OS OUTROS
SEIS DIAS
R. PAUL STEVENS
OS OUTROS
SEIS DIAS VOCAÇÃO, TRABALHO E MINISTÉRIO NA PERSPECTIVA BÍBLICA
TRADUÇÃO Neyd Siqueira
Publicado originalmente por Paternoster Press Título original em inglêsThe Abolition of the Laith, by R. Paul Stevens. © 1999 by Paternoster Press. Publicado com autorização pela Paternoster Press – P.O. Box 300, Carlisle, Cumbria, CA3 0QS, UK © Editora Textus Primeira edição em português Abril de 2005 Revisão Billy Viveiros e Carlos Buczynski Capa Next Nouveau – Divisão Publicidade
PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAÇÃO E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS EDITORA TEXTUS Caixa Postal 107.006 24360-970 Niterói, RJ E-mail: textus@editoratextus.com.br www.editoratextus.com.br Esta é uma co-edição com EDITORA ULTIMATO LTDA. Caixa Postal 43 36570-000 Viçosa, MG Telefone: 31 3891-3149 — Fax: 31 3891-1557 E-mail: ultimato@ultimato.com.br www.ultimato.com.br Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação e Classificação da Biblioteca Central da UFV Stevens, R. Paul, 1937S945o 2005
Os outros seis dias / R. Paul Stevens ; tradução Neyd Siqueira. — Viçosa, MG : Ultimato, 2005. 272p. : il. ; 23cm. ISBN 85-86539-80-5 Tradução de: The other six days : vocation, work, and ministry in biblical perspective. Publicado em 1999, no Reino Unido, sob o título “The abolition of the laity” e em 2000, nos Estados Unidos, sob o título “The other six days”. 1. Leigos (Religião). 2. Ministério leigo. I.Título. CDD 22.ed. 262.15 Todas as citações bíblicas foram retiradas da Nova Versão Internacional, da Sociedade Bíblica Internacional.
SUMÁRIO Apresentação à Edição Brasileira
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PRIMEIRA PARTE: UM POVO SEM “LAICATO E CLERO” 1. Teologia do Povo “De” todo o povo de Deus: além da teologia clerical “Para” todo o povo de Deus: além da teologia não-aplicada “Por” todo o povo de Deus: além da teologia acadêmica
2. Reinventando o Laicato e o Clero
13 14 17 22
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Um povo sem “laicato” Um povo sem “clero” A emergência do clero
28 32 39
3. Um Deus – Um Povo
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Dois povos ou um? Um Deus – três pessoas Comunhão ou união?
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SEGUNDA PARTE: CHAMADO E EQUIPADO POR DEUS 4. Chamado Numa Era Pós-vocacional Vocação pessoal Vocação cristã Vocação humana
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5. Fazendo o Trabalho do Senhor Mudanças no trabalho O trabalho ontem e hoje O trabalho nas Escrituras O trabalho de Deus O trabalho é bom
6. Ministério – Transcendendo o Clericalismo Ministério hoje Ministério nas Escrituras Serviço trinitariano Líderes ministradores
93 94 96 99 104 108
115 116 117 123 127
TERCEIRA PARTE: PARA A VIDA DO MUNDO 7. Profetas, Sacerdotes e Reis Três papéis de liderança O povo profético O povo sacerdotal O povo real Profetas, sacerdotes e príncipes no mundo
8. Missão – Um Povo Enviado por Deus O Deus que envia A missão de Deus O envio O povo enviado Preparando para a missão
9. Resistência – Enfrentando os Poderes Descrevendo os poderes: confusão contemporânea Experimentando os poderes: resistência em vários níveis Compreendendo os poderes: teologia bíblica Enfrentando os poderes: missão e ministério A pacificação final dos poderes: escatologia
Epílogo: Vivendo Teologicamente
139 140 143 146 152 157
159 160 161 164 169 173
179 180 183 186 190 195
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Ortodoxia Ortopraxia Ortopatia
202 205 209
Notas Bibliografia
213 261
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
NOS ANOS 70, NO Rio de Janeiro, alguns grupos de jovens evangélicos costumavam cantar uma música bem humorada chamada “Crente Domingueiro”. O texto era assim: Domingueiro nunca queira ser; no domingo ele é santarrão, na segunda, terça , quarta, quinta, sexta e sábado, ele não é santo não. Não lembro quem foi o autor, mas reconheço que ele foi genial ao descrever dessa forma o dilema que vivíamos como jovens evangélicos. Essa música provocava um reboliço toda vez que a cantávamos, pois o costume era cantar apontando para o outro como se dissésemos: “Estou de olho”. O fato é que muitos vivíamos uma “vida dupla”; a fé tinha dia e lugar específicos: o domingo e o templo. Nos outros dias da semana estávamos liberados para viver a nossa vida “normal”. Com o tempo
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percebemos que deveríamos ser santos todos os dias, mas ainda assim, o enfoque se limitava à ética individual (não se falava em “ética do sistema”), ao comportamento adequado do cristão, algo do tipo “o que faria Jesus em seu lugar”. Depois percebemos que devíamos fazer incursões evangelísticas no mundo, contudo nossa forma de pensar refletia uma realidade em que existia o tempo e lugar destinados ao “sagrado” e o tempo e lugar destinados à “vida secular”. A situação se tornou ainda pior quando alguns perceberam que sua compreensão de fé não lhes dava a base adequada para entender o que se passava no lado “secular” de sua vida, devido aos dilemas que o país vivia naquele momento. Alguns encontraram uma forma de pensar que superou esses dualismos; outros simplesmente se acomodaram na figura do “crente domingueiro”. Minha percepeção, obviamente limitada, é de que a grande maioria continuou presa a essa forma dupla de pensar, reforçando dicotomias ou criando novos paradoxos. Apesar da disciplina de buscar versículos bíblicos que nos dessem suporte, seguimos em nossa forma dicotômica de pensar. Terminamos por fazer com que a Bíblia se ajustasse à nossa forma de ver o mundo e não o contrário, como nos recomenda Lutero, ao sugerir que devemos ler o texto bíblico contra nós. Olhando com mais atenção a história da igreja evangélica no Brasil, vamos perceber que este problema antecede, em muito, a experiência dos jovens dos anos 70 no Rio de Janeiro e que sua abrangência geográfica ultrapassa os limites de minha querida cidade, cobrindo todo o território nacional. Mesmo considerando a história recente da Igreja e os vários sinais de superação dessas dicotomias, ainda estamos diante de um problema crônico relacionado com a nossa forma de pensar e agir biblicamente. O tempo passou, temos novas canções, mas a mentalidade do “crente domingueiro” segue vigente na Igreja, agora de forma predominante. Devido ao expressivo crescimento evangélico, estamos chegando a ocupar um lugar social de maior destaque, no entanto a forma de pensar na “esfera secular da vida” segue os paradigmas da “mentalidade do crente domingueiro”. Agora temos o “crente domingueiro” todos os dias da semana em todas as esferas da vida pessoal e social. Isso me faz pensar que estamos precisando de uma nova versão da música para, por meio de uma
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boa dose de ironia “profética”(usando o adjetivo do momento), abalar os fundamentos de nossa forma de compreender a fé em Jesus Cristo, o mundo, a vida e tudo mais. Se ainda não temos a música, temos agora este excelente livro, que se propõe a ser mais um recurso disponível para a igreja em seu esforço de amar a Deus e ao próximo. Este texto nos possibilita compreender melhor o que significa pensar biblicamente e revisitar temas fundamentais para a vida da igreja, como vocação, ministério, povo de Deus, teologia, trabalho, liderança, poder e missão. O texto vai além da mentalidade do “crente domingueiro”, quando nos propõe o desafio de viver teologicamente. Esta publicação é oportuna por causa dos desafios que temos como igreja evangélica em nossos dias, entre os quais posso citar a preocupação com os rumos de nosso crescimento (O que está crescendo? Em que direção está crescendo? Como podemos cuidar deste crescimento?); o perigo que representa os vários modelos de liderança narcisista que desejam controlar o que se pensa e o que se faz na igreja; as novas formas de ataque ao rebanho do Senhor, por aqueles que o tratam como “curral eleitoral” ou como “segmento de mercado”; a sempre presente atitude que mistura arrogância e superficialidade ao se considerar suficiente para oferecer respostas rápidas sobre tudo para todos num contexto cada vez mais complexo; o risco de uma igreja voltada para si mesma e compulsiva (presa em dinâmicas de pseudo-transcendência e fuga da realidade). Esta lista poderia continuar, mas o que está nela é suficiente para sugerir o tamanho do desafio. Este livro não pretende ser a resposta final para todas as perguntas. O seu formato reflete a preocupação do autor em provocar o diálogo por meio das muitas perguntas que ele sugere e de tantas outras que, nós os leitores, podemos fazer. Meu primeiro contato com Dr. Paul Stevens foi por meio de seus livros, seguido pela oportunidade de estudar com vários de seus ex-alunos e, mais recentemente, de ser também seu aluno no Regent College. Estar em suas classes é uma experiência de tranformação devido à maneira como organiza seus cursos e como nos envolve no processo de aprendizado. Com ele aprendemos a olhar para o cotidiano com outros olhos e a encontrar a espiritualidade presente em todo e qualquer ato de nossa existência de forma mais integrada.
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O mestre que na sala de aula nos surpreende com a seriedade, profundidade, dedicação e disciplina na forma como lida com sua tarefa docente, nos desafia a considerar como objetivos principais do estudo teológico o amar mais profundamente a Deus e nos tornarmos plenamente humanos. Justamente por isso que a sala de aula não é o único espaço de aprendizado que ele nos oferece; juntamente com sua esposa Gail, ele nos recebe com alegria para o convívio mais próximo em que podemos atentar para a vida deles e ,consequentemente, a nossa. Estou muito agradecido a Deus pelas iniciativas que tornaram possível à igreja evangélica brasileira ter acesso a este livro. Uma leitura atenta do mesmo pode abrir um debate necessário entre todos aqueles que desejam, nas palavras do Dr. Paul Stevens, pensar de forma coerente, crítica e piedosa. Para os que estão preocupados com a superação dessa forma dupla de pensar, representada pelo personagem do “crente domingueiro”, este livro é um recurso fabuloso. Para os que já superaram este dualismo, este livro abre novos caminhos sobre o pensar biblicamente em todas as áreas de nossa vida. Desejo-lhe uma boa leitura, mente e coração atentos para as descobertas que este texto lhe porporcionará, e, sobretudo, que seu amor a Deus e ao próximo cresça e que você possa viver em plenitude sua humanidade. Forte abraço, ZIEL MACHADO
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PRIMEIRA PARTE
UM POVO SEM “LAICATO E CLERO”
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Capítulo 1
TEOLOGIA DO POVO Em última análise só pode haver uma teologia sadia e suficiente do laicato, e esta é uma eclesiologia total... será também uma antropologia e até uma teologia da criação quando associada à cristologia. YVES CONGAR1
ESTE LIVRO FAZ UMA proposta absurda. O laicato deve ser abolido?2 Isso é possível? Yves Congar disse certa vez que sempre haverá leigos na Igreja: ajoelhados diante do altar, sentados abaixo do púlpito e com a mão no bolso.3 Ao longo de quase toda a sua história, a Igreja tem sido composta de duas categorias de pessoas: os que fazem o ministério e aqueles para quem ele é feito. Os leigos são o objeto e não o sujeito do ministério. Eles o recebem, pagam por ele, promovem-no e talvez até aspirem a ele. Mas quase nunca chegam a ser ministros por razões do fundo da alma da Igreja: razões teológicas que serão examinadas neste livro, razões estruturais e culturais que foram exploradas em muitos livros contemporâneos sobre o assunto.4 Apesar de a divisão clero-leigo não encontrar base no Novo Testamento, ela persiste tenazmente.
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A maioria dos esforços no sentido de recuperar a visão do Novo Testamento sobre o ministério de cada membro não passa de meiasmedidas. Eles se concentram na atuação do cristão na igreja – pregadores leigos, assistência pastoral leiga e líderes de adoração leigos. O que necessitamos é de um fundamento bíblico abrangente para a vida do cristão no mundo, assim como na Igreja; uma teologia para donas-de-casa, enfermeiras e médicos, encanadores, corretores, políticos e fazendeiros. Recuperar isto, como afirmaram Gibbs e Morton há décadas, seria como descobrir um novo continente ou encontrar um novo elemento. Como é evidente, isto levanta a questão de o que é teologia e o que é teologia aplicada, assuntos sobre os quais não há acordo entre os teólogos, embora eu possa notar de passagem que a palavra “teologia” dificilmente foi usada no sentido de teologia-não-aplicada até o Iluminismo.5 Minha maior preocupação neste livro é recuperar uma base realmente bíblica para o empreendimento teológico, especialmente no que se refere à pessoa comum, não só na Igreja, como no mundo. Neste capítulo, vou adaptar as conhecidas palavras de Lincoln e introduzirei uma teologia do povo, para o povo e pelo povo, apropriando-me de cada preposição como esclarecedora do empreendimento teológico na sua relação com todo o povo de Deus.6
1. “DE” TODO O POVO DE DEUS: ALÉM DA TEOLOGIA CLERICAL Como mencionado acima, Yves Congar, católico francês, declarou com razão: “Em última análise só pode haver uma teologia sadia e suficiente do laicato, e esta é uma ‘eclesiologia total’”.7 Para obter, porém, essa “eclesiologia total”, devemos tratar com alguns mal-entendidos insistentes. Primeiro, procuramos em vão no Novo Testamento uma teologia laica. Não há leigos nem clero.8 A palavra “leigo” (laikoi) foi primeiramente usada por Clemente de Roma no fim do primeiro século, mas nunca empregada por um apóstolo inspirado nas Escrituras para descrever cristãos de segunda classe, despreparados e não-equipados. Ela devia ser eliminada do nosso vocabulário. “Laicato”, em seu sentido certo de laos – o povo de Deus – no Novo Testamento, é um termo de grande dignidade, denotando
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o enorme privilégio e missão de todo o povo de Deus. Não éramos antes absolutamente um povo, mas agora em Cristo somos uma “geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo exclusivo de Deus” (1Pe 2.9; Êx 19.6). A palavra “clero” vem do grego klêros, que significa os “indicados ou dotados”. Não é usada nas Escrituras para os líderes do povo, mas para todo o povo.9 Ironicamente, em sua constituição, a Igreja é um povo sem leigos no sentido usual dessa palavra, mas cheia de clérigos no verdadeiro sentido dessa palavra – dotado, comissionado e apontado por Deus para continuar o Seu serviço e missão no mundo. A Igreja não “tem”, então, um ministro; ela é um ministério, o ministério de Deus. Ela não tem uma missão; é uma missão. Há um povo, um povo trinitariano, um povo que reflete o Deus uno que é amante, amado e amor, como disse certa vez Agostinho,10 e um Deus que envia, é enviado e está enviando. No decorrer de quase toda a sua história, a Igreja tem sido composta de dois tipos de pessoas – os que são ministros e os que não são. O ministério tem sido definido como o que o pastor faz e não em termos de os cristãos serem servos de Deus nos negócios, na igreja, no lar, na escola ou no trabalho. Entrar no “trabalho de Deus” significa tornar-se pastor ou missionário e não ser colaborador de Deus em Sua obra criadora, sustentadora, redentora e aperfeiçoadora, tanto na Igreja como no mundo. Segundo, o resultado deste estado de coisas lamentável é que escrever uma chamada “teologia do laicato”é geralmente algo que serve para contrabalançar, tentando corrigir o desequilíbrio, elevar o leigo não-clerical, geralmente às custas do leigo clerical. Um dos primeiros a escrever esse tipo de teologia, na atualidade, foi Yves Congar, alguém com enorme influência no Vaticano II. A teologia de Congar leva, porém, em direção a uma eclesiologia em que distinção e posição são inevitáveis. A suposição fundamental que ele introduz em seu estudo basilar é que a Igreja não é só a comunidade formada por Deus, mas também o meio pelo qual o Senhor faz com que a humanidade se aproxime dele.11 A hierarquia é essencial com este propósito.12 Ele termina então propondo uma relação complementar de clero e laicato, única maneira pela qual a plêròma (plenitude) da Igreja pode ser experimentada.13
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Logo depois de Congar ter escrito seu “estudo”, Hendrik Kraemer produziu A Theology of the Laity. Esta obra representa igualmente uma estratégia compensatória e falha em suprir o que Congar considera tão necessário: uma compreensão bíblica de todo o povo de Deus (uma eclesiologia total), um povo amando e servindo a Deus tanto na Igreja como no mundo. 14 Então, uma teologia de todo o povo de Deus não deveria ser clerical nem anticlerical. O que devemos adotar é um aclericalismo, um povo sem distinção, exceto de função, um povo que transcende o clericalismo.15 Terceiro, uma teologia de todo o povo de Deus deve abranger não só a vida do povo de Deus reunido, a ekklésia, como também a Igreja dispersa no mundo, a diáspora, nos negócios, governo, profissões liberais, escolas e lares. Confirmo aqui o chamado de Yves Congar para uma teologia do laicato, que não é só uma eclesiologia total, mas também uma “antropologia e até mesmo uma teologia da criação em sua relação com a cristologia”.16 Esta deve ser uma teologia que abranja as realidades terrenas e esclareça o que é braçal, trivial e o necessário: lavar, limpar, manter a estrutura deste mundo, brincar, jogar, arte, lazer, vocação, trabalho, ministério, missão e lidar com os principados e potestades. Ela deve ajudar-nos a compreender e experimentar a sexualidade, a família e a amizade. Deve mostrar-nos o lugar ocupado pelo repouso e pelo sono. Deve ajudar-nos a viver abençoadamente com o automóvel, viagens, telefone, computador e correio eletrônico. Em último lugar, a teologia de todo o povo de Deus deve levar a sério a situação contemporânea. O trabalho da teologia nunca termina. Ele é de natureza elíptica, com um foco na Palavra eterna de Deus e outro no contexto. Devemos considerar então, hoje, o final da cristandade e a predominância da cultura pós-moderna.17 Ellen T. Charry coloca isto com brilhantismo: Agora que o cristianismo está desestabilizado e a população em geral mais familiarizada com o secularismo ou as expressões modernas do paganismo do que com o cristianismo, os teólogos devem dedicar-se a demonstrar que a fé apostólica possui recursos e apresenta a promessa de uma versão da personalidade humana tanto digna como honrada.
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Em outras palavras, o fato de conhecer e amar a Deus deve determinar novamente a posição das pessoas no mundo.18
Uma teologia de todo o povo de Deus deve esclarecer então a sua unidade, explorando o significado da vida dispersa, assim como da reunida desse povo. Este livro se ocupa essencialmente de uma teologia de todo o povo de Deus: um povo sem distinção entre laicato e clero (Primeira Parte), chamado e preparado por Deus (Segunda Parte) para a vida do mundo (Terceira Parte). Mas, ao mesmo tempo, ele servirá a um segundo propósito subsidiário, uma teologia para todo o povo de Deus. Teologia que, como veremos, é inerentemente prática.
2. “PARA” TODO O POVO DE DEUS: ALÉM DA TEOLOGIA NÃO-APLICADA A teologia para o chamado laicato é geralmente considerada como comunicar ao cristão “comum”, não treinado na teologia acadêmica, como as grandes verdades da fé influem na sua vida. Isto equivale algumas vezes a uma teologia sistemática ou bíblica “diluída” – colocando a lata de biscoitos numa prateleira mais baixa. Mas, na melhor das hipóteses, uma teologia para o laicato é exatamente o sentido da teologia: a tarefa contínua e dinâmica de traduzir a palavra de Deus em situações onde as pessoas vivem e trabalham. A teologia bíblica é completamente prática e é herético promover, como as instituições teológicas têm feito há décadas, a teologia não-aplicada.19 Para a maioria das pessoas, a teologia acadêmica formal parece isolada da vida, uma questão que Lesslie Newbigin lamenta ao notar como a obra dos eruditos faz parecer ao cristão comum que ninguém que não seja treinado em seus métodos pode entender realmente qualquer coisa que a Bíblia diz. “Estamos...”, afirma ele, “...numa situação análoga àquela da qual os grandes reformadores se queixaram.”20 O que significaria recuperar uma teologia para todo o povo de Deus? Primeiro, a praticidade da teologia é superior à relevância da sua teoria. A teologia, como dizem freqüentemente, é prática por ser a base da ação cheia de fé e de vida. Ela ajuda as pessoas a conhecerem a verdade de Deus
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para satisfazer a sua necessidade básica de conhece-rem a Deus e interagirem de maneira correta com o mundo. Mas, neste aspecto, a teologia aplicada ou prática é essencialmente o mecanismo de entrega – comunicando e persuadindo os indivíduos da verdade e da sua necessidade de agir quanto a ela.21 Esta é a velha maneira linear de fazer teologia: você consegue primeiro a teoria e, depois que tiver obtido a verdade, passa geralmente a aplicá-la no caso da educação teológica, depois de formar-se no seminário. Mas, e se a ação for parte da verdade? E se toda a ação for carregada de teoria e toda teoria carregada de ação? O que faremos também com as palavras e obras de Jesus, que, como diz Alister McGrath, é “o principal explicandum da teologia cristã... algo e alguém que requer ser explicado”.22 Jesus disse: “Se alguém quiser fazer a vontade de Deus, saberá se meu ensino vem de Deus” (Jo 7.17, adaptação). O termo hebraico para “saber” é o mesmo usado para “intercurso”. Nas palavras de Robert Banks, convidar alguém para fazer um curso sobre um assunto é convidar para um intercurso com o assunto.23 É claro que a expressão “teologia aplicada” não aparece na Bíblia. Mas a idéia de ligar o pensamento à ação, associar fé e vida, unir doutrina com prática ética, a idéia de que a verdade envolve o amor a Deus e ao próximo é tão fundamental que a única teologia verdadeiramente cristã é aquela que é aplicada. Muitas das palavras de Jesus enfatizam que a obediência é o órgão da revelação.24 Em Lucas 16.31, Jesus afirma que se as pessoas não estiverem agindo na luz que possuem (a lei e os profetas): “Tampouco se deixarão convencer, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”, sugerindo assim que a sua própria ressurreição terá pouco valor como evidência para aqueles que não estiverem pondo em prática o seu co-nhecimento. Francisco de Assis declarou certa vez: “A humanidade possui tanto conhecimento quanto aquele que põe em prática”. Isso significa que aquilo que você sabe realmente – no sentido plenamente bíblico e hebraico – é o que você vive. Lesslie Newbigin diz muito bem: “Em vista da realidade suprema na Bíblia ser pessoal... não somos levados a conformar-nos com esta realidade mediante um processo de teoria e prática de dois passos... mas pela ação única composta de ouvir, crer e obedecer”.25
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Segundo, ao longo da história da atividade teológica cristã, a separação entre teoria e prática não teve lugar até bem recentemente. Desde a fundação da igreja até o século dezessete, a teologia não era a base da ação prática, embora fosse em si mesma essencialmente prática. Em sua obra By the Renewing of Your Mind Ellen Charry descreve a sua experiência de trabalhar apoiada nos escritos de Paulo, Atanásio, Basílio de Cesaréia, Agostinho, Anselmo. São Tomás, Dama Juliana e João Calvino. Ela confessa que as divisões no currículo teológico moderno faziam cada vez menos sentido.26 A autora pede uma recuperação da “sapiência” – envolvendo Deus a tal ponto no amor que conhecedor e conhecido fiquem emocionalmente ligados – algo perdido em grande parte na modernidade, quando a teologia se tornou a justificação intelectual da fé.27 Desse modo, a teologia como teologia prática e a teologia como teologia espiritual foram dissociadas, fragmentadas. Compreender a história desta fragmentação da teologia é essencial, embora eu só possa lidar com isto em largas pinceladas.28 Na igreja primitiva, a teologia estava integrada na vida das comunidades ou monastérios cristãos locais. Ela dizia respeito a assuntos e questões práticas referentes à liturgia e vida do povo de Deus.29 Era um habitus prático – a disposição da alma, a verdade vivida e a phronésis, sabedoria prática.30 Não havia separação entre teoria e prática. O indivíduo não estudava teologia durante três anos, acumulando informação sobre Deus e depois, ao formar-se, aplicava isto no campo. Congar nota que “até o final do século doze, a teologia é essencial e, podemos dizer com acerto, exclusivamente bíblica”.31 Ela permaneceu assim até boa parte do século onze, mesmo depois do surgimento das universidades, sendo estas, a princípio, anexas aos monastérios e catedrais. Mas, no século doze, as universidades se tornaram mais independentes, os acadêmicos adotaram um modelo aristotélico de pensar, que visava demonstrar conhecimento racional e ordená-lo por sua própria causa. A teologia se tornou uma ciência especulativa, especialmente com Tomás de Aquino32, marcando desse modo o fim do acordo de que a teologia era prática em sua essência, embora não fosse assim na igreja oriental até muito mais tarde.33 À medida que a teologia se tornou cada vez mais reduzida a fórmulas lógicas e racionais, a questões de aplicação, os assuntos relativos à vida real
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das pessoas no mundo foram relegados a uma única seção dos livros didáticos abrangentes, como são hoje. A teologia aplicada é vista como um subconjunto da teologia sistemática, juntamente com a ética, missiologia e outras subsidiárias. Apesar do protesto dos franciscanos, a teologia prática tornou-se marginalizada, enquanto as teologias acadêmicas buscavam uma análise rigorosa e imparcial da verdade. A teologia era procurada nas universidades, enquanto os teólogos práticos, na maior parte centralizados nos monastérios, buscavam a espiritualidade cristã, exemplificada na Imitação de Cristo, de Thomas à Kempis. Devemos ver essas obras como teológicas para o povo de Deus e até teologias por leigos (assim chamados),34 embora geralmente considerados como clássicos da teologia espiritual. A Reforma foi em si mesma uma reação à igreja medieval, e Lutero disse certa vez: “A verdadeira teologia é prática, a teologia especulativa pertence ao diabo no inferno”.35 No século dezoito, a teologia pastoral surgiu como uma disciplina separada da teologia moral e se ocupava de poimenics – as atividades do pastor. No século dezenove, o cativeiro clerical da teologia aplicada estava quase completo. Portanto, na maioria dos modernos seminários, a teologia prática tem sido quase sempre reduzida a cursos do tipo como fazer, no geral medidos pela eficiência e sucesso no crescimento da Igreja, sem levar em conta se tais ações são normativamente cristãs e sem uma reflexão teológica adequada.36 E a teologia “pura” foi reduzida à conversa piedosa dos consoladores lastimáveis de Jó: racional, objetiva e abstraída. A teologia pode ser recuperada? Há alguns sinais encorajadores de renovação. Terceiro, estamos testemunhando a recuperação da teologia como phronésis, sabedoria prática, especialmente com muitos teólogos contemporâneos, inclusive as teologias de libertação de Segundo, Gutiérrez e Bonino e as teologias nativas de grupos de povos em todo o mundo.37 Apesar de todos os problemas dessas teologias – questões cuidadosamente criticadas pelos evangélicos por sua hermenêutica falha e o que Stott chama, no caso da teologia da libertação, sua “perigosa inocência”38 – elas, não obstante, recuperaram algo essencial. Isto foi expresso por Henri Nouwen quando visitou o Peru. Em suas palavras: “teologia não é principalmente um meio
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de pensar, mas de viver. Os teólogos da libertação não pensam em um novo estilo de vida, mas vivem num novo estilo de pensamento”.39 Estamos então, agora, em melhor situação para definir teologia de maneira a conservar sua natureza essencialmente prática. Isto foi feito brilhantemente pelo puritano William Perkins, que declarou que teologia é a “ciência de viver abençoado para sempre”.40 Anos antes dele, Martinho Lutero confessou, com respeito à maneira como suas provações, controvérsias e sofrimentos o tornaram um teólogo da cruz: “É mediante a experiência do tormento da cruz, morte e inferno que a verdadeira teologia e o conhecimento de Deus surgem... Só a cruz é a nossa teologia” (CRUX sola est nostra theologia).41 É precisamente esta “teologia arrancada da vida” que sublinha a celebrada declaração de Lutero relativa às qualificações do verdadeiro teólogo: “viver, ou antes, morrer e ser condenado é que faz o teólogo, não compreender, ler ou especular”.42 Só uma revolução curricular pode remediar essa bifurcação de modo a não só pensarmos teologicamente, mas também vivermos teologicamente. Se todas as disciplinas da academia teológica fossem ensinadas consistentemente na direção apontada pela Bíblia – fé ativa em amor – com a teoria e a prática ligadas em mútua dependência, em vez de simplesmente colocadas de maneira linear, haveria qualquer necessidade de uma disciplina separada com o nome de teologia aplicada? O que é teologia para todo o povo de Deus? Não é apenas uma sistemática “diluída” e popularizada; mas, como disse William Perkins: “a ciência de viver abençoado para sempre”. Ela explica e dá poder à vida do crente comum no mundo. Mas, significa ainda mais: considera os atos de fé como não só aplicando mas também descobrindo a doutrina. Em 1949, Ian Fraser escreveu um artigo original no Scottish Journal of Theology, intitulado Teologia e Ação, no qual diz: A obediência ao Deus vivo deve estar além dos muros teológicos que servem atualmente de limites. Quando Abraão partiu, ele não tinha idéia para onde ia. O alvo da teologia não é circunscrever tal ação obediente. Deve alimentar-se dela... A teologia extrai a sua própria vida da adoração e nessa vida extrai seu alimento da obediência.43
É justamente a questão da obediência – verdade vivida – que dá lugar a uma terceira distinção: a teologia por todo o povo de Deus.
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3. “POR” TODO O POVO DE DEUS: ALÉM DA TEOLOGIA ACADÊMICA Em julho de 1859, John Henry Newman publicou um artigo em The Rambler, intitulado Consultas aos Fiéis em Questões de Doutrina. Ele foi julgado escandaloso!44 Seria bom se esse escândalo pudesse proliferar! Além do mais, William Hordern diz: “Não temos simplesmente alternativas de teologia ou não teologia. Nossas alternativas são de uma teologia bem pensada, que passou pelo teste do pensamento crítico, ou uma teologia de conceitos confusos, preconceitos e sentimentos não analisados”.45 Vamos examinar isto ponto por ponto. Primeiro, a vida diária positivamente eriçada com a necessidade da reflexão teológica. As questões existenciais enfrentadas pela maioria das pessoas clama positivamente por uma teologia objetiva: Quem sou? Onde estou? Qual o propósito da minha vida? A quem pertenço? Meu trabalho diário tem algum significado? O que acontecerá quando eu morrer? O planeta tem um futuro? A tarefa teológica é não só interpretar a Escritura como também a vida e fazer essas coisas ao mesmo tempo.46 Alister McGrath oferece uma crítica mordaz da teologia acadêmica com base no fato de que Deus desceu à terra em Jesus Cristo: A teologia deve ser prática; servir a igreja é sua missão para o mundo – e se ela não for prática, deve ser forçada a isso, marginalizando de tal forma a teologia acadêmica na vida da igreja que ela deixe de ter qualquer importância para essa igreja, a fim de que uma teologia orientada no sentido das necessidades pastorais e missiológicas da igreja possa desenvolver-se em sua esteira.47
Segundo, muitos teólogos importantes ao longo da história da igreja têm sido não-clericais, não-profissionais: Tertuliano, Clemente de Alexandria, Orígenes; e na Igreja Oriental, Sócrates e Sozomen.48 A Reforma foi essencialmente um movimento leigo. João Calvino disse em uma de suas cartas: “Nunca fui nada mais que um leigo (laicus) comum, como o povo afirma”.49 Mediante um “acidente na história”, a saber, a conquista do Império Romano no Ocidente pelos bárbaros e a preservação da cultura religiosa pelos monges e sacerdotes, a igreja ocidental reservou a pesquisa teológica para o clero. Na igreja oriental, todavia, havia um monopólio clerical menor, de modo que até os
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tempos modernos as cátedras de teologia eram ocupadas por leigos, embora lamentavelmente não o fossem por mulheres leigas. 50 Ao comentar sobre a teologização da comunidade no verão indiano do mundo antigo, William Frend nota que a teologia era a paixão dominante do cristão provincial. Em Constantinopla, capital do império, pontos de doutrina eram discutidos nos bazares, mercados e banhos públicos, não por teólogos, mas por cristãos comuns intelectuais. Gregório de Nazianzo declarou, em 379 d.C.: “Se você pedir troco a qualquer um nesta cidade, ele vai debater com você se o Filho é gerado ou não-gerado.”51 (No século vinte, o leigo C.S. Lewis se destacou pela sua teologização.) Isto incorre em risco, como Alister McGrath mostra em seu estudo The Genesis of Doctrine. Embora a vida religiosa dos monastérios tenha gerado o conceito da Mariologia, a piedade popular fez surgir o dogma da assunção de Maria.52 A teologia tem sido preparada por cristãos cons-cienciosos e educados, que não fazem parte do clero ou da academia. Terceiro, a teologia está sendo feita hoje por pessoas comuns. Como o personagem na peça de Molière que ficou surpreso ao saber que estava falando prosa todo o tempo, o cristão sério mas não-clerical pode surpreender-se ao descobrir que está fazendo teologia a maior parte do tempo.53 A teologia do “povo” prolifera em filmes e livros, assim como nas conversas particulares: teologia vernacular, teologia no-impulso-do-momento, teologia improvisada e teologia indígena. Por exemplo, uma amiga “atéia” de minha neta pequena contou-lhe que não existe Deus no céu. – Olhe – disse ela –, se não existe céu, por que então morrer? – pura teologia! No filme A Man for All Seasons (Um Homem Para Todo Tempo), Thomas More diz à filha: “Quando um homem faz um juramento, ele está guardando nas mãos seu próprio ser. Como a água. Se abrir os dedos então – não precisa esperar que venha a encontrar-se de novo”. More está refletindo sobre a natureza da pessoa humana, sobre palavras e votos. Isto é teologia sendo feita “de baixo para cima”. Grande parte da teologia que está sendo feita é inadequada, mas está sendo feita! A teologia nativa, improvisada, embora quase sempre reacionária, freqüentemente revela dimensões inexploradas da verdade cristã.54
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Quarto, esta teologia vinda de baixo não é simplesmente uma curiosidade, sendo porém fundamental para todo empreendimento teológico. É notável que em seu preâmbulo, Karl Barth afirma que através dos séculos o que ele chama de “dogmática irregular” tem sido a regra – teologia feita como uma discussão livre dos problemas da proclamação. A “dogmática regular” tem sido a exceção. Ele inclui Atanásio e Lutero na primeira, em contraste com Melanchthon e Calvino na última. Barth alerta contra a comparação depreciativa entre uma e outra. Ele de fato admite que a dogmática regular – na escola teológica e com vistas à perfeição e consistência racional – “sempre teve sua origem na dogmática irregular e jamais poderia ter existido sem o seu incentivo e colaboração”.55 Em contraste, o processo de “escorrimento” da instrução teológica na academia e no púlpito oferece a verdade “pré-digerida” sem o privilégio do diálogo e do aprendizado participativo. Ray Anderson toca num ponto importante quando diz: “Intimidado pelas exigências dos eruditos bíblicos e teólogos cuja carreira profissional é avaliada e afirmada por outros estudiosos, a igreja se sujeita ao ceder seu papel na determinação de sua própria agenda teológica”.56 Quinto, para recuperar a teologia por todo o povo de Deus, a tarefa teológica deve ser relocada. A academia precisa trabalhar com a congregação, o lar e o mercado. Por exemplo, no caso da congregação, nossa compreensão do que constitui educação teológica começa a mudar quando uma congregação redefine sua área principal de ministério como a vida diária de seus membros, em lugar do serviço domiciliar.57 Por definição, mercado é o lugar onde coisas – mercadorias, serviços, informação – são trocadas. Como parte de meu aprendizado, passo duas semanas por ano no mercado. Um curso requerido no programa de Mestre em Divindades no Regent College coloca cada aluno, durante 20 horas, ao lado de um cristão comum no trabalho, ouvindo perguntas, orando e tentando descobrir como a igreja pode preparar pessoas para um ministério de tempo integral no mundo.58 Sexto, os teólogos profissionais têm um papel crucial na recuperação de uma teologia do povo. Eles também fazem parte da comunidade que contribui com sua pesquisa e perspectiva histórica. A tentação de deturpar todo o evangelho está sempre presente e os teólogos profissionais podem fazer
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com que o propósito redentor de Deus tenha forte influência sobre os novos movimentos. Isto deve ser teologia feita por todo o povo de Deus e não simplesmente por uma parte dele. John Macquarrie chama isto de “co-teologizar”. Em um certo sentido, pode ser inadequado chamar isto democratização da teologia, porque não é sobre kratos (poder), nem sobre direitos, nem sequer sobre corrigir um desequilíbrio, mas sim recuperar uma comunhão ao fazer teologia juntos.59 Poderíamos chamar isto de demoteologizar ou koino-teologizar? Temos muito a aprender dos crentes sobre isto no mundo em desenvolvimento.60 Em contraste com a dicotomia da teologia e prática na academia de hoje, o Novo Testamento pressupõe uma comunidade em que cada pessoa é um teólogo de aplicação, tentando fazer sentido da sua vida a fim de viver para o louvor da glória de Deus: teologia do, para e por todo o povo de Deus. Este volume se apóia e está em débito com obras já mencionadas; mas ele se aproveita também da rica experiência e no geral das reflexões perceptivas do corpo docente, de amigos e de estudantes do Regent College.61 Isto ficará aparente em várias referências e notas no final de cada página. É um projeto do povo. Parte desta obra teológica foi literalmente cravada durante meus anos de carpintaria e negócios, assim como complementada e desafiada por teologias nativas de igrejas no mundo em desenvolvimento onde minha esposa e eu servimos a cada ano. É só “com todos os santos” (Ef 3.18) que podemos saber quão largo, longo, alto e profundo é o amor de Cristo. E o amor, como veremos, é a essência do ministério e missão do povo de Deus – nada mais nada menos. Teologia é a ciência de viver com amor e abençoado para sempre. Nos capítulos seguintes iremos apresentar uma descrição bíblica do povo de Deus, um povo sem laicato ou clero. A seguir, examinaremos como esse povo é chamado e preparado por Deus no que se refere à vocação, trabalho e ministério. Consideraremos finalmente o que significa, para esse povo, ser entregue à vida do mundo como profetas, sacerdotes e reis, como um povo missionário em conflito com as potestades. Oro para que esses pensamentos possam ajudar os pastores a preparar os santos (Ef 4.11-12); professores de faculdade que precisam de um livro didático que envolva os cristãos comuns com o chamado superior de
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Cristo e seguidores zelosos que querem que sua vida tenha sentido, enquanto tentam equilibrar o que parece ser três empregos de tempo integral: ministério da igreja, trabalho diário e família. O livro pode ser usado como uma base de estudo em pequenos grupos ou classes, usando o guia no final de cada capítulo. Como se tornará aparente de imediato, este livro é a minha história.
PARA ESTUDO E DISCUSSÃO 1. Identifique a teologia expressa em cada um dos itens seguintes: • um filme secular • um hino de adoração contemporâneo (cantamos nossa verdadeira teologia) • um hino tradicional (por exemplo, um de Wesley) • um romance que tenha lido • uma peça de arte contemporânea (por exemplo, um quadro de Van Gogh) 2. Escreva as perguntas que surgiram neste estudo, nas três áreas examinadas neste capítulo: • teologia do laicato • teologia para o laicato • teologia pelo laicato 3. Medite sobre as palavras solenes de Jesus no final do Sermão do Monte, no qual Ele usa o termo para sabedoria prática, phronésis: Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos céus, mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?’ Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. [...] Quem ouve estas minhas palavras e as pratica é como um homem prudente que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, transbordaram os rios, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela não caiu, porque tinha seus alicerces na rocha (Mt 7.21-25).