A Embarcação Tradicional
O BOA VIAGEM
Memória de uma Recuperação
Câmara Municipal da Moita
A Embarcação Tradicional
O BOA VIAGEM
Memória de uma Recuperação
Câmara Municipal da Moita
NOTA DE APRESENTAÇÃO
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
FICHA TÉCNICA Título: Investigação e Elaboração de Textos: Fotografias: Projecto Gráfico: Edição:
ÍNDICE
Data da Edição: Tiragem: Impressão: Depósito Legal:
A Embarcação Tradicional “O Boa Viagem”: Memória de uma Recuperação Maria Clara Santos José Presumido; Paulo Guerreiro Carlos Jorge Câmara Municipal da Moita / Departamento dos Assuntos Sociais e Cultura 1ª Edição Junho de 2013 1000 Exemplares A Triunfadora – Artes Gráficas, Lda. 360988/13
INTRODUÇÃO
FICHA TÉCNICA
ÍNDICE O BOA VIAGEM DA BOA MEMÓRIA
9
PREFÁCIO
11
1. HISTÓRIA DA EMBARCAÇÃO 1.1. Origens e Caracterização Tipológica do Varino 1.2. História do Varino “O Boa Viagem”
15 16 26
INTRODUÇÃO
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2. RECUPERAÇÃO TRADICIONAL DA EMBARCAÇÃO 2.1. Corte e Tratamento das Madeiras 2.2. Trabalhos de Carpintaria Naval 2.3. Trabalhos de Calafeto 2.4. Trabalhos de Pintura 2.5. Palamenta e Motor da Embarcação
37 39 52 86 96 110
BIBLIOGRAFIA
122
GLOSSÁRIO
118
Câmara Municipal da Moita | A Embarcação Tradicional “O Boa Viagem”: Memória de uma Recuperação | 9
NOTA DE APRESENTAÇÃO PREFÁCIO O BOA VIAGEM DA BOA MEMÓRIA O varino O Boa Viagem é a foz onde desagua a corrente imensa e solidária de um rio feito de homens e barcos, de gentes INTRODUÇÃO de dimensão e vontade que lavraram o Tejo como terra, frutificaram com o seu trabalho e edificaram, nas margens ribeirinhas, terras de futuro para si e para os seus. O Município da Moita possui uma vasta frente ribeirinha de mais de 20km de extensão e séculos de vida tecida em berço de Tejo, uma história com raízes no rio e sempre em movimento, representada simbolicamente com a imagem de um varino de vela aberta, avançando pelo horizonte, no rumo certo que sabe ser o seu. O Boa Viagem é um símbolo da nossa identidade, memória do tempo passado e um recurso para as próximas gerações, despertas para uma sensibilidade coletiva que preza o vasto património de saberes, valores e pessoas que constituem a FICHA riqueza do nosso Município.TÉCNICA O Boa Viagem, que leva já mais de cem anos de Tejo, foi adquirido após deliberação em Reunião de Câmara, realizada em 1980 e foi recentemente classificado como Bem Cultural de Interesse Municipal. Outrora barco de trabalho de tráfego fluvial, meio de subsistência de marítimos e de moços que desde tenra idade se iniciavam nas andanças do rio, é hoje uma valiosa ferramenta pedagógica, testemunho material e, simultaneamente, museu vivo, construído em madeira e disposto sobre as águas, para fruição cultural e turística. ÍNDICE O Boa Viagem acompanhou a industrialização dos concelhos ribeirinhos das margens norte e sul do Tejo, mas também conta uma outra história, muito mais antiga, sobre a construção naval, da qual os mestres de estaleiro das praias do Tejo foram herdeiros. Conta a arte e o engenho dos mestres que construíam embarcações sem planos geométricos, munidos apenas de um esquema mental que lhes permitia levantar, de memória, tanto varinos, como fragatas, botes, catraios, e muitos outros, tal era a diversidade da marinha do Tejo. O nosso Boa Viagem é, assim, um universo de saberes que, acreditamos, pode e deve ser partilhado por todos os que se interessam pelas embarcações tradicionais, pela construção naval em madeira, pelos que amam o rio e a sua terra. Tornar disponível a um vasto público a memória de uma embarcação centenária, rica de história e intensa de identidade, que divulga uma arte naval tão própria das nossas gentes, é uma tarefa que pensamos ter cumprido através desta edição sobre a memória da recuperação do Boa Viagem.
João Manuel de Jesus Lobo Presidente da Câmara Municipal da Moita
Câmara Municipal da Moita A Embarcação Tradicional “O Boa Viagem”: Memória de uma Recuperação | 11 NOTA DE |APRESENTAÇÃO
PREFÁCIO “O Boa Viagem”: Viajar no rio Tejo para descobrir… «Maravilhosas cousas sam os feitos do mar e asinadamente aqueles que fazem os homens em maneira de andar sobre elle por mestria e arte, asy como naos e gallés e em todos outros navios mais pequenos …».1 INTRODUÇÃO
A riqueza do património cultural do Tejo é muito vasta: é um rio cheio de engenho, de criatividade, de emoções, de valores, de poesia e de arte, como testemunha o varino “O Boa Viagem”, no concelho da Moita. Esta histórica embarcação permite-nos olhar para o Tejo e para as suas potencialidades económicas, ‘hic et nunc’, numa perspetiva cultural e turística. Estamos perante um tipo de recurso cultural que deve ser valorizado através de uma maior visibilidade, dada através de publicações, de roteiros, de eventos sobre a paisagem cultural da Moita e do estuário do Tejo. O presente livro reflete as preocupações da Câmara Municipal da Moita em FICHA TÉCNICA promover o estudo, a preservação e a divulgação do património cultural concelhio, apresentando de uma forma didática a história do varino “O Boa Viagem”, pérola do Tejo, que, conforme o afirmava o etnólogo Luís Chaves, em 1940, “A par da fragata, o varino, mais leve, mais elegante e gracioso, é o brinco do porto de Lisboa. Os dois têm decoração vistosa, que em parte dependerá da proveniência do varino: a sugestão rica do colorido brilhante dos moliceiros.” E ao referir-se às duas embarcações emblemáticas de carga do rio Tejo faz a seguinte comparação: “A fragata e o varino são irmãos de geração diferente: o varino mais feminil, a fragata mais máscula.” ÍNDICE Durante séculos, a viagem pelo Tejo fez-se em vários tipos de embarcações. O varino pertence a uma geração mais recente (séc. XIX), dando resposta à necessidade da aproximação aos portos ou portinhos situados no fundo dos esteiros para efetuar os grandes carregamentos. Os construtores navais inventaram uma embarcação de fundo chato – o varino – porque era necessário dar resposta às caraterísticas geográficas da região: “… presença dum litoral de estuário, recortado por esteiros, e a proximidade de uma cidade, que veio progressivamente ganhando as dimensões dum grande porto, conferiram à Margem Sul do Estuário do Tejo os estímulos de povoamento. Nos esteiros, penetrados pela maré, condensaram-se as póvoas ribeirinhas que, em muitos casos a exploração salineira, e sempre a cabotagem, praticada por embarcações de pequeno calado que as relacionavam entre si e com Lisboa.” (Maria Alfreda Cruz, Margem Sul do Estuário do Tejo…, 1973) Esta publicação surge num momento certo. É um alerta para a preservação de um património secular e único: as técnicas da construção naval tradicional portuguesa. Antes que se acabem os artistas da arte naval – carpinteiros navais e calafates – é necessário tomar medidas para que os seus saberes e práticas sejam continuadas como sucedeu, durante séculos, passando de geração em geração, de pais para filhos ou familiares. Não basta o registo: é necessário dar continuidade a estas práticas, porque são uma herança e riqueza que pertence a todos os portugueses. Mas a preservação deste património só se garantirá se os estaleiros navais continuarem a funcionar/ operar, porque foram os construtores navais que garantiram a continuidade deste bem cultural. Esperamos que a atual geração de artistas navais não seja a última que herdou uma tecnologia que perdurou séculos na costa marítima portuguesa. Atualmente o cenário dos nossos estaleiros navais é 1
Regimento dado por D. Afonso V, em 1471, aos almirantes de Portugal
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bastante triste, porque retrata o abandono desta atividade industrial secular: o concelho da Moita é uma exceção. O varino “O Boa Viagem” constitui um monumento do património náutico português que testemunha muitos saberes, registados neste livro ao assinalar todos os processos utilizados para que uma embarcação possa navegar. Como diz a autora deste livro, este bem cultural com nova função, mas preservado ‘in situ’ (rio Tejo), no seu ambiente natural e histórico, transformou-se num bem museológico: “Instalado o motor e preparada a palamenta, o varino “O Boa Viagem” ficou definitivamente aparelhado e preparado para desempenhar, mais uma vez, as suas funções culturais e didáticas, enquanto museu vivo flutuante do Tejo, e, assim, dar início a uma nova etapa nas páginas da sua história secular.” Estamos, de facto, perante uma nova realidade museológica: outra forma de expor o objeto cultural. Esta publicação cumpre uma função importante da musealização de um bem cultural: a investigação sobre o objeto (varino), porque antes de o apresentar aos públicos é necessário conhecer todo o percurso histórico, a sua nomenclatura e os múltiplos elementos que estão associados à embarcação. Deste modo, para a compreensão do objeto museológico, os públicos recebem os conhecimentos suficientes sobre o processo de construção e de utilização da embarcação. O presente livro não pretende fazer do leitor um construtor naval, mas prepará-lo e introduzi-lo numa arte que exige um vasto domínio de conhecimentos e de práticas: desde a escolha da madeira e a data de abate, a preparação do estaleiro e da carreira até à ossada da embarcação, a mastreação, ao velame, ao poleame, à âncora… Durante a década de oitenta do século XX, após inauguração, em 1981, das novas funções do varino “O Boa Viagem” pela Câmara Municipal da Moita (tivemos o privilégio de participar, acompanhar e continuar…), estas práticas foram seguidas por vários municípios ribeirinhos do Tejo, que adquiriram embarcações tradicionais para viagens culturais. São estas iniciativas que promovem o País com novas alternativas para o desenvolvimento cultural e turístico. As viagens no rio Tejo neste tipo de embarcação permitem dupla fruição: a do meio de transporte confortável movido pelo vento e a paisagem cultural que se observa a partir do rio. Já, na década de quarenta do século passado, o citado etnólogo Luís Chaves alertava para o encanto das embarcações do rio Tejo: “Valia bem, para a beleza do rio e pitoresco da cidade, por iluminura do velho códice desenrolado no Tejo, que se conservasse e estendesse até com estímulo este espécime precioso da nossa arte popular marítima ou aquática." Para além de um bem cultural que é posto ao serviço da comunidade, é, simultaneamente, uma homenagem que o município da Moita e a autora prestam aos artistas da construção naval, nomeadamente ao Mestre Jaime Costa, em Sarilhos Pequenos, ao Mestre José Lopes, no Gaio, às suas equipas e aos arrais do Tejo, que, normalmente, são ignorados e não têm direito a condecorações. Em 1864, no livro “A Arte Naval” (in «Biblioteca do Povo e das Escolas») questionava-se esta arte e, ao mesmo, afirmava-se que era necessário dar continuidade a esta criação: “Até onde irá a arte naval?” “Com tantas engenhosíssimas construções (…) não pode parar nunca, nessa admirável marcha, com a criação de verdadeiras maravilhas. “O navio é uma engenhosa máquina, que reúne em si todas as aplicações da ciência, e aproveita de todos os aperfeiçoamentos introduzidos na indústria.” A leitura deste livro prepara os públicos para uma viagem completa no varino “O Boa Viagem”. Janeiro de 2013 António Maia Nabais (museólogo e historiador)
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PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
A embarcação municipal, tipo varino ”O Boa Viagem” constitui atualmente um testemunho material de uma notável herança histórica, pertencente a um passado muito recente, cuja memória ainda permanece viva nas mentes das gerações mais velhas. Está indissociavelmente ligado a uma atividade económica secular, o FICHA TÉCNICA transporte fluvial, que marcou o quotidiano das populações ribeirinhas. Durante séculos a margem esquerda foi subsidiária da cidade de Lisboa, sendo as ligações fluviais, asseguradas por diferentes tipos de embarcações que se especializaram no transporte de determinados produtos. Foi, todavia, na centúria oitocentista que os varinos fizeram a sua aparição no estuário do Tejo, tendo como ascendentes as embarcações de proa e popa curva, provenientes da zona geográfica da Ria de Aveiro. Na primeira parte deste nosso trabalho iremos precisamente abordar as genealogias e a origem geográfica desta tipologia de embarcações, recorrendo ÍNDICE aos autores que estudaram estes assuntos, como Luiz de Magalhães, Rocha Madahil e Lixa Filgueiras. Encontrar a linhagem para este tipo de embarcações apresentou-se, sem dúvida, uma tarefa difícil, devido à ausência de documentos iconográficos e escritos que nos permitisse dar alguma orientação na nossa investigação, apenas Lixa Filgueiras conseguiu fazer uma descrição da enviada, tendo como base uma imagem representada em “Souvenirs de Marine Conservés” (1880) e que publicou em Barcos de Pesca de Portugal. Perante esta falta de fontes, tivemos que nos restringir aos estudos dos autores citados e de alguns registos oitocentistas que foram deixados em revistas da época, como o Archivo Pittoresco e a Revista do Exercito e da Armada. Com base nestas informações formulámos as nossas análises comparativas e partilhámos da teoria defendida por Lixa Filgueiras, de que o varino é um modelo de expressão local, mas com raízes culturais na tipologia de embarcações, provenientes da Ria, de proa e popa curva, resultado de um processo de aculturação. Devido às suas características tipológicas, adaptou-se perfeitamente às condições difíceis de navegação dos esteiros e rapidamente passou a fazer parte da paisagem fluvial do Tejo. Ao impor-se como embarcação de carga, converteu-se numa das embarcações mais representativas dos dois últimos séculos. “O Boa Viagem” está enquadrado neste contexto espácio-temporal, sendo um dos poucos exemplares que restou dessa florescente atividade económica que teve o seu apogeu nos fins do século XIX e inícios do XX, correspondente com a fase de industrialização do país. Na sequência da caracterização tipológica, seguir-se-á a construção da história da embarcação municipal “O Boa Viagem”, tendo como apoio as fontes documentais, pesquisadas no Arquivo Histórico da Marinha. Também aqui as referências foram escassas, não conseguimos transpor a baliza cronológica do ano 1900, indicação do primeiro registo na Capitania do Porto de Lisboa. Contudo, procurámos fazer uma sinopse histórica, desde a data desse registo até à época presente, de forma cronológica e fazendo sempre que possível, os necessários destaques dos momentos mais relevantes na vida da embarcação. Quanto à segunda parte iremos dedicar integralmente a todo o processo de recuperação do varino, no estaleiro naval de Sarilhos Pequenos, desde a preparação das madeiras até à montagem da palamenta. Ao longo dos diversos trabalhos que foram sendo feitos na embarcação, procurámos articular o plano prático, observado
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no estaleiro, com os conhecimentos teóricos, transmitidos no Livro da Fabrica das Naus de Fernando Oliveira e no Livro Primeiro da Architectura Naval de João Baptista Lavanha. Estas obras a que recorremos para fazer as nossas análises comparativas, foram consideradas as mais notáveis da Europa do seu tempo, porque nelas foram, pela primeira vez, registadas as normas básicas do processo de construção naval, referentes à época de quinhentos e seiscentos. Pareceu-nos interessante fazer esta comparação, porque permite-nos perceber que muitas das práticas utilizadas na recuperação do varino, quer no corte e preparação das madeiras, quer nos trabalhos de carpintaria e de calafeto são concordantes com as técnicas ancestrais, enunciadas nesses tratados. A persistência de muitas dessas práticas, está, sem dúvida, relacionada com a forma como eram transmitidos os saberes técnicos desses ofícios, na generalidade dos casos, os processos de aprendizagem eram feitos na cadeia familiar ou em pequenas oficinas artesanais, sendo os conhecimentos ciosamente guardados no seio desses núcleos. Pretende-se, com efeito, dar uma visão global de todas as fases do processo de recuperação do varino “O Boa Viagem”, confrontando, sempre que possível, com a informação desse importante corpus documental que são os tratados e, desse modo, deixar em registo escrito para a posteridade dos tempos, a memória dessa recuperação. Com este trabalho pretendemos assim evidenciar a importância patrimonial da nossa embarcação municipal, quer como testemunho de uma memória de trabalho ligado ao transporte, quer como um repositório de métodos seculares, associados à construção naval.
1. HISTÓRIA DA EMBARCAÇÃO 1.1. ORIGENS E CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DO VARINO
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1.1. ORIGENS E CARACTERIZAÇÃO TIPOLÓGICA DO VARINO “Depois dos botes são os varinos os que em maior numero sulcam o Tejo.” 1 O amplo estuário do rio Tejo que abrange zonas de águas profundas e de esteiros, canais onde as águas têm pouca profundidade e ficam sujeitas ao regime de marés, permitiu a navegabilidade a uma enorme diversidade de embarcações, de que é testemunho o registo que nos deixou Brito Aranha, no ano de 1872: “É numerosa e variada a navegação do Tejo. (…), tão espantosa quantidade de barcos o sulcam e cruzam, tão diversa é a armação, a fórma e a lotação d’elles, e tão extensa por isso a sua nomenclatura. Entre as embarcações, pois, que navegam ao Tejo, contam-se os moinhos, as rascas, as faluas, as moletas, os aveiros, as fragatas, os hiates, os varinos, as guigas, os vapores, os botes, os catraios, os escaleres, as canoas, etc.” 2 Esta informação dá-nos, de facto, a conhecer a grande variedade de tipos de embarcações que então sulcavam as águas do Tejo, num vaivém constante, o que nos permite avaliar não só a importância económica que tradicionalmente detinha a atividade fluvial, como também o desaparecimento de alguns tipos de barcos, cujas designações são hoje completamente desconhecidas. Apenas, os varinos, os botes, os catraios e as canoas conseguiram sobreviver até aos nossos dias, através de projetos de recuperação de alguns exemplares, levados a cabo quer pelas autarquias locais, quer pelas associações náuticas e particulares. Considerando a informação fornecida pelo Archivo Pittoresco (1860)3, no artigo intitulado “Marinha do Tejo”, dos vários modelos de embarcações, os varinos eram as que existiam em maior quantidade, ocupando dignamente o segundo lugar, com 431 embarcações matriculadas na repartição municipal de Lisboa, logo a seguir aos botes, com 510 exemplares. Esta representatividade tipológica de varinos deve-se, em grande parte, às suas características morfológicas, entre as quais destacamos o fundo chato e a pouca quilha ou ausência dela, o que permitiram a sua fácil adaptação às especificidades das zonas navegáveis em que operavam, como são os esteiros, em que a navegabilidade é difícil devido à pouca profundidade das águas e à sua facilidade em deslizar nesses canais que, durante as marés baixas, deixam a descoberto os fundos lodosos. Adequando-se perfeitamente às condições naturais da bacia hidrográfica do rio, de acordo com as funções de utilização para as quais eram aproveitados, tais como transporte do sal, da palha, da cortiça e dos produtos agrícolas, entre outros, os varinos foram o tipo de embarcação que mais aumentou, no ano de 1860, com um número registado de 431exemplares, distribuídos pelas terras e cais das duas margens do Tejo, da seguinte forma: Abrantes 190; Alcochete 8; Aldegalega 3; Alcântara 4; Alfama 3; Boa Vista 24; Barquinha 75; Constança 51; Chamusca 5; Cais do Sodré 13; Cais do Tojo 30; Cais da Pedra 22; Lavradio 2 e Ribeira Nova 1.4 Tais quantitativos traduzem a importância económica que estas embarcações detinham neste circuito fluvial e mercantil, em que a cidade de Lisboa era por certo o grande entreposto, onde se
1
“Marinha do Tejo” in Archivo Pittoresco, Semanário Ilustrado, Volume III, Lisboa, Typographia de Castro e Irmão, 1860, p. 380 ARANHA, Brito, “Varino” in A Gravura de Madeira em Portugal, Lisboa, 12ª. Série, Empreza Horas Românticas Editora, 1872, p.8 3 Op. cit., p.380 4 Op. cit., p.381 2
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concentrava diariamente, grande parte dessa frota que, aí levava as mercadorias, provenientes das povoações ribeirinhas. É também de notar que o maior número de varinos pertencia então a Abrantes, seguido da Barquinha e Constança. Curiosamente, nesta mesma data, a Moita ainda não dispunha de nenhum registo de varinos, apenas contabilizava 9 fragatas, 6 botes e 4 barcos5, no total de 19 embarcações que funcionavam no cais da vila, na atividade de transporte fluvial dos diferentes produtos locais. NÚMERO DE EMBARCAÇÕES LUGAR AVEIROS BATEIRAS Abrantes 190 Alcochete 8 Aldea Gallega 3 Alhos Vedros Amora Arrentella Alcântara 4 Alfama 3 Barreiro Boa-Vista 24 Belem Barquinha 75 Constança 51 Caes Novo Chamusca 5 Caes do Sodré 13 Caes do Tojo 30 Caes da Pedra 22 Cascaes Cacilhas Fundição Junqueira Moita Paço d’Arcos 4 Porto Brandão Lavradio 2 Pampulha Samouco Trafaria Praia de Santos Tercenas Ribeira Nova 1 Terreiro Seixal TOTAL
431
4
BARCOS
BARCOS DE MOINHOS
6 3 1
BATÉIS
1
1 1
FALUAS
1 35 1 4 2 2 16 19 4 28
5 9 1
2
1 3 1 1 1
85 12 88
33
1
3
4 3 1 1 1
4
30 13 1 6 1 21 11 1 5 2 73 5 43
27
34
8
FONTE: Archivo Pittoresco, Volume III-1860, p. 381
5
BOTES
Barco era uma designação genérica aplicada a uma embarcação miúda de navegação fluvial.
510
18
FRAGATAS TOTAL 190 20 51 3 4 2 6 19 1 23 8 37 28 75 51 1 5 20 121 28 104 38 150 4 30 3 16 1 9 19 8 26 3 2 14 1 5 1 3 1 1 74 5 43 111
1.143
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Embora os varinos não fossem uma presença no concelho da Moita, faziam parte da paisagem fluvial do Tejo e o seu grande número indicia um tráfego intenso, o que nos leva a interrogar sobre a questão da proveniência deste tipo de embarcações. Tanto mais que, no último quartel do século XVIII, o varino não aparece representado na coleção de gravuras do Caderno de todos os Barcos do Tejo, tanto de Carga e Transporte como de Pesca (1785)6, de João de Souza, lente de arquitetura naval e desenho da Companhia de Guardas Marinhas, o que suscita alguma estranheza. Mesmo se considerarmos que houve um cuidado em representar neste álbum todos os modelos de barcos do Tejo, como o próprio título enuncia, mais admiração causa essa omissão. Tal facto só pode significar que os varinos ainda não faziam parte deste cenário, na centúria de setecentos. Recorrendo de novo ao artigo publicado no Archivo Pitoresco (1860), verificamos que nesse tempo os varinos eram designados genericamente de aveiros e esclarece-nos que essa denominação está relacionada com o local de origem da embarcação: “Depois dos botes são os varinos os que em maior numero sulcam o Tejo. Esta denominação que elles tem no vulgo não vem em nenhum diccionario da lingua, e tambem na repartição do imposto que elles pagam em Lisboa tal se lhes não chamam, mas aveiros, nome generico para todos os barcos que vem do districto de Aveiro.(…) O monaio é uma especie de varino da mesma procedencia, mas tem diversa armação, (…).” 7 Esta fonte faculta-nos uma informação muito importante, na medida em que nos permite compreender como eram atribuídos os nomes às embarcações, sendo então comum associar-se-lhes os topónimos das localidades da sua proveniência. Aliás, esta situação não parece que seja uma novidade, já que no século XVIII, no referido álbum das embarcações do Tejo, de João de Souza, as suas designações são acompanhadas dos nomes das respetivas terras de origem, para assim se distinguirem umas das outras. Entre os vários modelos aí registados, salientamos, a título de exemplo, alguns deles, como a barca de Aldea Galega, a fragata de Alcochete, o barco de Cascaes, o saveiro da Costa e o saveiro do Tejo. Segundo António Nabais8 foi a partir desta centúria setecentista que começou a ocorrer uma individualização tipológica das embarcações do Tejo, até aí não havia essa diferenciação. A corroborar esta opinião temos as informações documentais inseridas no Livro de Arrematações9 da vila da Moita que nos fornecem preciosas indicações sobre a atividade fluvial, em que é evidente a aplicação do termo genérico de barco para qualquer embarcação de tráfego fluvial, com raras exceções para as bateiras que surgem já com essa identificação. Só a partir do fim do século XVIII e primeira metade do XIX, deparamo-nos, ao longo das fontes documentais do Arquivo Histórico da Câmara da Moita, com as primeiras referências a botes e faluas. Feito este pequeno aparte sobre a nomenclatura tipológica, retomamos a análise da zona de origem do varino, recorrendo, para o efeito, às opiniões de alguns autores que se debruçaram sobre estas abordagens. No início do século XX, encontramos um testemunho muito interessante sobre esta matéria, no artigo intitulado
6 SOUZA, João de, Caderno de todos os Barcos do Tejo, tanto de Carga e Transporte como d’Pesca (1785), Edição fac-similada da Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1986. 7 Marinha do Tejo” in Archivo Pittoresco, Semanário Ilustrado, Lisboa, Volume III, Typographia de Castro e Irmão, 1860, p. 380 8 NABAIS, António, “Barcos do Tejo” in Dicionário da História de Lisboa, Lisboa, 1994, p.148 9 Livro de Arrematações 1706-1715
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“Barcos da Ria de Aveiro”, de Luís Magalhães, no qual fez a seguinte menção e que não podemos deixar aqui de citar: “(…) as enviadas, embarcações grandes d’um tipo aproximado ao dos mercanteis, que aproveitando as bonanças e a favorável monção da primavera saem por mar para Lisboa, carregadas de madeira, sal e casca de carvalho ou salgueiro para o encasque das redes. Tripulam-nas apenas, dois ou três homens, que por único instrumento de marear levam uma tosca e ordinária bússola. Negociada a carga, o dono da enviada vende de ordinário o barco, que é conhecido no Tejo pelo nome de varino e que ahi fica, ou empregado na pesca da sardinha (tarrafa) ou na carga e descarga de navios. E feito o negócio, volta para a sua Terra, com o velame do barco e o producto d’esta curiosa especulação.” 10 Em 1940, Rocha Madahil, no artigo “Barcos de Portugal”, fez um comentário sobre esta migração de homens e barcos da Ria de Aveiro para o sul, em tudo muito semelhante, com o autor anteriormente citado, como podemos constatar no seguinte excerto: “Tudo passa e se moderniza, que é lei natural; de Ílhavo, pátria essencialmente de marinheiros, iam ao Tejo, na monção da Primavera, no século passado, umas barcaças, que chamavam Enviadas, tripuladas por dois homens apenas, levando por único instrumento de bordo … um relógio de sol, que custava um vintém. E lá iam ter; vendiam o barco e a carga, e voltavam para Ílhavo, a pé!” 11 Lixa Filgueiras o grande estudioso do património náutico, na vertente das origens históricas e das suas tipologias, escreveu igualmente sobre a proveniência geográfica dos varinos, fazendo uma análise comparativa entre o passado e o presente, no artigo intitulado “Barcos”, cujo extrato passamos a transcrever: “O varino, descende da enviada que os Ílhavos deixavam no Tejo, com carga e tudo, voltando para casa por terra, tal como se encontra representado em “Souvenirs de Marine Conservés” (1880), ainda que mantenha o aspecto duma grande bateira de duas proas, com dois cobertos e respectivas câmaras, leme de xarolo12 e gualdropes13, ostenta já aparelho mais evoluído que o simples pendão de amurar ao mastro, arvorando um mastro muito inclinado para trás, em banco adiantado sobre a proa, e, o que parece muito mais estranho, tem uma quilha falsa, baixa e larga, estabelecendo continuidade com as rodas da proa e da ré, não recobertas pelo tabuado dos costados, quilha que não dispensa a pá da tosta14. Nos varinos de hoje a quilha não existe, mas o casco é bojudo e remata com uma roda da proa bem acusada e popa de painel, em que sobressai o cadaste, mais o ressalto correspondente ao tornejo dos reforços das bordas. O aparelho, além de uma ou duas velas de estai, substituiu o latino triangular por um quadrangular.” 15 Em todos os autores citados, há um pormenor a reter, todos são unânimes quanto à zona de proveniência dos varinos, ou seja, há uma identificação inter cultural das origens do varino com a zona geográfica da Ria,
10
MAGALHÃES, Luís de, “Os Barcos da Ria de Aveiro” in Portugália – Materiaes para o estudo do Povo Portuguez, Volume 2, Porto, 1905, p.61 MADAHIL, Rocha, “Barcos de Portugal” in Vida e Arte do Povo Português, Edição do Secretariado da Propaganda Nacional dos Centenários, Lisboa, 1940, pp.56-57 12 O xarolo é uma vara de madeira com o comprimento de dois metros e meio, colocada transversalmente na cachola do leme e à qual se prende uns cabos, designados de gualdropes, a partir dos quais o arrais da embarcação manobra o leme. 13 Os gualdropes são cabos de reger o leme de xarolo. 14 A pá da tosta consiste em duas peças de madeira largas, montadas nas bordas a meio da embarcação, a bombordo e estibordo, com a finalidade de ajudarem nas manobras quando se encontra a bolinar. 15 FILGUEIRAS, Octávio Lixa, “Barcos” in A Arte Popular em Portugal, 3º Volume, Lisboa, Verbo, 1963, pp.386-387 11
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centrada no pólo Aveiro / Ílhavo. Segundo os mesmos estudiosos, a embarcação que antecede o varino foi a enviada, deixada pelos ílhavos nas suas deslocações sazonais à cidade de Lisboa. Dos autores citados, Lixa Filgueiras é o único que nos documenta com precisão as características básicas identificativas da enviada, sendo esta descrita como tendo o aspeto de uma grande bateira de duas proas, integrando duas cobertas, leme com xarolo, manobrado por cabos, os gualdropes, mastro inclinado para a ré, pá da tosta16 e uma quilha falsa, ou seja, uma tábua grossa, um pouco saliente, onde se iam ligar a roda de proa e da ré. Ora uma análise comparativa desta embarcação, pertencente a um contexto geográfico e funcional do passado, com o varino do Tejo, tal como Lixa Filgueiras expôs, permite-nos concluir que houve uma pequena evolução no modelo, visível na popa de painel, na cana de leme e no desaparecimento das pás de tosta, mantendo-se as características da proa muito arqueada, das duas cobertas, do fundo chato, sem quilha, tendo em seu lugar uma tábua que desempenha as mesmas funções daquela peça, ao estabelecer a continuidade e junção entre a roda de proa e o cadaste. No velame apenas assistimos à substituição da vela latina triangular por uma quadrangular, complementada por uma ou duas velas de estai, no caso particular do varino municipal “O Boa Viagem”, tem somente uma vela de estai. Estas pequenas diferenças aqui assinaladas são, sem dúvida, um reflexo do aproveitamento e da assimilação de um modelo de embarcação que foi adaptado às condições de navegação do Tejo e às necessidades locais das populações ribeirinhas. Naturalmente que estas alterações foram feitas gradualmente, ao longo da centúria de oitocentos, pelos proprietários das embarcações, quer na forma do casco, mais bojudo, da popa em painel, do leme e da disposição interior do espaço, quer no aparelho vélico, de modo a ajustarem-se às diferentes funções da embarcação e às especificidades das zonas navegáveis do Tejo. Embora seja difícil determinar com exatidão como e em que data ocorreram estas modificações, a sua evolução para o modelo como hoje o conhecemos terá sido feita, na base de uma congeminação entre proprietários e construtores navais, tendo em consideração as necessidades de carga e as condições geográficas locais. Relativamente à identificação funcional das embarcações, Luís de Magalhães referiu, no excerto atrás citado, que a enviada, conhecida no Tejo pelo nome de varino, era utilizada tanto na captura da sardinha, como no transbordo de navios. Na última década do século XIX, Baldaque da Silva já tinha evidenciado a vertente piscatória das embarcações que vinham, com as suas tripulações, em fluxos migratórios do distrito de Aveiro para o Tejo, para se dedicarem à pesca costeira da sardinha, com a tarrafa17 e à pesca do sável no rio. Nestas campanhas, realizadas em determinadas épocas do ano, no período compreendido entre o fim do inverno e o início da primavera, utilizavam-se “uns grandes barcos de fundo chato, e proa e poupa terminadas em bico recurvado, denominados ílhavos, (…) tripulados cada um por quinze homens, (…).” 18 No fim da temporada regressavam a casa, com o pecúlio ganho. Pelo número de tripulantes depreende-se que estas embarcações já detinham alguma dimensão. As suas particularidades, fundo chato, proa e popa acentuadamente recurvadas, fazem-no aproximar-se da embarcação
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Segundo o mestre da nossa embarcação municipal, o João Gregório, o pau da tosta era identificado aqui no Tejo como o pau de borda e só era utilizado nas embarcações de fundo chato. 17 Rede de pesca. 18 SILVA, A. A. Baldaque da, Estado Actual das Pescas, Volume I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1891, p.240
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tipo enviada, já anteriormente aludida. Estes ílhavos também eram conhecidos, em Lisboa, como varinos, precisamente devido à persistência das suas características particulares. Aliás, Rocha Madahil no seu artigo “Barcos de Portugal” salientou esta identificação do seguinte modo: “Da Ria provém ainda o Esgueirão, bateira de pesca, que no século XVIII documentos nos dizem se ter fixado na Foz do Mondego, e que no Cabo da Roca, no Tejo, Espichel e Cezimbra, com dimensões variáveis, é conhecida por Ílhavo da Tarrafa, e se emprega na pesca da sardinha; é também de fundo chato, e utiliza remos e vela latina. Na Afurada dão-lhe o nome de Varino, e assim são conhecidos também cumulativamente com o nome acima registado, no Tejo, no Sado, em Lagos e em Portimão, por todos os portos de pesca êsse tipo de embarcação se espalhou, ido da Ria de Aveiro e tripulado por murtoseiros e ilhavenses.” 19 Destes contactos inter culturais20 que se desenvolveram ao longo da centúria de oitocentos, com uma maior incidência no último quarteldo século XIX, ficaram as formas (o arredondamento da proa para dentro), a estrutura (fundo chato, sem quilha) e os nomes das embarcações, umas especializadas na pesca e outras no transporte. Tudo isto leva-nos a admitir uma unidade cultural em termos de tipologia destas embarcações que, provenientes da zona da Ria de Aveiro, apresentavam singularidades que lhes eram comuns, o que levava as populações ribeirinhas locais da zona de Lisboa, a identificá-las com a mesma nomenclatura, independentemente das suas funções de utilização. Tal facto leva-nos a pensar que nessa época, o Tejo era frequentado por muitas embarcações da mesma família que oriundas da Ria, eram detentoras das mesmas características. Terão sido esses aspetos particulares dos modelos da Ria de Aveiro que se impuseram e se reproduziram, entrecruzando-se com as formas dos modelos de embarcação locais. Este mesmo pensamento foi defendido por Lixa Filgueiras que, ao longo dos seus vários estudos, definiu o varino como sendo “um híbrido de grande interesse documental”21, resultante de um fenómeno de aculturação, cujo tipo se enraíza nos modelos de proa e popa curva, sendo, no entanto, já um modelo de expressão local22. Efetivamente, se compararmos os modelos do passado, enviada e ílhavo, ambos identificados, pelos vários investigadores, como varinos, com as atuais embarcações, pertencente à mesma tipologia, verificamos influências, visíveis no fundo chato, sem quilha e na proa pronunciada e curva, bem como transformações, nomeadamente, no painel de popa e outras que terão ocorrido de uma forma evolutiva até chegar ao modelo como hoje o conhecemos. Alterações que foram sendo adaptadas à embarcação, de acordo com os serviços de transporte prestados para os quais se vocacionou, com a capacidade de carga e com as circunstâncias físicas do estuário do Tejo. Os requisitos de navegação nestas águas do rio, pouco profundas e de grandes velocidades nas marés vivas, levaram à opção de um tipo de embarcação, cujas características vencessem estas dificuldades fluviais, impostas pela natureza hidrográfica do Tejo. Sobre estas especificidades de navegabilidade local e as características do varino como embarcação adequada ao contexto geográfico,
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MADAHIL, Rocha, “Barcos de Portugal” in Vida e Arte do Povo Português, Edição do Secretariado da Propaganda Nacional dos Centenários, Lisboa, 1940, pp. 61-62. 20 Entre a zona da Ria de Aveiro, o estuário do Tejo e a cidade de Lisboa. 21 FILGUEIRAS, Octávio Lixa, Construções Navais Portuguesas, Coimbra, Separata do Volume I das Atas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso Brasileiros, 1965, p.11 22 FILGUEIRAS, Octávio Lixa, “Barcos” in A Arte Popular em Portugal, 3º Volume, Lisboa, Verbo, 1963, p.386; “No Crepúsculo das Embarcações Regionais” in Separata do Colóquio do XXIX Congresso Luso Espanhol, Tomo III, Lisboa, 1970, p.15
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Pinto Bastos no seu artigo “As Embarcações que Navegam no Tejo”, publicado na Revista do Exercito e da Armada (1893), escreveu o seguinte: “Os varinos podem carregar de 25 a 30 toneladas, (…). No Tejo navegam entre 100 e 150 d’estes barcos. Manobram com muita perícia o que se torna necessário no nosso rio onde as fortes correntes e rajadas de vento exigem muita habilidade para navegar e atracar a navios, barcos, que sendo de fundo chato, rolam extraordinariamente para sotavento.” 23 Os varinos foram concebidos não só para retirarem as maiores vantagens de navegação, face aos ventos, às correntes e às marés, como também para cumprirem as funções de transporte de diferentes cargas. Para o efeito, houve necessidade de aumentar a sua capacidade interior, o casco passou a ser mais bojudo e os bordos24 passaram a ser mais altos, com uma roda de proa mais comprida e curva mais prolongada, a terminar no caneco ou capelo, peça também arqueada e revirada para o interior. Aliás como referiu Pinto Basto no seu artigo, já acima citado: “O casco interiormente pouco differe do das fragatas e exteriormente assemelha-se ao dos barcos d’água acima ou culés25 a não ser na pintura que é mais modesta. Como nos barcos d’água acima as cintas elevam-se à proa26 e vão-se juntar com a roda terminando em ponta.”27 A sua capacidade de assentar nos fundos, nas marés baixas, de transportar grandes cargas e de flutuar, devido ao casco bojudo, converteram o varino numa das embarcações mais bem-sucedidas no tráfego fluvial do Tejo e que conseguiu resistir às vicissitudes do tempo. Este resultado só foi possível devido também à habilidade engenhosa das populações locais que os conceberam e construíram, ao saber aproveitar com utilidade os modelos de proa curva, adaptando-os, com as essenciais modificações, às necessidades de transporte e zonas navegáveis do Tejo. Enquadrando-se nesta linha dos barcos de carga, temos o varino municipal “O Boa Viagem” que partilha das características, já referidas nas linhas anteriores e plenamente adequadas às especificidades locais, quer quanto à forma e dimensão do casco, quer quanto ao aparelho. Tal permite-nos fazer a caracterização tipológica da nossa embarcação municipal “O Boa Viagem”, concretamente nas suas particularidades que mais contribuem para a sua diferenciação enquanto varino. Assim, o casco é rematando com popa de painel e à vante, com uma roda de proa bem acentuada na curvatura, encimada pelo caneco ou capelo também aduncadamente recurvo para dentro. O fundo é chato, apresentando apenas uma tábua que desempenha as mesmas funções da quilha, isto é, servir de base e ligação às peças do cavername, roda de proa e cadaste. Sem quilha, fundo chato e pouco calado são algumas das particularidades que o distingue das outras embarcações, permitindo-lhe navegar nos esteiros e repousar equilibradamente nos fundos lodosos, durante as marés baixas. É dotado de uma cana de leme que se encontra montada na popa, no plano longitudinal do cadaste, serve para manobrar e reger a embarcação. Tem ainda duas cobertas, a da proa e da ré, com as
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BASTOS, A. J. Pinto, “As Embarcações que Navegam no Tejo” in Revista do Exercito e da Armada, Lisboa, Tip. do Diccionário Universal Portuguez, Nº.1, maio de 1893, p.450. 24 Os bordos são os lados da embarcação, acima da linha de água. 25 Lixa Filgueiras no seu artigo “Barcos” classificou quanto ao casco, os barcos de água acima ou culés, como sendo pequenos varinos de pau de aresta. “Barcos” in A Arte Popular em Portugal, 3º Volume, Lisboa, Verbo, 1963, p.387. 26 O autor está referir-se às peças que designamos atualmente por mãozinhas de cinta. 27 Idem, Ibidem, p.450
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respetivas anteparas. Em tempos, estas cobertas funcionavam como camaratas para descanso da tripulação e para guardar a palamenta. Para navegar à vela, arvora um mastro inclinado para a ré, implantado no convés da proa, onde larga uma vela latina quadrangular que trabalha no sentido da proa para a popa e uma vela de estai, situada à vante, frente ao mastro. Trata-se de um aparelho de verga, já que o pano da vela grande encontra-se ligado a uma verga ou carangueja, da qual se suspende, quando navega. A verga está, por sua vez, apoiada de forma inclinada ao mastro, de modo a obter os melhores resultados, no aproveitamento da força do vento. Antigamente a propulsão era feita à vela, mas quando não havia ventos favoráveis era feita à vara28, por um ou dois homens que descalços, sobre o alcatrate, iam empurrando a embarcação com a vara encostada ao peito e com a outra extremidade firme no fundo do rio. Este movimento era feito repetidas vezes, desde a proa até à ré, fazendo assim deslocar vagarosamente a embarcação. Este sistema ficou conhecido no meio marítimo por “andar à vara”. Era um trabalho muito árduo e desgastante. Atualmente, além da vela, utiliza-se o motor como meio de propulsão do varino, sobretudo nas ocasiões em que há falta de ventos. Esta beneficiação que “O Boa Viagem” recebeu em 1998, teve precisamente como objetivo contrariar estas adversidades naturais, possibilitando a realização de passeios fluviais no Tejo, independentemente da existência ou não de ventos favoráveis.
28 A atual vara do varino “O Boa Viagem” é de madeira de eucalipto, tem uns cinco a seis metros de comprimento e faz parte da palamenta da embarcação.
1.2. HISTÓRIA DO VARINO “O BOA VIAGEM”
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1.2. HISTÓRIA DO VARINO “O BOA VIAGEM” “Com as fragatas competem os varinos. Fragatas e varinos formam hoje a massa afadigada e vistosa do movimento de mercadorias e cargas da navegação à vela no Tejo.”1 A demanda de fontes documentais para construirmos a história da embarcação municipal, tipo varino “O Boa Viagem”, conduziu-nos ao Arquivo da Marinha, onde encontrámos alguns elementos, referentes a registos de propriedade que nos permitiu fazer aqui um pequeno escorço histórico. Embora a investigação não tenha fornecido a informação que nos possibilitasse determinar o ano de sua construção, bem como a identificação do estaleiro, facultou-nos o registo oficial, mais antigo que temos conhecimento, datado de 30 de julho de 1900, o que nos leva a crer que tenha sido construído no decorrer do século XIX. Trata-se do primeiro certificado2 do registo de propriedade, feito na Capitania do Porto de Lisboa, pelo fragateiro Emygdio Gonçalves. Este documento terá sido realizado, logo após a aquisição do varino, pelo seu proprietário, de modo a garantir-lhe legalmente não só o direito de posse, como também o de uso da embarcação, no trabalho de transporte de carga e de pessoas, já que tinha uma lotação de oitenta e três passageiros. A referida certidão dá-nos ainda a conhecer o número de matricula 77 E 68, o nome da embarcação “Marechal Saldanha”, a identificação do cais do Aterro a que pertencia e as dimensões3, cujas medidas já não correspondem com as atuais, devido às alterações que sofreu a nível da sua arqueação, em época posterior. Faculta também a indicação do número máximo e mínimo de tripulantes que eram necessários para colocar o varino a navegar, quatro e dois homens respetivamente. Curiosamente neste ano de 1900, a embarcação dispôs de duas tripulações4, cada uma constituída por três elementos, a primeira integrava um arrais, natural de Ovar, Francisco Maria Roiz Cação e dois camaradas, Bernardo Pinho Roqueira, natural também de Ovar e Tibúrcio Lourenço, de Sintra; a segunda era composta por um arrais, António Maria dos Santos, natural de Lisboa e dois camaradas, Américo Cunha Branco e Fernando de Oliveira Pinto, ambos naturais de Ovar. Esta informação não deixa de ser interessante, pelos informes que nos fornece quanto à procedência dos seus tripulantes, na maioria oriundos de Ovar, o que confirma a importância, nesta época, das migrações dos homens da região da Ria de Aveiro para o Sul, na expectativa de conseguirem um trabalho que lhes proporcionasse melhores condições de vida. A cidade de Lisboa seria por certo um pólo de atração para estas gentes vindas do Norte do país, não só pela oferta, por certo, mais diversificada do mercado de trabalho, mas muito provavelmente pelos salários que aí auferiam. Importa referir, mais uma vez, que foi neste contexto histórico-cultural das deslocações migratórias que se integraram também a chegada das embarcações de proa e popa curva ao estuário do Tejo, cujos modelos foram a raiz para a construção do varino, assunto que já abordámos anteriormente.
1 CHAVES, Luís, “Barcos das Águas Estremenhas” in Lisboa nas Auras do Povo e da História – Ensaios de Etnografia, Volume II, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1961, p.190 2 Arquivo Histórico da Marinha, Documentos de Registo de Propriedade de Embarcações Miúdas 1899-1912, Cx. 2028 3 O varino “Marechal Saldanha” tinha assim as seguintes dimensões: • Comprimento: 19,47 metros; • Boca: 5,05 metros; • Pontal: 1,70 metros. 4 Arquivo Histórico da Marinha, Matrículas de Embarcações Fluviais 1872-1912, Livro Nº.115, Fls. 246v, 247.
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Ao examinarmos os dois quadros abaixo apresentados, sobre a tripulação do varino, verificamos que no ano de 1900, o valor de remuneração do arrais era de dezoito mil reis, enquanto os camaradas recebiam cada um, treze mil e quinhentos reis. A diferença de quatro mil e quinhentos reis (4$500) entre a soldada paga ao arrais e aos camaradas, dá para avaliar a importância e o sentido de responsabilidade que era atribuído às funções do mestre da embarcação. No ano de 1902, a sua soldada foi aumentada para dezanove mil reis, valor que se manteve até 1910. É de notar também que todos os anos os arrais eram substituídos, o que não deixa de ser uma situação estranha, tal facto leva-nos a crer que seriam, anualmente, contratados ou então eram transferidos para mestres de outras embarcações do mesmo proprietário, já que este detinha uma grande frota5 de fragatas e varinos a navegar no Tejo, no transporte de cargas. LISTA DOS ARRAIS DO VARINO ANO ARRAIS 1900 Francisco Maria Roiz Cação 1900 António Maria dos Santos 1902 José Luis Pereira 1904 Luiz Teixeira de Pinho 1906 Domico Vieira 1907 Victor Manuel 1907 João Marcellino Fernandes 1908 João Marcellino Fernandes 1909 João Alves Peixe 1910 João Alves Peixe 1912 João Alves Peixe 1963 Francisco dos Santos
ESTADO CIVIL Casado Casado Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro
NATURAL Ovar Lisboa Salvaterra Lisboa Aldeia Gallega Abrantes Alvega Alvega Abrantes Abrantes Abrantes Gaio
IDADE 34 Anos 32 Anos 26 Anos 29 Anos 52 Anos 40 Anos 32 Anos 33 Anos 26 Anos 27 Anos 28 Anos 42 Anos
SOLDADA 18$000 Reis 18$000 Reis 19$000 Reis 19$000 Reis 19$000 Reis Apartes 19$000 Reis 19$000 Reis 19$000 Reis 19$000 Reis 21$000 Reis 47$50 Escudos
TRIPULAÇÃO DO VARINO ANO CAMARADAS 1900 2º. Camarada Bernardo Pinho Roqueira
ESTADO CIVIL Casado
NATURAL Ovar
IDADE 42 Anos
SOLDADA 13$500 Reis
3º. Camarada Tibúrcio Lourenço
Solteiro
Sintra
17 Anos
13$500 Reis
2º. Camarada Américo Cunha Branco
Solteiro
Ovar
18 Anos
13$500 Reis
3º. Camarada Fernando d’Oliveira Pinto
Viúvo
Ovar
17 Anos
13$500 Reis
1900
1963
5
1º. Camarada João Hermenegildo Fernandes
44$00
2º. Camarada Armando Roque de Miranda
42$50
Entre as várias embarcações de que Emygdio Gonçalves era possuidor, destacamos a “Luz do Dia” com 29,70 toneladas, “Ayda” com 49,70 toneladas; “Aurora” com 43,89 toneladas; “Eolo” com 31,31 toneladas e “Inglaterra” com 43,90 toneladas.
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O “Marechal Saldanha” manteve-se, assim, até ao ano de 1907, na posse do proprietário Emygdio Gonçalves. Durante sete anos, cumpriu a sua missão, ao efetuar o transporte de mercadorias e passageiros, não só no cais do Aterro, na cidade de Lisboa, mas muito provavelmente entre as povoações ribeirinhas. A 10 de julho de 1907, o varino foi vendido, pela quantia de um conto de reis, ao armador Albano José António Leite que mantinha sociedade com sua irmã Maria das Dores Leite. Esta transação foi alvo de uma escritura6, assinada entre o vendedor e os compradores, com a presença de duas testemunhas para dar legitimidade ao ato comercial, o que traduz per si o valor económico que era atribuído às embarcações, só equiparado aos bens imóveis (casas ou terras). Neste diploma, foi declarado, pelo vendedor Emygdio Gonçalves, que a embarcação não estava sujeita a quaisquer encargos, ou seja, tudo o que fosse relacionado com o pagamento de obrigações, bem como a realização anual de vistorias, pela Capitania do Porto de Lisboa e respetivos ónus que daí advinham, tinha sido tudo regularizado e cumprido no tempo legal. Tal situação é-nos testemunhada pelo já mencionado certificado do registo de propriedade que nos fornece as datas das vistorias e o pagamento de dois mil, quatrocentos e oitenta e oito reis (2$488) pela arqueação, título e excesso de onze passageiros. Pela mesma escritura, Emygdio Gonçalves comprometia-se a vender a embarcação “com todos, os seus aprestos, pertences e aparelhos, em que se comprehende a lancha, e dois jogos de vellas, para d’ella gosarem em comum: (…) pelo preço de um conto de reis, que d’eles recebeu n’este acto, em partes eguaes e em moeda corrente,” e nesse seguimento cedia e transferia “nos compradores, todo o direito, domínio e posse, que tinha na embarcação vendida e suas pertenças:”.7 Definidas as cláusulas pelas quais se procedia a venda, os segundos outorgantes aceitaram a respetiva compra do varino, nos termos consignados na escritura, sendo este pago em partes iguais e na moeda corrente, pelos dois irmãos. Estas mesmas disposições permitem-nos avaliar como era relevante este tipo de transações, na medida em que nos dão a conhecer as normas em que se moviam este grupo de proprietários, ligados a uma relevante atividade económica, como era o transporte fluvial de mercadorias ao longo do Tejo. Deste tráfego dependia o escoamento dos produtos e consequentemente a prosperidade de muitas das localidades ribeirinhas. A embarcação ao passar para a propriedade de Albano José António Leite e sua irmã, aquele atribuiu-lhe o seu primeiro nome, sendo registada na Capitania do Porto de Lisboa, com a nova designação, “Albano I”, mantendo, contudo, o mesmo número de registo 77 E 68. No requerimento feito pelos intervenientes, em que foi solicitado o registo do varino em nome dos novos proprietários, foi igualmente especificado o fim para a qual a embarcação se destinava, referindo que a pretendiam utilizar no mesmo tipo de serviços anteriores. Embora se desconheça o género de produtos que então transportava, sabemos que fazia também o transporte de passageiros. Ora parece que no tempo do armador Albano Leite, o varino “Albano I” especializou-se num determinado tipo de transporte, o da cortiça. Segundo informação transmitida, por um dos seus últimos arrais, Francisco dos Santos, natural do Gaio, esta embarcação fazia o transporte de cortiça em bruto e trabalhada, produzida nas fábricas do Seixal, Alhos Vedros, Moita, Montijo e Vila Franca de Xira. Os carregamentos eram
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A escritura foi redigida no cartório, sedeado na rua d’El-Rei, em Lisboa, pelo notário José Carlos Rodrigues Grillo. Arquivo Histórico da Marinha, Documentos de Registo de Propriedade de Embarcações Miúdas 1899-1912, Cx. 2028
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feitos nos locais, mediante o fretamento da embarcação, através de contratos realizados, entre os industriais e o armador. Além deste serviço, o “Albano I” fazia, algumas vezes, o trabalho de baldeação, isto é, era utilizado na carga e descarga de navios, pois tratando-se de um barco de fundo chato podia ir receber carga a pontos inacessíveis às fragatas, fazendo o transbordo das grandes embarcações para terra ou vice-versa. Este tipo de transporte era designado por carga geral e no testemunho do arrais Francisco Santos, era um trabalho pouco frequente, uma vez que o varino estava sempre contratado para efetuar o transporte da cortiça. Segundo as declarações deste mesmo arrais tratava-se de uma embarcação muito difícil de manobrar, negava a virada e passou a explicar a forma como procedia, nestes casos de maior dificuldade: “(…) eu metia-o a virar e ele negava-me a virada, (…) o barco não virava …, não obedecia, não virava o que é que eu tinha que fazer, mandar arrear logo o ferro, porque senão ia de proa à muralha, ele negava-me a virada, não virava, enchia a vela ia contra a muralha partia logo aquilo tudo, então eu dizia “arreia o ferro”, arreava o ferro, aguentava e então depois levava o ferro acima e continuava viagem.” 8 Por volta do ano de 1962 e com vista a aumentar a sua capacidade de carga, Albano Leite enviou a embarcação para o estaleiro naval do Seixal, de António Gravidão, onde foi submetido a uma grande recuperação. No decorrer desses trabalhos, aumentaram-lhe a sua arqueação que passou de 50 para 60 toneladas. Mas no dizer de Francisco Santos, foram 60 toneladas escassas, “o barco quando ficava com as 60 toneladas, ficava logo com a cinta a lavar a água, ficava logo sem mareagem nenhuma e então, (…) meteram o alcatrate maior para darem um pouco de altura mais. De maneira que estive lá uns seis meses e meio no renovo dele. (…) porque o barco não foi novo, ficou a parte do coice9, teve que ficar porque senão tinha que pagar mais dinheiro por fazer um barco novo (…) Pois como eu era o arrais do barco fiquei no renovo do barco.” 10 Este depoimento é elucidativo em relação aos trabalhos que foram efetuados no varino, no início da década de sessenta, dá-nos a conhecer que todas as peças foram substituídas, com exceção do coice ou cadaste, a única peça da construção primitiva da embarcação que foi conservada. Esclarece-nos ainda que as referidas alterações em termos de capacidade, pelo que parece, não corresponderam às expectativas reais que se pretendia da embarcação. Foi no prosseguimento deste processo de reconstrução que se procedeu à retificação da sua arqueação, na Doca do Poço do Bispo, no dia 15 de janeiro de 1963, de que resultou a produção de um novo documento, o Certificado de Arqueação, elaborado pela Capitania do Porto de Lisboa. Neste documento foram então registadas as novas dimensões11 do “Albano I”, exatamente as mesmas que as atuais. No mesmo ano de 1963, o varino aparece matriculado no Rol de Matrículas de Tráfego Local12, com o número L-611-TL, tendo como arrais Francisco Santos e dois camaradas, João Hermenegildo Fernandes e Armando Roque de Miranda. É interessante verificarmos que as remunerações pagas aos tripulantes são todas de valores diferentes, o arrais, responsável pela embarcação, tem uma soldada de quarenta e sete escudos e cinquenta centavos (47$50), superior aos restantes elementos, enquanto o primeiro camarada ganhava
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em dezembro de 2010. O coice é também designado por cadaste, constitui uma das peças estruturais da embarcação. 10 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em dezembro de 2010. 11 O varino passou a ter as seguintes dimensões: • Comprimento: 20,64 metros • Boca: 5,25 metros • Pontal: 1,45 metro 12 Arquivo Histórico da Marinha, Roles de Matrícula de Tráfego Local, nº. 2043 e 2044 9
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quarenta e quatro escudos (44$00), o segundo recebia somente quarenta e dois escudos e cinquenta centavos (42$50). Provavelmente estas diferenças, sobretudo entre os dois camaradas, estarão relacionadas com as categorias, em termos hierárquicos, que cada tripulante ocupava na carreira de marinheiro de tráfego local. Como não dispomos de mais dados de expressão numérica para procedermos a uma análise correlativa, ficamos por uma avaliação meramente superficial. O varino “Albano I” manteve-se na posse da família Albano Leite durante sessenta e oito anos, dedicando-se ao transporte de cortiça, quer entre as duas margens, quer entre as povoações das mesmas orlas ribeirinhas.
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O varino “O Boa Viagem” no cais da Moita, no ano de 1979. (Foto gentilmente cedida pelo João Gregório, Mestre da embarcação municipal).
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Entretanto a partir dos fins da década de sessenta, esta atividade de transporte fluvial, já manifestava sinais de decadência, em resultado da motorização das embarcações, do progresso da camionagem e da construção das pontes de Vila Franca de Xira e de Lisboa que abriu a possibilidade de todo esse transporte ser feito por via rodoviária. Os camiões tornaram-se, assim, sérios concorrentes da via fluvial, acabando por destronar, na década de setenta, o trabalho das embarcações tradicionais do Tejo. Em 1975 e decorrente das transformações económicas e sociais, acentuadas com a viragem do regime político em setenta e quatro, a embarcação “Albano I” transitou de propriedade e foi registada em nome de Transpormar Sociedade Cooperativa de
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Capa do desdobrável da Costa Azul com uma imagem da pintura da antepara da popa do varino “O Boa Viagem”, onde figura um par de dançarinos.
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Transportes Marítimos S.C.R.L. Perante o processo inevitável do desenvolvimento, como parte do devir histórico, a atividade fluvial extinguiu-se e o varino deixou de exercer as suas funções de transporte e, tal como aconteceu com outras embarcações, ficou votado ao abandono, encerrando, desse modo, um ciclo da sua história. Mas novos tempos se avizinhavam e atitudes de preocupação e preservação desse património começaram a surgir, sobretudo entre as gentes das povoações ribeirinhas, cujas vidas haviam sido marcadas pela memória dessas embarcações e da sua constante atividade fluvial. Assim, em 1979, por iniciativa de um grupo de particulares13, moradores na vila da Moita e na localidade do Rosário, foi solicitado, à Transpormar Sociedade Cooperativa de Transportes Marítimos, o empréstimo do varino “Albano I” para participar na cerimónia religiosa da “Bênção dos Barcos”, no cais da Moita, por ocasião das Festas em Honra de Nossa Senhora da Boa Viagem. Na sequência desse pedido, a embarcação foi cedida e os três marítimos conduziram-na, ainda com a sua velha vela, do Jardim do Tabaco de Lisboa até ao cais de pedra da vila da Moita, onde permaneceu uns meses. Engalanada para a ocasião especial de Festa, o varino passou a fazer parte do cenário do cais da vila, trazendo à memória das gentes locais toda a história de um passado ainda muito recente. Então a Câmara Municipal da Moita sensível às questões de preservação da identidade histórica da vila e do património naval, decidiu adquirir a embarcação para proceder à sua recuperação, sendo esta deliberação tomada em Reunião de Câmara14, realizada no dia 11 de Junho de 1980. Posteriormente seguiu-se o acto administrativo de compra da embarcação, tipo varino “Albano I”, à Transpormar Sociedade Cooperativa de Transportes Marítimos, pelo valor de sessenta mil escudos (60.000$00)15. No mesmo procedimento, foi apresentado o título de registo da embarcação da Capitania do Porto de Lisboa. Esta ação política teve a Câmara da Moita como pioneira e marcou o início de uma nova era, em que as autarquias locais desempenharam um papel preponderante na salvaguarda e recuperação das embarcações tradicionais. Um trabalho de grande mérito cultural, pois foi através destas iniciativas, seguidas mais tarde pelos particulares e centros náuticos16, que este tipo de património conseguiu sobreviver e chegar até aos dias de hoje. Ao processo de aquisição do varino seguiu-se a sua recuperação, trabalho que foi efetuado no estaleiro naval do Mestre José Lopes, no Gaio, pela quantia de quinhentos e dezanove mil, quinhentos e trinta e oito escudos (519.538$00).17 Aqui foi submetido às tradicionais técnicas de trabalho, tanto de carpintaria naval, como de calafeto e de pinturas. Pela primeira vez, o varino recebeu as pituras decorativas, características do concelho, pois enquanto propriedade do Albano Leite, apenas tinha as tintas para conservação das madeiras. Segundo testemunho do pintor Diogo Gomes as emendas eram azuis, as falcas verdes e o costado era preto. Após a recuperação passou a exibir um conjunto de elementos ornamentais surpreendentes nas cores, sendo de destacar o tema central da antepara, onde figurava um par de bailarinos, cuja imagem foi reproduzida
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Mário Mendonça, conhecido por “Marinho Fragateiro”; Manuel Sebastião, apelidado de “Manuel Raposo” e José Maria, todos marítimos. Acta de 11 de Junho de 1980, pp.3-4 e Acta de 11 de Março de 1981, p.3. 15 CMM, Escritura de Compra de Barco Varino in Livro de Notas Nº.15, Fl.50. 16 No concelho da Moita, o movimento associativo ligado às questões do património naval, teve início na década de oitenta, com a fundação do Centro Náutico Moitense, em 1 de dezembro de 1980, logo seguido pela Associação Naval Sarilhense, em 9 de agosto de 1987 e por último a Associação de Desportos Náuticos Alhosvedrense “Amigos do Mar”, em 18 de maio de 1988. 17 “Recuperação do Património Histórico-Cultural” in Boletim Municipal, Nº.5, de setembro de 1982, p.7 14
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na capa do desdobrável sobre o concelho da Moita, editado em 1991, pela Região de Turismo da Costa Azul. Este tema foi posteriormente substituído pela imagem atual da Nossa Senhora da Boa Viagem. No decurso da mudança de propriedade, o varino passou a ter um novo número de registo 605BR5 e uma nova denominação “O Boa Viagem”, nome que foi atribuído pela autarquia, tendo em consideração a devoção religiosa local à Nossa Senhora, a padroeira da vila e a advogada dos marítimos. Deste processo resultou a emissão do Livrete da embarcação, pela Delegação Marítima do Barreiro e, que constitui o cartão de identidade do varino. No dia 11 de setembro de 1981, no contexto das Festas Tradicionais, o varino foi então apresentado, no cais da vila da Moita, à população local e aos visitantes dos concelhos vizinhos, como um testemunho patrimonial, associado ao transporte fluvial, trabalho que marcou a ligação desta margem ao Tejo e à cidade de Lisboa. Numa Folha Informativa, produzida pelo Núcleo Sócio-Cultural da Câmara Municipal da Moita, fazia-se o seguinte convite: “O varino Boa Viagem, que chega hoje, dia 11 de Setembro à Moita, estará durante todo o período dos Festejos em exposição no Cais. Convidamos a população a visitá-lo, pois consideramos ser uma verdadeira obra de Arte o restauro executado pelo Sr. José Lopes e Ajudantes no Estaleiro do Gaio.” 18 A partir desta data, o varino passou a integrar o património municipal e começou a desempenhar funções culturais e didáticas, através da realização de passeios fluviais no Estuário do Tejo, enquadrando-se na missão de serviço público. Entre as várias atividades de cariz cultural, destaca-se a sua participação, logo no ano de 1982, na rodagem do filme documentário “A Epopeia dos Bacalhaus”, uma produção da RTP e IPC (Instituto Português de Cinema).19 Ao longo destes anos, foi sempre sujeito a trabalhos de manutenção e de beneficiação, com o objetivo não só de o valorizar enquanto peça patrimonial, como também de garantir uma maior qualidade aos passeios. Foi no âmbito desta perspetiva de valorização que, no ano de 1998, “O Boa Viagem” foi dotado de um motor marítimo e de instalações sanitárias, uma vez que na sua primeira intervenção estas benfeitorias não tinham sido consideradas, o que impossibilitava à partida a realização de passeios de longa duração e com determinado tipo de percursos como se fazem atualmente. Entre os anos de 2010 e 2011, a embarcação foi de novo submetida a uma grande intervenção que envolveu a própria estrutura, no estaleiro naval de Sarilhos Pequenos, sob a supervisão do Mestre Jaime Costa. Nesta recuperação foram utilizadas ancestrais técnicas de carpintaria naval, de calafeto e de pinturas tradicionais que iremos descrever na segunda parte deste trabalho. Após um ano no estaleiro, “O Boa Viagem” fez o seu primeiro passeio inaugural, no dia 18 de junho de 2011, marcando assim o início de um outro estádio da sua história, ao serviço da comunidade e na valência cultural e lúdica. Para o efeito, organiza-se anualmente um programa de passeios fluviais, de inscrição individual e em grupo, de acordo com o regime de marés, colocando à disposição dos utilizadores a possibilidade de conhecerem o estuário do Tejo e as suas margens na sua ampla diversidade (sapais, salinas, avifauna e testemunhos patrimoniais). Para complementar este programa de passeios e na perspetiva da prestação de um serviço público com qualidade, foi elaborado um desdobrável com um conjunto de percursos fluviais, com o objetivo de dar a conhecer aos grupos de utentes as diferentes e várias possibilidades de rotas, a realizar a bordo do varino “O Boa Viagem”. 18 19
“Varino Boa Viagem” in Folha Informativa, de 11 de setembro de 1981. “Recuperação do Património Histórico-Cultural” in Boletim Municipal, Nº.5, de setembro de 1982, p.7
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O varino “O Boa Viagem” no passeio inaugural, com o mestre João Gregório e o Paulo Guerreiro a içarem a vela grande. (Foto de José Presumido)
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O varino “O Boa Viagem” no passeio inaugural, realizado no dia 18 de Junho. (Foto de José Presumido)
2. RECUPERAÇÃO TRADICIONAL DA EMBARCAÇÃO 2.1. CORTE E TRATAMENTO DAS MADEIRAS
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Registar a memória do processo de recuperação do varino “O Boa Viagem” é contribuir não só para a valorização e conservação da embarcação municipal, enquanto património secular do Tejo, como também para a preservação das ancestrais técnicas de construção naval, a nível dos trabalhos de carpintaria, de calafeto e de pinturas tradicionais que, em muito, nos faz lembrar os processos e as técnicas utilizadas na construção das antigas embarcações que fizeram as viagens de exploração marítima. Evitar o desaparecimento destas memórias constitui uma das nossas preocupações, já que grande parte dos saberes técnicos, aplicados ao longo da recuperação do varino e que estão associados a ofícios tradicionais, tais como os de carpinteiro naval e de calafate, encontram-se atualmente em vias de extinção. Aliás o próprio estaleiro de Sarilhos Pequenos, onde decorreram todos os trabalhos com “O Boa Viagem”, é hoje o único do distrito de Setúbal, a proceder à recuperação em madeira, das embarcações tradicionais, com uma geração de profissionais que obtiveram a sua formação com o antigo mestre Jaime Costa1, constituindo, por isso, um importante repositório de conhecimentos, experiências e “saberes fazer” muito específicos que correm seriamente o risco de se perder. Registar aqui a recuperação do varino “O Boa Viagem”, é fazer perdurar no tempo a memória das diferentes artes navais que foram usadas com larga experiência, pelos carpinteiros e calafates, nesse processo de intervenção que decorreu ao longo de um ano de trabalho no estaleiro.
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Pai do atual mestre do estaleiro, Jaime Manuel Costa.
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2.1. CORTE E TRATAMENTO DAS MADEIRAS «Nesta terra temos dous generos de madeyra muy appropriadas para estas duas partes das naos, cadahum pera a sua: os quaes são souaro, & pinho. O souaro pera o liame, & o pinho pera o tauoado.» 2 Numa primeira fase do processo de recuperação da embarcação municipal foi necessário fazer uma seleção prévia das árvores de pinho manso e de pinho bravo ainda nos pinhais, para se proceder ao seu corte, na época mais adequada. Estas madeiras são, na época contemporânea, as tradicionalmente utilizadas na construção naval, o pinho manso para as peças do cavername da embarcação, devido às curvaturas naturais dos seus troncos e o pinho bravo para as peças direitas e de grande comprimento, tais como dormentes e tabuado. Curiosamente nem sempre assim sucedeu, ao estudarmos as obras dos teóricos do século XVI e XVII, como Fernando Oliveira3 e João Baptista Lavanha4, constatamos que o sobro era a madeira especialmente usada para a estrutura, por ser uma madeira rija, resistente à água e sobretudo devido à configuração torta dos seus ramos “(…) de tal maneira curuos, que parece forão criados so para esta Arte.”5 Enquanto que o pinho manso era aproveitado para o tabuado do costado, “(…) por q he brando, & tapado sem gretas, & não fende: & mays o seu çumo he engraxado, & resiste ao humor da aogua, que o não penetra. E também he cõtrayro ao bicho:”6 O pinho bravo já não era tão considerado como as anteriores madeiras na construção naval, por ser seca, leve e ter menos grossura e resistência à água, era utilizado nas obras mortas que não estavam em contacto com a água do mar, assim como também nos mastros e vergas das embarcações “(…) por que a madeyra deste brauo he seca, & sem grossura, que resista ao humor da aogua: o qual penetra nella, & a faz apodrecer: pello que não presta, senão pera as obras mortas, que andão aa de cima da aogua. Tambem he bo pera vergas, & mastos, & outras peças que requere~ madeyra leue, branda, & sem noos, como esta he, longa & dereyta.”7 Tais informações documentais ao fornecerem-nos relevantes esclarecimentos sobre os diferentes tipos de madeiras, as suas características naturais e as suas diferentes aplicações na arte naval, permitem-nos dizer que as madeiras, na época da nossa odisseia marítima, tinham aproveitamentos diferentes das que hoje utilizamos. A abundância de pinhais nesta margem esquerda do Tejo possibilitava a exploração destas madeiras para consumo da atividade naval, a este propósito é de referir, o autor seiscentista, Frei Nicolau de Oliveira que ao falar sobre a margem que ficava diante da cidade de Lisboa, faz a seguinte alusão: “Desta mesma charneca se tirão paos de souereiros, de que quasi toda está povoada, pera as embarcações, assi pequenas, como grandes, quaes são as Naos da India, com muitas, & grossas taboas de pinheiros, de que ha mayor abundancia.”8
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OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, p.63 Livro da Fabrica das Naus (c.1580) 4 Livro Primeiro da Architectura Naval (c.1620) 5 LAVANHA, João Batista, Livro Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, p.27 6 OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, p.64 7 Idem, Ibidem, p.64 8 OLIVEIRA, Frei Nicolau de, Livro das Grandezas de Lisboa (1620), Lisboa, Veja Editora, 1991, p.92 3
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Esta copiosidade de árvores de sobro e pinho, ao longo desta faixa ribeirinha, foi, mais uma vez, referida pelo autor, num outro momento da sua obra, quando faz referência à Ribeira das Naus e à utilização das madeiras na construção naval: “(…) como pella quantidade de souereiros & pinheiros que ha por espaço de vinte & cinquo legoas de comprido & tres de largo tudo a vista do rio, seruindo os souereiros pera as cavernas, & os pinheiros pera as taboas dos costados, & pera as mais obras interiores dos nauios.” 9 Tal como os autores anteriormente citados, também Frei Nicolau de Oliveira refere que a madeira de sobreiro era usada nas cavernas e o pinho nos tabuados, o que nos leva a inferir que a utilização deste tipo de madeiras na atividade naval de então, só era possível devido à existência de grandes extensões de terrenos, ocupados por charnecas de pinheiros e sobreiros. Atualmente, já não se verifica a utilização do sobro na estrutura, nem do pinho manso nos tabuados dos costados, devido precisamente às dificuldades de encontrar árvores em quantidade e com as dimensões necessárias para a execução das peças. A madeira de sobro foi substituída pelo pinho manso a nível das peças estruturais da embarcação e o pinho bravo substituiu, por sua vez, a madeira de pinho manso a nível do tabuado. Encontrar árvores de grande porte e na quantidade suficiente, destas duas variedades de pinho, para a recuperação do varino “O Boa Viagem”, foi efetivamente uma das grandes preocupações do mestre Jaime Costa. Foi uma labuta que se iniciou um ano antes de a embarcação entrar no estaleiro, de modo a permitir uma maior margem de tempo para proceder à seleção dos pinheiros, para assistir ao seu abate e corte dos troncos na serração e também para efetuar as operações relacionadas com a conservação e tratamento das madeiras. Todos estes procedimentos pré preparatórios assumem-se de grande importância, porque deles depende a obtenção de boas madeiras para a construção das peças navais, se aquelas forem de má qualidade o resultado final será, por certo, deficiente. Para evitar este tipo de falhas, o mestre Jaime Costa começou por selecionar as árvores de pinho manso, as mais difíceis de encontrar, devido ao porte e às curvaturas pretendidas, para a execução dos braços e de outras peças do cavername, nos pinhais de Alcácer do Sal e Campo de Tiro de Alcochete; enquanto as de pinho bravo foram escolhidas na Mata Nacional de Sintra. Nesta fase da seleção, o mestre Jaime teve logo em mente a aplicação futura das madeiras nas diferentes peças da embarcação, tal como ele próprio afirmou na entrevista que nós recolhemos: “(…) tenho que ir ao pinhal para ver as peças que eu quero, identificar lá e explicar às pessoas10 aquilo que eu quero, depois eles vão cortando e vão colocando de parte.”11 Ainda a propósito deste assunto, o mestre Jaime Costa acrescentou: “(…) as madeiras todas que vêm aqui para o estaleiro, gosto de ser eu de mandar abatê-las, porque eu escolho-as e normalmente (…) faço uma pré seleção quando elas estão em pé e, ao mesmo tempo, vejo também, se de facto, elas são portadoras de alguns problemas de apodrecimento, porque algumas delas já estão secas, em pé aí escolhemos. Por isso é que eu não gosto de madeiras abatidas, só as madeiras exóticas, onde não temos hipóteses de escolha.” 12 O processo de preparação das madeiras iniciou-se, assim, com um zeloso cuidado na escolha das árvores,
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Idem, op. cit., p.74v Os madeireiros são as pessoas a quem o Mestre Jaime está a referir-se na sua entrevista. 11 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 12 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 10
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Colocação do tronco pelo trator no “charriot”, um mecanismo que fixa o tronco e permite o seu deslocamento na direção da serra, com vista a proceder-se ao seu corte. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Pormenor do corte da primeira face do tronco, na serra. (Foto de Paulo Guerreiro)
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em função da sua utilização na recuperação da embarcação, tarefa que evidencia, da parte do mestre, um profundo conhecimento empírico e experimental da sua arte profissional. Feita a seleção procedeu-se ao corte do pinho manso e bravo, em época adequada, correspondente aos meses de inverno, entre dezembro e janeiro, e com especial atenção ao quarto minguante da lua, tal como referiu o Jaime num dado momento da sua entrevista: “(…) tento sempre no máximo abater as madeiras, sempre de dezembro a janeiro, são nestes dois meses do frio … porque a árvore não está florida, a partir de março ela começa a florir, quando começa a florir, a seiva começa a expandir-se pelos ramos e com tendência na secagem a azular-se (…), se nós a obrigarmos ela estala, (…) o melhor corte é dezembro e janeiro, principalmente, como diziam os antigos, no quarto minguante, (…).”13 Esta prática de se fazer o corte das árvores no período de inverno, foi também uma prática seguida pelos antigos construtores da época de quinhentos, de tal modo importante que Fernando Oliveira no Livro da Fabrica das Naus dedicou-lhe, no capítulo terceiro, um particular cuidado, ao falar do tempo em que se devia colher as madeiras, como vem expresso na seguinte passagem do referido tratado: “Por tanto he necessario ~ a regra saber os tempos em que as madeyras são maduras, & tem sazão pera ser colhidas. (…) Finalmete, que se nisto deue ter, he que a madeyra se deue colher, quando os humores das aruores estão recolhidos & quedos nellas, quasi como descansando: por que então tem toda sua uirtude & força recolhida em si. Isto pella mayor parte he no Inverno, quando o sol estaa mays apartado dellas: (…) E por esta rezão he milhor a madeyra das aruores no Inverno: por q estaa então em toda sua uirtude & uigor. (…) E por que polla mayor parte, como dixe, a colheyta da madeyra he no Inuerno, (…).” 14 Fernando Oliveira ainda acentua a necessidade de se considerar, aquando do momento do corte das árvores, as fases da lua: “Quãdo ouueres de cortar madeyra ~ despoys do meyo dia, & sem de ulmo, ou pinho, ou nogueyra, ou qualquer outra, seja no minguante da lua, uento austro.” 15 Curiosamente o autor no seu aconselhamento, do tempo e circunstâncias certas para se efetuar o abate das madeiras, vai ao pormenor de dizer a hora, bem como de referir a ausência de vento sul, conhecimentos que acabaram por cair em desuso. Este saber, inicialmente, empírico, colhido e comprovado na ação prática, pelos antigos mestres navais, foi teorizado pela primeira vez nesta obra, à guisa de conselhos, a ter em consideração na fase do corte das árvores, de modo a expor em todo este trabalho “(…) regras, & preceptos ordenados, & claros: de maneyra que os possa entender, & usar toda a pessoa:” 16, como o próprio autor afirmou no prólogo da sua obra. João Baptista Lavanha faz também referência a este assunto, no capítulo sexto, do seu Livro Primeiro da Architectura Naval, dizendo: “Pouco aproueitará serem as madeiras escolhidas e das qualidades que para esta fabrica se requerem, se forem cortadas verdes, e sem sazão; porque não bastará serem de natureza imcorruptiuel; para que não fendão, torção, encolhão, e apodreção. E he de tanta importancia ser este corte
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Ibidem OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, pp.68-69. 15 Idem, op. cit., p.71 16 Idem, op. cit., p. 55 14
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Tronco no “charriot”, para um novo corte na serra. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Tronco já cortado em várias tábuas. (Foto de Paulo Guerreiro)
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sazonado; que de se não ter nelle muito resguardo, procede uma das causas da perdição das Naos.” 17 Um pouco mais à frente o autor faz a seguinte advertência: “Conuem que nos dous meses apontados, Dezembro e Janejro, se observe a lua mingoante; para nella se cortarem as madeiras; porque então se deseca muito nellas a humidade (causa da sua putrefacção) e ficão enxutas e liures de corrupção e caruncho; E asi se tenha por regra geral que as madeiras para esta fabrica se cortem, nas mingoantes da Lua dos dous meses mais chegados ao principio do Inuerno, um antes, e outro depois, os quaes nestas partes são Dezembro e Janeyro, (…).” 18 No abate das árvores, Lavanha chama a atenção para o cuidado de escolher madeiras maduras, para que estas depois de aplicadas não apodrecessem, empenassem ou torcessem, como sucedia com as madeiras cortadas verdes ou fora de tempo, cujo emprego na construção naval trazia sempre graves consequências. É interessante verificarmos que alguns destes conhecimentos chegaram até aos dias de hoje, naturalmente através da transmissão oral de saberes, das gerações mais velhas para as mais novas, passando a fazer parte de um património memorial do trabalho. Tais ensinamentos, como guardar o corte das árvores para o quarto minguante da lua e para os meses de inverno, de dezembro e janeiro, referidos por Lavanha, por ser o período do ano em que a circulação da seiva está menos ativa, foram sendo observados como regras pelos nossos construtores navais, ao longo dos séculos e subsistiram até à atualidade, de forma empírica e não livresca. Acerca deste assunto o Jaime Costa mencionou: “(…) o quarto minguante é diferente, (…) e hoje acredito, ao longo destes anos, quando o meu pai dizia isso e o Ti Casimiro Ribeiro que era o único madeireiro que havia aqui por estes estaleiros todos, lembro-me perfeitamente quando as árvores chegavam aqui, com quinze metros, vinte metros, para fazer dormentes serrados à serra, pelos serradores, era sempre no quarto minguante que eles esforçavam-se por abater o máximo das madeiras, porque as madeiras tinham mais garantia e qualidade.” 19 Feita a seleção e abatidas as árvores seguiu-se o transporte para a oficina de serração, localizada na Barrosinha, em Alcácer do Sal, a única ainda em atividade, onde os toros foram todos faceados20 com o auxílio de uma serra mecânica, para a obtenção de madeiras com as espessuras já muito aproximadas das pretendidas para as futuras peças. Da serração, as madeiras faceadas foram então para o estaleiro de Sarilhos Pequenos e aí procedeu-se a um conjunto de novas operações, tendo em vista a sua conservação. A primeira dessas tarefas consistiu em retirar a casca dos troncos a machado, para evitar a criação de fungos e de outro tipo de parasitas que pudessem provocar o apodrecimento das madeiras. Para uma boa conservação seguiu-se depois o processo da sua secagem em local arejado, por um largo período de tempo que pode variar, de acordo com a espessura e os tipos de madeiras. No caso do pinho manso, segundo o mestre Jaime Costa, é necessário um ano para secagem, “(…) porque no autoclave só nos garantem quando a madeira, de facto, já não tiver nada de humidade, e então conforme as espessuras das madeiras, se for por exemplo madeiras de
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LAVANHA, João Batista, Livro Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, p.29 Idem, op. cit., p.31 19 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 20 Facear é um termo técnico, utilizado na construção naval que tem o significado de cortar os troncos das árvores, de modo a conferir-lhes faces. Antigamente este trabalho era feito, nos estaleiros, com a serra braçal. 18
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Limpeza das madeiras das suas cascas, utilizando o machado. (Fotos de Paulo Guerreiro)
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seis centímetros, basta cinco meses, (…).” 21 Em relação ao pinho bravo referiu que já estava no estaleiro há dois anos, proveniente da Serra de Sintra, eram árvores que nunca tinham sido sangradas, por esse motivo eram “(…) madeiras magnificas com um veio miúdo, uma madeira que de certeza não vai, nos próximos vinte anos, trazer problemas.” 22 A secagem das madeiras apresenta-se, assim, como sendo uma prática de grande importância no processo da conservação, na medida em que tem como principal objetivo a solidificação da seiva, ainda existente nas madeiras. Através deste processo as fibras ficam mais apertadas, conferindo-lhes uma maior resistência e longevidade. Por esta razão as madeiras não devem ser logo trabalhadas, após o seu abate, sob risco de empenarem e criarem fendas. Estes problemas foram também abordados, pelos autores antigos já anteriormente citados, Fernando Oliveira alerta para o seguinte: “(…) assy a madeyra fresca não he boa para laurar: por que ~ grande inconueniente para esta ainda que não apodreça, secandose aperta em sy, & abre as juntas, que he hua nossa fabrica naual.” 23 Posteriormente Lavanha apresentou as mesmas preocupações sobre a utilização das madeiras, sugerindo o processo da secagem ao ar livre ou por imersão na água salgada: “Cortadas e derrubadas as madeiras não se apliquem logo na fabrica Naval, porque como não posão deixar de torcer, encolher e fender algua cousa, posto que sejão colhidas com as regras dadas. (…) E asi deixem se estar as madeiras muitos dias, ou no Campo ou no estaleiro, ou na Agoa salgada, segundo sua natureza, e não se laurem senão depois que se conhecer dellas que tem feito de sy tudo o que podia recear.” 24 A secagem das madeiras por imersão na água salgada foi outrora outro processo utilizado pelos estaleiros, isto sucedia quando havia grandes quantidades de madeira que não eram aplicadas na construção, lançando-as então na água, podiam permanecer aí durante muitos anos, conservando-se assim indefinidamente. Nestas situações, as madeiras tinham que manter a casca e serem submergidas em verde, para manterem as suas potencialidades naturais, a este respeito o mestre Jaime mencionou: “(…) diziam os madeireiros antigos que quando se joga para dentro de água já seca não merece a pena, todas essas embarcações eram feitas com madeiras verdes, ao irem para dentro de água, elas secavam dentro de água, isso é que era a boa durabilidade.” 25 No caso concreto, das madeiras para a recuperação do varino, a secagem foi feita ao ar, depois foram sarrafadas26, empilhadas e guardadas em armazém, da forma seguinte, como explicou o Jaime Costa: “Depois de seca, convém ficar chapada, umas encima das outras, para não haver entradas de bichinhos e coisas assim do género, elas ficam, assim, chapadinhas, certinhas, lá dentro do armazém à espera de novas embarcações.” 27
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 23 OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.71. 24 LAVANHA, João Batista, op. cit., pp. 31-32 25 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 26 Este termo significa que as madeiras foram cortadas, de forma tosca, sem critérios de perfeição. 27 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 22
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Madeiras empilhadas, apoiadas em pequenas travessas, de forma a permitir a ventilação entre os troncos para sua secagem. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Braços já preparados para serem trabalhados e receberem o último tratamento, em autoclave. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Por último, as madeiras ainda foram submetidas a um tratamento por vácuo, em autoclave, que consiste num outro processo de conservação, mas mais moderno28 e que lhe concedeu uma garantia de durabilidade, sem problemas de apodrecimento, pelo menos, de vinte anos. As madeiras foram colocadas num objeto cilíndrico, com uma capacidade de 18 metros de comprimento por dois de diâmetro, projetando-se depois um líquido a alta pressão que penetrou por toda a madeira, o que lhe conferiu uma tonalidade esverdeada. Este tratamento ocorreu umas semanas antes de serem aplicadas na recuperação e efetuou-se fora do estaleiro, numa casa em Pegões, vocacionada para este tipo de trabalhos. Com esta operação terminou o longo processo de tratamento, para conservação das madeiras de pinho manso e bravo e após uns dias de secagem, no estaleiro, estavam em condições de serem utilizadas na embarcação. Além dos pinhos, foram também adquiridas dois tipos de madeira exótica, o cóxipo, um derivado do mogno e tali, cujos toros mediam um metro e quarenta de diâmetro. Estas madeiras dispensaram o tratamento em autoclave devido à sua contextura, são mais resistentes e rijas, sendo aplicadas nas peças em redor do mastro e nos entreleitos29 da embarcação. Segundo informação do mestre Jaime Costa, entraram no estaleiro umas duzentas toneladas de madeira, destinadas à recuperação do varino “O Boa Viagem”, das quais cento e cinquenta toneladas eram de pinho manso de que se aproveitou somente uns trinta e cinco a quarenta e cinco por cento da madeira, o restante foi desperdício. O pinho bravo teve um maior aproveitamento, contabilizando-se um desperdício de madeira, de apenas vinte por cento, igualmente sucedeu com a madeira exótica. Embora não exista uma relação direta entre o número de árvores abatidas e a madeira que foi aproveitada para os trabalhos navais de recuperação, devido aos desperdícios, a quantidade que foi consumida pelo varino é simplesmente impressionante com as suas sessenta a setenta toneladas de madeira.
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Antigamente quando não havia o método por autoclave, para preservar as madeiras, aplicava-se nelas, em cru, uma mistura artesanal, feita com gasóleo, óleo de peixe e um pouco de almagre para dar cor. 29 Peça transversal que remata a zona da coberta, quer da proa quer da ré, na embarcação.
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Braços já impregnados e pré cortados, em fase de serem trabalhados, pelo carpinteiro. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Braço já impregnado e pré cortado, preparado para ser trabalhado pelo carpinteiro. (Foto de Paulo Guerreiro)
2.2.TRABALHOS DE CARPINTARIA NAVAL
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2.2.TRABALHOS DE CARPINTARIA NAVAL ~ nao mal feyta, & sem «Mays certo he o dano, & perigo dhua ~ casa desproporcionada: (…) proporção de medidas, que dhua ~ nao ainda que tenha boa madeyra, & bem pregada, & seja hua forte, se não teuer boa symmetria, não prestaraa pera nada. Se for mays baixa do que deue ser, afogala ha o mar: se for mays alta emborcala ha o uento: se for munto estreyta, não sofreraa uela: se for munto larga, não gouernaraa: se teuer hum costado mayor que outro, penderaa com grande perjuizo dos que for? dentro nella.» 1 A entrada do varino “O Boa Viagem”no estaleiro naval de Sarilhos Pequenos e a sua subida em plano inclinado, no dia 16 de junho de 2010, marcou o início dos trabalhos de recuperação que decorreram ao longo de um ano. Tratando-se de uma obra que envolveu uma intervenção profunda, a nível da sua própria estrutura interior, a ossada ou esqueleto, houve necessidade de se proceder, nesta primeira fase, à retirada de toda a palamenta, bem como ao desmantelamento das velhas peças de madeira que se encontravam deterioradas. Para o efeito e durante quinze dias, logo após o encalhe no plano inclinado, o mestre Jaime Costa, responsável pela obra e pelo estaleiro, preparou adequadamente a embarcação, ao criar um “berço”, através do processo de escoramento e travamento feito com troncos de madeira, sobre os quais aquela assentava, de modo a ficar nivelada para corrigir os defeitos, ou seja, o alquebramento2 do fundo, cuja deflexão já tinha uns trinta centímetros. Ao ser criado este plano de apoio para suporte da embarcação, esta ficou preparada para se realizar o desmantelamento, ficou direita e sem inclinações que interferissem nos futuros trabalhos. A este propósito é de citar as explicações do próprio mestre: “Começámos a escorá-lo (…), ele tinha uma ligeira inclinação no fundo ao contrário, que é o alquebrar, e, ao fazermos o estrado para ele ficar em definitivo até ao dia em que nós substituímos os cabos, para ele começar a endireitar a parte do fundo, assim que ele começou a endireitar a parte do fundo, fomos trabalhando, fomos iniciar aqui a obra interior porque se tinha que desmantelar todo este interior, (…).Nesses quinze dias, até ao final do mês de junho foi precisamente a preparação do barco para iniciar a obra, no dia 1 de julho ele começou então a iniciar o tal desmantelamento para começarmos a substituir as cavernas e os braços que estavam, de facto para substituir.” 3 Tal como foi referenciado pelo mestre Jaime Costa o desmantelamento da embarcação iniciou-se pelas peças transversais da sua estrutura interna, ou seja, as cavernas e os braços, sendo seguidamente acompanhado pela sua substituição a bombordo e estibordo, no total de 40 braços e 8 cavernas. Como o processo
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OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, p.56 Na área da construção naval o termo alquebrar significa que o barco tem uma inclinação, uma quebra no fundo, no sentido de baixo para cima, provocado pela força das madeiras. 3 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 2
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de remoção destas peças não podia ser realizável, num único momento, foram-se retirando alternadamente, entre o banco da proa e o banco da ré, de maneira a não colocar em causa a forma e a solidez da embarcação, como o próprio mestre nos afirmou: “(…) iniciámos no processo de desmantelação, dos braços, um sim e um não, para o barco não perder a forma, (…).”4 De modo que neste trabalho de desembaraçamento5 e remoção, ao qual esteve também associado a montagem dos braços e cavernas, houve necessidade de se desenvolver em duas voltas, para evitar a desconjuntura da embarcação. Este método aplicado na recuperação, em que as cavernas e os braços foram montados alternadamente, entre o banco da proa e o banco da ré, se o compararmos com as técnicas de construção naval tradicionais, verificamos que é diferente, a colocação da primeira caverna começava sempre pela caverna mestra e a partir daí eram definidas a posição das outras, de acordo com a forma e as dimensões da embarcação. Esta era também a técnica utilizada na época de quinhentos e seiscentos, Manoel Fernandez no seu Livro de Traças de Carpintaria (1616), estipula os procedimentos a ter em relação a este trabalho naval, do seguinte modo: “(…) pera por a caverna mestra tomares hum cordel do couce da popa atee o couce da proa, e fareis três terços, e o primeiro terço vindo de proa pera popa ali porás a caverna mestra.”6 Para Fernando Oliveira também a construção do cavername, no respeitante à montagem da caverna mestra, entendida no tratado como sendo a baliza7, era um processo muito importante e decisivo no desenho do ~ dos braços das mestras, que são os casco de qualquer embarcação, “(…) & a pratica della trata soomete principaes desta fabrica: de cuja forma pende a traça de todas as outras, em especial das que ficão entre as almogamas8: onde o nauio faz pouca diferença. (…) Ponhão os centros de todas as cavernas do fundo yguaes aos das mestras, que he como dixe, hum terço de altura abayxo do conues, (…).” 9 As almogamas aqui referidas por Fernando Oliveira estão identificadas como sendo as últimas cavernas que marcam os limites do fundo à proa e à popa, são as que antecedem os delgados, atualmente correspondem às cavernas que se designam por piques. Aquele termo parece ter caído em desuso, não faz parte do património de conhecimentos do mestre Jaime Costa, pois ele não o conhecia, como o próprio especificou: “(…) ali são os piques de cavernas, porque eles fazem esta forma assim e a gente chama os piques de caverna que são mais fundos, aí é que há umas pequenas alterações, (…) ali são os piques, aqui não há piques, é tudo direito, (…).” 10 Na passagem citada por Fernando Oliveira, a montagem da caverna mestra era determinante na estrutura, dela dependia a configuração do casco da embarcação, tal como nesses tempos ainda hoje se afigura importante, mas no caso do varino esta regra de procedimento não foi observada, uma vez que ao tratar-se
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Ibidem Desembaraçar tem o significado de separar o braço da caverna. 6 FERNANDEZ, Manoel, Livro de Traças de Carpintaria (1616), Lisboa, Academia de Marinha, 1995, p.51 7 A baliza é uma peça em forma de U, constituída por três peças, uma caverna que está ligada transversalmente à quilha, por um braço e pela parte superior a apostura. É uma peça estrutural que faz parte do esqueleto do fundo e do costado. ~ parte, & da outra, digo, 8 Fernando Oliveira dá-nos a seguinte definição destas cavernas: “Chamãose almogamas, as cauernas dos cabos do fundo, dhua da popa, & da proa. E hão de ser tantas cauernas da cada parte destas, quãtos rumos tem a quilha toda. Se a quilha toda teuer dezoito rumos, cada graminho destes teraa dezoito cauernas, & não mays, mas antes menos, (…).” OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, p.95. 9 OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.107 10 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 5
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de uma recuperação, implicou, por conseguinte, o uso de um conjunto de procedimentos diferentes àqueles que são aplicados numa obra inicial. Outro preceito que não foi cumprido neste trabalho de recuperação foi a forma como os braços foram embaraçados11, isto é, como foram emparelhados na embarcação, com as cavernas. Segundo a regra tradicional, os braços deviam ser embaraçados para a proa e para a popa, a partir da caverna mestra. Esta situação não se verificou no varino, uma vez que na sua estrutura primitiva, os braços tinham sido todos embaraçados no mesmo sentido, da proa para a ré, perante esta particularidade o mestre Jaime teve que manter essa configuração, já que a alteração desta regra obrigava a desmantelar toda a embarcação. A reconstrução dos elementos estruturais do varino “O Boa Viagem”, que fazem parte do esqueleto do fundo e costado, foi feita através de moldes, tendo como modelo as dimensões das velhas peças. Este método, muito simples e aplicado na construção das restantes peças de carpintaria naval, consistiu em passar para uma tábua delgada as medidas da peça que se pretendia reconstruir, utilizando para o efeito o compasso. Os acertos e inclinações eram depois corrigidos com o apoio da suta12 e da tábua de escantilhões13. Uma vez realizado o molde, colocava-se sobre a madeira que havia sido selecionada em função da sua utilização, seguidamente transferiam-se as medições com o lápis para o tronco que iria ser trabalhado, contemplando já os seus devidos ajustamentos. Funcionando o molde como matriz, como referência, quanto mais perfeito fosse, tanto melhor sairia a peça final. O molde utilizado para construir um braço, serviu para todos os outros, com exceção dos braços que ficam situados a um terço da ré e da proa, denominados por delgados, onde apresentam uma configuração diferente, mais arredondada, devido ao estreitamento que aí se verifica do casco e por conseguinte exigiram um outro molde. Em relação às cavernas como são todas iguais, utilizou-se sempre o mesmo modelo. Sobre este assunto o mestre Jaime mencionou: “Normalmente aqui, assim, numa reconstrução, (…) nós substituímos isto tudo, através de moldes e estes moldes são tirados, por exemplo, (…) tiramos o molde ao braço, (…) e seguidamente vai um sim, um não, um sim e um não e depois (…) vamos pregar o forro velho aos braços novos, vamos dando uns pregos só, para depois substituir e com esse molde quase que dá para toda esta parte (…), só aqui à ré é que cada peça tem uma alteração, porque ele vai perdendo a sua configuração diferente e vai arredondando. Portanto daqui (…) até aos terços, normalmente, os mesmos moldes dá para isto tudo, nos varinos como é um barco de fundo chato não tem assim grande variedade, aí na ré já se complica mais um pouco, mas nós também substituímos (…), as cavernas o molde é todo igual é só por dizer que é mais curta ou é mais comprida, os ajustamentos ali assim, quanto mais para ré, mais inclinados são, (…).” Um pouco mais à frente da sua entrevista, ainda em relação a esta matéria,
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Recorrendo ao autor seiscentista, João Batista Lavanha diz-nos o seguinte sobre o embaraçar dos braços com as cavernas: “Lauradas estas madeiras como se ha ditto, se embração no chão todas as 11 cauernas de conta com os seus Braços e nelles acertadas as primeiras Aposturas, para o que se ha de ter consideração com os Couados asinalados nas Cauernas e nos Braços porque estes se hão de aJuntar com muito resguardo e hão de uir uns sobre os outros muy Justo e so com estas linhas dos colados se ha de ter conta, no embraçar os Braços com as Cauernas. (…) E asi deitada a Cauerna no chão; poem se lhe de uma e da outra parte os seus braços Couado com Couado.” LAVANHA, João Batista, Livro Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, p.55 12 A suta é um esquadro móvel que serve para marcar ângulos de qualquer medida. 13 A tábua de escantilhões funciona como modelo para regular as dimensões nos moldes das peças, sobretudo nas partes curvas e superfícies inclinadas. A tábua de escantilhões também foi utilizada pelos antigos construtores navais, no entanto Lavanha adverte que na traçagem do couce da popa “sera bem que uá traçado em dois pedaços de taboa, porque he mais seguro que toma lo com Escantilhão, (…).”LAVANHA, João Batista, op. cit., p.40
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acrescentou: “Um molde de uma caverna dá para todas, aqui nos braços, normalmente, há umas pequenas alterações aqui principalmente na ré e ali à frente que as curvas são diferentes, (…).” 14 O facto de a embarcação ser um varino, tem esta particularidade de ter as cavernas todas iguais, requerendo na sua montagem apenas pequenos ajustamentos, o mesmo já não sucederá com outro tipo de barcos que tenham quilha e por conseguinte que não disponham de fundos direitos. Refira-se ainda que, na técnica do uso do molde, a reconstrução dos braços ou de outra qualquer peça de carpintaria naval, o preceito aplicado foi sempre o mesmo, ou seja, o carpinteiro colocava o molde sobre a madeira selecionada e pré cortada e depois marcava a lápis as medidas da peça, o abatimento da madeira era feita com o auxílio de uma plaina elétrica que ia desbastando-a, até ficar com as dimensões pretendidas e corretas com a tábua de escantilhões. A peça ao ficar concluída, era montada no local apropriado, no caso concreto do braço, o carpinteiro procedia sempre à verificação das mediadas, em cima onde se encostava ao costado e em baixo onde se ligava à caverna, designada essa junção por encolamento15. Feitos os acertos16, os braços eram apertados com grampos, de maneira a ficarem ajustados ao costado e posteriormente eram pregados com cavilhas de ferro zincado. Esta prática da utilização do molde, onde o carpinteiro vai assinalando na tábua de escantilhões as medidas e os pontos de acerto das diferentes partes de uma peça a construir, parece ter sido também uma técnica usada pelos antigos mestres quinhentistas e seiscentistas, como podemos deduzir deste excerto do Livro Primeiro da Architectura Naval, de Lavanha: “Feitas as formas as entregará o Architecto ao Mestre dos carpinteiros para que elle por ellas marque as madeiras as quaes lauradas por ambas as faces da sua grossura, e escolhidas para o que cada uma pode seruir, sobre as dittas facesse porão as formas e com um pão delgado de um palmo de comprido e um dedo de largo, chamado Esgarauote molhado no tinteiro da Almagra17 hirão correndo ao longo da forma da parte de fora e asinalando a e marcando a (o que chamão caliuar) com a almagra do ditto Esgarauote.” 18 As formas são, aqui neste excerto do documento, entendidas como moldes, a partir das quais eram construídas as peças, utilizando o dito esgaravote molhado no almagre para marcar e assinalar as medidas nas madeiras. Tal facto leva-nos a crer que o processo de determinação das peças, a partir do molde19, foi um método empírico, utilizado pelos antigos construtores navais e que perdurou até aos dias de hoje, devido à garantia dos seus resultados na construção naval. Uma arte em que a oralidade teve, desde sempre, um peso determinante na transmissão de conhecimentos. No domínio do saber técnico tradicional é de salientar também a continuação do uso da escarva, como pro-
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. Termo que serve para designar a ligação de duas faces, entre o braço e a caverna. 16 Na montagem dos braços é de salientar os acertos na parte curva da peça, em que se utilizou o virote (ripa delgada e com uma ligeira curvatura) como molde, para ajustar as medidas dos braços nessas zonas, de forma a ficarem todas iguais. Na parte superior os acertos foram feitos com uma régua longitudinal, colocada sobre vários braços, as diferenças eram marcadas com um giz, procedendo-se depois à aparelhagem com plaina. 17 Argila vermelha que se utiliza para assinalar. 18 LAVANHA, João Batista, Livro Primeiro da Architectura Naval, Lisboa, Academia de Marinha, 1996, p.42 19 No processo de trabalhar uma qualquer peça de carpintaria naval há que ter em consideração quatro fases: 1º. Fasquiar a peça que consiste na execução do molde, ou seja, utiliza-se uma tábua que vai servir de modelo e para a qual foram retiradas as medições, com um compasso; 2º. Traçar significa transferir os pontos do molde para a peça de madeira que se pretende trabalhar; 3º. Trabalhar a peça, pelas medidas marcadas com o molde; 4º. Montar a peça. 15
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cesso de ligação entre duas peças de madeira, feita através do sistema do entalhe e encaixe ajustado, de maneira a conferir às junções uma maior solidez, já que estão sujeitas a esforços de várias origens. Encontramos aqui neste pormenor mais uma analogia entre as técnicas atuais e as que eram utilizadas pelos carpinteiros navais de quinhentos e seiscentos, a leitura atenta do Livro Primeiro da Architectura Naval deixa claro que este era o método usado para fazer as ligações das madeiras, como é evidenciado no seguinte excerto do tratado de Lavanha: “E como a Quilha não posa ser enteira e aJa de ser de pedaços estes se aJuntão ums com os outros com umas escaruas (…) e se pregão com pregos que atrauesão toda a largura da madeira e reuitão da outra parte (…); e por este modo se fara toda a Quilha e se ajuntara com as ditas escaruas.” 20 Além da quilha, o autor dá ainda a indicação de outras peças do casco em que era utilizado o processo de ligação, através de escarva, como o couce da popa com o cadaste e a roda de proa, entre outras. Como iremos verificar posteriormente, ao longo dos trabalhos de carpintaria do varino, ainda hoje os mestres carpinteiros seguem o mesmo método nas ligações dessas mesmas peças, existindo uma nítida concordância na aplicação das regras de antanho na atual tecnologia naval. Relativamente a este sistema de ligação o mestre Jaime Costa destacou: “A ligação das madeiras, isso parece que é tudo inteiro, porque elas são ligadas, são peças que trabalhamos com 12 metros, no pinho bravo; no pinho manso praticamente são também peças com 12 metros, elas são ligadas com umas escarvas de um dente, normalmente têm um metro de comprimento, são emendadas com uma escarva de dente e isso apanham sempre, no mínimo, de três madeiras, as escarvas e isso é bom.” 21 Além do emprego do processo de escarva, utilizaram-se outros elementos na ligação das peças de madeira, como pregos e cavilhas zincadas para reforçar a resistência do casco. Fernando Oliveira e Lavanha deixaram nos seus tratados de construção naval princípios gerais sobre a pregaria, partilhando ambos a mesma opinião de que os pregos de ferro eram os mais apropriados para ligar as madeiras. Para o primeiro autor: “Os pregos mays acostumados são de ferro, assy pela força como pello preço. A força do ferro he mays segura, & mays ryja que de todolos outros metays:”22 E para o segundo tratadista: “A Pregadura costumada entre nos, he de ferro, posto que antiguamente se usou de cobre, (…).” 23 Vê-se pelo que fica exposto que, antigamente tal como hoje, as madeiras eram fixas por pregos de ferro, a única diferença é que no presente, concretamente nos trabalhos do varino, tanto os pregos como as cavilhas, foram zincados para uma melhor e prolongada conservação. Pois estes ao receberem o tratamento por zincagem ficam prevenidos da ferrugem, um problema que é inerente ao ferro quando fica exposto às humidades do mar. Os autores citados já alertavam para esse problema, no entanto o prego de ferro era, no seu entender, o que melhor se adequava às nossas madeiras e às águas dos mares mais quentes. Dada a importância dos elementos de fixação das madeiras, uma vez que deles depende a resistência e segurança da embarcação, o mestre Jaime Costa comentou: “Todo o cavilhamento foi feito com cavilhas de 20 milímetros, como podem ver, foram à antiga portuguesa, respeitando o tradicional, foram cravadas e não enroscadas,
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LAVANHA, João Batista, op. cit., p.44 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 22 OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.72 23 LAVANHA, João Batista, op. cit., p.33 21
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na parte que é visível foram todas cravadas que era como se fazia antigamente, aqui também na quilha, a segurar a quilha também foram cravadas, como eram antigamente. (…) Foram todas cavilhas de 20 milímetros, feitas aqui e mandadas zincar numa casa da especialidade em zincagem. Todo o prego que é aqui utilizado, são pregos feitos à mão, zincados, também há já muitos anos, material que tinha aí em stock, mas ainda hoje estamos vocacionados para fazer, se for preciso, estes pregos à mão, fazer os pregos e mandar zincar.” 24 No processo de ligação por cavilhas, os furos foram abertos previamente, com um berbequim e só depois foram aplicadas com o auxílio da marreta, ou seja, foram cravadas, sendo depois rebatidas na parte inferior, com vista a fixá-las com maior segurança. Este tipo de cavilhamento, em que as cavilhas atravessaram as madeiras de um lado ao outro, foi aplicado nas peças de maior grossura, como as cintas, os dormentes, as escoteiras, os paus de aresta, a buçarda, entre outras. No sistema de ligação feita com pregos, aplicado no tabuado do costado, preceituou-se as mesmas normas. Em ambos os casos, os furos foram sempre abertos, com um diâmetro ligeiramente inferior à espessura da cavilha ou do prego, a fim de ficarem devidamente ajustados. Verificamos, assim que tanto o método de escarva, como os pregos e as cavilhas, aplicados na ligação das peças de madeira, são práticas empíricas ancestrais que sobreviveram até à atualidade, devido à eficácia dos seus resultados. Por este motivo a construção naval em madeira permaneceu, através de séculos, ligada às tradicionais técnicas, sem perder a sua funcionalidade prática, pelo contrário, foram sendo aperfeiçoadas e complementadas com os ensinamentos colhidos da experiência, no dia a dia dos estaleiros. Atualmente a arte de recuperar embarcações fluviais é o resultado de um longo processo contributivo do passado, em que saberes seculares foram transmitidos de geração em geração, ajudando a manter viva as tradicionais técnicas de carpintaria naval. Ao cavername, os elementos transversais da ossada do varino, seguiram-se a construção e substituição de outras peças estruturais, tais como o cadaste, os mancos, os dormentes, as sicórdias, as curvas de sicórdia, os bancos reais, os entreleitos, as falcas, os vaus, a roda de proa e contra roda entre outras. Todas estas peças foram construídas a partir das existentes e através do método do molde, já anteriormente referido. O cadaste e a roda de proa são as peças longitudinais que rematam o esqueleto da embarcação nas suas extremidades, pelo lado da popa e da proa, respetivamente. Por essa razão, são consideradas peças fundamentais da estrutura, de que depende toda a robustez e resistência da embarcação, já que estão sujeitas a constantes esforços naturais quando em navegação. Fernando Oliveira salientou a sua importância nestes termos: “Codaste he aquelle pao grosso, que se aleuanta pello meyo da popa a cima, da quilha atee o gio. O quall tambem como a roda da proa, ha de ser grosso, & forte, & da mesma madeyra de q he a quilha: por que assy como a quilha he alicece desta fabrica, tambem o cadaste he como cunhal della: & sostenta munta parte da nao, em especial o gouernalho25, no qual carrega munta força dos mares. Ha de ser logo aleuantado o cadaste quando lanção a quilha, assy como a roda de proa: por que ambos são como ramos della: (…). Lança encostandose pera tras quasi a quinta parte da sua altura, (…).” 26
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. O governalho é o leme da embarcação. 26 OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.91 25
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No varino “ O Boa Viagem”, tal como o autor citado explicou, também aqui o cadaste suporta o peso do leme27 e apresenta uma ligeira inclinação para a ré. Este caimento é visível no painel de popa que, segundo o mestre Jaime Costa, sofreu uma pequena correção na parte superior, ao conferir-lhe uma forma arqueada: “(…) o painel da parte superior, da parte mais forte, aí alterámos logo uma pequena deficiência que ele tinha, que era o painel direito e, normalmente ele costuma ser assim um pouco arredondado, e aí nós demos logo uma beleza já diferente.” 28 Na zona da popa, além do cadaste foram montados os mancos, a última baliza do costado, constituída por duas peças com curva e contracurva e que ficam localizadas a um e outro bordo. Estas peças são, na opinião do mestre Jaime as mais difíceis de executar, devido precisamente à sua configuração, o que exigiu madeiras em pinho manso com determinadas voltas, de modo a resultar em peças inteiras, sem cortes, nem ligações, para uma maior resistência na parte das curvas. Tanto o cadaste29 como a roda de proa30 encontram-se ligados ao pau de quilha, por meio de entalhes, de modo a encaixar as madeiras ajustadamente umas nas outras, as escarvas, para lhes dar solidez. Estas peças, bem como a contra roda31 foram igualmente executadas em madeira de pinho manso, devido às suas curvaturas muito acentuadas, exigindo na sua construção, uma grande parte, de trabalho manual, desenvolvido com perícia, pelos carpinteiros navais. A este propósito e relativamente à complexidade da execução do desenho da roda de proa, associada à dificuldade de encontrar um tronco de feição, teve que ser construída em três secções, ligadas entre si, através de escarvas, para lhe conferir a pronunciada curvatura. O capelo, com que termina superiormente a roda de proa, apresenta-se no varino muito recurvo e constituído por duas peças sobrepostas, teve igualmente necessidade de ser manufaturado por partes, a partir de um molde. Essas frações foram devidamente coladas numa única peça, já com a configuração desejada, e, posteriormente foi trabalhada com a plaina elétrica, pelo carpinteiro, para fazer os necessários ajustamentos. A estes trabalhos seguiu-se a preparação e a montagem dos quatro dormentes32, dois a bombordo e dois a estibordo, construídos em pinho bravo. Estas peças longitudinais que vão da proa à ré, fazem parte integrante da ossada do varino, foram pregadas às balizas, um pouco abaixo do alcatrate, com a dupla função de as travarem e de servirem de apoio aos vaus, tal como o Jaime explicou: “(…) feita a correção da aparelhagem de todos os braços aqui na parte do encolamento, começámos a travar a embarcação, travar a embarcação é os dormentes, os dormentes grandes e os dormentes pequenos.”33
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O cadaste está ligado ao eixo do leme. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011 29 Lavanha diz-nos o seguinte sobre o cadaste; “Sobre o couce de Popa, vay continuando o Codaste, em pedaços (se não puder ser enteiro) os quaes se ajuntem com suas escaruas (…).” LAVANHA, João Batista, op. cit., p.46 30 Em relação à roda de proa, Lavanha estabelece os seguintes cuidados na sua construção: “Os paos da Roda, se marcão pella sua forma para o que se hão de laurar primeiro por ambas as faces da sua largura a qual ha de ser tanta quanta he a da Quilha (…); sobre estas faces asi lauradas, se marque a ditta Roda em pedaços porque não ha Pao da feição e tamanho necesario. E estes pedaços se ajuntem com escaruas, da mesma maneira que as da Quilha e com os mesmos pregos Anielados se preguem (…).” Idem, op. cit., p.45 31 A contra roda é uma peça interna que ajuda a reforçar a roda de proa. 32 Em cada lado da embarcação existe o dormente grande ou primeiro dormente, o dormente pequeno ou segundo dormente. A diferença entre eles está na largura e espessura da tábua. 33 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 28
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Ainda no âmbito das peças estruturais do esqueleto que servem para consolidar e travar a embarcação, fabricadas em pinho manso, são de salientar as peças longitudinais, como as duas sicórdias e as quatro curvas de sicórdia34 e as transversais, como o banco real à proa e à popa, nos quais foram feitas umas pequenas correções. A este respeito o Jaime Costa referiu: “Para a embarcação ficar solidificada, aí foram as sicórdias, as curvas de sicórdia e os bancos, os bancos são a parte que divide a carga, ou seja, é a mesa do mastro e aqui assim a parte da ré que também houve aí uma pequena alteração, nós avançámos o banco da ré um pouco para vante para dar já futuramente abertura para outro motor mais potente, porque o barco, ano menos ano, tem que substituir o motor e então já pode substituir para uma maior potência que isso já vai beneficiar a embarcação,(…) na vante avançámos também para a ré o banco, crescemos, e demos uma maior oportunidade ali, assim, na proa para que a embarcação ficasse com mais espaço e também com mais segurança (…) agora nós encurtámos um pouco a carga, mas os passadiços são completamente iguais aos existentes, só que isto dá uma maior fortaleza à vela, uma maior consistência porque já não inclina tanto, porque ele vai ter o poder mais a meio da embarcação, por outro lado também a embarcação mostra que é mais potente, que é mais larga, como a casa era muito grande, parecia que o barco era estreito, toda a gente dizia que o barco era estreito e hoje as pessoas chegam aqui e dizem que o barco está diferente, foram as únicas alterações. Dá-nos a ilusão que o barco é mais potente e mais forte. Essas foram as duas alterações, foram participadas, foram também em comunhão com o mestre da embarcação, ele deu também o seu aval nesse sentido, porque achava também que beneficiava o barco.” 35 Tal como foi explanado, pelo mestre Jaime Costa, registou-se uma pequena alteração no poço da embarcação que foi, assim, reduzido em sessenta centímetros, na sequência de se ter criado um vão de caverna de trinta centímetros quer para a proa, quer para a popa, conferindo ao varino uma maior segurança, estabilidade e harmonia nas formas. As qualidades de navegação de uma embarcação dependem muito deste equilíbrio e simetria da sua estrutura, já o autor quinhentista Fernando Oliveira abordava este assunto dizendo “que faz mays perjuyzo & dano, o erro q se comete na proporção das partes dhum nauio sendo desproporcionadas ~ das outras, (…).”36 A regra da proporcionalidade das medidas está aqui evidenciada nos conhecimentos huas empíricos do mestre, decorrentes de uma larga experiência de trabalho, ao longo de vários anos, em que não dispensa a liberdade de tomar decisões, quando confrontado com os problemas. Nesta arte da construção naval a última palavra sempre dependeu, em larga medida, da capacidade de decisão e execução prática do mestre. Aliás, Fernando Oliveira sublinhou a importância dessa liberdade de ação dos carpinteiros navais, ~ cousas desta fabrica se bem como dos seus conhecimentos na execução da obra, nestes termos: “(…)mutas ~ cousa sem arte, mas antes cumpre remetem ao aluidro do boofficial, não se entende por isso, que se faça algua ~ que q sayba o tal official tanto da arte, que se possa isso confiar delle, & tanta pratica, & tão boentendimeto, 37 possa acrecentar na arte cousas boas & necessárias: (…).”
34 Segundo o mestre Jaime Costa são as curvas de sicórdia que sustentam as embarcações de caixa aberta: “(…) as curvas de sicórdia, essas é que são mesmo árvores que têm que ter uma certa resistência e fortaleza que é o que aguenta a embarcação de caixa aberta; (…).” Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 35 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 36 OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.81 37 Idem, op. cit., p.79
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Efetivamente há uma característica que é comum aos profissionais de carpintaria naval, independentemente do tempo em que viveram, o do conhecimento procedente só da prática vivencial. Foi, de facto, no exercício constante do seu ofício que o saber destes homens se consolidou. Ainda no âmbito do processo de recuperação da estrutura transversal do varino, verificou-se após a colocação dos bancos reais, a montagem dos vaus ou latas como continuação do reforço transversal, de modo a conferir uma maior resistência ao casco, contra a pressão exterior, exercida nas amuradas da embarcação. Estas peças são barrotes em madeira de mogno, dispostos de bombordo a estibordo com um pequeno intervalo entre eles, com as extremidades assentes nos dormentes, formando a estrutura das cobertas da embarcação à proa e à popa. A importância destas peças foi também destacada no tratado de Fernando Oliveira do ~ braços pera os outros sobre os quaes se lançam as cubertas. seguinte modo: “(…) as latas, que atravessão dhus Estas serão firmes mays ou menos, segundo o tamanho dos nauios, & os mestres de que hão de seruir: (…). Alem de sostentarem as cubertas, lião tambem os costados hu~ co outro, como as traues das casas lião, & travão as paredes, (…).”38 Curiosamente Fernando Oliveira foi ainda mais longe ao explicar a razão por que se atribuiu o nome de latas a estas peças, “os nossos naturaes chamão latas, por que se armão sobrellas as cubertas dos nauios, como as parreiras sobre as latadas das uinhas.”39 Os vaus ou latas como eram conhecidas na centúria de quinhentos, são assim fundamentais na arquitetura da embarcação, na medida em que desempenham uma dupla função, o travamento contra deformações e funcionam como suporte de apoio ao tabuado dos pavimentos do convés da proa e da ré. Para rematar superiormente as cobertas destes espaços foram montados transversalmente os dois entreleitos, em madeira exótica. Estas duas peças, específicas das embarcações tradicionais do Tejo, têm como fim reforçar o banco real à popa e à proa, bem como evitar a entrada das águas pluviais no interior do varino. Ainda na zona do convés foram montados, a bombordo e estibordo, os trincanizes como reforço longitudinal do casco, tal como os dormentes, ajudam a travar as balizas. Os trincanizes são barrotes em madeira de mogno, montados sobre os vaus, junto às amuradas, onde recebe o forro interior da borda40. Têm uma particularidade na sua configuração, apresentam um recorte na madeira, feito até ao centro da peça, formando uma espécie de degrau, para receber as tábuas dos pavimentos do convés da proa e da popa. Este formato exigiu toda uma operação manual que consistiu em escavar as peças com o auxílio de uma enxó de cabo comprido. Nos trincanizes abriram-se ainda uns furos com saída para o costado, onde foram introduzidas as boeiras41, para escoamento das águas nas cobertas. Como reforço longitudinal da estrutura foram montadas interiormente as duas escoas, em madeira de pinho manso, uma de bombordo e outra de estibordo, ao lado do pau de aresta e na altura dos encolamentos, ou seja, nas ligações dos braços às cavernas, para travar a união dessas duas peças, como é exposto num dado
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Idem, op. cit., p.113 Idem, op. cit., p.114 40 A borda é o limite superior do costado. 41 As boeiras são uma peça maciça e ligeiramente curvada, furada ao meio, com duas cavidades para entrada e saída da água. No processo da sua execução foram escavadas em duas metades, com a ajuda da enxó, seguidamente foram unidas, através da técnica de malhete, ou seja, as duas peças foram encaixadas uma na outra, cujos bordos de encaixe foi um trabalho feito pela tupia. 39
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momento da já mencionada entrevista: “Depois dos dormentes e das sicórdias, começamos nas escoas, as escoas que são o entravamento do encolamento.”42 As escoas como são tábuas de grande comprimento, tiveram que ser obrigatoriamente aplicadas em duas partes, unidas por meio de escarvas. Com a reconstrução e a montagem das peças estruturais do esqueleto ficou terminada uma primeira fase dos trabalhos do processo de recuperação do varino, à qual se seguiu a fase de desmontagem do velho tabuado, os pavimentos, o revestimento exterior como forros, cintas, falcas, alcatrates e ainda a montagem do pau de aresta e do pau de quilha, no fundo da embarcação. Esta segunda etapa foi marcada pela preocupação em revestir a ossada, de modo a completar o casco e a impermeabilizá-lo das águas da chuva que se avizinhavam, com a proximidade da estação invernosa. Assim, como remate superior do casco procedeu-se à execução do tabuado dos pavimentos do convés da proa e da popa, constituído por tábuas de madeira africana, foi aplicado transversalmente sobre os vaus, em carreiras retilíneas de um bordo a outro. As tábuas ligadas a topo, foram pregadas aos vaus com cavilhas de ferro zincado e as fiadas ficaram separadas por costuras. O revestimento exterior iniciou-se com a montagem das cintas, duas grossas e compridas tábuas de pinho manso que se estendem ao longo do costado, para reforçar e consolidar o casco da embarcação. Por serem peças longitudinais de grande comprimento foram, primeiramente, apertadas com grampos para vergarem e se ajustarem aos sítios de encosto e só depois foram pregadas. Em cada bordo foram colocadas duas cintas, a pequena e a grande, ficando a cinta grande ligeiramente abaixo da pequena. A sua importância na construção naval, enquanto peças que servem para conferir solidez à embarcação, foi também referida por Fernando Oliveira no seu tratado: “As cintas tambem são necessareas, & são mais grossas dous dedos, ou mays, que as tauoas, mas não tão largas comeellas. São tão largas como grossas, (…) & assy he necessário, para liarem, & fortalecere~ os nauios.”43 Após as cintas seguiram-se as falcas, duas tábuas longitudinais em madeira de mogno que correm da proa à popa, uma por cada bordo, montadas na parte superior da cinta e sob o alcatrate. Sendo as últimas tábuas do costado, formam com o alcatrate a borda da embarcação. O revestimento do costado seguiu-se com a montagem das tábuas de alcache, em madeira de mogno, uma a bombordo e outra a estibordo, estas tábuas ficam situadas entre as cintas e tal como as outras peças dispõem-se longitudinalmente, sendo ligadas aos braços por meio de cavilhas. Para rematar superiormente os costados do varino procedeu-se à aplicação dos alcatrates, construídos também em madeira de mogno. Estas peças longitudinais que se desenvolvem da proa à ré foram montadas sobre o topo dos braços e foram ligadas através de cavilhas aos chaços.44 Nos intervalos dos cabeços45,
42
Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. Idem, op. cit., p.118. 44 Os chaços são calços de madeira que foram montados no intervalo dos braços, com a função de reforçar a parte superior da embarcação e, essencialmente, para receberem as cavilhas dos alcatrates. 45 Os cabeços servem para fazer as amarrações dos cabos, o varino “O Boa Viagem” tem seis à ré, três de cada bordo e à proa quatro, dois a estibordo e dois a bombordo. Somente os cabeços da ré, construídos em madeira de mogno, foram substituídos, logo no início da montagem da estrutura transversal. Segundo o mestre Jaime Costa os cabeços devem ser peças bem firmes, uma vez “que é a parte onde roçam mais os cabos e têm que ter muito mais resistência quanto à fricção e quanto ao apodrecimento, (…).” Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 43
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tomam a designação remates de alcatrate. A partir dos alcatrates sabemos também se a embarcação sofreu ou não o fenómeno do alquebramento, deformação da parte central do casco, se a linha superior da embarcação, quando observada de frente, se apresentar direita e sem a curva, está alquebrada. Além de fecho do revestimento interno e externo, os alcatrates funcionam ainda como suporte para a fixação das ferragens do mastro. O tabuado que reveste o exterior do esqueleto ou ossada da embarcação só foi possível de ser executado depois de terem sido montadas as cintas, as falcas e as tábuas de alcache. A este respeito o mestre Jaime referiu: “(…) eu tive uma maior sensação de que devíamos arranjar o barco todo por cima e por dentro, porque vinha o inverno e então as madeiras como estavam secas, nós conseguíamos melhor impermeabilizá-las com tinta e então foram os forros, foram as falcas e as cintas; toda essa estrutura foi feita antes de começar a fazer o forro.” 46 O forro está aqui relacionado com o tabuado exterior da embarcação. Este tabuado é constituído por carreiras de tábuas com o maior comprimento possível e com uma determinada espessura, encontrando-se ligadas entre si topo a topo. A tábua de boca, em madeira de mogno, foi a primeira fiada a ser montada, uma em cada bordo, a seguir à cinta grande. As restantes fiadas de tábuas, sem designação específica, foram em madeira de pinho bravo, com quatro centímetros de espessura, sendo cada carreira cavilhada para os braços. Tal como já foi referido anteriormente, por se tratar de peças longitudinais, a sua montagem foi feita com o auxílio de grampos, para ajustar as tábuas ao longo do costado. Mas antes de se proceder à montagem deste tabuado houve necessidade de desempolar os braços com uma plaina elétrica, de modo a ficarem todos certos e ao mesmo nível, sem quaisquer irregularidades, para poderem receber o forro. Sendo o revestimento do costado o que confere impermeabilidade, constituiu desde sempre uma fase de trabalho importante que exigia procedimentos na construção naval, Fernando Oliveira, no Livro da Fabrica das Naus, dá-nos indicações interessantes sobre o tabuado exterior das embarcações, chegando mesmo a fornecer algumas dimensões e regras para esse tabuado: “Sobre os ossos & neruos tem os corpos naturaes couro, ou pele: & assy tem os nauios tauoado sobre o liame. A este tauoado chamão os nossos carpenteyros costado. O qual costado, ou tauoado, tambem ha de ser conforme ao tamanho do nauio, & ao mester em que ~ & per ha de seruir, & a uiagem q ha de fazer: por que os nauios grandes, & os que hão de fazer grades viages mares brauos (…), hão mester costados fortes, de tauoado grosso, & dobrado, se comprir. (…) A grossura das tauoas do proprio costado em nauios grandes e fortes, não seraa menos de quatro dedos, em especial, se a madeyra for branda & leue, como he a do pinho, (…) por que (…) outras madeyras ryjas, & pesadas, podem ~ que he muyta sofrer menos grossura hum pouco: porem não seja menos de tres dedos. (…) Não cuyde algue, ~ isso abasta:”47 grossura para tauoa, quatro dedos, por q tanta a uiolencia do mar & uento, & o peso da nao, que ne Pela transcrição verificamos que a grossura das tábuas dependia assim não só do tamanho dos navios, como também do tipo de transporte e de mares a que se destinava, sugerindo para algumas situações um forro em duplicado. Não podemos, contudo, esquecer que estas normas eram dirigidas para a construção de embarcações que navegavam no mar oceânico, não estão aqui contempladas as fluviais. Embora não tivessem
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. Idem, op. cit., pp.117-118
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sido consideradas neste tratado, não se põe sequer em causa que estas embarcações miúdas do Tejo fossem construídas com técnicas navais diferentes, o que nos leva a pensar terem sido comuns as regras e os procedimentos a ambos os tipos de construção, em muito idênticos aos atuais. Quanto ao tabuado do fundo, o varino “O Boa Viagem” manteve o seu velho revestimento, devido ao bom estado de conservação das suas madeiras que ao estarem em permanente contacto com a água salgada foram preservadas, o mestre Jaime Costa fez alusão às tábuas do fundo, do seguinte modo: “Ele tem o fundo original e vai ficar com o fundo original, são tábuas da proa à ré inteiras, serradas à mão, não havia charrions naquela altura para serrar… e ele vai ficar porque são tábuas que estão ali, penso eu, há cinquentas anos. “(…) a última reconstrução, de certeza absoluta, que aquele fundo foi todo substituído, não sei se é o fundo primitivo, mas ele está completamente bom, até inclusivamente o prego que era uma coisa que normalmente criava algum problema, mas não, o prego também estava bom.” 48 Sendo o varino uma embarcação de fundo chato, não tem quilha, mas apresenta em seu lugar um barrote saliente, o pau de quilha, que tem a função de servir de base ao tabuado do fundo. Ora houve necessidade de substituir, a partir da proa, uma fração de nove metros deste pau de quilha que se encontrava deteriorado. Esta peça foi construída manualmente49, em pinho manso, com a ajuda de uma enxó50 que serviu para desbastar a madeira e dar-lhe a configuração desejada nas zonas de junção, com a roda de proa e com a restante parte do pau de quilha. Nestas junções e para lhes conferir uma maior solidez, utilizou-se o método da escarva e as cavilhas de entalhe,51 na montagem ao longo do plano longitudinal, foram utilizados pernos zincados em rosca, para uma ligação mais sólida às cavernas. Ainda em relação ao fundo da embarcação é de mencionar a substituição dos paus de aresta, construídos em pinho bravo, um por cada bordo. Estas duas peças funcionam como remate, fazendo a ligação entre as tábuas do fundo com as tábuas do costado e são cavilhadas para as balizas, nas zonas dos encolamentos, com vista a reforçar longitudinalmente, em conjunto com as escoas, montadas no interior, o casco da embarcação. Na proa como não se pode dar continuidade ao pau de aresta, devido à configuração demasiado curva do fundo, foram construídas peças também em pinho bravo com, mais ou menos, quatro metros de comprimento, a terminar em bico e que recebem a designação de bicos ou agulhas dos paus de aresta. Estas duas peças foram depois solidamente ligadas uma à outra pelos topos, com cavilhas de madeira para conferir estanquecidade a essa zona, pois as cavilhas ao entrarem em contacto com a água, dilatam e evitam as infiltrações de água no interior da embarcação. A preparação dos paus de aresta e das agulhas são das peças mais difíceis de trabalhar, além de exigirem
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. No processo de construção do pau de quilha é de referir ainda como foi feita as linhas de traçagem no tronco, para a qual se utilizou a técnica designada por “bate-linha”. Esta operação consiste em marcar a peça de madeira com uma linha embebida no almagre, essa linha é esticada ao longo do comprimento do pinheiro e fixada nas extremidades, a linha é então levantada a meio e largada simultaneamente, fazendo de mola, fica marcado no tronco um traço que irá servir de marcação para a futura construção da peça. 50 Enxó de cabo comprido. 51 As cavilhas de entalhe são cavilhas redondas, feitas de madeira, utilizadas nas zonas de junção de duas peças, funcionam como vedante, pois ao estarem em contacto com a água sofrem dilatação, evitando por conseguinte as infiltrações de água. 49
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troncos de grande comprimento, são feitas praticamente com ferramentas manuais52 que ajudam a desbastar a madeira para lhes dar a configuração côncava. A propósito da dificuldade de construir determinadas peças de carpintaria naval o mestre Jaime Costa afirmou: “(…) os paus de aresta que são árvores inteiras que levam o que é ali a separação do fundo com o costado, fazem ali a ligação do fundo com o costado; são as agulhas dos paus de aresta e os mancos, são as peças mais difíceis que esta embarcação tem, ou seja, roda de proa, as curvas de sicórdia, as escoteiras, onde é que engatam a escota da vela, os paus de aresta e as mãozinhas de cinta que nós estamos agora aqui assim, vamos trabalhar com elas, são estas as peças, assim, mais difíceis que a gente encontra neste barco.” 53 As mãozinhas de cinta referidas no excerto da entrevista são duas peças (uma a bombordo e outra a estibordo) que prolongam as cintas e fazem a ligação ao caneco, como tal funcionam como peças de remate à proa da embarcação. Devido à sua forma acentuadamente curva foram construídas em troncos de pinho manso com volta. Como peças de acabamento, à proa e à popa, temos ainda os barbados, um por cada bordo, construídos em madeira de mogno, foram montados na continuidade da falca, ajudando a reforçá-la exteriormente. Os barbados têm nestas embarcações tradicionais do Tejo uma particularidade muito especial, são os espaços dedicados a receber os ornamentos decorativos. O fecho do costado à proa, só foi concluído com a montagem das emendas54, outra área da embarcação reservada a receber pinturas ornamentais; enquanto à ré o revestimento foi finalizado com a montagem das tábuas do painel de popa. Além do tabuado do costado e do fundo, procedeu-se a outros trabalhos no interior da embarcação, relacionados com acessórios e equipamentos para apoio dos serviços a bordo e indispensáveis para o seu bom funcionamento, tais como os passadiços55, os paneiros56, as anteparas57, a casa de banho58, os beliches59, a chaleira60 e os armários61 para guardar os meios de salvação, as louças e os produtos de limpeza. Em relação a estes trabalhos o mestre Jaime Costa fez a seguinte menção: “Aqui na parte interior, (…) falta no barco acabar os passadiços e fazer os paneiros porque inclusivamente as anteparas, as casas de banho, criamos uma nova
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As ferramentas manuais utilizadas na construção dos paus de aresta foram a enxó de cabo comprido, a enxó normal e o machado. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 54 As emendas são as peças que dão continuação ao tabuado do costado, mas na parte arqueada da proa. 55 Os passadiços têm a forma de um corredor em madeira com uma varanda voltada para o interior, servem fundamentalmente para as pessoas circularem e poderem apreciar a paisagem no decorrer do passeio fluvial. Foi montado um passadiço por cada bordo do varino. A sua estrutura em madeira de mogno foi fixa à embarcação e o seu pavimento foi feito de pinho bravo. Os passadiços não estão relacionados com a estrutura tradicional do varino, são uma inovação adaptada às novas funções culturais da embarcação. 56 Os paneiros são estrados amovíveis, foram construídos em madeira de pinho bravo e servem para tapar o cavername do fundo, funcionando como pavimento. No inverno estes paneiros são levantados para arejamento da embarcação. 57 As anteparas da popa e da proa foram construídas em madeira de mogno, são divisórias que delimitam o interior da embarcação da zona do convés de vante e da ré. A antepara da popa assume grande importância porque é um espaço destinado a receber a pintura decorativa mais emblemática do varino. 58 A casa de banho foi construída contra a antepara da proa, num dos bordos da embarcação, em madeira de pinho bravo, contemplou as necessidades atuais exigidas a bordo, aquando dos passeios fluviais. 59 Os beliches foram construídos no bico da proa, um a bombordo e outro a estibordo, com os suportes de madeira pregados à antepara. Na coberta da popa, onde está localizado o motor, foram igualmente construídos outros dois beliches que, entretanto, funcionam como prateleiras para arrumar apetrechos associados ao motor da embarcação. Em tempos estes compartimentos funcionavam como espaços de acolhimento para descanso da tripulação. 60 A chaleira é uma caixa aberta, montada sob o armário da louça e alinhada com a casa de banho, funcionava antigamente como reservatório para guardar a lenha e o carvão. 61 O armário para guardar os coletes e os produtos de limpeza, foi construído em madeira de pinho bravo, contra a antepara da proa, no bordo oposto à casa de banho. O armário da louça foi construído ao lado da casa de banho, também em pinho bravo. 53
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repartição também para os meios de salvação para não andarem atirados, fica tudo mais bem protegido porque não se causa tanta deterioração, a casa da máquina fica maior, fica com capacidade para ter o tanque de gasóleo e mais tarde para se meter um gerador, (…).” 62 Em concomitância com estes afazeres preparou-se a construção da coicia ou carlinga, a montagem da buçarda, das escoteiras e da cana de leme. Na coberta da proa, além de se ter construído a casa de banho e os armários, foram também preparadas as cavernas cavalo para se proceder posteriormente à montagem da carlinga. Estas cavernas são cinco e foram ligeiramente escavadas, de forma a criar um sulco ao meio que serviu para encaixar ou emalhetar, no sentido vante ré, a referida coicia ou carlinga, uma peça retangular, de tamanho, largura e espessura considerável, construída em pinho manso, onde foi assente a base do mastro. A operação do ajustar a carlinga às cavernas cavalo constituiu um trabalho moroso que exigiu uma grande mestria e perfeição, visto que se trata de uma zona sujeita a grandes esforços, provocados pela força vélica no mastro, quando a embarcação se encontra a navegar. Daí a preocupação em criar uma estrutura estável e robusta para suportar o peso do mastro e da vela. A importância do conjunto de todas estas peças, como sustentáculo do sistema de propulsão do varino, foi também mencionado pelo Jaime Costa na sua entrevista: “Temos aqui as cavernas (…), principalmente na zona do mastro que é a parte que sofre mais com os impulsos do mastro nas ondas e na navegabilidade, elas foram todas substituídas porque têm uns cavalos que segura, tem uns cavalos laterais que são maciços que é onde é que segura a coicia do mastro, é o encavador do mastro, essa parte aí, nós não podemos deixar de descuidar, essa parte é muito importante, porque o serviço que hoje faz o Município é servir as pessoas (…) e nós temos que ter todos os cuidados na parte vélica, neste sentido não podemos descuidar, como nas outras também são importantes, mas esta principalmente é uma das importantes (…).” 63 Ainda relacionado com o mastro, a meio do convés da proa e no momento da colocação do tabuado, foi deixada uma abertura quadrangular, devidamente envolvida por tábuas de madeira de pinho manso, as quais recebem a denominação chapuz de enora, a fim de evitar a entrada de água no interior da embarcação. Esta abertura no pavimento do convés, com a designação de enora, tem a função de permitir a passagem do mastro até à carlinga. No convés da proa foi também montada a buçarda, uma maciça curva de madeira que remata superiormente a vante do varino e ajuda a reforçar a ligação dos dois costados à roda de proa. Esta peça não foi substituída, somente sofreu tratamento em autoclave para conservação da madeira e foi depois aplicada no seu lugar. A buçarda tem uma particularidade, acolhe na frente, uma cercadura de elementos ornamentais, pintados, em fundo branco. No convés da popa foram montadas as escoteiras, uma a bombordo e outra a estibordo, mas ligadas entre si, a um dos topos, através de uma escarva de dente. Fazem parte do grupo de peças navais de difícil execução, pois devido à sua configuração, em ângulo de noventa graus, exigiu um tronco de pinho manso com a curva pretendida e espessura considerável. Por esta razão foram peças trabalhadas, na sua grande parte, manualmente,
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011.
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com o emprego das ferramentas do passado, como a velha enxó de cabo comprido, de forma a modelar as superfícies e as curvas das madeiras às formas e dimensões desejadas e que seria impossível de realizar com o uso de ferramentas elétricas. As escoteiras são fundamentais quer para o reforço do painel de popa, quer para a fixação das escotas64 da vela grande, por isso são peças que detêm uma grande resistência, a fim de sustentarem os esforços que lhes são incutidos quando a embarcação vai a velejar. As duas escoteiras receberam ainda a montagem horizontal do varão de escota, em inox de quarenta milímetros, com a função de segurar os cadernais da escota dobrada da vela, particularmente nas situações em que predominam os ventos de nortada e por conseguinte mais fortes, em que há necessidade de reduzir a área de pano. Concluídos os trabalhos de carpintaria, procedeu-se à fase dos acabamentos, nos sítios dos cavilhamentos, foram coladas rolhas de madeira que haviam sido executadas com o propósito de taparem as cabeças dos pregos e das cavilhas que se encontravam embebidas na madeira, na altura da pregadura, para que toda a superfície da embarcação ficasse com um aspeto uniforme. Seguiu-se a fase do afagamento das referidas rolhas, com a utilização de uma lixadeira elétrica, com vista a dar uma apresentação mais lisa às madeiras. Paralelamente começou a ser feito o calafeto da embarcação, de maneira a ficar preparada para receber os produtos finais de conservação, a primeira demão de primário e a pintura de tinta de óleo.
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As escotas são os cabos que governam a vela grande.
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SUBIDA NO PLANO INCLINADO E DESMANTELAMENTO
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Subida da embarcação no plano inclinado. (Foto de José Presumido)
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Remoção dos velhos braços e cavernas de madeira. (Foto de José Presumido)
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Remoção das cavilhas dos braços, utilizando a marreta de ferro. (Foto de José Presumido)
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CONSTRUÇÃO DOS BRAÇOS E DAS CAVERNAS
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Cortar parte das madeiras com moto serra para produção de braços. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Preparação do molde de um braço, a partir do que está montado para ficar paralelo àquele. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Pormenor do corte na serra circular, pela linha do molde, do excedente de madeira no braço. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Passar o desenho do molde para o braço. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Acertos finais do braço, na serra circular, cortando pela linha do molde, o excedente de madeira na peça. (Foto de José Presumido)
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Trabalhar o braço, aplainando e medindo com suta as inclinações da peça. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Fazer os sutamentos com a tábua de escantilhões e a suta. (Fotos de Paulo Guerreiro)
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Montagem de um braço. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Medir com fita para ajustar as distâncias entre os dois braços e acertar o respetivo braço que está a ser montado. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Retirar o excedente de madeira com a enxó, para acertar a zona do encolamento. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Cavilhas utilizadas na ligação do braço à caverna. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Furar com o berbequim, a zona do encolamento do braço com a caverna, para posterior cavilhamento. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Pregar o braço com cavilhas, provisoriamente, ao costado velho. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Marcar e aparar o braço com plaina elétrica. (Foto de Paulo Guerreiro)
Preparar madeiras para cavernas, cortando com moto serra o excesso das peças selecionadas. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Montagem da caverna mestra. (Foto de Paulo Guerreiro)
Passar ou traçar o desenho do molde da caverna para a peça de madeira. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Aplicar tinta de aparelho nos braços antes da montagem da sicórdia. (Foto de Paulo Guerreiro)
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RODA DE PROA, CAPELO OU CANECO
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Montagem das duas peças da roda de proa, procurando encaixar as duas escarvas. (Foto de José Presumido)
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Molde do desenho da roda de proa já colocado sobre a peça, para se proceder aos acertos finais. (Foto de José Presumido)
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As duas peças da roda de proa já foram encaixadas pelas escarvas e seguidamente foram apertadas por um grampo. (Foto de José Presumido)
Roda de proa já montada, vista do interior da embarcação. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Roda de proa montada, mas sem o caneco ou capelo. Apresenta já montadas duas tábuas no costado. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Pormenor da montagem do tabuado no rebaixe da roda de proa, alefriz, no qual são pregadas o topo das tábuas. (Foto de Paulo Guerreiro)
Pormenor do corte na peça do caneco ou capelo, realizado pela serra circular. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Preparação do caneco ou capelo, cortando o excesso de madeira na serra circular, pelas medidas que foram retiradas do molde. (Foto de Paulo Guerreiro)
Trabalhar as faces do caneco ou capelo, com o maço e o formão, após o corte na serra circular. (Foto de Paulo Guerreiro)
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PAINEL DE POPA
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Mancos já montados na popa. (Foto de Paulo Guerreiro)
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DORMENTES
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Molde da escarva do dormente. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Interior do painel de popa, com o cadaste, mancos e cabeços montados. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Passar o molde da escarva do dormente para a peça de madeira. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Início da montagem do dormente grande de estibordo, procurando fazer o encaixe na escarva, para o efeito foram ajustando a peça aos braços, através da colocação de grampos. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Sambrar a escarva do dormente grande, onde vai assentar a sicórdia. Sambrar significa acertar com a serra de sambrar as duas faces que ficam entre duas peças de madeira, quando montadas muito juntas. (Foto de Paulo Guerreiro)
Pormenor da escarva do dormente pequeno, com rolhas de madeira coladas sobre as cavilhas. (Foto de Paulo Guerreiro)
Perspetiva dos dormentes com as rolhas de madeira coladas sobre as cavilhas. (Foto do Paulo Guerreiro)
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Rolhas de madeira para tapar as cabeças das cavilhas. (Foto de Paulo Guerreiro)
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BANCO REAL
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Preparação do molde do banco real da proa. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Colocação do molde do banco real na peça de madeira, com vista a traçar o seu desenho. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Aplainar o banco real até ficar na esquadria pretendida. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Peça em esquadria, ou seja, a face tem que ficar direita com o esquadro. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Cortar a madeira com maço e formão para fazer o encaixe do banco real. (Foto de Paulo Guerreiro)
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SICÓRDIA E CURVA DE SICÓRDIA
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Preparação da sicórdia, medindo com suta e aplainando para ficar com as dimensões pretendidas. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Encaixe do banco real no braço, após a sua montagem. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Montagem da curva de sicórdia da popa, de estibordo. (Foto do Paulo Guerreiro)
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VAUS OU LATAS, CINTAS E TABUADO
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Montagem dos vaus ou latas na coberta do convés da popa. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Cavilhamento das tábuas do costado, com a marreta. Na fase final substitui-se a marreta pelo maço, para bater nas cabeças das cavilhas e não ferir a madeira. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Cinta pequena de estibordo montada. (Foto de Paulo Guerreiro)
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O cavilhamento do tabuado do costado foi feito topo a topo. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Fasquiar uma tábua entre duas. O traço em baixo significa a largura do braço, o traço vertical em cima é o meio da medida do braço e os dois traços ao lado (feitos pelo compasso) são a largura da tábua que vai ser aplicada. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Desbastar a madeira com uma enxó, de forma a aparar o painel para receber o tabuado. (Foto de José Presumido)
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Lixar as rolhas de madeira que foram coladas sobre as cavilhas, como estas se encontravam salientes em relação ao tabuado do costado, tiveram que ser aparadas. (Foto de José Presumido)
Usando o desandador para embutir as cavilhas na madeira, de forma a não ficarem salientes. (Foto de José Presumido)
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PAU DE ARESTA
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Perspetiva das agulhas do pau de aresta já montadas. (Foto de José Presumido)
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PAU DE QUILHA
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Aplainar o pau de quilha. (Foto de José Presumido)
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Furar com berbequim o topo, entre duas peças, do pau de aresta, para se proceder à montagem da cavilha de madeira. (Foto de José Presumido)
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Tirar as medidas ao pau de quilha com a ajuda de um compasso, ou seja, fasquiar o pau de quilha para fazer os encaixes, de forma a ficarem ajustados aquando da sua montagem, nas cavernas. (Foto de José Presumido)
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MONTAGEM DAS ESCOTEIRAS
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Montagem da escoteira, no lado de bombordo da embarcação, sendo apertada com grampos para ficar ajustada ao sítio e facilitar a sua posterior fixação, através de cavilhas. (Foto de José Presumido)
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Perspetiva das duas escoteiras já montadas. (Foto de José Presumido)
2.3. TRABALHOS DE CALAFETO
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2.3. TRABALHOS DE CALAFETO
“ (…) claro estaa, que se os nauios não forem carafetados, não poderão nauegar:”1
Após a recuperação/construção das peças de carpintaria naval do varino “O Boa Viagem” seguiu-se a impermeabilização do casco, através da antiga técnica do calafeto, um trabalho que consistiu em vedar com estopa, as costuras dos tabuados das cobertas da proa e popa, do costado e do fundo da embarcação. Trata-se de um procedimento técnico secular que persistiu no setor da construção naval em madeira, em virtude de não se ter conseguido arranjar uma outra solução mais apropriada que resolvesse o problema tão satisfatoriamente da estanquecidade das juntas das madeiras como o calafeto. Por este motivo, trata-se de um trabalho imprescindível e de grande importância, sem o qual nenhuma embarcação poderia navegar. O mestre Jaime destacou a relevância do ofício de calafate nestes termos: “Os calafates são pessoas extraordinárias, eles é que dão a impermeabilização à embarcação, eles é que vêem se de facto a embarcação está pronta ou não, ou descobrem onde é que estão os podres, (…), cada bocadinho desta madeira é percorrido com eles, cada costura destas tábuas ao encostarem uma na outra, eles de facto, é que fazem esse trabalho.”2 Ao confrontarmos esta informação com a de Fernando Oliveira, verificamos que o autor expõe cuidadosamente a mesma perspetiva quando fala dos calafates no Livro da Fabrica das Naus: “E como quer que seja, os carafates são obrigados a olhar todas as juntas, & partes dos nauios, per onde a aogua pode penetrar, ou calar dentro, & carafetadas todas estopandoas & breandoas de modo que nenhum humor possa entrar per ellas pouco ne~ muyto, não soomente por não alagar os nauios, mas tambem por não damnar a fazenda ~ q nelles vay. (…) Tambem atentarão co escoupro as tauoas, se não podres, ou eybadas3: & farão tirar as ruys, & por e seu lugar outras boas, & sãas: por que os carpenteyros não atentão por isto, & posto que atentem, o carafate he como reuedor destas faltas.”4 Sendo os calafates os profissionais que procediam à revisão minuciosa de todo o trabalho por inerência das suas funções, ao verificarem as juntas de todos os tabuados, através do calafeto, iam também assinalando a necessidade de substituição de alguma tábua que se encontrasse podre ou estalada. Daí a importância do seu ofício, posto que eram os calafates que davam o remate à construção naval. Este saber técnico é mais um conhecimento tradicional herdado do passado e que tivemos a oportunidade de assistir no decurso da recuperação do varino. Com vista a colmatar as fendas deixadas pela junção das tábuas, de modo a evitar a entrada de água, todas
1
OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, p.118 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 3 Rachadas, fendidas. 4 OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.119 2
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as costuras da embarcação foram devidamente tapadas ou calafetadas com estopa alcatroada5, uma mistura de sisal com linho, comprada pelo estaleiro numa drogaria do Montijo. Relativamente a esta matéria-prima, utilizada no calafeto, já o autor quinhentista6 dizia que a estopa “he ella tão apta pera isto, que ne~ lam, nem ~ algodão, nem outra especia de lanugem se pode applicar a este mester tambem comeella: por que nenhua estanca as aoguas comeella. Ella he mole, & ajuntase, & despoys de molhada incha: & mays toma be~ o ~ a milhor pera carafetar os nauios he a estopa.”7 breu, ou seuo, ou qualquer betume.(…) Finalmete As qualidades da estopa, realçadas naquela época, como a maleabilidade, a agregação e a capacidade de dilatar com a água, convertendo-se num vedante eficaz, são ainda hoje as mesmas que mantêm a sua utilização no calafeto, o que prova, mais uma vez, a importância dos conhecimentos empíricos dos profissionais ligados à construção naval. Antes de ser aplicada, a estopa exigiu uma preparação adequada que passou primeiramente pela limpeza de todo o tipo de impurezas que eventualmente pudessem colocar em causa o bom resultado da obra, uma tarefa que é da inteira responsabilidade do calafate. Na realização deste serviço houve procedimentos essenciais que foram sendo praticados consecutivamente pelos dois oficiais8, de forma metódica e repetitiva, tais como desfiar ou abrir, limpar, torcer e por último enrolar o fio de estopa, de modo a formar um novelo, com vista a ser utilizado na fase subsequente. O calafate Leonel Lopes referiu-se a este trabalho preparatório da seguinte maneira: “Primeiro desfia-se, abre-se e depois torce-se, vai-se torcendo e é feito assim …“ Um pouco mais adiante acrescentou: “Neste trabalho novo, a fazer e a meter, é sempre dois novelos. É fazer dois de manhã que é para meter à tarde. De manhã faz-se dois novelos que é duas horas cada um, para desfiar e torcer e depois para meter é mais ou menos duas horas. É conforme o trabalho que tiver, há situações que leva mais estopa, há situações que levam menos, é conforme o trabalho.” 9 Pelo exposto verificamos que o trabalho de calafeto no varino “O Boa Viagem” foi organizado, de forma a corresponder às necessidades laborais do quotidiano. Cada calafate tinha diariamente a incumbência de preparar, durante a manhã, os seus dois novelos de estopa, os quais eram depois aplicados nas costuras dos tabuados, no período da tarde. A feitura de cada um destes novelos, associada a todo um conjunto de ações que lhe são inerentes (desfiar, limpar, torcer e enrolar), ocupou duas horas do tempo do calafate, apresentando-se como uma tarefa não só demorada, como também imprescindível para levar a bom termo o calafeto na embarcação. A qualidade e a preparação da matéria prima são condições essenciais, mas não suficientes, o trabalho de preenchimento das juntas tem que ser bem executado e obedece a regras técnicas muito precisas. Em obras novas, como é o caso da nossa embarcação municipal, a norma é de aplicar sempre duas estopas,
5 O mestre Jaime Costa, na sua entrevista, referiu-se à estopa como sendo alcatroada, para uma maior durabilidade da mesma: “é uma ráfia alcatroada precisamente como se usava antigamente, (…).” 6 Fernando Oliveira ao salientar as qualidades da estopa no calafeto, faz uma comparação com outras matérias primas e expõe as razões pelas quais ~ liga, por que he curto: os cabellos & sedas, tambem não são as mais adequadas: “A lam he hirta, & não se encorpora co elles: o algodão não incha, ne são hirtos, (…) & todas espedem o breu & seuo, que são necessários nesta obra.” op. cit., p.73 7 OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.73 8 O Leonel Lopes e o Noel Carromeu foram os dois calafates que trabalharam no varino. 9 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011
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de forma a tapar bem as fendas e arredar a hipótese de entrada de água por essas costuras. O calafate Leonel Lopes pronunciou-se sobre este assunto, dizendo: “Quando estamos a meter estopa de novo, faz-se o primeiro cordão, a primeira estopa que é para abrir mais a costura para dar entrada à outra que vai a seguir. Tem-se que fazer, pelo menos, duas estopas, neste barco são sempre com duas estopas porque o tabuado é muito grosso. (…) São aqui nas cobertas, na coberta da proa, na coberta da ré, no costado e agora há de levar no fundo. É em todo, sempre com duas estopas. No fundo como o tabuado não é novo vai-se ver como ela está, se a estopa estiver podre tem-se que tirar, se ela tiver boa ela fica. Vai-se apalpar, se estiver rijo está bom, se estiver mole, leva outra por cima. Aí só leva uma. Tem-se que tirar um bocadinho para analisar se ela está boa ou não. No caso, da estopa estar boa e do calafeto estar bom, não leva nada, só leva um encalcamento e mais nada.” 10 A transcrição citada ajuda-nos a esclarecer que o número de estopas a empregar, depende, em grande parte, da grossura das tábuas, o que significa quanto maior for a espessura destas, maior será o número de estopas a utilizar. Aliás, Fernando Oliveira, no seu tratado sobre construção naval, faz a seguinte recomendação, sobre a quantidade de estopas a utilizar nas costuras das embarcações: “Estoparãa hu~ vez, & duas, & quantas for necessario, atee as fendas não poderem mays leuar, entopindoas a força de maço, com estopa limpa, & não podre.” 11 As juntas deveriam ser, assim, calafetadas com a estopa necessária, até ficarem completamente preenchidas. No varino “O Boa Viagem” foram aplicadas em todas as costuras dos tabuados, quer das cobertas da proa e popa, quer dos costados, apenas duas estopas, com exceção do fundo. Em relação a esta parte da embarcação, registou-se uma ligeira diferença, como o fundo manteve o seu antigo tabuado não necessitou de levar estopa na sua totalidade, apenas em algumas partes, onde o calafeto já não se apresentava em condições ou naquelas peças que haviam sido substituídas, como aconteceu com o pau de quilha e os paus de aresta. Nas zonas correspondentes aos tabuados velhos do fundo e com necessidades de levar calafeto novo, somente foi aplicada uma estopa; nas juntas onde não foi preciso aplicar, apenas se procedeu ao encalcamento. Através desta operação, os calafates foram não só introduzindo e ajustando a velha estopa nas costuras, como também foram verificando se estava em bom estado de conservação, procedendo às retificações sempre que se impunham como necessárias. Este preceito corresponde à quarta e última fase do processo, pelo que constitui o remate do trabalho de calafeto. Além do encalcar há a registar mais três normas técnicas que os calafates tiveram que proceder, por cada vez que, aplicavam uma estopa na costura e que se pode sintetizar da seguinte forma: primeiro abrir a costura, sempre que necessário o calafate tinha que utilizar o ferro de abrir, quando a costura se encontrasse muito apertada; segundo meter a estopa; terceiro picar a estopa para ficar à face da costura; quarto encalcar e assim dava por terminado a sequência do processo. Na entrevista feita ao Leonel Lopes, este foi-nos falando dos vários métodos de trabalho, ao mesmo tempo que mostrava as respetivas ferramentas que eram utilizadas em cada uma dessas fases: “Pronto desde a hora que a costura esteja muito apertada utiliza-se este ferro de corte que é para abrir, neste caso para cortar também serve; depois a seguir utilizamos este ferro que 10 11
Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.119
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Abrir as costuras dos tabuados para depois meter a estopa. (Foto de José Presumido)
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Picar a estopa nas costuras dos tabuados da coberta da popa. (Foto de José Presumido)
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Meter a estopa nas costuras dos tabuados da coberta da popa. (Foto de José Presumido)
Encalcar a estopa (4ª e última fase do trabalho de calafeto). (Foto de José Presumido)
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é para meter a estopa. Mete-se a estopa, atrás pica-se e depois utiliza-se a vassoura que é para assentar e depois então é que vai o ferro de encalcar e assim fica terminado o trabalho de calafeto. (…) O final é o encalcar, mas antes do encalcar, pica-se primeiro, picar é quando a estopa está assim fora da costura, pica-se primeiro até ficar à face da costura e depois é que leva o tal ferro, este de o encalcar, que é o final.”12 Se, entretanto, a costura não se apresentasse muito apertada, a primeira regra de procedimento do calafeto não se chegava a concretizar e os calafates passavam logo para a fase seguinte, ou seja, introduzir a primeira estopa, tal como foi referido pelo Leonel Lopes, a um dado momento da entrevista: “Abrir as costuras, conforme a costura que tiver, se for muito apertada tem-se que abrir primeiro, se tiver pronta a receber estopa, leva logo estopa direta. Depois leva a segunda estopa.” 13 Na realização deste trabalho foram utilizadas ferramentas especiais, como são os diversos ferros e o macete, uma peça em forma de martelo, construída pelos próprios calafates, em madeira de azinho e que tem a função de bater nos vários ferros que estes oficiais vão usando, à medida das costuras dos tabuados. O macete tem algumas particularidades na sua confeção, sem as quais não funcionava e que não podemos deixar aqui de mencionar: o cerne da madeira tem que ficar ao centro da pancada, está guarnecido por umas argolas para travar e não se partir, com o constante bater e ainda dispõe de umas pequenas aberturas na peça. A este propósito é de salientar, mais uma vez, a nossa conversa com o mestre calafate: “Está aqui o macete que é fabricado pelo calafate, só o calafate é que o faz, quer dizer o carpinteiro também o faz, mas pertence ao calafate fazer. É o macete, feito de azinho. O que dá o canto aqui ao maço, são estas serragens14 e o pau tem quer ter o coração ao centro da pancada, se não tiver o coração ao centro da pancada, o maço não canta, é mudo. Estas anilhas que tem aqui cravadas é para o maço nunca abrir, porque tem que ser muito bem encabado (…), porque estas serragens já estão abertas aqui, se não levasse aqui este travamento abria.”15 Todas estas características tão singulares numa ferramenta destinam-se, simplesmente, a dar um determinado som ao macete quando este bate nos ferros e cujo toque ajudou a caracterizar esta profissão como sendo um “trabalho alcoviteiro”.16 A manipulação deste instrumento é feita com grande destreza, de tal modo que para proteger o dedo mínimo da pressão dos ferros, os calafates tiveram que usar uma dedeira em pele. Na técnica de aplicar a estopa, foram utilizados não só os macetes, como também uma variedade de ferros, adaptados a funções específicas e destinados a auxiliarem estes profissionais a comprimir o calafeto nas costuras, através de pancadas cadenciadas, produzidas pelo macete. Alguns dos ferros utilizados, foram construídos pelos próprios calafates, em resposta às necessidades diárias do seu ofício, entre os quais destacamos o “maúge”, o ferro que serve para desencalcar, ou seja, para retirar a estopa velha e o gancho, um ferro que é quinado e ajuda a remover a madeira que se corta dentro das juntas, quando a costura está muito apertada. Além destes ferros que são o resultado do engenho, houve outros que também foram utilizados no calafeto, de que são exemplo, o ferro de apontar para meter a estopa nas costuras; o ferro de
12
Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. 14 O calafate quando fala aqui das serragens está a referir-se às aberturas, feitas no macete. 15 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. 16 Segundo o calafate, Leonel Lopes “O trabalho de calafate é um trabalho alcoviteiro por causa do som, porque o patrão sabe quando é que o calafate está a trabalhar.” Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. 13
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Abrir a costura dos tabuados para melhor facilitar a introdução da estopa (1ª fase do trabalho de calafeto). Nesta imagem é interessante verificar a técnica de posicionar o ferro entre os dedos e para proteger o dedo mínimo, enrola-o também com estopa. (Foto de Paulo Guerreiro)
O trabalho de calafeto no costado da embarcação. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Picar a estopa (3ª fase do trabalho de calafeto). (Foto de Paulo Guerreiro)
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Ferramentas do calafate (ferros de gornes, macete …). (Foto de José Presumido)
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gornes (um gorne, dois gornes, três gornes e quatro gornes) para encalcar as estopas, sendo usados conforme a largura das costuras dos tabuados; o ferro de corte para cortar a madeira nas juntas e torná-las mais largas; o ferro torto usado nos cantos e nas tábuas de alcache e finalmente o ferro de apalpar os pregos, destinado, como o próprio nome indica, a verificar se os pregos estão em bom estado. Relativamente a esta função do calafate, de verificar a situação dos pregos, foi também referida por Fernando Oliveira no Livro da Fabrica das Naus, como temos ocasião de constatar: “Atee nos buracos dos pregos cumpre que atentem, se ficão todos tapados com seus pregos: por que jaa acõteceo fazer buraco & não meter prego nelle: por tanto ao rebater atentem por tudo.”17 Esta verificação dos pregos é feita pelo toque e constitui uma tarefa muito importante, já que elimina todas as possibilidades negligentes que tenham eventualmente ocorrido no decurso dos trabalhos de carpintaria, garantindo a estanquicidade do casco. Leonel Lopes explicou como consegue reconhecer o estado de conservação de um prego: “Este é o ferro de apalpar os pregos, quando está pregos podres com isto a gente sabe logo, se o prego está podre ou não. Dando-lhe uma cacetada aqui, vê-se logo o toque, conhece-se pelo som, um toque é choco ou é um toque maciço. Quando bate parece que está choco, é um ovo podre, então quando está maciço, está bom.”18 Uma particularidade dos pregos utilizados no fundo da embarcação, em substituição dos velhos, retirados pelos calafates, foi de terem sido enrolados em estopa antes da sua aplicação, para uma maior proteção e estanquicidade. Após o calafeto e como forma da sua conservação, todas as costuras do varino foram religiosamente tratadas, com zarcão19 e massa de vidro20, para evitar que a água apodrecesse ou fizesse saltar fora a estopa. Este tratamento final consistiu em aplicar primeiro uma demão de aparelho, seguiu-se depois a massa de vidro e por último outra camada de zarcão, tal como foi referido pelo Leonel Lopes no seguinte excerto: “É o zarcão, isto é um aparelho, é para proteger a madeira e para entranhar na madeira. A primeira demão tem que ser muito diluída (…), na costura é para a massa agarrar bem na estopa. A seguir ao aparelho é que leva a massa e depois torna a levar tinta novamente. (…) Por exemplo a gente aqui faz a massa e depois aplicamos e no final a tinta. Leva primeiro outra demão em cima daquela e depois leva o esmalte para ficar, e o trabalho fica feito.”21 Com este trabalho de prevenção do calafeto, realizado também pelos calafates, terminou outra fase do processo de recuperação do varino “O Boa Viagem” que ficou, entretanto, preparado para receber as pinturas finais que constaram nas duas demãos de tinta de óleo ou de esmalte. Atualmente utilizam-se estas tintas como um meio de preservar as madeiras do casco, mas antigamente era o breu, uma cobertura feita à base de resina22 que se aplicava a quente. Em termos de conclusão deste assunto, podemos afirmar que o calafeto na embarcação municipal abrangeu dois meses de trabalho e consumiu entre cem a cento e quarenta novelos de estopa, com mais ou menos um quilograma cada um, o que nos dá um apuramento entre cem a cento e quarenta quilos de estopa utilizada, em todo o processo. 17
OLIVEIRA, Fernando, op. cit., p.119 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. 19 O zarcão é uma tinta de aparelho anticorrosiva para conservação das madeiras e do ferro. 20 A massa de vidro foi feita no estaleiro, na sua composição levou cré, óleo de linhaça e secante líquido ou em pó. 21 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. 22 Sobre a proveniência do breu, Fernando Oliveira diz-nos o seguinte: “Tirase o breu de certas aruores: as quaes todas são especias de pinho, das quaes ha munta copia dellas em alemanha, & terras do norte.”, op. cit., p.74 18
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No trabalho de calafeto e em obras novas, como a do pau de aresta, foram sempre aplicadas duas estopas. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Forma de aplicação dos pregos, no fundo da embarcação. (Foto de Paulo Guerreiro)
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Prego do fundo, enrolado em estopa e já pronto para ser aplicado. (Foto de Paulo Guerreiro)
2.4. TRABALHOS DE PINTURA
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2.4. TRABALHOS DE PINTURA “Por tanto he necessario, que lhe ponhão per cima breu, ou betume algum, que resista aa aogua, & conserue a estopa. O breu nestas terras he o mays acostumado neste mester.” 1
Concluído o calafeto, seguiu-se a última etapa do processo de recuperação da embarcação, constituída por duas fases distintas de trabalho, as pinturas destinadas à conservação das madeiras do casco e as pinturas decorativas. Numa primeira fase procedeu-se à aplicação da tinta de aparelho, o zarcão, para uma melhor preservação das madeiras e só depois foram aplicadas as duas demãos de tinta de óleo. Em tempos, como já foi referido anteriormente, utilizava-se o breu ou betume não só para proteger as madeiras dos agentes deteriorantes, como também para ajudar a impermeabilizar e a segurar a estopa nas fendas dos tabuados, como diz o próprio Fernando Oliveira: “Não aproueytaria carafetar as naos, & taparlhe as fendas com estopa, nem algodão, se as não breasse~ per cima: por que o bater das ondas escarpearia, & tiraria a estopa: & posto que a não tirasse, a aogua penetraria por ella, & entraria dentro.”2 Quando então se breavam as embarcações só se utilizava tinta para pintar as falcas e a zona das emendas, na proa, como foi referido pelo calafate Leonel Lopes: “Depois do brear, só era pintado a cara do barco e era aqui a falca e mais nada, o resto era tudo preto. Este trabalho era melhor porque conservava mais a embarcação, mas este que se faz agora, em termos de asseio, é mais limpo e é mais fácil, não é tão doloroso para nós.”3 Efetivamente, neste tratamento final, as madeiras exteriores e interiores foram devidamente protegidas por tintas adequadas e convenientes. A este propósito, é de referir a alusão à qualidade das tintas que o mestre Jaime Costa fez, no seguinte excerto da sua entrevista: “(…) apostamos também nas pinturas (…), à base de óleos de linhaça para não serem aquelas tintas muito sintéticas que nos têm dado alguns problemas em algumas embarcações de madeira, nós vamos ver se conseguimos fugir a esses meios muito sintéticos, agora procuramos os programas mais oleosos.”4 Nas pinturas de conservação temos a salientar algumas particularidades deste trabalho, assim como é de tradição e respeitando as cores que já tinha anteriormente, houve determinadas peças da embarcação que receberam cores específicas, os cabeços foram pintados de cor vermelha, as cobertas da proa e popa, bem como as sicórdias foram pintados de azul marinho, os alcatrates e as falcas de verde. Como foi dito pelo pintor Diogo Gomes “(…) as cores são aplicadas, não é uma cor qualquer, tem-se que saber dar para chamar a atenção à pessoa, por exemplo, (…) o verde tem o sítio dele, o verde geralmente é nos alcatrates é que é verde; nas cobertas onde é que nós andamos em cima já é azul.”5
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OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, p.73 Idem, Ibidem, p.73 3 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em março de 2011. 4 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 5 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em novembro de 2011. 2
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Pintura do forro interior da falca para conservação das madeiras. (Foto de José Presumido)
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Início das pinturas na antepara da ré. O painel está dividido em tríptico, com os espaços previamente definidos para receberem as pinturas figurativas. (Foto de José Presumido)
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Do lado exterior, uma das peças que prende a nossa atenção, pela luminosidade da cor, são as falcas verdes, envolvidas por faixas horizontais pintadas de branco, a terminar superiormente com um friso vermelho. A continuar as falcas, temos os barbados em amarelo, à vante e à ré, conferindo a todo este conjunto um colorido intenso e imponente. Como remate de toda esta pintura, temos o topo da cinta pequena, pintada de rosa, no sentido longitudinal. A complementar este cromatismo, acrescentam-se as emendas da proa que receberam a tonalidade de azul marinho, estes painéis encontram-se envolvidos por uma barra em branco e por um pequeno filete vermelho, pintado junto à margem do azul, demarcando uma superfície, na qual foi acolher os elementos ornamentais. Nesta paleta de cores é também de realçar a parte superior da proa, o caneco, constituído por duas partes sobrepostas, apresenta-se pintado de vermelho e verde, delineado por densos contornos em branco, sem ornamentos, o que nos fazem sugerir duas vistosas penas da cauda de uma ave. Toda esta policromia garrida das cores contrasta abertamente com os costados, pintados de preto, da embarcação. No interior e de acordo com os anteriores modelos cromáticos do varino, as escoteiras foram coloridas de amarelo, as escoas de vermelho, o primeiro dormente recebeu a cor verde e o segundo dormente azul. Os forros interiores foram pintados de cor de rosa, sendo demarcados por duas faixas em branco, o mesmo sucedeu com o entreleito da proa que recebeu igualmente a mesma tonalidade de rosa, combinada com os contornos em branco. O rosa trata-se de uma cor secundária, feita pelo próprio pintor, segundo Diogo Gomes esta é uma das cores que melhor se concilia com as outras, ajudando a realçar os diversos matizes, no seu conjunto: “Geralmente a gente pinta, traça que é para abrir a embarcação, o cor-de-rosa é uma tinta que ao pé de determinadas tintas, e ao pé do branco, a traçar fica muito bonito. Não há uma cor para mim que substitua o cor-de-rosa por dentro, fica mais bonito. (…) se eu quiser pintar cor-de-rosa, faço (…) com mais branco, mete-se mais branco no vermelho e faz-se cor-de-rosa (…).” 6 No âmbito das pinturas de conservação a combinação das diferentes tintas constitui um aspeto fundamental, deverá transmitir beleza policromática, para impressionar a retina do olhar, deste cromatismo irá também depender o efeito visual dos elementos decorativos, o expoente máximo destas pinturas tradicionais em embarcações. Harmonia e contraste de cores primárias (vermelho, azul e amarelo), com cores secundárias (verde e rosa) e neutras (branco e preto), fazem do varino “O Boa Viagem” um verdadeiro álbum cromático do Tejo, só comparável às embarcações suas congéneres. Terminada a conservação das madeiras com a aplicação das respetivas tintas de óleo, seguiram-se as pinturas decorativas tradicionais, aplicadas em determinadas partes do varino. A riqueza ornamental inunda áreas específicas da embarcação, quer do exterior como os barbados e a proa; quer do interior como a buçarda da proa, a antepara, o entreleito, a curva de sicórdia e o banco real, na zona da popa. Antes de iniciar as pinturas decorativas, o pintor Diogo Gomes começou por fazer o acerto das medidas e por desenhar os esboços das figuras que pretendia exibir, tal como ele próprio nos confidenciou: “(…) depois quando nós vimos que aquilo está bom de medidas, faz-se um esboço e depois é sempre andar. Só que eu, por exemplo, nos nomes só me basta saber larguras e alturas, eu chego ali com o pincel e faço aquilo logo rápido, é a prática que eu tenho.” 7 6 7
Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em novembro de 2011. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em novembro de 2011.
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Diogo Gomes a pintar as cercaduras de flores nos barbados da proa, do lado de estibordo. (Foto de José Presumido)
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Perspetiva geral das pinturas da antepara da popa. (Foto de José Presumido)
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À semelhança da carpintaria também se utilizou o compasso, o metro e o virote nos ajustes das medidas para desenhar os ornamentos, os números e os nomes. Segundo o Diogo Gomes o virote “é uma ripazinha desempenada, normalmente com um ou dois metros, que é para nós riscarmos, para as coisas baterem certo, para fazerem as linhas.” 8 Só depois de terem sido devidamente preparados os procedimentos prévios, o pintor passou à fase da aplicação das tintas. As emendas da proa, a bombordo e a estibordo, são, de facto, um dos espaços que exigiram mais cuidados, aqui o pintor procurou combinar harmoniosamente não só as cores, como também a distribuição dos ornamentos, conjugados com o nome da embarcação, de forma a ajustá-los à superfície curva da proa. Assim, as letras que compõem o nome do varino foram primorosamente traçadas e pintadas, nas faces boleadas, em tons de vermelho, com sombreados a branco, de modo a transmitirem a perceção de volume. Na linha de continuidade do nome, temos os elementos ornamentais, no canto superior, uma grande rosa de cor alaranjada e na outra extremidade um ramo de flores, acompanhado por cinco círculos multicolores. Cada painel da proa recebeu, ainda, no canto inferior, outro grande ramo de flores, feito de rosas, malmequeres e botões encarnados. Estes ramos florais pintados, em fundo azul, nos tons vermelho, laranja e branco azulado, com cambiantes de cores, salientam-se por entre uma profusa folhagem verde, de que resultou um gracioso efeito cromático. Os ornatos floridos estenderam-se também aos barbados amarelos, da proa e da ré, formando um interessante friso de rosas e malmequeres, azuis e encarnadas, ligadas entre si pelas ramagens verdes. Os elementos do friso combinam-se repetitivamente de forma assimétrica nas cores, mas conferindo ao conjunto uma grande exuberância visual. Além dos esquemas ornamentais, a embarcação tem ainda pintado a branco o seu número de matrícula, na falca junto à proa, tanto a bombordo como a estibordo. Embora os algarismos e as letras não tenham recebido a técnica dos sombreados, apresentam-se dentro de uma simples forma retangular de fundo preto, rematada nas extremidades por duas figuras que nos sugerem as flores-de-lis. Aqui a preocupação do pintor foi realçar a sua leitura, para serem visíveis a uma determinada distância pela autoridade marítima, segundo o Diogo Gomes “mesmo com a embarcação a navegar, pode passar a uma distância de cinco a dez metros e vêem, portanto aquilo tem que ser visível, derivado à autoridade marítima.”9 Foram também as falcas que receberam, sensivelmente a meio, as letras do nome da instituição, à qual pertence a embarcação, mas estas, contrariamente aos algarismos, foram desenhadas artisticamente nos tons de encarnado com sombreados a branco. Igualmente foi pintado no painel da popa, em cada um dos lados do leme, em letras brancas e sem quaisquer cuidados de elaboração, o nome do varino e a designação do local da Delegação Marítima (Barreiro), onde a embarcação se encontra registada. Como estes elementos apenas têm a função de identificar e informar, foram pintados de forma simples e sem recursos artísticos.
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em novembro de 2011. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em novembro de 2011.
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Cercaduras que adornam o entreleito e a curva de sicórdia, peças que compõem a composição da antepara da ré. (Foto de José Presumido)
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Elemento ornamental que preenche a zona interior do capelo ou caneco, designada por juízo da embarcação. (Foto de José Presumido)
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Mas a decoração do varino não se restringiu ao exterior, entrou na embarcação e inundou de cor e de ornamentos o entreleito, a curva de sicórdia, o banco real e a antepara da popa. Todo este conjunto surpreende pela combinação das formas e difusão das cores, convertendo-se, sem dúvida, na parte mais magnífica da embarcação. A antepara pintada de amarelo é encimada por uma faixa branca com um friso floral, cujos elementos, rosas e malmequeres, foram coloridos de azul, vermelho, amarelo com nuances de laranja e ramagens verdes. A antepara abre-se em três painéis, contendo cada painel uma moldura, circundada por duas pequenas riscas em tons de encarnado e azul, a demarcar visivelmente a área que foi alvo dos desenhos temáticos, associados ao sagrado, ao trabalho e à diversão. Em cada uma destas molduras foi assim representado um tema relacionado com as expressões culturais mais marcantes do concelho; a imagem da Nossa Senhora da Boa Viagem, a advogada dos marítimos e padroeira da vila da Moita, ligada à devoção, uma embarcação tradicional a representar a atividade económica de transporte que, em tempos, foi uma das mais preponderantes e uma pega de touros a evocar a festa e os momentos de divertimento popular. Trata-se de um interessante tríptico de inspiração popular, em que a composição referente à Nossa Senhora ocupa a moldura central da antepara, sendo ladeada pelas outras duas composições. Nestes painéis figurativos da antepara da ré, o pintor dedicou-lhes um cuidado muito especial, devido às exigências e aos pormenores dos desenhos, cujos traços foram feitos de forma ingénua, mas tudo profusamente colorido nos tons garridos. Para os valorizar e enriquecer em termos decorativos, a moldura central foi envolvida superiormente e nos cantos inferiores por uma cercadura de arabescos em tons de azul com matizes de encarnado e verde, enquanto que as molduras laterais apenas receberam os ditos ornatos nos cantos, ligados entre si, por um fino traço azul. Tais arabescos são conhecidos na linguagem artística popular por armaduras, a este propósito é de salientar o que disse o Diogo Gomes: “Aquilo10 são mais para preencher os cantos, a gente chama àquilo armaduras, aquilo é para preencher mais um canto... Também gosto de fazer aquilo porque é uma coisa que se faz muito rápido, aquilo é com um compasso, é sempre andar e depois é tudo a olho.” 11 A completar toda esta composição, temos os ornamentos da curva de sicórdia que se prolongam pelo banco real, sobre o fundo pintado de branco e orlado nas extremidades por faixas azuis, fazendo-nos sugerir uma única peça. Neste espaço foi distribuído um dinâmico friso geométrico, composto por duas linhas onduladas, uma amarela e outra verde, que ao se cruzarem formaram uma área circular, onde tem desenhada uma flor muito simples. Aqui a combinação simétrica das cores domina completamente o esquema ornamental, conjugada com o nome da embarcação que ficou em posição de destaque, ao ocupar o centro da peça e ao ser separado dos outros elementos decorativos por dois espessos traços azuis. As letras foram artisticamente elaboradas no tom vermelho, usando o pintor a técnica dos sombreados, através da simples aplicação de pequenas pinceladas de cor verde, para lhes conferir a perceção de volume. O entreleito da popa, tal como a curva de sicórdia e o banco real, foi pintado com o fundo branco e os extremos em azul, de modo a harmonizar a cor das peças e assim dar um efeito cromático uniforme ao conjunto. Um friso de elementos florais, semelhante aos anteriormente descritos, foi distribuído ao longo do entreleito,
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O pintor estava a referir-se aos desenhos que nós designamos por arabescos. Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em novembro de 2011
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Capelo ou caneco da embarcação, com o elemento ornamental na zona do juízo e com o rabicho. (Foto de José Presumido)
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interrompendo-se apenas na parte central, para acolher a data da primeira recuperação do varino. Aqui, mais uma vez, os algarismos foram primorosamente traçados e pintados a vermelho com sombreados a verde, em perfeita simetria e concordância com o padrão já utilizado nas letras do nome da embarcação. Junto ao painel da antepara, temos as almofadas da popa, com o fundo pintado também de amarelo e contornadas por uma grossa linha castanha, receberam um ramalhete de duas grandes rosas, em azul e vermelho, envolvidas por folhagens verdes. Nos cantos superiores foram pintados dois círculos vermelhos e nos cantos inferiores dois círculos verdes que ajudaram a completar esta decoração singela, mas de uma grande espontaneidade do artista. Aqui nas almofadas da popa, a combinação e a repetição dos elementos ornamentais é inteiramente simétrica nas cores e nas formas. Entretanto, a riqueza decorativa não se limitou só a este belíssimo conjunto de peças que se distingue pela conceção e exuberância das cores, a decoração invadiu o interior e ocupou os espaços mais inusitados, de que são exemplo o “juízo”12 e a buçarda, à proa da embarcação. No que respeita ao juízo, ou seja, a parte interior da roda de proa que está ligada ao caneco, foi pintado com mais um ornato florido, uma rosa amarela com nuances de castanho entre folhas verdes, sobre um fundo cor de rosa, para fazer um efeito acentuadamente contrastante. Quanto à buçarda da proa, o pintor dedicou-lhe todo o seu empenho decorativo, ao criar uma garrida cercadura de círculos, encadeados por ramificações e uma dinâmica composição de arabescos, sobre fundo branco. Ao centro da buçarda criou uma moldura castanha, onde introduziu as iniciais C.M.M., pintadas a vermelho e esbatidas a verde. Todo este trabalho de embelezamento da embarcação foi realizado em duas semanas e são um testemunho da imaginação e da arte popular, em que predomina uma decoração florida, repetida e vistosa, devido ao uso variado e intenso das cores, convertendo o varino “O Boa Viagem” num verdadeiro álbum de pinturas policrómicas.
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Segundo o mestre Jaime Costa a peça que fica um pouco abaixo do caneco e que recebe a decoração, apelida-se de juízo da embarcação.
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Buçarda do varino, pintada com elementos ornamentais, vendo-se o ramo floral no chamado “juízo” do barco. (Foto de José Presumido)
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Cercadura floral no barbado da popa, do lado de estibordo. (Foto de José Presumido)
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Proa do varino, com a cercadura no barbado, as rosáceas e as letras pintadas nas emendas, do lado de estibordo. (Foto de José Presumido)
2.5. PALAMENTA E MOTOR DA EMBARCAÇÃO
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2.5. PALAMENTA E MOTOR DA EMBARCAÇÃO “Os principaes destes aparelhos são, gouernalho, masto, & remos. Tambem ha outros bem necessarios, como são cordas ancoras, & outras cousas. (…) por que armão & aparelhão os nauios para fazerem seu officio.”1
Entende-se por palamenta da embarcação todos os apetrechos que são fundamentais para o governo, manobras e navegação do varino, tais como são o leme, o mastro, as velas, a vara, os balões de defensa2, entre outros. Estes aparelhos, nomeadamente o leme, o mastro e as velas, foram apenas alvo de trabalhos de conservação e limpeza, seguidos de sua montagem que ocorreu já na fase final dos trabalhos de carpintaria. O leme, constituído por peças de madeira como a madre e a cana do leme, é o aparelho que se destina a reger e a manobrar a embarcação, foi montado à popa, paralelamente ao cadaste, articulando-se com este, por um sistema de machos e fêmeas. Fernando Oliveira no Livro da Fabrica das Naus fez-lhe referência, considerando-o, de todos os aparelhos, o mais importante: “Destes tres apparelhos3 o principal, & mays necessario he o gouernalho: do qual quero tratar premeyro. Gouernalho he hum aparelho do nauio, com o qual o piloto, ou quem gouerna faz guiar o mesmo nauio pello caminho que deue leuar. Este sem duuida ~ he mays necessario pera nauegar, que uela nem remos: (…). Digo da popa, por que aquella he o proprio algua lugar do gouernalho, (…).” Um pouco mais adiante, ao distinguir dois tipos de leme para embarcações grandes e pequenas, acrescentou: “O lugar deste gouernalho he na ylharga da popa: & quanto mays a ree, tanto milhor gouerna, por que estaa mays longe do centro, & faz mays leue a uolta do nauio: (…) & não sendo ~ grande, não seruiraa pera nauios grandes, senão em barcos pequenos, como são os do tejo, & quando muto os dalcouchete, & da aldeagallega.”4 O termo governalho tem aqui o significado de leme, segundo Fernando Oliveira as embarcações do Tejo, particularmente as de Alcochete e Aldegalega, por serem mais pequenas tinham ao seu serviço um leme com a forma de remo ou tábua, colocado à ré, para facilitar as manobras da embarcação. Em boa verdade, mesmo que o leme tenha sofrido algumas modificações ao longo dos tempos, a sua aplicação às embarcações atuais é em muito semelhante à descrição feita, no século XVI, por Fernando Oliveira. Aquando dos trabalhos de pintura, o leme do varino foi também convenientemente tratado com tintas de óleo, sendo pintado com um colorido intenso, na cana (o pau que permite manobrar o leme) associou-se a cor verde ao amarelo, com remates a vermelho e branco, enquanto a cachola (parte superior onde se encaixa a cana do leme) recebeu somente o verde, com um remate de dois frisos também a branco e vermelho. O mastro, em tubo de ferro, antes de ser montado na embarcação, foi apenas alvo de tratamento que consistiu
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OLIVEIRA, Fernando, Livro da Fabrica das Naus, Macau, Academia da Marinha, 1995, p.122 Os balões de defensa são bolas revestidas por corda, utilizadas nas atracações para proteger o costado da embarcação, dos embates contra as paredes do cais. 3 Os três aparelhos a que Fernando Oliveira está a referir-se são o leme, o mastro e os remos. 4 Idem, op. cit., p.122 e p.127 2
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Montagem da cana de leme. (Foto de José Presumido)
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na raspagem das tintas velhas e na aplicação do aparelho ou zarcão e por último as tintas de esmalte ou de óleo, para sua conservação. Estas pinturas foram feitas em listras, de forma alternada e em diagonal, de verde e amarelo, as cores do município que já tinha anteriormente e que foi respeitado na íntegra. Estas mesmas cores prosseguiram na pintura do calcês, a parte quadrada superior do mastro e que outrora, funcionava como um código de leitura para identificação dos proprietários. A completar a palamenta do mastro temos os arcos em plástico e a verga em madeira que foram igualmente pintados de branco. No que respeita ao velame, a vela latina quadrangular e a vela de estai, também não foi substituído, somente foi lavado e seguidamente envergado. O cordame5 e o poleame6 do mastro, sem os quais este aparelho não funcionaria, foram todos trocados por material novo, tal como o mestre Jaime Costa referiu: “Na palamenta do mastro, ele vai ser todo substituído, os cadernais, as sapatas vão ser todas novas, vai ser tudo corrigido, todo o equipamento velho que tinha, vai sair, (…) depois é o cordame que vai ser substituído, pode haver aqui alguma alteração no estai, mas isso também é fácil de corrigir, a vela dá perfeitamente, tudo isso foi calculado, minimizando os estragos da parte do Município, aproveitando, de facto, aquilo que existe.” 7 A preparação prévia de toda esta palamenta do mastro constituiu uma tarefa importante, na medida em que o funcionamento operacional da embarcação depende da boa conservação destes materiais. Como o mestre Jaime Costa referiu, os cadernais8 e as sapatas9 da vela latina quadrangular foram todos executados de novo, bem como as adriças da boca (cabos de nylon que içam a vela grande, junto ao mastro) e de pique (cabos de nylon que içam a vela no topo da verga). Acrescentou-se a estes, a execução dos sapatilhos (peça em metal, de forma oval que se aplica na alça de um cabo para o reforçar) e dos forros dos brandais (cabos de aço fixos, encontram-se ligados às sapatas e servem para segurar o mastro no sentido transversal). Em relação ao poleame e cordame da vela de estai, a vela situada à proa, frente ao mastro, mantiveram-se os materiais antigos, já que se apresentavam em boas condições de conservação. Relativamente aos acessórios e palamenta avulsa destacamos pela sua importância em termos operativos da embarcação o guincho, a âncora, a corrente e a boneca. O guincho trata-se de um aparelho mecânico manual que existe a bordo do varino, com a função de ajudar a tripulação nas manobras da embarcação, bem como para levantar o ferro. Foi montado no convés à proa e foi apenas alvo de tratamento que consistiu em decapar e pintar, unicamente foram substituídos os dois tambores de madeira, por novas peças. Este mecanismo salienta-se pelos ecos das cores que se encontram difundidas por toda a embarcação. Outra peça que se evidencia por este mesmo colorido vivo e quente, é a boneca, feita de madeira, foi também fixada ao convés da proa e tem a função de servir de suporte nas amarrações das adriças da vela. A âncora e a corrente são duas peças de ferro imprescindíveis na palamenta, já que servem para prender a embarcação, no fundo do rio, mantendo-a segura quando se encontra atracada. Tal como aconteceu com outras peças de ferro, a âncora foi decapada (operação que consistiu em remover as tintas velhas e a ferrugem do
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O cordame é o conjunto de cabos, utilizados nas amarrações e no içar das velas, tais como adriças de boca e de estai. O poleame é o conjunto de roldanas, cadernais, sapatas, moitões, utilizados para a passagem dos cabos. 7 Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011. 8 Os cadernais são peças do poleame com uma roldana múltipla. 9 As sapatas são também peças do poleame que servem para passar os cabos (colhedores) que amarram as enxárcias ao mastro. 6
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Preparação do mastro para se proceder à sua montagem na embarcação. (Foto de José Presumido)
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metal) e pintada com tinta preta, para evitar a sua corrosão. A corrente, utilizada como amarra para fundear a âncora, só levou uma pintura, também em preto, para conservação do metal. Para guardar e acondicionar esta corrente, construiu-se uma caixa em madeira que foi montada junto ao guincho, com vista a facilitar o seu manuseio, sempre que haja necessidade de fundear ou levantar o ferro. Todos estes aprestos são necessários para o funcionamento da embarcação, contudo existem outros que não sendo indispensáveis, servem para adornar o varino, referimo-nos concretamente à gravata, um entrançado em cordão, de várias cores, colocada na base do caneco ou capelo. Como é também de tradição popular, dependuraram-se duas cabeleiras, feitas de crina de cavalo, uma de cada lado, na parte superior do caneco, elementos que parecem estar associados à proteção da embarcação e dos seus tripulantes, face aos vários perigos do rio, provavelmente uma sobrevivência de crenças ancestrais. Além da palamenta, em que só distinguimos as que considerámos mais importantes, é de referir ainda que foi necessário montar o motor “Cummins”, de média potência, pertencente à embarcação, desde 1998. Antes de se proceder à sua montagem, houve trabalhos de revisão mecânica, bem como a preparação da coberta da popa, para o compartimento ficar em condições de alojar o referido motor. O mestre Jaime Costa fez alusão a este espaço do seguinte modo: “(…) a casa da máquina fica maior, fica com capacidade para ter o tanque de gasóleo e mais tarde para se meter um gerador, se for preciso, naqueles eventos à noite, (…).”10 Instalado o motor e preparada a palamenta, o varino “O Boa Viagem” ficou definitivamente aparelhado e preparado para desempenhar, mais uma vez, as suas funções culturais e didáticas, enquanto museu vivo flutuante do Tejo, e, assim, dar início a uma nova etapa nas páginas da sua história secular.
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Entrevista realizada, em suporte áudio e vídeo, em janeiro de 2011.
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Montagem do mastro na embarcação. (Foto de José Presumido)
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Montagem do mastro na carlinga da embarcação. (Foto de José Presumido)
GLOSSÁRIO
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GLOSSÁRIO Alcatrate – Peça de madeira longitudinal, colocada nos topos das aposturas, serve de remate ao revestimento interno e externo. Apostura – Parte superior do braço. Balizas – As balizas são peças de madeira curvas, constituídas por caverna, braço e apostura, colocadas no plano transversal ao longo da quilha, formam o cavername da embarcação. Servem para sustentar o tabuado do costado e do fundo, do seu desenho depende a configuração do casco. A baliza colocada a meio da embarcação denomina-se por baliza mestra. Barbados – Peças de madeira montadas exteriormente à proa e popa da embarcação, e nas quais recebem as cercaduras de flores. Bombordo – Lado esquerdo da embarcação, quando se olha da popa para a proa. Borda – Limite superior dos costados. Braço – É uma peça de madeira curva que está ligada à caverna e forma a estrutura do costado da embarcação. Buçarda – Forte peça de madeira curva que serve para reforçar a ligação dos dois costados, na proa da embarcação. Cabeço – Peça destinada a receber as voltas dos cabos, costuma ser fixada nas bordas da embarcação. O prolongamento das aposturas que ultrapassam o alcatrate, ficam a formar um cabeço. Cadaste – Peça de madeira que entalha no extremo da quilha, pelo lado da popa, constituindo o remate da estrutura da embarcação. Capelo ou Caneco – Peça curva que remata superiormente a proa. Casco – É o corpo flutuante da embarcação, com todo o seu invólucro exterior, desde a quilha até á borda. Caverna – Peça inferior que se encontra ligada à quilha, por entalhes, formando a estrutura do fundo da embarcação. Cavername – É o esqueleto da embarcação, constituído pelos elementos transversais do fundo e do costado, já acima referidos. O cavername é o conjunto das balizas. Cintas – Grossas tábuas de forro, dispostas ao longo dos costados, com vista a reforçar o casco e conferir-lhe uma maior solidez. Coberta – Espaço coberto por pavimento abaixo do convés. Convés – Pavimento superior da embarcação. Costado – A parte lateral e exterior da embarcação.
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Dormentes – Grossas tábuas de madeira que vão da proa à popa, têm a função de reforçar as balizas e servem de apoio aos extremos dos vaus ou latas. Escoas – Grossas tábuas de madeira, montadas longitudinalmente na altura da ligação dos braços às cavernas. Estibordo – Lado direito da embarcação, quando se olha da popa para a proa. Falcas – Peças de madeira longitudinais que rematam superiormente os costados, formando com o alcatrate a borda da embarcação. Forro – Tabuado que reveste o fundo e os costados da embarcação. Latas ou Vaus – São barrotes de madeira dispostos transversalmente e com os extremos apoiados nos dormentes, além de servirem de travamento às balizas, funcionam como apoio ao tabuado dos pavimentos do convés. Manco – A última baliza à popa da embarcação. Popa ou Ré – Em oposição à proa é o extremo do casco que remata à retaguarda da embarcação. Proa – Frente da embarcação, constitui um dos extremos do casco e quando em navegação toma a dianteira. Quilha – É a coluna vertebral da embarcação, montada no sentido longitudinal nela se apoia toda a estrutura. Os varinos não têm quilha, mas no seu lugar apresentam uma grossa tábua um pouco saliente que funciona como suporte da estrutura. Roda de Proa – É um conjunto de peças de madeira escarvadas pelos topos e que se elevam, rematando a estrutura de vante da embarcação.
FONTES E BIBLIOGRAFIA
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