Caderno de Viagem

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CADERNO DE VIAGEM

Ficha técnica Pontifícia Universidade Católica Arte: História, Crítica e Curadoria Produção e Divulgação Marta Bogea Curador-editor Julia Lima Design gráfico ThamyresDonadio


Apresentação

4 Cadu Da série: Projeto Migrações - 2005 Grafite sobre papel, 30x30 cm Marco Maria Zanin Da série: Sampa - 2013 polaroides de dupla exposição, 10x7cm Bruno Moreschi Procura-se - 2013 Grafite sobre papel, 15 desenhos de 29,7x21 cm

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Mattia Denisse Nanquim sobre papel - 2010 dimensões variáveis

18 Walt Whitman Trechos de Song of the Open Road Leaves of Grass, 1900


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natureza humana é paradoxal: o homem tende a se fixar em espaços, mas também deslocar-se, não permanecer em um lugar fixo, foi essencial à evolução. Com o passar dos séculos, viajar significava descobrir novos territórios, dominar outros povos, ampliar impérios. Cada nova descoberta trazia conhecimentos, culturas, saberes e experiências. Os homens sedentarizavam-se mas também navegavam. E queriam ir mais longe. Em torno de 1645, Maurício de Nassau trouxe ao Brasil os artistas holandeses Albert Eckhout e Frans Post, que, com um olhar naturalista, registram paisagens, flora, fauna e tipos humanos. Em 1816, Jean Baptiste Debret, Nicolas-Antoine Taunay e mais dezoito artistas das mais variadas especialidades desembarcaram no Rio de Janeiro para registrar as belezas naturais, os tipos sociais e também revolucionar o ensino das artes no país. Debret escreve sobre a chegada no Brasil: Animados todos por um zelo idêntico e com o entusiasmo dos sábios viajantes

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que já não temem mais, hoje em dia, enfrentar os azares de uma longa e ainda, muita vezes, perigosa navegação, deixamos a França, nossa pátria comum, para ir estudar uma natureza inédita.’ Sabe-se que a vinda da Missão Francesa teve mais efeitos do que os romanticamente desejados por Taunay – os artistas franceses não apenas vieram como instrumentos de registro e documentação, mas também para estabelecer um novo ensino acadêmico de artes no Brasil, e disseminar o estilo neoclássico em detrimento do barroco, já tão desenvolvido. A Missão, ou invasão, não se contentava em apenas ‘visitar’ este mundo novo, mas buscava, de alguma forma, imprimir no país marcas profundas da presença dos artistas franceses: uma colonização cultural por meio de políticas públicas de ensino de arte e de um sistema profissionalizante nunca antes visto que formou artistas nacionais como Pedro Américo e Almeida Júnior. No entanto, o que chama atenção em iniciativas como essas não é seu caráter colonizador e acadêmico, mas o olhar documental das pinturas e desenhos que


estes exploradores realizavam. Existe uma estética e um interesse temático que permeia, de uma forma ou de outra, todos os trabalhos produzidos pelos chamados artistas-viajantes. Este binômio perdeu parte de seu sentido com a modernização e industrialização do mundo. Ficava cada vez mais fácil ir a e conhecer outros lugares – fosse pelo advento de novos meios de transporte, fosse pela invenção da fotografia. No século XX, o artista-viajante já não era mais requisitado para registrar e documentar sítios desconhecidos: o fotógrafo passou a ocupar esta posição. Ainda assim, percebe-se que deslocar-se de sua esfera local e usar da experiência do deslocamento e da inserção em novos e desconhecidos destinos para produzir nunca deixou de ser uma prática entre artistas. Se a natureza exuberante, os povos ‘selvagens’, a fauna fantástica e o mistério de um novo continente excitavam e moviam os artistas-viajantes originais, a vivência de experimentar outro ambiente tornou-se um gatilho, estímulo para artistas contemporâneos.

Pode parecer, talvez, anacrônico utilizar-se da viagem e do contato com circunstâncias alheias para criar e produzir arte. A internet proporciona, hoje, uma literal infinidade de possibilidades de viagem pela tela dos diversos recursos tecnológicos disponíveis. Contudo, existe ainda o impulso de deixar fisicamente o lugar de conforto para lançar-se ao desconhecido, ou pouco conhecido, viver este local enquanto estrangeiro e retornar, trazendo consigo na bagagem o resultado do simples fato de se estar em outro meio. Este caderno apresenta-se como um Caderno de Viagem, um companheiro de deslocamentos, prático e confiável, onde podem abrigar-se esboços, anotações, estórias, ideias, registros, lembranças e fantasias. É um objeto nomádico, um acessório do viajante dedicado a guardar experiências, percursos, bagagens identitárias dos artistas que buscam duplo conhecimento/descobrimento revelado pelo viajar. Propor-se a sair de seu lugar comum ativa a capacidade de compreender o outro e os modos de ser, estar e também de se perceber no mundo. Por que viajar?

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adu transforma em imagens únicas o trânsito de um ponto a outro, criando pequenos mapas abstratos a partir de uma máquina-sismógrafo que ele mesmo projetou e construiu. Esta máquina, composta por uma plataforma sobre um jogo de molas, um pêndulo e uma caneta, é carregada pelo artista nos mais variados meios de transporte, em diferentes lugares do mundo. Uma folha é colocada sobre a base, e a caneta presa ao pêndulo registra no papel toda e qualquer variação de mo-

1 Afoot and light-hearted I take to the open road, Healthy, free, the world before me, The long brown path before me leading wherever I choose. Henceforth I ask not good-fortune, I myself am good-fortune, Henceforth I whimper no more, postpone no more, need nothing, Done with indoor complaints, libraries, querulous criticisms,

vimento e vibração. O artista mapeia novos territórios, transformando em imagens únicas o traslado de determinado ponto a outro, criando pequenos mapas abstratos. Parece curioso que um artista crie um dispositivo que, teoricamente, faz o trabalho sem que a mão – à qual se atribuem talento, facilidade, criatividade, etc – sequer toque no papel e no lápis. Esta pequena ‘gambiarra’ que isenta Cadu de desenhar proporciona, por outro lado, um registro singular dos percursos que o artista realiza: as variações de movimento,

Strong and content I travel the open road. The earth, that is sufficient, I do not want the constellations any nearer, I know they are very well where they are, I know they suffice for those who belong to them. (Still here I carry my old delicious burdens, I carry them, men and women, I carry them with me wherever I go, I swear it is impossible for me to get rid of them, I am fill’d with them, and I will fill them in return.)


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sacolejos, trancos, balanços, trepidações e vibrações sentidos pelo corpo de quem segura a caixa são, invariavelmente, marcados sobre o papel. É um mapa que se desenha ao longo do percurso, em tempo real, e que, ao mesmo tempo, nunca poderá ser retraçado com precisão, nunca poderá ser repetido. Ainda que os garranchos se pareçam, percebemos que não há nenhum desenho que se assemelhe. Cada viagem é única.

2 You road I enter upon and look around, I believe you are not all that is here, I believe that much unseen is also here.

beggar’s tramp, the drunkard’s stagger, the laughing party of mechanics, The escaped youth, the rich person’s carriage, the fop, the eloping couple,

Here the profound lesson of reception, nor preference nor denial, The black with his woolly head, the felon, the diseas’d, the illiterate person, are not denied; The birth, the hasting after the physician, the

The early market-man, the hearse, the moving of furniture into the town, the return back from the town, They pass, I also pass, any thing passes, none can be interdicted, None but are accepted, none but shall be dear to me.

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MARCO MARIA ZANIN

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possível descobrir lugares outros por meio de sua cultura. Podemos nos encantar com a música, nos identificar com a história, devanear com a literatura. Podemos estudar mapas, sistemas políticos, história social e universos midiáticos de cidades e países inteiros. Nada disso, porém, permite conhecer e experimentar de fato aquele espaço estranho. É preciso estar. Marco Maria Zanin, nascido em Padova, Italia, apaixonou-se pelo Brasil ao escutar Sampa, de Caetano Veloso. As metáforas da letra e

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MARCO MARIA ZANIN

o ritmo da canção despertaram no artista um apetite por conhecer o país, recorrendo à música. Em sua primeira residência artística em São Paulo, Zanin produziu uma série de polaroides de dupla exposição, intitulada Sampa, em que registra detalhes tipicamente paulistanos, ao mesmo que tempo que apresentam-se como elementos urbanos cotidianos de qualquer média ou grande cidade do mundo. Na primeira imagem, o artista fotografa-se sobre a imagem de edifícios embaralhados. Nas seguintes, graffittis, amontoados de prédios, calçadas, entulho, a matéria ordinária é apresentada de forma singular mas universal, ora identitária, ora anônima, ora remetendo-nos a cidades pós-apocalípticas de filmes de ficção, ora a cenas de nostálgicos filmes noir. O processo de dupla exposição gera, também, uma espécie de véu que suaviza os contrastes e elimina qualquer traço de branco e preto absolutos – assim como a cidade de São Paulo, Sampa é toda em escala de cinzas.

3 You air that serves me with breath to speak! You objects that call from diffusion my meanings and give them shape! You light that wraps me and all things in delicate equable showers! You paths worn in the irregular hollows by the roadsides! I believe you are latent with unseen existences, you are so dear to me. You flagg’d walks of the cities! you strong curbs at the edges! You ferries! you planks and posts of wharves! you timber-lined sides! you distant ships!

You rows of houses! you window-pierc’d façades! you roofs! You porches and entrances! you copings and iron guards! You windows whose transparent shells might expose so much! You doors and ascending steps! you arches! You gray stones of interminable pavements! you trodden crossings! From all that has touch’d you I believe you have imparted to yourselves, and now would impart the same secretly to me, From the living and the dead you have peopled your impassive surfaces, and the spirits thereof would be evident and amicable with me.


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MARCO MARIA ZANIN

4 The earth expanding right hand and left hand, The picture alive, every part in its best light, The music falling in where it is wanted, and stopping where it is not wanted, The cheerful voice of the public road, the gay fresh sentiment of the road. O highway I travel, do you say to me Do not leave me? Do you say Venture not—if you leave me you are lost? Do you say I am already prepared, I am well-

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-beaten and undenied, adhere to me? O public road, I say back I am not afraid to leave you, yet I love you, You express me better than I can express myself, You shall be more to me than my poem. I think heroic deeds were all conceiv’d in the open air, and all free poems also, I think I could stop here myself and do miracles, I think whatever I shall meet on the road I shall like, and whoever beholds me shall like me, I think whoever I see must be happy.


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MARCO MARIA ZANIN

5 From this hour I ordain myself loos’d of limits and imaginary lines, Going where I list, my own master total and absolute, Listening to others, considering well what they say, Pausing, searching, receiving, contemplating, Gently,but with undeniable will, divesting myself of the holds that would hold me. I inhale great draughts of space, The east and the west are mine, and the north and the south are mine.

I am larger, better than I thought, I did not know I held so much goodness. All seems beautiful to me, I can repeat over to men and women You have done such good to me I would do the same to you, I will recruit for myself and you as I go, I will scatter myself among men and women as I go, I will toss a new gladness and roughness among them, Whoever denies me it shall not trouble me, Whoever accepts me he or she shall be blessed and shall bless me.


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Bruno MORESCHI

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viagem proporciona certa distância em relação ao que o artista experimentava em seu lugar de origem, leva-o a rever aspectos de sua vida pessoal. Há um afastamento que se apresenta e se potencializa com o passar do tempo.Bruno Moreschi parte do retrato, uma das formas mais antigas de representação, para tentar entender como o outro o vê. Convida seu semelhante (distante) a participar da obra. Moreschi pede para que o descrevam de maneira idêntica para quinze retratistas de polícia que nunca o viram, os últimos profissionais da área espalhados pelo Brasil, e dali surgem imagens completamente distintas que elucidam o grau de compreensão e subjetividade de cada pessoa e questionam o desenho apenas como uma técnica. Moreschi convida a criarem mapas de si mesmo, espécies de reproduções de uma mesma instrução objetiva que leva a caminhos muito díspares.

6 Now if a thousand perfect men were to appear it would not amaze me, Now if a thousand beautiful forms of women appear’d it would not astonish me. Now I see the secret of the making of the best persons, It is to grow in the open air and to eat and sleep with the earth. Here a great personal deed has room, (Such a deed seizes upon the hearts of the whole race of men, Its effusion of strength and will overwhelms

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law and mocks all authority and all argument against it.) Here is the test of wisdom, Wisdom is not finally tested in schools, Wisdom cannot be pass’d from one having it to another not having it, Wisdom is of the soul, is not susceptible of proof, is its own proof, Applies to all stages and objects and qualities and is content, Is the certainty of the reality and immortality of things, and the excellence of things; Something there is in the float of the sight of things that provokes it out of the soul.


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Mattia Denisse

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oram quase dois anos viajando, conhecendo a Amazônia, a Ilha do Fogo, e o deserto do Namibe. Nascido na França e radicado em Portugal, Mattia Denisse havia registrado uma viagem transatlântica imaginária em seus cadernos na infância. Quando adulto, aventurou-se por esses territórios desconhecidos, trocou cartas e registrou-os posteriormente em incontáveis cadernos de viagem. São desenhos em grafite e nanquim, sobre papel cartão, de Honi – duplo do artista que figura em quase todas as obras, às vezes dupla ou triplamente representado – ou das paisagens visitadas, situações fantásticas misturadas com acontecimentos reais, realizados após as viagens, formando uma extensa narrativa das experiências e ficções do artista. O intrincado traçado, o detalhamento extenso e as cenas surreais transformam essas pequenas ilustrações em obras de grande presença, que nos forçam a um olhar atento, investigativo, buscando ora encon-

“Muito acima das nuvens seja o centro das nossas misteriosas poéticas 
o irresistível anseio de viajar.” Cesariny, Mário. Pena capital (1957). Lisboa, Assírio&Alvim, 1999, p. 125.

Now I re-examine philosophies and religions, They may prove well in lecture-rooms, yet not prove at all under the spacious clouds and along the landscape and flowing currents. Here is realization, Here is a man tallied—he realizes here what he has in him, The past, the future, majesty, love—if they are vacant of you, you are vacant of them.

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Only the kernel of every object nourishes; Where is he who tears off the husks for you and me? Where is he that undoes stratagems and envelopes for you and me? Here is adhesiveness, it is not previously fashion’d, it is apropos; Do you know what it is as you pass to be loved by strangers? Do you know the talk of those turning eye-balls?


trar Honi escondido por entre o mato, ora entender o que os duplos do artista estão fazendo. Outros personagens também habitam os relatos de Mattia, assim como objetos estranhos, máquinas e engenhocas, e, ocasionalmente, animais. É esse universo particular que Mattia compartilha com seus trabalhos, afirmando que não gostaria que significassem, que afirmassem nada, mas sim “que as pessoas os encontrassem por acaso, os achassem. Como quando, durante um passeio, somos atraídos - porque o nosso olhar se desviou para ali sem razão determinada - por um detalhe na paisagem; e que essa presença, curiosa mas não suficientemente nítida para se ver de imediato, se entende apenas quando nos aproximamos”.


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