Poeminflamado - poeta França

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Projeto Poeminflamado: A Voz Tridimensional do Poeta França Coordenação do projeto / Produção executiva / Pesquisa :: Laine Amaral Coordenação e orientação de pesquisa :: André Telles do Rosário Pesquisa / Catalogação e digitalização do acervo :: Rafaela Valença Gomes Produção / Pesquisa :: Juan Ramón Martínez Digitalização, tratamento e edição fotográfica :: Mateus Sá Digitalização, tratamento e edição audiovisual :: Mariano Pikman Criação do site www.poetafranca.com :: Jailton Ferreira

Poeminflamado Edição :: Rafaela Valença Gomes e André Telles do Rosário Textos :: Miró da Muribeca, Rafaela Valença Gomes, André Telles do Rosário, Carolina França, Juan Ramón Martínez, Laine Amaral e Silvana Beraldo Revisão :: Rafaela Valença Gomes, André Telles do Rosário e Gabriela Monteiro Projeto Gráfico :: João Lin Designer Assistente :: Kleber Monteiro Capa :: Sil Beraldo, Pedra França e João Lin Ilustrações :: Mascaro e Sil Beraldo


SUMÁRIO Prefácio  7 Apresentação  9 Cor da Exclusão  16 Cafuné  42 Cartões 68 Agendas da Vida 76 Quarto de Ofício 116 Luz do Litoral 122 Poemas para voz 132 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos 138 Posfácio 176 Depoimentos 178

A Herança do Poeta França 178 Memória do Teatro dos Amadores de Olinda – TAO 180 Memória Mão-de-Veludo 182 Notas dos poemas 188 Lista de obras publicadas 207 Índice remissivo de poemas 208


PRÉ FRANÇA Falar de França não é fácil, inda mais prefácio, por isso serei conciso. Andavam juntos, elegância e poesia, lado a lado. Eu quase sempre ali do lado. Nos recitais da vida vividas tantas coisas... A porta aberta na madrugada das Olindas para os irmãos de coração. Por ele ninguém dormiria nas ruas. Às vezes me confundia: Ele é a poesia ou a poesia é ele? Eu bem que podia perguntar se ele era a poesia mas era é passado e França não passou. Poeta não morre, vira páginas. Agora cabe ao caro leitor ir folha a folha semeando o que o negão plantou. Plantou não. Planta. Aqui a palavra “era” já era. (Aqui agora é quinta-feira queiram ou não queiram os juízes) Faltam alguns minutos para meia-noite França tá chegando... “Vaitimbora, Isadora, tu é mulher de Xangô” Chega. Senão fico triste. Dona Maria, Dona Maria, Olha o carro da economia! Um poema apenas por um real! Risos sérios ao poeta errante... Avante leitores... Miró da Muribeca. Poeta, parceiro de recitais e amigo de França.


APRESENTANDO A AÇÃO O incêndio “(...) Pois eu tenho o dever de Registrar a minha história” França Valdemilton Alfredo de França nasceu no Engenho Pirapama, área rural da cidade do Cabo de Santo Agostinho (PE), e lá foi criança. Filho primogênito de Dona Jandira e Seu Manoel, foi o primeiro rebento de uma humilde família negra; abriu caminho para muitos irmãos. Foi menino em trânsito, iniciou aos oito anos sua itinerância entre cidades e ninhos: entre o Cabo e Olinda, entre a casa da mãe e o aconchego da avó Carolina. Em tempos de tenra mocidade, já se apresentava articulado nos palcos da vida: aluno estudioso na escola, pastor mirim na igreja, trabalhador de destaque da fábrica. Mas na fábrica, na igreja e na escolinha, Milton já não cabia. Da luta pela sobrevivência e da vocação precoce em trilhar novos caminhos surgiu a sua sabedoria: aprendeu a se resguardar do emaranhado de determinações sociais e valores preestabelecidos e se permitiu saborear o mundo. Sabê-lo intensamente. De dentro. E ele, o mundo, foi o seu mestre. Foi França, assim, entrar no jogo dos homens: dominá-lo (o jogo) para subvertê-lo. Então ele – o único da família – passou pela Academia (Psicologia, Economia, até a posterior conclusão em Artes Cênicas) e por cargos de chefia no serviço público. Provou a si mesmo e à sociedade que, a despeito de toda opressão e de todo o preconceito, era um sujeito capaz. Mas logo se deparou com a necessidade de um projeto de vida mais arrojado, de um mergulho mais profundo, de uma religação com seu passado, com a memória de seu povo, com o essencial. E “perder o medo de alcançar o SONHO”... Nessa encruzilhada, iniciou uma busca solitária – por muitos incompreendida – e encontrou a sua saída: superar as aparências e as superfícies e acentuar os conflitos, as ambivalências e os dinamismos da condição humana, da relação intersubjetiva e da nossa realidade social. As ferramentas por ele escolhidas foram a arte-educação e a poesia. A partir daí, ganhou espaço imensurável na sua biografia a celebração: da vida, do corpo, do pensamento crítico, da voz, da liberdade, do encontro, do diálogo, da poesia. 8 Apresentação Poeminflamado

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O corpo e a voz: elementos ATIVOS “A palavra mata. A palavra mesmo morta mata.” França Empoderado de sua voz, de seu livre pensar e de uma crítica e aguda consciência da(s) verdadeira(s) realidade(s) de seu povo, o Arte-educador, Poeta, Encenador, Ator e Capoeirista França desvelou ao seu aluno/leitor/espectador/interlocutor essa tal estrutura de desigualdade da nossa civilização. Alguém no sofá ou na plateia poderia lhe perguntar: – Mas, se ninguém te ouve, como podes falar? Bom, na contramão dos processos da atual sociedade do espetáculo, em que o cidadão é paralisado e manipulado pelo medo, França agiu ativa e politicamente em nome da restituição do poder do livre pensar-sentir-agir-falar do ser humano. O caminho? O “do meio” – a arte, a imaginação, a educação, a criatividade, a poesia. A arma? Seu corpo, sua palavra e sua voz. O artista teceu sua filosofia de vida e sua arte na organicidade da conexão entre voz, corpo e território, sempre partindo de um fértil processo de construção de suas localizações identitárias no plano do gesto e do corpo. Foi buscar na cultura de seus ancestrais africanos a articulação simbólica da corporalidade com a territorialidade. Adotou como intercessores diretos Solano Trindade e Zumbi dos Palmares. E foi viver a experiência corporal como uma forma de conhecimento intuitivo, direto sobre o mundo. Entender seu corpo como um microcosmo do mundo e como parte integrante da natureza, não como seu contraponto. Experimentou em seu próprio corpo a sua cultura, sua memória, as relações com o divino, a sua luta e a resistência: no cabelo e na filosofia Rasta, nos movimentos de capoeira, na poesia falada. Para o artista, a questão não era sobreviver ou viver da arte: a vida-morte-vida requer um despertar cotidiano da mente e do corpo, exige movimento, interação. E tal qual um Exu literário, França movimentou a cena local, propiciou o contato e a troca entre os poetas e o público, transportou a sua e muitas outras falas. Abriu caminhos. Nesse diapasão, França espalhou muitas sementes: desde o fim da década de 1990, com os primeiros encontros poéticos promovidos em seu bar Sociedade dos Poetas Vivos até a apoteose da comunhão poética nas madrugadas de Olinda, no seu semanal recital poético Eu, Poeta 10 Apresentação Poeminflamado

Errante (2000-2007). Isso sem falar em Felipe, Carolina, Danilo e Pedra, seus descendentes diretos; sem falar também nas incontáveis crianças que participaram de suas aulas; nos não-atores e até mesmo atores que com ele fundaram o coletivo Teatro dos Amadores de Olinda; nos admiradores da lógica antimercadológica da Mão-de-Veludo Edições Artesanais, tocada por ele e pela artista gráfica Sil. Falar de França é olhar para além de sua obra. É falar, sobretudo, de seu público, que com ele aprendeu a participar ativamente da experiência artística. Assim, o compassivo e pacífico lutador, o terno guerreiro da arte-educação, da militância literária, do anticonformismo, da contracultura e do exercício responsável da liberdade foi e continua sendo figura mítica da cidade de Olinda. Seu sorriso franco, seus ensinamentos e seus versos permanecem vivos nos becos e nas ladeiras da Cidade Alta, mas principalmente na memória dos com que ele compartilharam a experiência do altruísmo e da autotransformação através da poesia.

A poesia viva, os caminhos abertos: sem interdições. “Grite o seu pensamento Esparrame sua dor Multiplique o alarido Pra que não descanse em paz o seu opressor” França O corpo, a voz, a cultura e a memória do negro interditados. Mas França não silenciou. Ele acreditava que o poeta negro tem a missão de expor as feridas da sociedade: não transformando essas feridas em obra de arte (forjando, talvez, uma estética do oprimido), mas sim assumindo o papel de porta-voz de seu povo, de personagem da História. A narrativa crônica e concreta do cotidiano, das ladeiras e dos becos – uma das faces de sua poesia – passa, assim, a revelar a rede de forças e práticas culturais que tecem as relações de poder da sociedade. Foi para falar sobre essas interdições, perdas, desagregações e diásporas – que até hoje ecoam nos caminhos e vidas dos afro-brasileiros – que o poeta construiu sua primeira obra, A Cor da Exclusão. Concebida como performance (1996), transformou-se em livro (1998) e, na década de 2000, foi também peça de teatro. Daí se auscultam as fronteiras fluidas, líquidas, da arte de França: teatro-literatura, performance-poesia, oralidade-escritura, arte-vida. 11


A performatividade latente nos impressos do poeta nos revela uma das diversas faces do hibridismo característico de sua obra: a função política e estética de oralização da escrita. Numa verdadeira reação à normatização da sociedade e da arte (operada por mecanismos hegemônicos de controle social, pela interdição à memória e à voz do “subjugado” e pelo primado da escrita) o autor faz questão de reiterar a legitimidade da milenar cultura de transmissão oral do conhecimento. Tanto na dinâmica dos seus recitais e performances, quanto na comunicabilidade diferenciada de sua palavra escrita. Vale salientar que a construção visual do poema se faz elemento dinâmico na poesia escrita de França, corroborando para uma relação integrativa entre forma e conteúdo, para uma possibilidade dinâmica, ativa da palavra. Tal diálogo gráfico encontrava correspondência na realização oral desses poemas, em ocasião dos recitais: através do ritual da voz em ação, da palavra indo e vindo, do corpo do poeta como suporte para a arte e para a celebração. Através da simbólica travessia de fronteiras: na integração do poeta com a plateia, no improviso, no fenômeno concreto do interlocutor como coautor daquela celebração, daquela performance, daquele acontecimento artístico, corporal, espiritual. Também a bem-estruturada e apurada escritura de França requer uma genuína disponibilização de todos os sentidos de quem com ela interage. Nela, há sempre uma ação: personagens e eu lírico que agem, atuam, transformam. Sua poética é tecida não por imagens, mas por cenas. Algumas delas recorrentes: espetáculo, luzes acesas, cortinas abertas; o subir e o descer as ladeiras da cidade; os sonhos, a ilusão, as máscaras, as armaduras; portas se abrindo. Grandes narrativas e poemínimos – estes mais presentes no Cafuné – assaltam-nos com o refinado senso de humor e o erotismo provocante do poeta. O imaginário da gênese e da morte e uma lírica amorosa lúcida chegam pisando forte nas linhas e entrelinhas da poesia de França. Sobretudo, dela se intui a questão da urgência da comunicabilidade: interpessoal, endereçada, mas também num plano maior, do social. Assim, num contexto em que muitas vezes o ato de produção artística por si só se faz empenho, engajamento, resistência cultural, o poeta assume para si a função de instrumentalizar o leitor para essa travessia: da passividade ao protagonismo, “da sala para a tela”. Mas não se trata aqui de uma arte panfletária, compromissada com outros discursos e dogmas. A arte de França é compromissada com o movimento, com o diálogo, com a sua própria circulação. Numa função de 12 Apresentação Poeminflamado

encaminhar o indivíduo, através do diálogo – neste caso artístico – à encruzilhada, para que ele possa, por si só, escolher seus caminhos, tomar suas decisões. Abrir as portas, instigar, provocar, atear fogo!

Poeminflamado Voz-lume a clarear o esquecido, a conflagrar revelações, a queimar o silêncio outrora outorgado. Voz reconquistada, a narrar a história. Outra História... Palavras e ideias que latejam aos sentidos de quem as experimentam. Corpoesia, performance, diálogo, catarse. Chama que se alastra, que corre ligeira a expor feridas e a espalhar denúncias, novas perspectivas, ternura, versos, provocações – no contato, na intersubjetividade, no olho no olho, no ser-em-relação, na explosão... Arte-combustível que encurta a solene distância entre o leitor e a poesia, entre a plateia e o artista, entre o ouvinte aprendiz e o griot. Amplificar a voz do poeta França e, em certa medida, estender ao novo leitor essa tal incendiária e irreproduzível experiência do contato pessoal com o autor e sua artevida são os objetivos fulcrais dos que colaboraram nesta publicação. Para lograr esta tarefa, reuniram-se alguns bons amigos do poeta. Guiados pelo aprendizado e pelo amor que França proporcionou-lhes em vida, realizaram uma pesquisa científica de mapeamento e catalogação de todo seu acervo escrito, manuscrito e audiovisual. Recebeu o nome Poeminflamado – A Voz Tridimensional do Poeta França e foi subsidiada pelo Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura/Fundarpe). Um dos resultados dessa empreitada chega, agora, às mãos do leitor: uma antologia da obra de França – entre publicados e inéditos, escritos e falados, papel e vídeo, letra e voz. O tutano da presente edição é dividido em capítulos: os dois primeiros remetem aos livros A Cor da Exclusão (1998) e Cafuné (2003). Em seguida, está a reunião de poemas que circularam sob a forma de Cartões (1998-2007), além dos demais poemas publicados nas famosas Agendas da Vida (2000-2009). Na sequência, dois projetos editoriais em que o poeta colaborou: Quarto de Ofício (livro-poema de Angelo Bueno, e com intervenções de França, Erickson Luna e Mauro) e Luz do Litoral (2005), livro de fotografias de Mateus Sá e pontuado por poemas de França. Em Poesia para voz apresentam-se poemas que circularam bastante na oralidade, mas que o poeta nunca dantes havia publicado por escrito. Finalmente, os inéditos em letra e em voz em O homem que marcha sobre si. 13


Contudo, a busca por uma adequada representação da tridimensionalidade da voz do poeta na presente edição nos ofereceu um delicioso desafio: como agregar ao material impresso ao menos uma centelha da performance, da fala, da teatralidade, da materialidade, do dialogismo e da plenitude de sua experiência poética – aquela que somente quem o viu em ação pôde experimentar? Paradoxalmente, apenas através de outro suporte, para além do papel e da tinta: a mídia audiovisual. Assim, no DVD anexo à presente publicação elencamos momentos capturados por diversos videastas e fotógrafos da cidade, numa seleção de performances, entrevistas, recitações e outros episódios da vida do autor. Através deste DVD e do site http://poetafranca. com – outro produto da pesquisa – o leitor poderá acessar de maneira prismática o universo tridimensional da voz de França. França vive. Divirtam-se com sua presença encantadora e libertária. E uma dica: esqueçam-se dos bombeiros...

Rafaela Valença Gomes. Tradutora, editora e pesquisadora da obra de França.

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C o r

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PreconceitoII É luz alta na cara A gente se sente Exposta Na dúvida Será que você vai ficar? Também pode ser quando você se esconde atrás dessa câmera seus olhos dizendo click e os meus, na TV sem remelas.

No mundo dos sonhos A tua imagem veio e vinha até que em estátua de sal materializou-se na minha vida O outro ser que tecemos em teias às quais bezuntamos venenos e feitiçarias te clama do passado Caldeirão derramado em aparente acidente casual diz que a hora de partir não coincide com o horário do trem.

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A Linda e Mauro Dois sorrisos tão abertos quase indecentes inconsequentes andam de mãos dadas nas ruas nas casas nas festas No riso o tiro mortal de quem diz e acerta em cheio que apesar de tanta exploração a felicidade também é um alvo a se conquistar

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Não sei se há o que dizer já que estou na fase do sentir há outra dimensão na expressão do sentimento (a comunicação transcende a palavra e o pensamento) Nem sei se há o que esperar de nós se eu estou na loucura do querer há outra linguagem, outro signo, quando a voz do coração fala mais alto e abranda o tédio da silenciosa razão Na verdade não há, bem sei, o que saber somos todos tão leigos nesses assuntos Pobres de nós, desastrados alquimistas de desejos e frustrações acumulados na melhor de seis ou oito décadas mergulhados em aleatórias proporções de temperatura e pressão, e, presos à ampulheta de um tempo metafísico Onde trinta e poucos anos se revivem, plenamente, em alguns minutos!

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Posso vislumbrar meu futuroIII num mundo de caricatos moribundos Sou o anterior e assim sendo mais belo, mais eu, mais puro Era apenas uma sombra hoje, sobra luz agonizante como pás de cal em cima do assunto Monólogo: monótono proparoxítona ou seja, me sentas na sílaba fraca A palavra mata. A palavra mesmo morta mata. Olho ao redor e pressinto labirintos em espirais coloridos longe do arco-íris; perto de ti tão perto que te confunde A roda emperra na areia da frase solta e eu guardo meu riso de escárnio para usá-lo na presença de apenas uma testemunha: O meu retrovisor.

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No princípioIV ROBOCOP invadia a favela apenas através da tela Aberta a janela para o pontapé na porta abaixo Na ponta da língua a humilhação perante os nossos filhos Na ponta dos dedos a bolinação nas nossas mulheres molhadas de água e sabão E o estalido que estava escondido na palma da mão? E o estampido que explode, na cara da gente, a lei e o tubo da TV: Dez pedaços de cena real espalhados na sua frente...

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VaitimboraV Isadora Vaitimbora Tu é mulé de Xangô - Mulé de Xangô Foi um dia um dia foi Ogum carregou Num carro de boi Vai-te embora, Isadora Não foi assim, não senhora Isadora vai-te embora Vaitimbora Isadora - Você me rejeita você não me quer Olhalá sou mulé De quem eu quiser

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Ai, os meus miolos são tijolos, são abrolhos são atolos, são tão tolos quando não te digo não E os meus pecados? São calados, são falados escrachados, são safados quando não tenho perdão Ui, as minhas taras minha cara, são tão raras São Saara, são tão caras quando não te meto a mão

Isadora vaitimbora Oxalá que te acompanhe Isadora vem timbora Oxalá que me perdoe Aliás, não devo nada Isadora vem timbora

Poeminflamado

Ah, os meus sentidosVI tão sentidos, são gemidos tão perdidos, são erigidos quando não tenho ereção

E a minha doença é a desavença tão imensa de tua presença tão intensa Eu sou são. Eu sou são?

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Vamos continuar comendo porcariasVII fudendo às Marias, bebendo excreções fazendo mais Josés que nos puxarão os pés antes de aterrisarmos em poderosos tapetes VO A DO RES

Tempo de chuva barro na casa xícara de chá mesa com pão maconha no pote o terceiro olho enxergando o óbvio que nunca sumiu

TNT-BUM, BHT-BUM, BNH-BUM, DDDT ML IML de antecadáveres UHS VHS nenhum sinal dela aqui entre minhas pernas SOS pedindo socorro em silêncio SE PUL CRAL

A cama quente engana o só olho na rua coração grande abraça o mundo ensaia um aú enraba a sereia que nunca saiu

Teatral. Teatro ateu, plateia plebeia Povo politicamente povo: cadela! cadela! Aleluia! Aleluia! PMDB-PEFELÊ-PTT, Pra quê ter? Enquanto o voto detona o país há quem pinte PON TES

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Mês de agosto cheiro de sangue na encruzilhada um umbigo gera a Revolução Exu paquera a Pomba gira que nunca caiu

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Quando finalmente caiu a última máscara Senti-me realmente nu E os meus olhos se envergonharam da minha nudez mascarada Mais felizes Adões Comeram maçãs envenenadas pelo puro beijo da coragem Enquanto eu catolicamente Me atiro à penitência de abrir mão do doce abrigo

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Nem bem começou a grande criseVIII quando a classe média abarrotou os ônibus urbanos com sua boca cheirando a cream-cracker com café e deles, mudou-se o itinerário (agora RIO DOCE-CDU passa em pleno Espinheiro) para acomodar sua bunda inflada de ócio e de tédio e neles entrava madame: - Sobe, motô! e saía simples passageira: - Desce, porra!! e tomava de assalto (salto alto na mão) a enorme ladeira sentindo náuseas com o cheiro forte da Zona Norte: quem pode mais do que Deus? e entre rezas e benzeduras enfim a bênção da preta fala, da boca torta da língua morta, a lhe dizer cheia de vida: - Tu vais morrer, querida!!!

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Onze horasIX Onze anos de idade um botijão de gás asfixia a criança que sobe, ligeira, a ladeira e à força das gravidades não poderá mais crescer Sete horas Setecentas cabecinhas dentro do ônibus sagrado rezam sete ave-marias de sete em sete segundos e à força das gravidades não poderão mais subir Meia-noite O mundo do ano dois mil explode em artifícios camufla o novo holocausto sacrifica ao deus-bezerro e à força das gravidades muito sangue há de correr Sim, nós temos super-heróis Só não estão na TV nem nas áreas de lazer em qualquer dificuldade em caso de overdose e à força das gravidades CHAMEM O BATMAN!

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Vens tão mansaX tão bela que fechas as portas atrás de ti Vens... vem... vem... O gato brilha a porta geme a tua mão me descostura ao sabor do vento e agora te vejo precisamente: Vais? Vens ou vais? Vais... vai... vai... Vem e vai! Vai e vem! Ou sou eu que não sei se sou tobogã ou gangorra masmorra tronco calabouço porão do teu âmago te vejo tão dentro de mim! Que cacimba te mataria a sede? Se não fosse pelo teu sabor ácidoalcalino abacateabacaxi eu não saberia se tobogã ou gangorra te atrairia hoje! 31


Agora percebo o sentido se me concentro explodo se explodir, estilhaçarei o mundo! Som de metal nem sempre é audível Porta fechada não é intransponível Meu medo é sintomático meu amor patológico Eu venho de uma ditadura que ditou a medida exata do meu orgulho Hoje ele é apenas o símbolo do que sonhou ser Pendula tiquetaqueando a minha vontade Se corro, perco o fôlego Se paro, perco espaço Por dizer “fim” três vezes, em linha reta tornei-me um homem reticente...

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O design do meu computador me mostrou que o meu know how saiu prum rolê e nunca mais voltou Aí pensei: Oh não! E now?? Hoje é quase impossível ler-se em português integral Tem cada vez menos freguês na quitanda do Quintana E não se trata de uma simples consulta ao MICHAEL A ultramoderna Babel dessa vez é de papel E é garantida pelo Banco do Papai Noel Em todo caso hoje tem festa na cabana da Joana E lá talvez eu encontre alguma tangência sob o rótulo do whisky escocês!

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As grades engradam as praças engaiolam as pombas, as plantas as crianças, o playground As grades gradeiam a cidade As grades evocam lembranças – desagradáveis imagens – de campos de concentração Desengradem as universidades! As grades desagravam as prisões agravam o seminário e o centro de convenções Lúgubres grades que sugerem Sucesso de metralhamento perfeito confinamento completa segregação As grades são caras as caras dos caras As grades degradam a vontade As grades desgraçam a cidade As grades atraem desgraças!!

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Há um buraco no meio do Barco BrasilXI que já não navega à deriva Vai fundo pro fundo profundo Há outro buraco insistente (e eu nem quero falar no meu dente) bem no centro de todo humano Outros e outros e dentro de casa pomba sem asas que traz certa paz Há também cavidades vulcânicas no meu peito implodindo o meu ego Sou tão curvo e no entanto não rodo, não rolo e nem cedo tão cedo O que eu quero o que eu busco está dentro de uma enorme cratera... Ah, lembrei de quem meu pai dizia: Morreu Dr. Fulano. Agora só tem o buraco e a catinga.

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Lá estávamos nós dois e não havia luz eu sentia teu corpo tateava tua forma tua curva tua vulva tua mão eu ouvia o barulho de entrar e sair de você e de repente a explosão de sementes e flores e folhas e frutos tudo tudo morrendo num saquinho plástico em nome da vida!

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Aumenta aos poucosXII O grupo que está à porta As mãos antes vigorosas No trabalho ou na prece Agora se fecham em punhos Feito flor que recrudesce ao botão Murmurejam pragas Entre as Orações E assim retiram um a um Os tijolos do edifício.

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Agora a flor e o fruto se oferecemXIII frutose na flor – metamorfose por osmose Alimentam o espírito ávido do novo que embriagado faz as pazes com o corpo Agora o rei e a coroa resplandecem Guerras e batalhas por mares e atalhos Vencidas e vincendas fazem do ego descer certeiros golpes: Craft! Craft! Craft! Absalão, Absalão, amarra teus cabelos bem no meio da tua mão Parabólicos guarda-chuvas para-raios Somos mercadorias penduradas em carvalhos.

Nenhum de nós doisXIV tem a ciência do laço nem no manejo do ato nem no desacato da forca mas para morrer de morte certa em caso de tentativa bastar-nos-ão os nós nas nossas próprias gargantas ou a explosão dos nãos mesmo sem haver perguntas e, em caso de aversão à solidão ou à ausência pode-se apodrecer a dois depois de lauto jantar a camarão decomposto e vinagre de vinho branco à luz da televisão PLIM, PLIM!!

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Arde ávida a acidezXV a agonia arranha, bale bole, berra, bate brutalmente Corre calado cúmplice cão cujos dentes dignos de devoção Decerto enfrentam espadas e esporas Enquanto, famintos, furiosos felinos grudam-lhe garras grossas Hoje hospedam Homeros, Horácios Imponentes igrejas imponentes Jejuns, jogos, juras, jantam juntos Lêem loucos livros lúcidos lamas Mas, mestres místicos, maconha metem medo. No ninho nascem novas noivas néscias. Outras ostras ocultam pérolas, porém. Pretos pedem pão. Povos põem panos quentes. Quem quer querelas? Rotulam rocks. Rejeitam reggaes. Súbito surgem sangrentas sarjetas transamazonicamente transcontinentalmente tão tristemente!! Unhas untam úberes Universalmente Universidades? Vomitamo-as!! Vêm vindo vozes!! Xiii.... Xangô? Xenófobos? Zeza? Zumbi? Zarpemos. Zeeennnn. 40 A Cor da Exclusão Poeminflamado

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C afuné

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UM NINHO SE FAZ EM PAZ

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Ave ama Seca cheia de leite Bendita sois vós entre as estéreis Vai pro Sertão Tu levas leite Eu levo pão Bendito é o fruto do vosso peito AMMOONN! Béé é é é é é...

O Sol do Sertão Secará o Sangue do Senador 46 Cafuné Poeminflamado

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Sempre que a beleza Se debruça sobre a DOR Assume ares de Santa Quando sagrada seria a dor que ninguém evoca

História da Humanidade quanto mais sei mais sinto

VERGONHA

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À MORTE – por ser imortal, XVII ergo um brinde, dizendo: - À NOSSA VIDA! e ela responde ofendida: - NÃO ME ESCAPARÁS! o meu sangue VERMELHO se e s p a l h a e torna violeta o

etéreo sangue AZUL

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O novo quebrou a casca do ovo e emudeceu o antigo Quem deflagra uma guerra perde o poder de dar-lhe rumo O meio exato é a negação dos extremos Ah, ah, ah, quem de mim terá aplausos?

52 Cafuné Poeminflamado

PRECONCEITO é luz alta na cara A gente se sente exposta Na dúvida será que você vai ficar? Também pode ser quando você se esconde atrás dessa câmera seus olhos dizendo CLICK e os meus, na TV, sem remelas.

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eu não sou um objeto fálico que se ate e se desatarrache à toa.

LÍNGUA SERVE TAMBÉM PARA PESAR PODERES

Doce balanço menina-consolo teus braços soltam meu corpo que cai cai cai em teus braços nova e suavemente

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A boca do lixo É a boca do bicho Em movimento Mandíbula batendo nos ossos da face Rangendo, rangendo Sem lubrificantes Saia daí de baixo Pule da sala pra tela ou continue A vislumbrar a barata E à sombra dela Embriagar-se sob o cheiro Do inseticida inútil.

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Brasa nos olhos, amor? Água nela. E que lágrima! mas se for por bobagem neguinha, fui mimbora e esqueci de chamar OS BOMBEIROS!

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poeminflamado VOCÊ É O FOGO que queimou o FOGO que estava queimando o meu FOGO!

o marXVIII tem tanto SU RU RU e eu aqui a ver navios...

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Por ser água barrenta Não me julgue profundo Não mergulhe em mim E é bom levar um tempo para me engolir Pode apenas banhar-se É esta a razão de ser eu água tão turva.

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Quatro. Esse é o número da besta que me governa. Quarta. Quarto. Quatro vezes de quatro Quarta-feira, cinzas Quarto Ato – epílogo! E também nunca pude esquecer das 4 vezes que me comeste

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IV Ato Mamede mata Goreth Solano salva Trindade Alcabuz é destruída Nunganga é coroada Ogan toca pra subir Há licor de jenipapo (envenenado) Servir e apagar as luzes

O devastador de florestas olhou pros meus cabelos e o cabo do machado do seu patrão estremeceu na sua mão

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Aumenta aos poucos O grupo que está à porta As mãos antes vigorosas No trabalho ou na prece Agora se fecham em punho Feito flor que recrudesce Ao botão Murmurejam pragas Entre as orações E assim, retiram um a um Os tijolos do edifício.

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Nebulosa carta cujo signo A vidente não retém – Passeio ao ar livre – Campo: Cemitério ou picnic? Flores: Festa ou velório? Meu corpo sob outro: Faço amor ou faço guerra? Frio: mudança de estação ou de habitat? Ai, o amor deveria avisar: “Chego amanhã”.

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a g o t a A

E tu pensando que podias dançar essa vida sem minha poesia

E eu pensando que podia moer essa máquina Sem tua lubricidade

C E N A

C O N T É M :

66 Cafuné Poeminflamado

s o p r e a p e n a s c o m h á l i t o

d e

q u e n t e

s u o r d o r o s t o

D O T R A B A L H A D O R

j u n t e u m a c a b e ç a d e

A L H O A O

s u o r é á g u a e

P E S C O Ç O

s a l l e v e

T U D O A O F O G O É L U Z

A

m u i t a L U Z . . .

S O P A C O N T É M :

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C ar t천 e s

X I X

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Nada me inspira com sua ausência perco-me nas entrelinhas não me encontro Não demore tanto a voltar... te proponho.

Vem negra com tua dança com teu mimo sorriso tão doce, olhar maternal Vem branca de todas as partes tão independente, tão liberada e intelectual

CORRO O RISCO DE ACORDAR DO MEU SONHO não demore tanto sem ligar Como pode ficar sem sentir o que sinto e persistir? não se afaste por muito tempo TEMO QUE ALGO ME ARRASTE DO SEU PENSAMENTO

Vem índia do rosto redondo pureza nos olhos tão presa e tão solta pés no lamaçal Vem amarela com tua sapiência tua paciência e submissão traz a tua Suam do Nepal Vem vermelha ucraniana tão socialista venha mestiça, venha pura Vem mulher de toda cor Toda língua ou religião Vem e me dá tua bênção!

70 Cartões Poeminflamado

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Quantas folhas deste papel Minhas mãos já amassaram Quantas palavras aqui não estão Porque do pensamento não passaram Quantas coisas mesmo Eu queria te dizer Mas como vou conseguir Se nem consigo escrever? Às vezes eu sonhava Que conversava contigo E nos sonhos eu dizia Tudo que aqui não digo Nos sonhos eu cantava Eu vibrava de alegria Gritava bem alto teu nome Pensando que me ouvias Se queres mesmo saber Tudo que aqui não falei Sonha comigo menina E no sonho juro que te direi

72 Cartões Poeminflamado

destinoRdestino dedicado aos sem-terra Menino da rua pergunta ao da roça: - Menino da roça? Cadê você? - Estou no lixão - Está na cidade fazendo o quê? - Plantando espigão - Como vai plantar se aí não tem chão? Como vai colher? - Colher de pedreiro Foi o que eu vim colher Menino de rua Pergunta ao da roça: - Que colhe você? - Mil balas no peito acabei de colher! - Pro mode plantar? - Não. Pro mode querer!

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Nômade que sou não tenho morada certa. Os meus credores duvidam das minhas intenções E me esperam à minha mesa. Esta terá que estar vazia... Senão, por quê terá pão, ou frutas, ou mesmo água - Comprados a míseros cents - As frutas? São apenas sementes E a água foi um presente que me mandou algum parente (Dir-lhes-ei sobre a lareira quente?) Houve uma mulher na cama - Não, não a paguei... (E se me ama por que foi embora?) ... Como o faria? Nem posso expulsá-los (Não tenho morada certa) - Mas de quando é mesmo a dívida? - Duvido! - Devido. - Quanto? (O que eu não posso mais) - De quanto é a dívida?

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A ge ndas

d a

V i d a

X X

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Uma deusa do fogoXXI Me lambe a mente Me queima a semente De uma nova ideia Uma deusa pagã, ateia. Outra, da água, submerge em mim E me desvenda os mistérios Sem no entanto mo revelá-los E agora me vejo mais incognoscível Exceto no que me admito desprezível Ei-la que me aparece alada Cheia de plumas, porém empalhada A dona dos ares tão subjugada Pela metade do meu desejo Que voa bem longe morrendo de medo Nem cria na ameaçadora esquina E menos na cumprição da promessa Saltita a morte peremptoriamente eterna E dá-me de presente ao seio da terra Que sem cerimônias me abraça e me encerra!

78 Agendas da Vida Poeminflamado

No lago, ao entardecer Cantavam os pássaros À distâncias prudentes das serpentes que Moviam-se sobre as águas Como se puxadas pelos movimentos das suas línguas. Deixei-me cair, hesitante, E adiei o mergulho No que julguei Águas envenenadas. - Será que as serpentes deixam seu veneno na margem, antes do banho? O meu veneno está sempre ao meu alcance Pensei e pulei com estrondo na serenidade daquele crepúsculo. Assustado, mas afastando lagartos e cobras e libélulas e pássaros do meu medo Daquela horripilante sensação de dezenas de línguas Serpenteando-me Sem nem um só bote mortal!! 79


QueroXXII parar essa gota de água salgada ardente fervente doente que entra e vai desaguar direito no leito do peito deus sabe não cabe na alma tão calma esse trauma não leve não neve não breve que rola vira bola mirabola amarga água amarga ida amarga vida a mais garrida Ai, MARGARIDA!

80 Agendas da Vida Poeminflamado

Marca indelével na minha vidaXXIII Marco inconfundível na minha trajetória Cisão entre o meu presente E o teu futuro Elo entre as minhas duas partes A de dentro e a de dentro. A partir de ti não precisarei De estrelas cadentes Astros reis desgovernantes Puxa-sacos del Rey tiempo Decadência não. De cadência Tenho o teu passo lúdico E o bambolear de tua bunda Quando vens ao meu encontro Dos tambores que me chamam Só as batidas do teu peito Dos odores aos quais aspiro Apenas o cheiro da tua carne Teu suor, tua saliva, teu gozo Minhas bebidas prediletas Meu éter: tua instabilidade Teu sonho, minha direção.

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Há mulheres surpreendentesXXIV que me olham prepotentes com ares de inteligentes como se eu fosse demente Eu lhes digo entrementes: Ao vê-las posso lê-las aprendê-las apreendê-las compreendê-las escolhê-las e comê-las Como? Como quando como estrelas.

Degeneração Quando aqui cheguei entre quatro paredes me vi e vi também um par de rostos risonhos de bondade e de amor Logo me vesti tudo era lindo e irreal como nos sonhos Com o tempo outras paredes conheci e também outros rostos contentes mas entre estas paredes eu me perdi e não me senti gente entre essa gente Eles usavam armaduras douradas, belas, belas E nos seus rostos o que sorriam sempre eram umas máscaras cor da pele que usavam para dizerem-se contentes Vi em dois olhos o brilho esquisito da inveja, da revolta, da ambição vi e não pude conter

82 Agendas da Vida Poeminflamado

um grito fora enganado e que doce ilusão! Ouvi palavras grotescas, duras vi gestos obscenos e imundos vi o que continham as belas armaduras carne a carne podre do mundo Minha alma rasgou as suas vestes meu coração turbou o seu semblante despido fiquei dentro de mim das coisas boas que existiam antes Então tomei uma das belas armaduras e pus também uma das máscaras sorridentes agora por dentro sou feito de amarguras mas por fora sou normal sou gente! 83


Cadê o seu cartão?XXV Não tem cartão? Ponha um carimbo de LIVRE PASSE na sua identidade E passe e repasse sua trajetória É lícito. Não é usual Grite o seu pensamento Esparrame sua dor Multiplique o alarido Pra que não descanse em paz o seu opressor

flor de cactus XXVI perdido no Sertão bebo a sua água como do seu pão te vejo como o fogo do cometa que caiu te sinto como broto de bambu que escapou da cobiça do Chinês te quero como uma figurinha que se coleciona dia a dia. TE AMO e não sei dizer como: se mãe, se filho, ou simplesmente pelo teu jeito de rir teu riso ainda não conheces a vida e ai de mim, aprendiz do teu jeito de rir. de só ser DE SÓ QUERER ... 84 Agendas da Vida Poeminflamado

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Olá! Alô? Vamos dar uma bola? Me escrutinou um par de olhos tão redondos que mais pareciam duas bolas de gude E eu os vi se derreterem e se transformarem em duas lágrimas de sangue que se cristalizaram e nunca mais jurei aos pés do altar

Desarme-me dos meus olhosXXVII se não sustentarem seu olhar Da minha boca, se não o delatar Das minhas mãos, se o adularem E do meu sexo, “para não enrabar sua filha”. Mas, me devolva a Língua-mãe A minha cultura, o meu baseado a minha caneta e o meu papel Pois eu tenho o dever de Registrar a minha história

Três bolas depois eu a encontrei no abril imediatamente o sorvete derreteu no meio do mangue E hoje creio que o visgo da mangaba nos grudou um no outro na quarta e quinta-feira Bolas, muitas bolas depois Balas! Foi aquele bang-bang Ela fez as malas Justo na hora da sexta-feira fumando bem devagarinho Os olhos volteando o lugar jurou nunca mais voltar Mandei atrás dela a gangue E não é que aqui pra nós Ela, a danada, Nunca mais me voltou!?! Oláááá Alôôôô Vamos dar uma bola? 86 Agendas da Vida Poeminflamado

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É você que me aparece vestida não sei de quê em cada esquina avistada em cada saia encarnada é você quem me aparece no vulto que vem da rua no meio da ladainha no sax embalo do reggae é você quem me aparece na saudade de mulher em cada blusa rendada na roda do candomblé Agora entendo a pedra no caminho do poeta: se penso em gargalhadas você logo me aparece; se me vejo em precipício e até mesmo em um hospício se retomo o antigo vício se traio algum princípio se te abordo por propício se te dou algum indício de que ainda te cobiço Você me desaparece...

88 Agendas da Vida Poeminflamado

Dia após dia, saudade crescendo e nós nos esquecendo de mantê-la Saudade morrendo e nós nos inclinando a matá-la. Lua nasce nova já duas vezes duas vidas cheias de fases cheias ânsia e desejo cuidam de nós Novamente um lampejo a porta só se abre se te sésamo Luzes acesas, cortinas abertas única é tua voz força do meu sorriso abrir-te será sereno e eterno Velho bater de asas. Novo rumo. Esgueiro-me por entre labirintos Jogos. Rainha, peão, torre. O sonho. O ardor. A vida em equilíbrio Te vejo na sacada. O relógio enregela-se sem tréguas Uivo nossa canção predileta Novo dia. Ânsia e desejo cuidam de mim O meu dia é tua noite. E assim me trazes, preto preso em rédeas curtas E o meu lado cachorro apenas te fareja.

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Na casa de espetáculos o palhaço chora E sua maquiagem desbota ao contato de lágrimas multicoloridas contorcendo seu rosto de dor e máscara grotesca Desce o pano sem aplausos nem vaias Apagam-se as luzes sem pontas de cigarros parecendo vaga-lumes acesos se vistos à distância. No picadeiro agora a bailarina gira sobre si mesma numa velocidade estonteante. Ela está louca. O vendedor de cigarros acende o seu último, e quer tomar um trago de aguardente de arroz. Acendem-se as luzes e já não há ninguém na plateia nem o palhaço, nem a bailarina Apenas o espetáculo no ar Sem risos, sem vozes. Sem luzes e sem som.

Logo, logo descerá o pano Desse espetáculo lúgubre Denso. Louco. Tétrico. E eu prendo defensivamente A respiração e a palavra. No prenúncio do apocalipse Vejo as narinas da Besta; No trajeto de massificação do Espírito Vejo a carne desnudada, O corpo em pelo, O ego nu! Solto os estribos do meu animal E capoto numa curva Aberta sem prévio aviso. Dói-me dilaceradamente Coração e pênis E substitui o prazer A imensidão da dor De me ver só; Exposição involuntária De pescoço e jugular Aos dentes caninos Da solidão parasitária: Nem o eco das minhas Inevitáveis palavras Nem o som do meu Eloquente silêncio!

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Secreto! Top Secret! Top Secret! XXVIII Gnomolusco Lama-fusco Centro do fuso horário Portanto atemporal Fusão do ar com o mar e terra, e todos e tudo é o tudo Que fogo pode apagar Se não for pra aquietar Nem esquente Bomba H radioativa Puro orgônio Reichiano Antigo como o ato de nascer Eu não sou ave, Maria, mas posso voar Ser molusco é viver isso que herdamos de você, seu bosta!

O nó na garganta sufoca a vontade de chorar dentro de mim aumenta o som do grunhido gutural lembranças leves fortes suam ao peso do acordar balanço agonizante, enjôo o cheiro me embriaga a luz me ofusca olho de lado. Olhos para baixo! Vislumbro uma mão Peso a distância. Meço a velocidade. Antes que grilhão me alcance corro, corro, danço e morro Brindo à tua silhueta bebo a teu mau humor trago as mãos calejadas de te esculpir em imagem e som mitsubishianos De olhos bem abertos dedilho uma canção agourenta Li tua sina na minha mão Vi teu destino no meu sonho Criei o Verbo. Criaste o Não – Advérbio de negação – Ora, ora, ora é hora de viver tua vida sem atrelá-la à minha Sem encontrar outra tu Revelar o que teu anseio esconde E por a minha fotografia na tua coleção

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Eita gosto seco, azedo no meio da língua travando o paladar Eita visão assombrosa, embaçada cortando os olhos, ferindo o olhar Eita mãozinha pesada, crespenta arranhando a pele, doendo ao tocar Eita que cheiro enjoado, nauseante que sangra narinas e dá ânsia de vômito, Eita palavra tão nua, tão crua tão dura de escutar: NÃO! Arrancando olhos, perfurando tímpanos. Entrando bem dentro, bem fundo. No coração do SIM.

És feita do vento, dos risos da Tristeza Da chuva, do Sol, dos desencontros, Das lágrimas da Alegria És feita de derrotas e vitórias... Arde dentro de ti um fogo, que te bole Que te come, que te queima, Moram dentro de ti, a um tempo Anjo e Demônio, fada e bruxa Não os odeias, não os temes Antes, abraça-te ao mais próximo, Agarra-te ao mais forte, ao mais belo E assim, ora resplandeces nas trevas Povoada de anjos e fadas. Ora enegreces na luz arrastada Por demônios e bruxas. Vivam os duendes, os gasparzinhos Morra a morte tão real Quase palpável, quase visível; Morra a dor, tão profunda, tão marcante, Onipresente deusa da amargura Morram as desesperanças entre Os espinhos da cruel realidade Nasçam as flores do desejo e Desabrochem no prazer maior... Dê-se. Ame. Ame e goze Goze, goze, goze e Disperse com o seu gozo O aglomerado das coisas impossíveis.

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Guerreiro de onde vens De onde vens, pra onde vais Dizes teu nome, teus feitos. Enleva-me com cantigas de teus pais Solta a voz, estronda o peito Satisfaz os teus desejos Reina em nós teus ancestrais

Me envolvo mansamente onde A razão e o sentimento Coabitam em harmonia O pesadelo é a realidade Na qual a gente se vê! Há o espinho, há a rosa A rosa, pra mim, é você!

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Guerreiro para que vens Dize-nos e conduzirás Nossos carros, nossas lendas. Aumentais nosso panteão És filho dos Orixás Bem-vindos filhos e netos Bisnetos, tataranetos Toda linhagem real Eu reino sobre mim mesmo Sobre ti não haverá ninguém na terra Sendo assim sucederás Os que por aqui passaram Seja na guerra ou na paz Guerreiro me conta logo De onde vens, Pra onde vais.

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Sapatos não me apertam os pés Gravatas não me enforcam mais Cuecas não me assam os escrotos Cintos não me afetam os rins Nem uso algum indigno índigo Somente Algodão e Blues debaixo de 40 graus Minha casa não tem cercas nem tem grades nem tem muros, nenhum corredor escuro não tem sótão nem porão Somente algumas janelas abertas janelas azuis debaixo de 40 graus

Agora procuro quem te pôs na minha vida É uma busca cósmica cíclica mas inteira, ANTROPOFÁGICA meus pelos pubianos escondem tua origem Ou eu, fruto de ti, na flor de minha semente? Agora procuro quem me pôs na tua VIDA

Somente Algodão e Blues debaixo de 40 graus Abertas janelas azuis debaixo de 40 graus

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Unir para a guerraXXIX Retomar as forças à força Guiar através das pedras Reatravessar o deserto Ferir o mar Tornar vermelho o chão Subir aos céus Desafiar os deuses dorminhocos sonolentos deuses de Seu Manoel Entrar pelo portal do Sol na noite esquecida pela Lua Pular o fosso o cerco perder o medo de alcançar o SONHO Plantar raízes Regar sementes Ações de quem não foi simbora Inflar pulmões Soprar clarins VITÓRIA!!

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Transávamos debaixo dos lençóis luz apagada língua colada no travesseiro No espasmo a sensação de ter partido pra luta Hoje se vê que a nação desenvolve a mesma política da era colonial e como dois amigos que fenecem juntos não nos importamos com a decadência um do outro 101


Sou árvore Dou sombra Abrigo ninhos Suporto ventos viajo pro centro Da terra e do céu Ao mesmo tempo Direções de ir Resoluções de vir No mesmo asfalto Mão e contramão Também dou frutos Até broto brotos E os solto na relva Os meus sonhos Sou árvore airosa frondosa pomposa E cheia de clorofila Pra lhe deixar verde.

102 Agendas da Vida Poeminflamado

Sou árvore portanto estática/extática mas antimetálica, mulher Ai, o fogo me mata (os Homens e os deuses) Sou toco, tição! E cheia de melanina pra lhe deixar PRETO Sou árvore retinta extinta bizarra patética Uma torre de papel Estou nas suas entranhas passeio na sua cozinha cheia de adrenalina pra lhe deixar LOUCO!!

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O poeta É como uma galinha Enquanto não caga uma Poesia Fica de lá pra cáááá De cá pra láááááá Até que o sal Ao léu se calcifique E mesmo que seja A vida toda um único ovo Faz-se mais uma vez Celular semente Que como um véu Se presentifica.

Bastava ouvir berimbau Que eu ia jogar capoeira Pernas pro ar Parecendo bananeira Cabeça prum lado Rabo de arraia já foi Não deixe ninguém Carregar Camará velho Esse seu carro de boi

COCORICOCÓ COCORICOCÓ Jogo justo, jogo inteiro A gente joga sorrindo O som dessa gargalhada A garganta vem abrindo Cabeça pra frente A neve já foi Não deixe ninguém Carregar camará veio Esse seu carro de boi

104 Agendas da Vida Poeminflamado

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Matadores perfilados Piscam olhos entre si Ante notícia matinal Sobre crianças e adolescentes Massacrados e assim Comemoram mais um ano De vida da corporação Assassinos encapuzados De crachás e contracheques Todos manchados de sangue Imitam sons de coruja E assinalam na favela O destino das próximas vítimas Dia a dia. Noite a noite Nenhum capuz esconde A alma dos carrascos O cheiro nauseabundo do sangue Das vítimas os acompanha Insepultos os seus corpos Servirão de alimento Para outros carniceiros.

106 Agendas da Vida Poeminflamado

Não sou como queiram se não quiser saber de mim bata a porta procurem endereços a partir do meu Não tenho apetite no que me oferecem Meus dentes perfeitos não são só perfeitos dentro da boca meu dente perfeito carrego no peito É meu amuleto (um dente cravado no peito!) oculto, fechado, soneto poema aberto desprevenidamente feito braguilha prestes a ser fechada por tampilhas e barbantes! Meu sorriso me protege das suas dentadas

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Última Sexão Paródias fellinianas dançam na tua boca que cospe pequenas tragédias na minha cabeça, onde, tal qual

Eis que suas palavras reacenderam seu desejo e ele, ávido de gemidos correu, olhos cerrados ao seu encontro. E qual? Em pleno domingo de Sol o templo do amor perdera seu brilho enquanto apenas vagalumeavam nos quatros cantos do Ser outros desejos já não mais inconfessáveis.

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antena parabólica, alguns pombos fazem filhotes e cocô. e eu, filho bastardo de Spike Lee, pouso o olhar cinematograficamente num dos ângulos da cama (o iluminado pelo abajour) e num misto de prazer e ódio desprezo e desejo GRITO! um grito patético antiestético, um urro: - MEU PAU LATINO MENTE PAULATINAMENTE!

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Beijo tua boca e sinto o cheiro do teu corpo toco esse cheiro e gosto que seja como o do vinho que se pensa doce mas amarga até o sim Lambo o teu nariz e minha língua adormece agora, te faço feliz teu cheiro me penetra e encrudesce meu olfato empalidece minha face arrefece minha visão esmorece o que eu escuto e apodrece o que eu sinto por ti.

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Que hábil maneira de se ir, ficando ficaste. Enches a casa com teu “AR” Pedras. Que lindas pedras por sobre o meu caminho Borboleteias aqui e adiante presenteias-me com tua presença constante Ornamentas meu pescoço com essas pérolas Enfeitas-me de fitas há azuis e amarelas Lilazes fitas fulgazes Fulgores, às vezes flores Nossas notas musicais Transformarão esse velho mundo?

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Conjecturas O que eu traço, mesmo que faça Não abre portas, mas não importa Meu embaraço me estilhaça Me deixa morta a artéria aorta Quero versar, sem desconversar Dizer o que sinto, é pior, se não minto, Tentar dispersar, sem querer dispensar O vinho tinto com o qual pinto.

O que houve no meio do silêncio Estourou meus tímpanos Assim como balão de aniversário que pipoca antes ou depois da festa.

Assim abafo o meu desabafo No primeiro copo com quem topo Procuro um bafo que não me deixe gafo Me desloco para fugir do soco Cada passo em falso leva ao cadafalso Cada bom momento cai no esquecimento O vôo que eu alço mesmo sem ter calço É o do sofrimento para o longínquo alento Minha dor não tem rima nem é minha sina Fazê-la poesia não foi só cortesia Eu estou por cima... observa, atina: Não sente azia quem tem a barriga vazia

112 Agendas da Vida Poeminflamado

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Analogia Vemo-nos espelhados quando choramos no reflexo do seu vestido de seminua (semideusa soa FORTE para a adoção do necessário sacrilégio)... FORTE é o termo. FRÁGIL é o ato em si, só. O Amor é um pimpolho num carrinho desgovernado é sobra de réstia na porta fechada ilusória e temporariamente aberta: – fecha-se os olhos e a porta some – Nem eu nem você temos a chave do enigma, perdida no labirinto das dobras dos lençóis da nossa cama. Vamos desfazer o Amor a fim de reencontrar a saída Refazer a cama e olhá-la de soslaio: Atraiçoarmo-nos. Negar a atração lúdica e ceder à tentação de olhar para trás e nos transformar em estátuas de sal.

114 Agendas da Vida Poeminflamado

Evoco os momentos que vinham depois do clímax E do clímax, depois dos instintos saciados... Relembro que você se abandonava num estado de languidez provocante Naqueles minutos mágicos a vida inteira me parecia leve como brumas do mar O verdadeiro amor para mim nascia a partir da imobilidade dos nossos corpos prostrados Como a vida brotando dos restos de um banquete Súbito, a campainha do telefone Os pregões matinais dos ambulantes O sol nos assaltando pela fresta A languidez sendo expulsa O sonho se esgueirando das nossas mãos Que já não se crispavam que agora eram rijas calejadas secas...

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Q uar to

de

Of í c i o

X X X

/ / 1 1 6

a

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Quarto de Ofício Ângelo Bueno, Erickson Luna, França e Mauro.


Prezado dá licença pois sou de casa e posso falar Venho de terno branco chapéu, gravata vermelha amarrada na testa pedindo passagem, CÃO DO INFERNO

saia da frente pois trago a morte dentro de mim. corro desesperado trocando segundos por horas anos por séculos e se chegar a tempo

não morro.

Transito entre a neurose urbana e os traumas do campo; buscando o bucólico volto desolado, melancólico soltando a voz na cidade imitando cachorros feios e magros

Guenzo

compartilhando a fome e a falta do não fazer esfrego-me na sarjeta assumindo esta condição, não por aceitação mas sim por rejeição 118 Quarto de Ofício Poeminflamado

ao condicionamento que só a ti satisfaz. Passaram por mim barcos Passaram por mim trens Passaram por mim bondes Passaram por mim ônibus Passaram por mim kombis e agora passam por mim

bestas lotadas.

Acredito que ando tão rasgado que não tem “bandaid” que dê jeito estou preferindo usar merthiolate que mercúrio mesmo que arda e acho bom que você tome sua cerveja antes que eu a vejeXXXI pois de hoje você não passa e se passar

Passará sorrindo! Gata bandida esborrachada na janela, assistindo a tudo passar gata ladra dos meus olhos, roubando-os por

entre os cílios

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quem dera ser eu, ser seu parapeito, para em meu peito

se aninhar.

Maracajá ladrão vai-te do meu galinheiro deixando de roubar meus sonhos se retornar aos meus pesadelos ao invés de levar minhas galinhas

Vai tomar é chumbo

Perfiro esse

quartinho de cana do que aquele quarteirão todo vazio Não quero mais viver

escondido quero sair do

Coaxávamos noite à dentro em busca de desejos co-achando incessantemente o que queríamos ficando intrinsecamente juntos Eu não vou financiar a sua loucura pois a minha já me sai muito cara

negativo

desejo que me

revelem

espalhando-me por toda a cidade outdoor, outdoor, outbus

outdoor

Não me diga

aquilo

que não quer

ouvir

ouviu! É dificil enxergar o que as pessoas sentem se você se sentar de Lado 120 Quarto de Ofício Poeminflamado

121


Luz

do

Li to ra l // 1 2 2

a

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Luz do Litoral


Pouso solto Em sua mão aberta Estendida para a minha Por detrás de um sorriso congelado Me quereria seu escravo? Solto penas Nos seus dentes E morro antecipando-me À dor de sua mordida Amaciada pelos meus flancos Da fímbria do mar Vôo ao encontro De uma errática dúvida Ver-te com avelã arriada e presa Ou perder-te no espasmo De um ínfimo prazer?

Espelho d´água, Espelho meu O Mar Tem tanto Sururu E eu aqui A ver Navios

Pouso alto Em tua mão aberta Sopro areia nos teus olhos, e? Forro!

124 Luz do Litoral Poeminflamado

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Sangue Lágrima Riacho Rio Oceano Lágrimas Sangue. Líquidos Sobem Sul acima E se chegarXXXII Devagar De mansinho e Sem avisar Te pegar pelo pé Pelo olhar Te colher como flor Ao alcance da mão Ou seja como For De bala, anzol Ou arpão E você Não tiver aonde ir....

... Só pensar em fugir Sem rumo E a morte Parecer a única Saída Para a vida Então o que fazer Sem coragem Para morrer Nem matar O sentimento Maior que tudo.

126 Luz do Litoral Poeminflamado

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Aumenta aos poucos O grupo que está à porta

As mãos antes vigorosas No trabalho ou na prece

Agora se fecham em punhos Feito flor que recrudesce Ao botão

Murmurejam pragas Entre as orações E assim, retiram Um a um Os tijolos do edifício

Nosso povo dá gargalhadas Nos arcos altos da noite - Do que riem? - Não é riso é um aviso debochado Ecoam nos terreiros Trovejam nas encruzilhadas Flores brancas no mar azul! De que riem? Que festejam? Não é riso nem é festa É um recado abusado Ultrapassam a noite invadem o dia Risadas, deboches, pregões matinais De que riem? O que dizem? Não é riso. É um grito de guerra!

128 Luz do Litoral Poeminflamado

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Unir para a guerra Retomar as forças À força Guiar através das pedras Reatravessar o deserto Ferir o mar Tornar vermelho o chão Subir ao convés para ir aos céus Acordar os orixás De Seu Manoel

Estou a procurar, um pescador Curiosamente ele lembra meu avô Nem programei notícias suas pela relva orvalhada

Entrar pelo portal Do sol Na noite esquecida Pela lua Pular o fosso Furar o cerco Cuidado com a isca! Perder o medo de alcançar O sonho Plantar raízes Regar semente Ações de quem não foi Simbora Soprar clarins Vitória

que meus dedos acariciam Cheiro de peixe que se encrusta no palato Mal sinal? Má sina? Avemaria, meudeusdocéu!

130 Luz do Litoral Poeminflamado

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Po e mas

p a ra

Voz

X X X I I I

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a

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Poemas para Voz


O meu corpo te exigeXXXIV Um desejo corrosivo me aflige Com impetuosa força e tenacidade A alma, o pensamento e a personalidade E no delírio desse desejo Eu começo a divagar e vejo Teu lindo corpo despido Como se nunca o houvesses vestido No auge do meu devaneio Tenho uma mão no teu seio, Teu sexo no meu beijo A minha sede de desejo

A fome vem descendo a Ladeira da Misericórida Sem misericórdia nenhuma A fome come E alimenta outras carências A fome come E cada vez mais elimina as diferenças Entre seres humanos e animais

A minha semente lasciva Não concebe, não dá vida Quem me dera que tivesse Os gozos que já me desse

E o pobre homem – De tão pobre, de tão humilde, Impertinente – Encontra um santo padre descendo a ladeira e diz:

Eis porque és tão viçosa: Com meu sêmen regas teu corpo No meu sonho te faço inteira...

– Valei-me, meu padim, que eu já não acredito mais em Deus Nem nessa ave-maria que eu ouvi cantar. Porque não há mais em quem acreditar Do que o feijão carroz do meu dia a dia, Já que fósforos e sal eu guardo na rodia E gravetos eu faço com o santo e com o altar. Me diga mais uma vez, uma vez só, meu padim: Se o homem é a semelhança de Deus Quais dos que eu conheço que circulam entre nós Que não seja branco e muito rico e bem sorridente? Ou será, meu padim, Será que, por acaso, esse Deus tem parte com o cão? Por que será que os da minha cor Lavam a latrina dessa multidão?

E passas por mim vaidosa Como se eu fosse morto? Ah, masturbação derradeira!

134 Poemas para Voz Poeminflamado

– Lá vem ela!XXXV – Ela quem, home? – A fome! – Lá vem ela! – Ela quem, home? – A fome!

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Olinda está muito malXXXVII Em decúbito ventral Desde o primeiro Carnaval Tendo sido incendiada Por legiões de urbanos Tal qual era colonial E a dos greco-romanos

É assim mesmo que eu olho pra vocêXXXVI Assim como se olha pra alguém que nos roubou Não foi você não? Se não foi você, foi seu pai Se não foi seu pai, seu bisavô

Vem sendo violentada Todo ano em romaria “Olinda menina linda Tens a boca desdentada Os olhos enremelados Nariz podre, encatarrado” V8 vê tudo calado Varad´ouro vara os olhos De quem chega e o coração De quem o vê todo dia Olinda vai muito mal Prostrada em decúbito dorsal Em vias de novo estupro anal Pelos do bem e os do mal

136 Poemas para Voz Poeminflamado

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O h o m em q u e m a r c h a s obre si: p o e m a s I n ĂŠ d i t o s XXXVIII/ / 1 3 8 a 1 7 5

O homem que marcha sobre si: poemas inĂŠditos


Pense... XXXIX Pense numa coisa pontuda pontiaguda parecendo ponta de lança para que você possa chutar mesmo que estiver calçado com um sapato bico de aço vai rasgar o dedão É falta, É pênalti, Vai chutar! Vai chutar... ou não?

Que ideia dizer coisas por escrito É tempo de sobra para o poema fugir

Nem musgo nem visgo Nem gaiola nem ao léu

140 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos Poeminflamado

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Laço de Fogo Deixa que eu pinte Em teu pedaço E dá teu braço Vem no meu passo Caminhar... Deixa que a vida Seja um laço De fogo e morte Pra quem não tem Sorte nem abraço Para dar Eis que eu estou No teu encalço Correndo descalço E tem espinhos No meu pisar Não sei por que Você se viu Entre quatro paredes Por que você caiu Nas malhas dessa rede Sem pensar A vida não É uma transa-à-toa É uma transa-boa A morte é que é má Eis que eu estou No teu encalço Correndo descalço E tem espinhos No meu pisar 142 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos Poeminflamado

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Constatação Onde foi que eu perdi A minha naturalidade? Que gesto ou palavra aprisionou A minha espontaneidade? Ou foi a mão do meu pai, fazendo nãos, Antecipando-se ao meu ato, Precipitando-se ao meu gesto... Ou será porque sou negro, quero dizer, Todos os negros são assim? Por quê este olhar desconfiado Meu, do meu pai, do meu avô De quem não sabe se tem permissão Para rir, chorar, gritar, gemer, gozar? Permissão pra reclamar, se irritar, se exceder; Permissão para mijar, permissão para ser, Para ter, para estar? Ainda chamam de arrogante O negro que não tem o olhar subserviente: Negro Besta. Eu passei a minha vida inteira pedindo desculpas: “Desculpe-me por estar aqui... por ter que me ver.” Sr. Analista: Em que momento da minha vida Me tornaram assim? A que tipo de lavagem me submeteram? Quanto tenho que pagar para ter de volta minha cidadania? Estudar pra ser Doutor? Pergunte ao Dr. Negro o que ele teve de fazer pra ser Doutor Ser jogador de Futebol? Até Romário tem os olhos baixos, ou melhor, Pergunte a ele se ele é negro. Não, não adianta dizer que a escravidão acabou. Eles ainda são senhores de todos os nossos passos Antes, da nossa vida, nosso corpo; Hoje das nossas mentes e dos nossos destinos. 144 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos Poeminflamado

Elegem um negro e dizem: Você é o nosso rei. Desde que nos diga que é rico E a eles que é branco! Cabe-nos fazer alarido para despertar Zumbi O Zumba que hoje dorme em cada um de nós. Fazer uma guerra, sem tréguas, sem bombas, sem par Uma guerra na rua, no trabalho, na escola, na casa: OLHAR COM ALTIVEZ! E NUNCA NA VIDA A CABEÇA BAIXAR. 145


Internetem-nos! Queremos a sensação de Não estarmos alienados Ao embalo desta rede Navegar neste navio Faz parte da nossa história Este é o tumbeiro atual Em vez de ser Rei Nagô Queremos outro carnaval e Um tão potente tambor Nós que produzimos a paz Na terra, nós os donos da boa vontade Nós que temos morrido na praia Nós que lavamos suas latrinas Que cuidamos dos seus filhos Que cozemos sua comida Bem contra a nossa vontade Sempre com a velha “Barbie” Ou a nova boneca de pano Internetem-nos! Ou será que também isto Teremos que fazê-lo Com as nossas próprias mãos?

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Café não é preto Açúcar não é branco Cacau não é marrom Amarelo não é ouro É a farda do gari De que cores tô falando? O natural não é pálido Nem cinza é a natureza A garrafa de aguardente Contém lágrimas de criança Será que dá para ver De que cores tô falando? Veja a cor da igualdade E da Justiça Social “A liberdade é azul” Logo o azul, tão pastel? Do exército brasileiro, da polícia militar De que cores tô falando? Da cor da Universidade E da TV colorida onde preto não é cor Nem há ausência de cores Qual a cor da cabra alada e a do burro quando foge E do maracatu atômico De que cores tô falando? Já estou ficando tiririca De que cor estou falando?

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A Chico Science A festa apenas começara detonaram o artista Os “urubus” se refestelam na sua carniça Saqueiam sua bolsa Surrupiam o seu ouro Projetam seu futuro Atestam uma causa pro seu óbito Engarrafam o seu corpo E rotulam-no “is dead”. Só que artistas não morrem. Você Caê caiu de quatro Neste novo-liberal festim Sulamericanafricado.

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Tenho fugido das ferramentas que manuseio com certa habilidade Desprezo a ciência e o aprendizado acadêmico Eu bebo o Futuro com ares de quem tá mijando o passado

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Diretas, já! O slogan perfeito que explodiu da garganta dos brasileiros por tantas vezes, implodiu no peito dos guerreiros como o grito de morte das reses. Por sorte restou a esperança de saber que decerto a agonia (que não cansa) e a dor entrarão como setas desta vez DIRETAS no peito do opressor. De resto, nos resta a certeza de que tudo passa. Até esta tristeza... até essa alegria que, de resto, lhes resta. 152 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos Poeminflamado

Ai minha preta, tu me pedesXL Para falar sobre os negros No dia treze de maio e eu choro: Agora que conheço a história Desdenho do branco que a fez Ai minha preta tu me pedes Para falar sobre os negros No dia vinte de novembro e eu pasmo: Gritos ecoam na minha mente: Zumbi morreu! Zumbi morreu em vão! E ainda me pedes minha querida Para falar sobre os negros Que estudam na minha escola E eu lembro tê-los visto apenas do lado de fora Mais na Igreja do que na Escola Sem rei, sem terra, distinção ou louvor Lavando latrinas, lambendo sapatos No Brasil, os negros estão onde sempre estiveram! Sobre os negros, minha preta Eu não falo. Ou tu não vês Toda essa gente explorada E todo mundo calado?

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Canto a um bode expiatório A “Abelardo” Benedito dos Santos Que os negros de qualquer cor Pobres irmãos do mundo inteiro Dêem o seu próximo passo Em seu próprio benefício Retomem à força o Leme Das mãos do escroto Capitão Relembrem o grito de guerra E a paz que traz a farta mesa Ou acreditem na inflação 0% No imposto provisório Que eutanásia é novidade “Que a favela é seu lugar.” Pensem nos nossos “Beneditos” A serviço do Exército ou da torcida Explorados pela fé que não os exorciza Enquanto jantamos assistindo futebol A Internet é o tambor do milênio Mas não se iludam, Pelé não é Rei Muito menos um ministro E Mandela é apenas um griot moderno.

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Brasil – Quinhentos Anos Pindorama, Oh Pindorama Berço dos nossos avós Estrangulou tua voz Quem hoje diz que te ama Macacos nas majestosas palmeiras Araras barítonas, papagaios tenores Gritam em coro: Cuidado! Invasores! Mas Caramuru jogou pajé na fogueira

Nanã Burukê Nanã Burukê Me solta me solta Que eu levo As doenças E espalho As mortes Me prende me prende Que eu arraso As cidades E suas gentes Da noite pro dia Me solta Nanã Burukê me prende

Vera Cruz, Santa Cruz, Brasilis – Brasil Cruz + espada + chicote = nação Pela mão sagrada hóstia e cicuta América incendiada, Canaã do ano 2mil A serviço da Ciência e da Religião 500 anos mais de resistência e luta! 156 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos Poeminflamado

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Sopro de vida insuflada por mais uma vez Viver o tempo de reviver um grande amor Uma terceira dentição inesperada Milagres que o amuleto quebra para ser realizado. Pedaço da gente que andava desgarrado gesto-ação de plantar sementes e esperar pra ver a grande árvore brotar fruto: Leite do teu peito em minha boca derramado Ao filho, leite de outros peitos Ao amante o cálice envenenado Ao amado o desencontro na estação das flores Ao pai, a cruz devolvida por Sedex

Como as plantas Criemos raízes Na nossa casinha Façamos a nossa própria comida Somos artífices Não precisamos trabalhar pra ninguém Só para nós Vendendo Comprando Plantando Fazendo Limpando Lavando Só para nós Trabalhando Capoeirando Cá entre nós Estudando Buscando o Sonho dos nossos avós: O centro da terra

E assim, o Homem se vai, mais uma vez, por entre vossas pernas negando a sua e buscando uma nova mãe

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Entre as pernas fechadas Um caminho se bifurca Dois caminhos se unificam E a vida continua Na encruzilhada aberta. Eita, me perdi!

A linha do rio

Servi-me de você sem sequer tocá-la e nem a mim. sua mente brinca/dança agora numa gaiola de espelhos dentro da minha

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Ciclo natural No instante da morte A mente antecipa o golpe Mas não prevê o seu efeito E ante a fragilidade do corpo Decerto se regozija em livrar-se dele Ei-la então solta como um pássaro Recém-liberto voa para tão longe Que se lhe é impossível Reencontrar o caminho de volta Outra língua, outros meios de Comunicação intangíveis. De nascer ave ou árvore Ou outro corpo ou veículo Preso a um rangido ininteligível Mas tão perto, como quem fala do lado de dentro; Assim, Alimenta a Terra e Dela continua tirando o Seu sustento.

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A PALAVRA NÃO ESPREITADA QUER SER ENGAIOLADA Nem tão sisuda Nem também Só engraçada Ela quer Ser Somente Palavra às vezes muda Semente do nada

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Sadomasoquismo Esse Amor Escaramuça Atropela Engalfinha Engambela Atrofia Esmiúça Esmerila Insinua a dor... Essa dor Insinua Esmerila Esmiuça Atrofia Engambela Engalfinha Atropela Escaramuça o amor... Suo o suor do rosto de todos os homens E sinto dor. Aspiro o desejo contido no centro do mundo E perco a vida. Choro o pranto de asselvajadas criaturas E sinto medo Espero o tempo parar de bater na parede E me desespero Quero que a vida não ruja pra mim E me deleito Trabalho mais fundo mais perto do fim E me desgosto Do jeito que vim poderei um dia partir E me consolo. 164 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos Poeminflamado

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Por quê a pressa? Pra quê tanta pressa? Ei vem cá me dá teu abraço E toma um beijo meu Eu te afago tu me afagas E assim abalamos a fé nos deuses E isto é mover montanhas Fazer acordar um deus Acordemo-lo e eu lhe perguntarei: Ei Senhor onde dormias tu Que não vedes a quantas vai este mundo Ora, ora, ora todo mundo aqui está fadado a ficar engravatado dentro de um ônibus lotado - Às 7hs da manhã Sonhei que estávamos passeando no jardim da tua casa Ondas quebravam na margem do lago sem cisnes Edgard repousava na cadeira O que sempre quiseram evitar, explodiu-se em quedas abissais E a cúmplice natureza derramou ao chão mil flores amarelas entorpecentes adstringentes afrodisíacas Dançamos Nadamos 166 O homem que marcha sobre si: poemas inéditos Poeminflamado

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Preso pelo meio Exijo os meus direitos Peço deferimento Bato o pé no juiz Telefono pra esquerda E sou solto pela metade Solto pela metade Voo mas não muito alto Vou mas não muito longe Sou mas não sou inteiro Falo mas nem eu escuto: Continuo preso pelo meio

A comida que fiz Pra mim com tanto amor Agora a mesa me sabe Sem gosto E quanto mais insípida Mais como devagar Devagar, devagar. É como se buscasse No fundo poço da obscura Memória algo que perdi E não identifico Mastigo, mastigo, E mastigar me dá um grande Prazer. É como um prenúncio O terceiro toque, um resgate O som de roldanas girando A antevisão de cortinas se abrindo Um piscar de luzes Alta baixa baixa baixa A cena vai começar.

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Danço a dança que a Morte me ensina para que não me machuque a dureza da vida!

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Em caso de dúvidas! Perguntar a uma criança: Você sabe onde mora França?

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PARA ALÉM DO POEMINFLAMADO Falar de França é difícil, e tem que ser fácil. Difícil porque até com este livro é impossível dizer tudo – mesmo trazendo a compilação mais completa possível de seus poemas, além de depoimentos e outras informações sobre sua obra. Imagine então fazer isso em um posfácio. E tem que ser fácil porque para dizer dele é preciso falar e ouvir e ver – aproximar a escrita da voz e deixar rolar, alimentar o que a memória guarda com admiração e afeto, e observar o mundo a partir de seu ponto de vista – para então, compartilhar. Falar de França é antes de mais nada falar de um multiartista, de um guerreiro terno e autodidata cujo trabalho teve repercussão em diferentes meios e muitas vidas. É falar de sua poesia enquanto plena e fisicamente viva. De sua maneira de recitar, da originalidade de seu estilo de performance poética e da maneira com que enxergava e traduzia suas crenças em versos, divertindo(-se) e emancipando. E da ressurgência da poesia apresentada, nas últimas décadas. É falar da força da voz e do corpo no atual panorama cultural não só de Recife, mas de São Paulo, do Rio, de Salvador – e de Buenos Aires, de Nova Iorque, de Paris. Falar de uma potência ancestral desreprimida a partir do século passado, a Corpoesia praticada e presente em todas as sociedades humanas, em diferentes funções e materializações. Que por conta das novas tecnologias, e do esforço e prazer de muita gente, evoluiu a partir dos anos 50, utilizando suportes ancestrais como o blues, o repente, os sermões, as leituras. Com Allen Ginsberg, Last Poets, Chacal e a Nuvem Cigana; até a Slam Poetry, e a cena atual de Recife, com vários grupos de recitadores e artistas como Miró da Muribeca, Lara, Cida Pedrosa, Valmir Jordão, Fernando Chile, Malungo e tantos outros, parceiros de fé no ofício. Falar de França é falar da reconformação que a crença na performance poética faz com o sistema literário, com suas redes que agem de maneira alternativa e interligada à circulação mais convencional de livros. Aproveitando os grandes eventos para se lançar, por exemplo, mas tendo as suas próprias estruturas, espaços para recitação e circulação de poesia como foi o seu Eu, Poeta Errante. E da multidão de recitais que se multiplicam por todos os lugares. Dos Open Mics das maiores cidades americanas, aos torneios de poesia europeus. Do CEP 20000 ao Cooperifa e ao Quartas Literárias. 176 Posfácio Poeminflamado

É falar da força de suas publicações, artesanato editorial independente, nascidas do encontro com Sil, artista gráfica talentosíssima, amor que gerou a Mão-de-Veludo. E das várias editoras independentes na guerrilha cultural do dia a dia, filhas da caligrafia e do manuscrito, do xérox e depois afilhadas do computador. Nascidas de milhares de ações apenas entre amigos, de tantos ambientes culturais espalhados pelo Ocidente. Criando e publicando através do básico obras rudimentares e primorosas. E é ainda falar do TAO – o Teatro dos Amadores de Olinda, grupo por ele fundado, e falar da montagem do A Cor da Exclusão. Do dramaturgo formado em Cênicas na UFPE, com grau colado após seu falecimento, em homenagem e reconhecimento à conclusão do aprendizado na Universidade e nos palcos de rua. Mas falar de França, além do multiartista, é principalmente dizer da sua negritude combativa e impassível. Do mundo de hoje, onde ainda se vê que a escravidão não acabou, que seus efeitos continuam – e da luta cada vez maior e mais ativa por real igualdade espalhada pelo Planeta. É falar por isso da Capoeira, do Candomblé, dos Afoxés. De seus anos de estudo e luta, de sua pesquisa sobre Solano Trindade. É falar de sua ética de desapego tranquilo e consciente perante a vida. E de tanta gente que de tantas maneiras diferentes vive sem seguir os padrões que a sociedade de consumo procura lhes obrigar. E falar, finalmente, de sua presença viva na memória de tantos admiradores. Gente que se entusiasmou por poesia e por viver poesia corporalmente através dele, e que continua seu legado de tantas formas, criando e cultivando as artes que ele escolheu e misturou. Centelha de luz plantada em peitos e cabeças, brotando e gerando a partir das sementes que o mestre continua oferecendo... ...e que agora germina esse livro, o site e as apresentações de Poeminflamado. Na esperança, na fé e na certeza que sua multicolorida ArteVida continua. Continua falando, ensinando, divertindo, conscientizando. E continuará, multiplicada em mais e mais mentes e corações. Axé, França! André Telles do Rosário, amigo e admirador. Mestre em Letras - Teoria Literária, pela Universidade Federal de Pernambuco 177


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A HERANÇA DO POETA FRANÇA Um belo dia ouvi um velho dizer: – Quem sai de sua cidade cedo, jovem, pequeno, menino, quem não vive nela a turbulência da adolescência, nunca poderá captar a alma de sua cidade como um verdadeiro cidadão. Se voltar para sua cidade, voltará já uma estátua. Seu destino: ficar embutido numa praça qualquer, a ver mil sóis nascerem e se porem. Eternamente presente, jamais um participante. Levantei a bandeira da indignação e perguntei: – Mas meu senhor, então me diga uma coisa: Como é que se alimenta uma árvore? Uma planta qualquer? Não é pelas suas raízes? Qualquer ser tem veias! Vínculos que lhe mantêm vivos! – Pense! Disse ele, seus olhos arregalados. – Pense numa árvore que cresce com o nariz para cima. Ela só olha para o sol que a esquenta e a chuva que a refresca e se esquece completamente de alimentar suas raízes. Enquanto isso suas raízes vão enfraquecendo, vão secando, e, um belo dia, elas morrerão. Por mais impressionante que seja essa árvore, ela vai cair! Neste ponto já estava bastante assustada, mas o maldito continuou: – E tem mais!, disse ele, subitamente curvando seu corpo para a frente, e se aproximando da minha pessoa com uma lentidão assustadora. – Ela vai cair sem nem saber se era mangueira ou pinheiro! Na verdade, este velho não existe, mas ele me ensinou uma coisa muito importante: se eu não quisesse voltar uma estátua, precisava procurar minhas raízes. Saber se eu dava frutos, ou somente sombra. E teria que encarar certas coisas. Primeiro: França se foi. Embora às vezes ainda pareça uma coisa fictícia. Parece um Elvis. Até agora há quem negue que foi embora. Percorro as mesmas ruas que percorri com ele, desta vez sozinha. Às vezes prendia o ar ao dobrar uma esquina, numa mistura de medo e vontade de reencontrá-lo. Medo, porque o susto seria tão grande que eu mesma bateria as botas. Vontade porque a saudade simplesmente é imensa. Mas desde 2007 nunca mais aconteceu e nunca mais acontecerá. A coisa é, portanto, um fato. Ao andar com ele pelas ruas de Olinda sentia um orgulho imenso e só agora sei de quê. Em retrospectiva, parece que só o via em 2D. Paradoxalmente, agora que só restam seus escritos, sua trilha de pensamento num pedaço de papel, sua voz num DVD - só agora que seu ser não é mais, ganhou outra dimensão. 178 Posfácio Poeminflamado

Porém, isto não é nenhum lamento, e isto me leva ao segundo ponto: ele se foi, e deixou um vácuo absoluto. Mas este vácuo não é um mero vazio. É um espaço que pode ser preenchido novamente. Vivia educando, plantando sementes. E talvez era necessário que ele fosse, que ele desse lugar a novos seres, a novas árvores, se quiser. Sua herança é essa. É como ele. Não se mede em dinheiro, nunca estará sujeita às malícias da política e às flutuações do mercado. Não se pesa em ouro. E, generoso como era, não deixou isso tudo só para seus filhos. Compartiu com seus amigos, e, de fato, todos que cruzaram seu caminho. Um grande amigo sempre diz: Compartir es vivir. França continuará vivendo através do que compartiu conosco. Através das suas histórias, das nossas memórias, e através de sua obra. Chegará a conviver com nossos filhos e os filhos deles. Extrapolou as fronteiras da matéria. Expandiu as fronteiras do Brasil. E o melhor de tudo isso, é que uma semente não precisa cair no mesmo solo para gerar outro ser. Basta que caia em solo fértil.

HISTÓRIA DA FRANCIDADE QUANTO MAIS SEI, MAIS SINTO ORGULHO Carolina Maciel, de França. [Fã, filha, tradutora e educadora]

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MEMÓRIA DO TEATRO DOS AMADORES DE OLINDA - TAO Em um lugar de Pernambuco, não há muito tempo, vivia um homem de sorriso largo, coração grande, palavra poderosa, teatro puro e estremecedora poesia. Quem conheceu França leva sua semente, quem o viu atuar sua magia. Feiticeiro de palavras e pessoas, duende da poesia, cavalheiro do teatro. Com a elegância substancial de seus gestos, como uma ginga rasteira, desenhava espirais alcançando a união do círculo: vida-morte, Horácio-Xangô, sertão-mar. Autodidata de sua sabedoria (embora graduado em Artes Cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco), educador com um magnetismo natural, estandarte da tradição oral, herdeiro dos griots africanos com escritura lapidada: herança e aquisição. Expandiu a poesia como um big bang em Olinda com seus recitais semanais “Eu, Poeta Errante” e suas apresentações teatrais. Encaminhou-nos a fundar o TAO - Teatro dos Amadores de Olinda, para fazer do teatro poesia; despertar a consciência do oprimido continuando a prática de Boal. Os integrantes eram poetas, estudantes de teatro, taxistas, advogados, domésticas, comissários de bordo e até atores. O processo criado nos ensaios, ao desentorpecer o corpo alienado pelas tarefas quotidianas, dava-nos armas para levar ao povo a força do teatro e da poesia. Emissores e receptores se misturavam, qualquer pessoa pode ser um ator, compartilhar o poder da palavra, levar o teatro às ruas para que todos o sentissem como seu. Representar Solano Trindade ou A Cor da Exclusão, na praça do morro, nas comunidades, nas escolas, nas universidades e inclusive nos teatros, transportar o palco fazia-se leve ao unir a festa e a provocação do pensar. Talvez este seja seu maior objetivo e legado, saber que dentro de nós existe um poeta, um sonhador, um fazedor, um pescador de palavras, um rei em seu mundo, um sustentador de dignidade, um mestre em ensinar, um homem com barba, um ser especial. Juan Ramón Martinez e Laine Amaral são integrantes do TAO. 180 Depoimentos Poeminflamado

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Memória MÃO-DE-VELUDO Escrita por Sil, em novembro de 2010*

Acho que era março, 1998, subi o morro da Barreira, Olinda, onde França morava, junto com Wagner (Porto). Tínhamos combinado de conversar sobre um livro que ele queria fazer, todo manuscrito. Wagner fizera o contato, eu fazia livros, encadernava. Aprendi a encadernar com um colega de faculdade, o Eduardo (Rosa) e viciei; na época sempre carregava cadernos de viagem feitos por mim pra onde quer que eu fosse, eles faziam sucesso entre meus amigos, muita gente queria aprender a fazer. Desenvolvi um jeito particular de encadernar, sem usar quase nenhum material específico de encadernação (meus melhores “amigos” nessa arte eram um estilete e uma agulha) e, reaproveitando todo o material que tivesse a disposição, fazia o máximo com o mínimo. Eu usava todo tipo de lixo que pudesse ser incorporado aos meus cadernos: embalagens, roupas velhas, papéis, cartas de baralho, anúncios, cartazes etc. França me mostrou os poemas, eu mostrei meus cadernos. Nascia então uma parceria amorosa, um encontro cheio de poesia e afeto que produziria cartões, agendas, cadernos e livros únicos, feitos de quase nada e repletos de quase tudo o que ia em nossas veias e corações. Comecei o projeto gráfico do livro A COR DA EXCLUSÃO a partir desse primeiro encontro: seleção dos poemas, ilustrações, tipo de papel, encadernação. Mas a urgência da vida exigia pagamento de contas, compras de mantimentos, eu não tinha onde morar e França me ofereceu sua casa, um cômodo com cozinha e banheiro. Tínhamos que sustentá-lo e sustentar-nos. Na época, França fazia recitais em bares de Olinda. Ele foi convidado a se apresentar no teatro da FAFIRE (em maio de 1998), como parte de um Seminário com o tema “O imaginário da Exclusão” e me propôs fazer alguns cartões com poemas para levar lá e vender. Procurei pela casa materiais que pudessem ser usados. Papel pardo de embrulho, palha 182 Depoimentos Poeminflamado

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da costa, um papel cartão preto, restos de colares, flores secas, retalhos, pedras, e fiz uns pequenos quadros com molduras, onde estavam inscritos os poemas (1). França adorou, achou que aquilo era um meio de divulgar os textos por escrito, uma forma de arranjar dinheiro, algo que ficava depois que os poemas eram ditos, uma lembrança, um eco. Precisava de uma marca, uma identidade, um nome: MÃO-DE-VELUDO, o que é? O que significa? Um tapa sem mão, um desafio com luva de pelica, uma carícia que é uma porrada, um afago nem um pouco manso. Esperteza, clareza, delicadeza... Tudo junto e ambíguo. Realmente foi um sucesso, como ele previra: num instante se esgotavam os cartões e as pessoas procuravam mais, queriam, desejavam. O segundo produto que fiz foram oito livrinhos a partir de umas pastas de elástico que França tinha: amarela, vermelha, verde e preta. Cortei o miolo retangular, dobrei ao meio, e tinha ali as oito capas; no miolo usei um papel manteiga velho que era sobra de um escritório de arquitetura e do qual eu tinha um monte de folhas (o mesmo de A COR DA EXCLUSÃO). Tínhamos então oito poemas pequenos, um desenho de uma mandala em aquarela dentro e na capa outra mandala vazada. Misturei as cores das pastas (o recorte de uma cor eu incorporava nas outras de maneira que todas as oito capas tivessem as quatro cores africanas)(2). Com as sobras das capas fiz oito molduras para quadrinhos com poemas grandes, vendemos tudo. A partir daí, a coisa começou a ficar mais séria e mais profissional. Comprei saquinhos plásticos para embalar os cartões e cartolina para fazê-los; mandei fazer um carimbo da MÃO-DE-VELUDO com o símbolo da pena (que é escrita e leveza...); os envelopes muitas vezes eram de folhas de revista, embalagens de café, ou comprados. Os poemas eram escritos sempre de maneira diferente e ilustrados também de forma diferente. 183


3 Eu fazia séries, que continham uma linguagem comum, uma ilustrada com recortes de revista, outra com pingentes, outra com manchas coloridas...(3) O projeto de A COR DA EXCLUSÃO ganhou corpo: Isa do Amparo doou uns cartazes de uma expo que ela tinha feito na década de 80 para as ilustrações; um tecido bonito que França tinha cobriria a capa que seria de papelão de caixa. E assim quase não gastaríamos em material. O lançamento foi no dia 20 de novembro (1998) no Grupo de Capoeira Angola Mãe (de mestre Sapo), com uma apresentação de teatro e um sorteio do livro número 1, que foi vencido por Eunápio, poeta que estava festejando seu aniversário justamente naquele dia(4). Na data tí-nhamos três livros somente e todos foram vendidos. Depois, começamos a produzi-los por encomenda, ao todo imagino que tenham sido feito uns cem livros. A violência na Barreira estava aumentando, e com o crescimento da MÃO-DE-VELUDO resolvemos nos mudar (para perto do farol de Olinda, no Amaro Branco) e criar um ateliê, onde várias pessoas trabalharam, aprenderam a arte de encadernar e trocaram experiências. A casa estava sempre cheia, tínhamos muitos amigos/colaboradores: Chloë, Fernanda, Bianca, Ana, Felipe, Mariano, o pessoal da capoeira... Fomos nos profissionalizando, aumentando a produção de cartões, quadros e cadernos. Fizemos uma seleção de poemas médios e pequenos para serem usados em cartões, que tinham um tamanho padrão de 10cm X 15cm aproximadamente, e que sempre se repetiam; alguns tinham muita saída e eram mais produzidos que outros. Tinha também uma seleção de poemas grandes para cartões grandes ou quadros, mas que eram menos vendáveis. Fizemos também um expositor, com um antigo cobertor pintado e pregadores (existem três deles). Os poemas eram vendidos em recitais, feiras, praças, eventos musicais, festas, etc. Havia também em Olinda uma galeria (Frans Post) 184 Depoimentos Poeminflamado

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onde se faziam recitais. Os donos gostavam muito do meu trabalho, convidaram-nos para expor os poemas, fiz uns quadros pequenos usando coisas naturais (galhos, conchas, flores secas, etc.) e caixas de papelão. Recebíamos também encomendas de livros únicos, feitos à mão. Tudo era muito intenso, existia um movimento na cidade, vários grupos criando, tinha os Molusco-lama, o Boizinho Alinhado, os Bagulhadores do Mió, a Capoeira Angola Mãe e tinha a MÃO-DE-VELUDO. Em novembro de 1999, um ano depois de lançar A COR DA EXCLUSÃO, descobri que estava grávida de Pedra (de dois meses...), que é, sem dúvida, o maior fruto desta parceria. A gravidez foi um momento especial e criativo para mim, de autodescoberta e de crescimento, uma nova etapa da vida. A AGENDA DA VIDA foi desenvolvida e criada junto com Pedra, é uma homenagem e um presente a esse ser que estava por vir, feita por causa dele e para ele e por isso tem esse nome. Eram as nossas vidas se misturando, expondo-se e dando frutos... Abrindo espaço para que a vida dos outros fizesse parte também da MÃO-DE-VELUDO, já que a agenda é completada por seu dono e cada vida é única. As agendas também marcam o início do uso do xérox pela editora. A primeira agenda (de 2000) foi produzida com a ajuda de Rosa (Melo) que arrumou um lugar pra fazer as cópias xérox; tentei colocar nela o maior número de poemas possível, já que o destino da AGENDA DA VIDA naquele momento era incerto... Ao todo foram dez edições (quem diria!) de 2000 a 2009. As duas primeiras foram feitas todas com xérox, as capas eram de papel de seda e colagens sobre cartão. Todas as capas eram exclusivas, cada agenda era única. A encadernação era com espiral. Devido à falta de recursos e a uma independência desejada das copiadoras, a agenda 2002 foi toda gerada em casa: bolamos os carimbos para os dias e meses, fizemos os poemas e ilustrações em telas de silk e a encadernação passou a ser com três furos e ganchos de cortina, e a capa era de papelão grosso forrado com tecido. As agendas seguintes são uma mistura do que deu certo nessas experiências anteriores: o texto e as ilustrações são de xérox, o miolo de carimbo, a capa de papelão com tecido. (5) Nessa época também editei um livro meu de poemas antigos, o IGUAL. Eram pequenos poemas, quase haikais, que eu escrevi na déca185


6 da de 80 e repaginei com desenhos para fazer o livro todo xerocado, do tamanho da palma da mão. Fazíamos exposições no ateliê, com recitais e shows, os EXPOEMAS. Também em 2000 França criou o movimento de recitais EU, POETA ERRANTE, que teve início na casa das Anas (Escurra e Schuartz), ali na rua de Pai Edu em Olinda: cada 5ª feira numa casa diferente da cidade, à meia-noite em ponto, começava o recital; fiz o logo e os cartazes, com o pé de Pedra impresso um em cada direção para marcar a errância do poeta. Acho que as pegadas do símbolo têm a ver com o começar a andar com os próprios pés, como sempre acontecia nesses recitais onde tantos poetas começaram a dizer seus primeiros poemas e editar seu primeiro livro, onde tantas pessoas se acharam, descobriram-se.(6) Nós também atingíamos a maturidade, e publicávamos o CAFUNÉ (Agosto de 2003). Em termos editoriais e de projeto gráfico considero o CAFUNÉ o nosso produto mais bem acabado, onde tudo o que aprendemos nessa caminhada se manifesta. É um livro que, a meu ver, realiza todos os preceitos da MÃO-DE-VELUDO, atinge todos os nossos objetivos. É artesanal: impresso em xérox, papel reciclado, capas de papelão ondulado sempre diferentes, encadernado à mão; é barato; é produzido em quantidade; é alternativo ao grande mercado; nós temos controle dos meios de produção (não temos máquinas de xérox, mas temos amigos que têm). A ideia da MÃO-DE-VELUDO é: você quer? Então faça você mesmo! Nós fizemos, e inspiramos muitos a fazer também! Provamos que sonhos podem se realizar, que ideais podem ter forma concreta, e que podemos viver, existir a partir daquilo que acreditamos. Nós vivíamos MÃO-DE-VELUDO, e desafiávamos o estabelecido no nosso dia a dia: SIM, NÓS PODEMOS! E muitos frutos foram gerados a partir daí. Sil é Silvana Beraldo Massera. Artista plástica.

186 Depoimentos Poeminflamado

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Feito à mão, o perfumado e multicolorido livro A Cor da Exclusão foi lançado na cidade de Olinda, Pernambuco, a 20 de novembro de 1998, em pleno Dia Nacional da Consciência Negra. Com 23 poemas de França e arte de Sil, o produto da Mão-de-Veludo Edições Artesanais circulou pelo Brasil e pelo mundo através de aproximadamente 100 exemplares que, pela característica de terem sido confeccionados um a um, através de métodos tradicionais de produção (manuscritos, encadernados artesanalmente, ilustrados com colagens, raízes, ervas e papéis reciclados) sempre diferiam entre si. O diálogo da poesia de França com a arte de Sil conferia movimento aos poemas, uma vez que a artista gráfica costumava interferir na disposição visual dos versos de acordo com suas ilustrações. Aqui – assim como no capítulo subsequente, referente ao livro Cafuné – tivemos o cuidado de manter esse conceito visual do movimento, porém adaptando-o à nova realidade editorial e respeitando as formas originais dos poemas, encontradas nos manuscritos do poeta. A não padronização da utilização de maiúsculas no início dos versos remete também a essa característica do movimento e da oralização da escrita, que achamos por bem manter. Vale ressaltar que o livro tem sua origem em uma performance homônima estreada pelo autor no dia 20 de novembro de 1996. Ela foi apresentada semanalmente no sótão do Bar Almanaque, situado no Sítio Histórico de Olinda (mais precisamente no Varadouro), até o ano seguinte. A partir de imagens dessas apresentações – feitas pelo videasta Jeferson Luiz e inseridas no DVD anexo a esta edição – pode-se constatar que o autor operou cuidadosas seleção e revisão dos poemas utilizados nas performances (até então circulados apenas oralmente) para, então, adaptá-los e incluí-los à publicação escrita. No mais, o livro em comento traz como prólogo poemas de três intercessores de França – o inglês Kemble Williams, pai de seu amigo Peter Williams; o amigo e parceiro em literatura e performances Angelo Bueno; e Erickson Luna, grande referência da poesia urbana de Recife e símbolo do que se costumou convencionar/rotular na cidade como poesia marginal. A poesia de Luna também se encontra em seu livro Do moço e do bêbado, editado em Recife no ano de 2004. Portanto, a presença dos três poemas em comento nos revela uma face importante da ideologia do trabalho de França: a inserção de outras vozes em sua obra, enriquecendo e materializando a teia intertextual de comunicação entre os atores do sistema literário em que o poeta se inclui. Assim, a interpretação da função específica de cada um desses poemas n´A Cor da Exclusão faz-se de extrema importância para a compreensão do todo do livro. Seguem os três poemas citados. I

188 Notas Poeminflamado

IN Consumido Preservam poesia em geladeiras-bibliotecas. servem-na seca nas escolas ano após ano Ninguém poderia consumi-la toda, nem se gastasse a vida inteira; estamos ainda digerindo colheitas do século dezesseis. Quem me dera que comêssemos poesia como tortas, Lambêssemos até o último naco deixando as páginas em branco. Assim eles implorariam que poetas enchessem os livros, poetas seriam populares, como cozinheiros, e quando se sentassem famintos numa biblioteca somente poesia feita na hora seria servida (Kemble Williams / Tradução: Peter Williams)

Brechava A fresta A festa que havia todos sorriam todos bailavam todos dançavam. Eu? Ora, Eu brechava (Angelo Bueno) 189


Agora A poesia atropelou meu verso saiu da linha e traça a vida por um triz

(Erickson Luna)

E, em consonância com essa rede intertextual e polifônica tecida pelo autor, merece destaque a presença do poema de autoria de Eduardo Alves da Costa (“No Caminho, com Maiakóvski”) na introdução da performance de 1996. Abaixo segue a transcrição – feita a partir das imagens do videasta Jeferson Luiz – de trecho do poema de Costa utilizado como uma apresentação à performance d´A Cor da Exclusão: “[...] Na primeira noite / Eles se aproximam / E colhem uma flor de nosso jardim/ E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem; / Pisam nas flores, matam nosso cão. / E não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a lua e,/ conhecendo o nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E por que não dissemos nada, / já não podemos dizer nada. [...]” (sic) Este poema foi também publicado em seu segundo livro, Cafuné, de 2003. Ver página 53. II

Este poema também circulou através da Revista Palmares (Revista Palmares. Cultura Afro-brasileira. Ano I, nº I – agosto, 2005. Fundação Cultural Palmares, p.51) III

Estão inclusas no DVD que acompanha este livro imagens cedidas pela jornalista Bárbara Cristina. Elas fazem parte de entrevista do poeta para o filme Onde Estará a Norma? , sobre o poeta Miró. Nessa ocasião, França recita o poema conhecido como “Robocop” com algumas alterações em relação à versão escrita. Estas se resumem aos 6º, 11º e 20º versos do poema, que recebe como adendo dois novos versos ao final (25º e 26º). Os versos recriados ao sabor do improviso e da oralidade seguem, respectivamente: “Abrindo, assim, a janela”; “perante nossos filhos e nossos irmãos”; “que estoura”; “Cotidianamente / e você finge que não vê”. IV

190 Notas Poeminflamado

Conhecido como “Isadora”, este poema é uma marca registrada do poeta e de seus recitais. Ultrapassou as fronteiras das linguagens e, num movimento bastante espontâneo, virou música: um afoxé. E, por isso, além de recitada, foi bastante cantada. Em especial, quando havia tambores ou qualquer instrumento musical no recital, tornava-se um dos pontos altos do Eu, Poeta Errante. V

No DVD anexo a esta publicação há ainda imagens de França, feitas pelo videasta Jeferson Luiz, recitando versão deste poema. Trata-se da primeira performance d´A Cor da Exclusão, ocorrida em Olinda, a 20 de novembro de 1996, Dia Nacional da Consciência Negra. A Cor da Exclusão foi obra de arte que o poeta desdobrou e ressignificou em diversas linguagens: performance, livro e peça teatral. Vale ressaltar que, em análise comparativa com a sua posterior versão escrita, a versão falada de 1996 apresenta inversões de estrofes. VI

Os caminhos traçados por este poema nos indicam as alterações que a possibilidade de reedição em outras publicações e o tom fluido (orquestrado pelo improviso e pelos contextos da realização oral) lhe conferiram. Assim, em 2002, o referido poema foi reeditado no Marginal Recife: coletânea poética 1, onde ainda estavam inclusos outros poetas-referência no universo da poesia oral urbana da Grande Recife, tais como Erickson Luna, Cida Pedrosa, Francisco Espinhara e Miró. Após análise comparativa entre as versões (A Cor da Exclusão e Marginal Recife) do poema em questão, percebe-se que a versão da coletânea traz algumas modificações, principalmente localizadas na última estrofe, conforme segue: VII

“(...)Teatral. Teatro ateu e platéia plebéia / Povo politicamente falando: Povo! / Aleluia! Aleluia! Barrabás! BARRABÁS!!! / PMDB-PEFELÊ-PTT, prá que ter? / Enquanto o voto obrigatório / detona o país há quem pinte / Pontes.” (Marginal Recife - Coletânea Poética I, 2002, p. 31) Já em material audiovisual capturado pelo videasta Fernando Peres (julho de 2007 / Festival de Inverno de Garanhuns – PE) tem-se registradas a imagem e a voz do poeta em ação, “a dizer” o referido poema no recital itinerante de poesia performática Chá das Cinco – realizado junto aos poetas Miró, Valmir Jordão, Malungo e Trelles.

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Em declamação com claras indicações de improviso, neste vídeo (presente no DVD) o poeta faz-nos localizar ainda mais alterações em relação à primeira publicação escrita do poema. Percebe-se que o poeta movimenta e contextualiza sua obra ao suprimir trechos de estrofes, ao inserir novos versos, além de realizar marcações linguísticas típicas da oralidade, conforme transcrição abaixo: “Vamos continuar comendo porcarias / Fodendo à maneira das Marias profissionais / Bebendo coca-cola, excreções e coisa e tais / Fazendo mais e mais Josés que nos puxarão os pés / antes de aterrisarmos em poderosos tapetes voadores / Hein!? / TNT- BUM, BHT-BUM, BNH-BUM FHC-BUM, LULALÁ-BUM / ML, IML de antecadáveres / UHS, VHS e nenhum sinal dela / aqui, entre as minhas pernas / SOS pedindo socorro em silêncio / Sepulcral / Teatral (EU SOU TEATRAL): teatro ateu, plateia plebeia / Aleluia! Aleluia, Senhor! Barrabás! Barrabás!! / Povo politicamente falando: POVO! / PMDB, Pefelê – pra quê ter? / Enquanto o voto obrigatório detona o país / Há quem pinte pontes” Poema incluso na coletânea Marginal Recife I. Também aqui se percebem algumas alterações, sendo sua maior a supressão dos sexto e sétimo versos originais. No DVD anexo a esta publicação há ainda imagens de França, feitas pelo videasta Jeferson Luiz, recitando versão do poema em questão. Trata-se da já referida performance d´A Cor da Exclusão datada de 1996. Abaixo, segue transcrição da referida versão do poema, caracterizada por marcações linguísticas típicas da oralidade e por apresentar-se ainda sem o tratamento ou revisão conferidos pelo poeta para sua versão escrita: VIII

“Nem bem começou a grande crise / E a classe média abarrotou os ônibus / Com sua boca cheirando a cream-cracker com café / E deles – dos ônibus – mudou-se o itinerário / Para acomodar sua bunda / digamos flácida / Ou inflada de tédio e de ócio / Neles entrava madame : / – Sobe, motô, para aê. Sobe, motô! / E descia simples passageira. / E sentia náuseas com o cheiro forte da zona norte / A ladeira tomada de assalto era subida com sua presença / Que pedia a benção à preta fala, / Da boca morta, da língua morta, / A lhe dizer, cheia de vida: / – Óa, menina, cuidado senão tu vai morrer, visse?” 192 Notas Poeminflamado

Poema incluso na já citada coletânea. Esta traz uma única variação em relação à versão escrita d´A Cor da Exclusão: o segundo verso da terceira estrofe aparece sob a seguinte forma: “(...) Brasil do ano dois mil” (Marginal Recife – Coletânea Poética I, 2002, p. 33) IX

Também incluso no Marginal Recife – Coletânea 1. Nesta, a versão do poema em questão, em comparação com o livro A Cor da Exclusão, traz algumas pequenas variações, conforme seguem: X

Vens tão mansa / Vens tão bela / tão bela / Que fechas as portas / Atrás de ti / Vens... vem... vem... / O gato brilha / A porta geme / A tua mão me descostura / Ao sabor do vento / E agora te vejo precisamente: / Vais? / Vens ou vais? / Vem e vai! / Ou sou eu que / Não sei se sou tobogã / Ou gangorra? / Masmorra / Tronco / Calabouço / Porão do teu âmago / Me vejo tão dentro de ti / Que cacimba te mataria a sede? / Se não fosse pelo teu / Sabor acidoalcalino / Abacateabacaxi / Eu não saberia / Se tobogã ou gangorra / Te atrairia hoje! (Marginal Recife – Coletânea Poética I, 2002, p.34) No DVD que compõe esta publicação há uma versão “mais oral” deste poema. Trata-se da já mencionada primeira performance d´A Cor da Exclusão, filmada pelo videasta Jeferson Luiz em 1996. Ela apresenta algumas pequenas alterações em relação à versão escrita. Abaixo, segue transcrição: XI

“Há um buraco no fundo do barco chamado Brasil / Que já não mais navega à deriva / Mas agora tem rumo certo / Vai fundo no fundo do fundo / Há outro buraco insistente / E eu nem quero falar / Eu nem quero falar no meu dente / Bem no centro de todo humano / E outros buracos, e tantos buracos / Na nossa casa, nas ruas, nas praças / Na cidade inteira / Buracos / E tudo o que queremos, tudo o que buscamos / Está num grande buraco, não tão grande / Eu também tenho cavidades vulcânicas / No meu peito / Implodindo o meu ego / Sou tão curvo / No entanto / Não rolo, não roubo, nem cedo tão cedo / Bisavô também dizia: / - Morreu dotô fulano / Agora ele só tem / O buraco e a catinga” Já nas imagens da performance realizada pelo artista no lançamento do livro Quarto de Ofício, nos é apresentada uma alteração marcante no 8º verso: “E outros e outros buracos nas BRs, nos próprios buracos” 193


Este poema está presente em outras publicações. Caracteristicamente, em todas elas encontramos pequenas variações. Em Cafuné, segundo livro de poemas do autor, há duas pequenas alterações (em relação à versão d´A Cor da Exclusão, primeira publicação do poema): “punho” no lugar de “punhos”, além do acréscimo de uma vírgula no décimo verso, como se vê na página 64. Já em Luz do Litoral, livro do fotógrafo Mateus Sá – com poemas de França – a alteração se restringe à adição da vírgula no décimo verso (ver página 128). Para além disso, a disposição espacial do poema foi bastante modificada, conferindo um novo frescor à leitura, dinamizando novas interpretações; e mais: o diálogo do poema com a fotografia de Mateus Sá (e a realidade ali aprisionada) enriquece ainda mais esse processo de ressignificação, articulando outros lugares no discurso do poeta. XII

Em material audiovisual captado por Fernando Peres, podemos acessar a brincadeira, a reordenação, a recriação, a ressignificação, a provocação orquestradas pelo poeta, em sua própria obra, quando em ação, em performance. Segue, abaixo, transcrição de vídeo presente no DVD, feito em julho de 2007, no já referido festival: XIII

“Agora / o rei e a batalha se oferecem / por vias, atalhos e mares / Agora / a flor e o fruto se oferecem / por osmose, simbiose, frutose. / Absalão, Absalão! / amarra teu cabelo / bem no meio da tua mão / Parabólicos, guarda-chuvas, para-raios / Até quando seremos mercadorias?” Este poema também nos é apresentado oralmente no DVD, na já citada performance de 1996, em imagens feitas por Jeferson Luiz. A versão falada traz notórias diferenças, principalmente no desfecho do poema, em relação à versão de 1998, escrita. Abaixo, segue transcrição da performance: XIV

“Nenhum de nós dois / Tem a ciência do laço / Nem no manejo do ato / Nem no desacato da forca / Mas para morrer de morte certa / Em caso de tentativa / Bastar-nos-ão os nós nas nossas próprias gargantas / Ou então a explosão dos nãos / Mesmo sem haver perguntas / Ou então pode-se apodrecer a dois / Lentamente / Depois de um lauto jantar / A camarão decomposto e vinagre de vinho branco / Tudo isso / Á luz da televisão / E então o tédio entrou / Instalou-se na poltrona / Fez BUM! / Enchendo toda a casa com um cheiro bom / E afastando de nós dois, definitivamente, / Essas ideias de suicídio.” 194 Notas Poeminflamado

Poema bastante difundido oralmente, foi duplamente intitulado pelo autor: ABCdecadente ou ABCDcadente. O caminho traçado pelo poema traduz a força da transmissão oral do conhecimento: muitos espectadores/interlocutores dos recitais sabiam-no de cor sem nunca o terem acessado pela leitura. E, nesse caminhar, o poema foi sofrendo algumas modificações. Nos últimos tempos, o poeta costumava recitá-lo assim como registrado no DVD incluso nesta publicação, em imagens cedidas pela jornalista Bárbara Cristina (em entrevista do poeta para o filme Onde Estará a Norma?, sobre o poeta Miró) e também pelo programa Som da Sopa, realizado e veiculado em Pernambuco pela TV Universitária (direção de Eduardo Homem e apresentação de Roger de Renor) em ocasião do já mencionado Chá das Cinco, em Garanhuns, 2007. Após assisti-los, observa-se que, numa análise comparativa entre o registro escrito e os registros orais do poema, há indicação de alterações vocabulares nos 11º, 17º, 18º e 26º versos. Os registros audiovisuais nos mostram essa variação, que seguem respectivamente: Jesus, Judas, jogam, jantam juntos; Pretos, pobres, pedem pão. Povos põem panos quentes & Pobres pedem pão. Povos, pastores, padres põem panos quentes; Quem quer querelas? Querelas quentinhas, quem quer?; Universidades... Vomitemo-as. Vomitamo-as!!. Há outro registro do poema, este feito por Fernando Peres, e remete ao mesmo ano dos vídeos anteriores. A alteração refere-se ao 11º verso: “Jesus, Judas, jogam, jantam, jejuam juntos” Há ainda dois registros mais antigos. No primeiro, feito por Jeferson Luiz em ocasião da primeira performance d´A Cor da Exclusão, em 1996, o poeta profere a versão mais antiga a que tivemos acesso. Nota-se que a versão que segue foi revista, nela foram operadas muitas substituições vocabulares e, principalmente, adicionados alguns elementos e até versos inteiros. XV

“Arde ávida a acidez / Arranha, bale, bole, berra brutalmente / Corre calado cúmplice cão / Cujos dentes dignos de devoção / Decerto enfrentam espadas e esporas / Enquanto famintos furiosos felinos / Grudam-lhe garras grossas / Hoje hospedam Homeros, Horácios / Imponentes igrejas, idiotas igrejas / Jejuns, jogos, juras, jantam juntos / E loucos lamas lêem livros lúcidos / Mas mestres místicos metem medo / No ninho nascem noivas néscias / E outras ostras ocultam pérolas, porém / Pretos pedem pão. Padres põem panos quentes. / Quentes. Quentes. / Quem quer querelas? Quem, quem? / Rotulam reggaes, rejeitam rocks / Súbito surgem sangrentas sar195


jetas / Transamazonicamente / Tão tristemente. / Universidades... Universidades. / Unhas untam úberes. / Vêm vindo vozes! Vêm vindo vozes! / Xiiii.... Xiiiiiii.... Xiiiiii.... / Xangô? Xangô? Xangô? / Zeza? Zumbi? / Zarpemos! / Zeeeeennnnn...” No segundo vídeo, que remete à festa de lançamento do Quarto de Ofício (1997), encontramos transgressões significantes no 2º e último versos, que seguem transcritos, respectivamente: “ A agonia arranha, bate, berra (bééé!) brutamente; Zen.... Zen... Zaratustra!” XVI

Segue abaixo o prefácio à edição de 2003 do Cafuné:

Prefácio

Para uma capa dura, papelão Para a militância, xérox Paralelo de oito graus atravessando Paradoxos no meridiano trinta e quatro

teus Sá; ou ainda, de maneira especial, com a dinamização visual que as palavras soltas, manuscritas de sua parceira Sil – responsável pela arte das publicações artesanais de França – conferiam ao resultado final dos poemas. Sil produziu várias realizações visuais do poema em questão, seja com intervenção figurativa (desenhos, colagens e afins) ou mesmo com modificações na disposição dos versos. Especificamente para a publicação do fotógrafo Mateus Sá, o poeta França insere um verso (ver página 125) com contorno de título ou preâmbulo ao poema: “Espelho d´água, espelho meu”. A Mão-de-Veludo Edições Artesanais produziu uma extensa quantidade de cartões com os poemas de França. Felizmente, depois deste projeto, há um primeiro registro sistematizado dos poemas veiculados e vendidos em forma de cartão. Está documentado que muitos desses poemas estão n´A Cor da Exclusão, no Cafuné e nas Agendas da Vida. Dessa forma, adotamos como método elencar – dentre o material ao qual tivemos acesso – apenas a seleção dos poemas que não se repetem em outras publicações. XIX

As Agendas da Vida configuraram-se como uma das ações editoriais da editora artesanal Mão-de-Veludo. Tratava-se de agendas não-convencionais, em que poemas de França e ilustrações de Sil eram complementados pelo curso da vida, pelos compromissos e apontamentos de cada comprador/dono da agenda. Grande parte da obra do poeta – dentre poemas já publicados em seus livros e muitos outros inéditos – foi veiculada através delas. As mesmas ofereciam, a cada ano, seleções de poemas e concepções gráficas únicas. Carimbos, xérox e serigrafia já fizeram parte de seus modos de fazer. Alguns poemas podem ser encontrados em várias edições das agendas, muitas vezes com algumas pequenas modificações. Neste capítulo, organizamos os poemas por ordem cronológica de aparição, porém utilizando sempre sua versão mais recente (no caso dos poemas repetidos). As agendas foram editadas no período de 2000 a 2009. XX

A cabeça, a mão, o cafuné De veludo, pedra e paciência A fazer-se literária produção E findar-se recomeço em quatro atos

Eunápio Mário

Como mais uma evidência das pequenas transgressões ou das sutis teatralizações operadas no processo da circulação oral da obra de França, transcrevemos aqui um verso de uma versão oral do poema em questão. Ela traz um pequeno mas revelador marcador linguístico da oralidade. Feita a partir de imagens de Jeferson Luiz, a transcrição (do 3º verso do poema, que segue adiante) remete à apresentação da já comentada performance d´A Cor da Exclusão, de 1996: “ - À nossa vida, querida!” XVII

Este poema estreia na Agenda da Vida de 2000, a primeira feita pela Mão-de-Veludo. Curiosamente, nesta agenda as estrofes do poema apareciam soltas, uma por vez; como se marcando subdivisões na publicação, marcando a passagem/contagem do tempo; como a representação dos pontos altos de uma narrativa. Nessa única ocasião, o poema em questão foi acrescido de uma quinta estrofe, que segue abaixo: XXI

A trajetória deste poema revela as relações de vida, de movimento – até mesmo na palavra escrita, teoricamente menos fluida e/ou modificável que a palavra falada – que a poesia de França trazia em si. Essas relações evidenciam-se quando postas em diálogo com outros elementos: seja com os interlocutores (plateia) dos seus recitais; seja com a fotografia de MaXVIII

196 Notas Poeminflamado

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“De tanto plantar-me à porta, insistente / Me expele um dia no leito de um rio / E o vento me arrasta / qual barco à vela / Às portas dos mares pororoca primeira / Que dentro de mim explode em fogueira” A comparação entre as versões (escrita e orais) deste poema nos oferece um exemplo das sutis transgressões que o poeta operava em sua própria obra: ao sabor dos recitais, das apresentações, do improviso, da memória, da oralidade. Seguem, abaixo, duas transcrições de performances do poeta – presentes no braço audiovisual desta publicação – relativas a versões do poema em comento. A primeira remete ao ano de 1996, em apresentação já mencionada d´A Cor da Exclusão, filmada por Jeferson Luiz, e segue transcrita abaixo:

Segue, abaixo, a referida versão oral transcrita. Percebe-se, por análise comparativa, que a versão da agenda foi pontualmente reformulada. “Mulheres. / Há mulheres surpreendentes / Com ares de inteligentes / E me olham dos seus dentes / Como se eu fosse um demente / Eu lhes digo, entrementes / Ao vê-las, posso lê-las / Ao lê-las, aprendê-las / Apreendê-las / Compreendê-las / Escolhê-las / E comê-las / Como? / Como quando como estrelas.”

XXII

“Quero parar / Esta água salgada / Que cai no meu dente / E entre / E vai desaguar no leito do peito / Deus sabe não cabe / Na alma tão calma / Essa gota de neve / Tão leve, tão neve / Mas que rola, vira bola, mirabola/ Amarga água, amarga ida, amarga vida / A mais garrida, / A mais garrida,/A mais garrida, / Ai, Margarida!” A segunda remete a uma versão falada no ano de 2007, transcrita abaixo tal e qual recitado pelo poeta em Garanhuns, no já mencionado recital Chá das Cinco, em imagens cedidas pelo programa Som da Sopa (TV Universitária):

A primeira edição das Agendas da Vida (2000), assim como foi visto, apresenta-nos alguns poemas que sofreram modificações para entrar em posteriores publicações. Fruto dessa revisão foi também o poema iniciado pelo verso “Cadê o seu cartão?”. Em sua primeira publicação, o sexto verso foi apresentado sob a seguinte forma: “é lícito. é usual”; ademais, o nono verso inexistia. XXV

Em sua primeira aparição, através da Agenda da Vida de 2000, este mesmo poema circulou sob outra forma. Após análise comparativa, ficam evidentes a reforma da disposição dos versos e a supressão recorrente de uma pontuação regular. Nesse caso, esses detalhes configuram uma mudança no ritmo, mas, principalmente, no caráter visual do poema – seara em que, nos poemas de França, a escrita à mão de Sil interferia com livre arbítrio. Segue a primeira versão abaixo: XXVI

Flor de cactus. Perdido no Sertão, / Bebo a sua água, como do seu pão, / ‘te vejo como o fogo do cometa que caiu, / te sinto como o broto de bambu / que escapou da cobiça do chinês / te quero como uma figurinha / que se coleciona dia a dia / Te amo. E não sei dizer como: / Se mãe, se filho, ou simplesmente / pelo teu jeito de rir teu riso / Ainda não conheces a vida / E ai de mim, aprendiz do teu / Jeito de rir. De só ser / De só querer...

“Quero / parar / ess´água / que cai / no meu dente / e entre / e entra / e vai desaguar direito / no leito do meu peito / Deus sabe / não cabe / na m´alma / tão calma / Essa gota / não leve / não breve / não neve / que rola / vira bola / mirabola / me enrola / Amarga água / amarga vida / a mais garrida / Ai, Margarida!” Na primeira edição da Agenda da Vida (2000) este poema apresenta mais um verso, entre os oitavo e nono versos da versão da presente edição. Esta adota a forma de todas as demais publicações do poema em questão, que parecem respeitar a supressão do referido verso, que segue: “Nem de sóis decadentes” XXIII

Há uma versão deste poema no DVD incluso a esta publicação, referente à já citada performance de 1996, filmada por Jeferson Luiz. Nota-se que esse poema não foi incluso no livro A Cor da Exclusão, tendo sido “publicado”, por escrito, somente com o advento das Agendas da Vida. XXIV

198 Notas Poeminflamado

Há duas versões orais desse poema no DVD anexo a esta publicação. A primeira foi registrada por Jeferson Luiz e é referente à já comentada performance de 1996 d´A Cor da Exclusão; a segunda remete ao ano de 1997, quando da performance feita na festa de lançamento do livro Quarto de Ofício. Após análise comparativa das versões orais com a escrita, percebe-se que para retextualizar o poema para o papel, França “enxugou” o mesmo, além de refazer algumas escolhas lexicais e modificar drasticamente o seu final. Seguem, abaixo, as XXVII

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transcrições do material audiovisual. A primeira refere-se à versão de 1996, a segunda à de 1997: “Desarme-me dos meus olhos / Se eles se abaixarem ao seu olhar/ E da minha língua / Se ela não o delatar / E das minhas mãos / Se elas por acaso o adularem / Desarmem-me do meu sexo / Para não enrabar minha filha, seu puto! / Mas devolva-me a minha religião / Devolva-me a minha língua, / Devolva-me a minha cultura, / Devolva-me o meu verão / Que a minha pele queima todo o dia / E agora, e aqui, nenhuma andorinha / Pra remédio.” “Desarme-me dos meus olhos/ Se por acaso eles se abaixarem ao seu olhar/ Livre-me das minhas mãos/ Se algum dia ele(a)s o adularem/ E dos meus pés se não correr no encalço de lhe denunciar/ E da minha religião/ Livre-me porque por ela eu fiz um juramento// Mas devolva-me a minha cultura/ A verdadeira história/ O meu baseado, a minha caneta e o meu papel/ Porque eu preciso registrar a minha história” Importante ressaltar que como preâmbulo à performance de 1997, o poema é introduzido por uma pequena encenação do artista, que forja um “baculejo” policial. Este poema faz referência ao coletivo Molusco Lama, grupo de artistas marcado pelo livre-pensar e pelo livre-fazer, que fez história em Olinda e Recife. Viviam alternativamente em comunidade, com sua produção concentrada na década de 1990. Fernando Peres, Lourival Cuquinha e Grilo foram alguns de seus componentes. O coletivo chegou a efetivar parcerias com França, como as participações em algumas performances d´A Cor da Exclusão, realizadas em 1996/1997. XXVIII

Há outra versão deste poema no livro Luz do Litoral. Percebem-se algumas adequações temáticas. Ver página 131. XXIX

Livro-poema de autoria de Angelo Bueno e colaborações de Mauro, Erickson Luna e França. Os dois últimos também fizeram a apresentação do livro. Este poema foi reiteradamente recitado no Eu, Poeta Errante, além de amplamente conhecido e bem aceito pelo público. Nessas ocasiões, era recitado tanto por França, por Angelo Bueno ou pelos dois. XXX

XXXI

Curiosamente, esta contravenção gramatical permaneceu delibera-

200 Notas Poeminflamado

damente no poema, segundo Angelo Bueno, pelo fato de todo erro contra a Língua Portuguesa constituir, para ele, um acerto contra a colonização. XXXII

Coautoria do poeta França com Silvana Beraldo Massera (Sil).

Este capítulo foi reservado a notórios poemas de França que circularam – e ainda circulam – apenas na oralidade. Trazem em si a dúbia relação da notoriedade oral e do ineditismo na escrita. O critério de seleção utilizado foi o do acesso efetivo ao registro de versões dessas peças – tanto nos manuscritos pessoais do poeta quanto em mídia audiovisual. Vale salientar que, para além dos poucos aqui registrados, ainda existem algumas composições poéticas similares – mas apenas na memória dos que vivenciaram a poesia de França, sem nenhuma concreta documentação ou mesmo relato que sirva de ponto de partida para uma adequada transcrição. XXXIII

Por escrito, este poema constava apenas nos manuscritos pessoais do poeta. Oralmente, porém, já havia circulado desde as primeiras performances d´A Cor da Exclusão. A versão escolhida para integrar esta publicação foi transcrita de imagens feitas por Jeferson Luiz, da já referida performance, datada de 20 de novembro de 1996. XXXIV

O poema em questão circulou apenas oralmente: nos recitais e em outras apresentações. Nunca foi registrado em quaisquer publicações do autor. A versão inclusa neste capítulo é resultado da transcrição de uma performance de França – a partir de imagens contidas no DVD anexo a este livro – quando da festa de lançamento do livro Quarto de Ofício, em 1997. É de comum senso que este poema foi bastante recitado, adaptado ao sabor do improviso, dos contextos de apresentação e, inclusive, foi ponto de partida para performances como a executada no vídeo Farândola, realizado pelo Canal 03, também em 1997. Neste vídeo, que retrata a(s) realidade(s) das ruas de Recife e Olinda, o poeta – que também era ator, encenador, educador e capoeirista – fez o que foi denominado uma “performance da fome”. Transcrevemos aqui o texto da performance, que dá ênfase a alguns versos – inclusive repetindo-os – da versão aqui publicada: XXXV

“- Lá vem ela / Lá vem ela / - Ela quem? / - A fome! // Lá vem ela descendo a Ladeira da Misericórdia / sem misericórdia nenhuma // - Lá vem ela / - Ela quem? // E alimenta outras carências... // A fome vem / E a fome vem / E alimenta outras carências / E a fome vem / E elimina as diferenças / entre seres humanos / e animais // 201


Lá vem a fome / lá vem a fome / Descendo a ladeira da misericórdia /sem misericórdia nenhuma // E a fome vem / E elimina as diferenças / entre seres humanos / e animais // A fome / a fome” Foi também encontrada uma versão deste poema nos manuscritos pessoais do autor, que segue: “Cada vez nossa voz se faz/ mais cadavérica e atroz/ Surge em evidência suja/ sórdida e veloz a fome/ – sem respaldo aparente/ sem limite condizente –/ de circo de água e de pão// – Lá vem ela/ – Ela quem, home?/ – A fome/ – Quem?/ – A Fome!/ / E a fome vem descendo a Ladeira/ da Misericórdia sem misericórdia nenhuma/ Lá vem ela descendo ladeira/ lá vem danada ligeira/ E a fome come e alimenta outras carências/ E a fome come e elimina as diferenças/ entre seres humanos e animais” Mais um poema mínimo ou “poemínimo” do autor. Esta versão foi transcrita de vídeo produzido a partir de performance do artista na ocasião da festa de lançamento do livro Quarto de Ofício, ocorrida em 1997. Inserido na realidade intersemiótica de sua obra, este poema pode ser também visto como uma curta cena teatral: aberta para as interpretações e as realizações operadas pela recepção de cada leitor. XXXVI

Este poema, em especial, é bastante conhecido entre os que frequentaram os recitais nos Quatro Cantos de Olinda (ou “o umbigo do mundo”, como o poeta falava). Trata de sua visão lúcida e de sua crítica sobre a cidade “patrimônio histórico da humanidade”. A versão aqui apresentada remete a um manuscrito pessoal de França, e não corresponde ipsis litteris às versões que ele costumava recitar. Infelizmente, não tivemos acesso a outro registro mais recente (audiovisual, por exemplo) desse poema, de modo que a versão incluída na publicação guarda algumas alterações em relação às suas realizações orais. Realizações orais (no plural) porque, como já foi ressaltado, uma das características de sua poesia e da poesia falada em geral é a da obra aberta, ou seja, da poesia em constante diálogo com o instante e com o contexto em que é recitada. Assim, é sabido que os espetáculos, as performances, os recitais e os poemas de França viravam outros, transformavam-se, ao sabor de cada acontecimento artístico. Desta feita, mesmo se transcrevêssemos aqui uma de suas versões orais, ficaria a ressalva de que esse processo era aberto: sua obra sofria constantemente pequenas mutações.

Não obstante, consta que, como preâmbulo à recitação deste poema, França costumava formalizar uma espécie de rito com a inclusão de música e brincadeiras. Num processo que mirava a inclusão do público, antes de recitar o poema propriamente dito, o poeta costumava entoar uma clássica introdução a diversos frevos da cidade, em referência à música e ao carnaval de Olinda. Após o preâmbulo musical, vinha o mote: “Blém, Blém, Blém / Não é Pará / Não é Belém / Venho aqui anunciar / Que Olinda não vai bem!”. Por fim, o poema-denúncia. E o choque entre as delícias e as dores daquela cidade. Este capítulo traz uma seleção de poemas inéditos do poeta França, ainda desconhecidos do público: tanto no plano da oralidade quanto pelas vias editoriais. A reunião destes poemas foi possível pelo pleno acesso que os pesquisadores tiveram aos manuscritos do autor. Dentre eles, foi encontrado um bilhete do autor à sua então companheira Sil – também parceira nas empreitadas editoriais da Mão-de-Veludo – em que ele sugere a substituição do título de A Cor da Exclusão por O homem que marcha sobre si, sugestão esta que não vingou. Resolvemos, assim, agregar esse título ao capítulo dos inéditos: o homem que marcha, que caminha sobre si é aquele que empreende uma jornada de autoconhecimento, de descoberta de novas identificações, de revelações. Através de si. De sua produção artística. XXXVIII

XXXVII

202 Notas Poeminflamado

Poema de Angelo Bueno cuja circulação oral França multiplicou. Vale salientar que, antes da presente publicação, este poema ainda não havia sido registrado por escrito. Não raro, a autoria do “Pense” foi popularmente atribuída a França. Isto porque a parceria dos amigos França e Bueno era intensa, e tais questões de autoria diluíam-se – até mesmo para o interlocutor da obra. Este poema era uma peça fundamental nos recitais do Eu, Poeta Errante; um verdadeiro jogo teatral – que junto a poemas como Isadora e a famosa brincadeira com o popular mote dos vendedores de bairro (“Dona Maria, Dona Maria, este é o carro da economia! Uma poesia por apenas um real! Traga a vasilha...”) – configuravam-se como artifícios para costurar a dinâmica dos recitais e proporcionar a interação mais estreita do poeta e da poesia com o público presente. Decidimos colocá-lo como abertura deste capítulo – através de um teatral movimento de apresentação – por ele trazer em si essa relação ambígua do ineditismo: ser “de domínio público” (entre os que viveram XXXIX

203


poesia em Recife e Olinda nas décadas de 1990 e 2000), porém sem nunca ter sido publicada por escrito. E, principalmente, pelo costume entre Angelo Bueno, Erickson Luna e França de figurarem nos livros uns dos outros: como os exemplos da pontual ocorrência de poemas de Bueno e Luna no preâmbulo da A Cor da Exclusão e de Luna e França na apresentação do Quarto de Ofício. Neste exemplo fica também evidente o trabalho cotidiano do poeta em maturar, reinterpretar e revisar a sua obra. No DVD incluso a esta edição, temos acesso a uma versão antiga do poema em comento. As imagens remetem ao já bastante mencionado evento performativo d´A Cor da Exclusão, ocorrido em 1996 e registrado em mídia audiovisual por Jeferson Luiz. Após análise comparativa das duas versões, percebe-se na versão escrita um maior apuro formal (característico mesmo do veículo da palavra escrita) em relação a sistematização/métrica das estrofes. Principalmente, percebe-se uma inserção contextual, por vezes direta e por outras indireta, de entidades ou figuras sociais à narrativa (o branco, a Igreja, os sem-terra): o que confere ao poema, à voz do poeta e ao leitor um diálogo direto com a História. Segue, abaixo, transcrição da referida versão oral do poema: XL

“Ah, minha preta, tu me pedes pra falar / sobre o negro no dia 13 de maio / e eu choro / Agora que eu conheço a História / Desdenho daquele que a escreveu / Ah, minha preta, tu me pedes / Pra falar sobre o negro no dia 20 de novembro / E eu pasmo / Que pergunta ecoa na sua mente? / Zumbi morreu? / Zumbi morreu. / Zumbi morreu? / Minha preta, tu me pedes / Pra falar sobre os negros da minha escola / E eu lembro tê-los visto apenas do lado de fora / Sobre os negros, minha preta, não / Sobre os negros eu não falo / Ou tu não vês? / Tem tanta gente estudada / Tudo que é negro explorado / E todo mundo calado”

204 Notas Poeminflamado

205


Lista

de

obras

publicadas

//207

- BUENO, Angelo et alii.Quarto de Ofício. Recife, s/d. - FRANÇA, Valdemilton Alfredo de. A Cor da Exclusão. Olinda: Mão-de-Veludo Edições Artesanais, 1998. - __________________________. Cafuné. Olinda: Mão-de-Veludo Edições Artesanais, 2003. - FRANÇA, Valdemilton Alfredo de et alii. Marginal Recife - Coletânea Poética I. Organizadores: Cida Pedrosa, Miró e Valmir Jordão. Recife: Prefeitura do Recife - Secretaria de Cultura da Cidade do Recife, 2002. - Revista Palmares. Cultura Afro-brasileira. Ano I, nº I – agosto, 2005. Fundação Cultural Palmares. ISSN 108 7280. - SÁ, Mateus et alii. Luz do Litoral. Recife, 2005.


Índice remissivo dos poemas / / 208 a 211

4 61 A boca do lixo 56 A cena contém (A Sopa Contém) 67 A Chico Science 148 A comida que fiz 169

55 Doce balanço 136 É assim mesmo que eu olho pra você 66 E eu pensando 126 E se chegar 88 É você que me aparece

A linda do rio 161

108 Eis que suas palavras

A Linda e Mauro 20

94 Eita gosto seco, azedo

À MORTE – por ser imortal 50

174 Em caso de dúvidas!

A PALAVRA 163 Agora a flor e o fruto se oferecem 38 Agora percebo o sentido 32

160 Entre as pernas fechadas 95 És feita do vento, dos risos da Tristeza 125 Espelho d´água, Espelho meu

Agora procuro quem 99

130 Estou a procurar

Ah, os meus sentidos 24

54 eu não sou um

Ai minha preta, tu me pedes 153 ANALOGIA 114 Arde ávida a acidez (ABCdecadente ou ABCDecadente) 40 As grades engradam as praças 34 Aumenta aos poucos 37 e 64 Ave ama Seca 47 Bastava ouvir berimbau 105 Beijo tua boca 110

115 Evoco os momentos 85 flor de cactus 97 Guerreiro de onde vens 82 Há mulheres surpreendentes 35 Há um buraco no meio do Barco Brasil 49 História da Humanidade 146 Internetem-nos! 62 IV ATO

Brasa nos olhos, amor? 57

36 Lá estávamos nós dois

Brasil – Quinhentos Anos 156

135 Lá vem ela! (A Fome)

Cadê o seu cartão? 84 Café não é preto 147 Canto a um bode expiatório 154 Ciclo natural 162 Como as plantas 159 CONJECTURAS 112 Constatação 144 Danço a dança que 170

142 Laço de Fogo 91 Logo, logo descerá o pano 81 Marca indelével na minha vida 106 Matadores perfilados 96 Me envolvo mansamente onde (Maconha) 90 Na casa de espetáculos o palhaço chora 70 Nada me inspira 157 Nanã Burukê

DEGENERAÇÃO 83

21 Não sei se há o que dizer

Desarme-me dos meus olhos 87

107 Não sou como queiram

destinoRdestino 73 Dia após dia, saudade crescendo 89 Diretas, já! 152

65 Nebulosa carta cujo signo 29 Nem bem começou a grande crise 39 Nenhum de nós dois


No lago, ao entardecer 79

48 Sempre que a beleza

No mundo dos sonhos 19

166 Sonhei que estávamos passeando

No princípio (Robocop) 23

158 Sopro de vida insuflada

Nômade que sou não tenho74 Nosso povo dá gargalhadas 129 O design 33 O devastador 63

102 Sou árvore / Dou sombra 103 Sou árvore / portanto estática/extática 164 Suo o suor do rosto de todos os homens 27 Tempo de chuva

o mar (Sururu) 59

149 Tenho fugido

O meu corpo te exige 134

101 Transávamos

o meu sangue 51

109 Última Sexão

O nó na garganta sufoca 93 O novo quebrou 52 O poeta 104 O que houve no meio 113 O Sol 46 Olá! Alô? 86 Olinda está muito mal 137

45 Um ninho se faz em paz 78 Uma deusa do fogo 100 e 131 Unir para a guerra 24 Vaitimbora (Isadora) 26 Vamos continuar comendo porcarias 71 Vem negra com tua dança 31 Vens tão mansa

Onze horas 30 Pense 140 Poeminflamado 58 Por ser água barrenta 60 Porquê a pressa? Pra quê tanta pressa? 167 Posso vislumbrar meu futuro 22 Pouso solto 124 Preconceito 18 e 53 Preso pelo meio 168 Prezado (Quarto de Ofício) 118 Quando finalmente 28 Quantas folhas deste pape l72 Que hábil maneira de se ir, ficando 111 Que ideia 141 Quero (Margarida) 80 Sadomasoquismo 165 Sangue 127 Sapatos 98 Secreto! Top Secret! Top Secret! 92

A maioria dos poemas de França não possui título. No plano da oralidade, alguns têm “apelidos”: os participantes dos recitais e conhecedores de sua poesia é que acabavam nomeando determinados poemas, na necessidade de se referir aos mesmos. Nesta lista, elencamos os poemas por ordem alfabética. Utilizamos para referenciá-los: seu título ou seus primeiros versos, seguidos de seus apelidos (quando estes existirem) entre parênteses.


Este livro foi composto na tipografia Calibri 10/13 e impresso em papel polen soft 90g na Provisual Grรกfica e Editora


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