e sociais pelo direito ao voto, a questão do divórcio, a luta pela educação e outras, não ocorreram em todas as localidades e simultaneamente. No princípio do século XX, os movimentos feministas na capital, onde se agitava uma elite urbana esclarecida e instruída, pouco diziam a muitas das populações mais próximas que viviam uma realidade rural, conservadora, absorvida pelas questões da subsistência diária, casos da Moita e Alhos Vedros. Na realidade, as primeiras lutas organizadas e lideradas por mulheres, já com alguma dimensão, surgem no contexto de trabalho das fábricas de cortiça, já na segunda metade do século XX. Mais tarde, o trabalho na fábrica, principalmente na indústria de confeção de vestuário, predominantemente feminino, como costureiras ou com outra tarefa, irá permitir-lhes desenvolver outra visão do seu lugar no mundo, o sentido de autonomia e o desejo de emancipação.

1 2

BOLETIM COOPERATIVISTA, n.º 128, edição de junho de 1964, p. 8. Lucinda Carrusca (testemunho oral, gravado em 26 de setembro de 2016).


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5.1 AS DOMÉSTICAS

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o princípio do século XX, o concelho da Moita estruturava a sua economia em torno da agricultura e das atividades ribeirinhas. Só a partir de 1908, com a instalação da fábrica de cortiça de Amaral da Fonseca Morais, em Alhos Vedros, a industrialização arrancava, de forma contínua, numa terra de valores tradicionais, vincadamente agrária. A maioria da população era constituída por trabalhadores que vendiam a sua força de trabalho no campo. Em 1896, mais de 40% dos homens da vila da Moita viviam da agricultura (28,2% trabalhavam à jorna). Outro trabalho importante era o dos barcos que ocupava 16,8% dos homens. O censo da população do reino de 1890, que já englobava as zonas rurais, estimava que cerca de 59% da população do concelho da Moita estivesse ligada aos trabalhos agrícolas3. No Rol de Confessados da Moita do Ribatejo (1907 a 1914)4, na área que compreende a vila da Moita, na zona urbana, os homens possuíam uma diversidade de ocupações e ofícios, cerca de 45, distribuídos entre tanoeiros, marítimos, jornaleiros, proprietários, agricultores, moleiros, criados, barbeiros, guarda-fiscal, carreiro, trabalhadores, farmacêutico, ferreiro, secretário da câmara, carpinteiros, recebedor, padeiro, sapateiros, taberneiros, pedreiros, negociantes, sacristão, distribuidor, coadjutor, prior, médico, pastor, vendilhão, empregado dos caminhos de ferro, empregado público, estudantes, comerciantes, funileiro, alfaiate, empregado, oficial da administração, amassador, serralheiro, administrador, ferrador, mendigo, albardeiro, peixeiro, lojista e cabreiro. As mulheres não possuíam mais que 11 ocupações diferentes, predominando a doméstica (90%). Livro dos Desobrigas da Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem da Moita do Ribatejo (1896). Imagem: Arquivo da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Boa Viagem, Moita. No Largo da Praia, como em tantos outros topónimos da localidade, enquanto os homens possuem profissão (marítimo, taberneiro, trabalhador) as mulheres encontram-se inscritas como domésticas.

Rol de Confessados da Moita do Ribatejo (1907 a 1914). Imagem: Arquivo da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Boa Viagem, Moita. Na Rua de São Sebastião os homens são jornaleiros, carpinteiros ou marítimos. As mulheres figuram como domésticas.

MINISTÉRIO da Fazenda, Direcção Geral da Estatística e dos Próprios Nacionais – Censo da População do Reino de Portugal, vol. III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890, p. 133. 4 ARQUIVO DA IGREJA PAROQUIAL DE NOSSA SENHORA DA BOA VIAGEM (AIPNSBV), Rol de Confessados da Moita do Ribatejo (1907 a 1914). 3


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OCUPAÇÕES DAS MULHERES ROL DOS CONFESSADOS DA MOITA DO RIBATEJO (1907-1914)

Doméstica Jornaleira Proprietária Criada de servir Mendiga Costureira Professora Lojista Cega Lavadeira Parteira

615 24 20 10 5 3 3 2 1 1 1

Livro dos Desobrigas da Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem da Moita do Ribatejo (1896). Imagem: Arquivo da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Boa Viagem, Moita. Família de costureiras, com idades compreendidas entre os 18 e 26 anos, residindo no Largo da Igreja, Moita. A costura encontra-se entre as profissões tradicionalmente associadas às mulheres.

À exceção da ocupação de jornaleira, que surge como uma novidade, comparativamente com a realidade plasmada no Livro dos Desobrigas da Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem da Moita do Ribatejo5, de 1896, na viragem do século XIX para o XX, e mesmo com o advento da República, o mundo local das mulheres pouco ou nada se alterara. Relativamente às ocupações das mulheres, na área urbana da freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem, o retrato de fim do século XIX era o seguinte: a seguir a uma enorme legião de domésticas, encontravam-se, por ordem de efetivos, criadas (9), proprietárias (9), lavadeiras (8), costureiras (7), lojistas (4), floristas (2), engomadeiras, (2), parteira (1), pedinte (1), pobre (1), professora (1) e vendedora de loiça (1). Em parte, ocupações tradicionalmente associadas ao mundo feminino, aos serviços, e que se poderiam considerar, em alguns casos, extensão da condição de domésticas. De registar que a quase totalidade de mulheres proprietárias, costureiras, lojistas e floristas, sabiam ler e escrever. As restantes engrossavam a taxa de analfabetismo do concelho que, no princípio do século XX, era estimada em 81,6%6, acima da média nacional (75,1%). Os registos paroquiais locais evidenciavam assim, AIPNSBV, Livro dos Desobrigas da Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem da Moita do Ribatejo, 1896. DIRECÇÃO Geral de Estatística – Censo da população de Portugal, 1911. Lisboa: Imprensa Nacional, 1913, p. 212. Considerada a população a partir dos 10 anos.

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no que respeita às ocupações dos indivíduos, diferenças muito claras entre mundos laborais, entre o feminino e o masculino, acentuando especializações. Mas também nos registos estatísticos do então reino de Portugal, em 1890, das 2667 mulheres existentes no Concelho, 2120 (79,5%) são consideradas “Pessoas de família sem ocupação lucrativa”7. Enquanto nos “varões” de mais de 14 anos somente 18 indivíduos não possuem ocupação, nas “fêmeas” com mais de 14 anos esse valor ascende a 1202 indivíduos. Na realidade, mais de metade das mulheres inscritas no censo de 1890 sem “ocupação lucrativa” participavam nos trabalhos agrícolas. O que o mesmo censo reflete, além da ocultação do trabalho das mulheres, é uma extraordinária divisão sexual do trabalho. Entre as 12 profissões consideradas para apuramento (I Trabalhos agrícolas; II Pesca e caça; III Extracção de materiaes mineraes da superfície do solo; IV Transportes; VI Commercio; VII Força publica; VIII Administração publica; IX Profissoes liberaes; X Pessoas vivendo exclusivamente dos seus rendimentos; XI Trabalhos domésticos; XII Improductivos. Profissão desconhecida), a participação da mulher só é maioritária nas categorias Trabalhos domésticos e Improductivos. Profissão desconhecida. João Esteves resume assim a situação da mulher na viragem do século XIX:

Varejadoras da apanha da azeitona. Imagem: Biblioteca Municipal da Moita. Reservados. Ilustração Portugueza, n.º 354, de 2 de dezembro de 1912, p. 731 (clichés de J. Coutinho). As mulheres são inscritas nos registos como sem “ocupação lucrativa”, embora grande parte participe nos trabalhos agrícolas.

7

MINISTÉRIO da Fazenda, 1890, p. 133.

Mulheres ceifando. Imagem: Biblioteca Municipal da Moita. Reservados. Ilustração Portugueza, n.º 437, de 6 de julho de 1914, p. 11.


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“Sem quaisquer direitos políticos e confiada ao papel de filha, esposa, mãe e irmã, a situação da mulher portuguesa na viragem do século XIX era bastante confrangedora, ao estar remetida para um plano de inferioridade legal, social e cultural, sendo considerada perante a lei uma menor, sujeita à tutela do pai ou do marido, e com uma elevada taxa de analfabetismo (85,4% em 1890; 85% em 1900; 81,2% em 1911; 76,8% em 1920; e 74,3% em 1930), que a limitava nas escolhas profissionais”.8 No censo de 1900, a situação laboral das mulheres em relação às categorias profissionais mantém-se, mas são já 1572 “fêmeas” de mais de 14 anos sem ocupação lucrativa. No censo de 1911, serão 1636 mulheres de mais de 14 anos sem ocupação lucrativa. Em 1890, a indústria no concelho empregava 88 mulheres e 200 homens; em 1900, são 37 mulheres e 283 homens e, em 1911, dava trabalho a 33 mulheres e 198 homens. Não só o emprego industrial estabilizara como os trabalhos agrícolas continuavam a ocupar mais de metade da população. No censo da população de 1930, as mulheres deixam de ser consideradas “Pessoas de família sem ocupação lucrativa” e passam a “Membros da família auxiliando os respectivos chefes”, continuando não só a desvalorização das suas capacidades produtivas, mas acentuando-se também a sua subordinação ao chefe de família. Em 1930, os trabalhos agrícolas ainda continuavam a empregar a maior parte da população ativa. Seguem-se-lhe, por ordem de importância, os transportes – os funcionários dos caminhos de ferro já constituem um grupo profissional considerável –, a indústria e os serviços domésticos e criados, estes últimos maioritariamente ocupados por mulheres. No recenseamento geral da população de 1940, as mulheres deixam de ser pessoas sem ocupação lucrativa ou auxiliares dos chefes de família, são apenas “domésticas”. No distrito de Setúbal, 78,89% das mulheres são consideradas domésticas (75257), 8,72% estão na indústria, 4,53% em atividades ligadas à agricultura e 5,43% em “Profissões não especializadas de carácter auxiliar”, detendo 3902 mulheres a atividade de “Criados”. Em 1950, segundo o recenseamento de então, a população de mulheres residentes no concelho foi estimada em 9647 indivíduos. A população ativa feminina registada foi de 1413 mulheres; isto é, apenas 14,6% possuía uma ocupação reconhecida, que se distribuía pela agricultura (545 mulheres), indústria (521 mulheres), pelos serviços (275 mulheres). Contudo, são registadas 2186 mulheres na categoria “Familias agrícolas”. No recenseamento de 1960, são mencionadas como residindo no concelho 14442 mulheres – em 10 anos o concelho acolheu mais 4795 mulheres –, mas a população ativa feminina regista somente 2000 mulheres (13,8%). Pela primeira vez, as mulheres presentes na indústria têxtil (471) são em maior número do que na indústria corticeira (321) e agricultura (241). Parte das mulheres que ingressam no têxtil vêm dos campos do Alentejo, do trabalho agrícola e, depois de estabelecidas no concelho, empregam-se nas oficinas no Barreiro. É o caso de ESTEVES, João – O Movimento Sufragista em Portugal na 1ª Metade do Século XX (1896-1947). In A Mulher na História, Actas dos Colóquios sobre a temática da Mulher – 1999/2000. Moita: Câmara Municipal da Moita, 2001, pp. 241-242.

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Vitória Romão, natural de Albernoa, distrito de Beja, nascida em 1936. A trabalhar no campo desde os 10 anos de idade, em 1957, deixou a monda, a ceifa, a apanha da azeitona, do grão e do arroz e migrou para a Moita, com o marido e o filho: "Primeiro fui semear favas, no Carvalhinho, depois mondar e apanhar as favas. Entretanto, passados poucos meses, inscrevi-me para a CUF. Nuns exames que me fizeram acusei anemia. Fiz novos exames, na Ajuda, em Lisboa. Depois, chamaram-me, fui para a fiação, fazer fio. Estive lá três anos. Nunca tinha trabalhado numa fábrica. Depois, despediram-me num dos "balões" (despedimentos coletivos). Saí em 1960".9 Nesta data, conforme o Inquérito Industrial de 1957, a Moita ainda não possuía nem indústria têxtil nem de confeção de vestuário, registando o Barreiro 79,89% de toda a mão-de-obra da indústria têxtil no distrito de Setúbal. Em meados dos anos 60 do século XX e com a abertura das fábricas de confeções de vestuário, parte da migração feminina dos campos do Alentejo e de outras zonas do país que chega ao concelho ingressa, então, na emergente indústria de confeções de vestuário, em Alhos Vedros. É a situação da família Vaz, natural de Messejana que, no princípio dos anos 60 do século XX, veio do Alentejo para a Baixa da Banheira. Eram cinco as raparigas da família, com idades compreendidas entre os 8 e os 29, a mais nova foi estudar e as outras quatro ingressaram na fábrica de confeções de vestuário Fex.

Trabalhadora numa oficina têxtil da CUF, Barreiro. Imagem: Centro de Documentação Museu Industrial Baía do Tejo.

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Vitória Romão (testemunho oral, gravado em 20 de outubro de 2016).


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"Viemos do Alentejo em 1963. Tinha 12 anos, fiz os 13 já a trabalhar na fábrica (FEX) que era a única que havia na altura. E já tinha dois anos de trabalho, porque quando saí da escola fui logo mondar, apanhar azeitona. Tinha que encher todos os dias uma saca de azeitonas para ganhar 11$00. Fui para a fábrica porque as minhas irmãs, que já lá estavam, pediram. Não tinha experiência, a única experiência que tinha era mondar trigo e apanhar azeitonas. Mas também não fui logo trabalhar para as máquinas, eu e as outras miúdas. As costureiras cosiam nas máquinas e depois tinham uns caixotes muito grandes e o meu trabalho era ir tirar as coisas do caixote e levar para outra parte da produção. Ganhava 7$50 por dia. Eu era pequenina, nas horas livres brincava".10 Algumas das trabalhadoras naturais da freguesia de Alhos Vedros recordam-se, com muita nitidez, dos grupos de mulheres que chegavam do Alentejo e ingressavam de imediato nas confeções, com os seus costumes e dieta alimentar. Conta-nos Judite Faquinha, natural das Arroteias: “Havia muitas alentejanas, novinhas e já mulheres casadas, que viviam na Baixa da Banheira, Barreiro, algumas na Quinta da Lomba, na Moita não tanto, mas vinha muita malta do Montijo e do Pinhal Novo, Lagoínha... As alentejanas… era a maneira delas se safarem do campo, havia muitas que também vieram da cortiça. Por isso é que a maioria dos amigos que tenho são alentejanos. (…). Tínhamos uma hora para o almoço. Almocei muitas vezes umas sandes e um pacote de leite, isto antes do 25 de Abril. Uns levavam um pouco de arroz seco. As alentejanas levavam um chouriço e pão com azeitonas.” O espaço da fábrica acolhe, assim, realidades culturais muito distintas e algumas trabalhadoras recém-chegadas sentem as diferenças como se fossem uma colisão, como nos conta Maria de Jesus, natural de S. Pedro do Esteval (Castelo Branco), então com 18 anos, mas já com uma vida de trabalho no campo, quando chegou à Verona, fábrica italiana, em Coina: "Eu quando ali entrei, tive umas saudades da minha terra, daqueles campos... E senti-me sufocada ali, naquele barulho infernal, imensas máquinas, sufocava-me.”11

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Maria de Jesus Fernandes (testemunho oral, gravado em 25 de outubro de 2016). Maria de Jesus Torres (testemunho oral, gravado em 27 de outubro de 2016).


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Diploma de Antónia Conde Paixão do curso de corte e bordados da Singer (1965). Imagem: Antónia Conde Paixão..

Mas há também quem chegue dos trabalhos agrícolas do Alentejo, com curso de costura, e comece logo a trabalhar para os armazéns de vestuário de Lisboa, como Antónia Paixão12, natural de Perolivas, Reguengos de Monsaraz. Antónia deixou os estudos incompletos e ficou em casa, com 11 anos, a tomar conta dos irmãos, enquanto os pais trabalhavam no campo. Mais tarde, aos 14 anos, foi também ela trabalhar na monda. Ainda no Alentejo, conjuntamente com um grupo de moças, tirou um curso de corte e bordados da Singer e, pouco depois, em 1967, veio para a Moita. Em 1968, comprou uma máquina de costura. Até se reformar, trabalhou durante 30 anos para uma empresa, Rodrigues e Rodrigues, de Lisboa, que dava trabalho de costura à peça. Outras mulheres, após passarem pelo trabalho à peça, ingressarão nas fábricas de confeção de vestuário. É o caso de Ivone Camacho13, nascida em Água Derramada, Grândola, em 1956, filha de trabalhadores rurais e também ela trabalhadora rural. Em 1988, migrou para a Baixa da Banheira. Quando se encontrou desempregada e sem apoios procurou a assistente social. Pagaram-lhe uma máquina de costura para que pudesse criar o seu próprio posto de trabalho. Começou por coser à peça e mais tarde deu também trabalho a outras mulheres. Quando as malhas acabaram, veio a pé da Baixa da Banheira à Moita, batendo à porta de todas as fábricas de confeções, 12 13

Antónia Paixão (testemunho oral, gravado em 24 de agosto de 2016). Ivone Camacho (testemunho oral, gravado em 15 de junho de 2016).


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na tentativa de encontrar trabalho. Na volta para casa passou novamente em Alhos Vedros e conseguiu emprego na fábrica de confeções Multifirma, que trabalhava com a Fristads. Contudo, em meados dos anos 70 do século XX, muitas das mulheres trabalhadoras que se iniciavam cedo na fábrica, depois de casarem e terem filhos, optavam também por ficar em casa e dedicar-se aos trabalhos domésticos e a cuidar dos filhos14, encarando positivamente a situação de domésticas: “Para algumas mulheres a entrada na condição de esposa doméstica corresponde a uma trajectória de mobilidade ascendente, quando têm a possibilidade de passar do emprego para casa”15. Por volta dos anos 70 do século XX, mais de 90% das mulheres que representavam a força laboral feminina pertenciam ao grupo etário entre os 15 e 24 anos16. O desejo de retorno a casa, como donas de casa, podia ter como explicação, segundo Julieta Rodrigues com “… o tipo de trabalho em que estavam envolvidas – repetitivo, rotineiro e sem perspectivas”17. A realidade das categorias impressas nos registos paroquiais locais, nos censos do Reino e nos da República esbarra, no entanto, com a vivência no mundo do povo trabalhador, como acentuou Maria Lamas, em 1948: "No povo não há praticamente, mulheres domésticas. Todas trabalham, mais ou menos, fora do lar. Quando não operárias, são trabalhadoras rurais, vendedeiras, criadas de servir ou «mulheres a dias». Mesmo quando não seguem um horário fixo, pouco permanecem em casa, além do tempo dispensável para as tarefas domésticas, pois se lhe torna forçoso ganhar a vida, mesmo em serviços eventuais”.18 Como a história nos tem revelado, a mulher sempre foi parte determinante na atividade produtiva e na economia. Em inúmera documentação iconográfica da Idade Média, a mulher figura ao lado do homem na realização de diversos trabalhos, pelo menos a mulher do povo. Ela aparece a ceifar, a apanhar erva, na matança do porco, a plantar, a fiar, a tecer, na apanha da azeitona, no açougue. As mulheres trabalham na venda de peixe e de carne, vendem pão, fruta, legumes, sal, vinho, mel, lenha, palha e erva. Estão no comércio e possuem lojas. São taberneiras, tendeiras e merceeiras, tecedeiras, trapeiras, vendem linhas e fitas para confeção de vestuário. Fabricam candeeiros e trabalham na construção civil19. Para a segunda metade do século XVIII, José Gentil da Silva descreve uma diversidade de ocupações das mulheres na cidade ROMÃO, Isabel – Mulheres Portuguesas alguns dados estatísticos. Lisboa: Comissão da Condição Feminina, 1979, p. 5. ROCHA, Cristina, FERREIRA, Manuela – As mulheres e a Cidadania. As Mulheres e o Trabalho na Esfera Pública e na Esfera Doméstica. Lisboa: Livros Horizonte, 2006, p. 183. 16 RODRIGUES, Julieta – Continuidade e mudança nos papéis das mulheres urbanas portuguesas: emergência de novas estruturas familiares. In Análise Social, vol. XIX, n.º 77-78-79. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1983, p. 925. 17 Ibidem, p. 927. 18 LAMAS, Maria – As Mulheres do Meu País. Lisboa: Editorial Caminho, 2002, p. 458. 19 COELHO, Maria - Homens, Espaços e Poderes, Séculos XI-XVI, I – Notas do Viver Social. Lisboa: Livros Horizonte, 1990, pp. 41-43. 14 15


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Livro de Horas (Manuscrito) / (iluminado pelo Maître de l' Échevinage de Rouen). (Rouen, 1426-1476). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: IL. 42 e http://purl.pt/24003. Pormenor das páginas 14, 22, 26 e 32 do Livro de Horas, com ilustrações alusivas aos trabalhos agrícolas. A mulher figura como auxiliar do homem.

de Lisboa: alfaiatas, lavrandeiras, regateiras de porta, padeiras, peixeiras, contadeiras da sardinha, couveiras, medideiras, tendeiras, vendem frangos e caça de porta em porta, pão de ló também, vendem linho e lençaria, vendem legumes20. Num olhar pelo país, refere o autor: “Ver mulheres a trabalhar é habitual”21. Elas assedam linho, trabalham em sedas, fitas e ligas, cavam, aram, migram para a apanha da azeitona, tecem, fiam, e nas fábricas da Covilhã são escolhedeiras, urdideiras, espinzeiras e cerzideiras22. As mulheres sempre trabalharam. Esclarece Claudia Opitz, em a História das Mulheres no Ocidente, que a “… exclusão de um grande número de mulheres do artesanato, da produção e da indústria era um fenómeno específico do século XIX burguês, e que as mulheres trabalhadoras eram encaradas como um caso normal e de modo algum como um caso excepcional na economia dos séculos precedentes”23. O advento da revolução industrial vai operar uma transformação do lugar da mulher no mundo do trabalho e na sociedade, com a construção e divulgação do modelo de mulher “doméstica”. A revolução industrial significou uma oportunidade para as SILVA, José Gentil – A Situação Feminina em Portugal na Segunda Metade do Século XVIII. In Revista de História das Ideias, vol. 4, tomo I. Coimbra: Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1982, pp. 152-156. 21 Ibidem, p. 156. 22 Ibidem, pp. 156-157. 23 OPITZ, Claudia – O quotidiano da mulher no final da idade média (1250-1500). In PERROT, Michelle, e DUBY, Georges – História das Mulheres no Ocidente, vol. II, A Idade Média. Porto: Círculo dos Leitores, 1993, p. 390. 20


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Costumes Portugueses (visual gráfico) Palhares Lith. (1850). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: E.A. 67 V. e http://purl.pt/22226. Estampas da Coleção Palhares números 8 (Mulher vendendo leite na Cidade do Porto), 29 (Lavadeira Saloia), 38 (Mulher vendedora de fruta em Lisboa) e 52 (Mulher vendendo Sapatos em Lisboa). O pequeno comércio é uma das ocupações tradicionais das mulheres, em meados do século XIX.

mulheres poderem trabalhar fora do espaço familiar, mas avivou também uma reação adversa, que a tentará excluir do trabalho assalariado das fábricas e cingi-la ao lar. A condição de doméstica, de indivíduo improdutivo, naturalmente vocacionado para a reprodução e dedicado às tarefas domésticas foi uma disposição que se anunciou na burguesia do século XIX, com a separação entre o público e o privado e a acentuação da diferenciação entre os papéis sociais do homem e da mulher, ideário que se transmitiu


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depois à classe trabalhadora. O modo de vida que se dissemina insinua a obtenção de um "salário familiar" por parte do homem, que permita manter a mulher em casa, ocupada nas tarefas práticas do lar, incluindo a educação dos filhos. O homem deve conseguir prover as necessidades da família, enquanto a mulher aceita a sua submissão e dependência, construindo um lar acolhedor, virtuoso e prazeroso, o lar da família e do chefe da família. Esta arquitetura das "funções" masculina e feminina leva ao surgimento nos recenseamentos gerais, em Inglaterra, em meados do século XIX, de uma categoria até então desconhecida: "mulheres no lar"24, similar à ocupação "doméstica", a que aludimos, representada na documentação da igreja da Moita, de 1896 e 1907-1914. A idealização de uma nova mulher, de uma nova feminilidade, anotava uma incompatibilidade com o trabalho assalariado fora de casa, não apenas pela rudeza dos ofícios, exigentes fisicamente, mas, principalmente, pela impossibilidade de conciliar trabalho e educação da prole. Difundia-se o discurso que o trabalho na fábrica afastava as mulheres da família, do homem e dos filhos. Na verdade, as mulheres concorriam com os homens no mercado de trabalho e eram consideradas uma ameaça, pelos baixos salários que auferiam. Para o patronato, as diferenças de sexo eram irrelevantes e o emprego de mulheres era recorrente, sempre que pretendiam baixar custos de produção e aumentar a rentabilidade. Comentam Marx e Engels a substituição dos homens pelas mulheres na indústria: “Quanto menos habilidade e exteriorização de força o trabalho manual exige, i. e., quanto mais a indústria moderna se desenvolve, tanto mais trabalho dos homens é desalojado pelo das mulheres”25. Durante o século XIX, produziu-se e difundiu-se um discurso que acentuava as diferenças entre homens e mulheres, deixava aos homens o trabalho e a responsabilidade pela subsistência da família e às mulheres a economia da casa, a educação da prole, a transmissão de valores, ser boa esposa e boa dona de casa. É um discurso avalizado por sindicalistas, médicos, políticos e religiosos26 e outros agentes. Lígia Amâncio denuncia mesmo, em Masculino e Feminino, o papel “… da comunidade científica na criação de uma mística que visava empurrar as mulheres para casa.”27. A filosofia da divisão sexual do trabalho era também justificada com base em condicionantes históricas e biológicas, era coisa natural, os homens caracterizavam-se pela mobilidade e as mulheres eram limitadas pela maternidade. Em meados do século XIX, as diferenças transpunham-se mesmo para os anúncios de emprego, como salienta Joan Scott: “Os empregadores descreviam frequentemente os empregos que facultavam como tendo características inerentes a um dos sexos. Tarefas que requeriam dedos delicados e ágeis, paciência e perseverança eram consideradas femininas, enquanto força muscular, velocidade e habilidade significavam masculinidade…”28. Mais possante e robusto, o HALL, Catherine – Lar, doce lar. In ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges – História da vida privada, Da Revolução à Grande Guerra. |s.l.|: Círculo de Leitores, 1990, p. 70. 25 ENGELS, Friederich, MARX, Karl – Manifesto do Partido Comunista. In Colecção Grandes Filósofos. Madrid: Prisalnova S. L., 2008, p. 13. 26 ROCHA, Cristina, FERREIRA, Manuela, ibidem, p. 146. 27 AMÂNCIO, Lígia – Masculino e Feminino. A Construção Social da Diferença. Porto: Edições Afrontamento, 1994, p. 22. 28 SCOTT, Joan – A mulher trabalhadora. In PERROT, Michelle, e DUBY, Georges – História das Mulheres no Ocidente O Século XIX, vol. IV. Porto: Círculo dos Leitores, 1994, p.460. 24


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L’Image du Monde (século XIV). Imagem: Biblioteca Pública Municipal do Porto, cota: Ms. 619 (Santa Cruz 87).

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Livro de Horas (Manuscrito) / (iluminado pelo Maître de l' Échevinage de Rouen). (Rouen, 1426-1476). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: IL. 42 e http://purl.pt/24003. Pormenor da página 30 do Livro de Horas. As ilustrações reproduzem a divisão sexual do trabalho. A mulher é associada à fiação.

homem serve para trabalhos mais pesados, enquanto as mulheres se adaptam a serviços mais ágeis. Para a ligação da mulher à casa terá também contribuído o discurso da igreja, nos séculos XII e XIII, com a “... produção de múltiplos tratados orientados para a definição de perfis modelares adequados aos seus diferentes estatutos sociais, etários ou morais”29 associados a uma nova conceção de mulher, como ser fraco e instável, que interessava resguardar e controlar30, cingindo-a ao privado: “Reconduzida a casa, os principais papéis atribuídos à mulher, independentemente do seu estatuto ou fortuna, são o de procriar, o de velar pela sua família e respectivos bens, o de cuidar, educar e tratar dos filhos…”31. E quanto à educação das meninas, esta compreendia: “… o ensino e o treino das artes da costura e da tecelagem, envolvendo tanto a aprendizagem da confecção e remendo do vestuário e outra roupa, como o fiar, o tecer ou o bordar”32. No campo, as mulheres do povo ainda tinham de aprender a trabalhar a terra. Passados séculos, o Estado Novo, tradicionalista, conservador e católico, reforçará como discurso de regime a ligação da mulher à casa, com a instituição do modelo “fada do lar”, dedicada ao marido e aos filhos. A moral do regime de Salazar determinava os papéis a desempenhar por ambos os sexos e, no caso das raparigas, em 1928, o ensino era orientado para a preparação do que as meninas poderiam fazer dentro do “vasto” horizonte das quatro paredes da casa. A preparação começava na escola primária. Desde pequenas, as miúdas aprendiam "Economia doméstica", uma disciplina da 3ª classe33, onde se inscreviam as "Qualidades necessárias à dona de casa: limpeza, ordem, economia". Na 4.ª classe, havia uma outra disciplina onde 29 OLIVEIRA, Ana, OLIVEIRA, António – A mulher. In MATTOSO, José (dir.) – História da Vida Privada em Portugal, a Idade Média. |s.l.|: Temas e Debates, 2011, p. 307. 30 Ibidem. 31 Ibidem, p. 309. 32 Ibidem, p. 311. 33 DECRETO-LEI n.º 16:077, de 26 de outubro de 1928.


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Meninas numa aula de lavores. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa. PT/AMLSB/ACU002036. A educação das meninas compreendia o ensino das artes de costura.

se ministravam noções de alimentação e culinária. Estipulava ainda, nos "Trabalhos manuais para o sexo feminino", a iniciação à costura (Passajar, casear, remendar, frangir e marcar. Meias e seu conserto). O trabalho de educação visava introduzir as meninas aos trabalhos de casa, para que se tornassem boas donas de casa, aprender a cozinhar, limpar a casa, consertar peças de vestuário. O ideal feminino de circunscrição da mulher ao mundo da casa não era apenas uma questão ideológica, de vínculo tradicionalista e enraizado na classe operária, transformava-se numa solução para diminuir o emprego masculino, uma vez que os baixos salários das mulheres e das crianças na indústria faziam concorrência aos homens, num mercado de trabalho que utilizava as pessoas como máquinas produtivas. O jornal O Corticeiro expunha assim, em 1920, com muita clareza, a questão das mulheres e crianças no mercado de trabalho: "As mulheres e menores são os instrumentos de especulação aproveitáveis pela avidez do industrialismo, que em geral pelo pouco que paga, serve para estabelecer a concorrência do preço do trabalho do homem e muitas vezes até para lhe pagarem menos. Este é o único objectivo da entrada da mulher e dos menores dentro dos serviços industriais, comerciais e de lavoura"34. Na época, os operários corticeiros possuíam, de resto, uma imagem do papel social da mulher eivada de um sexismo desqualificante das reais capacidades do sexo feminino, não deixando dúvidas de que melhor se prestavam em casa a cuidar de si, dos filhos e do marido, do que noutro trabalho. Transcrevemos algumas ideias que parte da classe corticeira detinha da figura feminina, transpostas para o jornal O Corticeiro, como III tese (O trabalho das mulheres e menores dentro das oficinas), a apresentar ao 2.º congresso da classe corticeira, em 1920, no qual participaram corticeiros de Alhos Vedros:

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O CORTICEIRO, edição de 25 de junho de 1920.


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"A mulher, pela sua compleição fisiológica, é um ser tido como mais inferior ao homem. Sendo assim, logicamente se poderá concluir, que, uma vez dedicada a qualquer trabalho um pouco mais violento, enfraquecerá a sua estrutura orgânica, contribuindo esse mesmo facto para o seu definhamento mental (...) A mulher que se dedica às profissões industriais é em regra muito mais fecundina do que as outras, devido, certamente, á falta de tempo que tem para cuidar nos preceitos que podiam evitar a reprodução da espécie, raquítica de corpo e de cérebro (...) Ela que devia ser o ente que podia prodigalisar ao homem no lar uma série de confortos para recompensar as agruras da existência, não o pode fazer pela simples razão das suas atenções serem absorvidas pelo trabalho das oficinas. Uma parte do afecto maternal e conjugal, que deveria ser dispensado com aquele carinhoso anelo dos entes do seu casal, é abalado profundamente, quando em pequena ou adulta, começa nas fainas das oficinas. É que parte da sua docilidade se transforma em modos mais duros, pelos hábitos adquiridos na labuta infernal do trabalho. A sua graça feminina pouco a pouco se perde, como perde o assetinado da pele, tornando o seu busto e as suas mãos formas masculinas. Finalmente, a entrada da mulher dentro das fábricas, arrancando-a do mister do seu lar, é trocar-lhe as qualidades de mãe, de esposa, é viciar-lhe a verdadeira missão que tem a desempenhar, é arreda-la do seu fim social e racional para que foi criada."35 Conclui ainda a tese que a presença da mulher na fábrica responsabiliza-a, também, pelas deficiências na alimentação das crianças, pela mortalidade infantil, pelo abandono na educação da prole. Esta é uma das representações da mulher no seio do operariado corticeiro, na época. Natureza feminina e natureza masculina, construídas as diferenças com base em evidências biológicas ou subjetividades comportamentais, reforçadas pelos poderes discursivos, a discriminação é um facto. A imagem que se reproduz da mulher é a da submissão ao homem. O Estado Novo se encarregará de determinar constitucionalmente (1933) que é pela sua própria natureza que, perante a lei, a mulher e o homem não são iguais: "A igualdade perante a lei envolve o direito a ser provido nos cargos públicos, conforme a capacidade ou serviços prestados, e a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo ou condição social, salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família..."36. As consequências das opções educacionais do Estado Novo não deixam muita margem à maior parte da população sobre os destinos profissionais a seguir: acabada a escola, a primária, as raparigas ficam em casa e

35 36

Ibidem. CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa, 1933, art.º 5.º.


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Jovem carregando um cesto de aparas de cortiça (Moita). Imagem: coleção particular.

Ao centro, dois aprendizes de carpintaria (Moita). Imagem: Teresa Santos.

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Moço entre salineiros (Moita). Imagem: Filipe Campante. Terminada a 4.ª classe, as crianças deixam a escola e entram no mercado de trabalho, como operários, na cortiça, nas oficinas, nas salinas, entre outros.

fazem trabalho doméstico, incluindo costura, os rapazes vão para operários. Mesmo quando ingressam na indústria, dita a discriminação que as mulheres executem trabalho pouco qualificado, na generalidade, enquanto os homens se fazem especialistas. Na prática, em meados do século XX, no que se refere ao concelho da Moita, já tomado pela implantação da indústria corticeira, o horizonte de vida nos primeiros tempos de trabalho determina que as meninas "vão para a costura" e os meninos "dar cortiça à banca", para operários. Fábricas, oficinas, costura, comércio e serviços, é o que se destina à maior parte das crianças que conseguem escapar aos trabalhos nos campos, mal terminada a 4.ª classe, com 10 anos. E se faltam oportunidades na Moita, procuram nos concelhos limítrofes ou do outro lado do rio, em Lisboa. Durante anos, a identidade laboral do concelho, relativamente à indústria, será vincadamente marcada pelas cortiças e pelas confeções de vestuário. A mulher encontrava-se associada, culturalmente, à fiação, aos tecidos, e aos trabalhos domésticos. O desenvolvimento da indústria têxtil irá incorporar milhares de mulheres. Do mesmo modo, o florescimento da indústria de confeções de roupas irá incorporar uma enorme massa de costureiras e de outras mulheres que nunca trabalharam na costura. Embora o trabalho feminino na indústria suplante, em alguns momentos do século XIX, no Porto e em Lisboa, regiões industriais, o trabalho masculino37, o afastamento da mulher da indústria, no princípio do século XX, e a sua associação aos serviços domésticos, diversos ou sem especialização, determinou o perfil da distribuição da população ativa por sexos, prevalecendo os homens na indústria e as mulheres nos serviços. Os gráficos que reproduzimos, a partir do trabalho de Ana Bela Nunes38, ilustram bem o rumo dessa especialização, em Portugal, ao longo de quase um século. SILVA, José – A Mulher e o Trabalho em Portugal. Coimbra: Instituto de História Económica e Social, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986, pp. 26-27. 38 NUNES, Ana – A evolução da estrutura, por sexos, da população activa em Portugal – um indicador do crescimento económico (1890-1981). In Análise Social, vol. XXVI, n.º 112-113. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1991, pp. 716-717. 37


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INDÚSTRIA TRANSFORMADORA

Evolução da população ativa, por sexos, na indústria transformadora*. * adaptado de NUNES, Ana – A evolução da estrutura, por sexos, da população activa em Portugal – um indicador do crescimento económico (1890-1981).

SERVIÇOS DIVERSOS

Evolução da população ativa, por sexos, nos serviços diversos*. * adaptado de NUNES, Ana – A evolução da estrutura, por sexos, da população activa em Portugal – um indicador do crescimento económico (1890-1981).


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No sector industrial, o têxtil, bordados, malhas e confeção de vestuário evoluirão como segmentos tradicionalmente femininos, explorando as características que se consideravam naturais às mulheres, como o jeito ou habilidade para determinadas tarefas e gestos que, afinal, eram produzidos e reproduzidos no domicílio, durante a aprendizagem ou educação, de tarefas da cultura doméstica, como a costura ou a bordadura, entre outros. No ramo das indústrias têxtil e vestuário, a indústria de confeções de vestuário constituir-se-á como a mais predominantemente feminina. Entre 1971 e 1981, a média de trabalhadoras no subsector do vestuário é de 86%, enquanto os homens se ficam por 14%, sendo a maior diferença de valores encontrada, comparativamente com os outros subsectores (lanifícios, algodão, brandas, passamanarias e rendas, lonas, oleados e encerados, sacaria, malhas, cordoaria e redes, telas, tapeçaria e chapelaria)39. Apenas as malhas, com uma média de 74,3%, e as passamanarias e rendas, com uma média de 71,9%, se aproximam ao vestuário. No sector terciário, dos serviços, a presença feminina também é maioritária, no que se refere a "... trabalho social e a prestação de serviços pessoais e de limpeza, a par da educação e da saúde…"40, que conheceu extraordinário desenvolvimento após o 25 de Abril de 1974, com o desenvolvimento das políticas de assistência social e educação.

39 MENDES, Carlos M. S. B., DUARTE, F. R. G. P., ANDREZ, Jaime, SUMMAVIELLE, Teresa M. A. B. – Situação da Indústria Têxtil e do Vestuário Enquadramento do seu Desenvolvimento. |s.l.|: Ministério da Indústria e Energia, Direcção Geral da Indústria, 1984, p. 153. 40 CARDOSO, Ana Rita – Trabalho Feminino em Portugal: Valorização da Mulher na Economia ou Valorização da Economia com a Mulher?. Lisboa: CITE, 1997, p. 26.


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N

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5.2 PADRÕES CULTURAIS

o princípio do século XX, pelo edital do Governador Civil do Districto de Lisboa, de agosto de 1910, sobre o “contigente da contribuição predial de 1910”, calculado com base no rendimento coletável de cada concelho, percebemos que o concelho da Moita apresentava o menor rendimento coletável (49:945$106), entre 25 concelhos. Por exemplo, comparativamente ao da Moita, o Montijo (Aldegallega do Ribatejo) apresentava o dobro (99:569:150$009), Almada, o triplo (159:542$106). As condições de saúde da população, no período em causa, estariam muito longe do desejável. Como refere J. Proença, no seu relatório de janeiro de 1911: “… as condições de saúde da população não são boas. As condições mesológicas, derivado da situação das povoações são más devido á humidade do ar e do solo e devido á falta de protecção contra o vento. A tuberculose, o reumatismo, o álcool e o sezonismo concorrem bastante para a insalubridade, se bem que esta última causa esteja bastante atenuada comparativamente com o que já foi n’este concelho e com o que se observa em muitas outras regiões do país”41. Contudo, o médico descreve ainda uma situação que agravava a mortalidade infantil no concelho: “Uma causa que faz avultar o obituário é a falta de higiene na alimentação das creanças e, sendo quasi geral no concelho esta causa de doença e de morte infantil, ella incide n’este ainda mais pelo motivo de muitas mulheres exercerem a amamentação mercenária de creanças na cidade de Lisboa.”

Naturalmente, as viagens da Moita para Lisboa faziam-se por barco à vela. Não sabemos se iam numa maré e vinham na próxima, se por lá pernoitavam ou ficavam mais dias, se os filhos eram amamentados por outras mulheres ou se já ingeriam alimentos sólidos. Um estudo de 1942, portanto passados quase 30 anos da carta de Proença, concluía que "... a grandíssima maioria das crianças portuguesas nunca bebe leite e que o desmame continua a ser feito com açorda e caldo de panela"42. Certo é que a amamentação mercenária configurava, de algum modo, "... uma forma de abandono e negligência por parte das mães (...) vista também como sinónimo de ausência de vínculo e investimento afectivo na relação mãe-filho"43. As proles eram vastas, a miséria muita e a mortalidade infantil elevada. AMM, carta de José Proença sobre saúde e robustez da população do concelho da Moita, de 30 de janeiro de 1911. LOUREIRO, J. A. M. de - Estimativa das disponibilidades alimentares da população no Continente português. Sep. Amatus Lusitanus, vol. I, n.º 6. |s. l.|: Livraria Portugal, 1942. Op. cit. in ALARCÃO, J. – Estimativa do nível de vida da população operária portuguesa. In VIEIRA, Eurico – Revista de Economia, vol. I, fascículo I. Lisboa: José Sá, 1948, p. 23. 43 ROCHA, Cristina, FERREIRA, Manuela, ibidem, p. 164. 41

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Tabela da distribuição do contingente da contribuição predial de 1910. Imagem: Arquivo Municipal da Moita. O concelho da Moita é o que apresenta o menor rendimento coletável, entre os 25 concelhos do Districto Administrativo de Lisboa.

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Carta de J. Proença, dirigida à Câmara Municipal da Moita, sobre a Saúde e robustez da população do concelho da Moita (1911). Imagem: Arquivo Municipal da Moita. J. Proença alerta para diversas situações que comprometem a saúde da população: tuberculose, reumatismo, alcoolismo, a falta de higiene na alimentação das crianças e a amamentação mercenária, que o médico responsabiliza pela mortalidade infantil.

O relatório do médico J. Proença, de 1911, é sucinto, mas no pouco que escreve muito se descobre. Um dos problemas que o alarma e aponta é o alcoolismo. Descobrimos a dimensão desse flagelo, passados 11 anos, em 1922, nas páginas de Oriente, do Clube Recreio e Instrução (CRI). Em mais de metade dos números então publicados (números 4, 5, 6, 8 e 9), os editores denunciam sistematicamente o alcoolismo e a vida de taberna, em extensos artigos. Na primeira página do n.º 9, de 28 de maio de 1922, o artigo "A degeneração infantil da nossa terra" ilustra, desassombradamente, não só a degradante cultura juvenil da época como também os malefícios que os hábitos de taberna produziam nos jovens: "E por último, e o que é bem mais grave, é vê-la na taberna, bebendo, fumando e jogando de parçaria com adultos que a explora e que a deprava. E é assim, logo ao despontar, que inicia, tão infelizmente, a escola da corrupção, entrando dentro em pouco na do vício e da degradação. E é bem triste saber-se que, na nossa terra e em resultado de tão descuidada, e quiçá quasi criminosa, falta de educação, os professores se veem constrangidos para a conter nas aulas, manifestando-se essa falta pela vida adiante, chegando até ao máximo de haver quem injurie e agrida os seus próprios progenitores!!."44

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ORIENTE, Clube Recreio e Instrução, edição de 28 de maio de 1922, p. 1.


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Nas páginas que dedica à caracterização da Alhos Vedros de 1917, Manuel António Bôto, sindicalista e revolucionário, não ignora o ambiente de taberna na terra, violento: "Havia também muitas, mas muitas mesmo, tabernas, onde se vendia vinhaça... e alguma dela até feita de uva e se jogava às cartas, onde, por vezes os ardores do álcool e o jogo do baralho armavam cada desordem, ao ponto do regedor e os seus dois «cabos dordes» terem de intervir a porrete limpo que eram as armas então usadas, para separar os desaguisados contendores de ocasião"45. Não só o ambiente masculino de taberna é um horizonte de afirmação e integração para os jovens como a escola pouco ou nada significa para a maioria. E as raparigas ainda desistem mais cedo, para que possam ajudar em casa. Ainda quanto ao alcoolismo, instituía o Estado Novo, em 1928, uma disciplina na 4.ª classe, para as meninas, sobre o "Papel da mulher na luta contra o alcoolismo"46. O alcoolismo não era, assim, somente problema de homens. As mulheres, que figuravam como o esteio moral da família, eram a solução, mas sofriam, tal como as crianças, as consequências do alcoolismo. O Estado, por seu lado, mantinha um duplo discurso sobre o consumo de vinho, atuando também como seu promotor, nos anos 30 do século, em campanhas que deixaram algumas mensagens para a posteridade: “Beber vinho é dar o pão a 1 milhão de portugueses”. Passados quase 50 anos das edições de o Oriente, chega a Alhos Vedros o Padre Carlos Póvoa Alves, em 1969, ainda a tempo de presenciar e recordar posteriormente, em 2015, de como eram tantas as tabernas na terra: "Terra tão pequena nesse tempo, mas farta em tabernas"47.

Oriente, jornal do Clube Recreio e Instrução (CRI), Alhos Vedros, 1922. Imagem: Clube Recreio e Instrução. O Oriente menciona, em diversas edições, o problema do alcoolismo.

Mulheres escolhendo rolhas de cortiça. Imagem: Biblioteca Municipal da Moita. Reservados. Ilustração Portugueza, n.º 247, de 14 de novembro de 1910, p. 629 (clichés de Gerardo). A escolha de rolhas ou a costura de redes para a cortiça eram trabalhos normalmente atribuídos às mulheres.

BÔTO, Manuel António – A Saga de Elaudo Tarouca. |s. l.|: Edições e Promoções Ribeirinhas, Lda., 2000, p. 22. DECRETO n. 16:077, de 26 de outubro de 1928. 47 ALVES, Padre Carlos F. Póvoa – Subsídios para a História de Alhos Vedros 2. Alhos Vedros: Igreja Paroquial de Alhos Vedros, 2015, p. 64. 45 46


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O concelho, tal como o país, era rural e católico. O homem temente a Deus, a mulher temente a Deus e sob o jugo do homem. Os homens inscreviam-se na esfera produtiva, no mundo do trabalho, eram chefes de família, enquanto as atribuições das mulheres circunscreviam-se, praticamente, ao espaço doméstico, à esfera reprodutiva, ao domínio da família, ajudavam os homens. Os homens habitavam o espaço público, a rua e as tabernas, e alguns perdiam-se no jogo, na bebida, desperdiçando os parcos recursos e aumentando a miséria. A mulher habitava o espaço privado, a casa, entre quatro paredes, educava moralmente a vasta prole, preparando e desenvolvendo nas filhas os dotes práticos que uma boa esposa e dona de casa deveria possuir. E era assim que as identidades de género se organizavam, transpondo também as diferenças para a vida laboral, vincando uma divisão sexual do trabalho quase integral. Reconheciam-se atributos físicos ao homem, como a força, e atributos físicos à mulher, como a agilidade, a destreza – a escolha de rolhas nas cortiças era um trabalho geralmente dado às mulheres. Na agricultura era diferente, porque tanto cavava a mulher como o homem, sem distinção a não ser no salário. O dever de proteger a família pertencia ao homem, enquanto a mulher devia obediência ao marido48. A cultura masculina não rejeitava a violência, pelo contrário demonstrações de coragem e temeridade, situações de desafio, refrescavam um padrão cultural que tinha tudo de tradicional, caso das festas com touros, na Moita, ou do jogo do pau, em Alhos Vedros, que, nos anos 80 do século XX, ainda acolhia uma escola, então na vertente desportiva. Era uma cultura que também se abatia sobre as mulheres e as crianças, vítimas de punições físicas, padrão comportamental que mais tarde se concetualizou como “violência doméstica”, como crime. Segundo Luísa Silva, a violência dos homens sobre as mulheres ou o «direito de bater na mulher» é um tema relativamente recente que só terá acolhido alguma abrangência de olhares a partir dos anos 70 do século XX49. Ainda segundo a autora, “A submissão da mulher no casal não acaba com o reconhecimento social do direito à igualdade. A história da mulher no Ocidente demonstra que a regra da autoridade marital na família se manteve bem para além da estrutura social de tipo patriarcal, através de instituições sociais como o direito e a religião”50. Foi preciso também a abertura que Abril proporcionou para que se desenvolvessem os estudos sobre as mulheres51 em Portugal: "No contexto da efervescência política e cultural que acompanhou a passagem para a democracia, a história das mulheres foi um dos campos de investigação que então emergiu, beneficiando de uma série de circunstâncias que proporcionaram o seu acolhimento no seio da disciplina histórica"52. Entretanto, pela força, era assim que o poder patriarcal se impunha, muitas das vezes, e por vezes sem mais razão que a produzida pelo excesso de vinho. E reproduzia-se. Em 1930,

CÓDIGO Civil Portuguez, 1867, art.º 1185.º. Lisboa: Imprensa Nacional, 1968, p. 208. SILVA, Luísa - «O direito de bater na mulher» – violência interconjugal na sociedade portuguesa. In Análise Social, vol. XXVI, n.º 111. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1991, p. 385. 50 Ibidem, p. 386. 51 VAQUINHAS, Irene – Linhas de investigação para a história das mulheres nos séculos XIX e XX. Breve esboço. In Revista da Faculdade de Letras História, n.º 3. Porto: Universidade do Porto, 2002, p. 201. 52 Ibidem, p. 203. 48 49


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Salineiros na Moita (198-). Imagem: Vitor Mendes. Rapação de sal nas salinas da Moita, no principio dos anos oitenta do século XX.

Salinas na freguesia de Alhos Vedros (1987). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Gabinete de Informação e Relações Públicas. Nos anos trinta do século XX, a brancura dos talhos das salinas, os vinhedos e hortas impressionavam os visitantes. O concelho era predominantemente agrícola.

o Bandarilhas de Fogo – jornal taurino – noticiava a Moita como exemplo de “Padrão de trabalho e de afición”, relevando os vinhedos, as salinas e as hortas da ruralidade local. Era a Moita agrária. Em Alhos Vedros, no entanto, a indústria já despontara. Mas, quer numa terra quer noutra, as condições de vida da população, no período em causa, eram extremamente difíceis: os trabalhadores recebiam baixos salários, muito do trabalho ainda era na agricultura e sazonal e nem sempre se trabalhava todos os dias da semana, muito simplesmente porque não havia trabalho. Num território de carências diversas, algumas ao nível da subsistência, todos os braços capazes contavam para aumentar o rendimento familiar e os filhos eram enviados para as fábricas, ainda em idade escolar. Relata o Avante!, a situação em Alhos Vedros, em 1934: “As 18 fábricas de cortiça trabalham, actualmente, 6 meses por ano e os trabalhos rurais estão quase parados. A miséria aumenta a cada dia que passa. Os salários são limitadíssimos. Os operários enviam os filhos, de 8 e 10 anos para as fábricas e oficinas para conseguirem mais 2$000 por dia. Nos campos os salários são de 6 e 7 escudos. A fome e a miséria assolam esta região”53. Um inquérito produzido em 1918 já havia concluído que o nível de alimentação dos operários portugueses se encontrava no mínimo suficiente, embora já com um défice de 4% em relação ao padrão. Entre 1938 e 1940, as condições de subsistência agravam-se e o défice já atingia os 26%, ou seja "um défice calórico de 890 calorias por dia..."54. Em 1943, durante a II Guerra Mundial, escasseiam os bens essenciais, a fome alastra e rebentam as greves de 4355. A classe trabalhadora, que luta diariamente para se manter, não possui recursos para suportar as crianças na escola. Em 1918, 72% do orçamento familiar de um operário

AVANTE, II série, n.º 3, edição de novembro de 1934, p. 6. ALARCÃO, J. – Estimativa do nível de vida da população operária portuguesa. In VIEIRA, Eurico – Revista de Economia, vol. I, fascículo I. Lisboa: José Sá, 1948, pp. 22-24. 55 Vd. FERREIRA, Sónia – A fome saiu à rua: as greves de 1943 vividas pelas operárias de Almada. In Ciências Sociais – Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa, n.º 18. Lisboa: Edições Colibri, 2006. 53 54


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português era absorvido pelos gastos com a alimentação56, havendo ainda a acrescentar, depois, rendas, vestuário e outros. A opção é retirar as crianças do ensino. Em 1930, tempo de Estado Novo, em cada 100 indivíduos 70 não sabiam ler57, a instrução não era uma prioridade, servia antes a endoutrinação dos referenciais “Deus, Pátria, Família”, enaltecendo a vida rural. Para o Estado Novo, “… não fazia sentido transmitir muitos conhecimentos a alunos que apenas viriam a desempenhar trabalhos servis”58. Bastaria saber ler e escrever. A identidade oficial da Moita até ao fim do Estado Novo, como vimos, era rural. Ruralidade sustentada por uma força de trabalho barata, que interessava preservar e que dispensava o desenvolvimento da escolaridade, responsável por afastar as novas gerações do campo, levando-as para a cidade e para a fábrica. Alguns rurais consideravam, em 1928, que “…a única função real da escola primária consistia em roubar braços aos campos e criar um exército de trabalhadores urbanos descontentes e perigosos”59. Numa terra avessa à industrialização, apegada à ruralidade e interessada na manutenção da estrutura de classes, a escolaridade e a criação de condições de desenvolvimento intelectual das populações, que permitisse alguma mobilidade social, não conheceram grande empenho. No final dos anos 40 do século XX, a reboque da industrialização e pela necessidade de formação de operários qualificados, o Estado Novo mudaria de pressupostos educativos, com a expansão da rede escolar do ensino técnico. Enquanto o Barreiro teve a sua escola comercial e industrial (Alfredo da Silva) em 1947 e o Montijo em 1957, só em 1974, o concelho da Moita veria serem construídos um liceu e uma escola preparatória. Até 1974, a Moita nada mais tinha para oferecer do que a escola primária e a maior parte dos alunos interrompiam os estudos na 4.ª classe. As famílias não possuíam recursos nem para pagar apoios para exames de admissão, nem para as deslocações diárias para o Barreiro ou Montijo. O facto é que muitas das crianças passavam pela escola, faziam a primária, mas não percebiam muito bem qual a serventia ou utilidade dos estudos. Na generalidade, depois da 4.ª classe, as meninas eram retiradas da escola, deixadas em casa, iam para a costura, outras iam para o campo, servir nalguma casa ou então aguardar por “algo” que aparecesse. As expectativas não eram muitas. O testemunho de Cristina Campante (nascida na Moita, em 1952) expõe com muita nitidez a mentalidade da época (início dos anos 60 do século XX), que admitia como naturais e fazendo parte da ordem das coisas as desigualdades sociais e a discriminação das mulheres:

ALARCÃO, J., ibidem, p. 19. MÓNICA, Maria - “«Deve-se ensinar o povo a ler?»: a questão do analfabetismo (1926-39)”. In Análise Social, vol. XIII, n.º 50. Lisboa: Gabinete de Investigações Sociais, 1977, p. 321. 58 Ibidem, p. 345. 59 Ibidem, p. 339. 56 57


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Cristina Campante. (Trabalhadora da Convex e dirigente sindical). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto.

Cristina Campante na máquina de numerar peças (Convex), entre 1974/75. Imagem: Cristina Campante. As fábricas de confeções incorporavam uma vasta mão-de-obra jovem.

“Quando acabei a escola, queria continuar os estudos – nessa altura, quando se fazia a 4ª classe, depois ia-se fazer a admissão – e a professora, que lá me achou com alguns dotes, com capacidade para continuar, foi a casa dos meus pais pedir para me deixarem fazer a admissão, que eu devia continuar – era uma miúda ainda, fiz muito rapidamente a 4.ª classe, tinha muita facilidade de assimilar–, e que deviam, portanto, deixarem-me fazer a admissão. Sei que não fui autorizada porque… pronto, lá está aquela mentalidade que era. Uma das coisas que o meu pai referenciava era: «Os rapazes não querem e não falam disso de admissões e agora a rapariga é que ia para a admissão? Não senhora, fez a 4.ª classe e já chega» (…) A professora ficou com muita pena e eu não fiz mais nada. Gostava muito de escrever e de ler (…) sentia que tinha alguma capacidade e as pessoas que estavam do lado de lá, naturalmente a professora, ainda sentiria isso muito mais, porque era a pessoa que me avaliava. Daí que se dignou mesmo dirigir à casa dos meus pais para falar com eles e pedir. Quem é que continuava os estudos? Ia uma ou outra, mas eram filhas dos senhores…. Era essa a visão do meu pai, continuava os estudos a gente que tinha muito dinheiro, que eram os ricos da altura. Aí fazia sentido. Agora, quem era pobretana… qual estudar? Não tinha lógica nenhuma! É para a frente, para ficar em casa, a tomar conta dos irmãos, arrumar a casa e, depois, mais tarde, logo se via o que é que aparecia."60

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Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 13 de junho de 2016).


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Os indicadores publicados em 1970, respeitantes ao final dos anos 60, revelam bem as consequências de anos de desvalorização da educação. Sobre o “Prosseguimento dos estudos após a 4.ª classe (1967/68 – 1968/69)”61, os indicadores expunham um concelho que não deixava muitas oportunidades para a continuidade da escolaridade. De facto, entre os 20 concelhos considerados, apenas Arruda dos Vinhos apresentava uma taxa de prosseguimento dos estudos inferior à Moita. Os resultados são conclusivos e colocam à frente os concelhos mais industrializados: Barreiro, 115,6%; Almada, 74,3%; Seixal, 65,6%; Alcochete, 35,8%; Moita, 19,4%. Na prática, cerca de 80,6% das crianças do concelho da Moita que terminam a 4ª classe abandonam de seguida a escola. As taxas de passagens (transição) nos concelhos de Barreiro, Almada e Seixal, entre 1964-65 e 1967-68, são sempre superiores às da Moita, quer na 1ª, 2ª, 3ª ou 4ª classes. Em alguns casos, como na 2ª classe, a diferença supera os 10 pontos (Moita, 74; Barreiro, 84)62. O estado da educação da população, as baixas qualificações, influenciam também outras situações, como a saúde, o emprego, as remunerações auferidas. Um estudo sobre condições de vida na zona de Lisboa, entre os anos 1966 e 1969, portanto em vésperas de Abril, revela um concelho da Moita em “situação de atraso geral”63. A taxa de mortalidade infantil continua a ser um indicador penalizante: Moita (68,4%); Almada (60,7%); Seixal (52,1%); Montijo (49,5%), Alcochete (48,5); Barreiro (28,5%)64. Relativamente aos concelhos em comparação, a mortalidade infantil na Moita é a mais elevada, apesar de possuir o segundo melhor indicador em partos assistidos, derivado, acreditamos, da assistência prestada pelo Hospital de Alhos Vedros. O problema coloca-se, pois, após o parto. A Moita é também um dos concelhos onde se registam os piores rendimentos dos seus habitantes. Entre 20 concelhos, a Moita só apresenta valores superiores a Alenquer, Arruda dos Vinhos e Salvaterra de Magos. No que se refere aos concelhos que temos vindo a colocar em confrontação, o resultado do imposto profissional (1968) em contos, por 1000 habitantes, era o seguinte: Seixal, 105,08; Almada, 88,90; Barreiro, 83,73; Alcochete, 60,9; Montijo, 40,34; Moita, 19,51. O indicador de consumo de energia elétrica para fins industriais (1968) representado em KWh por habitante, era também o pior: Barreiro, 5082,94; Seixal, 3446,72; Alcochete, 1195,23; Montijo, 762,34; Almada, 551,90; Moita, 179,53. São indicadores que revelam inúmeras insuficiências estruturais, efeito, em princípio, da filosofia de desenvolvimento local prosseguida, assente na agricultura. Além da Moita, também os concelhos de Montijo e Alcochete, de vocação agrícola, são incluídos nos concelhos com atraso geral. Regressemos aos indicadores relativos ao emprego e indústria, para considerar a remuneração média diária dos trabalhadores, em meados 61 COSTA, Alfredo – Indicadores económicos sociais e de nível de vida na zona de Lisboa. In Informação Social, Boletim do Ministério da Saúde e Assistência, vol. V, n.º 19, julho-setembro. Lisboa: Ministério da Saúde e Assistência, 1970, p. 22. 62 LOFT, Pedro – Escolaridade obrigatória e aproveitamento escolar no ensino primário elementar. In Informação Social, Boletim do Ministério da Saúde e Assistência, vol. V, n.º 19, julho-setembro. Lisboa: Ministério da Saúde e Assistência, 1970, p. 131. 63 COSTA, Alfredo, ibidem, p. 31. 64 Ibidem, p. 22.


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dos anos 60 do século XX: Barreiro, 92$30; Seixal, 72$20; Almada, 66$90; Moita, 42$0065. A média de remunerações dos trabalhadores na Moita é menos de metade do rendimento auferido no Barreiro, portanto. São questões estruturais que já possuem antecedentes, uma vez que, entre 1957 e 1964, os valores médios das remunerações no Barreiro são superiores à média e a Moita possui sempre valores inferiores à média, "...(destacando-se o valor de 1964, por ser extremamente baixo)"66. Além de salários mais baixos, os trabalhadores da Moita são também aqueles que menos dias trabalham por ano (239), comparativamente com Seixal (287), Almada (283) e Barreiro (276)67. O concelho apresentava ainda o pior indicador ao nível da “qualificação do pessoal”68. O estudo, que dividiu os concelhos em três grupos (zona A, zona B e zona C), colocou o concelho da Moita na zona C, e concluiu: “Zona «C» – É a zona mais desfavorecida do ponto de vista industrial, caracterizada por essa actividade não ser a mais importante (Cascais), ou ser pouco evoluída (Moita). A qualificação do pessoal, a dimensão média das empresas segundo o volume de emprego e a remuneração média têm valores muito baixos. De salientar a sua reduzida importância na zona, fundamentalmente quanto à concentração industrial e ao volume de emprego.”69

Trabalhadora junto a uma prensa (Gefa). Imagem: Teresa Araújo.

Grupo de trabalhadoras na Helly-Hansen. Imagem: Maria Luísa Figueira.

MATEUS, Augusto, VITORINO, Nuno – Alguns aspectos de uma análise sócio-económica da cintura industrial de Lisboa. In Informação Social, Boletim do Ministério da Saúde e Assistência, vol. V, n.º 19, julho-setembro. Lisboa: Ministério da Saúde e Assistência, 1970, p. 100. 66 Ibidem, p. 99. 67 Ibidem. p. 100. 68 Ibidem. 69 Ibidem, p. 110. 65


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Era mais ou menos este o retrato social do concelho no final do Estado Novo. Anos de ideário fisiocrático produziram uma população com baixas qualificações e fracos salários e um território onde não era fácil viver, com carências várias. Falta de escolas, muitas das ruas ainda em terra batida, mais de metade da população sem acesso à rede elétrica, água canalizada apenas nos principais núcleos urbanos, falta de rede esgotos, necessidade de mais habitações70, entre outros, penalizavam grande parte da população, principalmente as mulheres. Nos Cadernos da Condição Feminina, registava Isabel Romão que, no princípio dos anos 70, as taxas de atividade feminina começavam a aumentar a partir dos 10 anos, atingindo o valor máximo dos 20 aos 24 anos71. São taxas que refletem o problema do “Abandono dos estudos numa idade precoce, por vezes, antes do fim do ensino primário72”. Refere ainda a autora: “As raparigas deixam, portanto, a escola numa idade em que deveriam continuar a sua formação. Isto impede o desenvolvimento das suas potencialidades e vai reflectir-se ao longo de toda a sua vida…”73. Por vezes, mesmo as boas alunas não encontravam motivos para continuar os estudos. É o caso de Lucília Lourinhã74 que, em 1976, desistiu de estudar no então liceu da Moita. Como relatou, no final do 1.º período, faltavam professores, não haviam livros, aborreceu-se e desistiu da escola com mais duas amigas, aos doze anos. Passou uns anos em casa, aos 15 anos fez alguns trabalhos esporádicos nas vindimas e nas hortas, e aos 17 entrou para as confeções, passando pela Lander, Gefa, Helly-Hansen, Norporte. Foi costureira e chefe de linha. Como referiu ainda, quando desistiu da escola, aos doze anos: “Naquela altura havia muito trabalho. As pessoas não pensavam muito em estudar”. As condições estruturais de vida, como vimos, eram muito desfavoráveis, baixos rendimentos, dificuldades várias entre as quais a falta de orientação, entrada precoce na vida ativa, escassez de escolas e a desvalorização da escolaridade faziam com que a desistência da escola, mais do que uma opção individual, fosse uma decisão de grupo. Desistia uma, desistiam duas ou três. O contexto de censura, durante anos, tentara restringir mundos e horizontes, ordenando o respeito pelos costumes tradicionais, pelos valores da família, pela obediência aos mais velhos, mas, de todas as formas, o mundo deslumbrava e o desejo de libertação e autonomia era imparável. Os jovens já ambicionavam possuir as suas próprias coisas e construir a sua identidade e percurso de vida e a solução era trabalhar, não para o orçamento da casa, mas para si próprios. No início dos anos 70 do século XX, as fábricas de confeções no concelho acolhiam esta vasta mão-de-obra feminina e jovem. As baixas qualificações transformaram o concelho num imenso reservatório de mão-de-obra barata, sobressaindo a indústria corticeira e as confeções de vestuário como principais empregadoras. Em 1989, o concelho será mesmo considerado altamente especializado nas confeções de vestuário e o maior empregador do ramo no distrito de Setúbal, com 2188 trabalhadoras. PEREIRA, José Luis (coord.) – Município da Moita 20 Anos de Poder Local. Moita: Câmara Municipal da Moita, 1997, p. 4. ROMÃO, Isabel – Mulheres Portuguesas alguns dados estatísticos. Lisboa: Comissão da Condição Feminina, 1979, p. 9. 72 Ibidem, p. 10. 73 Ibidem. 74 Lucília Lourinhã, (testemunho oral, gravado em 6 de setembro de 2016). 70 71


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5.3 ADEPROFISSÃO COSTUREIRA

provérbio “A fiar e a tecer ganha a mulher de comer”75, referido por Maria Coelho em "A mulher e o trabalho nas cidades medievais portuguesas", reflete bem a relação da mulher com a produção têxtil na idade medieval, bastante significativa, segundo Joana Sequeira76. Refere ainda a autora: “A fiação, por exemplo, era uma competência inerente à condição feminina e, portanto, inserida na educação que a mulher recebia em casa desde muito cedo, a par de uma série de outras competências relacionadas com as atividades comuns”77. A julgar pelas Ordenações de D. Duarte (reinado entre 1433-1438), no capítulo "... em quaees cassos podem testemunhar as molheres", a mulher poderia ser considerada entendida em assuntos de fiar e tecer: "Testemunho de molheres valera segundo o custume Jeerall da cassa del rrey E do rreino em cassos que forem (...) feitos de fiar E de teçer..."78. Na Idade Média, na matéria em causa, valia o juízo da mulher. Fiar e tecer linho e lã eram trabalhos femininos79. O Regimento das Fabricas dos Pannos destes Reynos, de 1690 (republicação do Regimento ordenado por D. Sebastião, em 1573), menciona as mulheres como fiadeiras80. Não se conhece

Senhoras a fiar. Imagem: Fotografia Alvão, Lda., PT/CPF/ALV/029006, Imagem cedida pelo Centro Português de Fotografia.

Rapariga a fiar (1937). Imagem: José Gouveia Gomes Junior, PT/CPF/JGGJ/001/000156, Imagem cedida pelo Centro Português de Fotografia. A aprendizagem da fiação fazia parte da educação feminina.

COELHO, Maria, ibidem, p. 45. SEQUEIRA, Joana – O Pano da Terra Produção têxtil em Portugal nos finais da Idade Média. Porto: Universidade do Porto, 2014, p. 142. 77 Ibidem, p. 124. 78 REI D. DUARTE – Ordenações Del-Rei Dom Duarte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p.134. 79 COELHO, Maria, ibidem, p. 45. 80 REI D. PEDRO II – Regimento das Fabricas dos Pannos destes Reynos. Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1690, p. 48. 75 76


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tradição de fiação ou produção de têxtil no concelho. O Foral de Alhos Vedros, de 1514, nada refere sobre fiação, tecelagem ou comércio de artigos associados. Não seria, porventura, uma das vocações económicas do então concelho de Alhos, mais dado a vinhas e salinas. A proximidade de Lisboa e a facilidade de transportes entre uma margem e outra resolveriam, de certo modo, a questão do aprovisionamento de tecidos ou vestuário. Na época, a confeção de vestuário estava entregue a alfaiates, que “… faziam tanto o vestuário feminino como o masculino. O sector era claramente dominado pelos homens…”81. Existiam também alfaiatas, como as do Porto, que confecionavam vestuário, conforme o livro de vereações da cidade, de 1431-143282. Segundo Françoise Piponnier, terá sido no século XV que “… o ofício de alfaiate ou costureiro passou para mãos masculinas”83. Na cidade de Lisboa, por exemplo, no Livro dos regimetos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sepre leal cidade de Lixboa, de 1572, no capítulo da examinação de competências para o exercício do ofício são mencionados alfaiates tanto para trajes de homens como para a execução de trajes de mulheres84. No estudo que fez sobre as atividades económicas desta margem, António Ventura, referencia a existência de um alfaiate na rua Direita, em Alhos Vedros, em 1762, um em Alcochete (1763)85, outro no Lavradio (1693)86. Das 35 profissões

Livro dos Desobrigas da Freguesia de Nossa Senhora da Boa Viagem da Moita do Ribatejo (1896). Imagem: Arquivo da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Boa Viagem, Moita. Na Travessa do Hespanhol localizava-se um agregado familiar constituído por uma engomadeira (mãe e viúva, 47 anos), um marítimo (filho e solteiro, 23 anos) e duas costureiras (filhas e solteiras, de 19 e 16 anos). Apenas a mais nova sabe ler e escrever.

Anúncio da Alfaiataria Tesoura de Ouro, no jornal “O Futuro”, Moita (1917). Imagem: Biblioteca da Universidade de Coimbra, cota: G.N.-5-10.

SEQUEIRA, Joana, MELO, Arnaldo Sousa – “A mulher na produção têxtil portuguesa tardo-medieval”. Medievalista [Em linha]. Nº11, (janeiro - junho 2012). |Consultado em 09.10.2016|, disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA11\textil1105.html. 82 COELHO, Maria, ibidem. 83 PIPONNIER, Françoise – O universo feminino: espaços e objectos. In PERROT, Michelle, e DUBY, Georges – História das Mulheres no Ocidente, vol. II, A Idade Média. Porto: Círculo dos Leitores, 1993, p. 446. 84 CORREIA, Virgílio – Livro dos regimetos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sepre leal cidade de Lixboa (1572). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926, pp. 242-243. 85 VENTURA, António – A "Banda d'Além e a cidade de Lisboa durante o Antigo Regime: uma perspectiva de história económica regional comparada. Doutoramento em História, especialidade: História Moderna. Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2007, pp. 86-87. 86 Ibidem, p. 47. 81


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elencadas em Alhos Vedros, no ano de 176287, apenas uma, a de padeira, é referida como especificamente feminina. São escassas as fontes referentes ao trabalho feminino. Pouco considerado e quase sempre oculto, o que existe encontra-se disperso. No entanto, quer no final do século XIX, quer no princípio do século XX, além de referências a alfaiates na Moita, encontramos também a indicação de costureiras. Em 1896, na área urbana da vila da Moita existiam três alfaiates: Augusto Pinto Cardozo, 28 anos, natural do Porto, a residir na Rua Direita do Caes; Manuel António Soeiro88, 42 anos, natural da Moita, a residir no Largo do Cisma; Miguel António Soeiro, 80 anos, natural da Moita, a residir na Rua Direita de Setúbal. Todos sabiam ler, o que parece ser uma constante tanto para alfaiates como para costureiras. Em 1907-1914, são apenas dois alfaiates: Eduardo Soeiro, 24 anos, morador na Rua Direita, e José Bernardo Gomes, 48 anos, morador no Largo do Príncipe D. Carlos. Quer num momento quer noutro, as costureiras são sempre em maior número que os alfaiates. Enquanto os registos dos alfaiates se referem a um titular por família, embora possamos ponderar contarem com ajudantes ou com o apoio familiar, no caso das costureiras, a profissão surge como uma atividade de família e, como nos apercebemos, algumas são bastante novas de idade. Publicamos a informação que consta na documentação que tem sido referenciada, para que possamos ter uma ideia de como eram constituídos os agregados familiares das costureiras. DESOBRIGAS DA FREGUEZIA DE N.ª S.ª DA BOA VIAGEM DA MOITA DO RIBATEJO 1896 N.º Rua do fogo

Nome dos chefes de família e mais pessoas que a compõem

Estado

Profissão

Idade

Instrução

124

Maria do Carmo Vieira da Silva

Viúva

Doméstica

52

Ler e escrever

Vugina do Carmo Vieira da Silva Solteira (filha) Luiza do Carmo Vieira da Silva Solteira (filha) Maria Augusta Vieira da Silva (filha) Solteira

Costureira

26

Ler e escrever

Costureira

24

Ler e escrever

Costureira

18

Ler e escrever

Thereza de Jesus Costa

Viúva

Proprietária

60

Ler e escrever

Thereza de Jesus dos Santos (filha) Henrique dos Santos (filho) Gertrudes Magna dos Santos (filha) Joaquim dos Santos (filho) Eliza Roza da Bôa Viagem

Solteira Solteiro Solteira Solteiro Viúva

Costureira Fazendeiro Costureira Fazendeiro Engomadeira

32 30 26 24 47

Ler e escrever Analfabeto Ler e escrever Ler e escrever Analfabeta

Candido Rodrigues (filho) Maria Augusta Rodrigues (filha) Anna Rodrigues (filha)

Solteiro Solteira Solteira

Marítimo Costureira Costureira

23 19 16

Analfabeto Analfabeta Ler e escrever

152

231

Largo da Egreja

Rua Direita da Igreja

Travessa do Hespanhol

Ibidem, p. 463. Encontramos também a referência a Miguel Soeiro, alfaiate, de 20 anos de idade, na relação da Força da Companhia de Voluntários Nacionaes da Villa da Moita e seu Termo, apoiantes dos liberais (1834). 87 88


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ROL DOS CONFESSADOS MOITA DO RIBATEJO 1907-1914

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N.º Rua do fogo

Nome dos chefes de família e mais pessoas que a compõem

Estado

Profissão

Idade

Instrução

140

Rua do Caes

170

Rua Direita

172

Rua Direita

José António da Silva Balbina Soeiro (mulher) Florinda (filha) Mariana Rosa Soeiro Carlota Joaquina (filha) Emília de Jesus Costa

Casado Casada Solteira Viúva Solteira Solteira

Jornaleiro Doméstica Costureira Doméstica Costureira Costureira

62 50 20 75 37 39

– – – – – –

Os quadros revelam que todas as costureiras são solteiras, bem como nos deixam perceber que, entre as seis famílias de costureiras referidas, apenas numa o homem figura como chefe de família, proporcionando a atividade a autonomia e a subsistência do agregado familiar feminino. O contributo de Singer na evolução da máquina de costura, em 1851, que permitiu aumentar e padronizar a produção, bem como o sistema de vendas da empresa, com facilidades a prestações, levou a máquina de costura a mais lares, permitindo às mulheres aventurarem-se como costureiras e trabalharem em casa, à peça, possibilitando compor o rendimento familiar, ao mesmo tempo que desenvolviam as atividades domésticas. A máquina de costura pedestral significou um avanço considerável na produtividade, permitindo transitar do trabalho manual para o mecânico. O Comércio do Porto, em 1871, estima que a utilização da máquina de costura faça o "... serviço de sete pessoas a trabalhar à mão"89. A nível industrial, as aplicações do motor a vapor e da eletricidade às máquinas de costura permitirão aumentar ainda mais a produção. A Moita terá um representante da marca Singer, o "Vieira das Máquinas", numa loja na Rua Dr. Miguel Bombarda, n.º 8 a 10. Em 1948, Portugal entrou no mercado das máquinas de costura com a “sua” marca, a Oliva, fabricada em S. João da Madeira. A máquina representava um posto de trabalho e a sua aquisição um atrativo para as mulheres, do mesmo modo que o curso de corte e costura.

Loja com anúncio às máquinas Singer, Moita (193-). Imagem: Coleção particular. 89

O COMÉRCIO DO PORTO, n.º 161, 1871, p. 2.


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Com o desenvolvimento da moda e dos meios de comunicação, principalmente a imprensa, cada vez mais acessível, divulgam-se novos estilos de vida, que primam pelo culto da moda, inspirada nos padrões franceses. O processo de transformação do vestuário, que se iniciara em meados do século XIX, fizera regredir o uso de trajes regionais, influenciando a homogeneização da indumentária90. A moda, criada pelos alfaiates franceses difunde-se e Portugal, tal como a Europa, adota-a. A mulher portuguesa transforma-se, particularmente a citadina e de determinadas classes. A Ilustração Portugueza sintetizou assim as mudanças nas lisboetas, em 1912: "A lisboeta modificou-se em meia duzia d'anos. (...) transformou-se na aparencia, mudou de trajos, mudou de modos (...) entrou a vestir-se pelos modelos francezes, a pentear-se, a perder esse ar composto e egual, muito nacional, muito piegas muito romanticamente d'outro seculo"91. E da moda faziam parte espartilhos, chapéus, sapatos de verniz, rendas e plumas, sedas, veludos, vestidos, fazendo florescer o negócio dos grandes armazéns de Lisboa, o Chiado e a Baixa, os ateliês de moda e costura, multiplicando o número de costureiras. No final do século XIX, as costureiras criam a sua própria associação, a Associação de Classe das Costureiras de Lisboa, com estatutos aprovados por El-Rei, em 28 de setembro de 1895, com o objetivo de "estudo e defesa dos interesses da classe". No final do século XIX já existiam oficinas de costura com as máquinas e as trabalhadoras dispostas em amplas salas, mas com condições deficientes e com as costureiras muito apertadas entre si, a trabalhar lado a lado ou em fila, disposição semelhante à que viriam a patentear as fábricas de confeções de vestuário, em meados dos anos 60 do século XX. Nas modernas confeções o trabalho seria mais parcelado e intensivo. Em imagens da fábrica Confiança, no Porto, estabelecida em 1883, ou em ateliês da capital, podemos alcançar uma perceção de como eram as primeiras fábricas de costura e as costureiras que nelas trabalhavam, oriundas das classes populares, vindas dos bairros mais modestos, auferindo baixos salários e despendendo muitas horas de trabalho. O ofício de costureira, em vez do trabalho no campo ou na fábrica, apresenta-se às jovens como uma saída menos esforçada e mais apelativa, também pelo seu lado mais fabuloso e romântico, associado à manipulação de materiais que nunca usarão e à perceção de estilos de vida de que não farão parte, como resume a Ilustração Portugueza: "As pequeninas mãos d'essas costureiras, desde a manhã até à noite, palpam os tecidos preciosos que jámais cobrirão os seus corpos de pobres"92. A costura representava mais uma oportunidade de subsistência, num mundo sempre difícil para quem se via na situação de ter de trabalhar desde tenra idade, mesmo não tendo qualquer vocação para a arte nem simpatia com o ofício. Para muitas crianças, o ingresso numa casa de costura, numa costureira, significava fazerem o que lhes mandassem e que conseguissem, muitas das vezes, sem nada que ver com o ofício, como nos conta Cristina Campante que, aos 12 anos (1964), foi aprender costura: 90 SERRÃO, Joel, e MARQUES, Oliveira – Nova História de Portugal. Portugal e a Instauração do Liberalismo. Lisboa: Editorial Presença, 2002, pp. 508-512. 91 ILUSTRAÇÃO PORTUGUEZA, n.º 322, de 22 de abril de 1912, pp. 513-514. 92 ILUSTRAÇÃO PORTUGUEZA, n.º 306, de 1 de janeiro de 1912, p. 306.


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Aprendendo costura e bordadura. Imagem: António N. Policarpo.

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Costureiras. Imagem: António N. Policarpo.

“Havia um certo aproveitamento da parte das pessoas, das costureiras, que queriam a gente um bocado mais para empregadas, para ir buscar os filhos à escola, para dar de comer aos filhos, para dar o biberão, do que propriamente... (…) Eu levei muito tempo, fui muito persistente a deixarem-me sentar a coser à máquina, porque eu vinha buscar os meninos aqui à escola, à n.º 2. Uma das costureiras (…) ia levar as costuras a Lisboa e deixava-me a cuidar do filho, com um aninho”. Um fato ou vestido compõem-se de várias peças. A indumentária é múltipla, cada qual com suas formas e materiais diversos, de distintos tamanhos. Exige-se à costureira que domine todas as operações: medir, riscar, cortar, alinhavar, provar, coser, pregar botões, passar a ferro. Nem toda a gente adquire aptidões para desenvolver o processo do princípio ao fim. Na costura, as miúdas começam por alinhavar, desalinhavar, pregar alfinetes, coser bainhas, quando ainda têm alguma mestra que se mostre interessada em ensinar. Se as circunstâncias não eram favoráveis à aprendizagem, faziam recados, iam comprar fitas, fechos, botões, linhas. Estão a aprender. Algumas saltitam de costureira para costureira. Nem sempre são remuneradas e, quando conseguem auferir alguns rendimentos, o pouco que ganham é controlado pelo pai, pela figura masculina, o chefe da família. Todos trabalham para o orçamento familiar. Só anos mais tarde, quanto muito, é-lhes permitido guardar alguma coisa para a composição do enxoval e um ou outro dinheiro para alguma extravagância. O caso de Ivone Camacho93 é paradigmático. Fez a 4.ª classe aos 12 anos e depois foi trabalhar no campo. Em 1973, então com 17 anos, entregava o ordenado ao pai: “Até eu ter 17 anos, o dinheiro foi sempre para o meu pai. Foi até eu sair de casa, porque depois casei-me. Daquele tempo que eu trabalhava, dava-me o dinheiro de 1 dia para eu ir comprando o meu enxoval, para que quando eu casasse tivesse o meu enxoval.” 93

Ivone Camacho (testemunho oral, gravado em 16 de junho de 2016).


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Mas os ofícios de costura não abundam em terras de fracos recursos, em terras acomodadas à agricultura, como a Moita, ou à indústria de cortiça, como Alhos Vedros. Em meados do século XX, a remuneração do trabalho da grande massa operária, dos homens, corticeiros, salineiros, trabalhadores rurais, mal dá para pôr pão na mesa. Não existiam hábitos de comprar roupa feita, mas também não se mandava fazer vestuário todos os dias, quanto muito, estreava-se uma peça ou outra durante as festividades. Era também comum ver um ou outro garoto descalço. Quando se aproximava a data da Festa da Moita costurava-se de empreitada, dia e noite. A outra realidade, a do quotidiano do trabalho, era remendar o que se pudesse e da melhor maneira que se conseguisse. Em 1961, rebenta a guerra colonial. De um dia para o outro, Portugal tem de fardar milhares de soldados, exigindo a disponibilidade de um exército de costureiras externas, que levantavam fardos de peças no "casão militar", cosiam e voltavam a entregar fardos de fardas. O casão ou depósito de fardamentos não era novidade, tinha sido criado em 1903, como Oficina e Depósito de Fardamentos, depois Depósito Central de Fardamentos, até adotar a denominação de Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (OGFE)94. O trabalho como externa, fosse para o casão, para algum armazém de Lisboa ou para um contratador local, significava que a mulher tinha adquirido, de alguma forma, uma máquina de costura. Se a costura, os têxteis, a feitura de bordados, as rendas, o tricotar e outros trabalhos associados aos lavores femininos – ocupações impensáveis para o homem – manifestavam as identidades de género e laboral das mulheres, reforçavam, do mesmo modo, o determinismo dos papéis sociais reservados aos sexos e, no caso das mulheres, o trabalhar em casa, o lidar com o vestuário, as tarefas domésticas. Mas é a posse da máquina de costura, considerável investimento, pago a custo e a prestações, de difícil acesso, que permite à mulher criar o seu próprio posto de trabalho e conseguir trazer mais alguns rendimentos ao lar. A entrada na fábrica como costureira, contudo, poderia proporcionar algo mais do que um ordenado; em alguns casos, representava a libertação de determinadas dependências. Conta-nos Guilhermina Varela: “A fábrica é que me deu a minha independência para eu me poder divorciar, se estivesse em casa estava sempre ali… tinha que depender do pai da minha filha. A fábrica deu-me tudo.”95

FERREIRA, Carla Marina Machado – Costureiras de Lisboa: Artesãs da Moda (1890-1914). |Em linha|. Lisboa: ISCTE-IUL, 2014. Dissertação de mestrado. |Consultado em 12 de outubro de 2016|, disponível em www:<http://hdl.handle.net/10071/10147>. 95 Guilhermina Varela (testemunho oral, gravado em 6 de julho de 2016). 94


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Guilhermina Varela costurando em casa. Imagem: Guilhermina Varela.

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Contrato de compra da máquina de costura Oliva de Guilhermina Varela. Imagem: Guilhermina Varela. Guilhermina Varela comprou a máquina Oliva em 36 prestações de 191$00.

A entrada na fábrica de confeções, espaço de camaradagem feminina, constituirá outra etapa na construção da emancipação da mulher, mesmo acumulando com as tarefas domésticas, rotineiras. Trabalho significa, então, independência e a instalação de fábricas de vestuário, em meados dos anos 60 do século XX, irá abrir uma janela de oportunidades para as mulheres, apesar dos baixos salários. De como o trabalho na fábrica modela a personalidade da outrora "camponesa" ou trabalhadora rural, diz Maria Lamas: “O trabalho colectivo, a disciplina dos horários, a noção da responsabilidade, o contacto com as organizações industriais, o alargamento do convívio com outras mulheres e homens, numa camaradagem benéfica, contribuem, é certo, para lhe dar uma nova personalidade, de que ela própria nem sempre se apercebe, mas que a vai distanciando da camponesa (…) Essa nova personalidade, mais lúcida, leva-a a encarar a vida sob aspectos que antes não via.”96 A população ativa masculina na indústria é superior à feminina, mas na indústria de vestuário as mulheres são maioria, estão em supremacia. As mulheres sentem-se como uma força coletiva. As empresas de fabrico de vestuário que chegam a Alhos Vedros, de capitais estrangeiros, não possuem outro desígnio que a exploração de mão-de-obra barata, abundante. O recrutamento das trabalhadoras também não exigia grandes critérios de seleção. Não era suposto que soubessem fazer uma peça de roupa inteira, mas que se adaptassem ao trabalho parcializado, repetitivo, que se fizessem

96

LAMAS, Maria, ibidem, p. 365.


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às máquinas industriais e ao ritmo da linha. A indústria de vestuário caracteriza-se por uma grande subdivisão das funções, distinguindo o Contrato Colectivo de Trabalho para a Indústria de Vestuário, de 1976, 21 categorias profissionais: Chefe de produção, modelista, adjunto de modelista, chefe de seção, monitor, chefe de linha ou grupo, revisor, cortador e/ou estendedor de tecidos, oficial, ajudante de corte, distribuidor de trabalho, prenseiro, engomador, bordadora de máquinas industriais, costureira, colador, tricotadeira, bordadora manual, revistadeira, acabadeira, estagiário97. Mas, no domínio da indústria de confeções de vestuário, a costura é a mais importante no processo produtivo e a que incorpora mais mão-de-obra, pelo que é nessa função que nos centramos. Não havia, pois, condições muito especiais que levassem à rejeição de trabalhadoras. Pelo contrário era importante que o sistema de produção se proporcionasse cada vez mais abrangente, alargando o universo de contratação, de modo a renovar com mais celeridade a mão-de-obra empregue. Durante o recrutamento, as trabalhadoras eram sujeitas a exames psicotécnicos. Judite Faquinha, que trabalhou na FEX, entre 1965 e 1966, e na Gefa, entre 1973 e 1988, fez exames psicotécnicos em 1973. Decorria então uma greve e, só por insistência da trabalhadora, depois de passar no exame, é que a colocaram frente a uma máquina de costura:

Judite Faquinha. (Trabalhadora da Gefa e dirigente sindical). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto.

Cartão de funcionária da Gefa de Judite Faquinha. Imagem: Judite Faquinha.

97 ASSOCIAÇÃO dos Industriais de Vestuário do Sul – Contrato Colectivo de Trabalho para a Indústria do Vestuário celebrado entre a Federação Nacional da Indústria de Vestuário e o Sindicato dos Trabalhadores Texteis de Lisboa, Lanifícios e Vestuário do Sul e outros. Lisboa: Associação dos Industriais de Vestuário do Sul, 1976, pp. 13-15.


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“Eu fiz aquilo tudo num instante, porque já estava habituada a fazer as palavras cruzadas, o cruzadex, os labirintos, todos os dias, no jornal diário. Mas, disse logo: «Quem é que garante a vocês que eu sei coser? Isto não revela que eu sei agarrar numa máquina!», e responderam-me: «Pois, mas você disse que era costureira!». E eu respondi «Se eu quiser vir para a costura tenho que dizer que sou costureira!». E ainda acrescentei: «Eu não saio daqui sem me porem numa máquina, ali dentro, porque eu tenho uma máquina meio industrial, mas as vossas são mesmo industriais!». Puseram-me a fazer braguilhas. Quando eu reparo na colega que se encontrava no outro lado, na linha, que era minha amiga, ela estava a fazer as braguilhas ao contrário. Eu disse: «A braguilha não é assim que se faz!». Perguntaram-me, o Nilson e o Bráz Pinto (administração): «Então, como é que se faz a braguilha?». E eu respondi que a braguilha não se começava de cima para baixo, mas de baixo para cima. E fizeram-me estar a ensinar como é que se fazia a braguilha. As encarregadas queriam uma saia, queriam uma blusa, vinham ter comigo para eu talhar a roupa. Ninguém sabia fazer uma peça inteira. Anos mais tarde, quando já me encontrava de saída da fábrica, em 1988, vieram pedir-me para fazer os modelos da empresa. Os modelos eram as peças inteiras que se levavam para o cliente, para ele verificar a qualidade da roupa. Por exemplo, eu fazia sozinha umas calças Levi’s, ou então um anourak completo, para mostrar ao cliente. Não havia mais ninguém para fazer peças inteiras. Havia uma colega minha, mais velha que eu, que nunca fez mais nada do que pregar bolsos. Só sabia pregar bolsos. Outra colega, só fazia bainhas e mais nada. Ali ninguém se formou. Ali ninguém aprendeu nada.”98 As fábricas de confeção de vestuário eram, então, pouco exigentes em relação ao nível de conhecimentos de costura das trabalhadoras, pouco se valorizando as competências em termos de confeção de uma peça de roupa integral. O trabalho de confeção desenvolvia-se de forma parcial, valorizando-se, por isso, outras capacidades, que aumentassem a produtividade e rentabilidade da empresa, entre as quais o conhecimento e domínio da máquina de costura, a rapidez. O Contrato Colectivo de Trabalho de 1976, a que já aludimos, mencionava a diferença entre costureiras de fabrico de vestuário por medida e costureiras de fabrico de vestuário em série, não diferindo muito a descrição de funções. Considerava de vestuário por medida: "A trabalhadora que cose manualmente ou à máquina, no todo ou em parte, uma ou mais peças de vestuário". A de vestuário em série: "A trabalhadora que cose à mão ou à máquina, no todo ou em parte, peças de vestuário". Em 1997, já se distinguia entre costureira (modista), que executava “… moldes, corta e confecciona peças de vestuário”99, e costureira Judite Faquinha (testemunho oral, gravado em 10 de outubro de 2016). BAHSGME, cota MO38553. VALENTE, Cláudia, SOUSA, Cristina, GOMES, Jorge, MARTINS, Pedro – O Sector do Vestuário em Portugal. Separata. Lisboa: Instituto para a Inovação na Formação, 1997, p. 9. 98 99


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industrial (confecionadora), que confecionava “… peças de vestuário, cortando e montando os seus diferentes componentes”100. E assim eram descritas as condições do trabalho de costureira industrial: "As actividades exigem acuidade visual, destreza e uma permanência prolongada a trabalhar sentada, nas operações de costura quando o processo produtivo está organizado em linha. As actividades exigem uma permanência prolongada a trabalhar de pé nas operações de corte e de acabamento e ainda nas operações de costura quando o processo produtivo está organizado em células de produção"101. Em relação ao "Saber-fazer técnicos", as indicações de competências enquadravam: "Distinguir as funções de cada peça da máquina, tais como agulhas, costuras, canelas, e seleccioná-las em função do tipo de operação e montá-las. Seleccionar e regular o tipo de ponto e a tensão da linha em função do tipo de tecidos e costura a realizar de modo a obter costuras em partes sólidas e regulares. Controlar a pressão a exercer com os pés sobre os comandos da máquina em função da velocidade pretendida e adequada ao tipo de costura (a direito ou com contornos) e ordenar em simultâneo o movimento da mão para orientar o tecido de acordo com a velocidade e ponto de costura. Identificar as causas das anomalias do funcionamento da máquina e resolver as de rotina referentes à regulação da máquina e lubrificação. Utilizar instrumentos de medida simples tais como réguas, esquadros e fita métrica."102

Trabalhadores da Convex (Moita). Imagem: Cristina Campante. O trabalho nas fábricas é duro, repetitivo, mas o espírito de camaradagem é forte.

Ibidem, p. 12. Ibidem, p. 9. 102 Ibidem, p. 10. 100 101

Trabalhadoras na Helly-Hansen: é Natal, “bem-vindos ao corte”. Imagem: Maria Luísa Figueira.


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O trabalho é duro, em linha, repetitivo, os salários são baixos, os horários longos, as lutas laborais sucedem-se, mas o facto preponderante é a possibilidade de as mulheres poderem construir, a partir da vivência na fábrica, uma história coletiva, independente e à margem do mundo dos homens. Sentem-se produtivas, úteis, envolvem-se nos problemas e nas soluções da fábrica. No espaço da fábrica, diferentes gerações de mulheres trocam experiências, confidenciam, aconselham-se, apoiam-se mutuamente. A fábrica já não é só atividade laboral, mas lugar de vida social. Vida que se transporta para a vila de Alhos Vedros, animada por uma multidão de costureiras que ali, no tempo vago, principalmente à hora de almoço, passeia pelas montras, vai ao café, encomenda os livros escolares na papelaria, vai à mercearia ou ao talho, à farmácia. As mulheres das fábricas invadem as ruas e dão vida a Alhos Vedros, como nos contou Carolina Medeiros: “Alhos Vedros à hora do almoço era linda. Todas aquelas cores das batas que nós encontrávamos quando saíamos à hora de almoço, as da Gefa, as da Bore, da Fristads, as nossas, as da Helly-Hansen, tudo diferente. Cores diferentes, mas todas com a mesma profissão e todas com a mesma consciência da exploração, consciência daquilo que trabalhávamos e daquilo que ganhávamos. Mas era bonito, à hora de almoço, Alhos Vedros era muito bonita. Nós fazíamos a maior parte das compras aqui. No mercado de Alhos Vedros, já sabiam que nós, o pessoal do primeiro turno, saía ao meio-dia e, por isso, fechavam sempre um bocadinho mais tarde, porque nós íamos lá comprar o peixe, íamos lá comprar a fruta, as hortaliças, e depois metíamos nos frigoríficos do refeitório. Quando saíamos ao fim do dia, à tarde, já levávamos as nossas compras para fazer o jantar. A hora de almoço também dava para ver montras e comprar roupa. Era lá que comprávamos os livros dos nossos filhos, portanto, nós fazíamos a nossa vida, nós gastávamos o nosso dinheiro praticamente todo em Alhos Vedros. Falávamos da vida, dos filhos, da escola, dos maridos. A nossa ligação era muito forte. Passávamos aqui o dia inteiro. As fábricas eram a vida de Alhos Vedros.”103 As trabalhadoras revêem-se na fábrica, no trabalho de onde provem a subsistência, e lutam pela sua viabilidade, com sentido de dever, sacrifício e espírito de camaradagem, como relatou Cristina Campante ao jornal O Diário, quando a administração abandonou a Convex, em 1975, na sequência do 11 de março: "Trabalhámos de noite e de dia para aguentar a empresa. Com o perigo das sabotagens que então havia, dormíamos lá. Durante três meses só dormi uma noite em casa. Mas a empresa

103

Carolina Medeiros (testemunho oral, gravado em 27 de junho de 2016).


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Trabalhadoras da Norporte à saída da fábrica. Imagem: Guilhermina Varela. À hora de almoço as trabalhadoras das fábricas avivam as ruas e o comércio em Alhos Vedros.

aguentou-se e os salários foram pagos"104. A camaradagem era muito forte e deixou marcas positivas em muitas mulheres, muita satisfação, e uma identificação muito forte com a fábrica. Relatou-nos Carolina Medeiros: O emprego que eu tive e que mais adorei foi ser costureira. Era um emprego que era trabalho. Para mim, não há outra coisa mais bonita que trabalhar numa fábrica. Numa fábrica, nós temos ali as colegas, elas podem ser solidárias ou não, sentimos logo isso. Estamos em grupo, a luta é coletiva. Lutamos e logo naquele momento, como estamos todas concentradas, a luta resulta logo, vemos de imediato se temos vitórias ou não. Mas não era só na nossa fábrica. À hora de almoço, encontrávamo-nos umas com as outras e falávamos «Olha, agora vai começar a negociação do contrato, o que é que vocês vão pedir?». Depois, cada uma dizia, por exemplo «Olha, nós cá na nossa vamos pedir 10% de aumento, vê lá se vocês também pedem na vossa, porque somos nós a apertar, apertar e depois… (…) Se vocês também não apertarem, eles dizem-nos logo que aqui ao lado, na Fristads, estão a pedir menos!». E elas respondiam: «Se vocês conseguirem, nós também temos mais força para eles nos darem também!».105

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O DIÁRIO, edição de 11 de outubro de 1989, p. 10. Carolina Medeiros (testemunho oral, gravado em 27 de junho de 2016).


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A imagem da costureira de uma fábrica de confeções é a de uma mulher curvada sobre a sua máquina, estática, horas a fio dobrada sobre si, gerando gestos repetitivos, com os braços, mãos, ombros, dedos sempre na mesma posição, e os olhos sempre focados na agulha, o pé no controlador de velocidade da máquina. Com o tempo, a circulação sanguínea parece diminuir e os músculos parecem petrificar. Os ritmos são exigentes, fatigantes, e não se permitem conversas. A empresa contratou braços, não cabeças. As pausas são curtas e não permitem que as trabalhadoras recuperem. Os pedidos para idas às casas de banho, pelo desgaste, substituem as pausas que não existem. O trabalho é sempre o mesmo, os movimentos iguais, o barulho das máquinas ensurdecedor. No verão, o calor aperta e por vezes desmaiam. Referiu-nos Cristina Campante, sobre a situação na Convex: “As pessoas tinham muitas dores de cabeça, haviam pessoas que desmaiavam, principalmente na altura do verão. Não havia condições nenhumas, o calor era insuportável. Daí a situação das idas às casas de banho; eram as pessoas que não aguentavam e iam para a casa de banho molharem-se, refrescarem-se. O calor era uma coisa impressionante.”106 Judite Faquinha também nos conta como eram difíceis as condições de trabalho na Gefa, antes do 25 de Abril: “As condições de trabalho antes do 25 de abril eram muito más, chovia lá dentro. No verão era calor de rachar, mas felizmente tínhamos portões com fartura para abrir. Em dias de nevoeiro, ele entrava e nós gelávamos, não tínhamos condições de trabalho.”107 Pelos testemunhos recolhidos entre várias trabalhadoras, fosse na Convex, Gefa ou Norporte, as situações de desmaio eram comuns, derivado das más condições de trabalho. Acrescentamos mais um testemunho, de Maria Luísa Figueira, que trabalhou 22 anos na Norporte, até ao seu encerramento, primeiro como soldadora e depois como costureira: “Havia muito barulho quando se estava a soldar. É claro que as máquinas faziam muito barulho quando estavam a soldar e isso fazia mal aos ouvidos. Protestávamos por isso. Protestávamos por várias coisas, pelas condições de trabalho, o calor era muito no verão, haviam colegas que desmaiavam.”108

Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 13 de junho de 2016). Judite Faquinha (testemunho oral, gravado em 10 de outubro de 2016). 108 Maria Luísa Figueira (testemunho oral, gravado em 6 de julho de 2016). 106 107


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A imagem da costureira de uma fábrica de confeções é a de uma mulher curvada sobre a sua máquina, estática, horas a fio, dobrada sobre si. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

A fábrica, independentemente dos aspetos da exploração salarial, dos conflitos laborais, de dificuldades várias vivenciadas, não pode deixar de ser percebida pela mulher, paradoxalmente, como experiência singular e positiva, no que se refere ao sentimento de se sentir integrada no mercado de trabalho e de poder subsistir pelo seu próprio salário, de iluminar as potencialidades do colectivo gerado pela unidade, pelas sociabilidades que emergem e que, no espaço doméstico, dificilmente surgiriam. A fábrica permitiu a algumas mulheres a realização profissional, a independência individual. Algumas consideram-no o período mais ativo da vida e recordam-no com contentamento e saudade. “Eu adorava o meu trabalho e ir trabalhar para a fábrica. Era a coisa que eu mais adorava. E os anos mais felizes da minha vida foi os 20 anos que eu trabalhei na fábrica. Passei também por fase infelizes na vida, mas a respeito de trabalho foram os anos mais felizes da minha vida.”109

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Guilhermina Varela (testemunho oral, gravado em 6 de julho de 2016).


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5.4 TRABALHADORAS DE BAIXOS SALÁRIOS

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trabalho feminino encontra-se associado, desde longa data, a baixos salários e a situações de discriminação relativamente aos homens. Já na Idade Média se observaria a diferenciação de salários entre homens e mulheres, tendo Claudia Opitz identificado que as jornaleiras empregues numa obra, na cidade alemã de Wurtzburg, recebiam em média, pelo mesmo trabalho, menos um terço do que os homens110. Apesar do trabalho ser pesado, o número de mulheres empregadas era muito superior aos homens, configurando a situação uma predileção por trabalhadoras de baixos salários. Relativamente à Idade Média, em Portugal, refere Maria Coelho, sobre os desníveis de remuneração, na cidade de Évora, no século XIV: "... a «esvidigar» a mulher recebe 67% da jorna do homem, a mondar, 71%, e a apanhar o cereal, 75%"111. Menciona ainda a autora: "É por demais conhecido que os salários das mulheres eram inferiores aos dos homens"112, acentuando-se esse desnível em meio urbano, facto que "… terá levado algumas corporações de cidades europeias a afastar as mulheres..."113 de determinadas profissões. Durante o século XIX, “A identificação do trabalho feminino com um certo tipo de empregos e como mão-de-obra barata foi formalizada e institucionalizada de várias maneiras (…) de tal modo que se tornou axiomática, uma questão de senso comum”114. As mulheres eram consideradas menos produtivas que os homens, conclusão que levaria à difusão da ideia de que as remunerações do trabalho de homens e mulheres não podiam ser iguais. As mulheres eram associadas aos baixos salários e os “… salários baixos (…) eram atribuídos à inevitável «aglomeração» de mulheres nos empregos que lhes eram adequados”115. E por serviços adequados entendiam-se, na generalidade, os serviços domésticos, os têxteis e o trabalho de agulha ou os trabalhos associados ao ato de cuidar. Os baixos salários não deixarão, no entanto, de atrair cada vez mais mulheres para a indústria do vestuário, para o trabalho em oficina ou contratadas para trabalho à peça, em casa. No século XIX, apesar de atingirem 57% da mão de obra em algumas unidades fabris mais importantes, na região de Lisboa, as mulheres ganham cerca de metade do salário dos homens116. Referindo-se à mão-de-obra barata na indústria do vestuário, a indiferenciada e a especializada, a comissão que produziu o Relatório da Indústria de Vestuário para elaboração do Plano de Investimentos 65/67, salienta

OPITZ, Claudia, ibidem, p. 402. COELHO, Maria, ibidem, p. 47. 112 Ibidem. 113 Ibidem. 114 SCOTT, Joan, ibidem, p. 455. 115 Ibidem, p. 464. 116 SILVA, José, 1986, p. 27. 110 111


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Trabalhadoras na Gefa (posterior ao 25 de Abril de 1974). Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

que “… à excepção de Lisboa, não existe tabela de salários mínimos para os operários da indústria e a que está em vigor, resultante de contrato colectivo para os operários do distrito de Lisboa, está desactualizada, pois é de 1944. Se é certo que em grande número de casos as remunerações pagas são superiores aos mínimos do contrato colectivo, certo é também que algumas empresas se atêm a esses mínimos, vivendo o pessoal em condição lamentável”117. A exploração e a privação são tão manifestas que os “organismos responsáveis (Grémio e Sindicato) acordaram em novo contrato em 1961, em que os salários sobem, em média, mais de 60%”118. Em 1960, o ingresso na profissão de costureira podia fazer-se a partir dos 12 anos de idade e do exame da 4.ª classe do ensino primário. Começavam como aprendizas e uma remuneração de 8$00 diários, enquanto a costureira 3.ª, nos estabelecimentos de 3.ª, recebia 32$00119. Em 1972, os trabalhadores de baixos salários representavam 43,7% do efetivo, detetando-se, no entanto, uma enorme disparidade entre os efetivos, homens (28,6%) e mulheres (82,5%)120. Tal como foi desvalorizado o trabalho doméstico das mulheres, tal como foram discriminadas as suas capacidades, com reflexos nas opções profissionais e nos salários auferidos, a indústria do vestuário foi-se caracterizando pela incorporação de trabalhadoras de baixas qualificações, pela prática 117 MINISTÉRIO da Economia, Secretaria de Estado da Indústria, Comissão do Plano de Fomento – Indústrias Têxteis, de Calçado e de Vestuário (Classes 23 e 24). Lisboa: |s. n.|, 1964. 118 Ibidem. 119 GRÉMIO Concelhio dos Comerciantes de Artigos de Vestuário de Senhora e Luvaria de Lisboa e Sindicato Nacional das Costureiras do Distrito de Lisboa – Contrato Colectivo de Trabalho entre o Grémio Concelhio dos Comerciantes de Artigos de Vestuário de Senhora e Luvaria de Lisboa e o Sindicato nacional das Costureiras do Distrito de Lisboa. Lisboa: G.C.C.A.V., 1960, p. 19. 120 RIBEIRO, Maria Eduarda – Os Trabalhadores de Baixos Salários no Mercado de Emprego em Portugal, Ministério do Trabalho, 1980, p. 14.


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de baixos salários e pela rotatividade do pessoal, pela precariedade. Os salários são magros e, comparativamente aos dos homens, continuam a ser muito inferiores. O 25 de Abril trará as transformações para que progressivamente as mulheres deixem de ser discriminadas no mundo do trabalho. Contudo, será um processo bem lento, até que se consiga interiorizar a razão e a justiça que assistem às mulheres, consequência de anos de enraizamento de princípios discriminatórios. Quando em maio de 1974 se reclamam subidas de salários na Gefa, a reivindicação não se fundamenta no principio de “a trabalho igual, salário igual”, antes reproduz velhos preconceitos sexistas. Pede-se: “… salário mínimo (4500$00 para as mulheres e 6000$00 para os homens)”121. Em 1976, a Constituição da República Portuguesa determinava como incumbência do Estado a garantia do direito ao trabalho, devendo também assegurar "A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais"122. Reconhecia, textualmente, a discriminação ou desigualdade de que as mulheres sempre tinham sido vítimas no mundo laboral, relativamente às oportunidades concedidas aos homens. Em 1976, as conclusões do I Congresso dos Trabalhadores Têxteis Lanifícios Vestuário Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal, refletiam sobre o lugar das mulheres no setor têxtil, deixando uma imagem bem nítida da discriminação a que ainda se encontravam sujeitas: "A grande maioria dos trabalhadores do sector têxtil é constituída por mulheres jovens. Tanto as mulheres, pelo seu sexo, como os jovens, pela sua idade, são normalmente submetidos a uma sobreexploração na fábrica. Com o argumento geral de «desempenho de funções não-qualificadas», as mulheres e os jovens são colocados nas mais baixas categorias dos nossos contratos. É muito frequente encontrarmos numa fábrica de sector (e não só), secções de produção inteiramente constituídas por mulheres chefiadas por um homem. Os mais variados argumentos são utilizados para justificar esta situação, mas a principal razão é sempre escondida pelos patrões. É que eles precisam da divisão entre trabalhadores e uma das formas para dividir é, considerando a mulher um ser inferior cujo trabalho é complementar do do marido, pagar-lhes menos conservando-as eternamente nas posições mais baixas da escala hierárquica. Com os jovens passa-se a mesma coisa. Aproveitando a pouca idade dos trabalhadores, os patrões dizem que o seu trabalho é pouco valioso e assim pagam-lhes pouco salário. Há fábricas de vestuário em que todas as costureiras são menores."123

O SÉCULO, edição de 19 de maio de 1974, p. 7. CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa, 1976, art.º 52.º. 123 CONCLUSÕES DO CONGRESSO dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal. Porto: |s.n.|, 1976, p. 33. 121 122


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Mas mesmo com o 25 de Abril e com a revolução laboral que sobreveio, em 1978, usufruíam baixos salários 23,5% dos trabalhadores. Segundo Isabel Romão, “em setembro de 1974, as mulheres auferiam, em média, 64,3% da remuneração masculina”124 Em meia dúzia de anos, de 1972 a 1978, os homens conseguiram reduzir em mais de metade o seu efetivo no universo de trabalhadores de baixos salários (de 28,6% para 14,1%), enquanto nas mulheres, já com piores salários, essa redução se ficou em um terço (de 82,5% para 54,1%)125. Em 1978, mais de metade das mulheres no mercado de trabalho ainda eram consideradas trabalhadoras de baixos salários. A disparidade, segundo o documento do Ministério do Trabalho, refletia o “… menor grau de qualificação feminina e uma maior concentração das mulheres nas actividades com os níveis salariais mais baixos”126. Quando em 1975 se procedeu à atualização do salário mínimo, fixado em 1974, estimou-se que essa medida iria abranger apenas 9% dos homens, mas 61% das mulheres127. É na indústria transformadora que encontramos, em 1977, a maior percentagem de trabalhadores com baixos salários (34,9%), pertencendo ao vestuário e têxteis os piores registos, 73,6% e 71,6%128, respetivamente. Em síntese, sensivelmente três quartos dos trabalhadores da indústria do vestuário localizam-se no universo dos trabalhadores com baixos salários. Em relação à cortiça, outra atividade industrial com implantação no concelho, caracterizada pelo emprego masculino, é indicado o valor de 46,1% de trabalhadores com baixos salários129. Existe, também, uma grande disparidade de rendimentos entre homens e mulheres, dentro da mesma atividade. No caso do vestuário, cerca de 86% das mulheres possuem baixos salários, enquanto os homens são apenas 24,5%130. Em relação aos indicadores para os distritos, Lisboa (15,5%), Évora (15,9%) e Setúbal (18,7%), são aqueles onde se regista o menor número de operários com baixos salários131. A discriminação salarial ou as distinções entre sexos no mercado de trabalho ainda se manterão durante largos anos. Por exemplo, passados dez anos da Constituição de Abril, a taxa de atividade feminina (2.º semestre de 1986) era de 38% e a masculina de 56,1%132, a taxa de desemprego feminina era de 14% e a dos homens 7,6%133. As mulheres representavam 54,6% das profissões científicas e liberais, mas apenas 15,1% dos diretores e quadros superiores administrativos134. A precariedade do vínculo laboral constitui outro aspeto da discriminação laboral das mulheres existindo, neste período (1983-1984) mais mulheres com contratos a prazo do que homens135. Em 1980, o Departamento de ROMÃO, Isabel, ibidem, p. 33. RIBEIRO, Maria Eduarda, ibidem, p. 15. 126 Ibidem, p. 14. 127 Ibidem, p. 18. 128 Ibidem, p. 33. 129 Ibidem. 130 Ibidem, p. 41. 131 Ibidem, p. 54. 132 SOUSA, Maria Reynolds, CANÇO, Dina – Portugal, Situação das Mulheres 1987, 5.ª edição. Lisboa: Comissão da Condição Feminina, Presidência do Conselho de Ministros, 1987, p. 63. 133 Ibidem. 134 Ibidem. 135 CONFERÊNCIA da Mulher Trabalhadora, 2.ª, A Mulher e o Trabalho 1974-1984. Lisboa: Edições 1 de Outubro, CGTP-IN, 1985, p. 42. 124 125


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Trabalhadoras jovens (Guston). Imagem: Maria Clara Mourato Santos. Grande parte das trabalhadoras no sector da indústria têxtil e vestuário são mulheres jovens.

Estudos e Planeamento, do Ministério do Trabalho, definiu os trabalhadores de baixos salários como “… aqueles que recebiam um salário igual ou inferior a 75% do salário médio do conjunto dos trabalhadores da actividade não agrícola”136. Em 1987, passada mais de uma década do 25 de Abril, a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Peles de Portugal organizou, no Porto, o seminário «Pensar o Presente, Construir o Futuro»137, preparado "... no plano nacional na base de um inquérito sobre as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores e da mulher em particular", concluindo que mais de metade dos agregados que vivem do trabalho no setor têxtil são pobres (55%), atingindo-se, em alguns casos, no norte do país, valores de 80%138. Em 1990, a manutenção do paradigma de competição económica assente nos baixos salários afeta principalmente os sectores onde o emprego feminino é elevado, com destaque para o vestuário. Ana Cardoso, face aos indicadores da atividade económica da indústria transformadora (1990 e 1991), conclui mesmo que "Quanto maior o volume de emprego feminino num sector de actividade, mais baixo o salário médio praticado"139. RIBEIRO, Maria Eduarda, ibidem, p. 12. AVANTE, 2 de abril de 1987, pág. VII. 138 Ibidem. 139 CARDOSO, Ana Rita, 1997, p. 33. 136 137


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Em 1991, a Gefa empregava 960 trabalhadores, mas apenas 560 são efetivos: 532 mulheres e 26 homens. As práticas salariais baseiam-se na política de baixos salários. Refere uma informação do inspector delegado do Ministério do Emprego e da Segurança Social "... ter sido praticado (na Gefa) um tipo de gestão em conformidade com a intenção também permanentemente revelada, da prática de baixos salários..."140. Em 1993, o custo da mão-de-obra na indústria de vestuário em Portugal era de 3.03 dólares, muito abaixo dos valores praticados na Alemanha (17.22 US$), Holanda (15.41 US$), Suécia (15.84 US$) ou Noruega (18.09 US$), mas muito acima dos preços dos países da Europa de Leste e Ásia: Polónia (0.44US$), Sri Lanka (0.35 US$), Vietname (0.26 US$), República Popular da China (0.25 US$) ou Bangladesh (0.16 US$)141. Uma trabalhadora portuguesa ganhava cinco vezes menos do que uma trabalhadora sueca, mas auferia doze vezes mais que uma trabalhadora chinesa. Em 1995, a indústria do vestuário representava 16,2% das exportações da indústria transformadora e 15% do pessoal ao serviço142. Entre 1989 e 1994, cerca de 90% da mão-de-obra é feminina. O setor do vestuário, predominantemente feminino revela taxas de escolaridade muito baixas. Em 1984, 78,12% das trabalhadoras possuíam a 4.ª classe ou menos. Em 1989, esse valor era de 64,16% e em 1994 mais de metade das trabalhadoras (51,12%) ainda tinha essa escolaridade143. A luta por direitos iguais, contra a discriminação laboral, pela igualdade de oportunidades, o desaparecimento da figura do chefe de família, o fim da subordinação da mulher ao homem, a par do investimento feminino nas qualificações e habilitações, transformou radicalmente a presença da mulher no mundo do trabalho e no ensino. Em 1995, 63,3% dos portugueses com menos de 30 anos, mas com curso superior, eram mulheres144. O país apresentava, em 1993, a 3ª taxa de atividade feminina mais elevada da Europa, entre os 25 e 49 anos145, e em 1995 a taxa de feminização da população ativa era de 45%146. De forma gradual, depois de derrubadas velhas formas de impedimento e corrigidas muitas desigualdades, a mulher tem construído o seu próprio lugar no mundo laboral e na sociedade.

Núcleo de Arquivo e Documentação do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (NADMTSSS), cx. 7602. No Núcleo de Arquivo encontra-se ainda informação sobre a Gefa, depositada nas caixas 7743 e 8078. 141 VALENTE, Cláudia, SOUSA, Cristina, GOMES, Jorge, MARTINS, Pedro – O Sector do Vestuário em Portugal. Lisboa: Instituto para a Inovação na Formação, 1997, p. 10. 142 Ibidem, p. 11. 143 Ibidem, p. 13. 144 FERREIRA, Virgínia – As Mulheres em Portugal: Situações e Paradoxos. [Consultado em 16 de outubro de 2016] Disponível em «http://www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiros/119.pdf», p. 4. 145 Ibidem, p. 5. 146 Ibidem, p. 6. 140


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AS LUTAS OPERÁRIAS


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istoricamente, as mulheres participaram em muitas experiências de luta, em revoluções, em conflitos armados, enfrentaram a exploração laboral, integraram movimentos de resistência, lutaram na clandestinidade, estiveram na frente, na vida, nas fábricas, na sociedade. A sua luta não foi menor nem diferente da luta dos homens, apenas mais esquecida. É justo assinalar, pois, conforme José Tengarrinha, que o primeiro conflito laboral conhecido em Portugal, "... com abandono do trabalho e com considerável envergadura..." foi o das fiandeiras do Porto, em 1628, que assumiu "... aspectos de grave amotinação"1. Em 1668, segundo o autor, deu-se uma greve de operários têxteis da Covilhã2. Os primeiros conflitos laborais registados e com impacto terão assim surgido no sector têxtil. Mais tarde, em 1871, ano da “Comuna de Paris” e ano em que segundo o autor terá ocorrido o "... primeiro surto importante do movimento grevista no nosso país"3, com 13 greves, acontecem também greves em ofícios do têxtil ou a ele associados, entre os quais alfaiates, chapeleiros, tintureiros, tecelões e costureiras4. A máquina a vapor e a Revolução Industrial revolucionaram a produção, transformaram a sociedade, as cidades e as relações laborais. O sector têxtil, até então em modo artesanal, foi dos mais abrangidos por uma série de inovações técnicas nas operações de fiação e tecelagem de algodão. Uma das respostas dos trabalhadores ao avanço tecnológico foi a destruição das máquinas, no princípio do século XIX. A miséria, o desemprego e a exploração que assolavam a classe operária não decorriam, no entanto, da mecanização do trabalho, mas da natureza das relações laborais no modo de produção capitalista e das crises cíclicas do sistema capitalista. Entre 1871 e 1900, Tengarrinha regista 724 greves, destacando-se os têxteis com o maior número de ocorrências (105 greves), 14,5% do total5. Em 1852, o direito português previa pela primeira vez6 a greve e o lock-out, proibindo-os. Referia o artigo 277.º a punição "... com a prisão de um a seis mezes, e com a multa de cinco mil réis a duzentos mil réis (...) Toda a colligação entre os individuos de uma profissão, ou de empregados em qualquer serviço, ou de quaesquer trabalhadores, que tiver por fim suspender, ou impedir, ou fazer subir o preço do trabalho regulando as suas condições, ou de qualquer outro modo, se houver começo de execução"7. O mesmo artigo referia ainda outra punição, para os cabecilhas e os mais violentos: "Os que tiverem promovido a colligação, ou a dirigirem; e bem assim os que usarem de violencia, ou ameaça para assegurar a execução, serão punidos com a prisão de um a três annos, e poderá determinar-se a sujeição á vigilancia especial da policia, sem prejuizo da

1 TENGARRINHA, José - As greves em Portugal: uma perspectiva histórica do século XVIII a 1920. In Análise Social, vol. XVII, n.º 67-68. Lisboa: Gabinete de Investigações Sociais, 1981, p. 582. 2 Ibidem. 3 Ibidem, p. 585. 4 Ibidem. 5 Ibidem, p. 587. 6 PINTO, Mário – O Direito perante a greve. In Análise Social, vol. IV, n.º 13. Lisboa: Gabinete de Investigações Sociais, 1966, p. 61. 7 CODIGO PENAL approvado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852. Lisboa: Imprensa Nacional, 1855, pp. 80-81.


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pena mais grave, se os actos de violencia a merecerem"8. O mesmo artigo e com o mesmo número (277.º) surge no Código Penal de 18869. Em 1910, a República promulga o direito à greve, bem como ao lock-out. Era permitida a luta dos trabalhadores mas, também, o encerramento das empresas pelos patrões. Referia o artigo 1.º: "É garantido aos operários, bem como aos patrões, o direito de se colligarem para a cessação simultanea do trabalho"10. A lei ficou conhecida como "decreto-burla". Em 15 de fevereiro de 1927, pelo Decreto n.º 13:138, é revogado o decreto de 6 de Dezembro de 1910, que tinha regulado a cessação do trabalho por patrões e operários11. Desde que saiu a primeira lei sobre a greve, em 1852, proibindo-a, até 1974, apenas entre 1910 e 1927 a greve foi legislada como um direito que assistia aos trabalhadores, mas o agrado nunca foi total, pelos mesmos. As proibições, perseguições, repressão e despedimentos, não impediram, no entanto, que os trabalhadores se manifestassem, lutassem pelos seus direitos e fizessem greves.

Fábrica de confeções de vestuário Gefa (197-). Panorâmica da zona de produção durante uma greve, após o 25 de Abril. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

Ibidem, p. 81. CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS, Nova publicação oficial, 7ª edição. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1919, p. 83. 10 DIÁRIO DA REPÚBLICA, n.º 53, de 7 de dezembro de 1910, p. 685. 11 DIÁRIO DO GOVERNO, I Série, n.º 31, de 15 de fevereiro de 1927. 8 9


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No princípio dos anos 60 do século XX, quando começaram a instalar-se as primeiras fábricas de confeções em Alhos Vedros, Portugal atravessava a fase de maior crescimento da sua economia, período, aliás, também de grande incremento económico nos países da Europa Ocidental. A taxa média anual de crescimento do PIB em Portugal foi, durante os anos 60 e princípio dos anos 70, de 6,9%, enquanto no período anterior e subsequente os registos foram inferiores, respectivamente 4,3% (meados e fim dos anos 50), e 2,7% (meados e fim dos anos 70)12. O crescimento não terá, no entanto, erradicado a pobreza, como refere Rogério Amaro: “… duas décadas e meia de crescimento económico sustentado não permitiram pôr termo à pobreza e ainda em 1973 a pobreza continuava a ser uma realidade dura para muitos portugueses. Embora com extensão e intensidade reduzidas em relação aos anos 50, o fenómeno da pobreza persistiu lado a lado com o acréscimo da produção e o aumento da capacidade produtiva do país.”13 Ainda de acordo com o autor, por volta de 1973 “cerca de 1/3 da população permanecia em situação que tem de se classificar com características objectivas de pobreza”14. O crescimento iria, no entanto, estagnar em 1973, arrastado pela depressão económica generalizada da época. Leis laborais repressivas, controlo da atividade sindical, corporativismo, e a prática comum de baixos salários, constituíam um universo de condições atrativas ao estabelecimento de grandes multinacionais em Portugal, direcionadas para a exportação. Era o convite de um país em regime de ditadura, com polícia política e cidadãos de direitos limitados, que experimentava a participação protegida numa zona de comércio livre, acolhendo as indústrias que se deslocavam e procuravam em Portugal baixos custos de produção, a expensas do desemprego nos países mais desenvolvidos e da exploração da mão-de-obra pouco qualificada num país subdesenvolvido, que então se abria à Europa. A exploração dos trabalhadores foi intensificando-se e os confrontos nas empresas foram agudizando-se. A Revolução de Abril de 74 e a instauração da democracia revolucionaram completamente a situação dos direitos laborais, do direito ao trabalho, da dignidade do trabalhador, bem como o reconhecimento do protagonismo essencial e inalienável dos trabalhadores na construção do país e na consolidação da democracia. O artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, de 1976, era muita claro sobre o protagonismo dos trabalhadores no novo país: "A República Portuguesa é um Estado democrático, baseado na soberania popular, no respeito e na garantia dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização política ROCHA, Edgar – Crescimento económico em Portugal nos anos de 1960-73: alteração estrutural e ajustamento da oferta à procura de trabalho. In Análise Social, vol. XX, n.º 84. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1984, p. 622. 13 AMARO, Rogério – O salazarismo na lógica do capitalismo em Portugal. In Análise Social, vol. XVIII, n.º 72-73-74. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1982, p. 1079. 14 Ibidem, p. 1080. 12


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democrática, que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício democrático do poder pelas classes trabalhadoras"15. A socialização dos meios de produção, a promoção da qualidade de vida do povo e das classes trabalhadoras e a abolição da exploração também se inscreviam na Constituição16. Nas fábricas e nas ruas, exigiram-se mudanças estruturais na reformulação das relações laborais, mas também o aumento de salários, a criação do "salário mínimo", direitos sindicais. Tratavam-se de reivindicações que já vinham dos conflitos laborais durante a ditadura, mas que em liberdade conheciam outra dinâmica. Surgem novas reivindicações, luta-se por melhores condições de trabalho, por direitos sociais, por uma creche, por um posto médico, por um refeitório. Algumas empresas são intervencionadas pelo Estado. O país muda, transforma-se, evolui com os trabalhadores, numa economia que havia perdido o mercado colonial, que carecia de investimento e modernização, estacionada na filosofia de gestão dos baixos salários dos trabalhadores portugueses. Antes e depois de Abril, é este o objeto da nossa exposição. Mais do que a extensão temporal, antes o campo de representações, de discursos, modos de sentir e agir, que enformaram o operariado do concelho da Moita.

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CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa, de 2 de abril de 1976, artigo 2.º. Ibidem, artigo 9.º.


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LUTAS LABORAIS 6.1 AS DURANTE A DITADURA

m regime de ditadura o país provava também a censura, que se estendia a múltiplas dimensões da vida social, a que não escapou o mundo laboral e os movimentos dos trabalhadores, pelo que não abundam as notícias, relatos ou testemunhos sobre lutas laborais, que segurem a visão do operariado, durante o período do Estado Novo, dado os jornais de tiragem oficial se encontrarem sujeitos a controlo apertado. Só em alguns órgãos de comunicação ligados à classe operária e à contestação ao regime se ultrapassa o silêncio instituído e alcançam algumas referências. Constituem, assim, fontes privilegiadas e objetivas os jornais e panfletos impressos à margem da legalidade instituída pelo Estado Novo, feitos em prelos clandestinos, como o Avante! ou O Têxtil, que conheceram ampla divulgação junto da classe operária, antes do 25 de Abril de 1974. Após Abril, as lutas e os movimentos dos trabalhadores já avançam livremente nos jornais de cobertura nacional, verificando-se mesmo em alguns a criação de rubricas próprias de informação regular, dando cobertura pormenorizada às reuniões dos trabalhadores, às atividades sindicais, à situação laboral nas empresas. Em junho de 1966, o jornal O Têxtil, órgão de unidade da classe têxtil, dava notícia de uma paralisação de trabalho na Fex, Alhos Vedros, para exigir aumento de salário17. Segundo O Têxtil, a paralisação não terá durado muito e os trabalhadores

O TEXTIL, Órgão de Unidade da Classe Têxtil, de junho de 1966 e junho de 1971. Imagem: Arquivo do PCP. Em 1966, O TEXTIL noticiava uma primeira tentativa de greve na Fex (Alhos Vedros), por aumento de salários, abandonada por hesitação. Em 1971, as lutas operárias na Jefa (Gefa, ex-Fex) já constituíam um exemplo de firmeza para os outros trabalhadores da classe têxtil.

17

O TEXTIL, ano 11.º, junho de 1966, n.º 58, p. 2.


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retomaram o trabalho sem apresentar a reivindicação. Sugeria o jornal, aos “Camaradas da Fex”, que os operários se organizassem e criassem uma comissão de operários para dirigir a luta. A notícia referia-se a factos ocorridos em fevereiro. Passado 11 meses, em janeiro, nova luta, noticiada no Avante!, em março de 1967. Trata-se de uma notícia desenvolvida que nos permite perceber não só a determinação e motivação das partes em conflito, conhecer os problemas laborais que afetavam os trabalhadores, como também as estratégias respetivas perante a agudização da luta: o patronato e representantes, escudando-se nas forças de segurança, repressivas; os trabalhadores, intentando levar a contestação para o espaço público, para a rua, onde sabem que terão o apoio da população. É toda a comunidade que luta. A notícia: "QUEREMOS OS NOSSOS SALÁRIOS!" RECLAMARAM AS 1.000 OPERÁRIAS DA FEX No dia 13 de Janeiro, como todas as 6ªs. feiras, às 17.30, as 1.000 operárias da FEX dirigiram-se ao escritório para receber o salário, apesar de, na véspera, a gerência desta empresa americana ter feito correr a notícia de que não haveria pagamento nesse dia. Diante do escritório fechado, começaram a erguer-se os primeiros protestos das operárias que iam chegando. À medida que a concentração engrossou, uma onda de indignação cresceu indomável: «Queremos o nosso dinheiro! Queremos os nossos salários! Bandidos! Gatunos! Ladrões!» gritavam iradas as 1.000 operárias da FEX. Ao mesmo tempo, para além dos portões da fábrica, outra concentração massiva se ia formando: era o povo que acorria, não só para observar, mas também para apoiar a luta. Barricando-se no escritório, gerentes e funcionários superiores, aparentemente impassíveis, saíram depressa do seu torpôr para chamar as forças repressivas. Com a chegada da GNR, recrudesceu o clamor de protestos e a combatividade das operárias. Para isolar as trabalhadoras do povo, os guardas fecharam os portões da fábrica tentando aterrorizá-las. E, quando, de dentro do escritório, um gerente berrou: «Escutem, tenham calma», a resposta das operárias surgiu pronta: «Não escutamos nada, queremos o nosso dinheiro». Enfurecido, o mesmo gerente vociferou: «Calem-se que me dói a cabeça». Mas já as operárias replicavam, num novo clamor: «E a nós dói-nos o estômago!» «Queremos os salários! Queremos o dinheiro!», acrescentando, no auge da indignação: «Se não pagam, isto vai pelos ares!». Com pontapés e empurrões vigorosos, as operárias tentam abrir a porta do escritório. A GNR intimidava-as com gestos desabridos e ameaças, apontando o camião. Num coro de vozes, as valentes operárias responderam com força. «Se vai uma presa, vai tudo!» E, imediatamente, grupos de mulheres cercaram as portas traseiras dos escritórios, impedindo os gerentes de se escaparem por ali.


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Encurralados, os gerentes prometeram pagar na 3ª feira seguinte, mas as operárias recusaram num clamor de protestos. Prometeram pagar na 2ª, mas nova recusa, novos protestos. Finalmente, perante a firme determinação das operárias, a gerência comprometeu-se a pagar no sábado, dia seguinte, e a GNR responsabilizou-se pelo cumprimento desta promessa. As operárias concordaram então, não sem decidirem que realizariam uma marcha de protesto ao posto da guarda se o prometido não fosse cumprido. E no dia seguinte, as operárias receberam os seus salários. Foi uma corajosa luta e foi uma grande vitória. Operárias da FEX! O «Avante!», saúda-vos pelo vosso digno exemplo de unidade e firmeza proletária. Com o mesmo espírito, com essa mesma decisão e combatividade, prossegui a luta contra os castigos, contra os ritmos infernais de trabalho, contra toda a exploração patronal, por aumento geral de salários, contra os exploradores estrangeiros."18 Em 1968, a Fex encerra as instalações, despede os trabalhadores e, no mesmo espaço, volta a abrir outra empresa de confeções, a Gefa. No entanto, transitam para esta nova fábrica a gerência, as máquinas e até muitos dos trabalhadores da anterior Fex19. A política de gestão laboral não se altera, tal como também não muda o espírito combativo dos trabalhadores. No final do ano, volta a rebentar nova greve no local, com confrontos entre as operárias e o encarregado da fábrica e, mais uma vez, também com a GNR. No final de 1969, seguindo o exemplo da Gefa, entram em greve as 60 operárias da Bore, fábrica de confeções de camisas, também por aumento de salários. Entre o início da laboração das fábricas de confeções em Alhos Vedros e as primeiras

AVANTE! Órgão Central do Partido Comunista Português, de março de 1967 e dezembro de 1968. Imagem: Arquivo do PCP. Notícia sobre greves na Fex, em 1967, e Gefa (ex-Fex), em 1968. Quando se estabeleceu a indústria de vestuário em Alhos Vedros já a terra havia firmado a sua identidade industrial e operária, com uma consciência de classe bem vincada. Na Gefa, durante os anos 70 do século XX, produzir-se-ão os principais confrontos laborais entre trabalhadores e patronato, no concelho da Moita.

18 19

AVANTE, série VI, ano 36, n.º 376, março de 1967, pp. 1-2. O TEXTIL, ano 18.º, janeiro de 1974, n.º 70, p. 2.


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lutas laborais nas mesmas fábricas não decorre muito tempo. Se o processo produtivo é novo, o tipo de trabalho intensivo e os métodos de exploração são já conhecidos. Com a instalação da primeira grande fábrica de confeções em Alhos Vedros, nuns armazéns de cortiça da Rua Miguel Bombarda, transitam também para a indústria do vestuário muitas das mulheres corticeiras, que transportam consigo toda uma experiência de classe construída e reproduzida nas fábricas de cortiça e na comunidade. As lutas laborais em cada fábrica não se dissociam, muitas das vezes, das lutas das populações, nos locais onde não existe outra alternativa que conseguir a subsistência através da venda da força de trabalho na fábrica. O meio de recrutamento para as confeções é o mesmo meio de recrutamento para as cortiças: famílias operárias. Quando se estabeleceu a indústria do vestuário em Alhos Vedros já a terra havia firmado a sua identidade de terra industrial e operária, com uma consciência de classe bem definida, tipicamente solidária, traduzida também no levantamento de algumas associações de classe, de que é exemplo a Cooperativa de Operária de Crédito e Consumo de Alhos Vedros, fundada em 1 de maio de 1916. Entre os objetivos da Cooperativa, nos quais se enquadravam o “Adquirir géneros de alimentação, artigos de vestuário, calçado e outros de uso comum para os sócios e suas famílias”20, firmava-se um outro objetivo, muito específico, que era o de auxiliar os associados e famílias nos casos de “… doença, falta de trabalho ou presos”21. Constituiu uma resposta da unidade operária face à insegurança social, à falta de trabalho, ao desemprego, à repressão e às prisões, risco a que muitos operários se encontravam sujeitos nos processos de luta. A Cooperativa nasce durante a I Grande Guerra (1914-1918), num período muito conturbado da jovem República, marcado por contestações operárias, greves, tumultos, com prisões e mortes, e revoltas, uma das quais, em 1917, motivada pela crise de subsistências, pela fome, ficou conhecida por “revolta da batata”, com dezenas de mortes. A repressão sobre os trabalhadores estendia-se também às suas estruturas de apoio, sobre os sindicatos e as associações de classe ou outras, que não se encontrando na linha da frente, acabavam como alvo, por serem veículo do espírito de solidariedade dos operários. Assim aconteceu com algumas cooperativas de génese operária e também com a Cooperativa de Crédito e Consumo de Alhos Vedros, intimada, nos finais dos anos 60 do século XX, a submeter “… os seus estatutos à aprovação da autoridade administrativa, sob pena de serem havidas como associações secretas, o que (…) determinava a sujeição dos seus dirigentes e associados a penas de prisão e multa”22. A população da vila de Alhos Vedros esteve do lado de D. Pedro e pelos liberais, manifestou-se pela República, quando inaugurou o seu centro republicano em 1881, possuía uma importante classe profissional de ferroviários, esclarecida e combativa, e o seu operariado, o rural, o fabril das fábricas de cortiça, o das salinas, os trabalhadores 20 ESTATUTOS da Cooperativa Operária de Crédito e Consumo de Alhos Vedros. Barreiro: Tipografia Comercial, 1943, p. 2. Os Estatutos encontram-se disponíveis na Biblioteca Nacional, com a cota S.C. 17596 P. 21 Ibidem. 22 CARNEIRO, Francisco Sá – Textos. 1.º volume (1969-1973). Lisboa: Alêtheia Editores, 2010, p. 73. (Consult. 27 abril de 2016). Disponível na internet «URL:http://www.psd.pt/ficheiros/multimédia/ficheiro138961».


176 Estatutos da Cooperativa Operária de Crédito e Consumo de Alhos Vedros, fundada em 1916. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: S.C. 17596 P. A constituição de cooperativas operárias era uma resposta da unidade dos trabalhadores face à insegurança social, ao desemprego, a diversos flagelos que atingiam a classe.

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AVANTE!, da 2ª quinzena de agosto de 1943 Imagem: Arquivo do PCP. Notícia sobre as greves de 1943 na região de Lisboa. O operariado de Alhos Vedros aderiu também às greves e à contestação ao regime.

do cais, que também tiveram a sua associação de classe, a Associação de Classe dos Descarregadores de Mar e Terra de Alhos Vedros (1920), pela experiência que adquiriram nas repetidas lutas que levantaram contra a exploração, foram sedimentando o ideário progressista da população, maioritariamente operária. É necessário reter que, por aquele tempo, as condições de vida do operariado eram limitadíssimas, nem sempre havia trabalho, as crianças começavam cedo na labuta, e o pecúlio acumulado pela família mal dava para a alimentação. O historial das lutas laborais do operariado alhosvedrense é amplo, dentro e fora de Alhos Vedros, mas cingimo-nos aos acontecimentos que tiveram a terra por cenário, ou que a ela se estenderam. Quando rebentaram as grandes greves na região de Lisboa, em 1943, que envolveram mais de 50000 operários, numa luta que foi pelo pão, face às dificuldades no acesso aos bens essenciais, desviados para exportação destinada aos países em guerra, mas que se constituiu também como manifestação e movimento de contestação ao regime, elas também atingem Alhos Vedros, para onde se dirigiu, em marcha, um dos grupos de manifestantes formado por trabalhadores das fábricas do Barreiro, paralisadas, agregando povo por onde passa: "No caminho, os trabalhadores das salinas param igualmente e engrossam a marcha da fome. Esta tem, já então, proporções grandiosas. Em filas de três pessoas, a manifestação estende-se por três ou quatro quilómetros, em direcção a Alhos Vedros. À frente do cortejo, mulheres empunham bandeiras negras, as bandeiras da fome. À chegada a Alhos Vedros pára toda a indústria local (cortiça, velas, etc.) e os operários e operárias, empunhando bandeiras negras, juntam-se à manifestação. Para impedir a chamada de forças repressivas, os manifestantes cortam todas as comunicações telegráficas e telefónicas. Na estação do Caminho de Ferro, depois de terem feito o mesmo, colocam-se na linha e impedem que o comboio do Alentejo siga para o Barreiro. Os manifestantes gritam: “Fome!”, “Fome!” e, quando o comboio pára, muitos passageiros fazem


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causa comum com os manifestantes. A locomotiva é então desligada e o chefe da estação, intimado, com o prazo de três minutos, pelos manifestantes, dá-lhe o sinal de partida, seguindo a locomotiva sozinha para o Barreiro, onde chega no meio do entusiasmo da população e o pânico dos fascistas. Depois da partida da máquina, apareceu uma força da G.N.R., a cavalo, composta de seis guardas e um sargento. Êste, ao mesmo tempo que manda dois guardas buscar reforços, toma perante os manifestantes uma atitude simpática, o que lhe vale uma calorosa salva de palmas. Como a sua atitude não passasse dum “truque”, e vendo que éste não dava resultado, o sargento puxa pela espada e tenta, pela violência, dispersar os manifestantes, mas tem que desistir, em virtude de se sentir envolvido, cada vez mais de perto, pelos manifestantes. Ás 14 horas, a manifestação dispersa-se, por vontade própria dos manifestantes."23 Nesta luta há também a destacar a participação dos trabalhadores do então recente grande aglomerado populacional Baixa da Banheira, muitos deles empregados na CUF do Barreiro24. Ao longo dos anos 40 e 50 do século XX as lutas do operariado desenvolvem-se um pouco por todo o concelho25: corticeiros de Alhos Vedros (1946); salineiros da Moita (1947); arrais de Sarilhos Pequenos e dos salineiros de Alhos Vedros e Moita (1948). Em 1949, voltam a manifestar-se os corticeiros de Alhos Vedros e, em 1951, os da Moita. Ainda em 1951, 1952 e 1953, voltam à luta os corticeiros de Alhos Vedros. A participação das mulheres nestas lutas é uma constante, como operárias, como mulheres, como mães, porque o desemprego, os despedimentos e os baixos salários refletem-se dramaticamente no quotidiano de toda a família. Mas mesmo em espaços masculinos, como as cortiças, as mulheres não se subalternizam na hora da reivindicação e insurgem-se, unidas. Foi o caso de 60 operárias da fábrica de cortiça de Aldemiro & Mira, em Alhos Vedros, que em 1955 enfrentaram o patrão e a GNR: "Na fábrica Aldemiro & Mira, de Alhos Vedros o patronato obriga as operárias da secção de rolhas a escolherem 12.000 por dia. No passado dia 4 de Fevereiro, como 3 operárias por doença não conseguissem atingir aquele número, o patrão castigou-as com a suspensão durante 6 dias. As 60 operárias da secção decidiram que no dia seguinte as 3 operárias suspensas comparecessem ao trabalho, o que estas fizeram. Como o patrão não deixou pegar no trabalho as 3 operárias, as restantes solidarizaram-se com as suas camaradas, e negaram-se todas a trabalhar sem elas, mantendo-se em greve nos seus lugares. AVANTE, série VI, n.º 39, 1ª quinzena de setembro de 1943, p. 2. FIGUEIREDO, José Rosa – A Baixa da Banheira até aos nossos dias. 2.ª edição. |s. l.|: Assembleia Distrital de Setúbal, 1978, pp. 208-211. 25 SANTOS, Maria |et al.| – Retrato em Movimento do Concelho da Moita. 1ª edição. Moita: Câmara Municipal da Moita, 2004, p. 131. 23 24


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O fiscal do Sindicato, que é um lacaio do patrão, apareceu a ameaçar as operárias que não se deixaram intimidar. Perante a unidade e a firmeza das valentes trabalhadoras o patrão chamou a GNR do Barreiro e da Moita, que compareceu armada de pistolas-metralhadora e com carros de assalto. As forças armadas invadiram a fábrica com tal ímpeto que algumas operárias desmaiaram, encontrando-se uma delas em estado grave devido à comoção sofrida. Os oficiais da GNR procederam a um interrogatório policial às 60 operárias tendo cada uma delas afirmado desassombradamente que ali não havia cabecilhas, protestando ao mesmo tempo contra as arbitrariedades do patrão e afirmando mais uma vez que se manteriam em greve até ser levantado o injusto castigo às suas 3 companheiras. Pelo seu espirito de unidade, solidariedade e pela coragem com que enfrentaram a feroz repressão fascista, estas valentes operárias deram um magnífico exemplo de luta que só não saiu vitoriosa porque sobre elas caiu o mais brutal terrorismo e porque os restantes operários da fábrica mal esclarecidos sobre a luta, não apoiaram, como era seu dever, as suas companheiras de trabalho. Operários de todas as secções da Aldemiro & Mira, lutai unidos! Na Unidade e na Solidariedade está a vossa vitória! Organizai a vossa Comissão de Unidade e uni-vos para novas e vitoriosas lutas contra os despedimentos e os castigos, por aumento de salários e pela expulsão da encarregada!"26 Para o Estado Novo "A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social, em regime de cooperação económica e solidariedade"27, filosofia que pretendia enquadrar os trabalhadores num espírito de conformação colaboracionista e sem conflitos que abalassem os interesses das corporações, que possuíam privilégios AVANTE!, de março de 1955 (nº 197). Imagem: Arquivo do PCP. Notícia relatando os confrontos laborais na fábrica de cortiça Aldemiro & Mira, Alhos Vedros, em 1955. As trabalhadoras, corticeiras, enfrentam o patrão, o fiscal do sindicato e a GNR.

26 27

AVANTE, série VI, ano 29, n.º 197, março de 1955, p. 3. DECRETO-LEI n.º 23:048, de 23 de setembro de 1933, art.º11.º.

LA GREVE DES OUVRIERS ET DES OUVRIERES DE LA “JEFFA” (ALHOS VEDROS). Imagem: Arquivo de História Social do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Documento em língua francesa sobre as greves dos trabalhadores da Gefa, em 1968.


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na orientação das políticas económicas. A cooperação pedida aos trabalhadores significava, na verdade, a formação de largas camadas de miséria de um lado (trabalhadores) e a acumulação de riqueza e ostentação do outro (capitalismo monopolista). A União Nacional, força política afeta ao regime, interpretava mesmo o trabalho como um "dever de solidariedade social"28. O edifício económico assentava no corporativismo e na pacificação das relações laborais, imposta pelo Estado Novo em inúmeras leis e também pela força. De uma só vez, entre 1933 e 1934, seriam publicados o Decreto-lei n.º 23:048 (Estatuto do Trabalho Nacional), o Decreto-lei n.º 23:049 (Estabelece as bases a que devem obedecer os grémios, organismos corporativos das entidades patronais), o Decreto-lei n.º 23:050 (reorganiza os sindicatos nacionais). As greves e o lock-out já haviam sido proibidos em 1927. A Constituição de 1933 não permitia que em caso de conflitos de interesses que trabalhadores ou patrões suspendessem a atividade. Por sua vez, o Estatuto do Trabalho Nacional dispunha ser "acto punível a suspensão ou perturbação das actividades económicas"29. Em 1934, o governo tipificava os delitos de lock-out e greve, explicitando que os princípios da economia corporativa davam uma "solução mais racional, mais justa e mais útil aos conflitos do trabalho"30, renegando os "processos anárquicos, perturbadores e destruidores da economia", levantados pela classe operária na sua disputa com a classe patronal. Com o Decreto-lei n.º 23:050 (Sindicatos Nacionais) o regime legitimava o controlo efetivo das estruturas sindicais dos trabalhadores, subordinando os interesses dos sindicatos (trabalhadores) aos interesses da economia nacional, em colaboração com o Estado e com os órgãos superiores da produção e do trabalho31. Na época, os sindicatos não tinham por função a defesa dos trabalhadores, antes representavam os interesses do Estado Novo. E também não possuíam a confiança dos trabalhadores. Num documento do Movimento Nacional Democrático Inter Profissões, de 1953, pode ler-se "... as pessoas que estão à frente dos sindicatos, salvo raras excepções, não têm a confiança dos trabalhadores nem por êles foram eleitas; foram sim impostas ilegalmente pelo governo que usando de todas as falcatruas, pressões e ameaças, as fez eleger para que eles servissem os interesses do patronato e prejudicassem, portanto os interesses dos trabalhadores"32. Os sindicatos, extensão do governo, transpunham naturalmente o espírito da lei para os estatutos respectivos, como o Sindicato Nacional dos Profissionais das Indústrias Têxteis do Distrito de Setúbal, organizado corporativamente, nos termos do Decreto-lei n.º 23:050, de 23 de setembro de 1933 (Sindicatos Nacionais), que manifestava, em 1950, no seu artigo 4.º, o repúdio simultâneo pela "luta de classes e o predomínio das plutocracias"33. Também o Sindicato Nacional das Costureiras do Distrito de Lisboa manifestava nos UNIÃO Nacional – Cartilha do Corporativismo. Lisboa: União Nacional, 1940, p. 27. DECRETO-LEI n.º 23:048, de 23 de setembro de 1933, art. 9.º. 30 DECRETO-LEI n.º 23:870, de 18 de maio de 1934. 31 DECRETO-LEI n.º 23:050, de 23 de setembro de 1933, art. 9.º. 32 COMISSÃO do Livro Negro sobre o Regime Fascista – Trabalho, sindicatos e greves no regime fascista. 1.ª edição. Lisboa: C. L. N. S. R. F., 1984, p. 71. 33 SINDICATO dos Profissionais das Indústrias Téxteis do Distrito de Setúbal – Estatutos do Sindicato dos Profissionais das Indústrias Têxteis do Distrito de Setúbal. |s.n.|: Barreiro: Tipografia Comercial. 1950, p. 6. 28 29


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seus estatutos, em 1953, subordinar "... a sua actividade ao interesse nacional, em colaboração com os orgãos do Estado e organismos corporativos superiores e respeita os princípios e fins da ordem corporativa, abstendo-se de qualquer actividade que possa contrariar o bem comum"34. Era vedada aos sindicatos nacionais a “filiação em quaisquer organismos de carácter internacional, ou a representação em congressos ou manifestações internacionais, sem autorização do Govêrno”35, implicando a transgressão a dissolução do Sindicato e a perda de direitos políticos para os seus dirigentes. É esta a realidade laboral, imposta pelo corporativismo do Estado Novo. Os trabalhadores organizam-se e reagem às difíceis condições de vida, geradas pela prática generalizada de baixos salários no sector, lutam contra a falta de direitos e por melhores condições de trabalho. A indústria de confeções de vestuário observou, desde o início da sua instalação em Alhos Vedros, e até Abril de 74, um contexto contínuo de tensões e conflitos entre a classe operária e o patronato. Foi na Gefa, então a maior empresa de confeções a operar em Alhos Vedros, que ocorreram os confrontos laborais mais significativos. Em 1968, as operárias da Gefa entram em greve, por melhores salários: "Contra a exploração dos capitalistas suecos, centenas de operárias e operários da JEFFA (antiga FEX), em Alhos Vedros, recorreram à greve, dando novas provas de audácia combativa e firmeza revolucionária. Tomando conta de um telefone e comunicando entre si, as operárias mantiveram firme o seu espírito de luta e a sua unidade. Vendido por uns miseráveis tostões ao patronato, um encarregado não conseguiu semear a confusão e a divisão entre as trabalhadoras. Nenhuma delas se deixou convencer pelas mentiras propaladas por este lacaio da burguesia e do fascismo quando, correndo de secção em secção tentava fazer crer que o trabalho recomeçara noutras secções. Uma sova mestra foi a justa lição que as valentes operárias souberam dar-lhe. Nem as forças repressivas da GNR, a cujas brutalidades as operárias e operários ripostaram com todas as energias e por todas as formas ao seu alcance, nem a odiosa PIDE, conseguiram reprimir o ímpeto indomável das operárias em luta. A greve durou 24 horas e saldou-se por uma importante vitória: a garantia do aumento de 10$00 diários. Com o seu exemplo, as operárias e operários da JEFFA vieram mais uma vez demonstrar que só pela acção unida, firme e decidida, vigilantes às manobras do patronato e capazes de enfrentarem com audácia as forças repressivas sem se deixarem paralisar por elas, os trabalhadores poderão arrancar ao patronato a satisfação das suas justas reivindicações."36 No Arquivo de História Social (AHS), do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, encontra-se um documento (comunicado) com a descrição desta ESTATUTOS do Sindicato Nacional das Costureiras do Distrito de Lisboa. Lisboa: |s.n.|, 1953, p. 4. DECRETO-LEI n.º 23:050, de 23 de setembro de 1933, art. 10.º. 36 AVANTE, série VI, ano 38, n.º 397, dezembro de 1968, p. 3. 34 35


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última greve, em língua francesa. Não nos foi possível, no entanto, em tempo útil, perceber em que contexto terá sido criado e quais os destinatários. O documento não está datado, mas pelas referências ao aumento de 10$00 dos trabalhadores e às 24 horas de duração da greve, bem como à intervenção da GNR e da PIDE, julgamos que se tratará da greve avançada pelo Avante!. O documento do AHS acrescenta ainda como informação ser a primeira greve de trabalhadores após o adoecimento de Salazar, em 1968: “LA GREVE DES OUVRIERS ET DES OUVRIERES DE LA “JEFFA” (ALHOS VEDROS) Dans la deuxième quinzaine du mois de septembre, prés de 1.500 ouvriers et ouvrières de l’enterprise “JEFFA”, située à Alhos Vedros, dans la zone industrielle de la marge sud du Tejo, en face de Lisbonne, se sont mis en grève. (…) Les ouvriers et les ouvrières, qui avait d´jà abandonné l’usine ont été brutalement charges par les forces policiéres. L’accrochage a été violent. Quatre ouvriers ont été arrêts par la G.N.R. et donnés à la PIDE (police politique), où ils restent incomunicables. (…) Mais 24 heures de grève passées, la direction de la “JEFFA” cédait: elle consentait une augmentation de 10 escudos par jour. C’est à notre connaissance, la première grève ouvrière, depuis la maladie et l’éloignement de Salazar.”37

Nos anos 60 do século XX, a industrialização leva ao crescimento acelerado do país. Contudo, mantém-se o desnível de rendimentos entre Portugal e os outros países da Europa. Em 1969, as operárias da Gefa voltam à greve, pelo aumento de salários38. Dura a greve uma semana e, no fim, foi-lhes concedido um aumento de 9$00 diários. Em 1971, janeiro, entram em greve, conseguindo obter, através da ação reivindicativa, o aumento diário de 7$0039. Regressam à luta, ainda no mesmo ano, contra a imposição de limitações no uso da casa de banho impostas pelo patrão, quanto “… ao tempo de utilização por cada operária e quanto ao intervalo de tempo que devia separar cada utilização”40. A paralisação durou dia e meio. O patrão cedeu. Em 1972, as operárias da Gefa decidem recorrer à greve com o objetivo de conseguirem aumento para as trabalhadoras com salário inferior a 60$00 diários e pela reposição de regalias retiradas pelo gerente41. Entretanto, o despedimento arbitral de um operário mecânico leva a uma greve de solidariedade na fábrica. Ao fim de dia e meio de greve as trabalhadoras conseguem a reintegração do trabalhador e a satisfação das outras reivindicações. Em 1973, numa contestação geral ao regime e à exploração nas empresas “dez mil operários entram em greve”, em várias empresas, entre as quais a Gefa. Pedem também aumento de salários, face ao crescimento contínuo do custo de vida42. Em março ARQUIVO DE HISTÓRIA SOCIAL (AHS). Comunicado: La greve des ouvriers et des ouvrières de la «JEFFA» (Alhos Vedros). PT AHS-ICSJB-MS-1033. 38 AVANTE, série VI, ano 39, n.º 409, novembro de 1969, p. 4. 39 AVANTE, série VI, ano 41, n.º 428, abril de 1971, p. 3. 40 O TEXTIL, ano 16.º, n.º 62, junho de 1971, pp. 1-2. 41 AVANTE, série VI, ano 42, n.º 441, maio de 1972, p. 1. 42 AVANTE, série VI, ano 43, n.º 460, dezembro de 1973, p. 1. 37


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de 1974, o jornal Avante! noticiava mais uma grande luta contestatária ao regime, envolvendo mais de 100.000 trabalhadores43. Na linha da frente, mais uma vez, as combativas operárias da Gefa encontram-se entre as que fazem greve ou paralisação. A falta de confiança nos sindicatos, ocupados por indivíduos afetos ao regime, leva a que as lutas se desenvolvam de forma autónoma pelos trabalhadores. No período que antecede o 25 de Abril, no domínio dos conflitos laborais, as reivindicações dos trabalhadores incidiam, na generalidade, sobre o aumento de salários, a "... exigência do 13º mês, a redução do horário semanal (semana de 40 horas), férias de 30 dias com um subsídio a 100% e proibição de despedimentos sem justa causa"44. As ações de luta dos trabalhadores manifestavam-se das seguintes formas: "... como resultado de movimentos espontâneos dos trabalhadores, com suspensão parcial ou completa do trabalho ao nível da empresa; outras integraram-se num plano de organização sindical (...) redução de ritmos de produção, manifestações de rua, concentrações junto das fábricas e reuniões, apresentação de cadernos reivindicativos e abaixo-assinados, recusa de prestações de horas extraordinárias"45. Em algumas situações, caso das comemorações do 1.º de Maio, Dia do Trabalhador, as lutas operárias transcendiam os conflitos laborais, antes se enraizavam na luta para mudar a sociedade. Na Baixa da Banheira, terra operária, o Dia do Trabalhador servia também para afrontar o regime, com lançamento de foguetes, marchas silenciosas e confrontos com a autoridade policial, com cenas de pancadaria e fugas desordenadas. Assim acontecia nos anos 60 do século XX, ano após ano, até ao fim do regime46.

AVANTE!, de dezembro de 1969 (nº 410). Imagem: Arquivo do PCP. Notícia sobre greves operárias na Bore, na Gefa e na Aldemiro & Mira, Alhos Vedros, por aumento de salários, mas também como contestação aos resultados eleitorais para a Assembleia Nacional, em 1969.

AVANTE!, de maio de 1972 (nº 441). Imagem: Arquivo do PCP. Notícia sobre greve na Gefa, 1972, exemplo de solidariedade operária.

AVANTE!, de março de 1974 (nº 463). Imagem: Arquivo do PCP. Nas vésperas do 25 de Abril, mais de 100.000 encontram-se em luta. As trabalhadoras da Gefa aderem à greve.

AVANTE, série VI, ano 44, n.º 463, março de 1974, p. 1. SANTOS, Maria, LIMA, Marinús, FERREIRA, Vítor – O 25 de Abril e as lutas sociais nas empresas. Porto: Afrontamento, 1976, p. 27. 45 Ibidem, pp. 26-27. 46 FIGUEIREDO, José Rosa, ibidem, pp. 205-240. 43 44


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LUTAS DOS TRABALHADORES 6.2 AS E O 25 DE ABRIL

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5 de Abril de 1974. A Revolução de Abril não muda apenas o regime político, abala decisivamente toda a estrutura da sociedade portuguesa, transformando também a economia, as empresas e as relações laborais. Com o 25 de Abril, o movimento reivindicativo dos trabalhadores manifesta-se energicamente, uma vez livre dos constrangimentos do aparelho repressivo do Estado Novo. Nas empresas, constituem-se comissões de trabalhadores, organizam-se plenários, fazem-se saneamentos e em alguns casos também se sequestram pessoas. Os antigos dirigentes dos sindicatos associados ao corporativismo do Estado Novo são afastados, postos fora, literalmente. Conta-nos Lucinda Carrusca, então trabalhadora da Gefa, como mudou o sindicato das costureiras: “Havia lá uma colega na fábrica (Gefa) que tinha uma irmã que trabalhava numa outra fábrica perto da igreja, e assim ficou a saber que logo nos primeiros dias, creio que a 29, um grupo de pessoas que trabalhava no sector decidiu convocar todos os trabalhadores que quisessem aparecer para ir para Lisboa, para a Avenida Almirante Reis, demitir a direcção do sindicato das costureiras e criar uma comissão administrativa. Nós estávamos agregadas ao sindicato das costureiras. Eu soube disso e fui logo com elas. Houve um plenário na Avenida Almirante Reis. O elétrico parado, com a malta empoleirada, a rua estava cheia de gente, e começou-se logo ali a tomar decisões ad hoc: «Vamos fazer isto, vamos fazer aquilo!». Já tinham ido, então, ao sindicato das costureiras, posto o pessoal na rua, tirado as chaves. Isto eram mais aqueles grupos radicais que existiam na altura. E eu ali, naquela agitação toda. Como fomos para lá, deram-nos orientações para trazermos: «Vão para a fábrica e vão dizer às trabalhadoras para elegerem os seus delegados. Por cada grupo de 50 trabalhadoras 1 delegado, mais ou menos». Era o recado que trazia. Eu já tinha muitas colegas de outros locais de trabalho que me conheciam. Conheciam o meu passado de atividade, quando trabalhava na cortiça e haviam algumas situações irregulares, quando os patrões não cumpriam o contrato de trabalho. Na altura, eu estava inscrita no sindicato dos corticeiros, o que não era muito bem visto pelos patrões, e estava sempre informada sobre as questões laborais e esclarecia os outros colegas. Então, quando passei para a Gefa vim a encontrar algumas colegas dos tempos da cortiça que, sabendo da minha experiência, disseram logo «Lucinda, vai tu, faz tu!» e empurraram-me para a frente. Eu disse, «Não me escolham só a mim, temos que escolher mais pessoas,


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temos que escolher uma pessoa por sector. Uma das costureiras, outra do corte, e outra do armazém, um homem ou uma mulher, tanto faz! Escolham pelo menos 3 pessoas, assim podemos funcionar melhor». E elas aceitaram. E assim foi funcionando. Em 1975 é que foi formado o sindicato, entretanto funcionou a comissão administrativa."47 Não só os sindicatos profissionais, que tinham por missão defender os interesses da classe trabalhadora, regressam à tutela operária, como os trabalhadores começam a exigir a participação nas decisões sobre a vida da empresa, algo que até à data era prerrogativa do patronato. A partir de Abril já não é possível deter o movimento operário e as transformações sociais e laborais que este impulsiona. Maria Santos (et al.) interpreta assim a deflagração e intensificação dos conflitos laborais, na sequência de Abril: “É já um facto incontroverso afirmar que a «explosão» social reivindicativa pós-25 de Abril se não iniciou necessariamente naquela data. Pura e simplesmente, o que aconteceu foi que a ruptura «violenta» na estrutura do poder político veio permitir a «libertação» de certas tensões e conflitos latentes, que não se podem dissociar do próprio desenvolvimento do modo de produção capitalista, e que, obviamente, são bastante anteriores ao «25 de Abril»”48. Com o 25 de Abril de 1974, a economia muda de rumo, as relações laborais transformam-se e, no seguimento da valorização do trabalho, dos trabalhadores e dos salários, grandes empresas instaladas em Portugal, outrora tentadas pela legislação laboral favorável, mas opressora para os trabalhadores, seduzidas então pela prática generalizada de baixos salários, iniciam agora processos de despedimentos lançando milhares de trabalhadores para o desemprego. De um dia para o outro, Portugal deixara de ser um país atrativo, apesar de um trabalhador português ganhar sete vezes menos que um trabalhador sueco, por exemplo. Sucedem-se os conflitos nas empresas, assumindo as lutas diversas formas: manifestação de rua, ameaça de greve, greve parcial, greve total, ocupação, sequestro de pessoas e bens, jornais e comunicados49, entre outros. Os trabalhadores reivindicam e as reivindicações diversificam-se, incluindo: "Aumentos de salários, salário mínimo de mulheres, salário mínimo de menores, a trabalho igual salário igual, subsídios (turno, alimentação, transportes), participação nos lucros, 13.º e 14.º mês, indexação e diuturnidades, benefícios sociais, horários, férias, condições de trabalho, condições de remuneração, controlo sobre a empresa e despedimentos, saneamentos (controlo dos despedimentos e readmissão)"50. No sector das confeções de vestuário, em Alhos Vedros, a Gefa é a primeira a apresentar um caderno reivindicativo à administração, que incluía “… salário mínimo (4500$00 para as mulheres e 6000$00

Lucinda Carrusca (testemunho oral, gravado em 26 de setembro de 2016). SANTOS, Maria, LIMA, Marinús, P. de, FERREIRA, Vítor – As lutas sociais nas empresas e a revolução do 25 de Abril: da reivindicação económica ao movimento político – 1.ª fase. In Análise Social, vol. XI, n.º 42 e 43. Lisboa: Gabinete de Investigações Sociais, 1975, p. 272. 49 SANTOS, Maria, LIMA, Marinús, P. de, FERREIRA, Vítor, 1975, pp. 285-288. 50 SANTOS, Maria, LIMA, Marinús, FERREIRA, Vitor – 1976, p. 43. 47 48


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para os homens); um mês de férias com o correspondente subsídio; 13.º mês; semana de 40 horas, isto quanto ao sector fabril, dado que no administrativo está em causa o salário mínimo de 8000$00, complemento do ordenado na situação de doença comprovada pelo médico e percentagem nos lucros da empresa, com a alternativa de direito ao subsídio de Páscoa”51. A empresa recusou, transmitindo que cumpriria o acordado no contrato coletivo de trabalho. Os trabalhadores recorrem para a Junta de Salvação Nacional e para o Ministério do Trabalho, decidindo ocupar as instalações da fábrica durante 24 horas e cumprindo duas horas diárias de trabalho. Em resposta às reivindicações dos trabalhadores, a administração ameaça com o encerramento das instalações52. A notícia sobre a Gefa, no jornal O Século, de 19 de maio, portanto ainda antes do 25 de Abril cumprir um mês, dá-nos uma ideia da urgência que os trabalhadores imprimem às suas reivindicações, depois de décadas de restrições nos direitos laborais e de salários de miséria: “ALHOS VEDROS – Os trabalhadores da empresa sueca Confecções G. E. F. A. tendo apresentado no passado dia 8 as suas reivindicações à entidade patronal, não viram ainda satisfeitos quaisquer dos seguintes pontos: salário mínimo (4500$00 para as mulheres e 6000$00 para os homens); um mês de férias com o correspondente subsídio; 13.º mês; semana de 40 horas, isto quanto ao sector fabril, dado que no administrativo está em causa o salário mínimo de 8000$00, complemento do ordenado na situação de doença comprovada pelo médico e percentagem nos lucros da empresa, com a alternativa de direito ao subsídio de Páscoa. Depois de haver contactos na Suécia com os administradores, o gerente da empresa informou os trabalhadores de que nada havia sido considerado ou aceite, limitando-se a entidade patronal a cumprir o que ficar decidido no C. C. T. Contactado um delegado da Junta de Salvação Nacional, ficou assente que o representante da empresa reunir-se-á com dois delegados da dita Junta no decorrer da reunião do Grémio Regional dos Exportadores, a realizar hoje na Feira das Indústrias. Por outro lado, a comissão dos trabalhadores da referida firma estará em contacto com o dr. Fuseta da Ponte, do Ministério do Trabalho, na segunda-feira. Perante os informes do delegado da Junta, os trabalhadores voltam ao trabalho depois de amanhã, mas cumprindo apenas duas horas diárias de serviço, ocupando as instalações durante as 24 horas. Enquanto aguardavam qualquer resposta da parte do responsável pela administração da empresa, este afirmou-lhes que a continuarem com as suas reivindicações, ver-se-ia obrigado a encerrar as instalações.”53

O SÉCULO, 19 de maio de 1974, p. 7. Ibidem. 53 Ibidem. 51 52


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AVANTE!, de 13 de julho de 1974. Imagem: Arquivo do PCP. Notícia sobre lutas laborais na indústria de confeções de vestuário nas fábricas Gracinda Flores, Montreal e Gefa, em Alhos Vedros. A Revolução de Abril não muda apenas o regime político, abala decisivamente toda a estrutura da sociedade portuguesa, transformando também a economia, as empresas e as relações laborais.

Ainda em maio de 1974, entram em greve os trabalhadores da Convex, Chão Duro. A administração recusa também o caderno reivindicativo dos trabalhadores e entrega a chave da fábrica aos operários, que decidiram apresentar o problema ao Ministério do Trabalho54. As greves sucedem-se, indiscriminadamente, perturbando a economia e desestabilizando trabalhadores, ameaçando o caos económico. Passados 36 dias do 25 de Abril a Intersindical organizará uma manifestação de protesto contra as greves: "Contra a Greve, pela Greve". Comenta assim Raquel Varela aquele período conturbado de greves sucessivas: "Uma das características das greves é que são maioritariamente convocadas em assembleias e plenários de trabalhadores. Na base da decisão da greve predomina a forma de organização basista e democrática, nas palavras de Marínus Pires de Lima, a «acção directa, de base e espontânea». É difícil saber qual o grau de espontaneidade porque outra das características de grande parte destas greves é que são dirigidas pela extrema-esquerda..."55. Raquel Varela caracteriza as greves naquele período de 1974 como "selvagens", decididas em assembleias democráticas dos trabalhadores, mas sem apoio dos partidos e dos sindicatos, que se encontravam em processo de formação56. Em Alhos Vedros, que tinha conhecido importantes lutas operárias durante a ditadura e algumas mesmo em vésperas de Abril, cresce a agitação nas fábricas de confeções de vestuário. Mas nem todas as lutas possuem génese igual, algumas nascem mesmo como resposta direta às ações do patronato, como sucedeu, em julho de 1974, na empresa Gracinda Flores, Lda., O SÉCULO, 25 de maio de 1974, p. 6. VARELA, Raquel – Greves na Revolução dos Cravos (1974-1975). VARELA, Raquel, NORONHA, Ricardo, PEREIRA, Joana Dias (coord.) – Greves e Conflitos Sociais em Portugal no Século XX. Lisboa: Colibri, Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 218. 56 Ibidem, p. 213. 54 55


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instalada em Alhos Vedros, desde 1972, tendo-se desenvolvido uma luta de solidariedade contra o despedimento de uma trabalhadora, ao mesmo tempo que se exigia a expulsão de uma encarregada que “… actuava quase desumanamente, em relação às outras operárias”57. A reportagem, do jornal Avante!, em julho de 1974 regista a série de conflitos na altura, na Gracinda Flores, Gefa, Monte Real, RafBudd, e ainda acompanhou a criação da comissão de trabalhadores da Corticeira Ibérica. É uma peça jornalística que evoca, como o próprio título indica, a unidade e solidariedade das trabalhadoras, na sua luta contra suspensões, despedimentos, e expõe discriminações salariais e outras arbitrariedades: "Alhos Vedros Unidade e solidariedade entre as operárias Fui suspensa já depois das seis e meia. Disseram-me no escritório e eu respondi que não aceitava, porque não havia razão. E quando saí do escritório pensei que estava só. A única coisa que me emocionou e que me deu vontade de chorar, foi quando encontrei as minhas colegas à minha espera. – contou ao «Avante!», definindo afinal o conteúdo da solidariedade operária, a operária Maria Custódia Iria, que suspensa da Fábrica de Têxteis Gracinda Flores, em Alhos Vedros, deu origem a um importante movimento de solidariedade, que demonstra a grande unidade entre as operárias de Alhos Vedros, capaz de impedir o despedimento de uma trabalhadora e ainda suficientemente forte para exigir a expulsão de uma encarregada que actuava quase desumanamente, em relação às outras operárias. Na Gracinda Flores nasce solidariedade A maioria da população que trabalha em Alhos Vedros é constituída por mulheres operárias, principalmente nos têxteis e confecções. As maiores fábricas de confecções são suecas, e fabricam, unicamente para a exportação, utilizando mão-de-obra barata, feminina e de menores, com baixos salários e grande produtividade horária. Existem outras empresas de capital estrangeiro, nomeadamente holandês e inglês, como é o caso da RafBudd, que fabrica confecções de malha com operárias nas suas próprias casas. A Fábrica Gracinda Flores, onde se iniciou o movimento de solidariedade operária, é uma fábrica com 200 jovens, na sua maioria menores, onde a explosão de trabalho juvenil assume aspectos de desigualdade flagrante: duas operárias, uma de 18 e outra de 16 anos,

57

AVANTE, n.º 9, 12 de julho de 1974, p. 3.


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executando o mesmo trabalho, as duas com 18 meses de trabalho na empresa, com salários diferentes: a mais nova ganha 62 escudos por dia e a mais velha 80 escudos. Fui suspensa e as colegas disseram logo que me queriam ao serviço. Eu compareci na manhã seguinte e elas também, mas ninguém trabalhou até que eu fosse readmitida e a encarregada que mentira fosse para a rua. Vieram então dois elementos do Sindicato que nos apoiaram, tendo o patrão despedido a encarregada – conta-nos a operária suspensa. As «feitoras» da Montreal O movimento de solidariedade contra os despedimentos nesta empresa, abriu perspectivas para outras fábricas de Alhos Vedros, onde existem situações muito graves. Os despedimentos, tem sido acentuado o facto de muitas fábricas estarem a trabalhar somente três dias por semana (por exemplo a Monte Real). Esta empresa, ao mesmo tempo que despede, aumenta o trabalho das «feitoras» nas suas casas, uma forma de exploração operária, mais próxima do século XIX que de 1974. Antes deste caso da operária da Gracinda tinham despedido oito costureiras uma delas grávida. Para nós as costureiras, o problema mais grave deste momento depois das fábricas a meio-tempo é o dos despedimentos. As empresas estavam habituadas a baixos salários e a discriminações salariais. Agora ameaçam que se vão embora, para outra zona onde sejam dadas as facilidades que o fascismo dava ao capital – conta-nos outra operária. As operárias ganharam consciência da sua força e da sua capacidade de luta contra os despedimentos quando unidas. Na fábrica Monte Real, a agudização destes problemas é ainda maior: Eu sou operária de 2ª e tenho já quase quatro anos de casa. Roubaram-me a categoria e deram-me um papel branco para assinar. Disseram-me que aquilo não tinha mal nenhum. Puseram a categoria que entenderam. Fui praticante durante três anos. Ao princípio da casa assinei um papel em branco e fiquei sem 15 dias de férias. A ignorância de um largo sector da classe operária era um pretexto para a explorar sobre todas as formas. Agora as costureiras descobriram a unidade e a solidariedade e fazem do «Avante!» o seu jornal, um centro de debate e de denúncia das manobras dos empresários menos escrupulosos. Antes de sexta-feira só tínhamos meia hora para o almoço. A outra meia-hora fomos nós que a conquistámos já depois do 25 de Abril. Mas ainda há outras injustiças. Veja que ganhamos ao mês, mas, se faltarmos um dia, perdemos os domingos todos – conta-nos ainda uma operária da Monte Real.


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Na GEFA – Confecções: descontentamento Em Alhos Vedros, o «Avante!» visitou ainda a fábrica Corticeira Ibérica, onde fomos acolhidos com fraternal camaradagem e onde iniciámos um contacto com os corticeiros que se organizam actualmente em comissões de fábrica. Na GEFA – Confecções, as operárias em conjunto expuseram as grandes arbitrariedades do patronato, o que origina por exemplo, que não paguem o bónus às operárias que faltem pelo menos sem pedir autorização à gerência. Notámos também um grande descontentamento entre as costureiras em relação ao problema das férias, pois, segundo nos disseram, corria na fábrica que a administração estaria a pensar dar este ano apenas entre quatro e oito dias de férias."58

Os trabalhadores estão na vanguarda da revolução e demandam, pela sua ação reivindicativa no terreno, direitos que virão mais tarde a ser consagrados na Constituição de 1976, como o reconhecimento das “Comissões de trabalhadores”. Sobre as Comissões e seus direitos de intervir nas empresas, refere a Constituição: “É direito dos trabalhadores criarem comissões de trabalhadores para defesa dos seus interesses e intervenção democrática na vida da empresa, visando o reforço da unidade das classes trabalhadoras e a sua mobilização para o processo revolucionário de construção do poder democrático dos trabalhadores”59; “Exercer o controlo de gestão nas empresas”60; “Intervir na reorganização das unidades produtivas”61. O I Governo Provisório (16 de maio de 1974) já previra, no entanto, na Política Social das suas “Linhas programáticas” o “estabelecimento de regimes de participação dos trabalhadores na vida da empresa”62. De acordo com Luís Correia, as lutas pela intervenção e controlo das empresas “… vieram a ter o primeiro reconhecimento oficial com a Resolução do Conselho da Revolução, de 12.4.1975, que afirma claramente o «princípio do controlo organizado da produção pelos trabalhadores para objectivos de produção e eficácia coordenados pelos órgãos centrais de planeamento”63. O momento político é de incerteza e perante a situação económica imediata os trabalhadores intentam participar no rumo da economia através da instituição do controlo operário, que incidia, conforme as “Conclusões aprovadas no plenário das comissões e trabalhadores da cintura industrial de Lisboa, em Paio Pires, a 8 de Novembro de 1975”, sobre os bens patrimoniais, controlo de máquinas e equipamentos, a aquisição de matérias-

AVANTE, edição de 12 de julho de 1974, p. 3. CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa, de 2 de abril de 1976, artigo 55.º, (Comissões de trabalhadores), n.º 1. 60 Ibidem, artigo 56.º, (Direitos das comissões de trabalhadores), alínea b). 61 Ibidem, artigo 56.º, (Direitos das comissões de trabalhadores), alínea c). 62 LINHAS Programáticas do Governo Provisório. (Consult. 7 de novembro de 2016). Disponível na internet «http://www.portugal.gov.pt/media/464072/GP01.pdf». 63 CORREIA, Luís – Crónica a Lei sobre as Comissões de Trabalhadores. In Revista da Ordem dos Advogados. Lisboa: Ordem dos Advogados, 1980, maio-agosto, p. 450. 58 59


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primas e verificação de «stocks», controlo sobre a produção, sobre as vendas, controlo financeiro, controlo sobre actividades administrativas, da contabilidade, controlo da produção64. A participação dos trabalhadores na gestão das empresas, a alteração de poderes, entronca também no espírito democrático da revolução, concretamente na afirmação de valores como a igualdade e a unidade, na realização do fim da exploração do homem pelo homem. Foi esse o sentido das primeiras palavras de Cristina Campante, quando a entrevistámos sobre o período da Convex, logo a seguir ao 25 de Abril: “25 de Abril trouxe a liberdade para pôr fim à exploração e perseguição terrorista que então se vivia por parte da administração. No entanto, a vontade de saneamento era imperiosa e mais que justa a nosso ver, mas o poder de direção estava totalmente nas mãos destes senhores. Daí que tivemos que recuar, porque o objetivo principal era assegurar a continuidade da Convex e criar melhores condições de trabalho. Nós não queríamos mais exploração, queríamos mudar. Na altura éramos jovens, sabíamos o que queríamos, mas também tínhamos consciência que não possuíamos condições para gerir a empresa. Tínhamos é que tomar parte na orientação da empresa. E eles, a administração, respondiam «Se isso é assim, vocês é que mandam, então que fiquem com a empresa!». Era assim que intimidavam os trabalhadores. Não queriam os trabalhadores organizados e a reivindicarem. Era uma chantagem. Houve um período em que nós tivemos em autogestão. Portanto, criámos uma comissão administrativa, uma parte de trabalhadores e uma parte da administração, para assegurar a própria empresa. Mas, antes de haver essa comissão administrativa, começámos logo a elaborar o nosso caderno reivindicativo, com a administração. Esta primeira comissão de trabalhadores vem a Lisboa, ao Ministério do Trabalho, porque eles não queriam que ninguém se manifestasse, «Se vocês querem manifestar-se, então que fiquem com a fábrica!». Não era isso que queríamos. Essa comissão veio ao Ministério do Trabalho pedir ajuda no sentido garantir a viabilização da empresa. Porque o importante era a Convex manter-se a laborar, mas havia o reconhecimento pleno que só os trabalhadores não tinham capacidade para a dirigir. Neste contexto e dadas as dificuldades algumas trabalhadoras abandonaram a comissão e saíram da fábrica, tudo porque a situação era extremamente difícil. Assim sendo, tivemos que novamente avançar, erguer bandeiras e iniciar o processo de formar nova comissão de trabalhadores, onde estou integrada na organização. A participação e coesão foi muito importante por parte dos trabalhadores, para que a sua estrutura representativa continuasse a luta reivindicativa e social.”65 64 LIMA, M. Pires de, MIRANDA, J. David, PATRIARCA, M. Fátima, CARVALHO, I., BENTES, I., BARRA, Maurício – Controlo operário em Portugal (I). In Análise Social, vol. XII, n.º 47. Lisboa: Gabinete de Investigações Sociais, 1976, pp. 802-808. 65 Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 20 de junho de 2016).


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Em síntese, contestar as formas de exploração subjacentes ao sistema capitalista e valorizar o trabalho e o trabalhador. Em 1976, realiza-se o I Congresso dos Trabalhadores Têxteis Lanifícios Vestuário Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal, no Porto, tendo-se já fundido as federações sindicais dos têxteis e dos lanifícios e vestuário, representando cerca de 300.000 trabalhadores66. Os temas eleitos refletem as preocupações dos trabalhadores: 1.º, luta contra a reconversão capitalista do sector feita à custa dos trabalhadores; 2.º, controlo operário; 3.º, o movimento sindical e a sua ligação ao movimento popular; 4.º, reorganização sindical do sector; 5.º, previdência; 6.º, contratação coletiva. As questões do controlo operário, dos poderes das estruturas representativas dos trabalhadores nas empresas e na economia nacional, constituem de facto e na ótica dos trabalhadores a melhor garantia para a manutenção dos postos de trabalho e evitar as sabotagens económicas que ponham em causa o rumo democrático da revolução: "O controlo operário significa em primeiro lugar uma maneira de controlar no sentido de conjugar ao máximo os interesses dos trabalhadores de uma empresa ou sector, na luta contra a sabotagem económica, pela manutenção dos postos de trabalho. Significa a imposição ao patronato de princípios e regras de actuação que permitam um controlo sobre o desenvolvimento da economia nacional, da integração da mais-valia na produção, de métodos democráticos de actuação e de aplicação de reconversão. Significa uma luta contra todas as formas de sabotagem. Significa também vigiar pela aplicação da reconversão no sector de modo planificado. Significa em geral uma vigilância revolucionária e integração organizada, audaz, persistente, dos trabalhadores na batalha económica assim provando que as causas da crise são da total responsabilidade do patronato e do Governo e em última instância do sistema capitalista e da nossa dependência em relação ao imperialismo."67 Para o operariado a questão da manutenção do funcionamento das empresas é vital, uma vez que vivem do seu trabalho como assalariados e a tendência é para o agravamento do desemprego. Em 1974, a taxa de desemprego situa-se nos 2,1%, em 1976, é de 6,5%, e em 1979, será de 8,2%68. Em algumas das empresas a situação laboral, por abandono ou afastamento dos patrões, leva os trabalhadores a assumirem a gestão, através das comissões de trabalhadores. É o caso da Convex, que se instalou no Chão Duro, no princípio dos anos 70 do século XX, intervencionada na sequência CONCLUSÕES DO CONGRESSO dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal. Porto: |s. n.|, 1976, p. 4. 67 Ibidem, p.15. 68 LIMA, Marínus Pires de – Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego (1974-90). In Análise Social, vol. XXVI, n.º 114. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1991, p. 912. 66


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do abandono da administração a seguir ao 11 de Março, processo que se prolongou até ao 25 de Novembro, altura em que os patrões regressaram69. Sob o mesmo teto da mesma fábrica, o mesmo patrão e a mesma exploração, as mesmas reivindicações, mas nem sempre a mesma ideia sobre os processos de luta, para pressionar decisões favoráveis. Havia trabalhadoras que discordavam mesmo de determinadas ações que outras trabalhadoras e elementos estranhos à empresa exerciam sobre a administração nos casos de sequestro, como aconteceu na GEFA e nos relatou Judite Faquinha: "O 25 de Abril foi muito difícil para nós na empresa, porque houve atitudes da administração, influenciadas pelo chefe de escritório, que por tudo e por nada queria levantar processos disciplinares com despedimentos com justa causa. Isto foi logo em 74 e 75. Haviam muitas lutas para pressionar a administração para dar mais regalias aos trabalhadores. Passava-se qualquer coisinha e a administração era logo fechada na casa de banho. Não tinham ordem de comer. Quando alguém começava a cabecear à noite davam palmadas na secretária. Isto os mais extremistas, a ponto de irem lá para dentro homens que não pertenciam à empresa nem lá trabalhavam. Eu dizia: «Lutou-se contra a PIDE e vocês estão a fazer a mesma coisa!». Havia uma rapariga na administração que na altura já fazia hemodiálise e eles nem sequer queriam deixá-la tratar da higiene dela. Cheguei a levar comida para as pessoas que estavam sequestradas. Numa outra vez prenderam a administração no refeitório."70

Plenário de trabalhadores nas instalações da Gefa, após o 25 de Abril de 1974. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. A Constituição de 1976 concede aos trabalhadores o direito de criarem comissões de trabalhadores para a defesa dos seus interesses.

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O DIÁRIO, 11 de outubro de 1989, p. 10. Judite Faquinha (testemunho oral, gravado em 11 de outubro de 2016).


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Alhos Vedros, meio operário, grande concentração de empresas de confeções de vestuário, tradição de lutas laborais. Em 1974, após Abril, antevê-se que a constituição de uma comissão de trabalhadores na Gefa possa decorrer sob contornos de insegurança, derivado da ingerência ou influência de elementos estranhos à empresa. Nem sempre a unidade em torno de causas comuns está garantida. Apelaram aos Fuzileiros, como nos contou Judite Faquinha: "Eu pertencia à comissão de trabalhadores, porque tinha ido aos fuzileiros. A eleição da comissão de trabalhadores foi na “Velhinha”, já nos finais de 1974. Foram os fuzileiros que organizaram a assembleia para a comissão de trabalhadores. Telefonei para os fuzileiros a pedir apoio porque havia muita desestabilização e eu tinha medo que alguns mais extremistas aparecessem. Na altura até andavam com correntes, com tudo… o que tinham à unha usavam. Eles entravam pela fábrica dentro e eu comecei a ter medo. Os fuzileiros vieram e até pediram para se arranjar mais umas quantas pessoas para irmos para a auto-defesa. Normalmente, quando eu informava os fuzileiros que ia haver plenários, e podia acontecer algum problema, eles vinham."71 Entre 1974 e 1976, assiste-se, de facto, a uma fase de grandes tensões nas empresas, entre os trabalhadores e as entidades patronais. As lutas laborais anteriores a Abril, o longo historial de exploração dos trabalhadores, os quadros de miséria, as arbitrariedades perpetradas pelas entidades patronais, os ritmos de trabalho, os despedimentos, foram sedimentando desconfianças de parte a parte, gerando facilmente atritos e conflitos, dificultando diálogos, que não são só laborais mas também políticos, acompanham as dinâmicas da revolução em curso. Um relatório do delegado do Ministério do Trabalho, Delegação de Setúbal, sobre um conflito na Gefa com base num diferendo entre o trabalho que a administração entendia pagar e o que os trabalhadores esperavam receber, levou ao extremar de posições entre os antagonistas. Ocorreu entre 29 de janeiro e 3 de fevereiro de 1976, com sequestro de pessoas, mediação da Delegação de Setúbal e do Sindicato, participação da GNR da Moita, chamadas telefónicas para a Embaixada da Suécia e telegramas para o Conselho da Revolução. O documento a que aludimos possui 25 páginas e encontra-se depositado no Núcleo de Arquivo e Documentação do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social72. Sumariamos aqui a ocorrência, pela imagem que nos proporciona da época: ao ter conhecimento da possibilidade da ocorrência de um conflito o delegado da Delegação de Setúbal do Ministério do Trabalho intenta a mediação entre administração

Judite Faquinha (testemunho oral, gravado em 11 de outubro de 2016). NÚCLEO DE ARQUIVO E DOCUMENTAÇÃO DO MINISTÉRIO DO TRABALHO, SOLIDARIEDADE E SEGURANÇA SOCIAL (NADMTSSS), Cx. 7602. Ofício da Delegação de Setúbal do Ministério do Trabalho ao Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Secretário de Estado do Trabalho, ref.ª 363, de 12 de fevereiro de 1976. No Núcleo de Arquivo encontra-se ainda informação sobre a Gefa, depositada nas caixas 7743 e 8078.

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e trabalhadores, dirigindo-se para Gefa, onde constata que “... a gerência, um cidadão sueco e uma cidadã nacional, se encontravam retidos pelos trabalhadores”; as instalações encontram-se ocupadas pelos trabalhadores, que não desmobilizam; o delegado alerta “… a atenção dos trabalhadores para o facto, aparentemente estranho, de a entidade patronal por uma coisa tão pequena estar a provocar um tão grande problema, pelo que se poderia pensar tratar-se de um processo de provocação dos trabalhadores pela entidade patronal estando estas a ceder a essa provocação fazendo o jogo em que, eventualmente, eles estariam interessados”; coloca-se, depois, o problema da comunicação da gerência com a sede, na Suécia, em que os trabalhadores exigem que o texto siga em inglês e a gerência pretende enviar em sueco, para garantir confidencialidade. O conflito lá se resolve com o compromisso de os trabalhadores receberem os salários sem qualquer desconto, ultrapassando-se também o problema do pagamento através de cheque que, na falta de confiança entre as partes, ficou entregue ao delegado do Ministério do Trabalho. Após a resolução do conflito, o delegado exara as seguintes conclusões sobre aquele momento na Gefa: "a) As relações entre a gerência e trabalhadores são muito más havendo um clima de desconfiança mútua, que se revela nos mais pequenos pormenores, e propicia o surgimento frequente de conflitos de toda a espécie. b) Aliás, só a existência desse clima poderá explicar que à volta de uma questão de tão diminuta importância se tenha gerado um problema com a dimensão do ocorrido. c) Os trabalhadores acusam a entidade patronal de estar constantemente a tentar provocar situações conflituosas (o já referido problema de paralisação da banda 3 será um desses casos) sendo nós de opinião, por tudo o que constatámos, que os trabalhadores têm uma boa dose de razão em se queixar, pois só assim se poderá explicar este conflito e tudo que se passou no seu decurso." Concluía ainda o relatório que a gerência da Gefa mostrava uma grande incapacidade para "... manter um espírito de relações saudáveis com os trabalhadores e suas estruturas representativas...", tudo indicando a emergência de novos conflitos na empresa, dado o permanente estado de tensão. A perceção da Gefa sobre os acontecimentos é diferente, criticando a posição do delegado do Ministério do Trabalho: "O delegado não tentou resolver o problema concordando em que os trabalhadores deveriam prosseguir a sua luta tomando as medidas drásticas necessárias até à assinatura do cheque...". Pela Gefa são relatadas ainda as seguintes situações: a incapacidade da GNR, que fez duas tentativas para libertar os sequestrados, infrutíferas; as torturas (do sono) e os insultos a que os sequestrados foram sujeitos; a permanência de indivíduos estranhos na empresa; a mobilização de indivíduos "... estranhos à empresa, que se concentraram à entrada da fábrica (CUF, Setenave, Bore, Gracinda Flores, etc.)". Consideraram ter sido o "«acordo» extorquido por coacção" e solicitaram que


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a sua "invalidade" fosse declarada pelo Ministério do Trabalho. O facto de a empresa ser sueca colocava outra pressão no conflito, a diplomática, que a Gefa não deixa de explorar no telegrama urgente enviado para o Conselho da Revolução. A situação não ficou sanada sem que o Ministério do Trabalho retirasse os poderes ao seu delegado. O jornal Venceremos, do Sindicato, reflete sobre o acontecimento, em abril de 1976: "NA GEFA PATRÃO FAZ "LOCK-OUT" E M. TRABALHO APOIA Há meses atrás, o patrão sueco da GEFA fez um acordo com os trabalhadores, mediante o qual eles trabalhariam apenas 3 dias por semana e haveria, portanto, quebra de vencimento. O acordo foi ilegal porque o Ministério do Trabalho nem sequer soube dele, no entanto os trabalhadores lá o cumpriram. Em Janeiro deste ano os operários passaram a trabalhar cinco dias por semana, mas no final do mês o patrão disse que se tinha enganado nas contas do acordo e pagou-lhes menos um dia. Para conseguirem o pagamento os trabalhadores encerraram o patrão e saíram vitoriosos. No entanto, no mês seguinte a entidade patronal diz novamente que não paga o tempo de paralisação. Os operários recorrem à Delegação do Ministério do Trabalho em Setúbal e o patrão acaba por comprometer-se a pagar, se o delegado assim o entendesse. Tempos depois são retirados, pelo ministro do Trabalho todos os poderes ao Delegado de Setúbal para resolver a questão. Que se tinha passado? Muito simplesmente, o delegado disse que o patrão tinha de pagar e este, quebrando o acordo, recorre para o Ministério do Trabalho em Lisboa. Está-se mesmo a ver porquê! Neste momento, a GEFA está parada, porque o patrão retirou todas as ordens de encomendas que tinha obrigado a fábrica a parar, o que quer dizer, fez «lock-out». Os trabalhadores tentam conseguir novas encomendas, que garantam a sua subsistência e já têm algumas boas perspectivas."73 Assim se encontrava a Gefa no princípio de 1976. Os diferendos que opunham trabalhadores e entidades patronais eram em muitos casos insanáveis. O que se passou na Sogantal, empresa de confeções de origem francesa, localizada no Montijo, que na sequência da reivindicação de aumentos salariais por parte das trabalhadoras, envolveu a ocupação da fábrica pelas operárias, reocupação da fábrica pelo patrão

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VENCEREMOS, Jornal dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário de Portugal, edição de abril de 1976, p. 6.


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Intervenção das Forças Armadas na empresa de capitais estrangeiros Sogantal, Montijo, em 1974. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. O sector têxtil, principalmente o subsector do vestuário, onde predominam maioritariamente as mulheres, operárias com baixos salários e trabalhando sob regime intenso, registará o maior número de conflitos laborais, entre 1974 e 1975.

com o auxílio de elementos estranhos à empresa, e a intervenção das Forças Armadas, constituiu um exemplo da radicalização e instabilidade vividas no mundo laboral. O sector têxtil (principalmente o subsector do vestuário), onde predominam maioritariamente as mulheres, operárias com salários muito baixos e trabalhando sob regime intenso, portanto onde a exploração é mais violenta, registará o maior número de conflitos laborais, entre 1974 e 1975: "A maioria dos conflitos sociais da revolução portuguesa é protagonizada pelo operariado (19% da conflitualidade dá-se na indústria têxtil, 15% na maquinaria e fabricação de produtos metálicos, 9% na construção e obras públicas, 7% na indústria química e alimentação), em particular o operariado das grandes cinturas industriais (Porto, Lisboa, Setúbal), com particular destaque para Lisboa, distrito no qual ocorrem 43% dos conflitos laborais. São conflitos protagonizados por uma classe operária jovem (a grande migração do campo para a cidade dá-se a partir do início dos anos 60) e concentrada geograficamente nas duas margens do Tejo, em Lisboa e Almada, e em Setúbal."74 Na sequência do surto de greves de 1974, que interferem com a estabilidade económica e social do país, em revolução, o Governo Provisório promulga a Lei da Greve (Decreto-Lei n.º 392/74) em 27 de agosto de 1974, que considera a greve "... um factor de ordem económica e social que importa regular em ordem a determinar e estabelecer as formas e garantias do seu exercício e da defesa de outros direitos fundamentais"75. Os trabalhadores têm direito à greve (art.º 1.º). Define-se greve

74 75

VARELA, Raquel, 2012, p. 218. DECRETO-LEI n.º 392/74, de 27 de agosto de 1974.


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como: "... a recusa colectiva e concertada do trabalho tendente à defesa e promoção dos interesses colectivos profissionais dos trabalhadores"76. O diploma considerava ilícita a greve desencadeada para alterar acordos coletivos de trabalho, antes da expiração da sua vigência77, o que significava, na prática, que enquanto os salários estagnavam a inflação evoluía. Não permitia greves de solidariedade78, e proibia a ocupação dos locais de trabalho durante a greve79. O Decreto-Lei salvaguarda, ainda, o «Lock-out» defensivo80, isto é, a permissão de encerramento da empresa por parte do patronato. A Lei desagrada, os trabalhadores estão contra o lock-out e manifestam-se. Em 1977, é publicada nova lei da greve (Lei n.º 65/77 de 26 de agosto). É proibido o «Lock-out»81. Após esta fase revolucionária, que tem o operariado como impulsionador das transformações sociais e laborais, alicerçado no exercício de uma democracia de base, de assembleias de trabalhadores, seguir-se-á, a partir do final de 1975, um período de regulação das relações laborais, de resolução de conflitos e negociações através dos sindicatos. Foram muitas as conquistas que Abril trouxe à classe trabalhadora, no domínio dos direitos laborais. A negociação de contratos coletivos, melhores salários, os sindicatos dos trabalhadores, o direito de reunião, a redução do horário de trabalho, as férias, as melhorias na assistência à família e o apoio na situação de desemprego, a assistência médica, entre outros. Passou a haver também mais respeito. Antes de Abril, como nos contou Judite Faquinha, as trabalhadoras comiam pelo quintal, comiam ao ar livre, em cima de tábuas e tijolos. Depois do 25 de Abril: "As condições de trabalho foram melhorando, passámos a ter posto médico. Passámos a ter refeitório, com o pequeno almoço. Podíamos levar comer e aquecer em estufas. Havia café ou leite ao lanche."82

Ibidem, art.º 2.º. Ibidem, art.º 5.º. 78 Ibidem, art.º 6.º. 79 Ibidem, art.º 7.º. 80 Ibidem, art.º 21.º. 81 LEI n.º 65/77, de 26 de agosto de 1977. 82 Judite Faquinha (testemunho oral, gravado em 11 de outubro de 2016). 76 77


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E

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MULHERES 6.3 AS E O SINDICATO

m 1976, é aprovada a Constituição da República Portuguesa, que vem consagrar a liberdade sindical83 e algumas estruturas de unidade dos trabalhadores, como as Comissões de Trabalhadores84. Com efeito, se o direito de exercício de atividade sindical se estende a todos os trabalhadores, a realidade é bem diferente quando analisada a composição por sexos dos respetivos sindicatos, mesmos em sectores tradicionalmente femininos. Por exemplo, na primeira eleição para o Sindicato dos Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul, entre os 19 dirigentes figuravam unicamente 4 mulheres85. Na última eleição as mulheres já constituíam maioria, contando 18 mulheres entre 30 dirigentes86. As Conclusões do I Congresso dos Trabalhadores Têxteis Lanifícios Vestuário Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal, em 1976, já avivara o debate sobre a importância das mulheres nas estruturas sindicais, alertando para a necessidade da sua convocação para o trabalho sindical, em defesa dos seus interesses:

1ª Conferência Nacional de Organização Sindical, organizada pela CGTP Intersindical (1979). Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. A Constituição de 1976 consagrou a liberdade sindical e o exercício da atividade sindical estendeu-se a todos os trabalhadores. No entanto, quando analisada a composição das estruturas sindicais por sexos, as mulheres encontram-se em minoria.

Trabalhadoras da Norporte manifestam-se contra o pacote laboral, em Lisboa. Imagem: Carolina Medeiros. Passados dez anos do 25 de Abril, a participação das mulheres na vida sindical ainda não é significativa, excetuando-se os sindicatos ligados aos têxteis e vestuário e aos serviços domésticos.

CONSTITUIÇÃO da República Portuguesa de 1976, art.º 57º. Ibidem, art.º 56º. 85 CONFERÊNCIA da Mulher Trabalhadora, 2.ª, A Mulher e o Trabalho 1974-1984. Lisboa: Edições 1 de Outubro, CGTP-IN, 1985, p. 81. 86 Ibidem. 83 84


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"Considerando que no Sector Têxtil a maioria dos trabalhadores são mulheres, e que o patronato sempre se aproveitou deste facto para pagar baixos salários e explorar mais desenfreadamente; torna-se urgente que a Federação e os Sindicatos promovam actividades que ajudem as mulheres têxteis a organizarem-se, para que estas sintam a sua importância na luta geral dos trabalhadores têxteis, e assim: a) Os Sindicatos devem ter como preocupação constante chamar as mulheres à participação em todos os aspectos da vida sindical; b) Logo que as condições o permitam, devem criar-se departamentos para estudo e organização dos problemas da mulher no sector."87 Os estudos apresentados na 2ª Conferência da Mulher Trabalhadora, em Almada, constatavam a fraca participação das mulheres nos orgãos sindicais, assinalando ser reflexo das mesmas dificuldades com que a mulher se defrontava no trabalho: "... atitudes e preconceitos discriminatórios que a fazem encarar de modo negativo essa participação, dupla tarefa, incompatibilidade das responsabilidades familiares com essa participação, etc..."88. O jornal Venceremos, Jornal dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário de Portugal, também registava, em julho de 1976, a fraca participação feminina nas estruturas sindicais: "A mulher e os quadros sindicalistas a nível de órgãos directivos a presença da mulher é muito menor que a dos homens como podemos verificar consultando os ficheiros (12 mulheres em 58 dirigentes). A nível de delegados sindicais a situação é mais ou menos semelhante: (350 mulheres em 942 delegados) num sector onde há 85 por cento de mulheres"89. Passados 10 anos do 25 de Abril de 1974, os estudos em causa (1974-1984) concluíam, apesar das alterações na organização sindical, que os avanços sobre a participação feminina na vida sindical eram lentos90. Entre os 68 sindicatos que apresentaram informação sobre a composição dos orgãos de direção na última eleição, incluindo diversos sectores como a indústria química e farmacêutica, alimentação, bebidas e tabacos, hotelaria e turismo, indústria elétrica, administração central e regional, comércio, escritórios e serviços, têxteis, lanifícios, vestuário, couro e peles, apenas em 4 sindicatos as mulheres possuíam maioria na estrutura sindical: no Sindicato dos Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul (18M/12H), Sindicato do Vestuário do Porto (23M/6H), Sindicato de Conservas do Norte (9M/5H), e no Sindicato do Serviço Doméstico (20M/0H)91.

CONCLUSÕES DO CONGRESSO dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal. Porto: |s. n.|, 1976, p. 35. 88 CONFERÊNCIA da Mulher Trabalhadora, 2.ª, A Mulher e o Trabalho 1974-1984, p. 77. 89 VENCEREMOS, Jornal dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário de Portugal, n.º 5, II série, julho de 1976, p. 8. 90 Ibidem, p. 78. 91 Ibidem, pp. 78-81. 87


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VENCEREMOS Jornal dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário de Portugal. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota: J. 3549 V.

Manuela Prates. (Dirigente sindical do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul). Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

Entre 1974 e 1975, como referido, o sector têxtil e do vestuário é responsável pelo maior número de lutas laborais. É um sector que emprega larga maioria de mulheres, mas também aquele em que a participação feminina nos sindicatos é reduzida. Após esta fase revolucionária, as lutas por mais direitos e melhores condições de trabalho, bem como contra o encerramento de empresas, irão continuar e incorporar cada vez mais mulheres nas estruturas representativas dos trabalhadores, a ponto de inibirem, como refere Manuela Prates, do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul, a participação dos homens. Manuela Prates, dirigente sindical, proporciona-nos uma visão muito clara e desenvolvida sobre a combatividade das mulheres e as suas lutas laborais, no subsector do vestuário no concelho da Moita: “O distrito de Setúbal era um distrito onde, efetivamente, as mulheres e os homens lutavam por melhores condições de vida e de trabalho. Mas queria particularizar a ação das mulheres nessa luta, porquanto no sector do vestuário, havia por parte dos homens alguma inibição em participar nas lutas que eram necessárias para se conseguirem os objetivos. Desde a mais pequena à maior empresa, caso da Gefa, com 1100 trabalhadores, ou da Norporte, com cerca de 490 trabalhadores, as mulheres estavam organizadas e lutaram muito pela manutenção dos seus postos de trabalho, lutaram muito para que as suas condições de vida melhorassem. Porque foi, é e será sempre através da luta que conseguimos alterar as condições de vida que temos. Quero referir que em todas as empresas tínhamos um nível de organização que permitia que este sindicato tivesse uma força muito grande. No distrito de Setúbal, particularmente no concelho


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da Moita, tendo em conta a grande concentração de empresas no local, havia um nível de organização que permitia melhorar as condições de vida na empresa, mas também com consequências para os restantes trabalhadores do sector, na medida em que tudo o que fossem conquistas a nível da empresa acabariam mais tarde por tornar-se lei, através dos contratos coletivos de trabalho. Estou a recordar-me, por exemplo, das lutas que travámos pelas 40 horas, em que também as grandes empresas na Moita, deram um impulso muito grande para a redução do horário de trabalho. O mesmo sucedeu em relação ao subsídio de alimentação que, antes de ser uma realidade no contrato coletivo de trabalho, foi uma realidade a nível das empresas. O sindicato discutia com os trabalhadores os chamados cadernos reivindicativos da empresa e os trabalhadores assumiam a luta necessária para conseguir, efetivamente, concretizar os objetivos. Com o caderno reivindicativo os trabalhadores conseguiam uma conquista numa empresa e, pelo mesmo método, depois noutra, permitindo que os dirigentes sindicais ao negociar depois os contratos coletivos de trabalho conseguissem transpor para o contrato essas conquistas, que se estendiam depois a todos os trabalhadores do sector. Foi a força organizada dos trabalhadores em empresas onde as sindicalizações rondavam os 80%, 90%, 99%, que deu origem a que os trabalhadores com a sua organização de classe tivessem força suficiente para irem invertendo a situação."92

Imagens da reportagem que a revista ALAVANCA, Órgão Central da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional, realizou sobre as condições de trabalho na Gefa (Alhos Vedros), em 1981. Imagem: Arquivo Fotográfico CGTP-IN/João Silva/B89-34, B89-41 e B90-12, publicadas na revista “Alavanca”, Ano 6, n.º 46, julho/agosto de 1981.

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Manuela Prates (testemunho oral, gravado em 25 de agosto de 2016).


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Durante o Estado Novo os trabalhadores não se reviam nos sindicatos, associados à manutenção do regime vigente e à relativização dos conflitos, apaziguando-os. Após Abril, cai o corporativismo e os sindicatos reorganizam-se como estruturas representativas dos trabalhadores. Organizam os trabalhadores, realizam plenários de esclarecimento, conduzem as negociações dos novos contratos de trabalho, exigem a formação dos trabalhadores e melhores condições de trabalho e proteção social, promovem a constituição de comissões de trabalhadores, organizam a ação coletiva, formam e informam os trabalhadores, entre outros. Uma reportagem do Alavanca93, Órgão Central da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional, de 1981, dá-nos uma perspetiva do trabalho realizado pela CGTP junto das operárias, mas também das condições de trabalho na Gefa, com cerca de metade das trabalhadoras sujeitas a contrato a prazo. A reportagem é extensa, mas reproduzimo-la na íntegra, dado o seu interesse histórico: “GEFA, Confecções, Lda. Abuso de poder, Arbitrariedade, Prepotência Num dia de calor escaldante a nossa reportagem deslocou-se a Alhos Vedros. Pretendíamos visitar uma empresa onde o número de trabalhadoras com contratos a prazo fosse significativo. Saber como vivem o seu dia a dia na empresa, que condições de trabalhos lhes são dadas, que perspectivas sindicais podem ter estas pessoas, era outro dos nossos objectivos. Avistámo-nos com as delegadas sindicais que nos conduziram ao pátio que circunda o edifício onde 360 operárias produzem o vestuário em série da empresa “GEFA Confecções, Lda.”. Um pouco por todo o lado vimos mulheres, sentadas ora em tijolos, ora numa esquina saliente dum muro, ou ainda de pé, comendo a sua refeição. Os guardas da empresa olhavam-nos com suspeição e não sem animosidade já expressa anteriormente ao tentarem impedir-nos a entrada, mesmo acompanhados pelas delegadas sindicais. Fizemos uma primeira abordagem a um grupo de trabalhadoras, todas elas com contratos a prazo. Difícil este contacto. Penoso, mesmo. Entre uma garfada e à torreira do sol, uma mirada curta e timorata às andanças dos guardas, as primeiras palavras surgiram… – Sabemos que vocês cá vinham para falar com gente que tem contratos a prazo. Aqui na empresa somos quase 150 nestas condições… e só aqui estamos seis para falar com vocês. Seis mulheres que se prontificaram a prestar declarações à nossa reportagem, de entre 150. Não é fácil compreender tanta falta de segurança, tanto medo, sete anos após a madrugada libertadora de Abril. ALAVANCA, Órgão Central da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional, julho/agosto de 1981, n.º 46.

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– É que – explicam-nos – estamos permanentemente ameaçadas de despedimento. Nós entramos para a empresa à experiência, por 15 dias. Se agradamos dão-nos um contrato de seis meses. Se continuamos a agradar o contrato pode ser renovado por mais seis meses e por aí fora. Compete às mestras e encarregadas determinar se esta ou aquela trabalhadora “agrada”. São elas que diariamente vão fazendo a triagem e são elas quem informa a gerência da “capacidade de trabalho” das operárias. São elas igualmente que juntamente com os gerentes (um sueco, outro finlandês) decidem do prazo de duração do contrato. – Só ao fim de três anos é que passamos a efectivas. Até lá podem despedir-nos em qualquer altura. Tantas que por aqui passaram e que foram despedidas ao fim de dois anos… Numa situação destas os abusos de poder, as arbitrariedades e a prepotência são lugares comuns que se abatem sobre estas trabalhadoras. Algumas destas mulheres são também estudantes. Como tal teriam direitos que estão claramente consignados na lei. Todavia, a lei é letra morta na empresa privada que é a GEFA. – Nós sabemos que se pretendemos usufruir da hora a que temos direito, por sermos trabalhadoras estudantes, seremos despedidas. As encarregadas não nos deixam falar. Se queremos ir à casa de banho temos que o fazer muito rapidamente e só depois de pedirmos autorização. Embora tenhamos sido impedidos de entrar nas instalações fabris da empresa, pudemos constatar, porque óbvia, a falta de um refeitório ou até de um local abrigado do sol ou da chuva, onde as operárias pudessem tomar as suas refeições. Segundo nos disseram, dentro das instalações fabris cai a chuva no inverno e o calor do verão é insuportável. – O ar condicionado está nos escritórios. Mas isso ainda é o menos. O pior de tudo é não sabermos nunca o que vai ser o dia de amanhã. A actividade sindical ressente-se, igualmente, numa empresa como a GEFA, como muito claramente no-lo disseram as três delegadas sindicais. – Apesar de levarmos a cabo formas de luta (greves) pelo cumprimento efectivo da contratação colectiva para o sector, as adesões a estas formas de luta são relativamente reduzidas, já que aqui as pessoas são ameaçadas de despedimento pelo simples facto de se sindicalizarem. Facilmente se imagina o que sucederia àquelas contratadas a prazo que aderissem à greve: Actividade sindical não está, todavia, morta na empresa. Neste sentido as delegadas sindicais lançam um apelo às suas camaradas de trabalho. – Se pelo menos o pessoal efectivo se unir verdadeiramente, podemos pressionar as entidades patronais de modo a que sejam dadas soluções aos múltiplos problemas que se colocam a todas as trabalhadoras da empresa. A nossa luta é justa e contamos com o apoio de todos os


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trabalhadores, das suas organizações e da CGTP-IN. Mais tarde ou mais cedo sabemos que havemos de vencer e que os contratos a prazo na GEFA, como noutras empresas, deixarão de existir. Porque o direito ao trabalho é um direito de todos os seres humanos. Nesta como em centenas de outras empresas, os contratos a prazo constituem, como afirma o dr. Pedroso de Lima noutro artigo que publicamos na nossa revista “uma decisiva arma utilizada pelo patronato para recuperar o pleno autoritarismo no seio da empresa e dispor de uma mão de obra dócil e em número ajustável às necessidades de cada momento”. É esta situação, que tem a total cobertura do governo, que urge combater. É o salário que permite aos trabalhadores assegurar a sua subsistência. E a subsistência dum trabalhador não pode ficar suspensa duma decisão arbitrária e desumana de qualquer entidade empregadora.” Em 1993, período durante o qual fecharam Gefa e Convex, por exemplo, as estruturas sindicais do sector têxtil e vestuário, concentraram-se junto ao Ministério da Indústria: "Traziam consigo para entregar aos governantes do PSD, um «livro negro» onde fazem o balanço da evolução do sector nos últimos dois anos e mostram que «é possível sair da crise». Feitas as contas pelas estruturas sindicais, naquele período verificou-se uma quebra de 27166 trabalhadores, o que corresponde a 7,8 por cento dos activos; as 221 empresas que encerraram ou faliram empregavam 21883 pessoas e fazem parte de um total de 379 empresas com «perturbações graves» que abrangem quase 64 mil trabalhadores”94. O sector têxtil é dos mais afetados com ordenados em atraso e encerramento de empresas. Em 1984, o Sindicato do Porto fizera uma concentração no Terreiro do Paço, para expor o descalabro económico e social do sector, onde se encontravam 30000 trabalhadores sem salários95. A Federação denuncia que, em 1983, o número de despedimentos se cifrou em 11000. Os sindicatos trazem para a rua, para a opinião pública, os problemas que afetam a economia e o desemprego que atinge os trabalhadores. A criação do jornal Venceremos, Jornal dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário de Portugal, que começou a imprimir-se em 1975, correspondeu a esse princípio de informação, divulgação e esclarecimento sobre as lutas dos trabalhadores. Em 1991, quando a Gefa já se encontrava numa situação muito difícil, o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul leva uma exposição sobre o assunto ao Ministro do Emprego e Segurança Social, pedindo também uma audiência96. Estavam em causa, conforme o Sindicato, mais de 1 milhar de postos de trabalho. Traça um quadro da empresa, entre 1987 e 1989: 1038 trabalhadores, dos quais AVANTE, edição de 15 de julho de 1993, p. 32. AVANTE, edição de 7 de junho de 1984, p. 7. 96 NADMTSSS, Cx. 7602. Ofício do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e vestuário do Sul, de 15 de abril de 1991, dirigido ao Ministro do Emprego e Segurança Social. No NADMTSSS encontra-se ainda informação sobre a Gefa, depositada nas caixas 7743 e 8078. A informação consta no Processo N.º 91/915 (Dívida à Segurança Social). 94 95


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58,8% são contratados a prazo e aumento de 55,6% de postos de trabalho. Em julho de 1990, a empresa empregava 1400 trabalhadores e, passados 8 meses, já só dava trabalho a 868 trabalhadores, e os despedimentos prosseguiam. Denunciava ainda o benefício dos fundos do FEDER (620 milhões de escudos), entre 1988 e 1990, para a criação de postos de trabalho. Descreve também a informação que a gerência prestou aos trabalhadores sobre a perspetiva de despedimento de todos "... através da provável opção por um processo de nomeação de uma comissão liquidatária em vez do processo de falência”. Alertava para "... o facto de a empresa estar a transferir as máquinas mais modernas, recentemente adquiridas, para outra empresa da família, detentora do capital social da GEFA", e exigia garantias de que não seriam transferidas mais máquinas da empresa. O documento é extenso, mas coloca o Sindicato a ênfase na estranheza para o facto de que em 5 meses se tenham despedido 532 trabalhadores, apesar do aumento do património e instalações e do benefício de apoios estatais a fundo perdido, e que a gerência replique com alusões a "roubos". Sublinha o Sindicato que tal réplica tem como objetivo iludir as verdadeiras responsabilidades da administração "... atirando-as para cima dos trabalhadores, que para além de vítimas seriam os causadores do encerramento da empresa?". Em 1989, desenvolvem-se na Convex lutas laborais em resposta à ação da administração que, segundo a Comissão de Trabalhadores, havia criado instabilidade e medo nos trabalhadores, colocando a viabilidade da empresa em causa. Os conflitos entre administração e trabalhadores já duravam há dois anos, tendo sido despedida ilegalmente uma trabalhadora, membro da Comissão de Trabalhadores e do Sindicato. Na altura, a Comissão de Trabalhadores defendeu que o despedimento em causa fora baseado em motivos ideológicos e políticos97. O despedimento da dirigente sindical

Cartão de dirigente sindical de Cristina Campante. Imagem: Cristina Campante.

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NOTÍCIAS DA MOITA, Ano VI, n.º 112, 15 novembro de 1989, p. 12.

Cristina Campante discursando na União dos Sindicatos de Setúbal /CGTP-IN. Imagem: Cristina Campante.


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ocorreu após a publicação de nova legislação laboral "… que retirou aos representantes dos trabalhadores a protecção que a anterior lei lhes concedia"98, em que o despedimento só podia suceder por meio de acção judicial. Já em 1988, O Diário 99 noticiara o clima de repressão que se instalara na Convex, com ameaças de despedimentos e de processos disciplinares pela administração. O antagonismo com a dirigente sindical, Cristina Campante, tivera origem na luta desenvolvida pela reposição dos salários em atraso. Na altura, a dirigente denunciara também a situação das pessoas com contratos de trabalho a prazo, mas que levavam já dez anos de laboração na empresa. O caso da dirigente sindical, Cristina Campante, seguiu para Tribunal, com sentença favorável à trabalhadora. Em 1992, a Convex entra em falência, ficando por pagar aos trabalhadores 50% dos salários de maio, a totalidade dos salários de junho e julho e o subsídio de férias. O Sindicato escreve ao Ministro do Emprego e Segurança Social solicitando uma audiência e pede a sua intervenção para defesa dos mais de 250 postos de trabalho100. Anexa as atas das reuniões realizadas no Ministério do Emprego e da Segurança Social em 4 de junho, 2 e 21 de julho, e dos plenários de trabalhadores de 22 de maio, 1 de junho, 8 de junho, 3 de julho e 22 de julho de 1992. Por todos os meios o Sindicato tenta garantir os direitos dos trabalhadores. Numa das atas dos plenários de trabalhadores, a de 8 de junho, estes rejeitam a responsabilidade pelo agravamento da situação da empresa, apontando contradições às posições da administração. Está em causa também a exigência de produção de 450 fatos dia e a concretização de condições para satisfação de uma encomenda. Em reunião anterior (1 de junho) os trabalhadores já haviam decidido “Prosseguir a sua actividade de acordo com as suas funções e responsabilidades, manifestando o seu empenhamento para que se atinja e supere a meta de produção de 450 FATOS/DIA…”. A administração pretende também pagar ordenados fora dos prazos legais, reduzir trabalhadores “… particularmente afectos a funções não directamente produtivas, embora não esteja ainda feito o seu levantamento”, redução de despesas com “Corte da parte suportada pela empresa com a CANTINA, relativo ao fornecimento de refeições aos trabalhadores”. Em 1 de junho de 1992, a empresa corta o fornecimento de refeições na cantina. Em 31 de julho de 1992, os trabalhadores, reunidos em plenário, decidem mandatar a direção do Sindicato dos Trabalhadores Texteis, Lanificios e Vestuário do Sul, a Comissão de Trabalhadores e Comissão Sindical para prosseguirem diligências junto das entidades oficiais com vista a salvaguardar os seus direitos e interesses e a estarem presentes na reunião de credores no Tribunal de Círculo do Barreiro, em 11 de agosto de 1992101.

O DIÁRIO, 11 de outubro de 1989, p. 10. O DIÁRIO, 19 de outubro de 1988, p. 8. 100 NADMTSSS, GabMin 7595. Ofício do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul, de 27 de julho de 1992, dirigido ao Ministro do Emprego e Segurança Social. 101 NADMTSSS, GabMin 7595. Proc. 91/7201 CONVEX – Sociedade de Vestuário, Sarl. Solicita regularização de dívida. 98 99


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Quando a Guston – Confeções, Lda. entra em gestão controlada, em 1994, o Sindicato acompanha também todo o processo. Em 16 de novembro de 1998, na sequência do término da gestão controlada da Guston, período durante o qual a empresa aumentou consideravelmente o volume de negócios, tendo também recuperado da situação de salários em atraso, bem como conseguido assegurar o "… nível de emprego quase em 20% acima dos 150 postos de trabalho inscritos no Plano de recuperação aprovado"102, isto é, quando o contexto de evolução da empresa se afigura favorável, o Sindicato escreve ao Ministro do Trabalho e da Solidariedade, preocupado com o possível encerramento da Guston, "... caso não seja afastado definitivamente o peso e consequências da pesada «herança» da Gefa Confecções, Lda"103. Em 26 de novembro de 1998, o Sindicato escreve ao Secretário de Estado da Segurança Social e Relações Laborais, manifestando a sua preocupação pela manutenção dos empregos na Guston104. No final dos anos 90 do século XX, na sequência do agravamento da situação laboral na Norporte, ex-HellyHansen, os trabalhadores enfrentam o encerramento da empresa, mas não sem luta. Percebem o definhar da Norporte, quando falham pagamentos e alguns trabalhadores são mandados para casa com "... salário completo, o subsídio de almoço e o prémio"105. Por seu lado, para que as trabalhadoras não corressem o risco de poderem vir a ficar sem os postos de trabalho, a Comissão de Trabalhadores aconselha-as a cumprir o horário de trabalho na empresa106. Entretanto, o trabalho começa a escassear e algumas costureiras ficam "... sem trabalhar durante cinco ou seis meses, devido à diminuição de encomendas e à falta de pessoal noutras Reportagem sobre a falência da Norporte (Alhos Vedros), publicada no Avante!, de 30 de dezembro de 1999. Imagem: Arquivo do PCP.

Adesão à Greve Geral de fevereiro de 1982, destacando-se a indústria do vestuário (Gefa, Convex, Charepe, Lander, Cooperativa 8 de Março, Gracinda Flores, Norporte, Bore e Avisco). Informação publicada no AVANTE!, de 15 de fevereiro de 1982. Imagem: Arquivo do PCP.

NADMTSSS, GabMin 8630. Proc. N.º 94/3334, Guston Confecções Ldª, Acção Especial recuperação da Empresa, ofício do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul, de 16 de novembro de 1998, dirigido ao Ministro do Trabalho e da Solidariedade. 103 Ibidem. 104 NADMTSSS, GabMin 8630. Proc. N.º 94/3334, Guston Confecções Ldª, Acção Especial recuperação da Empresa, ofício do Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul, de 26 de novembro de 1998, dirigido ao Secretário de Estado da Segurança Social e Relações Laborais. 105 AVANTE, n.º 1361, 30 de dezembro de 1999, p. 13. 106 Ibidem. 102


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Trabalhadores da Norporte em manifestação contra o pacote laboral. Imagem: Guilhermina Varela.

secções. Durante esse tempo, não nos deixavam ler uma revista, nem sequer olhar para trás. O objetivo era pressionar-nos e levar-nos a demitir-nos"107, assim referiu Carolina Medeiros ao jornal Avante, em dezembro de 1999. Em 6 de julho de 1999, o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis Lanifícios e Vestuário do Sul comunica ao Ministério do Trabalho e da Solidariedade que os trabalhadores da Norporte vão exercer o direito à greve, no dia 12 de julho, e por tempo indeterminado, enquanto não forem pagos integralmente os salários do mês de junho. Apesar das pressões, os trabalhadores resistem e defendem a viabilização da empresa, reivindicando o apoio do Estado e manifestando-se contra o seu encerramento: "Durante dois meses mantiveram-se junto ao portão da fábrica, empunhando bandeiras negras. A estrada junto à fábrica foi cortada mais do que uma vez"108. Em setembro de 2001, é decretada a falência da Norporte e, em outubro seguinte, o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul remete ofício ao Secretário de Estado do Trabalho e Formação, expondo a grave situação em que se encontram os trabalhadores despedidos e com salários em atraso, e solicitando o desenvolvimento de medidas sociais para atenuar a situação negativa109. As medidas, excecionais, foram as seguintes:

Ibidem. Ibidem. 109 NADMTSSS, Cx. 4095, proc.º 99/2131 Norporte. Viabilização de empresa têxtil. 107 108


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“1 – Alargamento do Subsídio de Desemprego que poderia passar, pela concessão de novo subsídio de desemprego a partir da data da falência. 2 – Concessão do fundo de garantia salarial, já que os trabalhadores encontravam-se com salários em atraso. 3 – Concessão de um subsídio de creche, para as mães com maiores dificuldades e que têm filhos nas creches no Concelho da Moita. 4 – Organização de cursos de formação profissional na região para qualificação dos trabalhadores para novo ingresso no mercado de trabalho.” O sindicato é indissociável dos trabalhadores. Como referiu Cristina Campante, trabalhadora da Convex e dirigente sindical, o sindicato “Somos todos nós”: “A maioria das pessoas era sindicalizada e percebiam a importância dos sindicatos, porque depois os trabalhadores sentiam os resultados das lutas e dos processos negociais. O contrato coletivo de trabalho, por exemplo, tinha a intervenção do próprio sindicato. Com a nossa persistência e trazendo, naturalmente, também os trabalhadores para a luta, porque nós fazíamos questão de dizer que o sindicato «Somos todos nós», conseguia-se concretizar determinadas reivindicações. Há sempre uma direção, como é óbvio, mas quem dirigia tinha sempre que contar com o apoio dos trabalhadores. Se tínhamos que tomar uma medida, fazíamos um plenário: «Nós temos estas propostas, o que acham?». O funcionamento foi sempre muito democrático, ao longo do tempo.”10 O funcionamento democrático das assembleias ou plenários de trabalhadores é uma característica muito valorizada pelos intervenientes. As decisões eram discutidas à frente de todos, coletivas, legitimadas em grupo, e em algumas ocasiões o voto era de braço no ar. Podia-se ter voz, votava-se e isso fazia toda a diferença. Judite Faquinha, trabalhadora na Gefa e dirigente sindical, conta-nos como organizava os plenários. “Marcava o plenário, mas primeiro perguntava na empresa se a paragem não ia afetar a saída das encomendas. Geralmente, era à sexta-feira. Fazíamos o plenário. Está lá um resto do palácio, subíamos as escadas, ficávamos lá em cima, com os trabalhadores todos à volta. Nós apresentávamos a proposta e depois perguntávamos se estavam de acordo. Se era para o subsídio de alimentação, avançávamos com um valor e depois votava-se de braço no ar. Geralmente, estavam sempre de acordo. Tínhamos o hábito de primeiro escrever o acordo, tirar cópias e fazê-lo circular pela empresa. Quando as trabalhadoras iam ao plenário já sabiam o que íamos propor.”111 110 111

Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 17 de junho de 2016). Judite Faquinha (testemunho oral, gravado em 11 de outubro de 2016).


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Cartão de dirigente sindical de Lucinda Carrusca. Imagem: Lucinda Carrusca.

Ficha sindical de Lucinda Carrusca e Guilhermina Varela. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

A normalização da economia, já passados alguns anos do 25 de Abril, ressuscitou a aversão ao sindicalismo livre por parte de algum patronato, sobrevindo de novo um clima de repressão sobre os trabalhadores, os membros das comissões de trabalhadores e os dirigentes sindicais. Para se pouparem a represálias, como nos contou Cristina Campante, havia trabalhadores que eram sindicalizados, mas que preferiam que as quotas do sindicato não figurassem no recibo de ordenado. Pagavam-nas à parte. Cristina Campante, dirigente sindical andava de fábrica em fábrica, com o livro das quotas, para receber as quotizações112. A associação a um partido político também era ocasião para que se manifestassem retaliações. Como nos relatou Carolina Medeiros, trabalhadora da Norporte e dirigente sindical: “Nas reivindicações, eles discutiam muito comigo e apelidaram-me logo de comunista, ainda eu nunca tinha entrado numa sede do PCP. Eles diziam que eu era a delegada comunista. E como era a delegada comunista, era a mais massacrada, mais perseguida.”113 Durante a atividade da indústria de confeções de vestuário no concelho ocorreram diversas lutas laborais, as mais acesas foram as que se desencadearam pela reivindicação dos salários, as que ocorreram no âmbito da legislação laboral, contra o encerramento das empresas e despedimentos. Algumas das lutas mais marcantes aconteceram, no entanto, na defesa de dirigentes sindicais, caso de Cristina Campante, trabalhadora da Convex, membro da comissão de trabalhadores da empresa e dirigente sindical. Em outubro de 1988, o jornal A Voz da Vila, da Baixa da Banheira, noticiava “A Administração da Convex persegue dirigentes sindicais e reprime trabalhadores”114. Referia-se ao processo disciplinar movido a Cristina Campante por, alegadamente, circular pelas várias seções da fábrica e diminuir a produção. Mas relata também o jornal: Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 17 de junho de 2016). Carolina Medeiros (testemunho oral, gravado em 20 de junho de 2016). 114 A VOZ DA VILA, edição de outubro de 1988, n.º 27, p. 6. 112 113


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“Contudo, analisemos porque motivo a dirigente sindical não cumpre ordens e circula pelas secções: Em 16 de Dezembro de 1987 e na fase final de um período de luta, longo mas vitorioso, contra os salários em atraso nesta empresa, Cristina Campante, chefe-de-linha, recebe a comunicação de que a secção que chefia vai fundir-se com outra e que é transferida para a secção de Coletes. A linha de coletes já não existe na Convex, as máquinas velhas não funcionam e aquela está desactivada. Esta trabalhadora é perseguida e pressionada, e a partir dessa data deixa de ter que fazer.”115 A defesa dos interesses dos trabalhadores era percecionada como uma afronta à empresa, acarretando represálias diretas. Cristina Campante acabou por ser despedida. Em 15 de novembro de 1989, o jornal Notícias da Moita informava, através de um comunicado da Comissão de Trabalhadores da Convex, o despedimento da trabalhadora: “Despedimento ilegal na CONVEX Comunicado da Comissão de Trabalhadores Representante dos trabalhadores da «Convex» despedida ilegalmente por defender os mais elementares direitos respeitante a esta classe. Na sequência da onda de repressão que vem a ser praticada por esta administração a mais de 2 anos, tem a C.T. da Convex e os trabalhadores vindo a travar várias formas de luta dentro e fora da empresa no sentido de denunciar atitudes retrógradas, mentes doentias, que mais não visam que o criar da instabilidade, o medo, no seio dos trabalhadores pondo assim em causa a viabilização da empresa, de modo a que cada vez mais seja difícil a Convex competir com outras empresas na perspectiva da integração da europa que se aproxima a passos largos. Esta medida arbitrária praticada por esta administração (Sr. Bobone) tem o objectivo de acabar na Convex com as organizações representativas dos trabalhadores tentando assim impor a lei (do quero) (posso) (e mando), maneira cómoda de esconder toda a incompetência e falta de organização revelada nestes mais de 2 anos. Na sequência de toda esta repressão a C.T. considera que o despedimento em causa é baseado única e exclusivamente por motivos ideológicos, e políticos, por essa razão consideram-no à face da constituição e da lei completamente ilegal. No contexto desta situação tem chegado até nós vários manifestos de solidariedade para com a nossa luta, e ao mesmo tempo de repúdio a esta administração, nomeadamente uma moção de toda a solidariedade da Junta de Freguesia da Moita, que visa também realçar uma posição moral e cívica da trabalhadora despedida, que é também membro do executivo da Junta de Freguesia da Moita.


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Por tudo isto a C.T. está confiante que os tribunais reponham justiça e que com o decorrer dos tempos, as entidades patronais venham a reconhecer que numa Europa que se pretende social, as relações de trabalho no nosso país não são compatíveis com gestos conflituosos e de moral duvidosa, mas sim com gestores competentes, honestos, e humanistas nas relações laborais com os trabalhadores, para um desenvolvimento harmonioso e rentável das empresas, em benefício de toda a comunidade. Comissão de Trabalhadores da CONVEX.”116 O caso foi para tribunal e a trabalhadora venceu, com direito a reintegração.

116

NOTÍCIAS DA MOITA, edição de 15 de novembro de 1989, n.º 112, p. 12.


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JORNAIS LOCAIS 6.4 OS E AS LUTAS LABORAIS

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seguir ao 25 de Abril, os jornais nacionais, anteriormente limitados pela censura do Estado Novo, passaram a acolher nas suas páginas as lutas laborais dos trabalhadores. O mesmo sucedeu com os jornais de âmbito local. A instituição da democracia permitiu a liberdade editorial, convidando a criação de projetos jornalísticos locais, muito determinados e envolvidos nas dinâmicas de desenvolvimento local. Com muita colaboração amadora, popular, de gente trabalhadora, os jornais locais refletem também muitos dos problemas dos trabalhadores, os conflitos laborais nas empresas, as greves, os despedimentos, entre outros. Assim aconteceu com o jornal Voz da Vila, da Baixa da Banheira, que noticiou as perseguições na Convex a dirigentes sindicais e a repressão aos trabalhadores117, ou a luta das trabalhadoras da Gefa pela manutenção dos seus postos de trabalho118. O Notícias da Moita também abriu as suas páginas aos comunicados da comissão de trabalhadores da Convex e informou sobre o encerramento da Gefa e da Convex. O jornal O Rio, Jornal do Concelho da Moita, criado no final de 1997, acompanhou quase na íntegra todo o processo de luta das trabalhadoras da Norporte, edição a edição, e em primeira página. Alguns títulos:

Exemplares do jornal local O RIO, destacando a luta das trabalhadoras da Norporte, pela manutenção da empresa. Imagem: J. Brito Apolónia. A instituição da democracia permitiu a liberdade editorial. Os jornais locais, envolvidos também nas dinâmicas de desenvolvimento local, refletem as lutas dos trabalhadores nas empresas.

117 118

A VOZ DA VILA, ibidem. A VOZ DA VILA, edição de junho de 1991, n.º 62, p. 9.


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“– Trabalhadores da Norporte em luta pelos postos de trabalho119; – Norporte com salários de Junho em atraso120; – Norporte, Postos de trabalho suspensos a partir de 2 de Agosto121; – Norporte encerrada e trabalhadores no “desemprego”, “A luta não terminou” – garantem os trabalhadores122; – Trabalhadores da Norporte continuam a luta, Administração recusou pagar os salários em atraso aos trabalhadores e convocou para regressar ao trabalho123; – Norporte sem respostas para a viabilidade, Plenário de trabalhadores124; – Equipamentos da Norporte levados por ordem judicial, Polícia de choque “limpou caminho” para a saída dos camiões carregados de material125; – Dia da Mulher, Trabalhadoras da Norporte protestam em Lisboa126; – Norporte, Sindicato dos têxteis: “O tempo a passar e as promessas por cumprir”127; – Norporte, Nova penhora piora situação, Trabalhadoras em luta128; – Solução adiada para a Norporte, Credores votaram a favor da viabilização da empresa129; – Declarada a falência da Norporte, 480 postos de trabalho destruídos.”130

Outros jornais, como o Jornal da Moita, publicaram também notícias sobre o encerramento da Norporte, mas o jornal O Rio, com a ampla cobertura que dedicou ao processo Norporte deu a conhecer, profusamente, a luta dos trabalhadores, das suas famílias, do sindicato, da CGTP, das autarquias locais, da comunidade, pela viabilidade de uma empresa cuja falência acabou por lançar quase 500 pessoas para o desemprego. O jornal O Rio, noticiou, assim, a receção dos trabalhadores à declaração de falência da Norporte, em 2001: “Apanhados de surpresa, os trabalhadores reagiram revoltados, com choro e lágrimas, à porta do Tribunal. De facto, a anterior Assembleia de Credores, tinha sido adiada por dois meses, para que a Administração refizesse a proposta de viabilização da empresa, e agora o Tribunal não atendeu o acordado anteriormente, encerrando o processo.”131

O jornal O Rio ainda noticiou o encerramento da Guston132, fábrica com 120 trabalhadores, e da Fristads, que lançou 60 trabalhadores para o desemprego133. O RIO, edição de 15 de maio de 1999, p. 5. O RIO, edição de 15 de julho de 1999, p. 1. 121 O RIO, edição de 1 de agosto de 1999, p. 1. 122 O RIO, edição de 15 de agosto de 1999, p. 1. 123 O RIO, edição de 1 de setembro de 1999, p. 1. 124 O RIO, edição de 1 de janeiro de 2000, p. 1. 125 O RIO, edição de 1 de fevereiro de 2000, p. 1 126 O RIO, edição de 15 de março de 2000, p. 1 127 O RIO, edição de 1 de junho de 2000, p. 1. 128 O RIO, edição de 1 de julho de 2000, p. 1. 129 O RIO, edição de 1 de abril de 2001, p. 1. 130 O RIO, edição de 1 de outubro de 2001, p. 1. 131 O RIO, edição de 1 de outubro de 2001, p. 4. 132 O RIO, edição de 15 de outubro de 2001, p. 1 133 O RIO, edição de 1 de maio de 2002, p. 1. 119 120


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AUTARQUIAS LOCAIS 6.5 AS NA DEFESA DOS TRABALHADORES

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DAS FÁBRICAS DE CONFEÇÕES DE VESTUÁRIO

om o 25 de Abril surge uma nova realidade municipal, operando-se muitas transformações que se refletiram diretamente na qualidade de vida das populações. A vontade de progresso é grande e o Município desenvolve-se, sempre com o contributo da participação popular, na sua maior parte constituída por operários e operárias. Durante o Estado Novo, não só as autarquias possuíam uma autonomia política e financeira muito reduzida, como a confiança política exigida para o exercício dos cargos políticos não permitia grandes apoios às lutas dos trabalhadores, que eram sempre conotadas como ataques ao regime. A instituição do Poder Local Democrático e a consagração da autonomia da administração autárquica irão mudar radicalmente esta realidade, passando as autarquias a interessarem-se e a envolverem-se na resolução nos conflitos laborais que afetam a continuidade das empresas locais, o pagamento de salários aos trabalhadores e a manutenção dos postos de trabalho. As autarquias possuem uma grande ligação ao meio operário local e solidarizam-se com as lutas dos trabalhadores e contra os despedimentos.

Manifestação dos trabalhadores da Gefa, pela viabilização da empresa. Imagem: Câmara Municipal da Moita, Gabinete de Informação e Relações Públicas.


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Em 1991, quando a Gefa se encontra à beira da falência, com mais de meio milhar de trabalhadores nos quadros, a Câmara Municipal da Moita escreve ao Primeiro-Ministro, denunciando a situação e solicitando as necessárias providências para que a empresa retome a laboração: "Excelência A Administração sueca da Empresa GEFA, instalada na Vila de Alhos Vedros, ter-se-á ausentado para o estrangeiro deixando cerca de mil trabalhadores no desemprego. A inesperada situação, ao que tudo indica, de falência devido ao elevado endividamento à Banca não terá sido ocasionada por ausência de modernização nem de incentivos à produção porque a Empresa veio a beneficiar do SIRB em dezenas de milhares de contos. A tal situação a não ter uma pronta e rápida intervenção, agravará não só as condições gerais da população do Concelho e da Vila de Alhos Vedros que ainda não se refez da crise que assolou o Distrito, como terá igualmente efeitos negativos na débil estrutura económica do Município. Assim, ousamos solicitar a urgente intervenção de Vossa Excelência por forma a que a Empresa assuma as suas responsabilidades, retome a laboração, em defesa dos legítimos direitos dos trabalhadores e dos seus postos de trabalho."134 Em 1996, a Helly-Hansen passa a denominar-se Norporte. Sobrevêm despedimentos e rescisões e a empresa recorre ao Lay-off. A Assembleia Municipal aprova uma moção, em 30 de abril de 1996, protestando a situação e pede a intervenção das entidades competentes, designadamente do Ministro da Economia. A Moção sumaria o processo laboral após as mudanças com a reestruturação da empresa: Ofício da Câmara Municipal da Moita, de março de 1991, dirigida ao Senhor Primeiro-Ministro, solicitando intervenção do mesmo para que a empresa “… retome a laboração, em defesa dos legítimos direitos dos trabalhadores e seus postos de trabalho”. Imagem: Arquivo Municipal da Moita.

134

Boletim informativo da Junta de Freguesia de Alhos Vedros, de abril de 1991, destacando a luta das trabalhadoras da Gefa pela manutenção dos postos de trabalho. Imagem: Teresa Araújo.

AMM, ofício da Câmara Municipal da Moita dirigido ao Primeiro-Ministro, 1 de março de 1991.


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"MOÇÃO A partir de Agosto do ano transacto, os trabalhadores da fábrica HELLY HANSEN, agora denominada NORPORTE Confecções, têm vindo a sofrer as consequências das alterações operacionais decorrentes da reestruturação da empresa. A nova política de gestão da empresa começou a exigir a flexibilidade e a polivalência, como medidas para baixar os custos de produção, contra os interesses dos trabalhadores. Em Novembro começaram os despedimentos dos trabalhadores contratados, que continuam até hoje, tendo sido também despedidos os trabalhadores efectivos, alegadamente por comum acordo, mas, na realidade sob a ameaça de despedimento colectivo, caso não aceitassem o acordo proposto pela empresa. Já em Janeiro deste ano, os trabalhadores foram informados das alterações do nome HELLY HANSEN para NORPORTE, acompanhada, da venda de acções da empresa. No mês seguinte, a empresa dá início ao processo de "Lay Off" a 135 trabalhadores, em consequência da recusa do colectivo dos trabalhadores terem decidido, em plenário, não aceitar a proposta de ajustamento da capacidade produtiva que, na prática, significava a imposição da flexibilidade de trabalho. O processo veio a ser anulado mais tarde, mas recentemente surgiram nos despedimentos de mais 16 efectivos. Perante estes acontecimentos, a comissão sindical chegou à conclusão que estas alterações fazem parte de um processo de deslocação da empresa para outros países, prevendo-se a continuação dos despedimentos e das tentativas de flexibilidade e polivalência, contra os interesses dos trabalhadores. A Assembleia Municipal da Moita, reunida a 30 de Abril de 1996, manifesta o seu protesto relativamente a esta situação e solicita a intervenção das entidades competentes, nomeadamente do Sr. Ministro da Economia no sentido de denunciar junto da Comunidade Europeia o provável uso fraudulento por parte desta empresa, de fundos comunitários, por forma a impedir o encerramento de mais uma empresa da área das confecções no nosso Concelho, deixando centenas de trabalhadores no desemprego e agravando ainda mais as condições de vida das populações."135

Assim acontece também quando a Norporte, em 1999, então a maior empresa a laborar no concelho, com 450 trabalhadores, começa a faltar ao pagamento de salários, antevendo-se o avolumar de outras dificuldades que possam interferir com a continuidade da laboração. Depois de reunir com a administração da empresa, para tentar perceber a sua solidez, face à existência de salários em atraso, a Câmara

135

NADMTSSS, GabMin, Cx. 3503, proc.º 884, sub-proceso n.º 96/1331, Assembleia Municipal da Moita, Empresa Norporte.


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Ofício da Câmara Municipal da Moita, de julho de 1999, dirigida ao Senhor Primeiro-Ministro, para que o mesmo intervenha com vista à “… viabilidade da empresa, a manutenção dos postos de trabalho e o pagamento imediato dos salários”. Imagem: Arquivo Municipal da Moita.

Manifestação dos trabalhadores da Norporte, na Moita, pela manutenção dos postos de trabalho. Imagem: Câmara Municipal da Moita, Gabinete de Informação e Relações Públicas.

Municipal da Moita sumaria os desenvolvimentos na Norporte e pede a intervenção do Primeiro-Ministro, para que se garanta a viabilidade da empresa, a manutenção dos postos de trabalho e o pagamento dos salários. O ofício, de 12 de julho de 1999, dirigido ao Primeiro Ministro: "Excelência: A têxtil Norporte, que é a maior empresa do Concelho da Moita debate-se, desde há algum tempo, com problemas diversos, que estão a pôr em risco a sua subsistência e a criar uma dramática insegurança aos seus cerca de 450 trabalhadores. Em encontros recentes que tive com a administração da empresa, os seus responsáveis transmitiram uma perspectiva de consolidação e relançamento, assente em factores como a alta tecnologia de que a fábrica dispõe, a excelente capacidade produtiva, a qualidade dos seus produtos, a proximidade dos mercados e a aposta na sua diversificação, bem como de financiamentos que consideravam assegurados. Numa das últimas reuniões garantiram mesmo ter confirmada uma carteira de encomendas de dimensão vultuosa. Perante este quadro, difícil se torna perceber a situação de atraso no pagamento de salários, que actualmente se verifica. Esta situação que atinge centenas de trabalhadores, na sua maioria mulheres, muitas delas com famílias monoparentais, vem agravar a já precária situação social e económica da população do concelho e da região. Como presidente da Câmara Municipal não devo nem quero


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alhear-me de um problema com a gravidade que este tem. Por isso, apelo a V. Exa. para que dê a sua melhor atenção e interceda junto das entidades competentes a fim de que sejam tomadas urgentes medidas que assegurem a viabilidade da empresa, a manutenção dos postos de trabalho e o pagamento imediato dos salários. Fico, assim, na expectativa, mas certo de que será encontrada uma boa solução para a Norporte e para os seus trabalhadores."136 Numa fase posterior, já em 2001, passado ano e meio de inatividade da Norporte, face a notícias sobre o perdão parcial da dívida à Segurança Social e a negociações com o Banco Português de Negócios, maior credor da empresa, a Câmara da Moita pede uma audiência ao Secretário de Estado do Trabalho e Solidariedade, para reafirmar ser "... essencial para o Concelho e para as trabalhadoras da NORPORTE e suas famílias a viabilização da empresa"137. A Assembleia de Freguesia de Alhos Vedros também não se alheia da luta dos trabalhadores da Norporte, aprovando por unanimidade uma "Moção de Apoio aos Trabalhadores da Norporte", em 27 de abril de 1999. O ofício, de 8 de junho de 1999, segue para o Primeiro-Ministro: "MOÇÃO DE APOIO "O que se pensaria hoje não ser prática corrente infelizmente está a acontecer novamente com a revisão das leis laborais e consequentemente o agravamento dos direitos dos trabalhadores consubstanciados já na precariedade do emprego e restrição a alguns direitos em termos organizacionais; os piores receios dos trabalhadores em geral estão a complicar-se e em particular os dos trabalhadores da NORPORTE. Numa empresa quase paralisada totalmente segundo é dito para a opinião pública por falta de encomendas, a ausência de investimentos e falta de organização, trazem como consequência o não cumprimento das obrigações sociais para com os trabalhadores (incluindo-se o não pagamento atempado do salário de Março a alguns trabalhadores, reflectem uma conduta por parte da administração que a todos nós nos faz duvidar das suas reais intenções em relação ao que pretendem da NORPORTE. Porque os eleitos da Assembleia de Freguesia de Alhos Vedros, estão e estarão ao lado dos trabalhadores da NORPORTE, em particular, e todos os trabalhadores em geral e porque pensamos que os trabalhadores precisam de estar unidos e sentir o apoio dos seus representantes na empresa e nas Autarquias, que lhes manifestamos o nosso total apoio na sua luta e estamos contra as acções projectadas pela administração da empresa. AMM, ofício da Câmara Municipal da Moita, dirigido ao Primeiro-Ministro, 19 de julho de 1999. AMM, ofício da Câmara Municipal da Moita, dirigido ao Secretário de Estado do Trabalho e Solidariedade, 2 de abril de 2001.

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Porque acreditamos na viabilidade da NORPORTE e nos seus trabalhadores, reforçamos uma vez mais, que podem contar connosco e com a nossa solidariedade. Por um trabalho com direitos. Viva os trabalhadores da NORPORTE."138 Em 29 de setembro de 1999, a Assembleia de Freguesia de Alhos Vedros volta a enviar uma moção de apoio sobre os trabalhadores da Norporte, aprovada por unanimidade, desta vez dirigida aos órgãos de poder, onde denuncia: os salário em atraso; o facto de alguns trabalhadores já estarem a viver da solidariedade de outros; a perplexidade pelas alegadas dificuldades financeiras, “… apesar da alta tecnologia instalada, a sua capacidade produtiva, uma excelente carteira de encomendas e avultados financiamentos Comunitários”; a transferência por parte da administração de uma encomenda para o Norte do País139. Exige o pagamento dos salários aos trabalhadores, a viabilização da empresa e a manutenção dos postos de trabalho, a autorização de uma “… linha de crédito para aquisição de matéria prima e o regresso dos trabalhadores para os seus postos de trabalho”140. O Inspector Geral do Trabalho estima que o encerramento da Norporte leve à perda direta de emprego por parte de 488 trabalhadores, além de outro número não quantificado, trabalhando em empresas subcontratadas141. Em 20 de setembro de 2001, seria declarada a falência da Norporte. Sumariámos algumas diligências desenvolvidas pelas autarquias locais com vista à viabilidade das empresas e à manutenção dos empregos, entre as quais a aprovação de moções e pedidos de realização de reuniões com as administrações e com representantes do Governo. Mas no caso da Norporte, estiveram na linha da frente, na fábrica e lado a lado com os trabalhadores, confrontando o Corpo de Intervenção da GNR, quando por ordem judicial foram retiradas diversas máquinas da empresa: “Trabalhadores da Norporte e população de Alhos Vedros foram surpreendidos, no dia 21 de Janeiro, com a tentativa de retirar da empresa diversos equipamentos, incluindo máquinas, materiais produzidos na empresa, material de escritório, etc., transportados num enorme camião TIR. Rapidamente, a notícia soou e dezenas de trabalhadores e outros populares juntaram-se frente ao portão da fábrica dispostos a impedir a saída de bens da empresa. O presidente da Câmara Municipal e vários vereadores também ocorreram ao local. (…) João de Almeida, presidente da Câmara Municipal da Moita, NADMTSSS, Cx. 4095, proc.º 1094-99-1481. NADMTSSS, Cx. 4095, proc.º 1094-99-1481. A moção foi enviada para: Presidente da República; Presidente da Assembleia da República; Ministério da Economia; Grupos Parlamentares; Assembleia Municipal da Moita; Câmara Municipal da Moita; Executivo da Junta de Freguesia de Alhos Vedros; Provedor Geral da República; Comissão de Trabalhadores da Norporte; Administração da Norporte; Orgãos de Comunicação Social Locais. 140 NADMTSSS, Cx. 4095, proc.º 1094-99-1481. 141 NADMTSSS, ibidem, ofício do Inspector Geral do Trabalho, de 15 julho de 1999, ao Chefe de Gabinete do Secretário de Estado da Segurança Social e da Relações Laborais. 138

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Intervenção do Corpo de Intervenção da GNR, na Norporte, em 2000, para assegurar a retirada de equipamentos da empresa. Imagem: Câmara Municipal da Moita, Gabinete de Informação e Relações Públicas.

também se envolveu nos acontecimentos, procurando interceder junto do Tribunal da Moita, das autoridades policiais e do Governador Civil, a fim de evitar a consumação da acção judicial, mas sem êxito. João de Almeida leu aos trabalhadores um ofício, recebido na véspera, proveniente da Presidência da República que mantinha as esperanças de que «as reuniões do Governo com a Administração e o Sindicato pudessem sustentar os mecanismos de viabilização da empresa, em função da análise proposta pelo SIRME».”142 As lutas operárias radicam, como o próprio termo indica, nas lutas dos trabalhadores nas fábricas e empresas, pelo emprego, contra a exploração, por melhores condições de trabalho e de vida, por uma sociedade mais justa, constituindo-se também como movimentos sociais mais abrangentes, que acabam por acolher a adesão das populações com identidade operária muito vincada. É toda a comunidade que luta. 142

O RIO, edição de 1 de fevereiro de 2000, p. 9.



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O ENCERRAMENTO DAS FÁBRICAS FIM DE UM CICLO


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adesão de Portugal à EFTA, em 1960, abriu caminho a um novo período económico que, no caso do concelho da Moita, ficou marcado pela instalação de fábricas de confeções de vestuário em Alhos Vedros. Foram fatores decisivos para a sua radicação a abundância de mão-de-obra barata, instalações disponíveis, a área de implementação e as acessibilidades. A produtividade, baixa, não constituiu impedimento. O negócio das confeções de vestuário floresce e são criados novos postos de trabalho. No início dos anos 80 do século XX, a vantagem que Portugal adquirira nas confeções de vestuário, assente na prática de baixos salários, começa a desvanecer-se. A integração na CEE e a crescente liberalização a nível global dos têxteis farão emergir outros centros produtores, onde os salários são ainda mais baixos, levando ao encerramento de empresas em Portugal e à sua deslocalização para a Europa do Leste e países asiáticos. Dois momentos históricos marcantes para o sector e para o concelho da Moita, cuja decisão e organização correspondeu sobretudo às necessidades de investimento do grande capital estrangeiro e europeu. A sua integração no território, bem como, a sua desintegração, tiveram como fio condutor um sistema que colocou quem trabalha num nível de relevância de segunda ordem, que colocou ao governo regras de subalternização da sua soberania e Constituição, marginalizando e desqualificando o valor dos recursos do território para a periferia do desenvolvimento dos seus interesses, contrariando com os princípios do mercado a cooperação entre os povos e o desenvolvimento da nossa capacidade produtiva.

Brochura publicitária do universo Gefa, com instalações na Suécia, Finlândia, Noruega e Portugal (Alhos Vedros). A sede localizava-se em Tranemo, Suécia, com 100 trabalhadores, enquanto a fábrica de Alhos Vedros empregava 1300 trabalhadores. Imagem: Teresa Araújo.

Trabalhadoras da Guston com o administrador, ao centro. Imagem: Maria Clara Mourato Santos.


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7.1 CRESCIMENTO SEM MODERNIZAÇÃO

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s exportações dos têxteis representavam, em 1973, mais de ¼ das exportações portuguesas, crescimento que “… não foi acompanhado de uma reorganização das estruturas empresariais, de uma adaptação tornada necessária, a prazo, para garantir a competitividade em mercados altamente concorrenciais”1. Foram diversos os investimentos que chegaram a Portugal, em vários sectores da indústria, relevando-se os de investidores suecos na indústria têxtil, que Alfredo de Sousa caracterizou como investimentos beduínos: “… investimentos que exigiam capital fixo relativamente modesto, era mais um capital variável, aproveitamento da mão-de-obra, e, portanto, logo que houve algumas dificuldades no 25 de Abril, esses capitais levantaram a tenda e foram embora, e assim se chamam beduínos, sobretudo no têxtil e na electrónica”2. No início, em 1963, a indústria do vestuário empregava 0,3% dos trabalhadores da indústria transformadora, em 1970 já emprega 3,6%, e em 1975 representa já 4,9% dos trabalhadores3. Contudo, quando a economia muda de rumo, logo a seguir ao 25 de Abril, com a transformação das relações laborais, valorizando-se também o trabalho e o trabalhador, algumas empresas multinacionais estabelecidas em Portugal, que haviam sido atraídas pela legislação laboral vigente e pelos baixos salários, começam a encerrar portas e a deslocar-se para outros países onde os salários dos trabalhadores ainda eram mais baixos. Os trabalhadores e as estruturas sindicais a eles associadas também tinham a noção que a concorrência ou vantagens dos produtos têxtil e vestuário haviam sido alcançadas à custa de muitas privações dos operários e operárias. Referem as conclusões do I Congresso dos Trabalhadores Têxteis Lanifícios Vestuário Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal, em 1976: “No tempo do fascismo, e ainda hoje, só os salários de fome, as péssimas condições de vida e de trabalho permitiram ao patronato concorrer no mercado externo com outros países que possuem um parque de maquinaria e técnicas de gestão e organização empresarial superiores”4. Numa reflexão promovida pelo Ministério da Economia, Portugal em democracia, Portugal deixara de ser considerado um país atrativo para os investidores. Contudo, BIBLIOTECA E ARQUIVO HISTÓRICO DA SECRETARIA GERAL DO MINISTÉRIO DA ECONOMIA (BAHSGME), cota IND/1826. MARTINS, Vitor |et al.| – Elementos para uma análise da situação das indústrias têxteis e do vestuário em Portugal. |s.l.|: Ministério da Indústria e Tecnologia, Direcção-Geral das Indústrias Têxteis e do Vestuário, 1977, p. 102. 2 SOUSA, Alfredo – Os anos 60 da nossa economia. In Análise Social, vol. XXX, n.º 133. Lisboa: Instituto de Ciências da Universidade de Lisboa,1995, p. 616. 3 BAHSGME, cota IND/542. MESQUITELA, Teresa – Análise da Indústria Têxtil e do Vestuário em Portugal. In A Situação da Indústria Têxtil em Portugal e a sua Integração na Comunidade Europeia (artigos do “Boletim Euroexpansão”, n.º 5/83 a n.º 14/83).|s.l.|: Ministério da Economia, Secretaria-Geral, Centro de Documentação, p. 37. 4 CONCLUSÕES DO CONGRESSO dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal. Porto: |s.n.|, 1976, p. 5. 1


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Costureiras durante a hora de almoço, na Guston. O sector empregava uma maioria de mulheres jovens, com baixos salários. Imagem: Maria Clara Mourato Santos.

Costureiras na fábrica Gracinda Flores, em Alhos Vedros. A prática de baixos salários e as deficientes condições de trabalho permitiam posições de vantagem do sector do vestuário no mercado externo. Após o 25 de Abril de 1974, com a melhoria das condições de trabalho e dos salários, alguns investidores consideravam ser pouco atrativo investir no país. Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul.

os problemas na indústria têxtil terão começado muito mais cedo, no princípio da década de 70 do século XX: “A partir de 1971 deu-se a questão dos pagamentos interterritoriais que originou uma grande instabilidade nas exportações para as antigas colónias portuguesas. Por outro lado, os países da Europa começaram a pressionar o nosso país, no sentido de autolimitar as nossas exportações. A concorrência nos mercados externos torna-se, então acesa, já que os produtores de matérias-primas começaram nesta altura em posições concorrenciais”5. Um estudo da Direcção-Geral das Indústrias Têxteis e do Vestuário, do Ministério da Indústria e do Vestuário, de 1977, concluía também que, dada a conjuntura internacional e a estrutura da economia portuguesa, a crise na indústria têxtil seria uma “crise anunciada”: “Em meados de 1974 estavam reunidas as condições fundamentais para se abrir um profundo processo de crise: recessão na procura mundial, aumento de custos, quebra da produtividade, graves dificuldades financeiras, sobretudo em virtude de excessiva dependência do sector em relação ao crédito bancário”6. Enquanto a crise energética de 1973 (fim do petróleo barato) contraiu as economias ocidentais e levou à retração da procura nos principais destinos comerciais do produto têxtil, o 25 de Abril de 1974 colocaria a descoberto as fragilidades do sector: “As transformações sociais e políticas do post – 25 de Abril têm também quota-parte de responsabilidade na crise, antes do mais porque desnudaram as carências estruturais que caracterizavam a grande maioria das nossas empresas: antiguidade do parque de máquinas com o consequente BAHSGME, cota IND/542. MESQUITELA, Teresa – Análise do Emprego e da Produtividade no Sector Têxtil Português. In A Situação da Indústria Têxtil em Portugal e a sua Integração na Comunidade Europeia (artigos do “Boletim Euroexpansão”, n.º 5/83 a n.º 14/83).|s.l.|: Ministério da Economia, Secretaria-Geral, Centro de Documentação, p. 39. 6 MARTINS, Vitor |et al.|, ibidem, p. 104. 5


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atraso tecnológico, ausência de organização comercial sistematizada, produção não racionalizada, escassez de capitais próprios e ausência de uma adequada gestão financeira, formação profissional insuficiente, dimensionamento inviável, etc. Por via da subida salarial e tendo presente as distorções e insuficiências estruturais existentes, a relação produtividade – salários, até então favorável no confronto com a Europa, alterou-se, ocasionando quebra sensível no nosso poder competitivo. A crise mundial e a débil situação financeira de boa parte das empresas fecharam o processo que conduziu a grave situação deste grande sector industrial.”7 A leitura que as estruturas sindicais desenvolveram sobre a crise do sector sublinhava também a antiguidade da maquinaria, a deficiente organização, entre outras situações, e apontavam as seguintes razões, que consideravam responsáveis pela difícil situação económica das empresas: "a) As fábricas davam grandes lucros, mas os patrões em vez de, com esses lucros, comprarem máquinas novas, de modernizarem as instalações, de melhorarem as péssimas condições de trabalho, de estudarem novas formas de organização da empresa, compravam automóveis de luxo, aviões, vivendas, viviam à grande e à francesa, compravam coutadas no Alentejo e mandavam dinheiro para a Suiça. Para aumentarem os lucros e assim poderem sacar mais dinheiro, quando vendiam para o estrangeiro o preço que constava nas facturas era mais baixo do que a realidade (sub-facturação). Ao contrário – quando compravam matérias-primas, estas eram facturadas a preços superiores ao real (sobre-facturação). Por isso, grande parte das empresas estão completamente hipotecadas aos bancos, sem qualquer preocupação de ver se esse capital era bem aplicado ou não e se, se justificava o empréstimo. E assim, as empresas nunca mais podiam pagar, ficando toda a vida a tentar amortizar sem o conseguir, com letras e mais letras para pagar ao fim do mês. b) Os administradores das empresas ganhavam altos vencimentos. Nalguns casos 3 ou 4 levavam mais dinheiro que os operários todos juntos; c) Eram pagos elevados ordenados aos técnicos estrangeiros, enquanto os técnicos portugueses não existiam ou eram desapoiados. Mão de obra pouco especializada e analfabeta era o que interessava ao patronato para melhor poder explorar."8

Ibidem. CONCLUSÕES DO CONGRESSO dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Cordoeiros e Tapeteiros de Portugal, 1976, p. 6.

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Os reflexos da crise não se repercutem, no entanto, de modo igual, em todos os subsectores da indústria têxtil e do vestuário. Na indústria têxtil são perdidos mais de 9000 empregos, entre 1973 (139989 trabalhadores) e 1977 (130543 trabalhadores), enquanto especificamente na indústria do vestuário são criados mais de 5000 empregos, entre 1973 (26564 trabalhadores) e 1977 (32106 trabalhadores), resultado de 4 anos de criação consecutiva de postos de trabalho9. Se o número de trabalhadores da indústria de vestuário aumentou 20%, o valor acrescentado bruto aumenta mais de 300% e o valor bruto da produção também quase que triplica. No mesmo período a despesa com as remunerações dispara mais de 450%10. Entre 1973 e 1977, o número de empresas no subsector do vestuário aumenta de 273 para 393, cinco anos consecutivos de aumento, enquanto os subsectores dos lanifícios, das malhas e algodão registam cinco anos consecutivos de diminuição de empresas11. Em relação ao emprego, o subsector do vestuário regista também cinco anos consecutivos de criação de novos empregos, arrastando positivamente todo o sector: "A recuperação em termos sectoriais ao nível do emprego fica a dever-se prioritariamente à evolução apresentada pela indústria de confecção, pois que enquanto os restantes subsectores registaram no período de 1976/77 alterações num e noutro sentido, de pouca amplitude e de efeitos praticamente compensatórios, aquele subsector criou nesse mesmo período 2170 postos de trabalho, ou seja, quase justificando de per si o aumento total têxtil das já citadas 2280 unidades."12

Costureiras (fábrica Gracinda Flores). Imagem: Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário, Calçado e Curtumes do Sul. Em 1985, Portugal ocupava o 3º lugar como fornecedor de artigos de vestuário à Comunidade Económica Europeia (CEE), atrás de Hong-Kong e Coreia do Sul.

Inauguração da Guston, em 1985. Imagem: Maria Clara Mourato Santos.

BAHSGME, cota IND/542. MESQUITELA, Teresa – Análise da Indústria Têxtil e do Vestuário em Portugal. In A Situação da Indústria Têxtil em Portugal e a sua Integração na Comunidade Europeia (artigos do “Boletim Euroexpansão”, n.º 5/83 a n.º 14/83).|s.l.|: Ministério da Economia, Secretaria-Geral, Centro de Documentação, p. 37. 10 Ibidem. 11 BAHSGME, cota IND. 6841/176. NABAIS, António, ANDREZ, Jaime, PEREIRA, J. M . Leitão, DUARTE, F. R. Pereira - Indústria Têxtil e do Vestuário em Portugal, Âmbito, diagnóstico e perspectivas. |s.l.|: Ministério da Indústria e Tecnologia, 1979, p. 30. 12 Ibidem, p. 34. 9


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De facto, as reivindicações dos trabalhadores e o aumento dos salários na indústria do vestuário não afetará o incremento do sector. Será mesmo o subsector do vestuário a impulsionar os registos positivos do sector têxtil: "Entre os anos de 1977 e 1985 as exportações cresceram a uma taxa anual média de 18,9% nas malhas e 15,5% no vestuário, tendo as exportações de algodão crescido a uma taxa anual média de 7,0% e as de lanifícios de 8,8%"13. Em 1980, Portugal ocupava o 4.º lugar como fornecedor de artigos de vestuário à Comunidade Económica Europeia (CEE). Em 1985, subira um lugar, 3.º, atrás de Hong-Kong e Coreia do Sul14. O sector do vestuário continuará a crescer até ao princípio dos anos 90 do século XX. No concelho da Moita as fábricas continuarão a laborar, atraindo a instalação de outras empresas e desenvolvendo-se a sua concentração. A questão dos salários, a política de baixos salários, e os direitos dos trabalhadores continuarão a motivar conflitos laborais. Na realidade, na mesma Europa Ocidental, em 1980, passados cinco anos do 25 de Abril, das transformações laborais, do aumento dos salários e direitos dos trabalhadores, que na altura se consideravam excessivos, mas ficavam ainda muito aquém dos valores e garantias que os trabalhadores das economias mais desenvolvidas auferiam, o custo do trabalhador português na indústria têxtil e do vestuário era seis vezes inferior ao custo de um trabalhador belga, holandês, alemão ou sueco15. Desde o início da implantação da indústria do vestuário, com vocação exportadora, que os diversos relatórios do Estado apontavam favoravelmente a vantagem competitiva dos baixos salários dos trabalhadores, mas a disposição de mão-de-obra barata dificilmente gerará condições, estímulos, para a modernização das indústrias. Em vez de investimento em tecnologia, a admissão de trabalhadores de baixos salários que, pela sua abundância, dispensavam a aposta em formação. Mas não só, o condicionamento industrial, o protecionismo de que as empresas instaladas beneficiavam, também não incentivou a reestruturação da indústria. Contudo, se os têxteis se caracterizavam pela utilização de trabalhadores pouco qualificados, o retrato no topo, ao nível da gestão das empresas, de modo algum é positivo: “A maioria dos nossos gestores têm fracas qualificações, não dispondo de qualquer curso médio ou superior que os habilite a desempenhar tais cargos. A direcção dos negócios é efectuada numa base empírica e sem procurar as medidas de fomento da produtividade e de racionalização que se tornam indispensáveis. Habituados a um regime protecionista de condicionamento industrial e a um lucro quase certo, os quadros dirigentes, com algumas infelizmente poucas excepções, descuraram a modernização das empresas, fechando-se numa gestão rotineira da qual se vão sentido com gravidade crescente as repercussões.”16 13 BAHSGME, cota IND. IND/1326-A. BYCAYA, Maria – A adesão à CEE e a indústria têxtil e do vestuário. Lisboa: Ministério da Indústria e Energia, Direcção-Geral da Indústria, 1987, p. 24. 14 Ibidem, p. 26. 15 BAHSGME, cota IND/542. MESQUITELA, Teresa – Análise do Emprego e da Produtividade no Sector Têxtil Português. In A Situação da Indústria Têxtil em Portugal e a sua Integração na Comunidade Europeia (artigos do “Boletim Euroexpansão”, n.º 5/83 a n.º 14/83).|s.l.|: Ministério da Economia, Secretaria-Geral, Centro de Documentação, p. 54. 16 Ibidem, p. 108.


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Apesar dos aumentos de salários, da instituição do salário mínimo, da melhoria das condições laborais, das instalações, da criação de refeitórios e em alguns casos de postos médicos, que significavam aumento de custos para as empresas, o país ainda se mantém competitivo, rentável para os investidores. Em termos comparativos, o custo total do trabalho/hora na indústria têxtil, em 1980, em Portugal, era de 1,68 dólares, enquanto o custo sueco era 6 vezes superior. Em 1981 e 1982, essa diferença reduz-se para 5 e 4,8 vezes superior, respetivamente17. Contudo, numa economia cada vez mais global, o custo total do trabalho/hora em Portugal, em 1982, era de 1,54 dólares, 5 vezes superior ao custo no Paquistão ou Sri Lanka. A vantagem competitiva que Portugal detinha pelos baixos custos salariais, em relação a países desenvolvidos, é a mesma desvantagem que enfrenta em relação aos países subdesenvolvidos com custos de trabalho ainda mais baixos. Mesmo com o aumento da produtividade do operário português, que subiu mais de 50% de 1973 para 197618, no subsector do vestuário, o sector enfrenta ainda outros desafios, como sejam as políticas protecionistas dos países desenvolvidos. Um documento produzido pela Direcção-Geral das Indústrias Têxteis e do Vestuário, em 1977, salientava a crise que se arrastava desde 1974, com “graves repercussões sociais (desemprego) e económicas (encerramento de unidades fabris)”19, destacando, no plano interno, “… a acentuada e brusca subida dos custos (mão-de-obra, matéria-prima, energia, encargos financeiros) que não encontrou adequada compensação em acréscimos de produtividade (ao inverso, registaram-se mesmo nalgumas actividades quebras ao nível da produtividade) e determinou significativa perda da competitividade”20. Com raras exceções, o sector têxtil caracterizava-se, em 1977, pela “… obsolescência do equipamento, no inadequado dimensionamento fabril, na gestão suportada por métodos tradicionais e rudimentares, na descapitalização (económica e financeira) estrutura que não permitiu resposta às questões que a conjuntura (social e económica) foi pondo (aumento dos salários, subida dos preços das fibras naturais, etc.)”21. A descolonização, ou melhor a perda do controlo do negócio do algodão do ultramar, as quebras de exportações para esse mercado, bem como o peso do subemprego no sector têxtil, paralisações e encerramentos de empresas, perturbavam também a situação da indústria têxtil, particularmente nas empresas de capitais estrangeiros “…como corolário não só da agitação social interna, mas também (e talvez muito mais) da alteração de condições de trabalho (salários, horários, etc.)”22.

RIBEIRO, Maria T. L., e GIRÃO, José A. – A Indústria Têxtil, do Vestuário e Calçado em Portugal: Uma Caracterização do Sector Através das Funções e Produção. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Economia, 1985, p.3. 18 MARTINS, Vitor |et al.|, ibidem, p. 15. 19 Ibidem, p. 6. 20 Ibidem, p. 7 21 Ibidem. 22 Ibidem. 17


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7.2 ANAINTEGRAÇÃO COMUNIDADE ECONÓMICA EUROPEIA

o final dos anos 70 do século XX, alguns sectores industriais do país, entre os quais os têxteis, já anteveem a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia (1985), prevendo também o impacto competitivo do novo mercado na economia nacional e a necessidade de reestruturar uma indústria tecnologicamente deficitária, assente no trabalho intensivo. Um estudo da Direcção-Geral das Indústrias Transformadoras e Ligeiras, elaborado em 1981, para servir de base à definição da política governamental com vista à “… reestruturação e viabilização, modernização e possível expansão das indústrias têxtil e do vestuário”, caracterizava a indústria têxtil portuguesa como “… deficientemente estruturada, encontrando-se largamente fragmentada e possuindo poucas empresas bem dimensionadas, integradas verticalmente e capazes de responder quer às oportunidades resultantes da adesão de Portugal à CEE, quer às pressões competitivas inerentes à importação de têxteis”23. Impunha-se a reestruturação de um sector que empregava, em 1977, 25,9% dos trabalhadores do sector transformador. O estudo, continha propostas para aumento dos níveis de emprego na indústria24, mas também alertava o leitor que “… os objectivos são explícitos quanto à intenção de encerrar as unidades não viáveis”25. A Reestruturação da Indústria Têxtil e do Vestuário, de 1981, apontava para a necessidade de melhorar a posição competitiva da indústria, através do “melhoramento dos níveis de qualidade, de design e de serviço dos clientes”, a redução de custos de produção, a melhoria da produtividade dos trabalhadores e dispensa dos considerados excedentários, a “instalação de sistemas de controlo de desperdícios”, o aumento do rendimento das máquinas, entre outros26. Em relação ao aumento da produtividade dos trabalhadores o estudo referia a existência de trabalhadores em excesso em todos os sectores da indústria têxtil que, aliado, à “falta de know-how e de organização, contribuem para a baixa produtividade da mão de obra que prevalece na indústria”27. Na questão do aumento da produtividade das máquinas o estudo apontava como razões da baixa produtividade (baixas velocidades) questões de ordem técnica e organizacional, havendo “… necessidade de formação para trabalhadores e encarregados e para melhoramentos no planeamento e programação da produção e na coordenação vendas/produção”28.

23 BAHSGME, cota IND/116-1. WERNER INTERNATIONAL – Reestruturação da Indústria Têxtil e do Vestuário em Portugal. |s.l.|: Ministério da Indústria e Energia, Direcção-Geral das Indústrias Transformadoras Ligeiras, 1981, p. 11. 24 Ibidem, p. 10. 25 Ibidem, p. 3. 26 Ibidem, p. 18. 27 Ibidem, p. 19. 28 Ibidem, p. 23.


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O custo da mão-de-obra, barata, foi um dos fatores decisivos para o crescimento da indústria têxtil em Portugal e por isso o assunto dos custos dos recursos humanos na produção é recorrente, dado o vestuário se caracterizar pelo trabalho intensivo. Se os baixos salários foram, durante anos, uma vantagem competitiva, gerando mais de um quarto dos empregos no país, deste ponto de vista o mais importante na economia portuguesa, a necessidade de reestruturação, de modo a fazer face aos produtos de outros países emergentes, com mão-de-obra ainda mais barata que Portugal, coloca em equação dois interesses, o do lucro dos seus proprietários e acionistas e a manutenção dos postos de trabalho: “… a necessidade dos países desenvolvidos de modernizar a indústria têxtil de forma a que os ganhos de eficiência tecnológica a tornem competitiva em relação às suas congéneres dos países em vias de desenvolvimento que beneficiam de baixos custos de produção (matéria prima e mão-de-obra), tem determinado excedentes substanciais de pessoal com o consequente desemprego e os problemas sociais a ele inerentes”29. No princípio dos anos 80, a indústria têxtil e do vestuário (ITV) representa cerca de um quinto do produto nacional, um terço das exportações, e emprega cerca de 200 mil trabalhadores. Apesar da sua manifesta relevância para a economia nacional, trata-se de uma indústria com fraca competitividade, que F. Duarte et. al consideram: “… determinada por uma estrutura deficiente e por vezes envelhecida que se pode definir da seguinte forma: dimensão empresarial generalizadamente insuficiente para se obter uma racionalização mínima do rendimento dos recursos empregues, nomeadamente os custos fixos (cerca de 20 a 40% das empresas, conforme os sectores, não possui dimensão industrial); situação económico-financeira deteriorada não permitindo uma gestão de aprovisionamento e de vendas nas melhores condições, além de ser responsável por alta geração de encargos financeiros (cerca de 40% não possui liquidez e 50% não a possui acima de 10%); obsoletismo do parque de máquinas; elevado subemprego médio (cerca de 30 a 40); baixo grau de utilização do equipamento; fracos rendimentos/ máquina; baixo grau de produtividade-homem; deficiente gestão ao nível comercial, financeiro e produtivo nomeadamente nas áreas de controlo de qualidade, de planeamento da produção e de controle de desperdícios; estrutura inter-industrial desequilibrada com os sucessivos sectores a montante a produzir acima da capacidade de absorção dos imediatamente a jusante.”30

BAHSGME, cota IND/2198. DUARTE, F. R. Pereira, ANDREZ, Jaime S., SUMMAVIELLE, Teresa M. A. B., - Indústria Têxtil e do Vestuário em Portugal, Aspectos da Política Sectorial. |s.l.|: Ministério da Indústria Energia e Exportação, Direcção Geral da Indústria, 1982, p. 3. 30 Ibidem, p. 5. 29


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O estudo Reestruturação da Indústria Têxtil e do Vestuário, de 1981, aponta, no entanto, a adesão à Comunidade Económica Europeia como uma janela de oportunidade para a indústria, que “… poderia melhorar substancialmente a balança de pagamentos dos têxteis, poderia levar à retenção de emprego para 60.000 pessoas, que presentemente excedem as necessidades da indústria e poderia resultar na criação de mais 21.000 postos de trabalho por volta de 1990, caso a indústria comece a tomar medidas para remediar certas deficiências antes da data proposta para a entrada, em 1 de Janeiro de 1983”31. Em meados dos anos 80 do século XX, a situação financeira na “indústria têxtil é periclitante para a generalidade dos subsectores”32. Do subsector do vestuário, somente 15% das empresas se “encontram numa situação de equilíbrio entre as necessidades de fundo de maneio e os fluxos de tesouraria correspondentes”33. O documento da Direcção Geral da Indústria, produzido em 1984, sobre a Situação da Indústria Têxtil e do Vestuário Enquadramento e seu Desenvolvimento, aponta a modernização do sector têxtil “… como uma prioridade não só no quadro industrial, mas também nas potencialidades de desenvolvimento do País, quer pela elevada vocação exportadora, de emprego, e ainda pelo valor acrescentado que gera no quadro na economia nacional”34. É por esta altura que conseguimos recolher, em jornais locais, notícias sobre ações de penhora de empresas do vestuário no concelho da Moita: a Charepe – Confecções, Lda., localizada na Rua Liége35, Moita, a Margem Sul Sociedade Confecções, Lda., situada no Pinhal da Areia, Moita36. Portugal, atravessa uma grave crise económica, registando-se a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), em 1983. Sucedem-se falências e encerramentos de empresas, com a taxa de desemprego a alcançar os 10,4%, “… chegando em certas zonas, como a península de Setúbal, a valores estimados em 20%”37, o dobro da média nacional, portanto. Nos primeiros anos de adesão à CEE são criados 400000 empregos, incluindo 120000 na indústria transformadora, mas crescem também as importações38, desequilibrando a balança comercial. Os têxteis, que em 1986 exportaram o dobro de 1980, não crescem mais de 1/3, de 1986 para 1990. Por outro lado, neste último período39, as importações no têxtil quase que duplicam. Na CEE, Portugal enfrentava um mercado global, liberal e sem barreiras alfandegárias, que iria exigir a reestruturação da economia. O investimento será realizado nas atividades que exigiam mais capital, WERNER INTERNATIONAL, ibidem, p. 36. BAHSGME, cota IND. 2315. MENDES, Carlos M. S., DUARTE, F. R. G., ANDREZ, Jaime, SUMMAVIELLE, Teresa M. A. B., – Situação da Indústria Têxtil e do Vestuário Enquadramento do seu Desenvolvimento. Lisboa: Ministério da Indústria e Energia, Direcção Geral da Indústria, 1984, p. 1. 33 Ibidem. 34 Ibidem, p. 14. 35 NOTÍCIAS da Moita, 15 de março de 1985, p. 9. 36 NOTÍCIAS da Moita, 1 de junho de 1985, p. 9. 37 LIMA, Marinús P. de – Relações de trabalho, estratégias sindicais e emprego (1974-90). In Análise Social, vol. XXVI, n.º 114. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1991, p. 917. 38 MATEUS, Augusto – A Economia portuguesa depois da adesão às Comunidades Europeias: transformações e desafios. Análise Social, vol XXVII, n.º 118-119. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1992, p. 660. 39 Ibidem, p. 663. 31 32


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com a aquisição de máquinas e equipamentos, principalmente na fiação, enquanto o sector do vestuário, caracterizado pelo trabalho intensivo, acentuará os problemas de competição no mercado de baixos salários, que já não é favorável a Portugal. A ação especial de recuperação da Guston Confecções, Lda., em 1994, então PERE (Processo Especial de Recuperação de Empresa), permite-nos perceber como o investimento realizado em aquisição de maquinaria e equipamento, para acautelar a competitividade com a entrada na CEE, revelar-se-ia infrutífero face às vantagens das economias a Leste da Europa. Assim, entre 1990/92, a Guston fez investimentos no valor de 130.000 contos, com o objetivo de “… garantir a atempada entrega de encomendas”40, adquiriu “… novas máquinas de costura para aumentar o nível de qualidade e produtividade (…) e um novo sistema de informática de administração e gestão de stocks”, entre outros, tudo para “… poder cumprir um plano de mercado de 1990 a 1994”, que tinha como pressuposto o “Aumento previsível de actividade económica com a entrada em vigor do mercado livre”41. Esperava que a concorrência de Leste, que então tinha os mercados fechados, se manifestasse posteriormente a 1994, que o escudo viesse a desvalorizar e as taxas de juro a descer, o que não aconteceu. Sucedeu sim que o mercado para o qual a Guston exportava, o escandinavo, passou a abastecer-se nos países de Leste e do Oriente, e que uma empresa francesa, provável parceiro da Guston, acabou por optar por Marrocos. Apesar de se esperar que as empresas que compravam na China e em Hong-Kong voltassem a trabalhar com a Europa, “… por via da alteração das quotas”, que os países escandinavos iriam entrar para a União Europeia em 1995, com a abertura total do mercado, e que surgissem problemas com a “… qualidade e segurança dos países da antiga URSS e outros do antigo Leste”, a Guston começou com dificuldades, entrando em gestão controlada, em 1994. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul, em carta enviada ao Ministro do Trabalho e da Solidariedade, em novembro de 1998, com a gestão controlada aumentou o volume de negócios entre 1995 e 1997 e foram recuperados os salários em atraso, mas pende sob a Guston a iminente “… RUPTURA DA EMPRESA, caso não seja afastado definitivamente o peso e consequências da pesada «herança» da GEFA CONFECÇÕES, LDA”42. A gestão controlada estendeu-se até outubro de 1998. Em 18 de novembro de 2004, foi declarada a falência da Guston43.

NADMTSSS, GabMin, Cx. 8630. Proc. 94/3634, Guston Confecções, Lda. – Acção Especial de recuperação da Empresa. Ibidem. 42 Ibidem. 43 DIÁRIO da República, III Série, n.º 289, 11 de dezembro de 2004, p. 27453. 40 41


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DA CONVEX, 7.3 FALÊNCIAS GEFA, NORPORTE E BORE

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o princípio dos anos 90 do século XX abrem falência duas grandes empresas de vestuário instaladas no concelho, a Convex, no Chão Duro, em 1992, e a Gefa, em Alhos Vedros, 1993. A Convex beneficiou de um apoio financeiro da Secretaria de Estado do Emprego, em 1981, destinado à sua viabilização, mas não ficaram muitas certezas quanto à possibilidade de evolução favorável da empresa. Conforme nos relatou Cristina Campante, à data ex-trabalhadora da Convex e dirigente sindical:

“O encerramento daquela empresa deve-se, de facto, à incompetência da administração e de não haver pessoas com condições para a dirigir. Depois da saída de um diretor de produção e de se desfazer a sociedade luso-holandesa, a fábrica nunca mais evoluiu. Nomearam vários diretores que não tinham qualquer conhecimento ou experiência do funcionamento da fábrica. Também existia grande arrogância da administração, dado que nunca quiseram aproveitar os conhecimentos dos trabalhadores. Na produção, qualquer uma de nós, com os anos que tínhamos de ofício, estávamos em condições de explicar como é que a fábrica funcionava. Certamente, poderia haver alguma dúvida sobre uma ou outra questão técnica, mas conversando podia-se ultrapassar. Mas estes nunca quiseram isso.”44

Em 1985, quando o então Presidente da República veio à Moita, os trabalhadores, na altura em luta pela continuidade da empresa, entregaram-lhe um caderno reivindicativo contemplando ainda uma proposta para a viabilização da Convex, depois de já terem feito o mesmo pelos ministérios. Após anos de crise financeira, sucede o processo de encerramento da empresa, na sequência da “falência de um grande cliente britânico, que ficou a dever uma quantia avultada”45. Segundo o Diário de Notícias, a manutenção da produção, durante vários anos, para um cliente único terá dificultado a recuperação da empresa. Para o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios e Vestuário do Sul, o motivo do encerramento da Convex terá residido na "incúria ou acção deliberada da administração"46. Em 1989, então com uma dívida à segurança social no valor de 110.468 contos, a Convex requer ao Ministério do Emprego e da Segurança Social condições excecionais de regularização da dívida, o que consegue47.

Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 17 de junho de 2016). AGUIAR, Carla – “CONVEX abre falência sem lutar por viabilização”, Diário de Notícias, 18 de agosto de 1992, p. 29. 46 Ibidem. 47 NADMTSSS, GabMin, Cx. 7595. Proc. 91/7201, CONVEX – Sociedade de Vestuário, Sarl. Solicita regularização de dívida. 44 45


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Junto ao despacho, uma informação do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, sobre a capacidade tecnológica e financeira da Convex: “8 – Análise Tecnológica É uma empresa com um parque de máquinas relativamente usado (idade média de 15 anos). Está no entanto a desenvolver esforços no sentido da realização de um investimento de 45.000 contos em equipamento para as secções de costura e acabamentos. 9 – Os elementos contabilísticos referentes ao exercício de 1988, permitem verificar que a empresa apresenta uma estrutura económico-financeira desequilibrada, em estado de falência técnica muito avançada, apesar dos resultados líquidos positivos alcançados neste exercício.”48 No processo 91/7201, relativo à Convex, consta também uma informação da Direcção-Geral da Indústria, de 19 de julho de 1989, que regista ser a empresa “… responsável a nível concelhio por 13% do emprego e 11% da produção industrial (relativamente a valores de 1985) (…) A nível sectorial regional é responsável por 16% do emprego e 8,4% das vendas”49. Mantém 246 postos de trabalho e aproximadamente “… 70% da produção é destinada ao mercado externo, essencialmente para Inglaterra, Dinamarca, Noruega, Suécia e França”50, e é considerada “… empresa relevante a nível sectorial regional relativamente ao emprego e à produção”51.

Notícia da falência da Convex, publicada no jornal NOTÍCIAS DA MOITA, de 1 de setembro de 1992. Imagem: Miguel Canudo.

Ibidem. Ibidem. 50 Ibidem. 51 Ibidem. 48 49


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Em janeiro de 1991, a Convex escreve ao Ministro do Emprego e da Segurança Social, informando que pretende relançar a sua atividade de molde a recuperar da crise económico-financeira em que se encontra – deduz que o ano de 1975 e subsequentes são responsáveis pela debilidade da estrutura financeira –, procedendo à renovação dos seus quadros de pessoal, mas também a extinção de alguns postos de trabalho. Na prática, a intenção é avançar com rescisões de contrato de trabalho, requerendo ao Ministério para que após a rescisão os trabalhadores sejam considerados “… na situação de desemprego e autorizar a acumulação desse subsidio com a remuneração complementar que a requerente está disposta a suportar até ao momento em que os trabalhadores estiverem em condições etárias de solicitar a concessão das respectivas reformas”52. Em 1992, são lançados para o desemprego mais de 250 trabalhadores. As dívidas ascendiam a mais de um 1 milhão de contos, tendo a falência sido requerida pela administração da empresa53. Em setembro do mesmo ano, o jornal Notícias da Moita, noticiava a falência da Convex: “CONVEX abre falência A CONVEX – Sociedade de Vestuário, S. A. sediada no lugar de Chão Duro da freguesia da Moita, encerrou as suas portas aos cerca de 250 trabalhadores que nela trabalhavam (…) que além de ficarem desempregados e sem condições de arranjarem outro emprego (…) ficaram sem receber 50 por cento do salário de Maio, a totalidade dos salários de Junho e Julho mais subsídio de férias, restando-lhes a espera destas liquidações acrescidas das respectivas indemnizações enquanto se movimentam no sentido de garantirem o subsídio de desemprego que passará a ser a sua única fonte de rendimento. Os sinais de crise financeira em que a empresa se encontra, devido principalmente ao hábito de recorrer à banca e aos fornecedores como tábua de salvação para obviar à inesperada situação de falência do seu único cliente durante vários anos que lhe deixara uma avultada dívida de difícil recuperação, tornaram-se mais evidentes a partir do início deste ano com os salários a serem pagos em prestações. Daí até à impossibilidade de laboração devido ao corte de fornecimento de energia por falta de pagamento à EDP ocorrida em 23 de Julho foi um rol imenso de dificuldades que a Administração não conseguiu resolver…”54 A empresa encerrou, mas ainda esteve algum tempo a aguardar propostas para a respetiva venda. Participaram posteriormente aos trabalhadores que tinha sido vendida à AMAL, através de leilão, por cem mil contos55. Informaram também os trabalhadores que o tempo de espera para receber as indemnizações seria de um ano. NADMTSSS, GabMin, Cx. 2232. NOTÍCIAS DA MOITA, edição de 1 de setembro de 1992, p. 4. 54 Ibidem. 55 Cristina Campante (testemunho oral, gravado em 17 de junho de 2016). 52 53


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As indemnizações devidas aos trabalhadores só foram pagas passados 15 anos, numa “cerimónia” que decorreu na Sociedade Filarmónica Estrela Moitense. As verbas entregues aos trabalhadores ficaram aquém do que muitos esperavam, dado os largos anos de casa e os salários em atraso. Em 1993, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) estimava que mais de 40 mil trabalhadores tivessem salários em atraso. O flagelo dos salários em atraso abatia-se sobre 15 sectores, com o sector têxtil e do vestuário a ser o mais castigado: “… tem 25922 trabalhadores (64% do total), de 149 empresas (58,6 por cento), com ordenados em atraso”56. Em setembro de 1992, a Gefa encontra-se numa situação difícil, solicitando uma audiência ao Secretário de Estado da Segurança Social57, com vista à regularização da dívida à Segurança Social. O passivo é estimado em 3 milhões de contos. Possui nos quadros 528 trabalhadores. A administração recorre também ao embaixador da Suécia, em junho de 1991, solicitando-lhe que sensibilize o Governo Português para a importância da viabilização da Gefa, que se encontra em eminente falência. A administração acrescenta ainda como informação: "... a GEFA, CONFECÇÕES, LDA: está em vias de falência, sendo, então, a terceira Empresa que nestas condições assumimos em Portugal". Câmara Municipal e Sindicato, intervêm junto dos órgãos do poder, para ultrapassar o problema e garantir a manutenção da empresa e dos postos de trabalho. Contudo, um relatório58 do inspetor subdelegado do Ministério do Emprego e da Segurança Social sobre a Gefa, dirigido ao Secretário de Estado Adjunto do Ministro do Emprego e da Segurança Social, em 7 de março de 1991, deduz que as “dificuldades” poderão ter sido criadas artificialmente. O relatório em causa refere: a prática da Gefa de “manipulação de grelhas salariais e categorias profissionais”, que atingiram o valor de 5000 contos a favor da empresa; o plano de desenvolvimento da Gefa, com apoios do FEDER e SIBRE; a construção de uma nova fábrica a partir das instalações adquiridas a Gracinda Flores; foi apoiada em formação pelo F.S.E. (Fundo Social Europeu), em 1989 e 1990. Sublinha ainda o inspetor que “… terá sido noticiado num jornal sueco o iminente encerramento da GEFA, cujas operações seriam transferidas para a Polónia, mantendo o grupo apenas em funcionamento em Portugal a INTEXT, fábrica em Salvaterra de Magos, propriedade do mesmo”. Trata-se da deslocalização da empresa, portanto. E conclui: “7.3 Decisivo é ainda, que a empresa utilizou dinheiros públicos e não pode sem mais encerrar, ou no mínimo criar perturbações sociais, por redução de efectivos ao arrepio e em contradição com os apoios recebidos. 7.4 Assim a intervenção que propomos com a inclusão v.g. da Inspecção de Finanças, passa por pôr a claro toda a “teia” do Grupo GEFA, que existe de facto, mas que só a IGT não pode discernir, até pelas ramificações AVANTE, edição de 22 de julho de 1993, p. 32. NADMTSSS, Cx. 7602. Ofício da GEFA - CONFECÇÕES, LDA., de 8 de setembro de 1992, ao Secretário de Estado da Segurança Social. No Núcleo de Arquivo encontra-se ainda informação sobre a Gefa, depositada nas caixas 7743 e 8078. A informação consta no Processo N.º 91/915 (Dívida à Segurança Social). 58 NADMTSSS, Cx. 7602. 56

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Notícia sobre a falência da Gefa, publicada no jornal NOTÍCIAS DA MOITA, de 1 de fevereiro de 1993. Imagem: Miguel Canudo.

internacionais dele e em consequência, grande capacidade de dissimulação, manobra e diversão. 7.5 Aliás a forma abrupta como a questão da viabilidade da GEFA surge, deve-se a essa capacidade, não sendo de afastar mesmo a possibilidade da criação artificial do problema, por exigências da conjuntura, do mercado internacional.”59 Em 1993, a Gefa requer um processo especial de recuperação de empresas. Em 1995, o Crédit Lyonnais Portugal SA, requer a declaração de falência da Gefa, estimando que as dívidas, com juros vencidos, deverão ultrapassar os 4,5 milhões de contos. O processo de encerramento, visto por uma trabalhadora, Teresa Araújo: “Quando fizeram a fábrica velha começaram a dizer que havia despesas, havia créditos aos bancos. Entretanto, começaram a abrir fábricas nos países mais pobres e eles começaram a fechar em Portugal e a irem para outros países, com mão-de-obra mais barata. Começou a faltar o trabalho, começou a faltar as encomendas. Depois ouvimos falar que algumas encomendas que eram para vir para Portugal foram para outros países da Ásia, a China, a Tailândia. Chegámos a estar 4 ou 5 meses sem trabalho. Entrávamos, picávamos o cartão e sentávamo-nos. Nós perguntávamo-nos: «Então, a gente está aqui sem trabalho, a receber o ordenado? Ah! Lá aparece uma encomenda!». Quando o trabalho começou a fraquejar ouve alturas em que parece que tentaram esconder a situação, 59

Ibidem.


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mas começámos a ver que a saída de trabalho já não era muita e que estavam a fechar linhas de produção. Entretanto, começou a ouvir-se falar que ia fechar, que havia fábricas que iam fechando, lá no Vale do Ave, lá para o Norte. Fechou muita empresa. As fábricas começaram a fechar e a crise também chegou aqui a Alhos Vedros. Estivemos 5 meses sem receber salários. Não os recebemos (…). Depois, ainda esteve lá um português a dirigir a fábrica, que começou a vender coisas e a levar trabalho para outras fábricas (…). Quando a fábrica estava no auge chegámos a ser 1600 operários. Quando fechou e fomos para o Sindicato éramos à volta de 500. A fábrica encerrou no fim de dezembro de 1992, em janeiro de 1993 já não abriu. Depois, foi tudo vendido assim… deu um bocado de pena. Nós ainda fomos lá ver um tipo de leilão… pessoas que iam lá comprar. Compravam cadeiras, compravam máquinas. Aquilo era camiões a sair… Até partia o coração.”60

Trabalhadoras da Norporte manifestam-se pela defesa dos postos de trabalho, durante as comemorações do 25 de Abril, na Moita. Imagem: Guilhermina Varela.

Trabalhadoras da Norporte junto à fábrica, após o seu encerramento. Imagem: Maria Luísa Figueira. 60

Teresa Araújo (testemunho oral, gravado em 20 de outubro de 2016).


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A Gefa acabou por fechar e os trabalhadores só receberam a indemnização passados doze anos. Foi em cheque e aconteceu no Tribunal da Moita. Alguns trabalhadores já não esperavam receber qualquer coisa. O momento em que receberam a indemnização foi o reencontro de pessoas que já não se viam há muito tempo, mas também de constatação que muitas já não receberiam a indemnização, por falecimento. Em 1997, o Jornal Textil anunciava a intenção da Norporte querer liderar o mercado mundial, no vestuário para esqui, golfe e atividades náuticas61. A estratégia da empresa, conforme a notícia, passava pela troca de participações com outros investidores ou pela implementação de uma marca própria. No horizonte, também a hipótese de cotar a empresa na Bolsa de Valores de Lisboa, em 1998. A posição da empresa no mercado externo parecia firme e estável, pela interpretação das palavras do diretor da empresa: “Temos o mercado exterior que nos absorve toda a produção. Mais produção tivéssemos mais seria absorvida. Em termos de concorrência em relação à mão-de-obra, o nosso maior perigo é o Extremo Oriente. Contudo eles não conseguem concorrer connosco, nem com a qualificação do nosso pessoal nem na execução”62. A ideia de expansão, em 1997, revelou-se outra realidade, em 1998, quando a empresa encerrou, contava então cerca de 480 trabalhadores63. Após o registo de lucros nos últimos anos, a venda da Helly-Hansen em 1996, transformada depois em Norporte, terá estado na origem dos problemas que sobrevieram. O novo dono teria estado ligado a outras duas empresas que encerraram por má gestão, informação que circulava e era do conhecimento dos trabalhadores: "Os trabalhadores ficaram preocupados, porque já conheciam a gestão daquele senhor. Havia funcionários que inclusivamente tinham trabalhado nas empresas já administradas por ele (...) A partir daí começaram a surgir problemas graves (...) Entre eles falta de trabalho, falta de material (como fechos e linhas) e dívidas aos fornecedores, ao serviço do refeitório, à segurança social e ao IRS. Todos eles devido a má gestão"64. A evolução da situação laboral da Norporte levou à dispensa de trabalhadoras, consideradas excedentárias e mandadas para casa, alguns dos equipamentos foram hipotecados, no mesmo período em que, paradoxalmente, as encomendas não diminuíam e faltava gente para "... dar vazão ao trabalho e responder às necessidades da secção de produção. O pessoal do corte tinham muitas vezes de lá ficar até à meia-noite, a receber horas extraordinárias. As costureiras começaram a ficar paradas uma, duas, três semanas, um mês, dois meses... e as coisas começaram a piorar"65, assim relatou Guilhermina Varela, delegada sindical, ao jornal Avante!, em dezembro de 1999. O relatório da subdelegada da Inspeção Geral do Trabalho, de 14 de julho de 1999, relata, assim, o processo de declínio da empresa, bem como as consequências do seu encerramento:

JORNAL TEXTIL, n.º 1, agosto de 1997, p. 12. Ibidem. 63 AVANTE, n.º 1361, de 30 de dezembro de 1999, p. 13. 64 Ibidem. 65 Ibidem. 61 62


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"Nos finais do ano de 1998 perdeu o seu principal e quase único cliente, a empresa Helly-Hansen, que lhes garantia trabalho para o ano inteiro. O volume de trabalho era de tal maneira significativo que a empresa dava trabalho a outras empresas mais pequenas e que por arrastamento irão sofrer também com este problema. Em face destes dados, a situação económica da empresa começou a passar por sérias dificuldades, verificando-se que o mês de Maio 1999 só foi pago em 1 de Junho e que o mês de Junho até hoje ainda não tinha sido pago. O volume médio de salários é de 32 mil contos mensais. Esta situação tem causado bastante instabilidade na empresa e na zona ao ponto de os trabalhadores fazerem greve."66 A falência da Norporte seria declarada em 20 de setembro de 2001, pelo Tribunal do Comércio de Lisboa. As falências, vistas por uma sindicalista, Manuela Prates: “A questão que se nos coloca é, como e porquê, que razões deram origem à destruição dum sector tão importante para a economia do país como era, de facto, a indústria têxtil. Quando falo de indústria têxtil englobo vários subsectores, desde a têxtil, as malhas, as passamanarias e o vestuário. Dizer que, de facto, foi uma derrocada enorme com todas as consequências que isso teve a nível do emprego e do empobrecimento de determinadas regiões, como a região de Setúbal que foi uma das atingidas com a destruição do sector têxtil. Foi das primeiras regiões em que se sentiu a brutalidade do encerramento de empresas, que atiraram com milhares e milhares de trabalhadores para o desemprego. Sendo verdade – e esta é uma questão que penso ser de realçar – que também aqui, mais uma vez, as mulheres e os homens desta região travaram lutas muito grandes para impedir o encerramento das empresas, como forma de defender os seus postos de trabalho. Desde a Norporte, onde se travaram lutas duríssimas, aliás até com alguns resultados que originaram a possibilidade de outros trabalhadores virem a ter, nas mesmas situações, os seus problemas resolvidos. Foi com a exigência da regulamentação do fundo de garantia salarial e também com a luta das mulheres desta empresa que, efetivamente, se deu origem a que se resolvesse o problema, porque, existindo uma lei, acabava por não se poder aplicar por falta de regulamentação. Sem dúvida que o encerramento daquelas empresas foi brutal. As razões? Primeiro, nós entendemos que as multinacionais 66 NADMTSSS, Cx. 4095. Proc.º 1094-99-1481, fax da sub-Delegada da Inspecção Geral do Trabalho, de 14 julho de 1999, ao Inspector Geral do Trabalho.


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definiram determinados objetivos e muitas delas acabaram por entender que se deslocando para outros países, nomeadamente países asiáticos, teriam a possibilidade de obter lucros máximos. Esta foi uma razão, porque não foi, não é, nem nunca será por força daquilo que é pago em termos salariais aos trabalhadores que leva as empresas ao encerramento. Também é verdade que houve outras razões, como a falta de investimento em novas tecnologias, embora no vestuário não se coloque esta questão com tanto ênfase como por exemplo no sector têxtil. O vestuário possui uma componente muito forte em termos de mão-de-obra, enquanto que no têxtil é mais em máquinas. No caso houve também o desenvolvimento de algumas tecnologias em que as empresas não apostaram, também no design, modificações que teriam sido necessárias, mas que as empresas não fizeram porque estavam habituadas a obterem lucros imensos à custa da exploração da mão-de-obra barata. Isto, apesar de haver empresas onde os níveis salariais eram muito superiores aos valores mínimos do contrato coletivo de trabalho, por força da organização dos trabalhadores, das suas capacidades reivindicativas, que conseguiram, fazer aumentar um pouco as suas remunerações, em relação aquilo que eram os mínimos contemplados nos contratos coletivos de trabalho. A destruição do sector têxtil a nível do país, mas particularmente a destruição de milhares de postos de trabalho no sector do vestuário, teve consequências no nosso sindicato, que é de âmbito pluridistrital (engloba Setúbal, Lisboa, Portalegre, Évora, Beja, Faro e Santarém), sendo que Lisboa e Setúbal concentravam as maiores empresas de vestuário e as grandes multinacionais. Os empresários deste sector precisavam de muita formação porque, no fundo, foram eles os responsáveis por tudo o que aconteceu nas empresas. A falta de formação por parte dos empresários deste sector e a falta de formação dos gerentes contribuíram para que se perdessem milhares de postos de trabalho e isso foi focado muitas vezes pelos sindicatos do nosso sector e, nomeadamente, pelo nosso próprio sindicato.”67 Sobre o encerramento de empresas de confeções em Alhos Vedros, um parecer do Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas, em 1997, relativo à Guston Confeções, sobre a caracterização da empresa, deixa uma observação curiosa, lapidar: "Situa-se em Alhos Vedros, Moita, numa zona onde é comum abrirem e encerrarem fábricas do ramo, por vezes dos mesmos titulares."68

Manuela Prates (testemunho oral, gravado em 25 de agosto de 2016). NADMTSSS, GabMin, Cx. 8630. Proc. N.º 94/3334, Guston Confecções Ldª, Acção Especial Recuperação da Empresa, Parecer n.º 5/97 - 1ª, do Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas. 67 68


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Leilão na Norporte. Imagem: Maria Luísa Figueira.

Antiga fábrica de confeções de vestuário Norporte (2017). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto.

Em janeiro de 2000, um deputado do Partido Comunista Português (PCP), Vicente Merendas, levanta na Assembleia de República a questão do "encerramento fraudulento" da Norporte, comentando também o facto de um mesmo administrador estar ligado à falência de outras empresas: "Registe-se que a Norporte com os seus 480 trabalhadores, actualmente com o contrato de trabalho suspenso, chegou a facturar quatro milhões de contos. Bem equipada e dispondo de moderna tecnologia, a empresa viu os problemas avolumarem-se com a «gestão» de um indivíduo que no período de um ano e meio a descapitalizou em centenas de milhares de contos, isto depois desse mesmo administrador estar envolvido no encerramento das empresas Aloport e GEFA".69 Em outubro de 2003, o jornal Avante! noticia nova situação de encerramento de uma empresa de confeção de vestuário de Alhos Vedros, a Bore. O administrador em causa terá estado também ligado ao encerramento de outras fábricas: "Embora o dono desta empresa (Bore), o sueco Lars Erik Larsson, tivesse afirmado que não haveria encerramento, e que apenas mudaria de instalações, a verdade é que a laboração já se encontra suspensa e as trabalhadoras já recorreram à suspensão dos contratos de trabalho, perspectivando-se o encerramento definitivo. Por isso, afirma a moção (da Câmara Municipal da Moita), «os piores receios continuam a marcar os dias e as noites das trabalhadoras de confecções do concelho, bem como das respectivas famílias, porque com 69

AVANTE, edição de 10 de fevereiro de 2000, p. 11.


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idênticas justificações e promessas, o Sr. Larsson já promoveu em poucos anos o fecho irremediável de várias outras unidades industriais, todas do mesmo ramo – Vestus, Guston, Cosal e Fristads – sem que das autoridades competentes houvesse o correspondente e devido esforço no sentido de assegurarem a transparência dos processos e, sobretudo, a defesa dos direitos dos trabalhadores."70 Passados dois meses, o Avante!, em dezembro de 2003, estampa o seguinte título: “Bore Confecções, em Alhos Vedros – Mais um caso de polícia"71, descrevendo o comportamento de "muitas multinacionais" que encerram empresas em Portugal e as deslocalizam para outros países: Notícia sobre o encerramento da Norporte, publicada no jornal AVANTE!, de 10 de fevereiro de 2000. Imagem: Arquivo do PCP. O jornal AVANTE! sublinha o encerramento fraudulento da Norporte.

Notícia sobre o encerramento da Bore Confeções, em Alhos Vedros, publicada no jornal AVANTE!, de 31 de dezembro de 2003. Imagem: Arquivo do PCP. O jornal AVANTE! considera o encerramento da Bore como “Mais um caso de polícia”.

"A multinacional Kansas, com sede na Dinamarca, detentora de três empresas a operar em Portugal, envolvendo 1200 postos de trabalho, enceta um processo de deslocalização para a Rússia, com o encerramento da unidade de Mem Martins. Em 2002 e 2003, a multinacional, com o objectivo de se livrar de encargos sociais, vende as outras duas unidades (Kansas e Fristads) a custo zero, a um grupo sueco e holandês, com mudança dos respectivos nomes para Vestus, em Corroios, e Bore, em Alhos Vedros. Passados alguns meses, sublinha Jerónimo de Sousa, a Vestus deixa de pagar salários e decreta falência deixando os trabalhadores no desemprego, com salários em atraso e sem indemnizações cujo valor ronda os seis milhões de euros. No que se refere à Bore, após ter reduzido 250 postos de trabalho, o grupo sueco e holandês (que, recorde-se, tinha comprado a empresa a custo zero) vende o imóvel e os terrenos arrecadando mais de um milhão euros. 70 71

AVANTE, edição de 23 de outubro de 2003, p. 21. AVANTE, edição de 31 de dezembro de 2003, p. 6.


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A história, porém, não se fica por aqui. O mesmo grupo sueco e holandês vende o título Bore a custo zero a um grupo inglês que se implantou em instalações alugadas na antiga fábrica Guston, em Alhos Vedros. Três meses decorridos, o salário dos 100 trabalhadores começou a ficar em atraso."72 Em 1986, Alhos Vedros era o principal centro industrial do concelho, com aproximadamente 78% do número de empresas, que representavam 54% do emprego industrial73, com as fábricas de vestuário a constituírem o principal sector empregador. Em 1985, existem 4812 empresa do sector têxtil, vestuário e couro no país. Em 1988, são 6021 empresas, e em 1992 esse número sobe ainda mais, para 6407. Contudo, em 1997, desaparecem mais de 2000 empresas, registando-se somente 406174. A manutenção da filosofia do trabalho intensivo, de baixo custo, em detrimento da modernização, abrira portas à deslocalização das empresas: “Note-se que este segmento apresenta uma forte quebra de emprego em 1997 o que resulta das estratégias que vinham sendo adoptadas, que ao caracterizarem-se por um modelo de desenvolvimento competitivo baseado em mão-de-obra intensiva, abriram caminho a fenómenos de deslocalização de produção.”75 Por mais relatórios, diagnósticos, denúncias, prevaleceu um ciclo vicioso sobre o qual se diz não podermos intervir porque quem traça as regras do destino é o mercado. Costuma-se dizer que o tempo é bom conselheiro, isto porque nos permite ver as consequências reais que antes não queríamos ou não podíamos ver. Quanto aos países que estariam a receber a indústria, que antes dizíamos ser nossa, “não podemos culpar terceiros, mas sim o governo português, quando em 2001, sem debate nacional, sem diálogo com o sector e sem uma avaliação das consequências e condições em que a China entra na Organização Mundial do Comércio se passa um cheque em branco a Bruxelas para negociar, permitindo que se trocassem os interesses da nossa indústria têxtil e do vestuário pelos interesses dos grandes grupos económicos e dos países mais fortes que comem em dois carrinhos, na colocação dos seus produtos sem concorrência em todo o mundo e com a deslocalização das suas indústrias sugando as vantagens dos salários baixos”76. Tão pouco se trata grandes empresários, que sempre deram aval à política governativa, e pequenos empresários da mesma forma, pois quem efetivamente lucrou com a liberalização do comércio mundial

Ibidem. CÂMARA Municipal da Moita - “O Município que somos”. Moita: Câmara Municipal da Moita, 1986, 2ª edição, p. 8. 74 ALMEIDA, António J,. et al. – Território, Estratégias Empresariais e Competitividade O caso da Península de Setúbal, p. 38. Disponível em: http://hdl.handle.net/10400.26/4151. 75 Ibidem, p. 39. 76 SOUSA, Jerónimo – “Colóquio sobre Defesa do Sector Têxtil e Vestuário”, disponível em: http://www.pcp.pt/actpol/ temas/economia/sg20050507.htm 72 73


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Antiga fábrica de confeções de vestuário Bore (2017). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto.

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Antiga fábrica de confeções de vestuário Fristads (2017). Imagem: Câmara Municipal da Moita, Divisão de Cultura e Desporto.

foram os grandes grupos distribuidores e os que detém as marcas, que chegam a ter margens de lucro na proporção dos 70% do preço de venda dos produtos. Para um país como o nosso que detinha o maior volume de emprego no sector da União Europeia, 4,2% da população ativa (2001), questiona-se se as medidas adotadas foram as mais adequadas na defesa da nossa capacidade produtiva e económica instalada e do emprego. Questiona-se se houve um verdadeiro programa de compromisso com os trabalhadores e com o sector para interromper o ciclo de uma competitividade que nos condena à derrota e à dependência das grandes cadeias. Questiona-se a política que nem sequer acionou as cláusulas de salvaguarda legais, não como solução definitiva mas para atenuar os impactos negativos, para impedir ruturas sociais, para ganhar tempo através de um verdadeiro plano de desenvolvimento da nossa experiência e capacidade de saber fazer, que defendesse o sector produtivo então existente. Questiona-se se efetivamente desenvolvemos processos de modernização consequentes para a criação de atividades económicas alternativas, em termos de investigação, de inovação e criação, de formação, de promoção dos nossos produtos. Questiona-se se a inação sobre os fatores que garantem a competitividade à indústria no plano da energia, dos transportes, das telecomunicações e do crédito, sectores nas mãos do grande capital económico e financeiro com lucros colossais à custa das micro, pequenas e médias empresas não terá sido asfixiante para o sector. Questiona-se se as alterações ao Código do Trabalho com vista à flexibilização e à precarização do trabalho, bem como, a manutenção das tabelas salariais em baixos níveis poderá garantir uma economia sustentável. Questiona-se se Portugal poderá garantir um desenvolvimento equilibrado, com criação de riqueza, sem a existência de uma indústria transformadora forte77. Questiona-se se todas estas perguntas não serão meras perguntas decorrentes da nossa Constituição. 77

Ibidem.


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As fábricas de confeções de vestuário encerraram e de algumas restam apenas ruínas. Ficaram, no entanto, as memórias de um tempo de trabalho, da camaradagem, da solidariedade, da vivência de lutas difíceis, da partilha de tristezas e alegrias, de formas de ser e de sentir, coisas que não se esquecem e que as mulheres, antigas trabalhadoras da indústria do vestuário, ainda hoje sabem valorizar. Se a economia se define como a ciência das leis do desenvolvimento do processo de produção social, toda esta experiência serviu, ainda assim, para criar uma certa base material da emancipação social no concelho da Moita.

Fecharam as fábricas, ficou a unidade das trabalhadoras. Imagem: Judite Faquinha.




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BAHOP, Anteplano de Urbanização da Moita. |s.n.|: Ministério das Obras Públicas e Comunicações, processo n.º 2032/49, 1949.

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NADMTSSS, GabMin 7595. NADMTSSS, GabMin 8630.

NADMTSSS, GabMin, Cx. 3503. ESTATUTOS E CONTRATOS COLETIVOS DE TRABALHO ASSOCIAÇÃO dos Industriais de Vestuário do Sul – Contrato Colectivo de Trabalho para a Indústria do Vestuário celebrado entre a Federação Nacional da Indústria de Vestuário e o Sindicato dos Trabalhadores Texteis de Lisboa, Lanifícios e Vestuário do Sul e outros. Lisboa: Associação dos Industriais de Vestuário do Sul, 1976. CONTRATO Colectivo de Trabalho entre os Grémio dos Industriais de Cortiça do Centro, Grémio Regional dos Industriais de Cortiça do Sul e os Sindicatos Nacionais dos Operários Corticeiros dos Distritos de Lisboa, Setúbal, Évora, Faro, Portalegre e Sindicato Nacional dos Contínuos, Porteiros e Profissões Similares do Distrito de Lisboa (1962) – |s.l.|: |s.n.|.


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