Revista black rocket ed6

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Dez. 2013

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TRIPULAÇÃO

Aguinaldo Peres Carlos Relva Charles Dias Joshua Falken Leonardo Carrion Ubiratan Peleteiro

PASSAGEIROS ESPECIALMENTE CONVIDADOS

Douglas Eralldo Karen Alvares Rita Maria Felix da Silva Sabrina Picolli da Silva Zé Wellington NOVAS DICAS PARA ESCRITORES COM

Bia Nunes de Sousa www.revistablackrocket.net


w w w. r e v i s t a b l a c k r o c k e t . n e t

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Editorial Revista de Ficção Científica Número 06 - Dezembro 2013

Coordenação e Edição

CHARLES DIAS revistablackrocket@gmail.com

Revisão

BIA NUNES DE SOUSA bianunesdesousa@gmail.com

Editoração

CARLOS RELVA carlosrelva@gmail.com www.carlosrelva.blogspot.com

Para contatar os autores: Aguinaldo Peres

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Os mortos caminharão sobre a terra [artigo] Sabrina Picolli da Silva

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Violência doméstica no Natal Zé Wellington

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Trégua de Natal Aguinaldo I. Peres

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O Peru de Natal Carlos Relva

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Feliz Vermelho Karen Alvares

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aiperes@sti.com.br

Bia Nunes de Sousa bianunesdesousa@gmail.com

Carlos Relva carlosrelva@gmail.com

Charles Dias revistablackrocket@gmail.com

Douglas Eralldo

Desejo a vocês natais mais felizes Charles Dias

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Missão rotineira Joshua Falken

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douglasxv@yahoo.com.br

Joshua Falken richter_winsock@yahoo.com

Necromania Rita Maria Felix da Silva

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Karen Alvares kvs.alvares@gmail.com

Leonardo Carrion leocarrion@hotmail.com

Rita Maria Felix da Silva rita_maria2003@hotmail.com

Sabrina Picolli da Silva

A guerra dos inomináveis Leonardo Carrion

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O número um Ubiratan Peleteiro

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contato@walkingdeadbr.com

Ubiratan Peleteiro upeleteiro@yahoo.com.br

Desconectados Douglas Eralldo

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Revisório Bia Nunes de Sousa

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Zé Wellington zewellington@live.com Ilustração da capa: Victor Flk Negreiro www.estivador.deviantart.com

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Confesse que p or esta você não esperava: uma semana depois de lançarmos a quinta edição d Revista Black a Rocket – que at in g iu a marca de mais de dois m il downloads em ap en as quarenta e oito horas –, publicamos esta ed ição especial de Natal. Esta é a primeirí ssima edição de contos de ficção científica com a temática Nat al Zumbi lança no Brasil. É a da Revista Black como sempre! A Rocket inovan ssim, o sucesso do de nossa missão nossos leitores é total: surpreen com este ataqu demos e duplo de exce científica 100% lentes contos d brasileiros e co e ficção nquistamos a to dos definitivam Por que juntar ente. natal e zumbis para esta edição porque os zum especial? Prim bis nunca fora eiro, m tão popula desprezados, g res. De perso anharam os ho nagens lofotes e se torn porque, de tod ar am es trelas. Segundo as as épocas d , o ano, o Natal zumbi seria m d u ra n te um apocalip uito mais duro se para os coitad sobrevivência. os que lutam pela Esta edição, co m toda certeza, será uma ótima Natal, um lemb companhia par rete para aprov a o seu ei ta r es ta época antes passem a te ver que os parente como parte da s ceia e você se Godofredo. Não sinta como o p sabe quem é o obre Godofredo? En Revista Black tão leia esta ed Rocket e descu iç ão da bra da melhor maneira.

Charles Dias

Coordenado r e Editor

revistablackro

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cket@gmail.c

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PASSAGEIRO ESPECIALMENTE CONVIDADO

Os mortos caminharão sobre a terra: a trajetória dos zumbis na história, na tradição e na ficção Detentores de todos os holofotes da ficção científica nos últimos anos, os zumbis, cujas origens históricas e folclóricas podem ser remontadas até os tempos bíblicos, estão longe de ser um fenômeno recente. Ainda que sua popularidade e sua presença no imaginário popular se devam, em especial, às obras de George Romero e, mais recentemente, ao hit das HQs adaptado para a TV The Walking Dead, de Robert Kirkman, a mitologia desses seres envolve rica simbologia e abre espaço para amplas discussões em várias áreas do conhecimento. Origem: o zumbi histórico A palavra “zumbi” é de origem africana e historicamente tem o significado de “essência da alma”, a centelha mais pura da existência, sem a influência de nenhum outro aspecto cognitivo. Não há muitos pontos em comum para comparação entre o estereótipo do zumbi de hoje e aquele que surgiu a partir das crenças e rituais relacionados aos povos afro-caribenhos praticantes do vodu: atualmente, o zumbi é descrito como um ser que morreu, foi enterrado e posteriormente retornou à vida por meios não conhecidos, em estado catatônico, desprovido de personalidade e guiado por instinto. Por sua vez, o zumbi oriundo do vodu caracteriza-se como a pessoa morta que é ressuscitada por um sacerdote ou feiticeiro e se torna seu servo, incapaz de expressar vontade própria. A finalidade do zumbi no contexto histórico-cultural caribenho era a servir como mão de obra escrava, em especial na lavoura, e tal era a justificativa para sua criação. Algo completamente diferente da ideia que domina o imaginário dos fãs de ficção científica.

Zumbi real?

Um dos primeiros registros sobre zumbis foi um artigo escrito pelo jornalista e antropólogo Lafcadio Hearn para a Harper’s Magazine em 1889. Ele passou dois anos na Martinica recolhendo histórias locais, e sua atenção foi imediatamente captada pelos “mortos que ca-

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minham”, que acabaram sendo o fio condutor de sua reportagem, a despeito de toda a relutância por parte dos povos caribenhos em fornecer mais detalhes sobre o assunto. Ao longo da década de 1980, o antropologista e botânico canadense Wade Davis passou quatro anos no Caribe, três deles no Haiti, estudando os fundamentos da “zumbificação” relacionada aos rituais vodu. Em seus ensaios “A serpente e o arco-íris”(1985) e “Passagem das trevas: a etnobiologia do zumbi do Haiti” (1988), ele descreve a administração e os efeitos de pelo menos duas drogas – uma neurotóxicas, a tetrodotoxina (TTX) e outra dissociativa, derivada da Datura, que causam, respectivamente, um status de morte aparente, que permite o enterro do indivíduo e a reanimação em um período de cerca de oito horas, e um estado de confusão mental e dissociação da realidade. Isso tudo associado à crença local e seus efeitos psicológicos levaria o “zumbi” a aceitar sua nova condição de trabalhador escravo. Os trabalhos de Davis foram bastante criticados pela comunidade científica, que não os ratificou em momento algum. Atualmente trabalhando como explorador da National Geographic, Wade Davis ainda sustenta a validade de seu trabalho e afirma que o intuito de sua pesquisa “não é mostrar que exista uma linha de produção de zumbis no Haiti, mas que o conceito se baseia em algo real”. A teoria do “zumbi farmacológico” voltou à tona recentemente, quando a imprensa divulgou o surgimento de novas drogas recreativas sintéticas (uma delas foi denominada “sais de banho” nos Estados Unidos) capazes de gerar comportamentos de violência extrema, quadros psicóticos com dissociação da realidade e atos de canibalismo que, rapidamente, foram comparados ao comportamento zumbi, mas dessa vez levando em conta a definição de zumbi midiático que veremos a seguir. O zumbi midiático Os zumbis nunca tiveram o mesmo status dos lobisomens e dos vampiros, que contavam com amplo retrospecto cultural e folclórico e apresentavam em seu currículo várias lendas e até mesmo livros, a exemplo de Dracula, de Bram Stoker. Considerados irrelevantes no cenário da indústria cinematográfica ligada ao terror, os zumbis acabavam sendo os protagonistas de filmes de baixo orçamento ou quando se desejava mostrar o pior cenário de terror possível. Foi em 1932, com White Zombie, estrelado por Bela Lugosi, que os zumbis ganharam as telas dos cinemas pela primeira vez, após o sucesso tímido das produções de terror iniciadas na década anterior. Uma aposta ousada dos produtores Victor e Edward Halperin, tanto em termos de investimento quanto em relação à incerteza da aceitação do projeto. Filmado em onze dias e com um orçamento de 50 mil dólares, o filme acabou sendo um sucesso inesperado, rendendo cerca de 8 milhões de dólares em bilheteria. Estes números tornam-se ainda mais impressionantes quando lembramos que a estreia ocorreu no período póscrise de 1929, em uma época em que a população americana já estava previamente aterrorizada pela Grande Depressão. Se o contexto histórico foi uma das influências para o filme ou se o sucesso pode

Whiteombie Z 6

SABRINA PICOLLI DA SILVA


ser atribuído ao estado de terror da população americana naquele momento, ainda é motivo de debate. Naquela época, os zumbis ainda eram inspirados pelo que se conhecia das crenças caribenhas. Muitas produções de baixa qualidade surgiram após White Zombie, condenando os filmes de terror por décadas à má fama. Até 1964, com I eat your skin, de Del Tenney, não seríamos apresentados ao zumbi com características canibais e, portanto, mais próximo da imagem que temos na atualidade. Mais uma vez o contexto histórico precedeu à ressurreição do gênero. A Guerra Fria, o anticomunismo e a caça às bruxas, a rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética e o temor da ameaça nuclear deixaram marcas na indústria cinematográfica e, consequentemente, nos filmes de terror, que adotaram nuances de ficção científica e deixaram para trás em definitivo o zumbi haitiano para entrar em um universo ficcional completamente diverso. Da mistura de extraterrestres e zumbis (como em Invasores invisíveis, de 1959) a outras obras pouco dignas de nota, o caminho estava pronto para a grande virada, que viria em 1968, com George Romero e seu A noite dos mortos-vivos.

A noite dosmortos-vivos

Com baixo orçamento (114 mil dólares), praticamente pago do bolso dos produtores, A noite dos mortos-vivos alcançou, no mundo inteiro, uma bilheteria aproximada de 30 milhões de dólares. Romero consolidou a figura do zumbi como um canibal de movimentos lentos e marcha arrastada, irracionais e, de certa forma, letárgicos. Aqui também consolida-se o estereótipo da aparência zumbi: esfarrapados, fétidos, corpos decompostos e, com frequência, perdendo pedaços. Os filmes de Romero trouxeram novo fôlego ao gênero terror, não poupando o público de cenas sangrentas, corpos despedaçados e cabeças destruídas. Romero também trouxe outra conotação ao zumbi, totalmente afastada do mito original que o inspirou: o de representante de pesadas críticas sociais dirigidas ao mundo contemporâneo. Tanto nesse filme como nos que o sucederam, Romero parte da premissa de que o zumbi não passa de um reflexo da humanidade, sendo considerado o ser humano em seu mais alto grau de pureza, livre de todas as imposições sociais. O holocausto zumbi retratado em seus filmes mostra seu descrédito no contexto social americano da época, no governo americano e na defesa do país, não poupando críticas também à sociedade de consumo e ao preconceito. Romero, ao longo de suas obras, parece deixar bem claro o tempo todo o quanto já estamos vivendo o apocalipse zumbi, ainda que não haja corpos em decomposição perambulando pelas ruas e atacando pessoas, elevando o entretenimento e a adrenalina gerada pelos filmes de terror ao patamar de reflexão. O cenário de desolação e a completa desesperança da raça humana tiveram em sua obra a sua mais forte metáfora. O zumbi de Romero também sofreu adaptações ao longo dos anos, ao, por exemplo, transformarem-se em seres dotados de velocidade (Extermínio, 2008) ou mesmo alguma

OS MORTOS CAMINHARÃO SOBRE A TERRA

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Z l a i d n u M Guerra

capacidade cognitiva, como o uso de ferramentas (Dia dos mortos, 2007), ou de comunicação e planejamento de objetivos (Survival of the Dead, 2010), chegando à extrema velocidade e violência (Guerra Mundial Z, 2013). As teorias sobre o surgimento dos zumbis também cortaram definitivamente seus laços com suas origens haitianas, sendo atribuídas mais frequentemente a infecções por vírus mutantes ou criados em laboratório, influências extraterrestres ou castigo divino; em muitos casos, nem se fala em uma possível origem. Também há grande variação nas espécies que podem ser atingidas pela “zumbificação”, que pode ser exclusivamente humana ou extensiva a outras espécies, animais e vegetais, como nos jogos da série Resident Evil.

Os zumbis na atualidade Ao que tudo indica, a partir de 2010, finalmente os zumbis conseguiram conquistar o mesmo status de vampiros, lobisomens e outras criaturas fantásticas, e tudo começou com a adaptação para a TV da premiada história em quadrinhos do escritor americano Robert Kirkman. A série The Walking Dead estreou na televisão em 31 de outubro de 2010 e, desde então, vem quebrando recordes de audiência; no presente momento, é a série de televisão de maior audiência na história da TV americana.

The Walking Dead

A saga de Rick Grimes e seu grupo de sobreviventes, em um cenário pósapocalíptico, no qual toda a civilização como a conhecemos desapareceu e a Terra está tomada por zumbis, chamados na série de “walkers”, foi recentemente criticada por George Romero, que referiu-se a ela como “uma novela que, de vez em quando, mostra zumbis”; Romero considera que os produtores se afastaram completamente do “zumbi enquanto crítica social” criado por ele. Público e crítica especializada, no entanto, não compartilham a mesma opinião de Romero. Para eles, o foco, de fato, não são os zumbis, mas sim a natureza humana e as perguntas existenciais que eventualmente nos fazemos: em uma situação de extremo perigo, quem realmente somos? Quais serão nossos valores? Qual o lugar da ética e da moral em um mundo que já não é mais aquele que conhecemos? Os zumbis, nesse contexto, não são mais apresentados como veículos de uma crítica

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SABRINA PICOLLI DA SILVA


social, mas sim como a concretização de todos os nossos maiores temores, a personificação de todas as situações ameaçadoras que colocam em xeque nossas crenças, até mesmo naquilo que somos; passaram a ser uma metáfora do mundo em que vivemos e do horror que nos faz perder o sono, sob diversos aspectos. Essa é a visão que, declaradamente, todos os que estão envolvidos na série são unânimes em defender. A despeito de quaisquer diferenças ideológicas, The Walking Dead também busca inspiração, em parte, nos zumbis de Romero – o que não é novidade, uma vez que Gregory Nicotero, produtor executivo e responsável pelo departamento de maquiagem e efeitos especiais da série,começou sua carreira em Terra dos mortos (1985). Os zumbis no cotidiano Graças a esse grande sucesso, a figura dos zumbis curiosamente também tem sido utilizada com finalidade educacional e de orientação à população. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência federal americana, lançou uma série de materiais em seu site visando orientar as pessoas sobre o que fazer e como se preparar para o apocalipse zumbi, acrescentando que “tais medidas podem e devem ser tomadas em caso de outros tipos de desastres, tais como terremotos, guerras, ataques terroristas, tsunamis, tornados etc.”. Ou seja, uma maneira bem humorada de orientar e preparar a população para a ocorrência de todo e qualquer desastre. Mais recentemente a Universidade da California/Irvine lançou um curso online de quatro semanas chamado “Society, science, survival: Lessons from the AMC’s The Walking Dead” [Sociedade, Ciência, Sobrevivência: lições de The Walking Dead], que aborda todos os aspectos científicos, médicos, sociológicos e antropológicos apresentados pela série de TV, com vasto material e palestras de especialistas nas mais diversas áreas do conhecimento. É o apocalipse zumbi como fator de promoção da cultura geral e do estudo em vários âmbitos. Não pode deixar de ser citado também o popular The Zombie Survival Guide [Guia de sobrevivência zumbi], de Max Brooks, um manual de sobrevivência totalmente geek e cercado de zumbis por todos os lados, leitura obrigatória para os fãs de terror e ficção científica e que, de uma maneira descontraída, atinge o mesmo objetivo – ainda que não propositadamente – das páginas zumbis do CDC.

SABRINA PICOLLI DA SILVA é apaixonada por cultura pop, terror, literatura e Comic Con. É, orgulhosamente, membro da equipe de tradução e de criadores de conteúdo do fansite brasileiro walkingdeadbr.com. É formada em medicina e estudante de fotografia.

OS MORTOS CAMINHARÃO SOBRE A TERRA

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PASSAGEIRO ESPECIALMENTE CONVIDADO

| n o t g n i l l e W | é |Z

a i c e r a p e u q o l e d a s e p Um o d a s s a p o n o d a c i f r e t rp ecisa ser enfrentado novamente quando os mortos começam a . ac minhar sobre a terra

amador, nerd profisritor por paixão. Quadrinista esc o, açã form por or trad festivais musicais gtoonn é adminis ellilinngt Wel Zé W alhos, participou de diversos trab s doi çou lan , Fim o re iro lugar no Consional. Com a banda Sob TOUR 2009, e obteve o prime NS VA da tina des nor a etiv e roteirista do projeto regionais, incluindo a sel s quadrinhos, é o criador No s. ord Rec e pir Em be Independente. Tem curso Bem-Vindo Clu egoria Melhor Edição Única cat na 0 201 MIX HQ féu Tro tástica e quadrinhos. Interlúdio, indicado ao ecializadas em literatura fan esp s ista rev e s nea etâ col participado de diversas

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Quando deu a notícia no jornal na TV, a apresentadora não evitava olhar torto para seu colega e marido do outro lado da bancada. Imaginava como estariam os trigêmeos em casa, aguardando os pais para a ceia de Natal. — Estão por todo o planalto. O Ministério da Defesa ainda não se pronunciou, mas acredita-se que se trate de algum experimento descontrolado. Que Deus nos ajude. Boa noite. — Encerrou categórica e sem conseguir evitar um soluço. Foi seguida de um boa-noite ainda menos animado do outro jornalista. Em casa, Penha estremeceu. O dia sobre o qual o pastor sempre falara havia chegado. Podia ficar tranquila, tendo pagado o dízimo religiosamente em dia nos últimos meses? Dispensou os convidados da ceia de Natal, sentou-se na velha rede e começou a rezar. Pela internet, especialistas especulavam a origem da infecção. Os primeiros casos, rapidamente isolados na China e na Índia, eram quase iguais no restante do mundo. Rússia, Japão, um caso isolado na Alemanha, mas suficiente para infectar Berlim inteira. A lógica apontava para um caso no Brasil nos próximos dias. No aniversário de um mês da aparição do primeiro morto-vivo, um gari do Espírito Santo teve um enfarto e, dois segundos depois de cair morto, avançou no pescoço de uma mendiga que, trinta segundos depois, deixou cair no chão o apetitoso sanduíche que tinha ganhado de um executivo e abocanhou seu bebê maltrapilho. Rapidamente as regiões sul e sudeste do país estavam dominadas, assim como Argentina, Uruguai e uma parte do Chile. Penha tinha desistido de ir à igreja logo na primeira semana. Nenhum monstro havia aparecido na sua cidade ainda. Sem monstros, sem mordidas. Sem mordidas, sem monstros. Simples assim. Com o exército barrando as entradas da cidade, aquele local parecia seguro. Foi quando ouviu que em alguns cemitérios os velhos mortos também estavam querendo levantar. Mandou Osmar Filho e Vera Lúcia para a casa de sua irmã. Sozinha em casa sentouse na cadeira de balanço e se pôs a tricotar. Não ia demorar. As maiores capitais do mundo estavam em quarentena. A ONU aconselhava a cremação de todos os que morressem durante aquele período. Houve protesto de diversos grupos religiosos contrários a transformação dos defuntos em cinzas. Nos Estados Unidos, duas igrejas pregavam a autotransmortização como um retorno aos primórdios e à inocência despida dos pecados capitalistas. Uma onda de suicídios se iniciou. Agora bastava morrer para se tornar um morto-vivo. A porta do quintal gemeu e Penha se agitou. Desajeitada, pegou a única arma que dispunha: uma velha vassoura de palha. Ficou tremendo atrás da porta, esperando, até o momento em que um gato preto entrou na sala. Respirou aliviada e pensou que deveria se preparar melhor para o que estava por vir. Com a infecção, as licenças para armas de fogo tinham sido dispensadas. Penha comprou um calibre trinta e oito, mesmo o vendedor oferecendo um modelo automático. Seu pai tinha tido um desses e uma vez até deixou que ela atirasse em uma porção de garrafas. Penha precisava de algo familiar naquele momento.

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Com as transmissões de TV interrompidas, as pequenas rádios AM locais eram a única forma de as pessoas ficarem atualizadas sobre a infestação. Eram cinco da manhã quando o repórter policial noticiou que um cientista indiano havia descoberto uma vacina à base de alho capaz de evitar a infecção. — Não vai trazer de volta seu parente, mas vai evitar o súbito apetite por miolos caso você seja mordiscado — disseram com palavras mais bonitas na coletiva de imprensa. Sem novas infecções, em um mês a população de zumbis tinha diminuído em sessenta por cento. Voluntários, a maioria caipiras das cidades interioranas sobreviventes, formaram o exército de espingardas que parou a proliferação dos desmortos. Em mais alguns dias tudo aquilo seria passado. Hollywood já tinha pelo menos três filmes engatilhados, um deles o inusitado ponto de vista de um zumbi, estrelado por Bill Murray. Era dia vinte e quatro de dezembro quando Penha ouviu as boas-novas no rádio, sentada no quintal de casa. Pensava em ligar novamente para as pessoas convidando-as para a ceia. Respirou devagar, deliciando-se com o cheiro das fezes do galo que criava no fundo da casa. Mal tinha se virado para entrar quando uma mão brotou do terreno arenoso e segurou seu calcanhar. Penha reagiu instintivamente chutando o membro, que parecia estar em estado avançado de decomposição. Correu para dentro de casa, mas antes de fechar a porta observou o cadáver levantar-se desajeitadamente. “Ainda parece o mesmo bêbado de sempre”, não conseguiu evitar pensar. Empurrou a velha máquina de costura à frente da porta e correu até seu quarto, desenrolando o trinta e oito de um velho lenço, primeiro presente de namoro. Podia ouvir o som da porta do quintal sendo esmurrada com violência. A última pancada pareceu ter derrubado a velha Singer no chão. Penha se posicionou no corredor. Queria encarálo. O invasor caminhava lentamente com a cabeça baixa, puxando uma perna. Penha tremia, mas mantinha a arma apontada para o defunto, que interrompeu sua caminhada e olhou nos olhos da desesperada mulher. — Precisa engatilhá-la, meu bem — disse o desmorto, com suas carcomidas cordas vocais. Penha deu um pulo para trás quando percebeu que ele podia falar. — Como estão os meninos? O Osmarzinho ainda tá dando trabalho pra professora? — prosseguiu o cadáver, puxando uma minhoca de dentro da boca. — Comparado a isto, sua comida até que não é tão ruim — continuou tagarelando com aquele meio sorriso irônico que Penha tinha aprendido a odiar. O zumbi sentou-se na cadeira de balanço no corredor da casa. Parecia tranquilo e à vontade enquanto olhava os enfeites de Natal. Pilhas de corpos eram queimadas em praças públicas sob muitas comemorações. Na televisão, várias pessoas diziam ter voltado da desmorte. Uma mulher lutava na justiça para continuar casada com um morto-vivo. Dois chineses anunciaram fábricas de calçados movidas a trabalho zumbi. Podia ser o fim da mão de obra barata e do trabalho escravo nos países subdesenvolvidos. — Eu devia saber que cada surra que te dei foi pouca — continuou o desmorto na sala de Penha. — Achei que tu sabia onde era teu lugar e olha o que tu fez comigo no dia de Natal.

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ZÉ WELLINGTON


Penha tentava respirar devagar e se concentrar quando alguém tocou a campainha. Era Tonico, vizinho da frente. Penha não queria abrir a porta e ter de explicar por que o cadáver do marido, que ela dizia ter fugido de casa sem dar explicações, estava ali, balançando-se na velha cadeira. Permaneceu em silêncio e mal percebeu quando o zumbi levantou-se rapidamente e agarrou-a pelo pescoço. — Faz um ano, né? Tu bota veneno na minha comida e acha que eu vou deixar por isso mesmo? Vou te dar uma surra que você nunca mais vai esque... Antes que o zumbi pudesse terminar de falar, Penha enfiou o cano do revolver em seu olho putrefato. Atordoado, o morto-vivo cambaleou até a porta do quintal, onde Penha o acertou com sua panela de pressão, forçando-o a sair da casa. Ficou tentada a terminar o serviço com o trinta e oito, mas o barulho podia chamar a atenção do vizinho. Pegou a garrafa de álcool embaixo da pia da cozinha e despejou sobre o marido. Antes de acender o fósforo, Penha contemplou o desmorto por alguns segundos. Ele parecia incomodado com a ardência do combustível. O zumbi queimou durante pelo menos quinze minutos. Discursos decorados por cientistas condecorados se tornaram um clichê na televisão. Por um instante todas as guerras foram esquecidas e as diferenças entre raças e religiões pareciam nunca ter existido. O mundo parecia ter mais paz do que antes. Na ceia de Natal, as famílias mais unidas. À meia-noite, Penha chorava enquanto varria as cinzas do alpendre do seu quintal.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO NATAL

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| s e r e P | o d l a n i |Agu Uma das mais terr铆vdeais guerras da hist贸ria e humanidade termina de forma muito pior qu is qualquer soldado jama imaginou. 14


A charrete sacolejou pela estrada de terra por alguns quilômetros até chegar ao chalé de dois andares próximo ao lago Wakapitu na província de Otago. O homem de terno e chapéu cinza subiu os degraus do alpendre e bateu na porta. Foi atendido por um senhor com mais de sessenta anos, barba e cabelos rajados de branco, olhos azuis, que vestia camisa branca, colete e calças de lã escuras. — Esta é a casa do senhor Henri Walker? O velho estudou o visitante com cuidado. — Você dever ser o repórter do Canberra Guardian. — John Newman, ao seu dispor. Os dois homens trocaram um firme aperto de mão e entraram. Henri apontou uma cadeira à mesa de jantar rústica. — Aceita uma bebida? — Por que não? Foi um longo caminho desde Queenstowt. — Meu uísque escocês acabou há muitos anos, mas esse DoubleWood não é mal. Henri encheu dois copos com o líquido dourado. John deu um bom trago. Pela janela viam-se os picos brancos dos Alpes do Sul. — A Nova Zelândia é um bonito lugar... — Nós, escoceses do norte, gostamos do frio e das montanhas. Isto aqui não me deixa esquecer o que perdemos por causa da Grande Guerra. John tirou do bolso do paletó um caderno e um lápis. — É sobre isso que vim entrevistá-lo. O senhor estava lá em 1914? Durante a trégua de Natal? — Sim, eu estava lá. Estava com os Gordons! Oitavo batalhão do primeiro Gordon Highlanders. Fomos mobilizados após a Batalha de Flandres. Desembarcamos em Calais no dia vinte e quatro de novembro e seguimos em marcha rápida até a Frente Ocidental. — Henri sorriu. — Foram os dois dias mais gloriosos de minha vida. Mais de quinhentos homens marchando sob o sol do final de outono francês. E eu ia à frente, como o membro mais novo do Corpo de Gaitas, intercalávamos a “The Cock O’ the North” com a “St. Andrew’s Cross”. As pessoas deixavam seus afazeres e saíam de casa para nos ver passar. Crianças nos seguiam, mulheres lançavam flores. — O velho soldado ergueu o copo num brinde. — Aos Gloriosos Gordons! John acompanhou o brinde e aguardou em silêncio. — Coisa bem diferente nos aguardava em Ypres. Acampamos numa fazenda nos arredores da cidade. A plantação sumira dando lugar a mato seco pisado, a casa exibia buracos de bala, o celeiro queimara até o chão. A cidade estava pior, quase reduzida a escombros pelos bombardeios de ambos os lados. Costumávamos brincar, dizendo que quem derrubasse o último prédio seria o vencedor. “Como estava contando, acampamos e fomos direto para as trincheiras, que se estendiam de Paris ao Mar do Norte. Um labirinto de ratos para ratos, protegido com arame farpado e montes de terra, nunca fundo o suficiente para ficarmos em pé ou largo para deitarmos.

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Com a neve fria e úmida a região tinha se tornado um imenso lamaçal. Não foi preciso muito para descobrir que não eram somente as balas inimigas que matavam; bastava uma visita às enfermarias improvisadas.” Henri encheu os copos. — As trincheiras inimigas ficavam tão perto que podíamos ouvir os boches peidando. Na primeira semana xingávamos eles em inglês, na segunda em alemão e na terceira, já trocávamos cumprimentos e cigarros que lançávamos amarrados em pedras. O rosto do repórter denotava espanto. — Acha estranha esse camaradagem entre inimigos? Pois fique sabendo que a guerra deveria ter terminada na Batalha de Marne se não fosse a soberba dos generais e dos políticos; os alemães não tinham força suficiente para conquistar a França ou nós para expulsá-los. Aquilo era uma briga de crianças birrentas que brincavam com a vida de milhares de soldados e civis. “Enquanto isso, nós, os soldados, tratávamos apenas de sobreviver mais um dia nas trincheiras, nos escondendo das balas, dos obuses e das bombas de gás. Quando surgia algum comandante com ordens do quartel-general para tomarmos uma colina ou recuperarmos um riacho, fazíamos a nossa parte. Tudo tão inútil. O que conquistávamos num dia era perdido no outro e vice-versa, sempre ao custo de muito sangue, nosso e dos alemães. Ao final de cada escaramuça, somente nos restava a tarefa de erguer a bandeira da trégua e recolher os corpos. “Por isso, não estranhe a nossa camaradagem. Éramos todos pobres-diabos, famintos, enregelados. Atolados na lama, lutando numa guerra sem fim, sem vencedores, esperando pela bala que nos levaria para casa.” — E então a guerra terminou — lembrou John, sabendo que aquele era o momento pelo qual esperava. — No Natal de 1914. — As notícias corriam rápidas pelas trincheiras — continuou Henri. — Sabíamos que os ataques franceses ao longo da Frente Ocidental tinham fracassado por causa do mau tempo, que os alemães estavam reforçando suas defesas, que os britânicos estudavam a possibilidade de trazer tropas da África, que até o papa havia conclamado as nações que cessassem as hostilidade para celebrar o nascimento de Cristo. Ninguém queria lutar na neve e nos dois lados do front comentava-se sobre uma trégua de Natal, uma grande festa de confraternização, um movimento pelo fim da guerra. Isso deixou o Estado-Maior da Força Expedicionária preocupado. Então o major-general Aylmer Haldane convocou uma reunião da terceira divisão no dia vinte e dois de dezembro. Eu fui, acompanhando o tenente-coronel Kingsley Doyle. “A reunião foi na sede de uma vinícola na região de Hazebrouck. No rádio, antes do encontro, o primeiro-ministro inglês conclamara os soldados à luta: ‘Se não acabarmos com a guerra, a guerra vai acabar conosco’. Foi uma reunião conturbada. Os comandantes dos batalhões estavam apreensivos, os soldados estavam cansados; a trégua seria boa para a moral das tropas. O Estado-Maior achava a situação um absurdo, uma ruptura na cadeia de comando. Os generais mais afoitos queriam uma grande ofensiva. Contudo, a solução final foi dada pelo MI10.” — O serviço secreto inglês? — John perguntou, anotando os detalhes.

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— Ele se identificou como capitão Smith, da Diretoria de Inteligência Militar. Suas instruções foram para que ninguém interferisse na rotina dos soldados, para que fosse mantida a normalidade no front. Ele também distribuiu aos oficiais uma caixa com fogos de artifício que deveriam ser usados na noite da véspera de Natal. — Fogos de artifício? — Era o que pareciam. Alguns oficiais chegaram a ficar ofendidos, mas o capitão Smith explicou que aquilo era uma nova arma desenvolvida por um americano chamado Howard Lovecraft. Já ouviu falar dele? — Não que eu me lembre. Quando retornar à redação vou procurar nos arquivos. O que aconteceu depois? — Nada. Os auxiliares pegaram as caixas e todos retornaram aos seus batalhões. As ordens vieram de cima, do próprio marechal John French. “O dia vinte e quatro de dezembro amanheceu com chuva fria e fina, do tipo que escorre pelo capacete e entra por dentro do casaco. Os soldados se revezavam na vigília: olho no Fritz, dedo no gatilho. As trincheiras alemãs pareciam abandonadas. No almoço foi servida uma porção extra, a chuva parara. Os rifles e os morteiros permaneceram em silêncio. Sereno. Tranquilo. “Aquilo foi muito estranho. No front nunca se está em paz, há sempre uma tensão no ar, a espera por um disparo ou uma explosão. Parecia um sonho, um dia de domingo ou feriado. Alguns homens fumavam apoiados nas armas, outros jogavam cartas onde o chão já estava seco. “Ao cair da noite, algo começou. Nas linhas inimigas, surgiram pequenas luzes. Do nosso lado foi uma correria! Os soldados se posicionaram, rifles apontados, aguardando o ataque ou ordens para atacar. Contudo os oficias não sabiam o que fazer, eles apenas observavam pelos binóculos os alemães colocarem velas acessas ao longo da trincheira. Então eles começaram a cantar. Henri sorriu. — Pode imaginar a nossa situação, escondidos e assustados, apontando nossas armas para alemães cantores. Os soldados caíram na risada. Alguém gritou: “Feliz Natal, Fritzs!” E de lá gritaram: “Feliz Natal, Tommies!” Outras saudações foram gritadas. Nossos homens largaram as armas e começaram a cantar, eu toquei “Silent Night” com a gaita. Não demorou para que saíssemos de nossos postos para cumprimentar os novos “amigos” numa noite de céu claro e lua crescente. Assim começou a Trégua de Natal. À meia-noite, ambos os lados saudaram os fogos de artifício. “O Comando ficou estarrecido com as notícias, sempre existe alguém para dar com a língua nos dentes. Um grupo foi formado para vigiar o front e montar um relatório com o nome de todos os oficiais e soldados que ousassem confraternizar com o inimigo no dia de Natal. Antes que o dia amanhecesse, dois cabos, o tenente responsável pela operação e eu subimos uma colina próxima e nos abrigamos num ninho de metralhadora que estava abandonado por ser alvo fácil para a artilharia alemã. Pelos binóculos, observávamos a movimentação e informávamos ao tenente que anotava nomes, postos e atividades. “O primeiro foi um oficial alemão que deixou sua trincheira e começou a atravessar o que chamávamos de Terra de Ninguém. Logo um capitão do regimento de Nottinghamshire

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saiu do nosso lado. Mas eles não se cumprimentaram, passaram um ao largo do outro sem se olhar. De ambos os lados, soldados deixavam suas trincheiras e caminhavam lentamente. Não havia alegria, não havia confraternização, eles apenas vagavam. E nos anotávamos. “Então estourou o inferno. Disparos e gritos de horror, não das trincheiras; os sons vinham dos acampamentos, das enfermarias, dos ranchos. Corremos esperando encontrar alemães infiltrados, mas o que vimos foram soldados atirando nos próprios companheiros. E o que mais atemorizava era que eles não caíam, não gritavam, não sangravam; cambaleavam com o impacto das balas e continuavam caminhando, a pele pálida, a boca aberta, os olhos arregalados. Grunhindo baixinho e constantemente, eles não usavam armas, apenas as mãos e os dentes. Estavam mortos, e os mortos andavam e matavam os vivos que, mortos, voltavam a andar e matar, num círculo amaldiçoado e aterrador. “No caos atirava-se nos mortos e nos vivos. Quando alguma resistência era organizada, provava-se inútil. Os malditos não se detinham, nem as granadas os paravam. Eles se arrastavam pelo chão ou seguiam sem partes do corpo, e quem fosse pego estava condenado. “Fugimos. Não foi uma retirada organizada, simplesmente corríamos para o mais longe que podíamos, corríamos para casa, para a segurança. E pelo caminho pegávamos o que aparecia: comida, água, cavalos, carroças. Caíamos exaustos e lá ficávamos sem dormir, atentos, assustados, prontos para correr ao primeiro sinal de perigo. “Quando cheguei a Calais, o porto estava caótico. Alguns oficiais tentavam impor a ordem e eram ignorados, escaramuças ocorriam ao redor dos barcos, e os fugitivos embarcavam ou tomavam qualquer coisa que flutuasse. Num desses distúrbios fui lançado ao mar, mas tive sorte: um grupo de soldados irlandeses me içou para o barco deles. No dia trinta de dezembro, desembarquei em Dublin. Henri esvaziou seu copo. — Assim terminou a guerra. Para mim foi apenas um mês entre a glória, a desilusão e o desespero. John apertou o ombro do velho soldado. — Fiquei vagando por Dublin por dois dias até conseguir transporte num cargueiro que ia para Aberdeen. Mas nunca cheguei à Escócia. A tripulação, com medo das notícias que chegavam pelo rádio, sequestrou o navio e rumou para os Estados Unidos. No porto, ficamos de quarentena; os ianques temiam que uma nova variante da raiva estivesse levando à loucura a população da Europa. O New York Times anunciava a queda de Paris e Berlim, os inimigos na guerra compartilhavam o mesmo destino. — Henri suspirou. — O resto é história. — Você acha que a infecção foi causada pelos fogos de artifício do MI10? – perguntou o repórter. — Somente Deus sabe a resposta, os demais já estão mortos. — Henri deu de ombros. — Pode ter sido coisa dos boches, eles gostavam de fazer experiência com bombas de gás. Ou algum ato de desespero dos franceses, ou vingança dos belgas. No final, o primeiro-ministro Herbert Wells estava certo, aquela foi “a guerra que acabaria com todas as guerras”. — Obrigado pelo uísque e pela história. — John se levantou. — Velhos soldados gostam de contar velhas histórias.

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Os dois homens trocaram um aperto de mão. Na saída, quando o repórter já se aproximava da charrete, Henri perguntou: — É verdade que o Japão caiu? — Ainda não há confirmação oficial, mas navios que passaram ao largo da costa japonesa informaram terem visto grandes nuvens de fumaça. O mar não é empecilho para eles; pode atrasá-los, mas não os detém. — Que o Senhor tenha piedade da nossa alma.

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O que o Natal,iauism, peru, dois polic s zumbis e batata em transgĂŞnicas tĂŞm comum? 20


1. Godofredo estava todo todo com suas companheiras quando, do nada, uma grande mão agarrou-lhe o pescoço. Desesperado, tentou livrar-se da ameaça a todo o custo, mas a garra apertava-lhe tanto a fina garganta que já sentia suas forças se esvaírem. Quanto mais se debatia, mais era estrangulado. Tentou gritar, pedir ajuda, mas não tinha fôlego. E suas companheiras não fizeram nada, fugindo assustadas, preocupadas mais com a própria vida do que com a dele. Quando já ia desfalecer, seu raptor jogou-o num espaço tão apertado que mal podia se mexer. E enquanto selava por completo o confinamento, Godofredo pode ver seu semblante de olhos enlouquecidos e o sorriso sardônico de dentes e mais dentes. Então, só escuridão. 2. (Trecho em áudio do diário pessoal do biólogo Saturnino Gentil. Registro feito há sete dias. Material apreendido pela polícia.) A nova safra de batatas transgênicas respondeu bem ao tratamento. Alguns tubérculos chegaram a superar em vinte por cento o tamanho e o peso dos melhores exemplares da colheita anterior, o que já considero um grande sucesso. E, claro, continuam igualmente saborosos, mesmo cultivados a quarenta graus! E tenho certeza de que um acréscimo maior de maropan na mistura não afeta em nada o sabor e favorece enormemente a plasticidade fenotípica das batatas, que apresentam folhas e raízes mais fortes e crescimento rápido em ambiente controlado. Agora testaremos essa espantosa capacidade morfológica em outros ambientes. Os fungos maropânicos têm a mesma capacidade do micorriza de aumentar a absorção de água e sais minerais pelas raízes e ainda evitam o surgimento dos principais parasitas que atacam as batatas. Sei que é um exagero da minha parte dizer isso, mas não consigo parar de pensar que a fome mundial está com os dias contados. Ah!, já ia me esquecendo: estou convencido de que as batatas realmente respondem bem à música. E preferem Beethoven! Elas têm um gosto musical bem mais apurado do que o meu. Hoje meu assistente, Edgar, ajudará novamente no preparo da amostragem que enviarei para análise. Ele tem mais prática na coleta e no armazenamento dos tubérculos. Não quero que nada dê errado desta vez. 3. — Peraí, deixa ver se entendi direito: não foram os animais que transmitiram o vírus? — perguntou Garibaldo, o policial mais jovem. — É o que estou tentando colocar na sua cabeça, rapaz! Já disse mil vezes que não — respondeu Jerônimo, o outro policial. Na casa dos cinquenta, com cabelos ralos e grisalhos e pele escura, sentava no banco do motorista do Interceptor-Rex estacionado numa ruazinha qualquer com acesso à via principal. Deu uma mordida generosa no pão integral antes de

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continuar de boca cheia. — O vírus está aí no ar até hoje, mas felizmente só os AB são contaminados. — Isso eu sei. Tenho alguns conhecidos que precisam usar traje de proteção a vida toda por causa do tipo de sangue. Mas por que não podemos mais comer carne se o perigo não são os animais? Confuso isso, não? — Para vocês que nasceram depois da epidemia tudo é confuso! Um pouco antes da praga começar, há uns 30 anos, o movimento vegetariano estava em alta. Aí os zumbis surgiram e todo mundo começou a dizer que a culpa era da carne de vaca, depois do porco, depois das aves, etc., etc., etc. E apesar de só um grupo sanguíneo ter sido atingido pela moléstia, o mundo virou uma grande bagunça e aí ficou difícil desmentir qualquer boato. — E por que esse movimento vegetariano ficou tão forte naquela época? — Garibaldo esfregou a mão na nuca recém-aparada. — Ora, porque descobriram que os animais pensam e sentem como nós. — Meninos, missão para vocês nesta véspera natalina! — interrompeu a mulher de uns quarenta e poucos anos que surgiu na tela do computador de bordo. Bonita, apesar dos dentes grandes e da maquiagem carregada, tinha uma voz charmosa e provocante. — O que foi desta vez, Sônia? — perguntou Jerônimo, num tom desinteressado. Tinha acabado de lanchar e lambia os dedos. — Um registro de sequestro no Aviário Colorado, fofinho — continuou a policial, sem muita formalidade. — O suspeito é o biólogo da USP Saturnino Gentil e a vítima Godofredo Le Blair, cidadão meleagris produtivo. Estão num Palio cinza, placa NMV 1968; antes do acionamento da camuflagem de localização, seguiam pela Marginal Pinheiros no sentido Jaguaré. Isso há uns minutinhos. — Meleagris? Um peru? — indagou Garibaldo, novamente com o cacoete de coçar a nuca. — O que ele quer com um peru? — É por isso que vocês precisam pegar ele, gatinho. Pra gente descobrir... As bochechas de Garibaldo rosaram e Jerônimo riu para dentro. — OK, Sôn... Central — corrigiu, tentando ser mais formal. Em seguida ligou a sirene e o giroflex. — Estamos próximos e iniciaremos a perseguição. Câmbio final. — Será que estão indo para Osasco? — Mesmo evitando os olhos do parceiro, o temor de Garibaldo era visível. — É o que parece... Zona vermelha zumbi! — exclamou Jerônimo, arregalando intencionalmente os olhos. Assustar os novatos sempre o divertia. — Quer que eu dirija? — perguntou Garibaldo. — Não quero, não. Você passa em tudo o que é buraco e hoje as minhas hemorroidas estão me matando! Logo o Romero 3000 preto chegou à Marginal. Essas viaturas tinham o apelido de Interceptor, em homenagem ao filme Mad Max, e Rex, por causa da robusta armação de metal soldada no para-choque, que parecia a mandíbula de um dinossauro. Chamada de mata-

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defunto, essa estrutura era usada para atropelar os zumbis. O Interceptor-Rex era o veículo padrão da polícia de fronteira. — Bolsão zumbi à frente, logo após a ponte! — gritou Garibaldo, da forma como haviam lhe ensinado na academia. Firme na mão direita a pistola ponto quarenta. — Segure-se aí! — disse Jerônimo — Vou passar o mata-defunto neles! Havia uma centena de mortos-vivos à frente. A maioria com roupas esfarrapadas e encardidas, alguns nus. Todos de pele seca, retesada e cinza cadavérica. Lentamente cruzavam a avenida em direção ao leito seco do rio Pinheiros, represado para evitar uma via de acesso rápido das criaturas às zonas esterilizadas. Garibaldo nunca tinha visto tantos zumbis de perto. Na verdade, só havia se aproximado de um morto-vivo uma vez, na aula de zumbiologia da academia. Mas aquele estava preso, imobilizado numa maca e não oferecia perigo algum. Ele e os colegas até fizeram piadinhas com a criatura, comparando-a com o sargento Diniz, o apático e magricelo professor de infectologia. Mas o impacto dos primeiros zumbis contra o mata-defunto mexeu com os nervos do jovem policial. Uma coisa era um zumbi amarrado numa cama, outra bem diferente era ver um punhado deles correndo em direção ao Interceptor-Rex como predadores atrás da caça e ouvir o baque seco de seus ossos sendo violentamente quebrados. E quanto mais o veículo avançava, mais zumbis vinham ao encontro. E cada vez mais enraivecidos. Garibaldo se sentia o invasor agora, o invasor de um mundo zumbi. E apesar de tão despersonalizados, tão mortos, havia alguma vida naqueles seres abomináveis. Um resquício da vida que tiveram um dia. Afinal, já tinham sido homens, mulheres, crianças. E olhar para as crianças era o mais difícil... Nem mesmo quando o sangue negro e semicoagulado dos zumbis espirrou e embaçou o para-brisa da viatura, essa cena se apagou da cabeça de Garibaldo. No trevo sobre o rio Pinheiros, o Interceptor-Rex parou. — O que foi? — perguntou Garibaldo, que ainda se sentia aturdido pela experiência com os zumbis. — O biólogo não veio por aqui — disse o policial veterano, pensativo. — Por que diz isso? — O bolsão zumbi... os atropelados... Você viu algum atropelado? Algum atropelado antes de começarmos os atropelamentos? — Não — respondeu Garibaldo, sem entender aonde Jerônimo queria chegar. — A avenida estava limpa. — Então, isso prova que ele não passou por lá. — Mas realmente seria muito difícil atropelar um bando de zumbis com um Palio. — Mais uma razão para ele não ter passado por lá — Jerônimo parecia satisfeito com suas deduções lógicas. — Mas se ele não foi para Osasco, para onde foi?

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— Não sei... Mas ele é biólogo da USP, não? — A Cidade Universitária?! — A incredulidade de Garibaldo fez seu cacoete voltar. — Você acha que ele foi para lá? Mas aquilo está abandonado há anos! — E por isso é um bom lugar para se esconder. 4. (Registro feito há três dias.) Aconteceu de novo, as amostras estragaram! Irritado, tentei responsabilizar Edgar, mas sei que a culpa não é dele. Pelo menos não diretamente... É difícil explicar isso, mas a simples presença do meu assistente parece influenciar a cultura de batatas, que começa a sabotar o meu trabalho. Digo isso porque a imunidade delas aos parasitas cai... deliberadamente. Sim, sei que é um absurdo essa ideia, a de que existe uma senciência por trás disso, mas como evitá-la? Afinal, só a minha intenção de chamar Edgar para uma nova coleta de batatas já deixa as folhas murchas, empalidecidas... E quando começamos a coleta, elas se suicidam no que parece um ato final e desesperado para mostrar revolta ou para poupar o restante da plantação. Sim, pode ser uma atitude extrema de sacrifício pelas demais batatas! Mas o que seria isso? Um sexto sentido das plantas? A evolução teria dado a elas a capacidade de perceber as intenções dos animais? De ler seus pensamentos? Uma percepção extrassensorial? Meu Deus, eu não sei mais o que pensar... 5. — Deram uma olhada no Instituto de Biologia? — perguntou Sônia da Central. — Sim, foi um dos primeiros lugares onde procuramos — respondeu Garibaldo. A dupla de policiais estava a horas percorrendo o campus e a noite logo cairia. — E o de Biociências na Rua do Matão? — Também. E a rua está um matão só mesmo. — O jovem tentou fazer graça, mas o tom de voz saiu errado. — Aliás, toda a Cidade Universitária está tomada pela vegetação, o que atrapalha bastante nosso trabalho. Sem contar que isto aqui é bem grande! Seria melhor se tivéssemos reforços... — Eu sei, gatinho lindo, mas as outras unidades estão ocupadas no momento — lamentou Sônia. — Além do mais, o palpite de Jerônimo pode estar errado. — Tem que estar certo — interveio o velho policial. — O biólogo seria louco se fugisse para a ZVZ. — Mas ele está louco, fofinho. Está completamente pirado! Câmbio final. — Como pode ter tanta certe... — Jerônimo não terminou a pergunta. Sônia já havia desligado. Os policiais se entreolharam desconfiados.

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Seguiu alguns minutos de silêncio. E enquanto o Interceptor-Rex percorria as ruas esburacadas, seus dois ocupantes procuravam algum sinal do biólogo. — Vamos lá, o que é que foi? — disse Jerônimo, quebrando o silêncio. — Acho que a Central está omitindo informações — respondeu Garibaldo. — Não é disso que eu estou falando! Você está com cara de bunda desde que a gente passou por aqueles zumbis. — Hã...?! Mas... — Garibaldo se atrapalhou — É só impressão sua. — Tem certeza? Por um momento pensei que esse trabalho fosse pesado demais para você. — O que é isso! — Garibaldo exibia agora um sorriso amarelo. Em seguida fechou o rosto, respirou fundo e suspirou baixinho. — Tinha uma criança... — O quê? — Tinha uma criança... Tinha uma menina com os zumbis. O mata-defunto pegou ela... — Garibaldo estava cheio de reticências. Jerônimo parou o carro. — Meu jovem, aquilo não era uma menina. — Eu sei, mas já foi um dia. Já foi uma menina cheia de sonhos. E o maldito vírus zumbi acabou com todos esses sonhos. — Os olhos do jovem se encheram de lágrimas. — Vou repetir: aquilo não era uma menina. Era uma coisa que queria apenas comer a sua carne. Aquilo era menos que um animal. Se você não pensar assim, rapaz, não vai aguentar este trampo por muito tempo. Agora se recomponha e concentre-se na missão, OK? Até porque estou vendo o veículo do biólogo atrás daquelas árvores... — Você está falando sério? — Garibaldo estava um pouco envergonhado e secava as lágrimas com as costas da mão. — Sim, estou — disse Jerônimo, com os olhos semicerrados e apontando para três patas-de-vaca — Bem ali, quase no muro. — É verdade! O Palio cinza! — Vamos acabar logo com isso, então? — O velho policial checava o moral de Garibaldo. — Vamos! — Você está bem mesmo? — Sim. Vamos lá! — O sorriso de jovem agora era sincero e confiante. Desabafar fezlhe bem. Os dois desceram da viatura com as armas em punho e, em surdina, dirigiram-se para a construção mais próxima do carro do biólogo. Era um prédio de dois andares, também tomado pelas plantas. Mesmo assim, as letras garrafais na fachada estavam bem visíveis: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. — Apesar de assustador, principalmente agora que está escurecendo, este campus poderia ter servido de refúgio quando a praga começou. Até notei que as paredes ao redor do complexo foram reforçadas... — comentou Garibaldo.

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— É. Só que tem gente que acha que tudo começou aqui... Lá dentro, numa cozinha escura, bagunçada e empoeirada, jazia o corpo decapitado e assado de Godofredo, com farofa, batatas transgênicas e pedaços de laranja, numa travessa sobre a mesa improvisada. E Saturnino apreciava a terrível cena com olhar de satisfação... Não esperaria até a noite. Sabia que estava sendo procurado. Acendeu duas velas e sentou-se. Mas quando estava prestes a decepar uma coxa do pobre e morto cidadão meleagris lembrou-se de que havia esquecido o vinho tinto no porta-malas do carro. Iria buscar pois, para ele, consumar o ritual macabro sem a bebida não teria a mesma graça. Para Garibaldo, a entrada do prédio de veterinária, escura e com todas as vidraças quebradas, era bem sinistra. — Será que o biólogo está tão maluco que trouxe o peru aqui para tratá-lo? — falou baixinho. — Era só o que faltava — respondeu Jerônimo também num sussurro. Pisava com cuidado na grama alta que saía até das frestas na calçada. Nisso, Saturnino surgiu das sombras com a faca que ia fatiar Godofredo. — Largue isso! — ordenou Jerônimo aos gritos, apontando a pistola para o biólogo. — Vocês não entendem? — disse, com um sorriso doentio e olhos alucinados. Ergueu a faca e continuou: — Nós vamos todos morrer... — Você com certeza vai se não largar essa faca agora mesmo! Saturnino olhou pensativo para o objeto que segurava, deu duas piscadelas e deixou escorregar da mão lentamente. A faca mal caiu no chão e Garibaldo atacou o biólogo por trás, algemando-o. — Nós vamos todos morrer de fome mesmo, sabiam? — disse calmamente, como se estivesse falando com amigos, e enquanto era levado para o Interceptor-Rex — O que eu fiz com o peru não é nada... — Pelo jeito Godofredo dançou — deduziu Jerônimo. — Quem vai lá pegar o corpo? — Eu é que não entro aí sozinho! — sentenciou Garibaldo. — Pode ter zumbis lá dentro. — Então vamos os dois. O biólogo não vai para lugar nenhum mesmo. — Minha nossa! Que cheiro é esse? — disse Garibaldo. O odor de carne queimada empesteava todo o local do crime. — Pare com isso, meu jovem! — censurou Jerônimo, surpreendentemente — O cheiro está muito bom! — Foi o que eu disse... Gargalharam misteriosamente, inconvenientemente. Depois, um silêncio expectante.

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— Isso é mórbido... — por fim, pensou alto o jovem policial. — Mórbido? Na verdade esse aroma me lembra da ceia de Natal que a minha mãe fazia... — Jerônimo estava inacreditavelmente saudoso! — Nunca comi carne. Mas esse cheiro... Outro silêncio expectante. Olharam para os restos mortais de Godofredo uma vez mais, como se velassem um corpo. Mas não era esse o propósito... Pensamentos horríveis pululavam na mente de ambos. — Acho que é porque hoje ainda não almocei... — Garibaldo procurava desculpas enquanto observava um gomo de laranja deslizar lentamente do peito oleoso do cadáver para a farofa. — Mas, só por curiosidade, que gosto tem? — É uma carne tenra e saborosa — disse Jerônimo, palavra por palavra, como se hipnotizado. Mais um silêncio expectante... — Se você for, eu vou... — fechou Garibaldo, firmando um pacto sinistro. Meia hora depois os policiais abriram a porta de trás da viatura. Jerônimo ainda tirava um naco de carne dos dentes com a língua! — Seus maníacos! — gritou Saturnino, ensandecido — Você comeram tudo?! — Tome isto e cale a boca! — Jerônimo jogou uma coxa de Godofredo nas mãos algemadas do biólogo. — E coma logo, antes que eu mude de ideia! Aliás, as batatas não estavam boas. Os olhos de Saturnino saltaram, o sorriso sardônico voltou e a boca se encheu de água. Parecia um cão raivoso! Abocanhou a coxa como se fosse o último punhado de comida na Terra. 6. (Último registro. Ontem.) Batatinhas infernais! Vocês viram o que fizeram comigo? Por que resolveram arruinar minha vida desse jeito? Disseram que vocês não servem nem para dar aos zumbis! E agora sou a maior piada da comunidade científica! Vão ouvir Metallica o dia inteiro por isso! Afinal o que vocês são, suas desgraçadas? Sencientes? Inteligentes? Mas onde fica o sistema nervoso de vocês, hein? Por mais ridículo que pareça, começo a acreditar no que disse Cleve Backster sobre a inteligência das plantas, quando testou aquela Dracena massangeana com um polígrafo, no livro A vida secreta das plantas e até nos estudos de Jagadish Chandra Bose. Não acredito que o maropan seja a causa dessa inteligência. Os fungos devem ter apenas acentuado essa capacidade de vocês. E o que planejaram agora? E o que vão fazer comigo? Matar-me?! Querem me fazer de adubo? Inteligentes... Sim, inteligentes. Claro, isso explicaria tudo... Explicaria tudo bem demais. Terrivelmente bem demais...

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Inteligentes... Mas, Deus, eu estava tão absorvido pelo problema das batatas transgênicas que só agora percebo a gravidade da situação. Não, vocês não podem ser inteligentes! Sabem as consequências que isso traria para o mundo? Meu Deus do céu... Não, não...! 7. — A Central está chamando! — Garibaldo, ressabiado, apontou para o ícone piscando na tela. — Atenda, ora! — reclamou Jerônimo. — E se o biólogo disser alguma coisa? — Que credibilidade esse maluco tem? Além do mais, ele nem pode ouvir nossa conversa com este vidro à prova de balas. — Jerônimo bateu com o nó do dedo no vidro grosso às costas. — Sem contar que ameacei largá-lo na ZVZ se der com a língua nos dentes. Garibaldo lançou-lhe um olhar de reprovação. — O que queria que eu dissesse para ele? — perguntou o velho veterano — Vamos, atenda logo! — Olá, meninos! — cumprimentou Sônia — Boas notícias? — Sim — respondeu Jerônimo —, capturamos o sequestrador. — Maravilhoso! E a vítima? — Quase completamente canibalizada. — Que horror! — Sim, horrível — concordou Garibaldo. — Mas sobrou material para a perícia. — Puxa, ele comeu um peru inteiro... — Sônia pensou alto e fez um bico no esforço de fechar a boca de dentes avantajados. — Agora, Sônia, abre o jogo: o que a Central está escondendo da gente? — Jerônimo lançou um olhar fulminante para a bela senhora. — Escondendo? A Central de Operações? Ah, já sei! Desculpem-me, rapazes, mas o pessoal que trabalhava com o biólogo solicitou que mantivéssemos a causa de seu comportamento alterado em sigilo. Temiam que, se essa informação caísse nas mãos da imprensa, provocaria mal-estar na população. Mas acabou que os repórteres não apareceram por aí e a informação escapou de qualquer jeito mesmo... Os policiais ficaram boiando. — Calma, queridinhos! — ela continuou. — Já saiu até na Globo. Toma aí o link. — “Índia registra primeiros casos de contaminação zumbi em indivíduos do grupo B” — leu Jerônimo. — Opa, mandei o link errado! É outra matéria. Vou abrir o link aqui. Vejo vocês na central para a troca de presentes. Beijinhos e feliz Natal!

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Abriram o link e ouviram a voz do repórter do telejornal: “Nesta manhã, o biólogo da USP Saturnino Gentil, de quarenta e cinco anos, num acesso de loucura, incendiou a horta do laboratório em que trabalhava, após destruir com uma foice a nova variedade de batatas transgênicas que desenvolvia. Vejam as imagens das câmeras de segurança do laboratório. “Não satisfeito, o biólogo ainda arrombou uma aviário e sequestrou o cidadão meleagris produtivo Godofredo Le Blair. Em seguida fugiu, acredita-se, para o município de Osasco. As buscas ao sequestrador e ao refém continuam. “O renomado biólogo Saturnino Gentil se dedicava ao estudo de batatas gigantes há quase cinco anos, como parte de um projeto da ONU para erradicação da fome causada pela infestação zumbi e pela proibição do consumo de carne. “A resposta para o quadro psicológico alterado do biólogo pode estar no registro pessoal que mantinha. Apesar dos resultados negativos, os peritos que verificaram os documentos dizem a pesquisa corrobora em muito outros estudos, principalmente do Conselho Federal Ético para Biotecnologia em Não Humanos, que afirmam que as plantas sentem e pensam. Assim, todos os vegetais passariam da categoria de Seres de Dignidade, já superior aos zumbis, para o de Cidadãos Produtivos.” — E essa agora? — Jerônimo estava surpreso. — Mas o que a gente vai comer? — perguntou Garibaldo, temendo uma resposta, fosse ela qual fosse. Antes que Jerônimo arriscasse dizer qualquer coisa, o jovem policial emendou uma sugestão. Uma que lhe escapou da boca e em que já se arrependia de ter pensado: — Carne de zumbi?

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PASSAGEIRO ESPECIALMENTE CONVIDADO

| s e r a v l A | n e |Kar

Uma mãe amorosa e determinada tenta dare aos filhos o present ria e d o p e u q o s o i c e r p s i a m imaginar e para isso ia rp epara uma deliciosa cseer de Natal que promete inesquecível.

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O cemitério estava silencioso. O silêncio era mesmo o som mais apropriado para esse tipo de lugar. Sofia estava parada diante da campa de Miguel. Era um túmulo simples, apenas um buraco com uma pedra negra e o nome dele em letras prateadas, além de uma estrelinha para a data de nascimento e uma cruz para a data de falecimento. Era um daqueles modernos cemitérios verticais. Os mortos são tantos que a terra se tornou insuficiente. É preciso empilhálos como caixas. Ela não tinha o que reclamar do lugar. Era sóbrio, limpo e tinha uma ótima vista para a cidade. A lápide de Miguel ficava no décimo andar, primeira fileira de baixo para cima, de modo que ela e os dois filhos, Diogo e Artur, podiam se sentar no chão e conversar com ele. Se é que falar com uma pedra poderia ser chamado de conversa. Mesmo assim, Sofia não impedia seus filhos de fazerem isso, especialmente Artur, o mais novo, de nove anos. Ele tinha apenas seis quando o pai se fora, morto em um acidente de trabalho. Seu rosto ficara desfigurado e os filhos nem puderam dizer adeus como gostariam. Miguel fora velado em um caixão fechado, para ninguém ver seu rosto. Bem, isso não era de todo verdade. Mas apenas Sofia sabia disso. Era melhor assim. Sofia não tinha remorsos, apesar de ter doído vê-los desconsolados daquela maneira. Mas ela sabia – e logo eles saberiam também – que aquele não fora um adeus de verdade. Ela ficou observando os filhos em silêncio. Diogo, o mais velho, que completaria dezesseis anos no próximo ano, era o típico garoto que desejava ser mais durão do que realmente era. Ele olhava fixamente para o nome do pai gravado na pedra, piscando várias vezes, alisando as costas do irmão pequeno com doçura e cumplicidade. Sofia não o via chorar a morte do pai desde o enterro, havia três anos. Mas ela sabia muito bem o quanto o filho sentia a falta de Miguel, principalmente agora, na fase tão difícil da adolescência. Ter apenas uma mãe nessa época de descobertas talvez não fosse o suficiente para um garoto. Já Artur, tão jovem, não tinha vergonha de chorar. Talvez fosse a idade, talvez sua personalidade dócil e sensível. Miguel costumava dizer que ele era um menino especial. Seja lá qual fosse o jeito de seus filhos, Sofia sabia muito bem que eles sofriam. E naquela época tudo se tornava muito pior. Mas ela estava muito perto de acabar com toda aquela dor. Continuou olhando para o túmulo, aquele que representava uma mentira. A mentira que os salvaria. Faltava um dia para o Natal.

Ela passou a noite em claro. Mais uma. Eles moravam em uma casa com porão. No Brasil isso não é nada comum, mas Miguel construíra-o para os dois. Era perfeito para o laboratório. As experiências em que eles trabalhavam não poderiam ser realizadas na superfície, muito menos perto de seus filhos. E tampouco poderiam realizá-las nos laboratórios da universidade. Especialmente aquela. Por isso, depois de dar boa noite aos filhos, prometendo um Natal inesquecível, como eles não tinham há três anos – na verdade, eles mal comemoravam o Natal, pois não havia nada ser comemorado –, Sofia se trancou em seu laboratório particular. O mesmo que dividira por tanto tempo com Miguel. Ainda o fazia, para falar a verdade. Ela sabia que ele aprovaria o que ela estava fazendo. Mais do que isso, ele ficaria orgulhoso. E agora Sofia estava tão próxima que quase conseguia ouvir novamente sua voz,

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sentir seu cheiro e sua presença. Só mais um pouco, Miguel. Só mais um pouco. Logo estaremos juntos novamente. Ela pingou o último agente químico que faltava. A mistura, antes de cor amarelada, tornou-se escura e viscosa, negra como lodo. Sofia ergueu o béquer na altura dos olhos. Era impossível enxergar qualquer coisa ali. Era um líquido que ela jamais tinha visto, algo borbulhante e pulsante, quase vivo. Depois de tanto tempo, ela finalmente encontrara a solução do mistério. Era aquilo que ela procurara por todos aqueles anos. As pesquisas começaram antes mesmo da morte de Miguel – e foram, talvez, o motivo de sua partida –, mas Sofia acelerouas depois disso. O acontecimento fora quase como um catalisador para sua descoberta. Ela não poderia ter se sentido mais motivada. Ela sorriu, talvez seu maior e mais sincero sorriso depois de tantos anos. Sentiu as lágrimas molharem os olhos. A primeira vez desde que Miguel se fora. Parecia que ela tinha guardado todas elas para aquele momento, quando o veria novamente, quando tudo teria valido a pena. Todas as noites mal dormidas. Todo sofrimento. Toda dor. Sofia pousou o béquer na mesa de aço. Pescou uma seringa nova e limpa na gaveta e, com ela, sugou parte do líquido negro. Foi preciso uma seringa grande e de ponta grossa, já que o líquido era tão viscoso quanto petróleo. Ela bateu duas vezes na ampola, observando a substância pulsar. Quase podia ouvi-la respirar, sentir, pensar. A mulher caminhou até o enorme armário da parede. Havia ali uma única gaveta, larga o suficiente para que uma pessoa se esgueirasse lá dentro. Ela aumentou a temperatura e abriu a gaveta; um vapor de gelo subiu até o teto, banhando seu rosto em ar frio. Ali, dentro daquele freezer, fora a morada final de seu companheiro, seu maior rival e parceiro, seu grande amor.Mas não mais. Sofia sentiu as lágrimas se tornarem mais grossas, abundantes, enquanto alisava com ternura o rosto gelado de Miguel. Ele tinha uma expressão inquieta no rosto, como se mal pudesse esperar para retornar e encontrá-la novamente. Quando ele acordasse ficaria orgulhoso. Era a sua pesquisa afinal, e Sofia a concluíra com êxito. Era o que ele queria. Seria o melhor dos natais. Sofia acariciou devagar o peito nu do marido, carinhosamente. Sorriu. Logo estaremos juntos de novo. Com um algodão umedecido, ela limpou a pele, já descongelada depois de um tempo fora da temperatura baixa do freezer. Faltava pouco agora. Ela prendeu a respiração, fechando os olhos por um instante, imaginando cenas de um passado que lhe fora roubado, da família que formaram um dia... Tudo poderia ser seu novamente, bastava um único movimento. Sofia só respirou novamente quando injetou o líquido negro no corpo de Miguel. Agora eles voltariam a respirar, juntos.

— Eu não entendo porque você está fazendo tudo isso, mãe... — Diogo reclamou num sussurro, segurando uma enorme travessa de arroz com passas. Ele mantinha os olhos no irmão, tomando cuidado para que ele não o ouvisse. Artur estava perfeitamente feliz, dispondo talheres sobre a mesa e arrumando-os com cuidado. — Por que voltar a comemorar o Natal agora?

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A mãe devolveu-lhe um sorriso misterioso. Ela cuidava com dedicação de um frango assado com batatas no forno; só preparara esse tipo de prato quando o pai deles estava vivo. Diogo não via sentido em fazer isso agora. — Porque nós merecemos essa felicidade, Diogo — Sofia disse, sorridente como ele não a via há anos. — Nós somos uma família e vamos, sim, comemorar o Natal. Olhe para seu irmão, ele está tão feliz! Isso era verdade. Artur realmente estava contente. Se aquela encenação toda era para fazê-lo feliz, talvez Diogo engolisse sua inquietação e fingisse estar tudo bem até que finalmente acreditasse na mentira. Ele depositou a travessa quente de arroz na mesa. Ajeitou um pano de prato embaixo dela e, quando o fez, percebeu algo errado. — Artur, seu cabeção, colocou quatro pares de talheres na mesa e quatro pratos. Somos só três, seu bobo. O menino ergueu os olhos para o irmão e emburrou a cara. — Bobão é você, Diogo! Eu coloquei certinho! Não foi, mãe? Sofia estava trazendo um pote cheio de maionese e colocando-o sobre a mesa quando o filho menor puxou a barra de sua saia e perguntou novamente: — Não foi, mãe? — Foi sim — ela respondeu com naturalidade, o mesmo sorriso de antes no rosto. Diogo não sabia o porquê, mas isso estava começando a deixá-lo inquieto. Não era um sorriso normal. Era sinistro. — Pedi pro Artur colocar quatro pares de pratos e talheres e ele fez direitinho, olha só! — Ela bagunçou o cabelo do filho, que sorriu de orelha a orelha e mostrou a língua para o irmão mais velho. — Mãe! — Diogo se virou para Sofia, franzindo as sobrancelhas. — Por que você está fazendo isso? O que significa? — Significa que este será o melhor Natal de todos! — ela respondeu, usando novamente aquele sorriso que incomodava Diogo. — E por falar nisso, a ave está quase pronta! Ela mandou que eles se sentassem e esperassem. Alguns minutos depois, tirou a grande fôrma de alumínio do forno. O cheiro era realmente delicioso. Diogo sentiu saudade dos Natais de quando o pai estava vivo. Será que conseguiriam comemorar novamente, mesmo com aquele lugar vazio à mesa? Ele olhou para o irmão, que tinha os olhos brilhantes, quase hipnotizado pela comida. Sofia colocou o frango na mesa e trouxe o garfo grande e a faca afiada que o pai usava para fazer as honras no Natal. O garoto se levantou, oferecendo-se para ajudar a mãe. Ela, porém, espetou cuidadosamente o garfo e a faca na ave e falou para o filho se sentar. — Meninos, tem uma pessoa que vai passar o Natal com a gente! — Quem? — Artur olhou para os lados como se esperasse que alguém escondido atrás da geladeira pulasse e dissesse “oi”. — Vocês vão ver! — a mãe respondeu animadíssima, juntando as mãos e olhando de um filho para o outro. Diogo notou que os olhos dela estavam brilhantes e molhados. — Mãe... — Eu vou buscá-lo! Só esperem, meninos! Não comam nada! — ela recomendou, especialmente para Artur, que já estava tentando arrancar uma lasca da pele do frango. Sofia

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caminhou até a porta da cozinha e olhou com carinho para os dois filhos. — Vocês vão ver, meninos... Vai ser tudo como antes. Nós vamos ficar bem. Nós vamos ficar bem, ela tinha dito. Diogo jamais esqueceria essa frase. Os irmãos esperaram por vários minutos, olhando de um para o outro por cima da grande ave de Natal assada. O cheiro era insuportavelmente delicioso e até mesmo Diogo teve que se controlar para não começar a cortar a droga do frango para acalmar o estômago. Artur também estava impaciente; começara a bater o pé no chão como sempre fazia quando se sentia entediado. — A mãe tá demorando, né? —– ele falou de repente. Diogo respondeu com um resmungo. Estava olhando para a porta da cozinha com atenção, tenso. Quem a mãe teria ido buscar, afinal? Por que todo aquele mistério? — Tô com fome — Artur insistiu. — A mãe falou pra esperar! — Mas tô com fome! Quando Diogo estava prestes a se levantar e procurar a mãe, os dois ouviram passos na sala. Pareciam arrastados, lentos. Artur espichou a cabeça pela porta para enxergar. Já Diogo, de onde estava sentado, não conseguia ver direito. Ele distinguiu a silhueta da mãe, amparando alguém com o braço, uma sombra indistinta, alta, mas um tanto inclinada, como se sentisse dor. Foi então que Artur gritou: — PAI! Diogo levantou depressa, derrubando a cadeira e recuando até a parede da cozinha quando viu a pessoa que a mãe trazia junto a si. Talheres caíram com estardalhaço no chão, a cadeira produziu um ruído seco ao bater no piso frio, mas o próprio Diogo não conseguiu produzir nem um único som. Ele só se espremia na parede gelada, cada vez mais, com se quisesse transpô-la, afundar-se nela e sumir. — PAI! PAI! — Artur continuou gritando e correu para abraçar a figura de Miguel. Sofia estava sorridente e encarava Diogo com uma expressão de confusão. — O que foi, filho? Não está feliz? É seu pai, vivo, conosco! Não, aquele não era seu pai. O que Diogo via, e ninguém mais parecia enxergar, era o corpo do pai inexplicavelmente de pé. Ele tinha os ombros caídos, os joelhos quase cedendo com o peso, olhos vermelhos e mortiços, o cabelo ralo e pálido. Sua pele tinha uma aparência esquisita, meio azulada, meio escura, com um aspecto de carne apodrecida; em alguns pontos, ela tinha caído, revelando os músculos vermelhos por baixo dela. Mas o pior era a boca. Estava caída, amortecida. Ele babava. Os dentes apodrecidos estavam arreganhados, como presas à mostra. E então veio a cena que Diogo encontrava todos os dias em pesadelos. O pai, ou o monstro que tomara seu lugar, finalmente se dera conta de que havia um menino abraçado a suas pernas moles e finas. Ele cravou os dedos longos com unhas pútridas nos ombros de Artur, abaixando-se lentamente, produzindo um ruído rançoso ao mesmo tempo em que expunha os dentes próximos à pele do menino. Aquilo era loucura. Diogo não pensou duas vezes. Pulou sobre a mesa, chutando pratos e fazendo voar longe travessas de comida fresca. Ele se jogou na direção do irmão, empurrando-o. Ouviu

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algo se rasgar, como um tecido, mas continuou segurando Artur entre os braços, puxando-o para longe daquela criatura. Foi quando começou o pandemônio. Artur gritou. Diogo baixou o olhar e viu que o menino estava sangrando; havia um corte feio e enorme desde seu ombro até o cotovelo. Com horror, o garoto foi capaz de ver os ossos do irmão, uma massa assustadoramente branca em meio a todo aquele vermelho que empapava sua camisa. Artur chorava e urrava de dor. Ao mesmo tempo, aquilo estendia as mãos pegajosas na direção dos garotos. — VÁ EMBORA! – Diogo gritou, sabendo que era inútil. Ele viu a mãe, parada logo atrás do pai, pálida e paralisada, tão pequena que parecia uma criança perdida. — MÃE, FAÇA ALGUMA COISA! — Não, não era assim que eu queria... Pensei que viveríamos como antes... Não... — Ela balbuciou palavras sem sentido enquanto as lágrimas vertiam sem parar. Diogo ergueu Artur no colo, sentindo o sangue transbordar em sua camisa, completamente apavorado. O irmão desfalecera pela dor e o sangue perdido. O pai ainda avançava, esticando os braços, produzindo aquele ruído enrolado e rouco, um grunhido aterrorizante. Diogo recuou, ainda com o irmão nos braços, procurando algo, alguma arma que pudesse utilizar, qualquer coisa que ao menos distraísse aquela coisa que possuíra o corpo do seu pai. O corpo do seu pai. Como viera parar ali? — O que você fez, mãe? — Diogo perguntou, engasgado, cheio de horror, finalmente caindo em si. Ele sentia o sangue quente do irmão em seus braços, seu corpinho pequeno e frágil desfalecido e imóvel. — O que você fez? — Miguel... — ela chamou com a voz fraca. — Não, Miguel, eu não trouxe você para isso... Foi então que ela se jogou em cima do marido em um abraço doloroso. O pai se virou para ela, babando e urrando, e a abraçou também. Por um instante, Diogo apenas viu os dois, como eles eram realmente, um casal que um dia se amou, os seus pais. Mas logo o abraço se tornou vermelho e o pai beijou o pescoço da mãe em uma mordida feroz. — Mãe... — Miguel... Ah, Miguel... — ela sussurrava entre lágrimas. A última lembrança que Diogo teve dos pais foi a imagem daquele abraço mortal. Ele deixou a casa, correndo alucinado por ruas escuras e vazias, passando por casas iluminadas por luzes coloridas e figuras sorridentes e vermelhas do Papai Noel. O burburinho e as vozes felizes sobrepunham a seus gritos de horror e desespero. Ele correu e correu, gritando por ajuda, batendo na porta das casas até que alguém o acudiu. Ele pousou o corpo ensanguentado e frágil do irmão no asfalto negro, que logo se tornou vermelho. Ele ainda tinha os olhos fechados. Não poderia, não poderia estar morto... Por favor, não esteja morto. Uma ambulância encheu a rua de som e luzes. Diogo observou, desesperado, os paramédicos colocarem seu pequeno irmão em uma maca. Quando um deles tentou imobilizálo, Artur acordou. Nós vamos ficar bem, a mãe deles dissera. Mas os olhos de Artur já estavam vermelhos como os do pai.

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| s a i D | s e l r a h C | Sozinho nas montanuhmas na noite de Natal, se sobrevivente do apocalirpta zumbi escreve uma ca para improvรกveis descendentes. 36


Em alguma montanha de Minas Gerais, 28 de dezembro de 2015 “Meus queridos filhos, netos, bisnetos e descendentes em geral, Em breve fará um ano que meu mundo acabou, mas continuo vivo. Olhando para o que já enfrentei, não sei dizer como e por que ainda estou vivo. Sorte? Providência divina? Acaso? Já pensei em todas essas possibilidade e algumas outras, mas não cheguei àa conclusão alguma; nem sei se um dia chegarei ou mesmo se isso importa. Engraçado como minha vida se resumiu de uma hora para outra a duas coisas:, incertezas e risco iminente de morte. E pensar que todas as dezenas de preocupações mundanas que me atormentavam, de uma hora para a outra, perderam a essência e a razão de existir. É claro que vocês já sabem como tudo aconteceu e como começou, com certeza muito melhor que eu, mas me dou o direito de contar minha versão. Afinal de contas, sou um sobrevivente, um veterano dessa guerra realmente mundial. Nossa, sinto-me como uma daquelas múmias egípcias, testemunha de um mundo que não existe mais... Mas, afinal de contas, não é isso mesmo que sou? Pouco antes do Natal de 2013, a tão profetizada, romantizada, desacreditada e temida praga incontrolavelmente mortal surgiu na China (tinha de ser de lá) e tomou rapidamente o mundo. Algo com sintomas como de catapora com resfriado forte que causava morte súbita apenas alguns dias depois de contraída. Gente caindo morta como moscas pelo mundo todo, nos aeroportos, ruas, casas sem que nunguém pudesse fazer nada. E então os mortos se reergueram, sedentos de carne humana, irracionais, selvagens, agressivos. O mundo se tornou uma tela de cinema, um seriado de zumbis que parece não ter fim. O mundo acabou no começo do novo ano, rápido, muito mais rápido que se imaginava. Os sobreviventes precisavam de armas para se defender. Se nos Estados Unidos isso era fácil, afinal de contas por lá todo mundo tinha armas de fogo, na maior parte do mundo tudo foi muito mais difícil. No Brasil encontrar armas é difícil, munição então é coisa rara. Quem encontra e tem, evita usar para ter quando realmente precisar. Espadas samurai? Não, apelamos para os bons e velhos facões de cortar mato, com sorte um daqueles mais longos de cortar cana-de-açúcar … sendo que foices também são muito práticas quando se aprende a manejá-las. Sou sobrevivente porque sou imune. Teria sido muito mais fácil se tivesse sido contaminado, mas já que não fui não me deixarei derrotar tão fácil, afinal de contas, nunca fui desistir sem antes tentar de tudo para evitar isso … nossa, como hoje isso soa ao mesmo tempo tão verdadeiro e ao mesmo tempo tão irreal. De minha vida antes da praga ficaram apenas as lembranças que, sinceramente, não gosto de trazer à tona porque preciso sobreviver e lembranças matam. Já vi muitos se entregarem por conta de lembranças, outros tantos morrerem por idiotices causadas por lembranças. Se um dia isso terminar, lhes contarei minhas lembranças. Tenho várias boas bem guardadas para isso, mas ficarão assim por enquanto. Em tempo, não me culpem por ficar indo e voltando de assuntos diversos. Se estivessem sozinhos nessa casinha abandonada no meio do campo numa noite quente de verão, lua cheia alta no céu, jazz tocando do tocador de MP3 (o mundo pode ter acabado mas não

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voltamos totalmente à idade da pedra), tendo como companhia uma boa garrafa de vinho depois da melhor refeição em meses, tentando escrever uma carta para futuros filhos, netos, descendentes que talvez nem existirão, vocês também ficariam zanzando de assunto em assunto. Pois bem, voltando à minha história trágica. Morava e trabalhava na enorme São Paulo, sim, exatamente onde hoje somente existem escombros radioativos depois da bomba nuclear que usaram para esterilizar uma das maiores cidades do mundo, juntamente com o Rio de Janeiro. Minha sorte foi ter saído de lá antes para ficar com minha família no interior. Mesmo tendo me antecipado, sair de carro se mostrou impossível, já que muita gente teve a mesma ideia. Mas não estou vivo à toa, fui esperto e não levei muita coisa. Quando não foi mais possível seguir de carro, na primeira oportunidade roubei uma moto e mesmo sem nunca ter andado em uma me livrei da maldição das estradas congestionadas. Roubar sempre foi errado e deve continuar no futuro civilizado que espero que seja o de vocês, mas em épocas de grandes turbulências isso se torna uma necessidade … e convivo bem com isso. Roubei, roubo e com toda certeza farei isso muito mais vezes do que gostaria, mas não de forma indiscriminada, tenho uma ética para esse assunto … que também não falarei dela agora porque perderei o fio da minha história, ainda mais que acabei de abrir a segunda garrafa de vinho. Pois bem, roubei uma moto e segui meu caminho em meio ao caos reinante. A desinformação era grande, o medo maior ainda, o desespero avassalador. Também não era para ser diferente. Imagine estar dentro de um carro fugindo com sua família e do nada alguém morre lá dentro. Apesar de demorar em média doze horas para os mortos retornarem como zumbis, tempo mais que suficiente para queimá-los, não era muita gente que aceitava fazer isso com pais, filhos, esposas, noivos, namoradas. Está aí uma coisa interessante, como acabar com um zumbi. Muita gente morreu … e ainda morre … por não saber fazer isso adequadamente. Basicamente, há três tipo de zumbis: 1 - Os recém reanimados, que são os mais fortes, ágeis e agressivos; 2 - Os de meia-idade, que já não são tão ágeis, mas continuam fortes e agressivos; 3 - Os velhos, que são apenas agressivos. O pior é que os zumbis velhos fazem tantas vítimas quanto os recém-reanimados, exatamente porque são subestimados. O cristão vê aquele corpo decomposto e ressecado, acha que não é tão perigoso e quando vê já foi mordido. Nossa, perdi a conta de quantos idiotas morreram assim. Os filmes, seriados de TV, livros e quadrinhos estavam certos, o cérebro é o ponto vital dos zumbis. Quer matar um zumbi, dê um jeito de destruir seu cérebro, seja com um tiro, esmagamento ou cortando um pedaço fora. Note que apenas separar a cabeça do corpo não resolve, ela ficará lá tentando morder algum idiota … e o pior é que consegue. Meu Deus, é muito humilhante morrer mordido por uma cabeça sem corpo … mas quem morre assim merece! É preciso destruir o cérebro! Matar não é fácil, seja alguém vivo ou um zumbi. E não refiro ao aspecto moral ou espiritual da coisa, mas prático mesmo. É como atirar. Quem nunca atirou acha que é só apontar a arma, apertar o gatilho e acertar o alvo … nada mais enganador como descobriram muitos que sem nunca terem atirado na vida conseguiram uma arma para tentar se defender

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dos zumbis … não conseguiram. Voltando à matança, a dificuldade está em efetivar o ato, já que carne e ossos são muito mais resistentes do que imagina quem nunca matou. Dar fim a um recém morto é bem difícil se você não tiver uma arma de fogo das boas. Esmagar requer força, um objeto bem pesado e algumas pancadas bem violentas. Note que uma pequena fratura, concussão ou traumatismo craniano não será suficiente … imagine pisar numa fruta podre, é isso que é preciso fazer … só que num recém reanimado essa fruta é um côco! O recém-reanimado é o pior tipo, porque em geral antes preciso imobilizar o amaldiçoado, que não cooperará nem pouco, podem acreditar. Dar fim a um zumbi de meia-idade é um pouco menos difícil, o que nesse caso não é sinônimo de mais fácil, porém mais desagradável. Se esmagar a cabeça de um recém-morto ou animado já é desagradável por conta do sangue, massa cerebral e cheiro de carne crua, fazer isso com um amaldiçoado putrefado é muito, muito pior. Claro que depois de algum tempo se acostuma, mas não deixa de ser algo desagradável. A parte boa é que não é preciso imobilizá-los antes. Os únicos zumbis fáceis de despachar são os velhos. Não dão muito trabalho, o processo é menos sujo e até o cheiro não é tão desagradável. Voltando ao meu retorno para o interior. No caminho encontrei muita gente desesperada, corpos de zumbis e suas vítimas, suicidas, e cada vez mais zumbis. Como disse, tive o bom senso de pegar o caminho da roça antes que tudo piorasse de verdade. Mesmo assim a viagem que costumava fazer em três horas levou um dia inteiro. As primeiras semanas de volta para junto da família foram confusas. Alguns não queriam acreditar que o fim estava próximo, outros acreditavam que o fim já havia começado, alguns tinham sido infectados, outros não, alguns diziam a verdade, outros mentiam. Também diferente do que deve ter acontecido nos Estados Unidos lá foi como nos filmes e livros, por aqui o individualismo não ditou as regras desde o primeiro momento e isso me enche de orgulho. Não quero dizer que todos agiram cavalheirescamente, mas também não agiram como filhos da puta sem alma no geral. Houve e ainda há solidariedade e compaixão. E lá estávamos em vinte e poucas pessoas, parentes e alguns amigos desgarrados, adultos e crianças, entocados num sítio, com um bom estoque de comida e esperança de que tudo aquilo acabasse logo. Mas não acabou e os que haviam sido contaminados começaram a morrer. No início houve a resistência para evitar que os mortos voltassem, mas bastou o primeiro recém-reanimado fazer duas vítimas para que mudassem de ideia. Foram os dias mais dolorosos de minha vida… e prefiro contar sobre eles em outra ocasião, quando tiver superado a dor. O que importa é que em meados de dezembro o mundo estava mais caótico que nunca e sobramos apenas eu e outros quatro naquele lugar. Numa noite de bebedeira para afugentar a dor que a proximidade do Natal tornava ainda mais difícil de lidar, uma briga, disparos de pistola e sobraram apenas eu com um ferimento no superficial, uma tia com dois dedos da mão esquerda arrancados por um tiro e seu namorado agonizante. A regra geral num apocalipse zumbi é evitar grandes cidades e rodovias movimentadas, onde a concentração de zumbis é logicamente maior. Esqueça aquela coisa dos filmes de encontrar nesses lugares supermercados e lojas cheios de coisas úteis, pois não encontrará. Tudo já foi saqueado nos primeiros dias. Claro que há muita coisa ainda, mas é preciso

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procurar em meio ao lixo, aos restos de corpos, trabalhoso e perigoso demais para valer a pena a não ser para artigos muito específicos e altamente necessários. E descobri isso quase perdendo a vida quando fui com minha tia à maior cidade da região em busca de socorro médico para ela e o namorado, algo que, no final das contas, poderá me salvar e permitir que vocês venham a existir. Vocês não imaginam a selva que uma cidade com pouco mais de um milhão de habitantes se torna após uma catástrofe. E não pensem que todos fogem, não, muita gente fica por lá mesmo, vivendo como dá, aguardando ajuda de algum lugar, que raramente vem. Em algumas regiões há certa ordem, em outras não. A morte espreita em cada esquina, em cada sombra. É uma armadilha após outra, todas mortais. Encontramos um hospital de campanha do exército logo na entrada principal da cidade depois de transitar por um mar de carros abandonados, barracas de sobreviventes, pilhas de corpos incinerados. O lugar tinha centenas de contaminados, poucos médicos, praticamente nenhum medicamento, soldados nervosos. Um jovem médico com o sobretudo imundo suturou os cotos dos dedos da minha tia o melhor que pode enquanto ela chorava de dor e mordia com força um pedaço de pano enrolado, mas disse que ela precisaria de uma boa dose de antibiótico e antinflamatório que ele não tinha para fornecer. Sugeriu que a deixasse ali e tentasse consegui-lo no hospital geral no centro da cidade que ainda estava funcionando. Sabe aqueles filmes de terror onde a porta do porão abre sozinha, lá embaixo só escuridão gritando “Não venha aqui! Perigo! Fuja!” e o personagem começa a descer a escada enquanto quem assiste pensa “Mas é um idiota mesmo, merece morrer!”? Então, entrar na cidade para procurar remédio para minha tia e o namorado foi um pouco pior que isso, mas era o que sobrara de minha família e tinha de fazê-lo. Os zumbis são engraçados. Não consigo imaginar como conseguem se mover mesmo após semanas sem comer nada a não ser nacos da carne de algum idiota que conseguem pegar. E como a infestação era recente, a maior parte dos zumbis estava entrando na meia idade, e se alguns deles já são problema, imaginem milhares. O que me salvou até agora foi nunca esquecer três coisas a respeito de seu comportamento instintivo: 1 - Zumbis evitam lugares profusamente iluminados, preferem a penumbra e as sombras; 2 - Zumbis são atraídos principalmente pelo barulho, quanto mais alto mais atraente; 3 - Zumbis tropeçam com muita facilidade. No acampamento em torno do hospital não foi difícil arranjar uma bicicleta, que me proporcionaria maior agilidade sem o inconveniente do barulho da motocicleta. Como era quase meio do dia, e me pus a pedalar os doze quilômetros até o hospital depois de convencer minha tia de que ela mais atrapalharia do que ajudaria se viesse junto e de que ela estaria segura ali até que eu voltasse, apesar de não estar nem um pouco convencido. Foi uma sensação engraçada ver o que sobrara da decoração de Natal do ano anterior naquela cidade devastada. Parecia que fazia tanto tempo. Em minha cabeça, décadas me separavam do que havia sido o mundo como o conheci. Nas sombras via os zumbis. Alguns pareciam me ver, a maioria me ignorava, enquanto cruzava entre os carros nas largas avenidas profusamente iluminadas, fazendo tão pouco barulho que não chamava atenção. Tudo parecia ir bem e eu calculava que naquele ritmo chegaria ao meu destino em uma hora. Foi quando testemunhei o que pareceu a maior idiotice que já havia visto em toda

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minha vida. Um barulho alto vindo de um cruzamento que havia deixado para trás havia poucos minutos me fez parar e olhar para trás no exato momento em que um grande caminhão modificado com uma lâmina em forma de V no lugar do para-choque fez a curva jogando para os lados os carros que haviam no caminho, vindo direto em minha direção. Com a barulheira ensurdecedora, todos os zumbis a três quarteirões foram atraídos, uma multidão de mortos-vivos em busca de carne fresca. Eu é que não arriscaria tentar fugir com uma bicicletinha no meio daquele tumulto zumbi. Só me restava fazer algo muito arriscado. Subi rapidamente no teto de um ônibus e acenei loucamente para o caminhão, na esperança de que me dessem uma carona, ou estaria perdido. Nunca fui do tipo esportivo, mas me senti um atleta olímpico quando o caminhão se aproximou a toda do ônibus e alguém lá dentro acenou para que saltasse na caçamba. Foi um dos momentos mais hollywoodianos de minha vida. Na boleia do caminhão havia um grandalhão no volante e uma mulher de meia-idade indicando o caminho. Na caçamba um casal de adolescentes com cara assustada, armados com lanças para derrubar os zumbis que por ventura subissem no caminhão. Logo fiquei sabendo que estavam indo para o mesmo lugar que eu e pelo mesmo propósito, conseguir medicamentos no hospital geral da cidade. Confesso que, apesar do transtorno e riscos envolvidos, a solução daqueles estranhos era muito mais rápida que a bicicleta que tinha deixado para trás. Com agilidade o motorista zanzava entre os carros abrindo com facilidade o caminho e não demorou muito para chegarmos próximos da barricada que fora erguida em torno do hospital geral. Encontramos a barreira improvisada — um ônibus com as janelas cobertas por placas de aço — totalmente aberta. Com agilidade, o homem deu um cavalo de pau com o caminhão e o usou para empurrar o ônibus-portão de volta ao lugar e conseguir assim alguma segurança contra a horda zumbi que não demoraria a chegar. Como já disse, o bom do brasileiro é ter um espírito solidário, mesmo num apocalipse zumbi. O casal mais velho vinha de longe em busca de remédios para a comunidade de sobreviventes da qual fazia parte. Eles tinham encontrado o casal de adolescentes no caminho e os acolheram. Expliquei rapidamente meu drama pessoal e concordamos em juntar esforços para encontrar logo o que precisássemos e sair dali com vida o quanto antes. Não demoramos para descobrir que aquele lugar tinha sido evacuado fazia alguns dias. Pelo menos tomaram o cuidado de armazenar os mortos em salas bloqueadas com cabos de aço e sinalizadas que não deveriam ser abertas. Segundo o motorista, havia um bom estoque de medicamentos num armário trancado numa sala do terceiro andar, onde ficava a administração, e também comida em um depósito na garagem. Perguntei como ele sabia disso e ele respondeu que ele os deixara lá. A mulher e os adolescentes foram atrás da comida, enquanto o motorista e eu saímos em busca dos medicamentos. Aquele havia sido um grande hospital de referência, um prédio moderno com um grande vão livre central, onde o espelho d’água havia sido transformado em uma grande pira mortuária. Subimos com cuidado a escada rolante. Como o interior estava bastante iluminado pela luz natural que entrava pelo vão central, não usamos as lanternas para evitar atrair algum zumbi que estivesse solto ali dentro. O silêncio era completo, opressor,e nos deixava em guarda máxima. O homem carregava uma escopeta de cano cortado e eu, um longo facão afiado. Movíamos naturalmente de forma coordenada.

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No saguão do segundo andar, encontramos os restos do que parecia um acampamento. O que chamou nossa atenção foram as marcas de sangue e os restos de comida pelo chão, sinal de que quem estivera ali baixara a guarda e tinha sido surpreendido por zumbis ou vagabundos. Continuamos nosso caminho. O motorista apontou um longo corredor à direita e fez sinal de que devíamos ir para uma sala no fundo. Ele ia à frente e eu atrás, pronto para reagir. Dávamos cada passo com muito cuidado, como se pisássemos em ovos. Chegamos à sala sem que nada acontecesse. Era uma sala de escritório comum. Sobre a mesa, notebook, papelada, uma arvorezinha de Natal com pequenas caixinhas de presente enfeitadas de lacinhos vermelhos e uma foto que mostrava o motorista, a mulher que estava com ele no caminhão e duas crianças sorridentes. O homem se limitou a abrir o armário com uma chave que trazia no bolso e tirar algumas caixas de papelão onde havia remédios de todo tipo. Antes de colocar tudo numa bolsa, separou uma dúzia de caixas e me entregou. Saímos mais relaxados da sala, até mesmo alegres, e isso quase nos custou a vida. Voltamos pelo mesmo caminho e resolvemos verificar se havia alguma coisa útil no acampamento abandonado. Enquanto revirávamos as coisas, um enorme Papai Noel zumbi seguido de dois ajudantes mortos-vivos vestidos com frangalhos de fantasias verdes de anões surgiram sei lá de onde e avançaram com violência contra nós. Pelo canto do olho vi o putrefato Papai Noel zumbi se jogar contra o motorista e tropeçar. Eles rolaram sobre o parapeito de vidro para mergulhar no vão livre. Com o facão consegui cortar fora o tampo da cabeça de um dos malditos zumbis, antes que o segundo se jogasse sobre mim com os dentes arreganhados, desesperado pela minha carne. Rolamos pelo chão enquanto golpeava o desgraçado com o facão sem que isso surtisse efeito algum. De algum modo vi uma mesa baixa e dei um jeito de rolar com o fedorento até lá. Numa das voltas, arremessei violentamente a cabeça dele contra a quina, e ele estrebuchou com violência antes de ficar imóvel. Não me dei ao luxo de recuperar o fôlego. Me levantei e corri em direção à escada rolante, pegando no caminho a escopeta que o motorista tinha deixado cair. Sem me preocupar com o perigo, saltei sentado sobre o corrimão da escada, escorregando para baixo enquanto procurava pelo homem. Ele ainda estava vivo, lutando para evitar que o Papai Noel morto-vivo levasse a melhor, mas claramente perdia terreno rapidamente. Haviam caído sobre os corpos incinerados, o que amortecera a queda. Rolei no chão ao chegar ao fim da escada, me levantei num pulo e corri em direção aos dois. Dei uma violenta coronhada na cara putrefata daquele arremedo de Bom Velhinho, fazendo a cabeça dele girar violentamente para o lado, antes de apontar a arma para seu ouvido e apertar o gatilho, explodindo os miolos em meio à fumaça e ao barulho ensurdecedor. Encontramos a mulher e os adolescentes assuntados no caminhão. Apesar de estarmos cobertos de sangue podre, ficaram aliviados por estarmos vivos e não termos sido mordidos. Saímos pelo portão dos fundos em alta velocidade para longe daquele lugar maldito. O casal insistiu para que fôssemos com eles para a comunidade de sobreviventes, mas recusamos por conta do namorado da minha tia. Mesmo assim nos deram um mapa e alguns mantimentos. Então cada um seguiu seu caminho. Meu presente este ano foi ter de dar um fim na minha tia e em seu namorado. Ele foi infectado, ela escondeu isso de mim e ele a atacou mortalmente quando reanimou.

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CHARLES DIAS


Acabei com a miséria do coitado, queimei os corpos, juntei tudo o que poderia ser útil, coloquei na moto e agora estou a caminho de uma chance com meus novos amigos. Espero chegar ao lugar indicado no mapa antes do ano-novo. Para você que está lendo esta carta escrita por seu velho pai, avô, antepassado sobrevivente, meio bêbado sozinho sob a lua cheia e as estrelas nas montanhas de Minas Gerais, desejo que tenha natais mais felizes!”

DESEJO A VOCÊS NATAIS MAIS FELIZES

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| n e k l a F | a u h s |Jo Uma missão rotineira ãemo uma base de mineraçível afetada por uma terrerra arma usada numa gu al a antiga força uma ofici a enfrentar algo que afeta profundamente. 44


Os soldados ataram o cinto de segurança no momento em que o helicóptero decolou com uma sacudida. O bom humor geral do grupo não compensava pelo fato de que sentiam frio, ainda que imaginário, mesmo vestindo os exoesqueletos de combate. Ouviam o vento uivante, como lamento de lobos, do lado de fora da aeronave. E essa agora, uma missão de ultima hora, quase na véspera de Natal! A major Boyle estava sentada no lugar de costume, ao lado da porta para a cabine de comando. Ouvia as ordens do Conselho da Cidade 7, transmitidas pelo comunicador do capacete do exoesqueleto, com seu silêncio também costumeiro. — Entendido, senhor. — Ela desligou e chamou com voz rouca. — Atenção, equipe! Todos se voltaram para ela. — Recebemos os detalhes da missão de contenção e resgate. — Um mapa foi projetado no visor dos capacetes. — Devemos aterrissar na Estação Mineradora Gamma Norte em cerca de uma hora. Civis no local: cento e cinquenta e sete. Nossa missão é resgatar e proteger quaisquer trabalhadores não infectados, imobilizar quem foi infectado e resgatar para tratamento. — Permissão para pergunta, major. — Um dos soldados levantou a mão. — Permissão concedida, tenente Lucas. — Major, qual foi a arma biológica? A major fez uma pausa e inclinou a cabeça de forma quase imperceptível. — Vírus Errante. Só confirmou o que os soldados já esperavam e temiam. Durante a Hidroguerra Mundial, quinze anos antes, a União Sibério-Chinesa liberara várias armas biológicas na tentativa de desestabilizar a Comunidade de Desenvolvimento Terrestre. A pior delas tinha sido uma variação devastadora do vírus da raiva, geneticamente modificada com genes de meningococos e do vírus do Oeste do Nilo. Oficialmente chamada de Solanumlyssavirus I, impedia a produção dos neurotransmissores responsáveis pelas funções superiores do cérebro, deixando o sistema nervoso apenas com as reações mais básicas. Seus principais sintomas levaram ao seu nome mais famoso: Vírus Errante. Ou seu nome mais infame: Vírus Zumbi. Mentalmente, vários deles suspiraram. Apesar de todo o trabalho que a humanidade tivera para se recuperar da guerra, volta e meia focos desse vírus surgiam e era preciso conter os infectados e submetê-los a tratamento. Estas missões eram uma triste rotina. A major continuou a explicação: — A comunicação com Gamma Norte foi perdida cinco dias atrás, e inicialmente acreditava-se que tinha sido por causa de uma tempestade elétrica na região. Porém um sinal de emergência foi emitido há dois dias. Do que foi possível recuperar da mensagem, a descrição era bem característica de infecção pelo Vírus Errante, na fase de Caça e Infecção. Devemos assumir que cerca de dez por cento dos infectados se tornaram Caçadores e o resto evoluiu para Errantes. O silêncio que se seguiu foi pesado.

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Uma hora mais tarde, o helicóptero pousou em frente da gigantesca cúpula de concreto e metal da Estação Gamma Norte. Os soldados desceram e formaram um círculo de proteção ao redor do veículo. O silêncio era quebrado apenas pelo vento. A major notou os enfeites natalinos presos ao redor do portão de entrada do prédio. — Oliveira, algum contato com o interior da estação? — Não, Major. — O soldado operava um pequeno aparelho com antena. — As comunicações ainda estão desativadas. Mais dois helicópteros pousaram ao lado deles. — Entendo. Ela observou seus comandados checarem novamente as armas, especialmente a munição capacitora, balas que desferiam uma descarga elétrica incapacitante. — Major... Ela se virou para o recém-chegado do outro helicóptero. — Doutor. O homem assentiu, seu exoesqueleto branco se destacava na atmosfera sombria. — Trouxemos a carga de soro antierrante e estamos prontos para aplicar a dose de reforço da vacina. Foi a vez da Major assentir. Após os preparativos, ela fez um lembrete aos soldados. — Atenção! Nossa prioridade no momento são as pessoas ainda não infectadas. Devemos resgatá-las o mais rapidamente possível e trazê-las para o isolamento com a equipe médica. Mantenham os filtros biológicos de suas armaduras no máximo. Caso encontrem Errantes, usem o procedimento padrão. No caso de Caçadores, imobilizem-nos com a munição capacitora e apliquem imediatamente o sedativo. Apliquem o tratamento imediato conforme for possível. Usem força letal apenas como último recurso! Todos confirmaram o entendimento. — Vamos entrar — ordenou. Eles se separaram em times de quatro. Caminhavam em formação pelos corredores escuros da Estação Mineradora. — Ei, Kaiji. — O que foi, Carlos? — Você já serviu com a major antes? — Claro! — O tom dizia claramente: “Você nasceu ontem?” — Ela sempre restringe o uso de força letal contra infectados? — Carlos era decididamente curioso. Kaiji entendeu e ia responder quando ouviu um barulho. Todos ficaram em estado de atenção. Era um gemido.

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JOSHUA FALKEN


Imediatamente o treinamento tomou conta deles. O gemido se aproximava. Formas humanas pareciam se destacar na escuridão do túnel. — Parecem ser cinco. Errantes, não Caçadores — Kaiji determinou. — Michelle, prepare a Teia. — Entendido, tenente. — Na minha marca! Três... — Os errantes se aproximavam, a pele extremamente clara e os olhos vermelhos no rosto sem expressão se destacavam. — Dois... Um... Os errantes aceleraram o passo na direção deles, atraídos pelo som. — Agora! Usando uma espécie de bazuca, a soldado Michelle disparou uma teia eletrificada sobre o grupo de Errantes. A força do disparo os derrubou, enquanto a carga elétrica imediatamente os imobilizava. Os soldados esperaram até que os errantes perdessem os sentidos. Kaiji ativou o rádio. — Major, responda! Aqui é o time 3. — Prossiga, time 3. — Imobilizamos cinco errantes no corredor 5-Norte. — Entendido, time 3. Apliquem o tranquilizante e continuem a busca. — Entendido. Desligando o rádio, Kaiji designou com um gesto o médico do time. Com destreza, o soldado aplicou um forte dose de tranquilizante nas formas caídas. Os Errantes ficariam desacordados por vinte e quatro horas, e nesse período poderiam ser removidos para tratamento na Cidade 7. Em seguida, aplicou em cada um deles uma dose combinada de soro antierrante e medicamento antiviral, que ajudariam a mantê-los sob controle durante o tratamento. Prosseguiram pelo corredores. Meia hora mais tarde, a major e seu time percorriam um corredor do outro lado de Gamma Norte. Já tinham neutralizado dois grupos de Errantes, mas ela estava preocupada com o fato de ainda não terem encontrado nenhum Caçador, como seria esperado em razão do ciclo de evolução do vírus. Embora pudesse ser transmitido de forma aérea num primeiro momento, o vírus sobrevivia pouco tempo ao ar livre. O principal mecanismo de transmissão eram as mordidas dadas pelos infectados durante a fase Caçadora do Vírus. Sim, havia a possibilidade de todos os Caçadores terem evoluído para simples Errantes, mas ela duvidava. — Major, responda! Aqui é o time 8. — Prossiga, time 8! — Encontramos pessoal não infectado. — Informe a posição.

MISSÃO ROTINEIRA

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— Corredor 3-Sul. — Entendido. Estamos indo para a sua posição. — Com um sinal de cabeça, indicou para que seu time a acompanhasse. — Fiquem em formação de defesa até chegarmos! Cinco minutos mais tarde, a equipe estava em frente à porta reforçada de uma sala estanque de contenção de emergência. Pela janela, a major conseguia ver cerca de vinte pessoas, com máscaras de oxigênio no rosto. — Como eles estão, tenente Renne? — perguntou para a líder do time 8, sua segunda no comando. — Estão aqui há cerca de quatro dias. Os suprimentos já estavam no limite. A major assentiu e ligou o interfone. — Olá, aqui é a major Elizabeth Boyle, do Grupo de Contenção e Resgate da Cidade 7. Nós os levaremos daqui o mais rapidamente possível. Enquanto ouvia os gritos de alegria e os agradecimentos dos sobreviventes, perguntou: — Vanessa, você contatou o helicóptero? — Sim, major. Eles já estão preparando o setor de isolamento para os não infectados. — Ótimo. — Ativou o rádio. — Times 2 e 5, venham até o corredor 3-Sul para o transporte de civis! Time 7, traga garrafas de oxigênio para vinte e duas pessoas. — Ela se voltou para o interfone. — Vocês tem informação de como a infecção começou? Um homem de meia-idade, que deveria ser um dos líderes do grupo, respondeu: — Não temos certeza. Tinha havido um desmoronamento em um dos túneis durante a noite faz uns sete dias. Uma boa parte do pessoal do turno da noite que atendeu o acidente passou mal no dia seguinte, mas o médico disse que era uma intoxicação leve. — A major percebeu claramente que o homem revirou os olhos ao se lembrar disso. — Dois dias depois, alguns dos trabalhadores se transformaram nos primeiros Caçadores e começaram este caos! Somente nós conseguimos escapar e nos proteger aqui! Após a chegada dos times e do material requisitado, os soldados formaram um cordão ao redor dos sobreviventes e começaram a conduzi-los para os helicópteros. Estavam na metade do caminho, quando ouviram um som diferentes dos gemidos dos Errantes. Era uma mistura de grunhido e latido. Caçadores. Imediatamente os soldados ficaram em posição de ataque. Quase ao mesmo tempo, dois relâmpagos brancos se lançaram sobre o grupo. Foi a reação rápida e profissional que permitiu que os dois Caçadores fossem atingidos pelas balas capacitoras, seguidas por uma teia elétrica de contenção, disparada pela própria major. Foi tão rápido que os civis sequer reagiram. Os caçadores capturados foram imediatamente sedados com uma dose dupla de tranquilizante e imobilizados com algemas nos braços e nas pernas e uma máscara tipo focinheira. Brutal, mas necessário. O grupo apressou o passo para a saída. Horas mais tarde, os soldados tinham retornado ao hangar da Cidade 7. Conseguiram

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capturar todos os Errantes e a maioria dos Caçadores, mas tinham sido forçados a neutralizar dois deles com força letal. A Major observava a descontaminação da sua equipe, enquanto supervisionava a transferência dos infectados para o Corpo Médico. — Então, doutor, quais as chances deles? — perguntou ao responsável. O médico balançou a cabeça. — São relativamente boas. Na primeira avaliação, creio que apenas três deles, em estágio mais avançado, tem probabilidade baixa de continuar como Errantes. O resto provavelmente se recuperará, embora leve tempo, é claro. — Entendo — ela murmurou, soltando lentamente o ar, aliviada. O médico se afastou para ir com os pacientes. Mais tarde, todos os integrantes do grupo de Contenção e Resgate já tinham ido para casa, festejar o Natal com a família. — Tudo bem, major? Era a tenente Renne. — Ah... Olá, Vanessa! Sim, estou bem, apenas cansada. — Alguns de nós vamos fazer uma pequena festa de Natal. Não gostaria de ir? Houve uma pausa constrangida. — Sinto muito, mas não posso. Tenho um compromisso a que não posso faltar. Desculpe. — Entendo. Bom, feliz Natal! — Feliz Natal para você também. Depois que todos saíram, a major removeu o capacete e retirou a armadura, rapidamente vestindo roupas civis e um longo casaco preto. Saiu da base, tendo o cuidado de passar apenas pelas guaritas automáticas. Ergueu a gola do casaco e colocou boné, óculos escuros e máscara cirúrgica. Caminhava pelos corredores subterrâneos apinhados da Cidade 7. As decorações natalinas até que davam um ar festivo ao lugar, mesmo com o frio causado pelo racionamento de energia. Não deixava de notar que as pessoas a evitavam, mas não se surpreendia. Sabia que o disfarce — não se iludia sobre o que seu modo de vestir realmente era — deixava as pessoas nervosas e também sabia que seu rosto provocava um nervosismo ainda maior. Tomou o metrô para chegar ao seu destino. A major respirou fundo antes de entrar no hospital. Foi até a mesa da recepção. — Por favor, vim visitar uma paciente da ala isolada. A recepcionista assentiu. — Seu nome? — Elizabeth Boyle. — Ergueu o bracelete de identidade e o leitor confirmou os dados do chip de RFID.

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— Um momento. Ela percebeu que mesmo com as luzes frias, o interior do prédio era quente. — Senhorita Boyle. — Olá, doutor Ribeiro. Como ela está? — Estável. Gostaria de vê-la? — Sim. Caminharam por um corredor até um quarto isolado. No leito, olhando fixamente para o teto, estava a paciente. Era uma mulher com cerca de trinta e cinco anos, cujo o rosto seria bonito se não fossem a palidez e os olhos vermelho-sangue característicos do Vírus Errante. Quando o médico saiu, ela tirou o boné, os óculos e a máscara, revelando o rosto extremamente pálido, os olhos vermelhos com brilho cansado. A semelhança era óbvia. Ela acariciou o cabelo da paciente. Sorriu tristemente. — Olá, maninha... Feliz Natal.

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m o c . t e k c ro k c a l b a t www.revis

m o c . s o t n o c e r t n e . w ww r b . m o c . o s o l u b a www.leitorc / n a f c ďŹ / s p u ro g / m o c . k o o b e c a f . w w https://w book.com/leitorcabuloso 1 2 5 7 e 8 c a 3 f . 5 w 5 w w 5 5 9 7 4 https:// / s p u ro g / 1 m 2 o c 9 . k 8 o 4 o 8 b e 7 c 2 a f . 2 w 0 https://ww w.facebook.com/groups/219 https://ww ) m o c . t r a t n a i v e d . (www.estivador ) m o c . l i a m g @ a s u o (bianunesdes ) m o c . l i a m g @ a (carlosrelv


PASSAGEIRO ESPECIALMENTE CONVIDADO

| x i l e F | a i r a M | a |Rit Um gênio com todoso oes recursos à disposiçã ação uma grande dor no codra a coloca em risco to er humanidade para trazque de volta a felicidade um dia teve. mática, Química e Física), , 42 anos, professora (Mate ana buc nam per va va, Sil da ix el, tem textos espalhados Rit a Ma ria Fel sem livros impressos em pap da ain a bor Em as. vag as das nas revistas Universe escritora nas hor e. Obras suas já foram publica red na os tuit gra oks ebo s doi , respectivamente, ambas pela Internet e e Axxón (espanhola e argentina ani Erid Alfa e sa) res imp , Pathways (grega ira Scarium (impressa). virtuais), bem como na brasile

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Eles estão saindo dos túmulos... Estão vindo... Para pegar você...” John, em A noite dos mortos-vivos, de George Romero

Carta do Dr. Eliel Bergmann à posteridade: “Florianópolis, 8 de dezembro de 2013 A quem encontrar esta carta: É meia-noite e os céus foram tomados por uma tempestade colossal. Dolorosamente caminho até a janela da mais alta torre de meu castelo sombrio e antigo, as pesadas correntes de meus pecados atadas aos meus tornozelos, e de lá grito, a todos os ventos, a maldição que espalharei sobre o mundo... Não é bem assim. Estou exagerando, é claro; todavia, a quem quer que esteja lendo isto, peço que me perdoe. Sempre tive uma queda pelo dramático e pelo gótico. Se algum erudito vier invocar o termo clichê, sinceramente não me importo. Na realidade, não moro num castelo, mas sim numa casa luxuosa no Jardim Atlântico. Não há tempestade no céu (é um dia claro e sem nuvens), não tenho correntes nos pés e nem me preocupo com supostos pecados. Mas a maldição... Isso aí já é outra história. Contemplo, numa mistura de olhar filosófico e júbilo, esta cidade: é com orgulho que os vejo, os mortos-vivos, ocupando cada espaço da metrópole. Furiosos, selvagens, assassinando todos os que encontram pela frente. Depois os cadáveres das vítimas se reanimam e prosseguem na matança. Que adorável vê-los invadir a Ponte Hercílio Luz, enquanto trazem algum tipo de beleza exótica à paisagem monótona de Florianópolis. Isso é tão glorioso! Minha maior realização. Enche-me os olhos de lágrimas. Assisto a tudo no telão em meu sótão. Imagem em HD, captada por satélites em órbita. Sim, custou caro, mas vale a pena. Afinal, ser um dos homens mais ricos do mundo tem suas vantagens. Então fico lembrando de Elise, o corpo dela no porão, conservado numa câmara de nutrientes. Minha pobre Elise. Faço tudo isto por ela. Hum... Acho que estou indo rápido demais. Melhor voltar um pouco no tempo, se quero que você, seja lá quem for, possa entender. Meu pai e minha mãe morreram quando eu ainda era bebê. Não, eles não foram mortos num assalto quando saíamos do cinema, nem em algum desastre de carro ou coisa parecida. Eles se esfaquearam. Sério. Minhas tias me contaram que os dois se amavam muito, mas eram doidos e brigavam como feras. Então minhas tias me criaram. Eram três: Hannah, Marie e Inza. As duas últimas eram muito apegadas e também brigavam muito, algo a ver com inveja mútua ou excessiva cobrança por atenção. Marie e Inza acabaram matando uma à outra, com veneno, pelo que sei. Sim, parece que a loucura gosta de visitar minha família.

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Tia Hannah cuidou de mim até que me tornasse adulto. Ela morreu de aids antes que eu completasse vinte e um anos. Nunca entendi isso. Pelo que sei, era uma quarentona muito católica, que nunca tomara drogas e que não tinha vida sexual, nenhuma mesmo. Ela sempre me pareceu a própria personificação do celibato. O que me importa é que ela estimulou duas das três vocações que definiriam minha vida. Minha tia me incentivou a estudar e mostrou-me seu amor pelas ciências. É graças a ela que hoje tenho doutorado em três áreas diferentes: biologia, bioquímica e engenharia eletrônica. Ganhei um Nobel dessa última. Porém, se havia uma coisa que tia Hannah amava era... Como explicar...? A morte. Sim, ela adorava ir a funerais e velórios e sempre me levava junto. Cemitérios eram como um paraíso para ela. De qualquer modo, morreu gritando em agonia. Com ela, também conheci os filmes de zumbis de George Romero. Meu Deus, isso realmente mudou minha vida. Toda aquela mitologia sobre os mortos-vivos... Havia algo sagrado naquilo tudo, alguma verdade oculta implorando à nossa alma para ser desvendada. Quantas vezes já assisti a A noite dos mortos-vivos? Nem sei dizer. Em algum momento, percebi que eu era semelhante à tia Hannah. O que eu realmente amava eram as coisas mortas. Uma psicóloga uma vez disse que eu sofria de necromania e precisava ser tratado. Alguém vai dizer que isso é uma contradição, se considerarmos as ciências que estudei. Não me incomodo: o mundo é cheio de contradições. Tornei-me um cientista famoso e, ao contrário de meus pares, fiz fortuna. Por algum motivo, e dizem que herdei isso de minha mãe, tenho facilidade em lidar com dinheiro. Sei que o desejo inerente ao capital é se multiplicar, como um vírus, ou talvez um meme de Richard Dawkins, e posso ver, claramente, em minha imaginação os meios para multiplicálo. Não, não me julgue. Nem sempre esses meios são os mais corretos e éticos. Mas em que lugar já escrevi ou declarei que me importo com correção ou ética? Aprendi com minha tia que é melhor ser sincero consigo mesmo, ainda que o mundo o considere cruel, do que ser hipócrita. Então, em algum momento, conheci Elise, a terceira vocação de minha vida, e, assim, o curso que me trouxe à manhã de hoje e ao apocalipse a que condenei o mundo foi traçado. Eu a encontrei numa festa, num parque de diversões. Um colega me convenceu a ir. Eu estava na barraca de tiro ao alvo, quando ela passou, com um grande pedaço de algodão-doce na mão. Elise era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Corri atrás dela. Fomos a um motel ainda naquela noite. Ficamos juntos apenas por alguns dias. Transávamos o tempo todo. Eu estava feliz, realmente feliz, como nunca havia me sentido antes. Ela dizia que eu a esgotava, que meu corpo tinha fome de vida e eu estava sugando a dela. Elise era engraçada, fazia-me rir com as maluquices que dizia. Ela parecia estar definhando, porém, tão envolvidos em toda aquela felicidade, ignorávamos tudo. Numa sexta-feira, ela morreu de repente. Os médicos diagnosticaram esgotamento físico como eles nunca tinham visto. Chorei até não ter mais lágrimas. Por mais absurdo que possa parecer, comecei a pensar na brincadeira de Elise sobre eu a estar esgotando, mas, mesmo hoje não consigo aceitar essa culpa. Eu queria Elise de volta.

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RITA MARIA FELIX DA SILVA


Assim, dediquei minha fortuna e meu tempo para o que seria o objetivo maior de minha vida: ressuscitá-la. Eu tinha o dinheiro e todos aqueles filmes de Romero zanzavam por minha cabeça. Isso foi há dez anos. Desde então, empreguei os melhores e mais caros especialistas que pude encontrar, contudo, eu sempre falhava e ela continuava morta. Há cerca de dois anos, porém, obtive o que se pode chamar de um resultado. Elise movia-se novamente! Sim, mas não estava viva de verdade, era só um cadáver reanimado, furioso e selvagem, tentando matar todos os que se aproximassem dela, incapaz de falar, sem nenhuma inteligência, uma paródia blasfema da mulher que eu amo. Em certo momento, horrorizado com aquilo, eu a detive da mesma forma que nos filmes. Com um tiro na cabeça. A partir de então, estou mais desolado do que se poderia imaginar. Continuei investindo, porém, nesse projeto. As simulações em computador, no entanto, mostravam que o resultado seria sempre o mesmo: um zumbi selvagem e sem nenhuma inteligência. Talvez eu esteja finalmente enlouquecendo, semelhante a papai e mamãe, tia Marie e tia Inza. Decidi que não posso continuar vivendo sem Elise. Decidi que não deve existir um mundo lá fora, se a adorável Elise não puder viver nele, viver da forma que ela sempre foi e não como um monstro de filmes B. Com isso em mente, adaptei o processo que eu usara nela. Elaborei uma espécie de vírus eletrônico, capaz de infectar o cadáver de seres humanos e reanimá-los na forma de zumbis, que não vão tentar devorar seres humanos nem seus cérebros, mas simplesmente assassiná-los com inexplicável força descomunal. Decidi fazer o teste em Florianopólis mesmo. O vírus se espalha rápido. Se meus cálculos estiverem corretos, e acredito que estão, terá contaminado o mundo inteiro em algumas semanas; conforme a programação que embuti no vírus, quando o último ser humano tiver se tornado um morto-vivo, todos os cadáveres reanimados voltarão a ser apenas mortos imóveis. Sim, extinção da espécie humana. Se você leu até aqui, agradeço. Vou agora descer até o porão, esvaziar a câmara de nutrientes e queimar o cadáver de Elise. Depois vou atirar em minha própria cabeça. Afinal, por que continuar se não há nenhum motivo para isso, não é mesmo? Então, essa é minha história, é uma de zumbis, mas não creio que daria um bom filme; ao menos sei que não seria um a que eu gostaria de assistir. Quanto a você, seja quem for, posso dar uma sugestão sobre o que fazer enquanto espera meu apocalipse? Que tal assistir a A noite dos mortos vivos? É um ótimo filme, meu favorito (deixo uma cópia em DVD caso aceite minha sugestão), mas tente não lamentar sobre o que acontece a Ben no final. Ora, seja na ficção ou no mundo real, quem disse que a vida é justa?” “Eu sou o que vivo; fui morto, mas eis aqui estou vivo para todo o sempre! E tenho as chaves da morte e do inferno.” (Apocalipse 1,1)

NECROMANIA

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| n o i r r a C | o d r |Leona Em um mundo transformado por umado arma terrĂ­vel e povoas por inominĂĄveis, ano apĂłs o fim de uma m e B o , a d a b a c a n i a r r gue va o n a m u m va a r t l a M eo batalha. 56


“Eu vi corpos de tropas mais numerosas, batalhas mais disputadas, mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes que os da bela cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras aprendi a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações. Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril e destemida gente, que sustentou, por mais de nove anos contra um poderoso império, a mais encarniçada e gloriosa luta!” Giuseppe Garibaldi

25 de dezembro de 1856 Litoral entre a República Piratini e a República Juliana — Uns vem pelo norte. — Outros pelo poente. — Avançam também pelo sul... O general farroupilha Bento Manuel colocou ponto final na discussão sobre o horizonte com um amplo gesto de mão. Sinalizava pela janela do laboratório que mostrava boa parte do vale, quase no topo da montanha. Todos os comandantes entenderam a referência: milhares de léguas, o país sublevado, incêndios e morte. A guerra trafegava por todos os caminhos, sobre esteiras mecânicas, a galope e em dirigíveis. Tiros, alaridos e fumaceira. Nada de sono e nada de ceia. O jovem ordenança barbudo, Athanazio, ajudou o general a retirar o capacete de couro com as enormes lentes binoculares que utilizava para visualizar o movimento das tropas. Do outro lado da sala o padre Roberto Landell de Moura coçava o queixo áspero da barba de dias. Pensava em sua ciência de ondas, placas tectônicas, magma, energia raadica, vapor e bronze. O genial e louco padre-cientista bocejou, tomou um largo gole do chimarrão amargo que tinha em mãos e voltou a atenção novamente à maquinaria, soldando, ligando e esculpindo formas assustadoras conectadas em tubos que se dirigiam ao centro incandescente da montanha. Ao seu lado o pequeno cubo de uma liga especial de cobre e ouro continha a mais pura energia raadica presa em um meio plasmático. Quando estava próximo ao calor do magma contido na montanha, energizava-se e mantinha todas as criaturas controladas. A reunião do alto comando farroupilha se desfez e Bento Manuel se aproximou da mesa onde trabalhava o padre, alisando a bombacha. — Preciso de mais material — disse Landell, como se falasse para ninguém, sem levantar a cabeça do trabalho. Bento odiava que ele se referisse às crianças sequestradas como “material”. Fechou a mão, sentindo as unhas cortarem dolorosamente a palma. A fúria subiu-lhe pelo rosto, mas ele controlou sua erupção no último segundo. Precisavam desesperadamente de Landell. — Você sabe que isso é impossível. E já chega! Você teve mais crianças do que disse que necessitaria. A falação já é grande em toda Piratini. Os inimigos da república usam o boato sobre o sumiço de crianças como propaganda para enfraquecer a fé do povo na causa farroupilha.

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Landell continuava trabalhando sem parecer ter ouvido. Repentinamente agarrou a corrente que usava para pendurar o cubo ao pescoço e entrou na câmara onde as pequenas criaturas vagavam em torno do calor de uma fonte de lava incandescente. Murmurava “mais” de quando em quando. O laboratório tremia quando a montanha sacudia suas entranhas. O general virou-se para a janela. Mais abaixo, em cavernas, florestas e rios no sopé da montanha, soldados obedeciam à apenas duas ordens: ataque e dispersão, dispersão e ataque. Uma tropa que se lançava de improviso, misturando-se ao inimigo. Dois minutos de golpes, circulando sabres, socos e laços. Quedas e baionetaços. Ao final uma descarga de artilharia e, sob a nuvem de fumaça e poeira, um punhado de cavaleiros retornava galopando sujos animais. Nem uma vaca, nem uma ovelha por perto. Já não existia espaço para pastagens ou colheitas. Tufos de pólvora negra enxofravam o ar. Areia acelerada pelos canhões iônicos arrancavam pele e carne de ossos de homens vivos. O desamparo enegrecia a alma dos soldados, ferozes de solidão e desesperança. Toda a luta, toda a morte e todo o sangue para ganhar o tempo necessário ao padre-cientista Roberto Landell de Moura para que concluísse seu trabalho. A república estava cercada. O alto-comando farroupilha de Bento Manuel, sucessor do falecido Bento Gonçalves, trouxera a totalidade de suas tropas à montanha enevoada para proteção do laboratório. As fortificações nas fronteiras do país estavam sendo guarnecidas por crianças, doentes e aleijados. Não houvera outra escolha. Impossível a defesa em todo o território do país de ataques simultâneos em três frentes, do Império Brasileiro ao norte, da República Cisplatina ao sul e da República Argentina a oeste. Pelo mar vieram os dois grandes barcos-vapor encouraçados e os soldados da capital, com todas as máquinas de guerra disponíveis. Os dez dirigíveis, incluindo o gigantesco Garibaldi, capaz de voar tão alto que seus tripulantes precisavam de máscara de oxigênio, que lançava o cuspe amarelo-ácido como uma chuva sobre as tropas inimigas. Trinta mil homens, quarenta canhões sobre esteira, autômatos-lâmina em profusão e dois aceleradores de areia recém-produzidos pela equipe do padre. Bento dispôs seus comandados em círculos concêntricos, tendo a montanha como miolo. Quem a visse de longe poderia imaginar uma gigantesca árvore de natal, iluminada pelas fogueiras dos acampamentos nas florestas. E no topo, como uma estrela, brilhava o laboratório. “Uma árvore da morte”, pensou Bento. As tropas farroupilhas ocupavam posições altas oferecendo resistência aos inimigos, que por sua vez lutavam entre si de forma igualmente alucinada. Juan Manuel de Rosas, ditador argentino, chegara do oeste com onze mil soldados castelhanos em transportadores de esteira, capazes de sobrepujar qualquer terreno enquanto contassem com lenha para suas enormes caldeiras. Queimara no caminho a cidade de Uruguaiana e o povoado de Passo Fundo, despejando água fervente e alcatrão sobre a população que tentou resistir. Ao norte, o Império cruzou por Santa Catarina, comandado pelo aterrorizante Duque de Caxias, metade homem metade máquina, com as entranhas à mostra. Estava acompanhado por cinco mil cavaleiros montados em cavalos de ferro. O exército da República Juliana comandada por Anita Garibaldi em Laguna deixou-lhes livre passagem, fugindo pelo mar e pelo ar para juntarem-se aos farroupilhas no pé da montanha.

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E pelo litoral sul o general uruguaio Juan Antonio Lavalleja, ex-aliado da República Piratini, fez rumo norte com quase dez mil soldados transportados em barcos-vapor, balões, hovercrafts de areia e carros de esteira. Bento ouviu alguns comandantes se referirem aos três como “Os três reis magos do mal”. Por todo o entorno da montanh,a atacantes tentavam avançar e esbarravam nos farroupilhas e em sua selvagem resistência. Os lanceiros negros, a sanguinária tropa de exescravos fugidos da servidão no Brasil, não fazia prisioneiros e costumava procurar nas tropas brasileiras os escravagistas que por ventura estivessem na luta. Como não possuíam lenços ou fardamento, sendo a expressão mais selvagem da pobreza, os lanceiros negros utilizavam o sangue dos inimigos para pintar um arremedo de lenço vermelho farroupilha no pescoço. A mata, preenchida em todas direções por fortuitos disparos. Tropas fustigavam-se mutuamente pelos flancos das colunas dia e noite. Dado o alarme, apagavam-se as fogueiras e assim os combatentes passavam as horas insones, acocorados em seus casacos contra o frio, segurando fortemente as armas. O choro de crianças era ouvido no laboratório e Bento Manuel pensava nos vivos e mortos. Landell voltara da câmara. Sem esconder mais sua perfídia diante dos comandantes, olhou com desejo para o quarto onde as crianças eram mantidas. Em seguida se aproximou da mesa principal do laboratório e passou o cubo sobre o obsceno boneco que então ganhou vida, arreganhando dentes e aspas metálicas por todo o corpo. Um sinistro calafrio percorreu a espinha dorsal do general. “A guerra dá novos significados à crueldade”, pensou Bento, “e tem sido minha única e fiel companheira por vinte anos.” Lá embaixo os mortos ficavam sem enterro, em uma deprimente mistura de cores. O general fechava os olhos e via os casacos verdes do Império, os azuis dos argentinos, os marrons dos uruguaios e os lenços vermelhos farroupilhas semeados nos campos. Máquinas de combate destruídas, bronze, cobre, madeira fumegante e engrenagens, mistura de sangue e graxa, vapor e suor. Seriam os presentes ao pé da árvore? Crianças chorando no reluzente laboratório em bronze, onde Bento tentava manter a moral de seus comandados naquele triste Natal. Gigantescos postes metálicos afixados aqui e ali na montanha faziam saltar raios de energia raadica entre céu e a terra. As notícias não eram boas-novas. Os batedores e os informantes eram unânimes: finalmente os inimigos perceberam que, se continuassem brigando pela supremacia contra os demais, além dos farroupilhas, chegariam à exaustão total sem conseguirem seu intuito. Os três inimigos negociavam um tratado e juntavam forças para a invasão. Bento achava que tinha conseguido explicar a situação ao insano padre. De nada adiantava o homem insistir que não estavam prontos, que não havia sido testado e que o resultado poderia ser desastroso. Teriam que utilizar o boneco, liberar as abomináveis criaturas e também a força raadica em subsolo piratini, torcendo para que fossem menos atingidos que os inimigos. — E que Papai Noel nos perdoe — disse.

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O Velho Bento entrou na roda, tocando seu violão Balalan ban ban Balalan ban ban Vem de lá a feiticeira e Velho Bento caiu no chão Balalan ban ban Quando ele vem, todo requebrado parece um boneco, desengonçado. (Canção infantil Piratini, considerada de crianças mal-comportadas)

Fim do verão de 1886, trinta anos depois da guerra que não acabou Mesmo local O carroção despejando vapor sujo sacudia-se em alta velocidade, correndo perigosamente pela estrada de chão batido. Dentro dele dois homens de aparência dura tentavam não serem jogados para fora do veículo, enquanto lutavam um contra o outro. Uma corda presa na carroceria subia e desaparecia na direção das nuvens, arrastando um enorme e muito estreito dirigível semiderrubado, de onde gritos infantis eram ouvidos. O cocheiro também lutava, tendo abandonado os arreios que seguiam soltos próximos do lombo dos animais em disparada. Mas o homem não combatia outro humano, mas sim duas criaturas que pareciam saídas dos pesadelos mais terríveis de um agente funerário louco, todas ossos, dentes e podridão. Com o pesado cabo de um mosquetão o cocheiro desferiu um potente golpe que arrancou do pescoço a cabeça do inominável mais próximo, fazendo a criatura cair levando mais dois que tentavam galgar o cambão e o coche do carroção. Mesmo assim um dos braços, mais ossos do que carne e tendões, ainda permanecia com a mão fortemente agarrada à bota de couro do homem. A dor era intensa e ele gritava enquanto tentava livrar-se do insuportável aperto no calcanhar, os dedos ossudos pareciam furar o couro. Não teve tempo para mais nada quando sentiu o incrível fedor da mão que, vinda de suas costas, agarrou sua testa e jogou sua cabeça para trás. Em poucos segundos dentes cravaram-se em sua garganta e diversos corpos tombaram, embolados junto com o dele, para fora do veículo. A estrada fez uma curva fechada para a esquerda, na direção contrária à da gigantesca montanha de pico enfumaçado, mas as três parelhas de cavalos que corriam cegamente no entardecer com olhos desorbitados pelo terror sequer pareceram dar-se conta. Com os lombos brilhosos cobertos de suor e sangue, saltaram direto sobre a valeta que marcava o final da via e avançaram por uma antiga plantação de girassóis na base da montanha, esmagando flores e deixando no ar o doce aroma das sementes oleosas. Na estrada, dezenas de abominações jogaram-se sobre o cocheiro que ainda se debatia. O carroção se distanciou da triste cena, ganhando velocidade ainda maior. Algumas criaturas inomináveis permaneciam agarradas em arreios de couro, no cambão e em crinas, abocanhando e arrancando a dentadas pedaços do torso dos animais.

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As rodas de metal do carroção chocaram-se fortemente contra uma grande pedra no meio do campo e o veículo foi jogado para o alto. Por um momento, parecia que o carroção ia voar com o dirigível ou desfazer-se no ar, mas finalmente resolveu acompanhar os cavalos voltando ao chão com um estrondo. Neste momento o homem com o surrado fardamento das forças armadas, insígnias de capitão, recebeu uma forte pancada na cabeça e cedeu vantagem ao outro, que vestia a batina de um padre católico, e que instantes antes estivera com o cano de um azeitado Colt enfiado no meio dos dentes. O padre demorou apenas alguns segundos para perceber que continuava vivo. Era muito alto e magro, calvo, olhos tristes e inchados pelo álcool, a barba branca emaranhada e suja se juntava com os pelos que subiam-lhe pelo pescoço, escapando da gola da batina negra. Sem pestanejar e aproveitando que os cavalos diminuíam o ritmo pela exaustão ou pela perda de sangue, abriu a lona que fechava a traseira do carro. Chutou um inimaginável que arrastava-se atrás, preso por unhas e ossos enfiados madeira: — Vá para o Boneco que te carregue, imundo cadáver! — gritou, vendo o corpo putrefato perder-se entre os girassóis. Virando-se para o interior do carro agarrou o soldado desmaiado pelo casaco, jogandoo também para fora. Permaneceu assim alguns momentos, desfrutando do vento em seu rosto machucado, agarrado nos tubos de cobre que saíam da caldeira do carroção com sua misteriosa maquinaria. Seu descanso durou apenas um par de quilômetros, pois logo se viu sendo jogado pelos ares, dando duas cambalhotas completas e caindo sobre um ressecado monte de palha. Mesmo com a dor ainda teve tempo para observar que o carroção se recuperava do baque e se afastava, deixando para trás o corpo de um dos cavalos que atropelara e duas abominações que continuavam a devorá-lo. O conjunto seguiu com os outros cinco animais ainda correndo em direção ao pico enevoado. Sentindo todos os ossos do corpo moídos, o religioso levantou-se e tateou a batina até encontrar a bainha de couro que envolvia seu crucifixo de aço de noventa centímetros, as pernas do Cristo anormalmente afiadas, os pés, uma ponta aguda. Desembainhou-o e caminhou em direção às criaturas que atacavam o cavalo caído, para conceder-lhes a unção final. Seguiria o carroção depois. Mais uma vez Natanael sonhava o mesmo sonho, o repetido, o inolvidável sonho que o acompanhava desde que podia se recordar, desde a tenra infância no orfanato, antes de ser vendido para o exército farroupilha. No sonho, ele era apenas um bebê; sua mãe, que nunca conhecera, vestia uma roupa de batalha feminina dos farrapos. Era muito loura, com os cabelos presos por uma tiara com diamantes, e ela carregava um sabre sujo de sangue e um mosquetão fumegante. Agarrou-o porque Natanael estivera chorando. Sua mãe desaparecia, e ele chorava ainda mais forte. Logo Natanael era uma criança de três ou cinco anos. Tinha o rosto sujo por fuligem e estava com outras crianças. Uma menina lhe dava a mão. O chão tremeu e os dois caíram. Não sabia se o tremor tinha derrubado a menina ou se era o homem mau, alto e louco, que a jogava para o lado e tentava pegá-lo? Nunca sabia, o sonho não era claro. Um homem barbudo com o lenço farroupilha no pescoço, rosto negro de sujeira e com as roupas chamuscadas surgia. Havia luta entre o homem de barba e o louco. Natanael chora-

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va, queria sua mãe, queria a menina, queria fugir do louco. O homem de barba o segurava e corria. Neste ponto o Natanael adulto se debatia deitado, mas no sonho a criança era impotente para fazer qualquer coisa. Natanael podia ver que desciam uma montanha, que jorrava fogo. Homens e mulheres corriam, e coisas assustadoras apareciam e jogavam-se contra as pessoas. A lembrança da fuga, do fogo e da perda da mãe sempre o acordava. Mas não desta vez, o sono era mais profundo e continuou no sonho. Viu soldados estrangeiros enquanto o homem o carregava para um bote. Com uma mão, o homem atirava e, quando acabou a munição, passou a manejar uma espada, cortando, brandindo e espetando. Chegaram ao bote e Natanael foi colocado no fundo; depois apenas o rosto do barbudo que falava algo, o barulho da água, dos remos, mas o estrondo da montanha era forte demais para que ouvisse... E então o homem retirou das roupas uma corrente, na qual pendia um pequeno e brilhoso cubo dourado e vermelho. Que brilhava intensamente. Intensamente. “Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal Não tem a lividez sinistra da montanha Quando a noite a inunda dum manto sem igual De neve branca e fria onde o luar se banha.” Florbela Espanca

Final do verão, 1886, horas depois Mesmo local A tarde passou, a noite caiu e se adiantou, mas o corpo permaneceu inerte. Já era mais que tempo de começar a transformação, pois à beira da montanha, no coração do território amaldiçoado, qualquer corpo se transformava sem precisar sequer ter sido mordido por uma criatura como nos demais locais. Ali bastava ter morrido para se tornar mais um da legião dos inimagináveis a vagar pela criação, em busca de saciar a fome sem fim, como acontecera até mesmo aos mortos enterrados nos cemitérios da região quando a praga apareceu. Apesar disso, o corpo não dava sinal algum de iniciar a caminhada interminável. Seguia juntando orvalho e de quando em quando tremendo de leve com a brisa noturna. Criaturas indizíveis caminhavam pelas cercanias tropegamente, desinteressadas, mas não se aproximavam. Pareciam na verdade evitar o homem caído. Finalmente ele abriu os olhos e gemeu. Mas o gemido foi de dor, diferente do terrível som grutal dos não criados por Deus. E o olhar não era fixo e alucinado, mas um olhar de quem se pergunta “onde estou?”. Sentou-se tateando o próprio corpo, como se buscando ferimentos. Na verdade a mão do homem subiu para o pescoço, para o lenço vermelho, de onde puxou uma corrente de onde pendia um pequeno cubo avermelhado de cobre e

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com arabescos dourados. Sacudiu a cabeça para se livrar do sonho... O que significaria? No sonho, pela primeira vez, aparecera o cordão e o amuleto que possuía desde bebê, no orfanato. Só que seu cubo jamais brilhara. Impressão sua ou agora apresentava um fraco brilho? “Maldito padre”, pensou, deixando para lá o sonho e lembrando-se finalmente de quem era e de por que jazia naquele lugar. “Quem pode confiar em religiosos, quando se sabe que não existem deuses, quando o mundo se enche de abomináveis?” Levantou-se trabalhosamente, alisando o casaco de lã grossa azul com botões dourados fornecido pelas forças armadas. Devolveu a corrente e o cubo para baixo do lenço. De onde estava, ainda podia ver, na luz fraca do amanhecer, a trilha deixada pelo carroção. Em direção à estrada viu diversos sacos e objetos esparramados, que tinham caído do veículo em sua louca carreira. Deu as costas para a montanha e seguiu mancando para a estrada, parando em cada objeto em busca de comida, água e armas. Nenhuma criatura viva parecia se fazer presente, exceto por um ou outro pássaro que passava voando muito alto, no limite de sua visão. As terras ao redor da montanha pertenciam exclusivamente aos indizíveis. O capitão recolheu o que conseguiu, alguma água, rações e uma barra metálica desprendida do carroção, enrolando tudo em uma lona. Ao longe conseguia distinguir um grupo de árvores frutíferas de diversos tipos, plantadas em espaçamento regular. Era evidente que se tratava de um antigo pomar e, geralmente, o pomar é plantado junto a uma casa. Abrigo era a próxima necessidade. Depois de uma hora e pouco de caminhada avistou o local. A casa era apenas uma ruína sem telhado, mas tinha quatro paredes grossas de pedra e argamassa, com aberturas que poderiam ser facilmente bloqueadas por galhos e madeira. Não havia sinal de criaturas no local, apesar da fogueira acesa dentro da casa. O capitão aproximou-se sem medo de inomináveis, mas com cuidado e com a barra de ferro preparada. A fogueira acesa era atiçada por um homem gordo, vestido com roupas simples, barba vasta e cabelo no mais impossível desalinho. O militar abaixou a barra de metal e se aproximou. O homem na fogueira levantou os olhos e alisou a barba com a mão. Jogou o graveto com que atiçava no fogo e maneou a cabeça. — Sente-se, capitão — disse apontando um espaço limpo que parecia estar ali esperando por ele. — Lembra-se de quando nos encontramos pela primeira vez? O militar sentou-se e deu um largo suspiro. Abriu a lona que carregava e retirou uma garrafa de água, tomando um gole. Olhou para o homem da fogueira e respondeu: — Sim, você me contou a lenda do... Dele. Foi no dirigível-catamarã, parece que muitos anos atrás, apesar de terem se passado apenas semanas. E lá também estava o padre. Enfim — disse tomando mais um gole —, parece que tudo nos leva à montanha, não é? — Não tenho dúvida disso. Afinal, foi lá que nos conhecemos. Talvez seja lá que vamos morrer.

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O Senhor é meu refúgio e minha espada. Ele me livra da sede dos caçadores, da coisa funesta que não foi enterrada e com o sagrado chumbo de suas armas me protege. Não temo mais o terror da besta de fome herege. Caminharei sobre dente e osso, carne e tendão, porém nada me passará, pois encontrei salvação. Eu Te invoquei e Tu me ouviste! Amém.

Início da primavera, alguns meses antes Outro local Em uma manhã de quinta-feira em que o clima mostrava a sinistra tendência de prolongamento do inverno e os ataques das criaturas pareciam finalmente menos frequentes, o capitão Natanael da Cavalaria da República Piratini resolvera deixar a cidade-murada de Montenegro tomando o dirigível-catamarã Rio Verde. Era um homem relativamente jovem e bastante forte, acostumado com a vida militar e o trabalho brutal. Era hábil na espada e lutava como um farroupilha, o que significa vencer sempre que estiver em grande desvantagem, sem saber como, sem se importar. Passou vagarosamente pelas portas metálicas da muralha que isolava o porto do restante da cidade, no momento em que as duas folhas de negro metal reforçado abriram, soltando vapor e deixando avançar a pequena multidão que se dirigia às aeronaves. Duas abominações com as cabeças estouradas eram recolhidas pelos guardas que tinham feito a varredura do local, utilizando velhos lampiões-globo de energia raadica que emitiam uma luz azulada. Apesar da presença dos guardas, o homem utilizava o equipamento militar completo, o grosso casacão de lã azul marinho fechado firmemente nos pulsos, gola com couro negro, lenço vermelho farroupilha e botões dourados, luvas resistentes e suas armas. Na cabeça levava um chapéu de feltro com um par de óculos de piloto presos à grande aba redonda, emoldurando uma cabeleira loura e pesada que crescia até a altura do queixo, que como o resto do rosto era recoberto por uma feroz e hirsuta barba avermelhada. Após ultrapassar os portões esperou que a multidão se dissipasse ao redor, cada qual correndo para seus afazeres à pé ou em pequenas motonetas de metal que flutuavam a três centímetros do calçamento sobre bolsas de ar, largando descargas raadicas pelo caminho. Viu o dirigível-catamarã logo à frente e para lá se dirigiu, com a mão próxima ao punho de seu sabre espanhol Ibarzabal, capaz de separar de um só golpe a cabeça do corpo de qualquer inimaginável que cruzasse o caminho. A limpeza da área tinha sido bem-feita e o oficial avançou sem problemas, carregando às costas o antigo mosquete britânico Brown Bess com calibre ponto setenta e cinco, ignição de pederneira e em coldres no peito dois recém-lançados revólveres Colt modelo Paterson, de seis tiros, que utilizavam um novo sistema chamado “percussão”.

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A aeronave era do tipo padrão, utilizada no transporte de carga e de passageiros. Dois dirigíveis bem estreitos e com mais de duzentos metros de comprimento, ligados entre si por uma estrutura metálica semirrígida, onde eram construídas as cabines e os espaços para carga. Sua principal estrutura, o “convés”, era feita de uma liga flexível estendida entre dois delgados e compridos dirigíveis, dispostos em paralelo. Os dirigíveis podiam aproximar-se lateralmente e então o convés se dobraria suavemente para baixo facilitando o embarque e o desembarque, ou podiam ser acelerados individualmente, o que facilitava as mudanças de direção. Era uma aeronave feita para flutuar a poucos metros da água, seguindo o curso dos rios, e não para voar livremente. O grande diferencial era a confiabilidade e a fantástica capacidade de carga pelo efeito “ar-solo”. Outra vantagem é que, além de poder utilizar-se da grande hélice para empurrar o ar, esta também poderia ser mergulhada no rio fazendo a aeronave ganhar velocidade muito superior. Um carregador que acompanhava o militar deixou sua bagagem junto ao dirigível, onde um autômato pneumático de modelo antigo trabalhosamente erguia caixotes, maletões e engradados e os colocava sobre os ombros metálicos, soltando faíscas de energia e vapor pelos tubos de cobre enquanto ascendia bufando e apitando pela rampa de carga. O militar subiu a bordo e parou na saída da rampa de passageiros junto à amurada, observando sua bagagem ser embarcada. A máquina fazia um enorme barulho e, provavelmente, por isso ele não ouviu os passos de alguém se aproximando. Somente um arrepio o alertou da presença e, virando-se, viu um sorridente homem magro e alto, de barba rente e muito negra, chapéu e uma espalhafatosa roupa de veludo verde e debruada em ouro. — Lindo dia, não é, oficial? Me chamo Dordolio, nobre da casa Ouro y Coralina, em viagem diplomática desde o Reino de Piulla, antiga ilha da extinta República Juliana — disse o homem, animado. Natanael fez uma saudação quase imperceptível para o gringo e voltou-se rapidamente para o porto, onde o autômato descia a rampa para buscar nova carga. Nenhum farroupilha gostava de ver os gringos ocupantes, muito menos de ouvir falar na “extinta República Juliana”. Mas o cúmulo era chegar-se a alguém sem ser anunciado ou fora da vista. Isto era considerado ato extremamente imprudente. Só o fato do militar estar tranquilo quanto à ausência de criaturas inomináveis na região tinha evitado que puxasse Ibarzabal de sua bainha. De esguelha, Natanael notou que o estrangeiro continuava no mesmo local sorrindo e acompanhando o trabalho do autômato, sem dar-se conta das grosserias cometidas. Naquele momento uma caixa pesada demais fez com que o braço inteiro da velha máquina soltasse do ombro e, sem perceber a avaria, ela seguia apitando e tentando levantar o peso, indo e voltando de forma confusa. — Rá, rá, rá! — riu-se Dordolio, apontando para o autômato. — Que boneco mais idiota e ultrapassado! Sem pensar Natanael sacou os dois revólveres Colt que levava em coldres junto ao peito e os apontou para o estrangeiro, que recuou assustado com as mãos voltadas para as armas. — Desculpe-me, desculpe-me! — gritou, suando frio. — Esqueci-me totalmente do tabu em relação aos bone.... a essa palavra!

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Natanael retirou lentamente o dedo do gatilho e notou que tinha puxado o cão das armas por puro reflexo. Abanou a cabeça e afagou o amuleto da sorte que levava por debaixo do lenço. Já havia recolocado as armas no coldre quando diversos aeronautas aproximaram-se correndo. — O que está acontecendo aqui? — perguntou o proprietário do dirigível para Dordolio. — Foi inteiramente culpa minha, senhor — asseverou o homem. — Um mal-entendido. Peço desculpas a todos pela minha ignorância de estrangeiro. Ao olhar inquisitivo do homem, Natanael respondeu meneando afirmativamente a cabeça. Por sua vez o proprietário deu de ombros e se voltou aos abundantes afazeres de preparação para a decolagem. A primeira parte da viagem transcorreu tranquilamente, as horas se sucedendo no suave e hipnótico balançar da aeronave enquanto passava por uma bacia de rios e lagos interligados chamada simplesmente de “Guaíba”. A região fora um dia habitada por indígenas e mesmo depois de seu desaparecimento permaneceu fracamente povoada, até antes da praga. Em determinados momentos se podia avistar um ou outro dos abomináveis parados à margem, observando tristemente os vivos que passavam fora de seu alcance. Alguns chegavam a afundar na água até o peito, antes de estancarem gemendo baixo. O dirigível fez breves paradas em portos de cidades fortificadas e entrepostos comerciais, momento em que autômatos recauchutados subiam e baixavam mercadorias, com a indiferença de um ou outro grupo de criaturas que espreitavam os vivos a bordo. Em uma dessas paradas, um grupo de cavalheiros na popa, juntamente com o proprietário e o piloto da aeronave, tratava de dar fim aos amaldiçoados com suas armas, comemorando cada acerto com uma salva de vivas e muitos cumprimentos ao atirador bem-sucedido. O proprietário chamava-se Banegran, um nome bastante curioso com um certo ar de pirata. Apesar disto sua atarracada figura e respeitável barriga pouco lembrava o físico de um selvagem aventureiro dos mares, estando muito mais de acordo com a pacata atividade aérea mercantil. Com ele revezava-se o mesmo cavalheiro em roupas douradas e verdes, Dordolio, que atirava e se vangloriava. Em paralelo havia um velho grande e gordo, de barba vasta e branca e chapéu esquisito, cujo nome era Athanazio mas que preferia ser chamado de “Traz”. Era uma cabeça mais baixo que Natanael, mas parecia de constituição sólida. Usava roupas rústicas, de confecção quase certamente doméstica, bem adequadas à viagem. Comparadas às roupas de Dordolio o sujeito poderia ser tomado por um mendigo. Natanael percebeu que, além de Dordolio, Traz também o observava, sinal de que fora assunto entre o grupo. O capitão notou que o velho somente atirava quando os demais atiradores acertavam um dos infortunados, mas não conseguiam destrui-lo; o infeliz deve ser alvejado em cheio na cabeça. E a sua pontaria parecia prodigiosa. Misericórdia para com os amaldiçoados era um conceito novo, mas que fez Natanael respeitá-lo mais do que pela mira. — Quer juntar-se a nós para uma cordial disputa, oficial? Melhor ainda se temperada com uma modesta aposta! — Dordolio convidou com um torto sorriso na cara. — Prefiro ficar apreciando a técnica dos senhores — respondeu.

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Neste momento, aproximou-se da coberta onde todos se encontravam uma jovem beldade ruiva, dirigindo-se ao proprietário da aeronave. Era uma moça de pele muito clara e cabelos lisos e compridos, olhos escuros inquisitivos e delgada de corpo. Parecia estar na casa dos vinte anos. — Senhores, apresento-lhe minha filha — disse o homem —, Petúnia. A moça sorriu e fez uma graciosa mesura, para depois se postar ao lado do pai. Dordolio ficou claramente agitado com a presença da beleza e voltou novamente sua atenção para Natanael. — Capitão! Nós, e certamente falo pelos demais, gostaríamos de aprender suas técnicas militares. Se acaso não deseja desfazer-se de algum chumbo nos infelizes, que tal um exercício de esgrima? — E dizendo isso sacou vagarosamente a enfeitada espada que trazia embainhada ao cinturão. A ruiva suspirou emocionada diante da expectativa de um combate, que quebraria a monotonia da vagarosa viagem e serviria para afastar o pensamento das abominações semipútridas que espreitavam próximo. A espada de Dordolio era tão incomum quanto o próprio. Sua lâmina era decorada com a figura de um jesus crucificado, e a empunhadura era a trave transversal onde se prendiam os braços do ser mitológico da igreja católica. Era também muito mais comprida do que seria de se esperar, e flexível de forma demasiada. Estas características, no entanto, não traziam infelicidade ao seu proprietário, que sem esperar a aceitação do desafio já se desfazia do casaco e ensaiava golpes, pinchaços e estocadas no ar pelo convés. Acompanhava o gestual de mãos batendo ruidosamente os pés na madeira, enquanto marcava o ritmo com exclamações do tipo “vamos!” e “isso!”. Natanael observava espantado a performance de Dordolio, e antes que pudesse recusar o absurdo desafio sentiu um toque em seu cotovelo. — Aceite o desafio. Eu mesmo colocarei mil pilas na sua vitória contra o presunçoso autodenominado nobre — disse-lhe Traz. Enquanto o capitão ouvia Traz, a jovem não deixava de paparicar Dordolio. Assim incentivado retirou uma bolsa de veludo da cintura e jogou sobre a coberta. — Ai está, capitão! São cinco mil pilas apostados em primeiro sangue, desarme ou imobilização do oponente. Para ser justo, aviso-lhe que sou mestre em esgrima pela academia de Castellana de Colina — disse. — Eu mesmo possuo algum treinamento — respondeu Natanael, desembainhando os setenta e nove centímetros da maravilhosa lâmina de Ibarzabal e apresentando uma saudação ritual de esgrima. Imediatamente, Dordolio fez uma rápida saudação e avançou em seu estilo desengonçado, dando golpes vigorosos à esquerda e à direita, fazendo gestos teatrais com o outro braço e soltando animados brados. Apesar da potência dos golpes, o militar os aparou sem maior dificuldade, recuando alguns passos e deixando Dordolio propor o jogo. Boa parte do trabalho na aeronave foi parada, e muitos curiosos formavam um vasto círculo ao redor da contenda, incentivando, gritando e aplaudindo.

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— Ah! Agora está ficando encurralado junto à amurada — gritou o gringo para a moça, enquanto aumentava a quantidade de golpes. Dordolio avançava confiante, ruidoso e animado. Finalmente quando Natanael se encontrava no final do convés quase de costas para a amurada, Dordolio tentou um rápido floreio para desarmá-lo. A moça gritou entusiasticamente. No último momento, Natanael balançou o corpo para um lado e jogou-se para outro, agilmente escapando de seu ineficaz oponente e, de passagem, atingindo-o com a lâmina de Ibarzabal na fivela do cinto de couro roxo que prendia-lhe as calças. Assim que atingido, Dordolio voltou-se desconcertado. Com as posições dos esgrimistas agora invertidas, o desafiante parecia indeciso entre segurar as calças ou a espada, a imagem da descompostura. — Concedo-lhe armistício, enquanto recoloca as calças, Dordolio. Não seria cortês que continuássemos o exercício colocando em risco o pudor da senhorita — falou o Capitão, virando Ibarzabal de lado, em sinal de trégua. O público foi à loucura ao redor. A jovem ria discretamente, mãos à boca, para fúria do oponente que ficou vermelho como um pimentão. Para surpresa de Natanael, o homem recuperou-se, saudando-o com seu desengonçado sabre. — Excelente manobra, Capitão. E agradeço-lhe pelo exercício. Creio que faz jus ao valor da bolsa de aposta. Retiro-me agora, já que necessitarei de novas vestes para substituir estas. — Muito bem dito, senhor Dordolio! Mostra que é um verdadeiro cavalheiro — comemorou Benagram, que tinha ficado com o encargo de ser guardião das apostas e puxou uma salva de palmas encerrando o assunto e mandando todos de volta ao trabalho. Ao cair da noite o proprietário convidou todos passageiros da primeira classe para jantar. A grande mesa da sala comum incluía, além dos cavalheiros Traz e Dordolio, quatro freiras-silenciosas que faziam uma peregrinação qualquer, liberadas do voto para a viagem. O anfitrião revelou-se um excelente contador de causos, distribuindo um ótimo vinho verde de Açores enquanto servia uma colação composta de enguias ao vinagrete, carne de caça frita na gordura de pato e pudim de leite de cabra. Sua esposa era bonita e espirituosa, muito parecida com a filha. Durante o jantar a bela Petúnia brindava Natanael com intensos olhares. Dordolio parecia outra pessoa, mostrando-se ensimesmado e distante. Ao final, foi servido um vinho colheita tardia, doce e licoroso. Todos sentiam-se soltos, resultado evidentemente da bebida alcoólica e da intimidade forçada da aeronave. A moça, como assaz acontece com a juventude, ultrapassara um pouco o limite e se mostrava alegre em demasia. Para surpresa geral, a madre-superiora falou: — Enquanto estamos aqui em manifestações pouco cristãs de felicidade — disse, olhando severamente para a jovem —, há desafortunados que padecem de uma maldição terrível aí fora. Se me perdoam, voltaremos aos nossos aposentos. Enquanto as freiras levantavam-se e partiam, a alegria também ia se esfumaçando da mesa pela lembrança das criaturas à espreita. Dordolio subitamente também se levantou e saiu silenciosamente. A noite seguia perfumada e a aeronave deslizava tranquilamente bem no meio do rio. Natanael encontrara uma cadeira e desfrutava a companhia da linda jovem, cujos doces lábi-

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os ronronavam suave e profundamente a cada beijo, junto da amurada, quando sua atenção foi atraída por alguém que caminhava ruidosamente na direção do casal. Era Traz. — Venha, tenho que mostrar-lhe algo urgentemente. Siga-me. Natanael despediu-se da desencantada moça e relutantemente acompanhou o outro homem. Traz caminhava sigilosamente, aproximando-se das cabines da popa onde se encontravam as freiras. O militar seguia-o curioso e, cada vez que tentava questionar o motivo do segredo, era calado com um gesto de silêncio. Chegaram a uma cabine isolada, construída rusticamente em madeira fora do padrão das demais, como se feita somente para acomodar para aquela viagem alguém que desejava privacidade. — Veja, capitão. Olhe pela fresta da janela e diga-me o que vê. Natanael colocou um dos olhos na fresta e, na luz bruxuleante da cabine, pode ver uma dezena de crianças pequenas, entre cinco e dez anos. Meninos e meninas, sentados no chão, em uma espécie de transe. À frente das crianças, as freiras ajoelhadas rezavam com a cabeça voltada para um homem alto em uma batina, um padre, com uma larga barba branca e olhos cansados. Olhando mais atentamente, quando uma das mulheres se movimentou deixando a luz chegar mais longe, Natanael viu mais uma pessoa ajoelhada aos pés do padre: Dordolio. Natanael recuou espantado para questionar Traz sobre o significado daquilo tudo, mas o homem tinha sumido. O militar voltou a aproximar o olho da fresta. As luzes tinham se ido e não se via ou ouvia nada, exceto a água revolvendo-se no rio lá embaixo, a madeira estalando e o som de vento e da hélice. Sequer as demais máquinas a bordo pareciam estar funcionando, o que provavelmente era o caso. Após alguns segundos uma luz focalizada deixou um lado da cabine e projetou um clarão na parede oposta. No caminho do feixe, na penumbra, todos se encontravam sentados ao chão. Um lampião de energia raadica brilhava dentro de uma caixa entre dois grandes rolos. De um rolo saía uma escura fita que passava por trás de uma lente, avançando até o segundo rolo. A luz então projetava na parede o que quer que estivesse na fita. Não apenas Natanael ficou abismado pela aparelhagem tão fantástica, mas também porque neste momento a imagem mostrava seu enfrentamento com Dordolio! Podia claramente ver sua figura esgrimindo o sabre de frente enquanto Dordolio avançava saltitante de costas. O padre e as mulheres discutiam apontando a imagem. Apesar de Natanael não poder escutar o que falavam, já que segredavam baixinho, entendia pelos gestos que comentavam sobre sua pessoa. Em determinado momento a imagem foi parada e todos examinaram suas feições, vestes e armas. Era perturbador. Quando as imagens recomeçaram a avançar o padre soltou um grito, e então novamente a luzimagem ráadica (como Natanael passou a chamar mentalmente) foi parada. O clarão mostrava o rosto de Traz. O padre entrou em grande agitação, apontando aqui e acolá. O militar achou que era o melhor momento para se afastar, sem fazer barulho e mais uma vez recuou de costas. Um barulho às suas costas, um vulto e depois apenas a pancada na lateral da cabeça, a queda para frente e a batida com o rosto no chão. Teve imediata certeza de que estava no depósito do dirigível-catamarã, já que ao longe se via dois autômatos de carga desativados. “Segunda vez em apenas uma viagem que sou surpreendido, devo estar enferrujado”, pensou o capitão quando voltou à si.

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O lugar era desagradável, sujo e escuro, úmido e cheio de ratos. Os grilhões que prendiam seus punhos à curta corrente passada em torno da enorme argola chumbada em uma viga grossa de madeira também não ajudavam. O militar sentia a cabeça latejar e o nariz machucado coçar. Tinha sido despojado de tudo, exceto das roupas. Tomaram até o seu amuleto da sorte. Ao seu lado Traz gemia, semidesacordado na escuridão, preso com grilhões à mesma argola. Não era possível ver claramente, mas a surra parecia ter sido feia. A carga estava espalhada por todo o lugar, em grandes prateleiras suspensas instaladas nas paredes laterais da aeronave. Natanael consegui levantar-se parcialmente, esticando as pernas e abaixando o tronco, já que a corrente não deixava que fosse adiante. Era uma posição desconfortável, cruel e que sequer dava chance de forçar com as pernas a argola para ver se soltava. O dirigível com certeza estava estacionado. O único movimento era leve e lateral, como de suaves ondulações no rio, seguramente causadas por rajadas de vento. — Deixe-me contar a lenda — disse Traz de repente. — Não acredito que você seja um dos supersticiosos que não podem ouvi-la sem considerar ofensa. Natanael não sabia quanto tempo passara em seus devaneios, nem percebera o homem acordar e se sentar. Enrugou a testa à menção da lenda. — Não vejo qualquer relevância ou ligação entre a lenda e o que você me mostrou na cabine das freiras — respondeu. — Prefiro que me diga o que está acontecendo aqui. Além disso, como qualquer pessoa em Piratini, eu conheço a porcaria da lenda. — Deixe-me contar a lenda na forma original, como a ouvi há trinta anos, e talvez veja a relevância e me permita explicar o que está acontecendo, na minha opinião. “A lenda contava que o velho era, sem dúvida, muito velho. E muito, muito magro também. Que parecia quase tão seco e desconjuntado quanto os bonecos de madeira e bronze que, a cada mês, esculpia, fundia e entregava discretamente atrás de seu chalé para a feiticeira do mar de Torres. “Na madrugada do primeiro dia que se seguia à noite de lua nova, a feia feiticeira descia furtivamente da alta montanha da neblina que ficava entre a vila e o mar, em um carroção puxado por doze burrinhos novos. Trazia a raríssima madeira-sábia em blocos de sessenta centímetros de altura e levava os bonecos feitos pelo velho com a carga anterior. Também entregava um saco de estopa com conjuntos de roupinhas infantis, vestidinhos, calçolas, meias, bermudinhas, camisetas, sapatinhos e casquetes. Para cada conjunto de roupa no saco, o velho deveria construir um boneco, que seria vestido e entregue na próxima lua nova, junto com toda a sobra de madeira. “‘Silêncio e segredo’, sussurrava a feiticeira, ‘segredo e silêncio.’ E tilintavam moedas de ouro que logo trocavam de mãos. “O velho trabalhava há anos e anos, sempre tentando não pensar na aparência de recém-usadas das roupinhas, nas crianças que desapareciam nos povoados próximos e nem nas luzes coloridas que se viam na montanha. Nas noites de céu limpo e de vento favorável, era possível ouvir a música de órgão, os gritinhos animados e as risadas infantis que iam sumindo uma a uma, até o amanhecer silencioso como um cemitério.

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“Ao longo dos anos o velho conseguiu burlar a vigilância da feiticeira até juntar suficiente madeira-sábia que economizara aqui e ali para fazer um boneco só seu. Vestiu-o com roupas da sua infância, colocando-o no fundo falso do armário do ateliê junto ao seu ouro. ‘Minha maior obra, meu sonho terminado’, pensou. “Naquela noite a feiticeira apareceu, sem que fosse a madrugada da lua nova. Entrou na casa, empurrou, bateu, gritou, revistou e derrubou canos, fios e equipamentos. O velho acocorado em um canto, sem questionar, sabia o que ela procurava e sentia-se culpado. “‘Alma de mentiroso, alma de traidor’, ela disse finalmente, sem preocupar-se em perguntar onde ele tinha escondido o boneco. Aproximou-se do velho que se encolhia cada vez mais no canto, tremendo. “A feiticeira abaixou-se, esvoaçando suas vestes negras. Com uma brilhosa luva de escamas metálicas, apanhou um cubo pingente, tocando o velho e puxando-lhe o nariz. “‘Ser falso, esquivo e inconfiável, receba a chaga da mentira”, disse ela. Enquanto o homem torcia-se em agonia segurando o rosto e o transformado nariz gigantesco e entumescido, a feiticeira partiu. “Próximo da meia-noite, uma voz: “‘Papai”, ouviu o velho, ‘não há mais perigo, papai. Ela se foi’. O homem correu para o depósito secreto. O boneco parecia igual, imóvel pendurado em cordões no gancho do compartimento falso do armário. Foi quando viu os olhos: aqueles olhos de madeira, quase femininos, esculpidos com a firme mão de um experiente artesão. Eram pontos escuros, os pontos mais negros do universo, mas estavam vivos. “‘Sim, papai, sou eu, seu filho, sua obra’, o boneco falava. ‘Meu filho’, disse ele, ‘meu filho.’ E caiu de joelhos escondendo o pranto com as mãos. “‘Por que choras, papai?’ “‘Porque eu menti e a feiticeira me puniu com isto!’ Virou o rosto e mostrou a mácula em sua face. ‘Não, papai’, disse o boneco. ‘A feiticeira te puniu me dando uma vida abominável e muito, muito apetite por carne.’ “E então a montanha explodiu, e outras montanhas surgiram por todo o mundo, sufocando as nações, levando a maldição a todos os confins e retirando do homem o comando de seu próprio destino.” “ Se o demônio atentar as almas. Diz-se: ‘Arreda, arreda Barrabás. Os campos de Judas faz. O teu dono é Satanás. Essa alma não é sua Nem conta com ela farás. Esse corpo é de Deus, O seu caminho está feito. Vai em direção aos céus, deixa-o morrer em paz.’”

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— Essa lenda, meu jovem, é bastante verdadeira — disse Traz ao final da narração. No escuro os ratos corriam e guinchavam, enquanto os dois homens procuravam a melhor posição para aliviar suas dores. Natanael não mostrou qualquer interesse em debater o assunto, estava exausto. Já tinha visto todo tipo de louco neste mundo insano. Gente falando todas as línguas, vindas de nações distantes destruídas pelas forças da terra quando derramavam seu sangue incandescente sobre os vivos, buscando refúgio arriscando-se pelos caminhos deixados a própria sorte diante dos inimagináveis. “Como manter-se são?”, pensou. — É claro — continuou o homem — que o formato da história foi enfeitado, distorcido e simplificado pela tradição popular. Mas no âmago, ela é verdadeira. — E qual seria o âmago, meu velho? — perguntou o militar. Pensou que talvez fosse melhor conversar para passar o tempo. Traz ajeitou-se e tomou um pouco de ar. Fungou e apontou o nariz para Natanael, que na escuridão não percebeu. — Tive oportunidade de assistir quando você quase matou Dordolio. — Não cheguei nem perto de matá-lo — respondeu o capitão —, apenas corteilhe o cinto. — Me refiro a quando puxou suas armas à menção da palavra “boneco”. Natanael novamente sentiu aquela palavra travar em sua garganta, mas lembrou-se do ocorrido com Dordolio e percebeu o absurdo da situação. — E? O que tem isso? — Observei que você, depois do evento, puxou do pescoço uma corrente com um pequeno cubo na ponta. Um cubo de cobre e ouro, que você possui desde bebê. Natanael sentiu a barba e os pelos da nuca se eriçarem e de um salto tentou se endireitar, esquecendo-se de que estava preso. A dor foi terrível. — Como sabe que o possuo desde bebê? Quem é você afinal? O que quer de mim? — Eu estava lá quando você recebeu, porque fui eu quem te deu — disse Traz — Foi na montanha enevoada, no dia em que o mundo se desfez. Você era quase um bebê e eu o salvei, e o amuleto pertencia ao padre louco. Na lenda, ele virou em parte a feiticeira, em parte o velho. A noite passara, o dia também. O dirigível seguia parado para surpresa dos dois cativos. Ninguém apareceu. Traz e Natanael passaram todo o tempo em seus próprios pensamentos, pensando nas histórias contadas, mas acima disso, puxando cada qual de seu lado a argola. Era difícil, trabalhoso e exaustivo. As mãos doíam, os pulsos sangravam. Mas a peça de metal já se mostrava muito mais solta do que no início. O capitão pensava sobre o fato dele, Dordolio, o padre e Traz se encontrarem numa mesma viagem, no mesmo dirigível, ligados por estes fios de teia de aranha do destino. Não

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tinha dúvida de que o velho soldado, apesar de querer aparentar sinceridade, tinha o hábito de esconder informações. No momento conseguia supor que o padre, depois da tríplice invasão, foi de alguma forma cooptado pelos castelhanos que fugiram da morte e tomaram a República Juliana, fundando Piulla. Isso explicava a ligação entre Dordolio e o padre. Mas o que dizer dele, e que planos tinha Traz? Tratava-se de algo que, de momento, deixaria para mais tarde. — Quer dizer que você foi soldado durante a tríplice invasão, antes do mundo mudar? — perguntou Natanael. — Sim, eu era ordenança. Um jovem, como você é agora. — Por que motivo me salvou, se eu era apenas mais uma criança órfã que seria utilizada pelo padre? — A guerra foi a mais suja que já existiu. Me envergonho das crianças. Achei que, salvando você, eu estaria me redimindo em parte. Tive medo de destruir o amuleto, ou de tentar. Poderia, sabe-se lá, destruir o mundo ou um país. Resolvi deixar com você, porque o padre procuraria por mim apenas, não se lembraria da criança. — Por um momento, teria matado você... se estivesse livre. Eu tenho este sonho... Mas deixe para lá. Finalmente o som de metal se desprendendo da madeira. Estavam livres, ao menos, livres da viga. Continuavam acorrentados em grilhões, e juntos teriam que carregar a pesada argola. Cautelosamente seguiram até o final do grande depósito e, sem alternativa, arrombaram a porta. Prepararam-se para uma luta desesperada que não veio. O dirigível continuava silencioso. Subiram outra escada e finalmente saíram no convés. — Olhe! Criaturas! Dois inomináveis, braços estendidos e dentes arreganhados, mancavam em sua direção. Tinham corpos muito pútridos, cobertos por fungos e musgo, como se tivessem já muita idade. Os dois homens se olharam e, esticando as correntes com a argola no meio, arremeteram contra as criaturas. O choque do metal pesado foi demais para os velhos inomináveis, que praticamente se desmancharam no chão. O capitão tentou correr para longe dos corpos, mas Traz segurou-o, olhando para as criaturas destruídas. — Estes são dos meus. Veja os restos dos uniformes. Foram soldados, transformados na noite em que o mundo parou por terem sido atacados pelas criaturas do padre, trinta anos atrás. Deixe-me prestar-lhes uns segundos de homenagens — pediu o antigo soldado. Depois de recobrar o domínio sobre as emoções, o homem lembrou que tinha visto ferramentas na sala ao lado do paiol. Assim que se viram livres dos grilhões, passaram a explorar o dirigível. Primeiramente perceberam que não se encontrava simplesmente parado, mas sim encostado na margem sobre uma tosca construção de madeira, com as rampas baixadas. Por ali deveriam ter subido

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os abomináveis. A aeronave estava agora com apenas um dirigível, o outro tinha sumido. O peso do convés era suportado, em parte, pela estrutura de madeira. Ninguém a bordo. Deveriam estar em algum ponto fora da rota. Não mais no braço navegável principal, mas sim em algum canal. Outro ponto é que a montanha enevoada, território absolutamente proibido, estava à vista. Os dois homens seguiram a pé, deixando o dirigível inútil. Encontraram provisões e dois sabres antigos, mas nenhuma arma de fogo. Enquanto caminhavam por terra, um terreno lamacento próximo do canal, encontraram a mulher do dono do barco, ou melhor, o que sobrara dela depois de devorada por inomináveis. Na falta de ferramentas para uma sepultura decente, apenas dedicaram alguns momentos e lamentaram o triste fim da simpática mulher. Enquanto faziam esta singela homenagem, Natanael sentiu um calafrio na espinha e voltou-se no exato momento em que corriam para ele outras criaturas. Sem pestanejar sacou o antigo sabre que descobrira no navio e girando-o no ar decepou a criatura em um formidável corte. Enquanto a cabeça voava pelo ar teve tempo de reconhecê-la: a encantadora jovem ruiva, filha do proprietário da aeronave. A outra criatura não era outra que o finado Banegran, que avançou para Traz e recebeu igual tratamento. Natanael viu o corpo da linda Petúnia sem cabeça no chão. Lembrou-se da doçura de seus beijos, do aroma da sua pele, do riso jovem e sofreu com o pesar pelas aspirações que imaginou que ela possuía. Sentiu uma onda de ódio como jamais antes na vida. O padre, se era verdade a história contada por Traz, era responsável pela morte de Petúnia e pela tragédia que se abatera sobre todo o mundo. Ele iria pagar. Mesmo se já estivesse transformado, Natanael prometeu que encontraria uma forma de aumentar-lhe a desgraça. — Vamos sair daqui antes que toda a tripulação apareça — disse Traz — se bem que não me importaria de cortar a cabeça de freiras e padres... O sol seguia alto quando atingiram terreno seco, um pampa com uma cheirosa relva nativa. Ao longe podiam notar pequenos sinais antigos de civilização. Um terreno com árvores idênticas plantadas regularmente, uma clareira, o leito de uma velha estrada em ruínas. Seguiram pelo campo, tomando cuidado para não se colocarem próximos dos pequenos grupos de inomináveis que avistavam. Sem saberem o porquê, seguiam em direção à montanha. Uma noite, depois de dias de caminhada, Traz desapareceu. Natanael acordou e o homem tinha ido, levando consigo apenas os próprios objetos pessoais. Três dias depois, o militar encontrou o padre.

Havia fumaça no horizonte e automaticamente Natanael foi na direção da fonte. Avistou um enorme carroção com uma chaminé fumegante e, ao que parecia, corpos. Preso por uma corda ao carroção o enorme dirigível desaparecido, flutuando agora com um cesto amarrado em sua parte inferior, contendo as crianças que choravam e se debatiam.

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O padre jazia desacordado. Ao seu lado o corpo de duas freiras transformadas em abominações, sem as respectivas cabeças. O corpo de Dordolio alguns metros mais longe, atropelado e pisoteado pelos cavalos que puxavam o grande carroção. O veículo possuía uma estranha maquinaria de bronze e cobertura de lona. O capitão aproximou-se do padre. Estava vivo e, em seu pescoço, levava o amuleto de Natanael. Brilhava perceptivelmente. O homem tossiu e o militar avançou sobre ele. Natanael arrancou-lhe a corrente do pescoço com raiva. O religioso gemeu e se contorceu no chão, como se lhe tivessem apertado o coração com a mão nua. Enquanto Natanael recolocava a corrente com o amuleto de volta ao redor do pescoço, o homem no chão abriu os olhos desorbitados e saltou como uma mola sobre ele. Natanael acertou com gosto um forte chute no padre e imaginou que o velho não mais levantaria. Para sua surpresa o homem apenas bateu de costas no carroção, assustando os cavalos. Urrou e subiu pela parte traseira do veículo. Estava claro para Natanael que estava procurando alguma arma de fogo. Um tiro vindo de trás. O militar voltou-se e viu outro homem correndo, um desconhecido perseguido por diversos inomináveis. Vinha em direção à boleia do carroção, parando de vez em quando para atirar nas criaturas com uma antiga arma. Enquanto o desconhecido conseguia subir no coche perseguido de perto pelos indizíveis, o capitão se aproximou da parte traseira do carroção a tempo de ver o padre levantar um de seus Colts, que estivera provavelmente escondido em alguma caixa no interior do veículo. Em um só movimento se jogou para dentro da caçamba e com as mãos tentou agarrar a arma. Outro tiro. O relincho dos cavalos. O carroção disparou levando todos, vivos e mortos. “Entre nós reviva Atenas para assombro dos tiranos Sejamos gregos na glória e na virtude, romanos” Trecho do hino piratini

A fogueira crepitava fracamente quando Natanael terminou de contar o restante de sua jornada e o encontro com o padre para Traz. — Esse padre — disse Traz — é o mal. Ele é responsável pela mudança do mundo, juntamente com Bento Manuel e todos os outros líderes que queriam o poder supremo prometido pelo louco. E você foi a única criança salva, as demais foram sacrificadas por Landell para criar o boneco e suas criaturas, para ganhar a guerra... E ele despertou o fogo do centro da terra, destruindo mais cidades e matando mais gente em todo o mundo do que ninguém. Você certamente se beneficiou em algum momento do tratamento a que foi submetido quando era pequeno, como preparação para o uso pelo Padre. Você é único. — Como assim? — perguntou o militar

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— Nunca percebeu que os inomináveis não te atacavam como aos demais? Que a sua presença os confundia? — perguntou Traz. — Provavelmente não. Não tinha motivo para acreditar em algo assim, mas obviamente isso te ajudou na carreira militar. Ainda mais com o amuleto. A estranha ciência do padre Landell não apenas criou o exército de inomináveis, mas em certo aspecto também os controla. Não tanto como ele acreditava que poderia controlar, e isso foi a desgraça que você conhece. Natanael girou o amuleto estranho nas mãos. Nunca antes tinha olhado para o objeto como agora, e sentia-se ligado a toda essa história como se sua vida culminasse neste ponto, atingisse o ápice no desenrolar dos fatos das últimas semanas. — Você acredita que ele está voltando para a montanha para terminar o que começou? — Sim — respondeu o velho soldado. — E aquele carroção, pelo que suspeito, é a tentativa dele de reproduzir o efeito do seu amuleto. Este amuleto que você tem em mãos demorou muitos anos e custou a fortuna da República para ser feito. Ele não conseguiria criar outro com o mundo do jeito que está, as nações mal e mal se sustentando diante do sangue da terra e da praga de indizíveis. Mas sem algo como o amuleto o padre não poderia despertar o boneco, muito menos controlá-lo e às criaturas. Agora ele sabe que você possui o amuleto original e que você irá atrás dele, a atração é irresistível. — Por que você sumiu? — perguntou o militar mudando de assunto, já que não queria revelar ao outro a sua desconfiança sobre o que ele contava. — O que há neste lugar? — falou gesticulando para a casa semiderrubada. — Eu tinha que vir até aqui. Esta era a minha casa, minha família estava aqui na época da tríplice invasão. Depois que vi aquele soldado original que destruímos, trinta anos depois do evento, fiquei imaginando se os meus ainda vagavam por aqui. Tinha que vir e dar-lhes repouso. Felizmente encontrei apenas covas e lápides, parece que morreram antes do final do mundo, na guerra. — A montanha realmente parece falar comigo através deste amuleto — constatou Natanael. — Sinto o poder dele fluir para meu corpo, para minhas veias. — Veja, encontrei seu sabre... — Traz mostrou a linda arma, puxando-a de seus alforjes. — Ibarzabal! Tê-la novamente me faz completo. — O padre nos espera no alto. O boneco nos espera — disse Traz. — Devemos seguir e encerrar este capítulo no mundo. Nosso caminho é por esta estrada que serpenteia ao redor da montanha e, se o mundo de amanhã tiver amaldiçoados comandados por um louco e um boneco demoníaco capaz de destroçar exércitos, é porque falhamos. — E as crianças. Eu fui uma delas. Mais do que pelas pessoas deste mundo louco, darei minha vida para salvá-las, e mesmo minha morte. Aqui, neste dia, nesta manjedoura, prometo servir a esta tarefa. Ao raiar daquele dia com uma mão sobre o estranho amuleto e a outra no poderoso sabre Ibarzabal, na companhia de um velho soldado sobre o qual tinha dúvidas, Natanael rumou para a estrada no sopé da montanha.

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À medida que avançavam pelos campos e florestas, centenas de inomináveis originais, talvez milhares, deixavam buracos de onde não saiam há anos ou décadas. Surgiam arrastando-se por detrás de árvores, deixando pelo caminho restos de antigos uniformes descoloridos, como se todos agora pertencessem ao mesmo exército. Levantavam-se cambaleando, sorrisos arreganhados, mãos em garras, para se perfilarem atrás dos dois homens como se ainda fossem soldados formando tropa, como se a batalha de trinta anos antes estivesse para terminar. Natanael deu o primeiro passo em uma estrada que não era usada havia trinta anos, e este primeiro passo, o primeiro cascalho esmagado nesta caminhada, foi o início de uma nova lenda. E o fim de um capítulo para o mundo. FIM (por enquanto)

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| o r i e t e l e P | n irata

|Ub

Em meio a um mundose arrasado pelo apocalipurge zumbi, um novo ser snte, em um abrigo decade é e um velho médico obrigado a tomar uma difícil decisão. 78


O Doutor passava perto da muralha, quando lá de cima alguém o chamou: — Doutor, dá uma subidinha aqui! Era Rafael, um dos guardas do Abrigo 47. Quase um garoto, devia ter uns dezesseis anos. O Doutor o conhecia desde o primeiro suspiro. Fizera o parto dele, assim como o de todos que tinham nascido no Abrigo. — Estou com fome, Rafael. Vou almoçar. — Rapidinho, doutor. É uma coisa legal que descobri. Vem cá. Passara a manhã toda no hospital, tratando dos vários pacientes. Os refugiados chamavam o hospital de “barracão”. Mas era um barracão mesmo. Um hospital de campanha improvisado. O Doutor trabalhava mais como curandeiro do que médico, tal era a escassez de recursos, incluindo medicamentos. Teve que redescobrir a fitoterapia para prosseguir no ofício. Começou a subir as escadas, os ossos velhos doíam nas juntas. Quanto tempo mais até que ele trocasse de lugar, deixando de ser médico para virar um paciente acamado? Naqueles tempos, viver até os sessenta e nove anos já era bem mais que o esperado. E pensar que quando terminou a residência médica e a especialização, aos vinte e seis, a expectativa de vida dos brasileiros era de setenta e seis anos. — O que foi, Rafael? — perguntou, já em cima da muralha, bufando pelo esforço da subida. — Dá uma olhadinha no que eu descobri. Rafael segurava uma ferradura enferrujada. Lá em baixo, alguns zumbis arranhavam o pé da muralha, enquanto outros perambulavam mais à frente. — Fica olhando aquela monstrenga loira ali — disse Rafael. A zumbi devia ter sido uma jovem esguia. O maxilar estava quebrado e pendurado, só possuía metade do braço esquerdo. Rafael fez mira e jogou longe a ferradura, que atravessou o ar e bateu no ombro da criatura. — Merda! — exclamou o garoto. — OK. Já entendi. Você quer me mostrar sua boa mira. Parabéns. Agora já vou indo que tenho mais o que fazer. — Espera. Vou tentar de novo. Rafael tirou mais uma ferradura de um saco aos seus pés. Preparou outro arremesso e lançou. Dessa vez, a ferradura acertou no topo da cabeça da zumbi, quicando. Ela tremeu feito gelatina e desabou no chão, sentada. Depois ficou olhando de um lado para o outro. Só então o Doutor percebeu que havia mais alguns zumbis em volta, na mesma situação. — Viu? — perguntou Rafael. — Eles ficam paralisados se a gente acerta eles no coco. — Tudo bem, Rafael, mas e daí? O que você quer com isso? — Ora, pra sua pesquisa. Não é um dado importante? Não pode ajudar em alguma coisa? Eram tempos difíceis. Não havia como instruir aqueles garotos. Os voluntários da escola se esforçavam, mas era insuficiente. Havia pouco tempo, o Doutor dera uma palestra para os jovens, falando sobre ciência, sobre as pesquisas que ele fazia ali. Lembrou com

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tristeza do mestrado que teria iniciado, logo após a residência, mas tudo acabara com a praga zumbi; só restara caos. Esbravejou com o garoto. — E o que isso tem a ver? Você não entendeu nada? O que eu faço aqui é só coletar dados e amostras e enviar relatórios pro Abrigo Central! De que serve essa sua maravilhosa descoberta? — desdenhou. O sorriso no rosto do rapaz se desfez, enquanto ele baixava os olhos. O Doutor arrependeu-se de ter sido tão duro. Afinal, a esperança para um novo mundo estava ali, diante dele. Jovens como aquele seriam responsáveis pela fundação de uma nova sociedade. — Não fique triste, Rafael. Sua descoberta foi interessante. É que estou meio estressado. — Eu sei. Todos nós estamos. Pra você, que conheceu o mundo antigo, deve ser pior. Eu já nasci nesta desgraça! — E atirou mais uma ferradura, que ia atingir uma criatura que se aproximava. Mas surpreendentemente ela se desviou com uma agilidade incomum para um zumbi. — Ei, camarada! — gritou a criatura. — Assim você vai me machucar. Venho em paz. O Doutor e Rafael ficaram estupefatos. Zumbis não falam. O máximo que fazem é grunhir. E aquele seguia com passo firme em direção à muralha. Quando se aproximou o bastante, notaram que ele não possuía nenhuma podridão à mostra. Parecia humano. Pálido, abatido, subnutrido, mas humano. Os dois se entreolharam. Não sabiam o que fazer, nem o que dizer. Aquela pessoa olhava para cima com olhar consciente, até um pouco cínico; incrivelmente, os zumbis passavam por ali como se ele não existisse. — Olha, será que vocês podem me ajudar? — perguntou. — Tenho fome e sede. Faz dias que só como raízes, e elas me doem o estômago. Não responderam. Rafael foi até o sino de alarme e o fez badalar com toda a força. — O que acha, Doutor? — perguntou o capitão. Era um homem alto, magro e ossudo. Tinha um nariz aquilino entre olhos fundos. Estava há quinze minutos fazendo perguntas ao desconhecido, ainda ao pé da muralha. O capitão, seus dois tenentes e o sargento Zenon, o soldado mais antigo, estavam no topo da muralha com o Doutor, estudando a situação. Também havia uma meia dúzia de guardas armados com balestras. O interrogatório do desconhecido se mostrara infrutífero. Não obtiveram nenhuma informação significativa. Ele parecia confuso, parava de falar no meio das explicações, como se estivesse tentando lembrar algo. Agora estava sentado, de pernas cruzadas, olhando pra cima. — Devemos trazê-lo para dentro — respondeu o Doutor. — Tenho que examiná-lo. — E se ele trouxer a praga para dentro do Abrigo? — retrucou o capitão. — Ele parece humano. — Mas também não diz coisa com coisa. E se for um tipo novo? Ninguém sabe nada dessa merda de doença, nem você e nem os fodões do Abrigo Central.

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O capitão era um homem de ação. Sua revolta era a revolta de qualquer um que tenha sido reduzido à miséria e a quase selvageria. Mostrava certa animosidade com relação ao Doutor. Talvez o equiparasse aos cientistas do conselho no Abrigo Central, que nunca podiam ajudar, nunca podiam enviar suprimentos nem equipamentos. Nem mesmo remédios para as crianças, das quais morriam cinco em cada sete. — Se quiser, pode perguntar à central — disse Doutor. — Mas tenho certeza de que eles vão querer esses dados. O capitão torceu o nariz. Ele também sabia disso. E sabia respeitar a hierarquia. Se a hierarquia fosse quebrada, o que mais sobraria? — Deem-lhe a máscara! — ordenou o capitão. O sargento Zenon jogou a máscara ao lado do desconhecido. Os zumbis em volta viraram de um lado para o outro, procurando algo. Não motivados pelo barulho, mas pelo odor humano que a máscara exalava. Já se sabia que eles eram totalmente surdos e cegos e se guiavam pelo cheiro dos seres humanos. — Pegue a máscara, filho! — gritou o capitão. — Coloque-a no rosto. Era uma máscara grossa, de madeira e tiras de couro, feita para impedir que quem a utilizasse pudesse morder. Era usada na captura de zumbis. O desconhecido vestiu a máscara. Atiraram-lhe uma camisa de força, que ele também vestiu. Em seguida, um dos soldados o laçou e todos começaram a puxá-lo para cima. Quando ele chegou nas ameias, os soldados o agarraram rapidamente e o imobilizaram no chão com violência. — Cuidado! — disse o Doutor. — Não o machuquem. — Porra nenhuma, Doutor! — disse um dos soldados. — Eu é que não vou me arriscar. Ataram a camisa de força e o ergueram. — Levem-no para a minha sala — ordenou o capitão. Virou-se para o Doutor. — Antes de qualquer exame, vamos interrogá-lo melhor. Depois ligamos para a Central. Podem fazer a limpeza de hoje, homens. Os guardas que ficaram na muralha acionaram uma máquina rústica. A bola de chumbo na ponta de uma corrente girou, esmagando os zumbis no pé da muralha. Ao terminar o ciclo, os guardas alvejaram com dardos os zumbis restantes, até que não pudessem mais se movimentar. Por fim, desceram, vestindo armaduras e empunhando marretas, e esmagaram o crânio deles. Juntaram todos numa fogueira que queimaria até de manhã, quando só sobraria cinzas. — Vamos começar de novo — disse o capitão. — Qual é seu nome? O desconhecido esta amarrada a uma cadeira, no meio da sala. Haviam tirado a máscara, mas a camisa de força ainda o mantinha preso. — Não sei — respondeu. — Você esqueceu? — Acho que sim.

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— Como assim, “acha”? Você obviamente tem um nome. Se não sabe é porque esqueceu. — Você deve ter razão, devo ter esquecido. Mas é como se eu nunca tivesse tido um nome. Quando a gente esquece alguma coisa, sabe que esqueceu, porque tentamos lembrar. Eu não sinto que deveria lembrar meu nome. — De onde você veio? — De um lugar parecido com este. — De um Abrigo? — Se este lugar é um abrigo, então sim. Eu vim de um abrigo, ou pelo menos de um lugar que parece um abrigo. — E por que você saiu desse abrigo? — Não tinha nada lá para mim. Pelo menos, não tinha nada mais. Enquanto havia comida, eu comi, mas aí a comida estragou, e eu fui procurar mais comida. — E as outras pessoas? — Que outras pessoas? — Os outros habitantes do abrigo. — Só havia zumbis. Mas eles foram todos embora, logo depois que eu acordei. — Acordou? — Sim. Abri os olhos, vi o céu. Estava deitado, ou caído, no chão. Levantei e vi um montão de zumbis. Mas esses sangravam sangue vermelho, e não negro, como eu vi depois. Bem depois. Depois que eu saí do lugar parecido com este, que vocês chamam de abrigo. O sargento Zenon se aproximou e explicou: — Se o sangue deles ainda era vermelho, quer dizer que tinham acabado de se transformar. Deviam ser os outros habitantes. Talvez seja o antigo Abrigo 49. Foi destruído há dois anos. — Virou-se para o desconhecido e perguntou: — Por que eles não te atacaram? O desconhecido ficou calado por um momento e depois respondeu: — Eles atacaram. Mas não os de sangue vermelho. Os que devem ter vindo antes. Antes de eu acordar. No tempo que para mim é como se não tivesse existido. — Se você não lembra nada — inquiriu o capitão —, como sabe que te atacaram? — Por causa das marcas. Das cicatrizes. — Que cicatrizes? — Essas aqui na minha barriga e no peito. O capitão se aproximou e ordenou: — Amarrem os braços dele. Vou abrir essa camisa. Dois guardas obedeceram. O capitão sacou a faca, cortou a camisa de força do desconhecido de cima em baixo. Depois deu dois passos para trás, assustado. — Doutor, olha isso! O Doutor se aproximou. Havia pelo menos dez mordidas na barriga e no peito do desconhecido, todas cicatrizadas.

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— Não é possível — disse o Doutor. — Não tem como ele ter sobrevivido. Ainda que ele seja imune à praga, essas feridas teriam infeccionado. Teria sido impossível sobreviver sem antibiótico. Você tomou algum remédio? — Não, nunca tomei. Não sei o que é antibiótico, mas sei o que é remédio. Nunca precisei disso. Estas feridas estavam abertas, logo que eu acordei, e doíam. Mas com o tempo elas fecharam e não doem mais. O Doutor olhou para o capitão, enquanto tirava uma seringa do bolso. — Isso não vai levar a nada — constatou. — Vou tirar logo uma amostra e adiantar meu relatório. O melhor a fazer é entrar logo em contato com a central. — Concordo — assentiu o capitão. — Segurem o braço dele. O Doutor inseriu a agulha e encheu a seringa. O sangue parecia normal, vermelho bem forte. O único fato estranho ocorreu quando ele retirou a seringa: nenhuma gota de sangue saiu da pequena ferida, o sangue estancou imediatamente. — Vá fazer seu serviço, Doutor — disse o capitão. — Vou ligar para Central. Ao sair do quartel, o Doutor ouviu o barulho das bicicletas adaptadas para acionar um dínamo que alimentava o antigo rádio que o capitão usava para se comunicar com o Abrigo Central. — É impressionante! — exclamou o Doutor. — Impressionante. Olhando pelo microscópio, o Doutor examinava o sangue do desconhecido. As hemácias se misturavam às necromácias, entretanto as necromácias não as atacavam. Esse é o mecanismo da praga. Não descobriram como ela começou, não havia vetor identificado, nem o caso inicial. As necromácias são semelhantes às hemácias humanas, mas organismos autônomos, vivos, que formam colônias. Quando uma necromácia entra na corrente sanguínea, contamina as hemácias como um vírus, injetando seu DNA. Mas em vez de a célula ser destruída, criando outros vírus, ela se transforma numa nova necromácia. Quando todo o sangue é tomado, o ser humano se transforma completamente num zumbi. Mas isso não acontecia no sangue do desconhecido. As hemácias e as necromácias conviviam. E mais: de alguma forma as necromácias agiam como anticorpos. O Doutor adicionou algumas bactérias ao sangue e elas foram destruídas imediatamente. As hemácias, porém, eram mantidas vivas, o sangue não coagulava. — Meu Deus, ele deve ser quase imortal! Se identificarmos o que causa essa condição, será a cura da praga! O Doutor pensou como aquilo era novo, inesperado. Seria possível reproduzir aquilo? Talvez o desconhecido fosse um mutante, ou quem sabe até uma nova espécie. O que seria de um mundo habitado por superseres? Conhecera o velho mundo, sabia bem o que o ser humano era capaz de fazer com o poder e pelo poder. A porta se abriu, bateu forte na parede. Era o truculento capitão, que disse: — Pode parar com o trabalho, Doutor. Eles não querem nenhum relatório.

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— O quê? — Eles estão vindo para cá. Você acredita nisso? Há décadas mendigamos recursos e eles nunca mandaram. Agora estão vindo por causa daquele garoto. Vão levá-lo. Eles chegam amanhã. — Disseram por quê? — Não. Apenas que o mantivéssemos preso, vivo e bem seguro. Disseram também que não precisam de nenhum relatório seu. Eles vão fazer a pesquisa no Abrigo Central. Você deve destruir a amostra. É essa aí? O Doutor assentiu. O capitão vestiu luvas, pegou todos os tubos e ensaio e até a lâmina no microscópio e meteu tudo num saco plástico. — Vou levar isso para incinerar. Saía do laboratório, quando se virou para Doutor e disse. — Você acredita que agora aqueles putos vão trazer suprimentos? Medicamentos, sementes, armas, ferramentas, equipamentos. Até um rádio novo e um gerador movido a energia solar! Foi uma sorte aquele garoto aparecer aqui, e não no Abrigo 48. O capitão foi embora, e Doutor continuou sentado na banqueta, pensativo. — Olá, Rafael — cumprimentou o Doutor, ao encontrar o jovem guarda no corredor das celas, sentado a uma mesa. Era o carcereiro naquela noite. — O que faz aqui, Doutor? — Vim dar uma olhada no forasteiro. — Nada de exames ou coleta de amostras. — Eu sei. O capitão já me disse. Vim conversar com ele por mera curiosidade científica. Não farei nenhum relatório. Rafael baixou os olhos e deu um gole numa caneca de cerveja. Disse: — Pois isso me parece um exame, ou coisa parecida. Não vai dar não, Doutor. A não ser que o capitão autorize. O Doutor sentou-se devagar no banco à frente da mesa, a dor nas costas dando sinais. — Tudo bem. Achei mesmo que não ia dar, mas não custava tentar. Como ele está? — Dormindo. — Ele deve te comido muito, né? Parecia faminto — Não demos comida a ele. — Por quê?! — O capitão mandou não alimentá-lo. — Não? Ora, ele estava quase em estado de inanição! Por que o capitão não quer alimentá-lo? Foi ordem da Central? — Não sei. Não me meto nessas coisas.

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— É muito arriscado. Já pensou se ele morre aqui com a gente? O pessoal da Central vai ficar uma fera. Rafael fez uma expressão assustada. Esticou o pescoço para olhar o fim do corredor. O desconhecido devia estar na última cela. Rafael levantou-se e foi até lá. O Doutor aproveitou para tirar uma ampola do bolso e derramar o conteúdo na caneca. Rafael parou na frente da última cela. Ficou olhando um pouco, depois retornou e disse: — Ele me parece bem. Está respirando. Será que devo chamar o capitão? Ele vai ficar puto se eu acordar ele à toa tão tarde. — Não se preocupe — disse o Doutor. — Eu falo com ele. É melhor eu passar esse aperto no seu lugar. Quem sabe ele não resolve respeitar um idoso, afinal. Saiu dali, mas em vez de ir procurar o capitão, sentou-se na sala de entrada do quartel. Dois guardas já estavam desmaiados no chão. Tantos anos de experiência o tornaram um mestre na fitoterapia. Inventara um método de produzir um extrato superconcentrado de sedativo de erva valeriana. Compartilhara sua descoberta com os outros abrigos, até a central se interessou. Nunca imaginara um dia utilizar sua fórmula desse jeito. Ouviu um baque vindo da carceragem. Rafael desmaiara. Tomou-lhe as chaves e seguiu pelo corredor. Só havia mais um preso, um conhecido arruaceiro, que dormia como uma pedra. Rafael se aproximou das grades da cela do forasteiro e chamou baixinho: — Ei! Acorde. Acorde. O forasteiro tinha sono leve. Levantou-se e levou algum tempo para reconhecê-lo. — Ah, é o senhor, Doutor. Vão me levar agora? — Sim, está na hora. Você está com fome? — Estou! Com muita! O Doutor tirou um embrulho do bolso e lhe entregou. Continha um pedaço de pão. Foi devorado em segundos. — Não vá engasgar — recomendou o Doutor, entregando-lhe um pequeno cantil. — Obrigado. O forasteiro bebeu todo o conteúdo. Restou uma expressão bastante aliviada. — Venha comigo — chamou o Doutor, abrindo a cela. — Não faça barulho. Ao chegar ao fim do corredor, o forasteiro viu Rafael desmaiado e perguntou: — O que houve com ele? — Está só dormindo. Não se preocupe. Confie em mim, vamos. Saíram do quartel e se esgueiraram entre as vielas até chegar a uma das torres da muralha. Entraram e subiram um lance de escada. Havia alguns caixotes empilhados na parede externa. O Doutor pediu ajuda para retirá-los dali. Por trás, havia uma janela cerrada por uma placa de ferro. De outro caixote, o Doutor retirou uma mochila, um grande cantil e um pé de cabra. Tentou forçar a placa de ferro, mas não tinha força suficiente, as juntas dos seus dedos doeram muito. Pediu ao forasteiro: —Será que você consegue arrancar esta placa?

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O rapaz hesitou. Depois pegou o pé de cabra e conseguiu arrancar a placa, com extrema facilidade para alguém tão debilitado. Por trás, a janela estava fechada com tijolos. O Doutor envolveu o pé de cabra com um pedaço de couro e pediu ao forasteiro para quebrar a parede. O reboco era fraco e a parede desmoronou facilmente, deixando a janela livre. O Doutor lançou a mochila e o cantil pela janela e disse ao forasteiro: — Você tem que partir. Pule. — Partir? Mas disseram que eu seria levado para um lugar especial. Um lugar bom. — É mentira. Você tem que fugir. Eles vão fazer mal a você. — Mais mal do que já tenho passado? Duvido. Não te pedi nada. Por que não me quer aqui? O Doutor percebeu que o rapaz não seria facilmente convencido. Suspirou e perguntou: — Você acredita em Deus? — Não sei o que é isso. — Mas você sabe o que significa a palavra “natureza”? — Sei. É tudo que há. Os seres vivos e os mortos. A água, as pedras, o céu e o ar. Tudo isso é natureza. Só não sei se os zumbis são natureza. — São. Ninguém é mais natureza do que eles. A natureza é viva, e a vida da natureza é Deus. Mas nós, humanos, nos revoltamos contra a natureza, nos revoltamos contra seus desígnios. Ao longo das eras, a natureza se modificou, modificando assim tudo que dela faz parte. Nesse processo, seres surgem e desaparecem para sempre. Mas os seres humanos não aceitaram passar sua vez. — Não entendo. — A natureza sempre expõe as criaturas a dificuldades. Assim, as mais fracas morrem e as mais fortes sobrevivem, até que um ser perfeito surja. O ser humano foi um importante passo para a perfeição, a inteligência. Mas a partir daí, todas as tentativas da natureza de melhorar a espécie foram vencidas. Toda sorte de doenças foi curada. Toda fome foi vencida, toda catástrofe foi ultrapassada, até que a Terra ficou repleta de seres humanos. E então surgiu essa praga. E a praga não podia ser vencida. Mas você a venceu. — Eu? — Você não é mais humano, é outro ser. A praga está no seu sangue, mas ela não te destruiu, ela te tornou algo diferente, mais forte. Por isso os zumbis não te atacam. O objetivo da praga era te encontrar. Se os humanos do Abrigo Central puserem as mãos em você, vão fazer todo tipo de experimento para tentar obter a cura. Mas não há cura. Não vão aceitar isso. Vão te matar. Por isso você tem que fugir. — Mas para onde eu vou? — Para qualquer lugar, mas sempre se esconda dos humanos. Procure outros como você. Se não existirem ainda, se você for o primeiro, vão surgir outros. A natureza não erra. Quando erra, conserta o erro. Como está fazendo agora conosco. Agora parta! O desconhecido sem nome obedeceu. Pulou a janela e caiu no chão como um felino. Quatro metros para ele foi como saltar um degrau. O Doutor o observou desaparecer na

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escuridão. Respirou fundo e saiu dali caminhando tranquilamente. Já não se preocupava em se esgueirar. Não se preocupava com o que fariam com ele pela manhã, quando os enviados do Abrigo Central chegassem. Sentia paz, senta que já tinha feito tudo o que devia ter feito na vida. Então ouviu um grunhido. Virou-se e viu um braço putrefato saindo de uma grade no chão. Outros braços surgiram. Era uma grande entrada de esgoto. De alguma forma aqueles zumbis irracionais encontraram o caminho. “Que oportuno”, pensou o Doutor. Percebeu que estava com o pé de cabra na mão. Aproximou-se e encaixou a ponta na grade. Hesitou, pensando nas crianças. Ficou bastante tempo ali, olhando os zumbis, olhando para a ponta do pé de cabra, olhando o Abrigo 47. Então forçou a grade. Faltou força. — Nem que minhas juntas estourem! Colocou todo o peso na ferrameenta. A grade cedeu. Ele caiu no chão pelo esforço. Os zumbis saíram. Doutor fechou os olhos e cobriu o rosto com as mãos.

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PASSAGEIRO ESPECIALMENTE CONVIDADO

| o d l l a r E | s a l |Doug Em um mundo onde todos estavam e d o i e m r o p s o d a ct e n co l a u t r vi e d a d e i c o s a m u a n a r i t s i x e a c n u n o m co ihstรณria da humanidade, o a r t n o c a ut l m e m o h um . o รฃ รง va l a s a u s r o p o p m te 88


William sabia que estava correndo contra o tempo. Poderia ser desconectado a qualquer momento, e então seria tarde demais. Não havia vida entre os Desconectados, apenas uma vaga lembrança de existência, e ele bem sabia o que lhe esperava em caso de insucesso. Por isso, mesmo com as pernas pesadas além do normal e a respiração ofegante como a de um cão sarnento, ele não se permitia desistir. Cruzara por meia cidade. Em cada esquina a morte apresentava-se na forma de Desconectados moribundos e famintos. Ninguém conseguia explicar ao certo, mas desde que o vírus se espalhara entre usuários do Google e do Yahoo, os Desconectados perderam suas condições de sociabilidade e passaram também a ter uma estranha predileção por carne humana. Desde então, havia muito mais esperança em se defrontar com um lobo faminto no meio de alguma rara floresta do que ficar frente a frente com algum Desconectado. Eram como almas sem regras. O corpo, apenas um invólucro sem consciência alguma. Depois que os vírus os desconectavam da rede, não havia nada mais a ser feito, os olhos vazavam em seu globo ocular um líquido amarelo e fosco, e qualquer resquício de humanidade partia no mesmo instante. Aos Desconectados, nada mais restara do que andar, comer, andar e comer um pouco mais. Apenas cerca de três a dez por cento de usuários da rede ainda estavam seguros. Para eles, só restava fugir e torcer, mas torcer muito, para que o vírus não se instalasse em sua mente. William tinha dezessete anos quando o anúncio foi feito. Parecia tudo muito utópico e ao mesmo tempo impressionante. O silício seria praticamente esquecido. Sem computadores, tablets ou smartphones. Salvariam o planeta, diziam as empresas transformando cada ser humano, cada cérebro em seu próprio e exclusivo computador pessoal. Dobrando uma esquina e atirando na cabeça de um Desconectado que achava William um excelente almoço, o fugitivo recordou de como era praticamente o único cético em sua turma da faculdade a não ver com bons olhos a iniciativa. Conectar-se à internet diretamente por meio de um chip-modem instalado no cérebro não parecia a William algo muito inteligente. Ainda assim, Google e Yahoo atingiram em uma semana o impressionante número de um bilhão de Conectados. A capacidade do cérebro foi ampliada no mínimo uma ou duas vezes. Dos olhos, o mais revolucionário sistema Android podia projetar imagens da mente como se fosse um gigantesco HD. Tudo organizado em pastas. Simples, prático e a um piscar de pensamento. Era possível logar em sua conta, ter acesso a e-mails e redes sociais e comprar com dois ou três pensamentos tudo o que quisesse. O mundo realmente mudara de forma drástica. Mas era justamente essa mudança que punha William a correr por mais de dez quarteirões. São Paulo tinha se tornado uma grande concentração de Desconectados. Quase todo mundo na cidade estava logado no Google, Yahoo e Facebook, até mesmo os que preferiam logar no truncado Windows 11. No centro financeiro do Brasil, quem ainda não fora conta-

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minado e desconectado pelo vírus, havia sido devorado pelos Desconectados, ou com muita sorte, ainda lutava pela sobrevivência. Não se pode dizer que William não tenha resistido. Era um jovem difícil de dobrar e, até seu notebook estragar e não haver mais no mercado para repor, ele evitou utilizar a nova tecnologia. Até o último ano da migração era tido como anomalia por seus colegas acadêmicos. E ainda assim, quando finalmente cedeu, William optou por logar-se pelo sistema nacional Expresso, que, até certo ponto, era razoavelmente seguro. Desde a liberação para uso de todos os cidadãos brasileiros, o sistema continha uma boa base de usuários. Esperava ao menos que, ao utilizar a tecnologia brasileira, países estranhos não tivessem acessos aos seus pensamentos, no fundo um dos principais temores de William. Sua aposta de certa maneira deu certo, já que apenas um terço dos usuários do Expresso tinham sido contaminados. Outros dois tiros e William derrubou três Desconectados de uma vez só. A esta altura, ele já estava pulando por sobre carros abandonados na Avenida Paulista. Ainda tomada por corpos, alguns Desconectados ainda de pé. William estava a uns setecentos metros do prédio federal onde ele sabia que os servidores do Expresso para região sudeste estavam. William acompanhara as primeiras informações sobre o problema pela própria web e mídia impressa. Embora de desconhecida origem, o vírus de nome “Troia_Death_Zombie_00x20” agia sempre da mesma forma. Invadia a rede e quem estivesse logados – e que se diga, desde que o próprio cérebro se transformara em computador pessoal, dificilmente os usuários tinham o hábito de sair do sistema. Os usuários não conseguiam mais se desconectar, e então num período de doze horas paulatinamente todos os arquivos eram deletados, até que... ... já não era mais possível fazer logoff... ... não se podia tirar o computador da tomada... ... não mais se podia reinicializar o sistema. Nenhum engenheiro calculara o quanto o vírus poderia arruinar um ser humano transmutado em seu próprio computador. Os primeiros Desconectados sequer tiveram tempo de compreender o que acontecia. O vírus agia com sutileza, sem alardes. Longe do radar de firewalls e antivírus, como um mercador da morte, o aplicativo maligno corrompia discretamente os “computadores” em todo o mundo. Então, numa gélida tarde de inverno ao sul do equador e de um tórrido verão ao norte dele, o Google desconectou milhões de usuários ao sair do ar por míseros trinta segundos. Homens e mulheres que conversavam mentalmente pelo Facebook tombaram em segundos. Quando seus corpos se reergueram não eram mais homens ou mulheres. Eram Desconectados. E mesmo que a informação tenha circulado com extrema velocidade, o pânico abateu o mundo. Logados não conseguiam sair de suas contas. Depois da terceira ação do vírus, mui-

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tos homens, ainda vivos, atiraram na própria cabeça. Antes a morte certa do que a duvidosa e execrável existência como um Desconectado. Fazia exatamente nove horas que William não conseguira fazer o logoff do Expresso. E ele sabia o que isso significava. Pastas remotas de sua infância, o aroma de almíscar do perfume do pai e o hálito de menta da mãe. Nada disso mais existia em seu cérebro. Sua primeira noite de sexo, o dia em que vira a noiva pela primeira vez. Nada. Ele estava sendo apagado. Sua única salvação, se é que era possível, estava em derrubar os servidores do Expresso. De suas doze horas de vida disponíveis, passou ao menos três pesquisando coordenadas e indicações para só então se jogar na rua em busca de salvação. Ele precisava fazer isso por ele. E pelo filho recém-nascido que o aguardava no sul. Trezentos metros. E suas últimas balas foram disparadas. As unhas grandes de um Desconectado rasgou suas calças, deixando três valetas sangrentas nas pernas. Cem metros. Um pé de cabra jogado no chão salvou-lhe a vida quando uma Desconectada saltou de sobre uma SUV. O choque do ferro contra o crânio fez um som abafado, mas o impacto foi suficiente para afundar a cabeça da mulher e jogá-la contra um poste. William entrou no prédio com o pé de cabra em punho, depois de estilhaçar o vidro com uma pedra. Não era provável que houvesse Desconectados no interior do edifício. Mas ele nunca tinha sido muito bom com probabilidades. Cerca de uma dúzia de Desconectados o fez perder tempo entre corredores bolorentos com péssimo cheiro. Uma verdadeira carnificina acontecera lá dentro. Pelos restos de corpos em putrefação, William imaginou que os Desconectados tiveram muitos dias de alimentação farta. Desceu por um conjunto de escadas escuras, dos quais só podia saber graças aos seus talentos com programação e um ou outro ativismo hacker. Exausto, escorou-se na parede quando as escadas enfim fizeram-lhe sorrir o subsolo. Ouviu o som de computadores trabalhando, viu uma infinidade de leds vibrando em diversas cores, verde, laranja, azul, vermelho. A vã esperança de William era desconectar os servidores da energia, que estranhamente desde o primeiro dia de evento não caíram. No entanto, depois de dar uma ou duas voltas pela sala, William não encontrou o cabeamento que mantinha os servidores ligados. Em desespero atirou o pé-de-cabra no meio dos servidores tentando provocar um curto-circuito. Nada, além de um faiscar e zunidos. Apenas o local do choque pareceu afetado, mas o restante dos servidores ainda estava em funcionamento. William sentou-se no chão e, segurando os próprios joelhos, começou a chorar. Chorou por alguns minutos até mais uma vez decidir não se dobrar para a morte iminente. Levantou-se e foi na direção onde caíra o pé de cabra. Com ele, arrancaria cada pedaço do piso. Os cabos só podiam ser subterrâneos. Então, a não menos que quatro passos da ferramenta, tudo escureceu. Seu corpo sem peso caiu sobre o piso frio.

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Quando finalmente reergueu-se, William tinha os olhos amarelos e opacos. Infelizmente ele calculara erroneamente sua estimativa de vida. Antes de tudo escurecer, William teve um único vislumbre de pensamento. Um esgar de consciência que o levou para o pátio da faculdade. Entre os amigos. Alguns anos antes, no dia em que vaticinara seu futuro e o dos homens. Depois de uma hora de intenso debate suas palavras se tornaram proféticas. — Anotem o que estou dizendo. Isto tudo vai dar merda.

SOBRE OS ZUMBIS E EU É interessante como a vida nos leva por determinados caminhos, por exemplo, minha relação com zumbis na literatura. Ao contrário do que possa parecer, minhas poucas reminiscências são alguns filmes de horror vistos na juventude, dos quais nem mesmo consigo recordar o nome. Mesmo assim, vim a escrever, para o bem e para o mal, um romance de suspense e horror com zumbis, mas sem praticamente nada de referências do gênero. É bem possível que isso faça parte das virtudes e dos defeitos de Morgan: o único, meu primeiro livro, publicado em maio de 2011 pela Editora Literata. Na época, a presença dos zumbis se intensificava, especialmente na televisão a cabo e na internet, numa infinidade de posts que geralmente falavam sobre como matar zumbis ou como sobreviver a um apocalipse desse gênero. Foi por causa desse tipo de informação que de estalo surgiram a vontade e a necessidade de escrever algo sob o ponto de vista do próprio morto-vivo. E assim nasceu Morgan, um zumbi que, a meu ver, fala muito mais sobre questões humanas que propriamente dos mortos. Depois do livro, passei a pesquisar mais sobre o tema e descobri que, sem querer ou inconscientemente, sei lá, acabei indo na direção contrária dos zumbis modernos, frutos da ficção científica, dando aos meus um pouco mais do universo sobrenatural, colocando-os num campo etéreo em que a fronteira entre a imaginação e a realidade é sempre muito tênue. Desde então, sempre que tenho oportunidade, falo sobre os zumbis e a nossa literatura brasileira. Consegui encontrar outro foco de abordagem no meu segundo livro, O titereiro dos mortos, publicado neste ano, que trata do poder imposto por alguém capaz de controlar os mortos. Mais do que por puro modismo, os zumbis cativaram minha escrita pela diversidade de temas que permitem abordar, especialmente a forma de lidar e controlar nossos medos. Quanto a este conto, é bem provável que alguma tecnologia já caminhe nessa direção, e mais do que querer prever algo, minha intenção é a de justamente fazer um alerta: estamos nos tornando cada vez mais dependentes da rede. Um dia, isso tudo vai dar merda!

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DOUGLAS ERALLDO


A palavra certa para cada situação Estou longe de ser uma especialista em ficção científica, uma professora de escrita criativa ou uma crítica literária, mas sou uma ávida leitora e presto especial atenção à escolha do escritor quanto às palavras, principalmente em literatura nacional. Dominar a língua portuguesa é essencial para o bom escritor. Já falei sobre isso na última coluna, mas nunca é demais repetir. Para criar diálogos verossímeis, construir belas imagens e enredar o leitor da primeira à última página só é possível quando as palavras certas são combinadas da melhor forma possível. O português é riquíssimo e nos oferece inúmeras possibilidades semânticas. Tomemos como exemplo a seguinte frase: “João entrou no quarto do hotel e colocou a mala em cima da cama. Foi ao banheiro, lavou o rosto e as mãos. Colocou o casaco e saiu de novo.” O verbo “colocar”, embora tenha sido usado de forma correta, é bastante genérico e empobrece o texto; não traz uma carga de significados como as opções que a língua oferece. Dizer que “João pousou / atirou / jogou / depositou a mala em cima da cama” ou “João vestiu o / se embrulhou no / passou a mão no / apanhou o casaco” atribui uma força aos atos do personagem que faz com que a percepção do leitor mude completamente. Outro exemplo, desta vez em um diálogo: “— Não acredito que você tenha feito uma coisa dessas — disse José.” Ou: “— Eu sempre quis uma bicicleta de presente de Natal — disse Maria.” Nos dois casos, o verbo “dizer” tem a função de arrematar o diálogo; é o que se chama se verbo declarativo ou verbo dicendi. No jornalismo, há regras rígidas quanto a que verbos podem assumir essa função, mas acho que a literatura permite um pouco mais de liberdade. Assim, percebam como o diálogo muda se escrevemos “— Não acredito que você tenha feito uma coisa dessas — acusou / afirmou / declarou / observou José.” Ou: “— Eu sempre quis uma bicicleta de presente de Natal — lamentou-se / choramingou / insinuou / divagou Maria.” Por fim, um último exemplo retirado da literatura brasileira. Uma das características mais marcantes de O cortiço é a zoomorfização, ou seja, o comportamento humano mostrado como algo animal, selvagem. Para marcar essa crítica, Aluísio de Azevedo foi bastante criterioso na escolha das palavras, usando para descrever as ações dos personagens palavras a princípio reservada para descrever animais, como as destacadas no trecho a seguir: as ameaçadas pelo fogo. Homens e mulheres corriFechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte daquelas cem casinh . O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e am de cá para lá com os tarecos ao ombro, numa balbúrdia de doidos sem nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas colchões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos es apopléticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Barão saiam clamor casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; se espolinhava com um ataque. [...]A Bruxa surgiu à janela da sua que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhanunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia um caráter fantástico de fúria saída do inferno. da, escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe

São apenas exemplos rápidos de como a linguagem pode ser trabalhada, palavra a palavra, para melhorar a qualidade do texto, para passar mais emoção ao leitor. O bom escritor pensa (reflete / rumina) sobre cada palavra que coloca (deposita / grava) no papel. Bom trabalho!

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