REVUE 10~11

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Ano VI Nยบ 10~11 abril 2009

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Memórias da Universidade ~ Volume I “ […] na cidade em que reside a Sede Metropolitana e que sobressai como uma das mais insignes cidades de todo o Reino de Portugal e apta e digna de ter uma Universidade do Estudo Geral […] Decretou que deverá ser mantida e conservada a referida Universidade na dita cidade de Évora no modo e na forma supra referidos para todos os tempos futuros, e inviolável e perpetuamente observadas as disposições acima determinadas”. In Bula Cum a Nobis (15 de Abril de 1559). O documento de criação da Universidade, e a sua tradução, foram especialmente escolhidos para a abertura deste número duplo da REVUE, datado de 15 de Abril em justa homenagem a este texto fundador. De facto, este número especial é integralmente dedicado aos 450 Anos da Universidade de Évora, e é o primeiro de dois volumes das Memórias da Universidade que se irão editar até ao final de 2009. Dando relevo ao seu edifício mais simbólico, o Colégio do Espírito Santo, os textos deste volume invocam, não apenas a Universidade Jesuíta, mas todas as instituições de ensino que ocuparam este mesmo espaço e que foram pioneiras no seu tempo. Como se o espírito da modernidade educativa insistisse em se conservar neste espaço, por aqui passariam os Professores Régios da ‘Reforma Pombalina’; a Ordem Terceira renovada por Frei Manuel do Cenáculo; a Casa Pia e o Liceu, criados no Liberalismo. Um arco temporal de mais de quatro séculos que encerramos com uma das mais significantes renovações do ensino superior português do século XX: a ‘Reforma Veiga Simão’. No seu esteio, entre outras instituições de ensino superior, criaria o Instituto Universitário de Évora (1973), recriando, seis anos depois, a Universidade de Évora (1979). Fecha-se, assim, o círculo que vai da Universidade quinhentista à Universidade contemporânea. E, apesar de não ter sido exactamente “no modo e na forma supra referidos, para todos os tempos futuros, e inviolável e perpetuamente”, como desejaria o Papa Paulo IV, foi, ainda assim, conservada na cidade de Évora, cuja população nunca perdeu o espírito e a vontade de ver a ‘sua’ Universidade restaurada, como veio efectivamente a acontecer em 1979. São as memórias desta nova Universidade de Évora o tema do Volume II previsto para o 1º de Novembro. Mas a revista tem ainda, como é hábito, a Agenda, outra memória da Universidade, desta vez assumindo função mais desenvolvida: a de ilustrar com texto e fotografias os acontecimentos mais importantes da Academia respeitantes a 2008. Esperamos que seja tão estimulante a sua leitura, como para todos nós, equipa, e colaboradores, foi gratificante fazê-la. Deixando ainda um agradecimento muito especial aos meus colegas Casimiro Amado (DPE), Cláudia Teixeira (DLL) e Francisco Vaz (DH) que ajudaram a coordenar este volume. Sara Marques Pereira

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Universidade de Évora comemora o 450.º aniversário da sua fundação. É indubitavelmente a ocasião para revisitar o passado não tanto para elencar eventos e memorizar datas, mas na perspectiva de melhor compreender a teia de interesses que subjazeram aos dois factos maiores da nossa história: a criação da Universidade de Évora e a interrupção das suas actividades dois séculos mais tarde. Mas é também e sobretudo, o momento de encarar o presente de olhos postos no futuro, enriquecidos com a reflexão que a releitura da história nos pode proporcionar. Creio mesmo que é nessa reflexão sobre o passado que poderemos encontrar uma das chaves do sucesso futuro. Porque, na realidade, deparam-se-nos concretamente dois caminhos alternativos: resistir à mudança ou mudar, adoptando os padrões “do tempo”.

e d i t o r i a l

Resistência e resiliência

Resistir à mudança é o exercício praticado pelos conservadores de todos os bordos: recusam Bolonha, denigrem a avaliação internacional da EUA, diabolizam a parceria com empresas privadas e entendem que o Estado (isto é, todos nós) deve venerar inquestionavelmente a sapiência supostamente subjacente ao traje talar e financiar incondicionalmente os “direitos adquiridos” mesmo quando estes acomodam e perpetuam a mediocridade. Em alternativa, temos vindo a forçar a adopção de padrões internacionais de qualidade instituindo o primado da ciência na vida institucional, aceitando os princípios da reforma de Bolonha nos quais se inscreve a mobilidade estudantil, determinando a internacionalização dos júris das provas doutorais e dos concursos académicos, estabelecendo parcerias estratégicas com empresas, explorando ao limite as potencialidades das TIC na difusão da informação, no acesso ao conhecimento e no combate ao insucesso escolar, na facilitação das relações interpessoais e na flexibilização dos procedimentos administrativos; mas também sujeitando-nos, em última análise, à avaliação internacional pelos nossos pares da European University Association. Assiste-nos a convicção de que esta é a via pela qual se dota a instituição da resiliência necessária que lhe permitirá enfrentar as adversidades com um mínimo de disfuncionalidade, superando-as e fortalecendo-se com elas. O conceito de resiliência é claramente a antítese da resistência à mudança; é a resistência na mudança. Os jesuítas do passado como os conservadores de hoje, empenham-se em resistir à mudança sem se aperceberem de que essa era e é a via rápida para a extinção. Com uma diferença: os jesuítas ainda não podiam conhecer o conceito de resiliência. O Reitor Jorge Araújo

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Bula de Paulo IV sobre a Fundação da Universidade de Évora

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A tradução que a seguir se apresenta constitui um trabalho elaborado sobre uma cópia da Bula existente no Archivum Romanum Societatis Iesu, em Roma, e sobre uma transcrição da Bula de Paulo IV, publicada em Boletim da Cidade de Évora (1959) 5-8. O texto apresenta diferenças significativas, pelo que, não existindo uma edição crítica, nem tendo tido a possibilidade de consultar o original, esta tradução não se considera definitiva, prevendo-se a publicação de uma nova versão acompanhada de texto crítico e respectivo aparato. Agradecemos ao Professor Doutor Arnaldo do Espírito Santo o esclarecimento de inúmeros elementos textuais e as sugestões para a sua tradução

Tradução: Cláudia Teixeira e Armando Martins imagens cedidas por Archivum Romanum Societatis Iesu

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Papa Paulo IV Gravura, Biblioteca Nacional digital http://purl.pt/5041

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tradução da Bula de Paulo iV sobre a Fundação da Universidade de Évora

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aulo, Bispo, servo dos servos de Deus, ao nosso dilecto filho Henrique, Cardeal presbítero da Santa Igreja Romana, com o título dos Quatro Santos Coroados, Infante de Portugal, saúde e bênção Apostólica.

Quando é honesto e justo o que nos pedem, exige o poder da justiça, bem como a ordem da razão, que, pela solicitude do nosso ofício, se leve ao devido efeito. Na verdade, a petição que nos foi recentemente apresentada da tua parte, ou aliás, que foi recentemente apresentada da tua parte ao nosso dilecto filho Rainúcio, Cardeal presbítero da Santa Igreja Romana do título de Sant’Angelo, Penitenciário-Mor, na qual se dizia que tu, ciente de presidires por dispensação apostólica à Igreja de Évora, tinhas erigido na cidade de Évora, em ordem ao incremento do culto divino e da salvação das almas, um Colégio ou Universidade; e, uma vez, erigido, o confiaras, concederas e doaras aos dilectos filhos presbíteros ou chamados Padres da Companhia de Jesus a fim de que, na cidade em que reside a Sede Metropolitana e que sobressai como uma das mais insignes cidades de todo o Reino de Portugal e apta e digna de ter uma Universidade do Estudo Geral, e que dista muito da cidade de Coimbra, na qual floresce um Estudo Geral, tanto os cidadãos dessa mesma cidade, como do seu distrito, e outros habitantes de lugares circunvizinhos, sem dispêndio de grande deslocação,

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pudessem dedicar-se às Letras, para que, por este meio, aumentasse o culto divino e se colhessem outros bens que advêm do estudo das Letras; era teu desejo, para louvor e honra de Deus Omnipotente, que fosse erigida, por autoridade Apostólica, uma Universidade do Estudo Geral, na dita cidade de Évora, onde se ensinassem, lessem e explicassem todos os saberes ou faculdades, à excepção da Medicina, do Direito Civil e da parte do Direito Canónico que pertence ao foro contencioso, e na qual pudessem ser conferidos todos os graus, inclusive os de Mestre e de Doutor; e que esta ficasse submetida ao cuidado, governo e administração dos mesmos presbíteros ou Padres da dita Companhia de Jesus, mas sob a tua jurisdição e correcção ou do teu Vigário, durante o tempo da tua vida (salvaguardados, no entanto, os privilégios da mesma Companhia no tocante às suas pessoas), e, daí para o futuro, daquele que te suceder como Arcebispo de Évora ou do nosso caríssimo filho em Cristo, o ilustre Rei de Portugal, conforme te parecesse mais conveniente. O próprio Cardeal Rainúcio, Penitenciário-Mor, inclinado em favor das tuas súplicas e querendo acarinhar o teu piedoso e louvável propósito com a nossa autoridade, cuja Penitenciaria está entregue ao seu cuidado, e, por especial mandato a si por Nós confiado, e tendo já proferido, na referida cidade de

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o documento toma as duas localizações sucessivas da única universidade portuguesa como duas universidades distintas, o que é congruente com as cláusulas finais, nas quais a localização da universidade é expressamente um dos termos da sua erecção e identidade.

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Évora, uma declaração de viva voz, erigiu e instituiu a dita Universidade do Estudo Geral, na qual todas os saberes lícitos ou faculdades, à excepção da Medicina, do Direito Civil e da parte do Direito Canónico que pertence ao foro contencioso possam ser ensinadas, lidas e explicadas, e na qual sejam conferidos todos os graus, inclusive os de Mestre e de Doutor, nos referidos saberes ou faculdades, à semelhança da de Coimbra e de outras Universidades1 do dito Reino, àqueles que, mediante um rigoroso exame prévio, se revelarem dignos, e segundo o uso e o costume das mesmas Universidades, pelo Reitor da mesma Universidade ou pelas pessoas idóneas para o efeito que entenderes nomear. E destinou perpetuamente, para a sua manutenção e para sustento dos seus Lentes e Catedráticos, todas e cada uma das rendas e dos bens por ti atribuídos e concedidos até agora e todas as que venham a ser atribuídas no futuro. E confiou, a partir de então, a sua direcção, cuidado e administração perpetuamente ao Vigário-Geral e aos Padres da referida Companhia de Jesus; a sua jurisdição e correcção e a dos estudantes que, em cada momento, existirem na mesma Universidade, confiou-as, porém, perpetuamente a ti e ao teu Vigário pelo tempo em que viveres (salvaguardados os privilégios da própria Companhia), e posteriormente aos Arcebispos de Évora, teus sucessores, ou ao próprio Rei de Portugal, conforme considerares mais conveniente

e de acordo com a prudente ordenação ou ordenações que sobre isso vieres a fazer; e à mesma Universidade e aos seus Reitores, Bedéis, Mestres, Doutores, Lentes, Estudantes e Pessoas o usar, possuir e gozar de todos e cada um dos privilégios, graças, imunidades, isenções, liberdades, concessões, favores, e indultos, quer espirituais, quer temporais, que as ditas Universidades de Estudos Gerais e seus Reitores, Bedéis, Mestres, Doutores, Lentes, Estudantes e outras Pessoas por direito, uso, costume, privilégio, ou mesmo outras pessoas por comunhão, usam, possuem e gozam, ou puderam usar, possuir e gozar, ou de qualquer modo venham no futuro a usar, possuir e gozar. E os que aí tomaram graus, para ler e explicar e outras preeminências possam, de facto, livre e licitamente, de igual forma e inteiramente sem diferença alguma, usar, possuir e gozar dos mesmos privilégios, insígnias, liberdades, honras e favores que os graduados em outras Universidades usam, possuem e gozam ou puderam usar, possuir e gozar. Concedeu e acordou que te seria lícito, em ordem à salutar direcção e governo desta Universidade e dos seus bens e pessoas, fundar e ordenar quaisquer estatutos e ordenações, desde que lícitos e honestos e não contrários aos sagrados cânones, e mudá-los e alterálos enquanto viveres, ou, se for conveniente, aboli-los de todo e fundar outros de novo, os quais, uma vez fundados e ordenados por ti,

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e mudados, alterados ou abolidos conforme a necessidade, e fundados outros de novo, e que forem admitidos pelo Vigário-Geral da dita Companhia de Jesus, ou por outro em seu nome, considerem-se confirmados e aprovados pela dita Autoridade Apostólica e assim sejam considerados. Decretou que deverá ser mantida e conservada a referida Universidade na dita cidade de Évora, no modo e na forma supra referidos, para todos os tempos futuros, e inviolável e perpetuamente observadas as disposições acima determinadas, bem como os estatutos e ordenações por ti fundados, ordenados, mudados ou alterados, de acordo com a tua ordenação; e assim deve ser julgado e interpretado por quaisquer juízes, sendo-lhes retirada a faculdade de julgar e interpretar de forma diferente. E que seja considerada irrita e nula a deliberação que, a tal respeito e em diferente sentido, intente tomar, consabidamente ou por ignorância, qualquer pessoa, revestida de qualquer autoridade, designandose para tal certos executores, com derrogações e outras cláusulas, tal como se deduz mais amplamente das Letras Apostólicas sobre esse assunto,2 expedidas pelo ofício da Sagrada Penitenciaria Apostólica sob esta data, a saber, 20 de Setembro, quarto ano do nosso Pontificado. Desejando, como afirmas, que o teu referido pio e louvável propósito surtisse o seu efeito no tocante aos bens ou rendas anuais então expressos, a saber, quinhentos

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ducados, vulgarmente ditos cruzados, e duas partes de certas rendas também expressas na altura, e trintas módios de grão, vulgarmente chamado anáfil, bem como outros dez módios de cevada para a dita Universidade canónica, que concedeste e atribuíste, por expresso consentimento daqueles a quem dizia respeito, ou obtiveste que fossem concedidos ou atribuídos, como mais plenamente está contido no instrumento público ou instrumentos, ou outras escrituras a esse respeito realizadas, pediste, no que respeita a todas e cada uma dessas coisas, que, para a sustentação de tudo isso, fosse corroborado por nós com mais firme reforço Apostólico. Por isso, Nós, inclinados, nesta parte, em favor das tuas súplicas em relação a este assunto, reforçamos com Autoridade Apostólica e pelo presente escrito, a erecção, instituição, aplicação, sujeição, indulto, decreto, e as outras coisas acima referidas e contidas nas ditas Letras, tais como devida e prudentemente foram concedidas, feitas, cumpridas e aprovadas. A nenhum homem será, portanto, lícito infringir este nosso documento de confirmação e de reforço ou a ele contrapor-se por ousadia temerária. Se, todavia, alguém presumir tentá-lo, saiba que incorre na indignação de Deus Omnipotente e dos seus Santos Pedro e Paulo Apóstolos. Dado em Roma, em S. Pedro, no ano da Encarnação de Nosso Senhor 1559, 15 de Abril, quarto ano do nosso Pontificado. 

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referência às letras Ad personam uestram, emitidas pelo Cardeal rainúcio, em 20 de Setembro de 1558.

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uando a Universidade foi fundada em 1559, Évora, segunda capital do Reino, era palco de uma intensa vida cultural onde marcaram presença, além dos distintos humanistas seus filhos, figuras como Gil Vicente ou Clenardo. A Universidade traria à cidade a projecção universal que naturalmente resultara da aventura da expansão ultramarina e das vicissitudes das questões religiosas do âmbito da Reforma e da Contra Reforma. Entregue a sua direcção ao cuidado da Companhia de Jesus, aqui se formou durante dois séculos parte da elite que interessava ao Estado e à Igreja formar para responder aos desafios enfrentados quer na metrópole quer no vastíssimo império português. Ao longo de duzentos anos alguns dos seus mestres alcançaram fama internacional, como Sebastião do Couto e Luis de Molina, mas também entre milhares de alunos sobressaíram figuras maiores da cultura portuguesa como Manuel Severim de Faria e Luís António Verney.

A vontade da cidade de Évora voltar a sediar uma instituição de ensino universitário foi particularmente evidenciada aquando das comemorações do IV centenário da fundação da Universidade. De facto, a partir de finais dos anos 50 inicia-se um processo que, passando pela criação do Instituto de Estudos Superiores de Évora em 1967 e do Instituto Universitário de Évora em 1973, culminará em 1979 na criação da Universidade de Évora. Para comemorar os 450 anos da sua fundação, promove a Universidade de Évora um Congresso Internacional visando reunir, numa perspectiva transdisciplinar, os especialistas que mais e melhor têm investigado a história das instituições que no Colégio do Espírito Santo tiveram a sua sede.

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. foto Susana Rodrigues . design David Prazeres .

Quando em 1759 o Marquês de Pombal expulsou os jesuítas, a Universidade de Évora foi extinta. Contudo, a vocação pedagógica do estabelecimento manteve-se e os estudos mantiveram-se no espaço físico da Universidade pela mão, primeiro dos professores régios nomeados pelo governo pombalino e depois, a partir de 1776, da Terceira Ordem de S. Francisco que aqui manteve estudos, sob a protecção do Arcebispo de Évora, D. Manuel do Cenáculo. No século XIX, com as reformas pedagógicas do liberalismo, foi o Colégio do Espírito Santo sucessivamente escolhido para albergar a Casa Pia de Évora, o Liceu Nacional de Évora, e a Escola Comercial e Industrial, instituições que muito contribuíram para a instrução de milhares de jovens até à década de setenta do século XX.

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. Gabinete de Comunicação . Rua Cardeal-Rei, nº 19 . Apartado 94, 7002-554 Évora . uevora450@uevora.pt . www.450anos.uevora.pt .

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Évora e Luís António Vernei Aquele que viria a ser arcediago da sexta cadeira da Igreja Metropolitana de Évora, Luís António Vernei ( 23 de Julho de 1713 - 20 de Março de 1792 ), deve uma parte significativa da sua formação à Universidade jesuíta alentejana instituída pelo Cardeal Rei D. Henrique, em 1559

Texto: José Esteves Pereira Professor Catedrático (Filosofia) da Universidade Nova de Lisboa

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jovem Luís António levava para Évora, onde deve ter chegado em 17281 conhecimentos já assinaláveis. Contacto com os inacianos já o tivera em Santo Antão, onde se ia preparando para uma futura carreira eclesiástica. Na escola de Lisboa pontificava, como era regra, o método gramático alvarístico com o qual tanto se viria a insurgir. De Évora para Lisboa viera, aliás, o Padre Luís Gonzaga a quem D. Pedro II convidou para professor de Matemática de seus filhos. Um deles, o Infante D. António, viria a ser um assumido cartesiano, discípulo e amigo de Manuel de Azevedo Fortes. Pressentia-se, portanto, a gestação de atitudes ilustradas com atenção devida às ideias de Descartes, de Newton, e de Locke. Mas só durante a última década de 40 quando o próprio Vernei contribui para a acção renovadora é que essas ideias circulam, já, com assinalável interesse. O autor do Verdadeiro Método não frequentou, apenas, as aulas da Companhia de Jesus, pois veio igualmente a estudar filosofia, a partir de 1727, no convento oratoriano da Rua Nova do Almada, assistindo ao curso do Pe. Estácio de Almeida que durou até 1730. Ocorria a frequência escolar de Vernei muito antes, porém, da circulação das modernas ideias cartesianas e gassendistas, em Física, introduzidas pelo sábio Padre João Baptista, entre 1736 e 1739 e que, mais tarde, aparecerão impressas em respeitável in folio.

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Vem, então, o episódio da ida para a Índia. Vernei decidia seguir a carreira das armas. Mas a aventura não dura muito. Em 1729, com 16 anos, matricula-se na Universidade de Évora. Poderia ter optado por Coimbra. Pode bem ter acontecido que conveniências de ordem familiar o levassem para a capital do Alentejo. Porcionista do Colégio da Madre de Deus, antes de o ser do de Nossa Senhora da Purificação, como estudante teólogo. Ouvindo os mestres, lendo e avaliando, de modo mais demorado, o que lhe estava ao alcance, Évora foi, certamente, o lugar onde começou a despertar a insatisfação intelectual do jovem Luís António. Quanto ao itinerário curricular de Vernei estamos em boas condições de o identificar como já o fez, criteriosamente, António Alberto de Andrade. Mas, o outrora aluno de Évora, também nos elucida, bem, sobre o assunto quando, na pele de um incógnito barbadinho, dá conta no Verdadeiro Método de Estudar, um tanto ironicamente, do elenco das matérias preleccionadas que, certamente, assimilou bem e praticou com sucesso. Vernei, como vimos, trouxe para Évora, algumas luzes filosóficas hauridas no Oratório que vieram a ser completadas com a interpretação do Pharus Dialectica (Farol Dialéctico), no campo da Lógica, da autoria do P. Bento de Macedo. Também terá aproveitado matérias extraídas dos Cursos dos PP. Soares Lusitano e António Cordeiro2, este último visto com alguma suspeita, por equívocas atitudes de modernização

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especulativa no campo da filosofia natural o que o levou a ter que se defender e aceitar duras admoestações Dentro dos parâmetros pedagógicos estabelecidos pela Companhia de Jesus o nível de ensino praticado parecia, efectivamente, necessitar de uma renovação que, como nos informa António Alberto de Andrade, só se operou quase no princípio da última década, antes de se fechar a Universidade o que viria a ter lugar em 8 de Fevereiro de 1759 quando, “ao anoitecer, os Colégios universitários do Espírito Santo e da Purificação foram cercados por um regimento de dragões, do comando do coronel Conde de Lumiares”3 Na abordagem que nos dá do Curso Filosófico praticado, no seu tempo, segundo o teor dos Estatutos vigentes, a opinião de Vernei tem tanto de elucidativa como de mordaz: “No primeiro ano, se passa com dois tratados, a que chamam Universais e Sinais, cada um dos quais terá, quando pouco, os seus 20 cadernos de duas folhas; e já vi Mestre que ditou 40 cadernos, somente de Universais. No segundo ano, acabam-se os Sinais; e parte do ano falase muito de Matéria Primeira e Causas, ao que chamam Física. No terceiro ano, estudam-se Intelecções, Notícias, Tópicos, e algumas questões de Metafísica digo, do Ente em comum. E com estas quatro, e as duas do primeiro ano, se faz o Bacharel. No quarto, explica-se um tratado, a que chamam Geração e Corrupção, e, havendo tempo, outro a que chamam de Anima in communi. Depois, fazem-se conclusões nas ditas matérias, ou semelhantes, que é um acto em que muitas vezes sucede que o defendente não tem argumento algum. Segue-se o Licenciado, que é um exame sobre as 6 matérias do Bacharel, com mais outras que apontámos. E temos o homem graduado em Filósofo”4 Vernei seguiu este currículo escolar com as necessárias provas, cerimónias e juramentos tornando-se Bacharel, Licenciado e, por fim,

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Mestre em Artes, em 1733. Os estudos teológicos a que depois se entrega passando, então, a residir no Colégio de Nossa Senhora da Purificação é que não terão corrido de feição. Sabe-se da manifesta irregularidade e falta de assiduidade às aulas, por motivo ou pretexto de doença, a prenunciar, já, uma profunda insatisfação e inquietação pessoal. Sem concluir o curso teológico, parte para Roma, em 16 de Agosto de 1736, com 23 anos de idade, em demanda de um ambiente, mais esclarecido. A partir da Cidade Eterna procuraria cuidar também, dos seus negócios pessoais, sempre marcados por fatais animadversões e perseguições. Muito complexo se tornou, entre variadíssimas peripécias, todo o processo de entrada no estado de eclesiástico e a concessão do lugar de arcediago para a Sé de Évora. A experiência eborense, no plano da formação filosófica e teológica, não tem que ser vista, apenas, pelo mau exemplo pedagógico que Vernei assaca aos seus Mestres servindo-lhe de alvo para o ataque às frioleiras e inépcias escolásticas que denuncia. De facto, a assistência e exercício escolar nos bancos do Colégio do Espírito Santo, também lhe permitiram instruir melhor o seu ataque ao défice cultural e educativo vigente, em 1746. É no ambiente polémico despoletado pela publicação do Verdadeiro Método de Estudar que virá à superfície, efectivamente, a longa maturação e confronto de ideias da experiência romana e europeia de Vernei. Mas, é nessa altura que surge, também, em memória, recorrentemente, Évora: “Vim de lá e o confesso para minha confusão, com muita asneira na cabeça, com as quais me criaram. E não obstante alguns homens, que tinham corrido o mundo, me dizerem, que cá fora se sabia muito, e bem, e melhor que lá; não me podia despir de todos os prejuízos que os Estrangeiros sabiam pouco, e só os Portugueses abismavam. Isto me disseram os Jesuítas melhores”5

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Vernei, imerso numa parte da Europa em que repercutiam debates e propostas novas, mesmo que se tenha de se entrar em linha de conta com o compromisso ilustrado que marcou as expressões da ilustração italiana anseia, confiante, por decidida abertura mental esclarecedora a um possível interlocutor residente em Évora e seu amigo: “Gosto, porém, que estas bulhas vão abrindo os olhos ao mundo português, porque despertando-se a verdade se aclara sem se perder em recato de linguagem quando lhe vem crítica”6 para, de modo truculento, um pouco mais tarde, quando lhe criticam uma das suas obras filosófica dizer: “estou mijando para semelhantes censores; dos quais faço tanto caso como da lama da rua”7 De um modo determinado, encoberto no anonimato, o autor do Verdadeiro Método de Estudar para ser útil à Republica e à Igreja: proporcionado ao estilo; e necessidade de Portugal, exposto em várias cartas, escritas polo R.P.*** Barbadinho da Congregação de Itália, ao R.P. *** Doutor na Universidade de Coimbra se, por um lado, faz balanço do Portugal Velho, por outro, vai elaborando, meticulosamente, uma obra com intenções estruturantes de desejáveis concepções especulativas e de renovação pedagógica como acontece com Apparatus ad Philosophiam et Theologiam (1751); De Re Logica ad usum Lusitanorum Adolescentium Libri Sex (1751), De Re Metaphysica ad usum Lusitanorum Adolescentium Libri quator (1753), De Re Physica ad usum Lusitanorum Adolescentium (1758), Gramática Latina tratada por um Methodo novo, claro e facil (1758) entre outros escritos. Ao longo das 16 cartas do Verdadeiro Método de Estudar, Luís António Vernei procedeu a um extenso levantamento do capital de saber lusitano que se encontrava inexoravelmente afastado dos rumos contemporâneos da cultura europeia. Como afirmou Silva Dias “A publicação do Verdadeiro Método de Estudar, em 1746, pela intensidade e amplitude das reacções provocadas, abriu o debate frontal e definitivo sobre a cultura e a filosofia tradicionais, no seu todo de métodos pedagógicos e cientí-

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ficos, de doutrinas e sistemas, de problemas e conhecimentos”8 A polémica obra viria a aparecer numa altura em que, não apenas Vernei, dava conta da necessidade de abertura mental. De facto, dois anos antes, tinha sido publicado Lógica Racional, Geométrica e Analítica, de Manuel de Azevedo Fortes em que se cruzam intuitos renovadores de âmbito filosófico, pedagógico e estético de matriz cartesiana além de reflectirem, simpatias modernizantes de alguns círculos da corte joanina. Ainda durante a polémica activa e passiva do Verdadeiro Método, obras como a Philosophia Aristotelica Restituta do oratoriano P. João Baptista, a que já me referi, ou, nos inícios da década de 50, a Recreação Filosófica do seu discípulo Teodoro de Almeida, assistese a um refrescar de perspectivas mentais que põe em causa, definitivamente, o formalismo escolástico, ao mesmo tempo que se anuncia o afastamento do excessivo preceptualismo teológico para que se dê espaço a atitudes naturalmente éticas do cristão. O que é claro é que Luís António Vernei representa, de um modo bem nítido, o decisivo enfrentamento paradigmático entre Antigos e Modernos, em Portugal. A inquietação pessoal, a veemência verneiana com os excessos que lhe conhecemos, talvez corresponda à interrogação de Paul Hazard neste passo da sua Crise da Consciência Europeia se interroga “Do Passado até ao presente: donde provém este outro pendor? Porque é que uma parte da Europa pensante denunciou o culto da Antiguidade, que o Renascimento e toda a idade clássica tinham professado? A famosa querela dos Antigos e dos Modernos, que geralmente se apresenta como explicação desta viragem, é um sinal apenas; o que se tem de procurar é a sua razão de ser”9 O mundo que Vernei queria deixar, tal como Feijoo em Espanha, era o do ensimesmamento prolongado de uma excessiva solidão reflexiva enredada na excedente paráfrase barroca a par de uma equívoca assimilação de novas correntes de pensamento. Vernei, a esse pro-

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pósito, nem sequer poupou a maior abertura oratoriana ao cartesianismo e ao atomismo gassendista como relata para o seu destinatário eborense: “Que progressos tem feito os nossos (...) nas Matemáticas, que obra tem composto que mereça ler-se? Na Filosofia Moderna, que coisa tem feito mais do que ditar uma Filosofia Gassendiana que traz o Tosca (…), muito esfarrapada, e que é a mesma que ensinam os Filipinos nesse Reino. Lê as obras do P. Joâo Baptista, da congregação, e verás uma misturada de Gassendiana com Peripatética, que merecem compaixão”10 Como acontece inúmeras vezes é preciso viver, por dentro, a condição mais desconfortável de um pensamento e quadros mentais que não nos satisfazem para nos libertarmos e descobrirmos um verdadeiro método, um verdadeiro caminho para. Esse caminho, indicado para a regeneração dos estudos pátrios, encontrou muitas resistências e as propostas verneianas seriam alvo de cerrados ataques, a par do significativo acolhimento de alguns. Na primeira linha de ataque apareceram os Jesuítas. Era natural que assim fosse atendendo á hegemonia educativa dos inacianos que se viam desautorizados pela incisiva crítica expendida ao longo das Cartas do Verdadeiro Método no momento em que procediam a alguma renovação. Entre muitas afirmações contundentes aprecie-se a do P. Paulo Amaro, no Mercúrio Filosófico, ao apreciar a Lógica que, entretanto, Vernei dera a público: “Vós sois Vernei e quereis como gente entrar entre os filósofos? Tende paciência, porque está passada ordem que vos não admitam sem que primeiro vades joeirar mui bem a vossa lógica por ser uma palhagem”11.

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Mas também houve quem recebesse com agrado as suas ideias até na medida em que ele verbalizava o mal-estar sentido por alguma elite intelectual e de estado. Vernei situa-se na linha divisória do Barroco e da Ilustração e apresenta uma proposta que entendia “proporcionada ao estilo de Portugal”. Esta afirmação tem um sentido preciso porque corresponde ao que viria a ser a adesão possível, em Portugal, às múltiplas correntes de pensamento ilustrado europeu. De facto, nunca se pode esquecer que, na sua raiz setecentista, a afirmação das Luzes em Portugal, está marcada por um compromisso cristão que, desde logo, as afastam de um entendimento concretizado pelo espírito enciclopedista e deísta. A aproximação das nossas Luzes às da Itália (com excepção, talvez, da napolitana) e da Áustria foi, em devido tempo, assinalada por Luís Cabral de Moncada. No entanto, a feição menos filosofista de reflexões, como a de Vernei, em Portugal ou a de Feijoo, em Espanha, não diminuiu o sentido de abertura, por exemplo, a uma reflexão ética em que a centralidade antropológica e o tema da felicidade se consubstanciam em preceitos decorrentes da luz de uma boa razão. Essa visão racionalista mostraria ao Homem o caminho das acções honestas e, também úteis à sociedade civil repercutindo, em tal atitude, o alinhamento franco nas concepções jusnaturalistas, de cunho racionalista, anunciadoras de ideias de tolerância e de secularização. “(...) a Lei Divina, a Natural, a das Gentes, são a mesma Lei; toda a diversidade está no modo da publicação. A Divina foi publicada pela boca de Deus; a Natural é a mesma Lei Divina proposta aos Homens pela faculdade que a alma tem de conhecer o bem; a das Gentes é a mesma Lei Natural posta em execução pelos Povos inteiros. Além disto, a Lei Civil e Eclesiástica, pelo que respeita a honestidade das acções humanas, é em tudo conforme à boa razão”12 Vernei, que catalisa ainda em tempos de D. João V, a partir de Roma, a mediação de uma razão discursiva e de um sentido, muito vivo, de expe-

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António Alberto de Andrade, Vernei e a Cultura do seu tempo, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1966, p. 31

riência aparece a montante de novo enquadramento de valores sociais, por um viés político, situação que virá a marcar, flagrantemente, os desígnios do absolutismo teórico e pratico pombalino e até de alguns sinais de cunho pré-liberal. A esse respeito, o entendimento do que seja nobreza é deveras esclarecedor. Não se cuidaria tanto do nascimento nobre, ou da ordem em que se nasce, mas sim das virtudes próprias, naturais e autênticas. Estamos sem dúvida, em meados de Setecentos, em Portugal, apenas no campo de um igualitarismo moral. Mas, na argumentação, tanto se pode entrever a igualdade natural dos vassalos perante a absoluta disponibilidade do Príncipe ilustrado que vela por todos, como a cidadania libertadora que a prática liberal, mais tarde, procurará gerir. E nunca se pode esquecer que o ensaio de Locke sobre a tolerância, como Salgado Júnior demonstrou, era muito caro a Vernei. A alegada palhagem verneiana inculcada pelo jesuíta P. Paulo Amaro, como referi há pouco, surgida no calor da polémica, teria contudo, insuspeitado êxito, aproveitamento e leituras diferentes. Não obstante o desatendimento das propostas de Vernei para a reforma dos estudos pombalinos, nomeadamente quando se tratou de escolher compêndios que satisfizessem as novas exigências didácticas é difícil, em todo o caso, admitir que o espírito de muitas das reflexões do filósofo e teólogo não fossem, pelo menos espiritualmente, incorporadas, nas medidas estatutárias e na respectiva aplicação. É preciso não esquecer que, tanto D. Tomás de Almeida, como Frei Manuel do Cenáculo ou o Padre António Pereira de Figueiredo, figuras centrais do reformismo pombalino, tinham apreço pelas ideias do incómodo arcediago. As vicissitudes da política é que não foram nada favoráveis a Vernei que, mal é nomeado, em 1768, para Secretário da Legação em Roma, logo começa a ser vítima de uma perseguição movida pelo primo co-irmão de Carvalho e Melo, Francisco de Almada de Mendonça. Só no fim da vida, pobre e desiludido,

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verá verdadeiramente amenizada a sua condição e dignamente respeitada a sua figura. Não obstante o lado um tanto trágico de uma existência, como foi a de Vernei, o seu espírito brilhou na Sapienza de Roma, onde se forma em Teologia - depois da desistência de Évora - e em Jurisprudência. Verá a sua obra elogiada e utilizada em Espanha e na América espanhola, torna-se bem conhecido nos meios intelectuais franceses onde se concretiza uma divulgação sinóptica do Verdadeiro Método além da sua obra filosófica, em latim. Apesar da opção tomada em Portugal, por Pombal, de recorrer aos compêndios de Lógica e de Metafísica de António Genovesi (conhecido como Genuense) que será o alimento de sucessivas gerações de alunos, a obra filosófica, em latim, de Vernei, que só recentemente começou a ser traduzida, de modo seguro, por Amândio Augusto Coxito, não passou despercebida no espaço ultramarino português, especialmente no Brasil, através dos Oratorianos. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, figura incontornável da Ilustração em terras de Santa Cruz vem a prestar-lhe atenção especial, como se pode verificar nas recomendações presentes nos Estatutos do Seminário de Nossa Senhora da Graça da Cidade de Olinda de Pernambuco (1798).

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Idem, p.34.

3

Idem, p.395.

4

Luís António Vernei, Verdadeiro Método de Estudar, ed. Prof. António Salgado Júnior, Lisboa, Sá da Costa, 1952, Vol. III, pp. 4-6.

5

Carta de Luís António Vernei enviada de Roma em 1.1.1753, in António Alberto de Andrade, ob. cit., p.48.

6 Carta de Luís António Vernei enviada de Roma em 30.6.1751, in Jean Girodon, Verney-Documents, Lisboa, Livraria Bertrand, 1961, p. 25.

7

Carta de Luís António Vernei enviada de Roma em 30.6.1753, in Jean Girodon, cit., p. 27.

8 J. S. da Silva Dias, O eclectismo em Portugal no século XVIII- Génese e destino de uma atitude filosófica, Coimbra, 1972(sep. da “Revista Portuguesa de Pedagogia”, ano VI), p.16.

9

Da projecção global da obra do filósofo será suficiente indicar o modo como o Journal des Sçavants, de Junho de 1751, recebia o De Re Logica “composta em Roma de autor nascido em Portugal, mas de uma família originária de França, obra destinada aos jovens portugueses que quisessem “adquirir conhecimentos profundos e não se limitar a estudar com erudição superficial” De Luís António Vernei, Arcediago de Évora se exaltava, no célebre, e universalmente atendido periódico, o seu espirito naturalmente firme e propenso a rejeitar todos os preconceitos que se introduzem no mundo através do costume, do hábito, do uso e das diversas paixões dos homens.

Paul Hazard, A Crise da Consciência Europeia, Lisboa, Editora Cosmos, 1948, p. 34. 10

Carta de Luís António Vernei enviada de Roma em 30.6.1753, in Jean Girodon, ob. cit. pp. 35-36.

11 Cit in J. S. da Silva Dias, Portugal e a Cultura Europeia, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1952, p. 418.

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Luís António Vernei, Verdadeiro Método de Estudar..., pp. 260-261.

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Pedro da Fonseca e a Universidade de Évora

Texto: Manuel Ferreira Patrício Universidade de Évora

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Escreveu André Gide estas palavras sábias: Já se disse tudo; mas como ninguém ouve, é sempre necessário recomeçar. Tudo, tudo, sabemos que não se disse. Gide o saberia melhor que nós. Mas já se disse muito; e é certo que muito não foi ouvido, ou foi esquecido, ou submerso por muito que veio entretanto, por vezes de pouca ou nula valia. Por isso alguns persistem em - como disse Gide - recomeçar. Recomecemos, no tocante à Universidade de Évora e a Pedro da Fonseca, porventura o mais ilustre dos Mestres que por esta instituição passaram. Recomecemos pela instituição. Seja-nos permitido transcrever na íntegra o segundo parágrafo do texto prefacial que escrevemos para o volume A Universidade de Évora – Mestres e Discípulos Notáveis – (séc. XVI-séc. XVIII)1: O ilustre Professor Catedrático desta Casa, por ela Doutor “honoris causa”, Padre Augusto da Silva, para calar in limine eventuais utilizadores do argumento de que há, em relação à Universidade de Évora actual, uma linha de descontinuidade no tocante à entidade instituidora – que terá sido no primeiro ciclo de existência o Papado e é hoje o Estado –, põe à vista a similitude do processo de criação das duas Universidades. Na verdade, o mesmo foi, na essência, o processo de transferência da autoridade pontifícia para a autoridade estatal que ocorreu com a Universidade de Coimbra, sendo diferentes apenas o tempo e o modo. Com subtileza escreve o Professor Augusto da Silva: “Histori-

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camente assim aconteceu: a Universidade de Évora foi a segunda a ser criada em Portugal. À semelhança da primeira – o Estudo Geral de Lisboa, depois transferido para Coimbra – também a universidade eborense foi criada por autoridade pontifícia e sustentada com bens subtraídos a rendas eclesiásticas”2. Se lembramos o que escrevemos há cerca de quatro anos não é apenas para seguir a sentença de André Gide, mas também porque nos parece cada vez mais necessário pôr em evidência a íntima ligação que, no século XVI e no auge do Humanismo e do Renascimento portugueses, existiu entre Coimbra e Évora, entre o Colégio das Artes e a Universidade de Coimbra e Évora, pela superior mediação da Companhia de Jesus e da Coroa. É esta ligação que explica que Pedro da Fonseca tenha sido – e ainda seja, e continuará a ser – uma figura eminente da história do Colégio das Artes de Coimbra, e da Universidade de Évora. Como os maestros fazem com as partituras musicais, assim fizeram a Companhia de Jesus e o Papado naquela altura: dirigiram os meios humanos de que dispunham de forma integradora e convergente, fazendo-os intervir como era conveniente ao conjunto e à realização da peça a executar. É à luz desta visão das coisas que intentaremos neste escrito atribuir a Pedro da Fonseca o lugar que é o seu na Universidade de Évora. O seu lugar dos lugares é a Companhia de Jesus. O lugar dos lugares desta é a Igreja Católica Romana. É para a Universidade de Évora, na sua configuração institucional actual,

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honra eminente ter em Pedro da Fonseca um dos seus Mestres. Mas sabe ela que o partilha com Coimbra, no passado com o Colégio das Artes e hoje com a Universidade de Coimbra. Pedro da Fonseca cumpriu a sua missão lá e cá, cá e lá, nos floridos campos da lusa Atenas e na seca mas bela planície envolvente da venerável cidade romana.

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Nós gostaríamos muito que a Universidade de Évora actual – a que vive o segundo ciclo da sua existência – assumisse Pedro da Fonseca como um dos seus Mestres notáveis, mais verazmente como o mais notável dos seus Mestres, que a nosso ver foi, sem desdouro para com nenhum outro. 1552-1553 é o ano escolar que marca o início da brilhante carreira de Fonseca, com o encargo de reger, no Colégio das Artes, em Coimbra, um curso de Artes. Era ainda estudante de Teologia, tinha de 24 para 25 anos. Foi em comemoração desse acontecimento que a Revista Portuguesa de Filosofia resolveu dedicar o seu número 4 de 1953, correspondente ao trimestre de Outubro-Dezembro desse ano, a Pedro da Fonseca. No intróito editorial, Fonseca é apresentado como “o grande mestre da Escola de Coimbra, que de mãos dadas com seus irmãos, professores no Colégio das Artes, soube imprimir novos rumos à Filosofia e à Escolástica, influindo poderosamente no dealbar da cultura moderna”3. Neste preciso ponto, é referido o caso particular do desenvolvimento universal da Filosofia, da influência exercida sobre Descartes – aluno do Colégio jesuíta de La Flèche, lembramos –, que o Curso Conimbricense contribuiu para formar. Continuamos a ler no referido intróito: “Não há dúvida que Fonseca e os Conimbricenses contribuíram grandemente na formação de Descartes, ajudando-o profundamente no evoluir lento do seu espírito.”4 A Universidade

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de Évora foi fundada e começou a funcionar em 1559. Dentro da unidade de actuação da Companhia de Jesus, também ela decerto ajudou os professores do Colégio das Artes, em Coimbra, pois era a única Universidade dirigida pelos Jesuítas em Portugal, sendo portanto nela que se realizava a formação dos mestres jesuítas enquanto universitários ou nível similar. Fonseca doutorou-se em Évora. Também Francisco Soares se não doutorou em Coimbra, mas em Évora. O Curso Conimbricense foi elaborado pelos mestres jesuítas que então ensinavam no Colégio das Artes. Seja-nos lícito lembrar o papel que Évora veio a desempenhar, após a sua fundação, na formação desses mestres, como instituição-viveiro que não poderia deixar de ser. Assim, a Universidade de Évora não pode ser colocada à margem dos caminhos encontrados pela filosofia europeia nos séculos XVI e XVII. Foi Pedro da Fonseca professor nesta Universidade durante quinze meses. Independentemente dos momentos em que a sua obra germinou e se tornou conhecida publicamente nos meios filosóficos europeus, não pode a Universidade de Évora ser dissociada da alta qualidade que essa obra atingiu e da ressonância que encontrou na Europa e mesmo para além dela. Na linha de Pedro Hispano e Pedro Margalho, Fonseca realizou um esforço notabilíssimo para continuar o magistério lógico de Pedro Hispano, mestre de lógica de toda a Europa na 1.ª Escolástica. As Instituições Dialécticas, a que deveremos associar a Isagoge Filosófica, representam um esforço de clarificação e renovação da lógica escolástica do mais alto mérito, tendo especialmente em conta a posição antiaristotélica assumida por Petrus Ramus 5 . Tão alta reputação atingiu Fonseca, sobretudo com os Comentários à Metafísica de Aristóteles, que mereceu a conhecida referência elogiosa de Leibniz, figura cimeira da história da filosofia até hoje. Fonseca não se encontrava, aliás, sozinho na grande renovação filosófica ocorrida na Península Ibérica nos séculos XVI e XVII, conhecida pelo nome de 2.ª Escolástica. No conjunto constituído pelos Salmantinos, os Complutenses, os Conimbri-

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censes e os Eborenses, “Portugal estava […] representado com nomes que não se podem esquecer: João de S. Tomás, Suárez, Molina, Fonseca e toda a Escola Coimbrã”6. De todos, coube a Pedro da Fonseca o mérito e a honra de receber o epíteto de “Aristóteles Português”, o qual fala por si.

3

Sigamos um pouco a vida de Pedro da Fonseca, para assim nos apercebermos em concreto do seu percurso intelectual e desenharmos com traços mais vívidos as suas relações com a Universidade de Évora. Pedro da Fonseca “nasceu em 1528 na Cortiçada, aldeia do antigo priorado do Crato, hoje chamada Proença-a-Nova, e era filho de Pedro da Fonseca e de Helena Dias”7. A sua formação passa um pouco por Évora, como já se verá. Inscreveu-se como aluno no Colégio das Artes em 1547, portanto no ano do seu 19.º aniversário, tendo beneficiado durante 6 meses do ensino dos Mestres Burdigaleses, que dirigiam o referido Colégio. Esses estudos foram interrompidos pelo seu ingresso na Companhia de Jesus, o que ocorreu aos 17 de Março de 1548, tendo então 20 anos de idade. Retomou os estudos após o termo do noviciado. Dos dois anos de Filosofia, fez o primeiro em Sanfins, nas margens do Minho, e o segundo em Évora, onde terá ouvido as prelecções de Frei Bartolomeu dos Mártires. Ainda não tinha sido criada a Universidade de Évora. Desta cidade foi para Coimbra, a fim de estudar Teologia. Em Outubro de 1552 – ano do seu 24 aniversário – informa Severiano Tavares que deu a seus irmãos em religião um curso de filosofia, o qual durou pouco, pois o Padre Jerónimo Nadal determinou, logo em 1553, “que os religiosos da Companhia voltassem a frequentar as escolas públicas do Colégio das Artes”8 . Este foi entregue à Companhia em 1555.

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Entretanto, tivera o seu princípio o Colégio de Évora, em 1551. Pedro da Fonseca era ainda estudante, mas integrou o grupo dos que foram enviados do Colégio de Coimbra para iniciar a fundação do Colégio de Évora. Era então Arcebispo de Évora o Cardeal Dom Henrique. Pedro da Fonseca e os teólogos seus companheiros idos de Coimbra foram no Colégio de Évora condiscípulos do Senhor Dom António, filho do Infante Dom Luís, que por ordem do Cardeal foi mandado estudar em Évora, para ser ensinado por eles e aproveitar do seu bom exemplo. Mestre de todos, em Évora, terá vindo a ser Frei Bartolomeu dos Mártires, mais tarde Arcebispo Primaz de Braga9. Este Dom António é o que virá a ser o Prior do Crato. Continuando a sua formação, Pedro da Fonseca estudou três anos de teologia no Colégio de Jesus de Coimbra, a partir de Outubro de 1552, leccionando filosofia no mesmo Colégio de 1552 a 155310. Quando, em 1555, Dom João o Terceiro entregou à Companhia de Jesus o Colégio das Artes da Universidade de Coimbra, deixou este de ter mestres seculares, substituídos pelos padres da Companhia. Pedro da Fonseca foi de Évora para Coimbra para ser um deles, no ensino da Filosofia. Aconteceu isto em Outubro de 1555. O magistério de Fonseca no Colégio das Artes durou entre 1555 e 1561. As referências que temos sobre a sua qualidade não podem ser mais encomiásticas. Segundo Joaquim Ferreira Gomes, é desse magistério que tem origem o epíteto que lhe foi atribuído de “Aristóteles Português”11. Em 1561, tendo vindo a Portugal como Visitador o Padre Jerónimo Nadal, foi o Padre Pedro da Fonseca encarregado de coordenar os trabalhos conducentes ao que veio a ser designado por Curso Conimbricense 12. É este um assunto da mais alta importância filosófica e metodológica. Pedro da Fonseca escreve ao Padre Jerónimo Nadal uma carta muito pormenorizada. A obra acabou por ser coordenada

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por ele por um período relativamente curto. Só algumas décadas mais tarde o Curso Conimbricense teve a realização que conhecemos hoje. De qualquer modo, não pode nunca deixar de ser atribuído a Pedro da Fonseca o mérito que teve na concretização das “instructiones et monita” do Padre Jerónimo Nadal, que conduziu à realização de “tão grandiosa obra”13. O momento mais importante da relação de Pedro da Fonseca com a Universidade de Évora é o que se situa entre 1564 e 1566. Foi nesse período que Fonseca nela regeu uma cadeira de Teologia Especulativa14. Évora e Coimbra representam os dois pólos estratégicos da Companhia de Jesus no ensino das Artes, da Filosofia e da Teologia. A colaboração entre as duas cidades era, pois, natural. Precisamente – informa J. Ferreira Gomes -, o catálogo de 1564 designa Pedro da Fonseca também como Professor de Teologia em Coimbra. O próprio Pedro da Fonseca “se ofereceu para dar duas lições de teologia por semana, a fim de aliviar o Padre Marcos Jorge do trabalho excessivo, tendo o Geral Laines aceitado o oferecimento”15.

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e a flor da corte. Foram padrinhos o Doutor Mestre Payo e o venerável Padre Frey Luis de Granada18. Outro acontecimento importante que liga Pedro da Fonseca a Évora é a realização da Congregação Provincial no Colégio desta cidade, no ano de 1572, para eleger os representantes que deviam ir a Roma em ordem à eleição do Padre Geral. Pedro da Fonseca acabou por ser eleito. Em Roma, foi eleito Geral o Padre Everardo Mercuriano, que por sua vez escolheu Pedro da Fonseca para seu Assistente. Tal escolha determinou a presença de Pedro da Fonseca em Roma até à morte do referido Padre Geral19.

A paternidade da doutrina da Ciência Média é ponto e motivo de controvérsia desde essa altura. Ora foi em Évora, precisamente em 1566, que Pedro da Fonseca ensinou a Ciência Média na Universidade. O Padre Luís de Molina vem a reivindicá-la para si em “um tempo anterior àquele em que Fonseca a reivindica para si”16. A questão é polémica. Voltaremos ao assunto mais adiante. Todavia, não deixaremos de apresentar desde já a importante declaração de António Franco: “Elle foi o primeiro, que no anno de mil quinhentos sessenta, & seis, como tem a Biblioteca da Cõpanhia, ensinou nas nossas escolas a Scientia Media […]” (o itálico é nosso)17.

Não nos demoraremos a referir vários momentos importantes da sua vida, já neste período final da mesma, por não relacionarem Pedro da Fonseca directamente com Évora e a Universidade. Como já se pôde verificar, foram muitos os cargos de natureza extrafilosófica e extrapedagógica com que foi cumulado e que certamente o condicionaram na realização da sua obra filosófica e teológica. O nosso propósito neste breve escrito é tão-só pôr à vista a persistente relação de Pedro da Fonseca com a Universidade de Évora, o que é motivo de orgulho e estímulo para nós, os da Universidade de Évora. Apoiamo-nos mais uma vez em Joaquim Ferreira Gomes para uma informação derradeira e decisiva: “em 1599 encontramo-lo ainda em Évora, mas, por ocasião da Congregação Provincial reunida em Lisboa, veio a falecer nesta cidade aos 4 de Novembro desse ano”, com setenta e um anos de idade20. Foi, pois, por um triz que Évora não teve o privilégio e a honra de o ter no seu seio na hora do passamento.

Pedro da Fonseca doutorou-se em Évora em 1570. Presidiu ao acto de doutoramento do Padre Inácio Martins, acto do qual saíram os dois doutorados, um defendendo e o outro presidindo. Foi uma cerimónia de luxo. Assistiu el-Rei Dom Sebastião, o Cardeal Dom Henrique

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A obra filosófica a nós legada por Pedro da Fonseca teve grande repercussão na época e é ainda hoje motivo de orgulho para todos nós. Constituem-na:

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Institutionum Dialecticarum libri octo (Lisboa, 1564); Commentariorum in libros metaphysicorum Aristotelis Stagiritae (4 tomos: Roma, 1577; Roma, 1589; Évora, 1604; Lião, 1612); Isagoge Philosophica ( Lisboa, 1591). Encontram-se publicadas em edições bilingues, em latim e português – com Introdução, Estabelecimento do Texto, Tradução e Notas por Joaquim Ferreira Gomes –, as Instituições Dialécticas (Coimbra, Universidade de Coimbra, 1964) e a Isagoge Filosófica (Coimbra, Universidade de Coimbra, 1965). Está em execução o projecto de publicação, pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, dos Comentários à Metafísica de Aristóteles, em edição trilingue: em grego, latim e português. Afirma Joaquim Ferreira Gomes que “qualquer destas obras teve extraordinária projecção”21. Foi tão grande essa projecção que das Instituições Dialécticas, “em pouco mais de meio século, foram feitas, pelo menos, 53 edições”22. Idêntica projecção teve a obra Isagoge Filosófica, que a partir da 2.ª edição foi sempre publicada juntamente com as Instituições Dialécticas23. Mas “a obra principal de Pedro da Fonseca, aquela que, pela sua originalidade e extensão, lhe dá jus a enfileirar entre os melhores representantes da Segunda Escolástica e lhe mereceu o título de «Aristóteles Português», são os quatro tomos dos Comentários à Metafísica de Aristóteles”24. Será altamente positivo para a cultura portuguesa, designadamente a filosófica, a concretização do projecto de edição trilingue, em curso, desta extraordinária obra de Pedro da Fonseca. Nela fixou o filósofo o texto grego, fez a respectiva tradução latina, ambos os textos acompanhados das explanationes, concluindo o trabalho nas quaestiones, componente em que se patenteia a sua originalidade.

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Foi ainda atribuído um novo livro ao filósofo português: Definitiones, Divisiones, ac Regulae, ex Logica et Physica Aristotelis25. A opinião de J. Ferreira Gomes, fundamentada, é negativa: “Cremos tratar-se de uma obra apócrifa.”26 Isto quanto às obras publicadas. “Além destas obras impressas, restam vários manuscritos que, com maior ou menor certeza, têm sido atribuídos a Pedro da Fonseca”27. Joaquim Ferreira Gomes aponta sete, cuja autenticidade analisa um a um 28.

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Podemos encontrar alguns sinais de que a Universidade de Évora não é alheia à concepção e elaboração da obra magna de Pedro da Fonseca, os Comentários à Metafísica de Aristóteles? O eminente investigador de Fonseca que é António Manuel Martins, ao registar o facto conhecido do doutoramento em Teologia na Universidade de Évora, em 1570, informa que “entretanto, continua a preparar o seu texto sobre a metafísica, provavelmente em Lisboa”29. Isso pressupõe que já na década de sessenta assim acontecia. Ora essa foi a década em que Fonseca regeu uma cadeira de Teologia Especulativa na Universidade de Évora, como já assinalámos. No período em que foi assistente-geral do Geral dos Jesuítas, Everardo Mercuriano – período longo –, residiu habitualmente em Roma. Diz-nos António Manuel Martins que “durante este período de quase dez anos, Fonseca não deixa de avançar na redacção do seu texto”30. A estadia é-lhe, de resto, a este respeito benéfica: “Esta longa estada romana deu-lhe a possibilidade de consultar códices do Corpus Aristotelicum e numerosa bibliografia a que dificilmente teria acesso em Portugal.”31 Aliás, é justamente dentro deste período que são publicados em Roma os primeiros resultados da reflexão metafísica de Fonseca, em 1577, “passados, portanto, quatro anos sobre o início da sua estada nessa cidade”32. Diz-nos António

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Manuel Martins que este período “deveria ser estudado com particular atenção”33. E ele sabe do que fala. Alerta-nos, por exemplo, para o facto de o 1.º tomo dos Comentários à Metafísica de Aristóteles conter já “o desenvolvimento dos temas nucleares da reflexão metafísica – natureza do conhecimento filosófico e metafísico, relação da metafísica com a lógica e outras ciências, determinação do objecto da metafísica, análise do conceito de ser, predicação e analogia, distinção de essência e existência, as determinações transcendentais simples do conceito de ser (uno, verdadeiro, bom), princípio de não contradição”34. Acrescenta, acto contínuo: “Para já retenhamos o facto, incontestável, mas nem sempre tido em devida conta, de a 1.ª edição deste volume da obra de Fonseca ocorrer 20 anos antes da publicação das Disputationes de F. Suárez (Salamanca, 1597).”35 Existem, de facto, razões sérias para tomarmos em conta esta advertência. Observemos, por exemplo, a estranha ausência de Pedro da Fonseca numa conhecida obra de Clemente Fernández S.I., Los filósofos escolásticos de los siglos XVI y XVII – Selección de textos36. Nessa obra aparecem seleccionados os seguintes filósofos: Francisco Silvestre de Ferrara; Tomáz de Vío, Card. Cayetano; Francisco de Vitoria; Domingo de Soto; Melchor Cano; Luis de Molina; Domingo Báñez; Gabriel Vásquez; Francisco Suárez; Juan de Santo Tomás; Juan de Lugo. Fonseca é excluído. Na verdade, apenas é mencionado no “Índice de Nombres”. Quando vamos ver em que textos e contextos, e por que autores, é mencionado Fonseca, constatamos que o é sempre – oito vezes –, e apenas, por Suárez. Não é para nós compreensível esta ausência de Pedro da Fonseca: Clemente Fernández é jesuíta, Clemente Fernández é espanhol. Será que este facto apagou aquele?… A explicação dos critérios seguidos não convence37. Persiste alguma tensão entre o pensamento de Pedro da Fonseca e o de alguns filósofos e teólogos espanhóis. Os mais importantes, a este respeito, são dois: Francisco Suárez e Luis de Molina.

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Nas referências de Suárez a Fonseca que atrás mencionámos encontramos algumas de clara dissenção. Delas não falaremos aqui. Limitarnos-emos a aludir a um ponto fundamental: o da relação entre a filosofia e a teologia. Lembraremos, mais uma vez, a anterioridade de Fonseca em relação a Suárez, que é de 20 anos (1577, 1597). Para São Tomás de Aquino, a filosofia era ancilla theologiae. Não é assim para Fonseca, para quem a filosofia é omnium scientiarum domina; “o metafísico é praesidens, index das restantes ciências, não estando, portanto, sujeito a qualquer tutela38. Vinte anos mais tarde, Suárez corrigirá esta linha de orientação. Fá-lo assim: “Nesta obra desempenho de tal modo o papel de filósofo que jamais perco de vista que a nossa filosofia deve ser cristã e serva da teologia divina (divinae theologiae ministram).”39 O comentário de A. Manuel Martins é certeiro: “É o regresso inequívoco a uma visão instrumental da Filosofia de que Fonseca já se tinha libertado.”40 E prossegue: “Este aspecto, cuja importância nunca será de mais sublinhar, não tem sido devidamente valorizado.”41 Outro ponto controverso é o da Ciência Média. Historicamente, foi debatida a partir dos escritos de Luis de Molina, pelo que é também conhecida por molinismo. Foi, num dado momento, adoptada como doutrina oficial da Companhia de Jesus42. A quem pertence a paternidade da doutrina? A Fonseca ou a Molina? Fonseca reivindicou a paternidade no tomo terceiro dos Comentários. Diz que a explicou em aulas públicas em 1566. Foi na Universidade de Évora, como se vê. Chamara-lhe então ciência condicionada. “Afirma que, depois disso, outros apareceram a chamá-­la de ciência média.”43 Pinharanda Gomes entra seguidamente numa análise pormenorizada da “sequência pública” em que a doutrina aparece, “vinculada a Molina”44. Os factos parecem indiciar a existência de uma disputa pessoal entre os dois jesuítas, em que aparecem os dominicanos, a Inquisição, o Geral dos Jesuítas e o próprio Papa, além de outros

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comparsas45. Continuemos a seguir a análise de Pinharanda Gomes, que procura afastar de si o sentimento patriótico e esforça-se por encontrar a verdade do que terá acontecido. Sem deixar de mostrar aceder à tese conciliatória de Severiano Tavares – que, de qualquer modo, dá a Fonseca a paternidade da ideia… –, afirma que será de não fechar o caminho “à hipótese de uma autoria colegial”46. Tem interesse vermos como relaciona Pinharanda Gomes Coimbra e Évora, a respeito desta questão. Diz ele: “Em que medida a ideia medra, lenta, antes de florescer, nas conversas e controversas que os professores jesuítas mantinham em Coimbra e em Évora? E como é que Fonseca é o primeiro a ver a flor, e Molina o primeiro a ver o fruto? A autoria colegial não pode, sem mais, ser riscada da lista de hipóteses.”47 Parece-nos sensata a posição de Pinharanda Gomes. Só não sabemos se o verbo “ver” deve ser utilizado nos dois casos, o da flor e o do fruto. A análise de Severiano Tavares levar-nos-ia a pensar que mais adequado, em relação a Molina, seria o verbo “colher”. Em tudo o mais podemos concordar.

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Pretendíamos tornar claro, com este modesto escrito, que Pedro da Fonseca teve com a Universidade de Évora, no século em que viveu, uma relação demonstrável que foi suficientemente duradoura e consistente para que legitimamente seja assumido por nós como um dos seus Mestres. Era também nosso propósito evidenciar que o eminente filósofo jesuíta prova, só por si, a articulação objectiva que a Companhia de Jesus e a Coroa garantiram e promoveram entre Coimbra e Évora, no caso daquela através do Colégio das Artes, no caso desta através da Universidade. Subjacente a estes dois propósitos encontravase um terceiro: o de desfazer quaisquer dúvidas sobre a grandeza filosófica de Fonseca.

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É nossa ideia que a Universidade de Évora não se mostra suficientemente consciente desta grandeza e da pertença inequívoca do “Aristóteles Português” ao friso dos seus mais excelsos Mestres. Gostaríamos que o nosso contributo dissipasse as dúvidas eventualmente existentes e conduzisse a uma atitude assertiva em relação a esta figura magna da nossa história institucional, repondo também alguma justiça e verdade relativamente ao pensamento que foi o seu e que visivelmente agradou a outros que com o mesmo se engalanassem. Joaquim Ferreira Gomes, até agora o único investigador português que traduziu para a língua de Camões obras de Pedro da Fonseca já editadas – as Instituições Dialécticas e a Isagoge Filosófica –, sintetiza o seu labor investigativo nos seguintes juízos de valor: “Pedro da Fonseca não é apenas o maior filósofo escolástico português. É também o filósofo lusitano que gozou de maior projecção e influência no estrangeiro.”48 Em consonância se pronuncia António Manuel Martins, que a respeito dos Comentários escreveu: “[…] os Comentários à Metafísica de Aristóteles conferem a Fonseca um lugar de destaque numa história da hermenêutica do texto aristotélico.”49

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Mas nós não escrevemos este texto com o propósito exclusivo, nem sequer principal, de glorificar o passado desta Universidade. Nós procuramos escrever sempre com os olhos fitos no horizonte do futuro. Assumimos o compromisso com o passado como parte grave e solene do empenho na construção do futuro. É a nossa a ideia do “futuro do passado” com que encerra Fernando Pessoa o poema com que abre Mensagem. É para dirigirmos as naus de hoje para esse futuro que achamos dever cultivar o passado. Não para encalharmos nos recifes do presente e nos perdermos nos pélagos do outrora. Amanhã é o nosso dia. Amanhã foi o dia de Pedro da Fonseca. É o dia de Pedro da Fonseca.

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N o ta s

1 Maria Luísa Guerra, A Universidade de Évora / Mestres e Discípulos Notáveis (Séc. XVI-Séc. XVIII), Évora, Universidade de Évora, 2005. 2 Manuel Ferreira Patrício, “Prefácio”, ib., pág. 17.

9 Joaquim Ferreira Gomes, “Introdução”, in Pedro da Fonseca, Instituições Dialécticas / Institutionum Dialecticarum Libri Octo, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1964, pág. XXIV.

28 Ib., pág. LXIII-LXIV.

39 Ib.

29 António Manuel Martins, “Fonseca (Pedro da)”, in LOGOS – Enciclopédia Luso­Brasileira de Filosofia, vol. 2, Lisboa, Editorial Verbo, 1990, col. 657.

40 Ib., cols. 660-661.

10 Ib. 3 Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, Tomo IX, Fasc. 4, 1953, pág. 341. Este número da RPF é inteiramente dedicado a Pedro da Fonseca.

30 Ib. 11 Id., ib., pág. XXV.

43 Ib. 32 Ib.

13 Id., ib., pág. XXIX.

44 Ib. 33 Ib.

14 Ib.

6 Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, Tomo IX, Fasc. 4, 1953, pág. 342. 7 Severiano Tavares, in RPF, IX, 4, 1953, pág. 344. 8 Ib.

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42 Pinharanda Gomes, Dicionário de Filosofia Portuguesa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987, pág. 59.

31 Ib. 12 Ib.

4 Ib. 5 Petrus Ramus (1515-1572) publicou, em 1543, dois livros que constituíram uma verdadeira declaração de guerra a Aristóteles e aos aristotélicos. Foram eles: Petri Rami veromandui Aristotelicae Animadversiones e Dialecticae Partitiones. Ocasionaram grande escândalo e provocaram forte oposição por parte dos aristotélicos. O Reitor, P. Galland, encarregou de os refutarem António de Gouveia e Joaquín de Perión. António de Gouveia escreveu, para o efeito, o texto Pro Aristotele responsio adversus Petri Rami Calumnias. J. de Perión, por sua vez, escreveu Pro Aristotele in Petrum Ramum orationes duo. A guerra foi dura. A questão foi levada ao Parlamento e o Rei Francisco I veio a proibir Ramus de ensinar filosofia. Todavia, Ramus voltou a ensinar, passado algum tempo.

41 Ib., pág. 661.

34 Ib. 15 Ib. 35 Ib. 16 Ib. 17 António Franco, Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesus do Real Collegio de Coimbra, Tomo I, Évora, 1719, pág. 394, 2.ª col. 18 Joaquim Ferreira Gomes, ob. cit., pág. XXX. 19 Ib., pág. XXXI. 20 Pedro da Fonseca, Instituições Dialécticas, ed. cit., pág. 345. 21 Joaquim Ferreira Gomes, “Introdução”, ob. cit., pág. XXXIV. 22 Ib., pág. XXXV. 23 Ib., pág. LX. 24 Ib., pág. XLIX. 25 Ib., pág. LXII. 26 Ib. 27 Ib., pág. LXIII.

36 Clemente Fernández, S. I., Los filósofos escolásticos de los siglos XVI y XVII - Selección de textos, Madrid, BAC, 1986. 37 Lemos na badana da contracapa: “En la selección de los autores mismos se ha atendido, más que a la cantidad o número de ellos, a la riqueza de contenido doctrinal de los textos. Algunos de los textos cuya reproducción parecía imponerse por su importancia, se han podido omitir por hallarse ya el tema desarrollado con la suficiente claridad en la selección de los filósofos medievales, de cuya filosofía son continuadores (no meros repetidores) los filósofos escolásticos de este período.” Diremos que esta “explicação” não explica a ausência de Pedro da Fonseca. Entretanto, foram concedidas a Luis de Molina 78 páginas e a Francisco Suárez 456 páginas.

45 Remetemos ainda para Pinharanda Gomes, ob. cit., págs. 5960 e 60-61. A primeira passagem refere-se à questão da Ciência Média; a segunda, à questão do Curso Conimbricense. Relativamente a esta questão, escreve Pinharanda Gomes: “Luís de Molina entendia que, embora fosse obra comum, o curso tinha e deveria ter trabalho seu, mas houve uma nítida oposição de Fonseca a Molina, que se queixava de lhe utilizarem as glosas e de alterarem as lições. Molina chegou a redigir um curso, que, sendo assistentegeral, Pedro da Fonseca levou para Roma, embora nunca se interessasse, nem pela sua aprovação, nem pela sua impressão, sendo crível que Fonseca queria um curso português.” 46 Ib., pág. 60. 47 Ib. 48 Joaquim Ferreira Gomes, “Introdução”, in ob. cit., pág. LXV. 49 António Manuel Martins, “Fonseca (Pedro da)”, ob. cit., col 659.

38 António Manuel Martins, “Fonseca (Pedro da)”, ob. cit., pág. 660.

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Luís de Molina e a Universidade de Évora

1. Introdução

Texto: Joaquim Chorão Lavajo * Molina e a Universidade de Évora, in “Luis de Molina e a Universidade de Évora: Actas das Jornadas”. Fundação Luis de Molina, Évora, 1998. pp. 97~122

Quem, até ao ano de 1759, entrava na sala de actos da antiga universidade de Évora, ficava extasiado com a beleza dos frescos do tecto e das telas que então enchiam os muitos caixotões que hoje se encontram vazios. Aí estavam representadas, segundo os testemunhos fidedignos dos cronistas Manuel Fialho e António Franco1, muitas das grandes figuras que haviam honrado a Igreja, a Pátria e as letras eborenses nos séculos XVI a XVIII. No primeiro caixotão do lado esquerdo de quem entrava, a seguir ao primeiro reitor do Colégio do Espírito Santo, que foi o bispo D. Belchior Carneiro, e em frente do Doutor Francisco de Mendonça, podia admirar-se o retrato de Luís de Molina, o mais célebre dos professores da Academia eborense, que, precisamente naquele espaço, participara em inumeráveis actos académicos e ele próprio recebera o grau de doutor em teologia. É a essa figura ímpar de mestre e à florescente universidade quinhentista de Évora, a quem consagrou, ao longo de mais de quinze anos, o melhor das suas actividades pedagógicas e científicas, que dedico este meu estudo. À moderna Universidade de Évora e à prestigiosa Fundação Luís de Molina que, em boa hora, decidiram realizar estas jornadas, agradeço profundamente penhorado, o convite a nelas participar activamente.* Quando o Colégio do Espírito Santo de Évora foi elevado a universidade, em 15 de Abril 1559, pela

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bula Cum a nobis, do papa Paulo IV, que confirmava as Letras Ad personnam vestram, de 20 de Setembro de 1558, contava com trezentos alunos. O documento papal autorizava a universidade a leccionar “omnes licitae disciplinae et facultates, praeter medicinam et ius civile, ac eam partem iuris canonici, quae ad forum contensiosum pertinent”. Tratando-se de uma universidade especificamente eclesiástica, ainda que não exclusivamente vocacionada para a formação do clero diocesano de Évora e do Sul de Portugal, é natural que as matérias nela leccionadas fossem, logo à partida, aquelas que mais necessárias se tornavam à formação dos clérigos. É por isso que, quando começou a funcionar, em 1 de Novembro de 1559, contava com duas cátedras de teologia, uma de Sagrada Escritura e sete de Latim. Mais tarde, viria a ter três de teologia especulativa, duas de moral, duas subsidiárias de teologia, uma de Sagrada Escritura, quatro de filosofia, uma de matemática, oito de latim e retórica e duas de ler, escrever e contar. As duas cátedras iniciais de teologia eram as de Prima e de Véspera; depois abriu a de Terça.

2. Molina estudante Molina iniciou os seus estudos em Cuenca e continuou-os nas duas mais importantes uni-

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versidades da Espanha: a de Salamanca, onde estudou jurisprudência, em 1551-1552, e a de Alcalá, onde cursou lógica, durante os dois anos lectivos seguintes. Pouco tempo depois de ter ingressado na Companhia de Jesus, em Alcalá (10 de Agosto de 1553), foi enviado a frequentar o noviciado no Colégio de Jesus de Coimbra, o único então aberto na Península Ibérica. Chegou à Cidade do Mondego em 29 de Agosto de 1553. Os dois anos seguintes foram consagrados ao noviciado que, precisamente nesse ano, por determinação de S. Inácio de Loiola, passou de um para dois anos2. Desde o ano lectivo de 1555/56, até 1558/59, frequentou o curso de filosofia no Colégio das Artes. Coincidiu a sua entrada com a entrega, por D. João III, do Colégio aos cuidados da Companhia de Jesus, depois de o ter retirado da jurisdição dos professores seculares que o dirigiam desde a fundação, em 15473. Aí teve como professores Jorge Serrão, que foi substituído, ainda no primeiro ano, por Pedro Gomes, que o acompanhou até ao fim do curso, como era costume naquela instituição4. Alguns autores, entre os quais Rabeneck, Francisco Rodrigues e Manuel Fraga Iribarne, partindo do princípio de que Molina fez o noviciado de apenas um ano, defendem que teria começado a cursar filosofia no ano anterior, pelo que, de acordo com a distribuição do serviço docente do período, teve como

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professores Diogo de Contreiras, no 1º ano, e Sebastião de Morais, nos restantes5. Pedro da Fonseca nunca foi professor de Molina, pois aquele assumiu a docência do 3º ano em 1555/56, acompanhou os mesmos alunos no 4º ano e regressou ao 1º ano em 1557/586. No entanto, é natural que o Aristóteles português, o futuro defensor da doutrina da Ciência Média, tenha contribuído para despertar no espírito do jovem estudante de filosofia o interesse pela problemática filosófico-teológica da conciliação da graça divina com a liberdade humana e da presciência divina com a predestinação, problemática que, mais tarde, havia de desenvolver na célebre Concórdia. Para dar mais segurança a esta posição cronológica, que arrasta necessariamente consigo a problemática da distribuição dos professores do Colégio das Artes e porque alguns autores, com base em António Franco, admitem a hipótese de Molina ter entrado em Coimbra directamente para o I ano e até para o II, há que referir as palavras do próprio Molina ao Comissário Geral, P. Nadal, a quem diz ter estudado artes durante quatro anos: “Estudié en Coimbra, después de estar en la Compañia quatro años de artes, oyendo el ultimo alguna teologia, después de esto va en tres años que estudio teologia, sustituyendo en las artes alguna parte de este tiempo”7. Quando ainda cursava filosofia, em 1558, e se graduava em mestre de artes, Luís de Molina

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iniciou os estudos de teologia, que se prolongaram até 1562, na cidade do Mondego. No final desse período (em 1561 ou princípios de 1562), foi ordenado de presbítero. Segundo declaração feita, em meados de 1561, pelo próprio Molina, durante o curso de teologia, deslocou-se a Évora, onde estudou teologia e leccionou artes, pelo espaço de um mês8. Esse foi, certamente, o primeiro contacto que teve com a Universidade de Évora. Em 1561, quando o P. Jerónimo Nadal, comissário de Portugal, Espanha, Alemanha e Itália visitou o nosso país e redigiu normas concretas para os estudos de Coimbra e Évora, nomeou os mestres que haviam de leccionar no Colégio das Artes durante o ano lectivo de 1561/62. Nesse elenco aparece o nome do “irmão Luís de Molina como substituto geral de artes”9. O mesmo documento, ao recomendar que Coimbra e Évora deviam munir-se dos melhores mestres de que a Companhia então dispunha, determina que essas duas casas “se ajudem mutuamente sempre que necessário e possível10”. Foi certamente com base nessa determinação que, em Março de 1562, encontrando-se Molina no Algarve, foi enviado para a universidade de Évora, para aí prosseguir os estudos teológicos e, provavelmente, substituir o P. Jorge Serrão, o primeiro lente de teologia na cadeira de Prima da universidade de Évora, que, ao tempo, se encontrava gravemente doente. Foi este o segundo contacto de Molina com a capital alentejana, onde ainda se encontrava em Setembro de 156311. Certamente que recebeu nessa altura o grau de bacharel em teologia.

3. Molina filósofo No início do ano lectivo de 1563/64, Molina estava de volta à Lusa Atenas, para leccionar filosofia no Colégio das Artes, onde permaneceu até 156712.

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Ao assumir a docência da filosofia, viu-se confrontado com a falta de livros e, nomeadamente, de compêndios para os alunos, comum a todas as escolas desse tempo. Essa situação obrigava os professores a ditar os textos nas aulas, com todos os inconvenientes que daí advinham. Depressa se aperceberam os Jesuítas de que a utilização exclusiva desse método não era pedagogicamente correcta, pois acarretava muito esforço e dispêndio do tempo que devia ser utilizado em outras actividades escolares. Uma das recomendações mais precisas que Jerónimo Nadal fez ao Colégio das Artes, na já referida visita de 1561, foi a de que os professores de filosofia deviam publicar compêndios para as aulas. Ele próprio nomeou Pedro da Fonseca, coadjuvado por Marcos Jorge, Cipriano Soares e Pedro Gómez, para escrever um curso que, depois de impresso, deveria ser posto nas mãos dos alunos13. Nesse mesmo ano e na mesma visita à Província Lusitana, idênticas normas foram dadas à Universidade de Évora, onde Jerónimo Nadal apelou para a adopção de um compêndio nas aulas de teologia: “En el curso de theología scolástica, se provea algún modo de leer por compendio, y pasar algunas qüestiones de santo Thomás, según orden del rector, con consejo de la facultad de theología y parecer del provincial; y esto principalmente en las 1ae 2ae y 2ae 2ae; no dexe tamen de considerar si en la primera parte y 3a se deve compendiar alguna cosa”14. Estas normas haviam de produzir abundantes frutos e colocar a província portuguesa da Companhia de Jesus na vanguarda científicopedagógica da Europa. Além do célebre Cursus Conimbricensis, que havia de ser realidade bastantes anos mais tarde, a produção científica das escolas jesuíticas de Portugal foi quantitativamente abundante e qualitativamente exemplar. Luís de Molina foi um dos autores que mais contribuiu com a redacção dos seus cursos para a projecção cultural e científica de

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Portugal no mundo. Começou, logo no início do seu magistério de filosofia no Colégio das Artes, a escrever o texto das aulas que, segundo o costume da época, tinha de ditar aos alunos. No final do quarto ano, tal era, inicialmente, a duração do curso de filosofia, já havia terminado a redacção do tratado. Acabada a leccionação desse curso, Molina foi chamado para a Universidade de Évora, onde outras tarefas, de maior envergadura e responsabilidade o esperavam. Ele partiu mas o curso ficou ao serviço dos seus sucessores e respectivos alunos. Dele se serviram também muitos outros professores e escritores, incluindo os autores do Cursus Conimbricensis, como o próprio Molina refere repetidamente nas suas cartas.

4. Molina teólogo e jurista A partir de 9 de Setembro de 1568, quando ainda era um simples bacharel em Teologia e se preparava para o doutoramento, Molina assumiu a cadeira de Véspera da Universidade de Évora15, onde comentou a Ia. IIae, q. 1-76 da Summa Theologica de S. Tomás. Em Fevereiro de 1570, fustigado pela doença, teve de suspender o ensino, em que foi substituído, no resto do ano lectivo, pelo P. Inácio Martins, o inflamado pregador e autor da pequena obra que se tornou célebre com o nome de Cartilha de Mestre Inácio. Entretanto, o jovem professor descansava, estudava, dedicava-se pontualmente à pregação na arquidiocese de Évora e preparava-se para emitir os votos solenes, o que aconteceu no dia 3 de Setembro de 1570. No início do ano lectivo de 1570/71, retomou as aulas, continuando a comentar a I Parte da Summa Theologica. No dia 22 de Abril de 1571, depois de ter feito o juramento solene que, segundo determinação do papa Pio IV, devia preceder a outorga dos graus académicos, Luís de Molina apresentou-se às provas de doutoramento em teologia, tendo como opositor o P. Sebastião Barradas16. O códice n.º CXXX/1-3, da Biblioteca

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Pública de Évora, no fólio 34r-34v, contém a acta do juramento prévio ao doutoramento. É o seguinte o texto de tão importante documento: “Aos vinte e dous dias do mes de Abril do ano de mil quinhentos setenta e hum anos na igreja do Spirito Sancto da Universidade de Evora sendo presentes o padre Manoel Rodriguez vice reitor e o padre Pero Paulo Ferrer cancelario della e o padre doctor Fernão Peres e o padre doctor Diogo Cisneiros e o padre Pero Martins, todos da Companhia logo o padre Luiz de Molina da dita Companhia fez ho juramento da fee na forma que manda o Santo pontifice Pio quarto em sua bulla, depois de ser approvado por bom catolico christão pello dito padre vice reitor o qual approvou em virtude da licença que pera isso tem do muito reverendo senhor Dom João de ello, Arcebispo deste arcebispado de Evora como consta do auto que se disso fez neste livro atras folhas sete na volta. E no mesmo dia o dito padre Luiz de Molina foi agraduado a Doctor em theologia. Em fee do qual eu Diogo de Gollete escrivão desta universidade fis este auto aos dous dias de Maio do dito ano de mil quinhentos setenta e hum risquei obediencia (por verdade). Diogo Gollete17. O citado Livro dos Juramentos e Profissões de Fé permite-nos verificar que, durante a sua estadia na Universidade de Évora, Molina participou em quase todos os juramentos e na recepção dos graus académicos que se realizaram na “sala onde se costumam fazer os actos públicos” ou na Igreja do Espírito Santo. Estes actos eram normalmente presididos pelo reitor, pelo vicereitor ou pelo cancelário, e, excepcionalmente, pelo arcebispo de Évora ou pelo Provincial da Companhia de Jesus. Até ao dia do doutoramento, as actas identificam o nosso teólogo como o “Padre Luís de Molina”; a partir daquele acto, como o “Padre Doutor Luís de Molina”18. Após o doutoramento, Molina assumiu a cátedra de Prima, que até aí estava a cargo do P. Fernão Pérez19, e continuou a comentar a

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I Parte da Summa Theologica. Durante o ano lectivo de 1573/74 comentou a Ia. IIae, q. 1-16, e, no ano seguinte, a IIa.. IIae, q. 17-43. Foi nesta secção da segunda parte que S. Tomás desenvolveu o tema da caridade, onde inseriu o tratado De Bello (q. 40). Também Molina fez aí o respectivo comentário a esta importante temática. Mais tarde, ao organizar os seus escritos para a publicação, transferiu o De Bello para a obra De justitia. É que, segundo Molina, o problema guerra, mais do que um problema respeitante à caridade, tem a ver com a justiça. Durante o ano lectivo de 1576/77, isto é, após os dois anos em que as aulas da universidade estiveram suspensas por causa da peste que grassou em Évora, Molina retomou os longos comentários à IIa, IIae, q. 57-122 (De justitia), que perduraram até 1582/83. Nesse ano, iniciou o comentário à III Parte da Summa de S. Tomás, onde desenvolveu os problemas soteriológicos que se prendem com a Incarnação do Verbo Divino como resposta de Deus à necessidade de redenção por parte do homem 20. Este comentário é um tratado de teologia assente numa profunda base filosófica, em que Molina se separa frequentemente de S. Tomás de Aquino para se adentrar em temáticas inovadoras. Aí aparecem problemas como os da união hipostática das naturezas humana e divina de Cristo, da maternidade divina de Maria, da relação da Incarnação com as três Pessoas divinas, da incapacidade de o homem, por si só, poder satisfazer condignamente pelos pecados original e actual e a especificidade do conhecimento natural de Deus, isto é, a ciência média, que Molina já havia desenvolvido na Concordia, no Appendix ad Concordiam e nos Commentaria in primam divi Thomae partem. Os comentários à III Parte da Summa Theologica, que estão ainda inéditos e se encontram no volumoso códice n.º 2823 da Biblioteca Nacional de Lisboa, foram objecto da tese de doutoramento na Universidade Gregoriana de Roma de Mons. José Filipe Mendeiros, ilustre

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Doutor Honoris Causa desta universidade21. Ao contrário daquilo que pensou e escreveu Fr. Stegmüller, talvez induzido em erro pelo incipit do referido códice, Commentaria in III partem D. Th. A P.D.Ludovico de Molina anno 158222, o texto revela-nos que apenas 253 dos 501 fólios são da autoria de Luís de Molina. Os restantes foram escritos por dois outros professores da cadeira de Terça eborense, os padres Fernão Rebelo e Francisco Pereira 23. Molina é o autor das q. 1 a 3, art. 6, disp. 1 (fólios 1 a 253r); Rebelo, da q. 3, art. 6, disp. 2-q. 6, art. 6, disp. Única (fólios 253r a 297r); e Pereira das q. 7 a 27 (fólios 257r a 501). A leccionação da III Parte da Summa, nomeadamente os comentários feitos a alguns pontos da Cristologia, atraiu sobre Molina azedas críticas por parte de alguns teólogos, sobretudo dominicanos, que fizeram chegar a Roma insistentes denúncias. Incomodado por essa polémica, ou talvez aconselhado pelos superiores e colegas, o teólogo eborense decidiu retomar, durante o ano lectivo de 1583/84, os comentários à IIa. IIae. Foi então que redigiu o tratado De iustitia distributiva, que terminou em 6 de Julho de 1583, e o De iudicio temerario, que começou em 26 de Maio de 1584. Quando estava no auge do seu magistério, um magistério cheio de brilho, de luta e de determinação, Luís de Molina afasta-se misteriosamente da docência. Não é fácil sabermos hoje qual a causa directa do abandono da cátedra, em que foi substituído pelo seu amanuense e adjunto, Fernando Rebelo. Uns, como Stegmüller24, opinam que terá sido por falta de saúde; outros, como o cronista Francisco Rodrigues, pela necessidade de corrigir e ordenar os seus escritos em ordem à publicação; outros, ainda, por causa do clima polémico que o rodeava25. Somos de opinião de que as três razões pesaram conjunturalmente na decisão, mas parecenos que a mais forte foi a segunda, na medida em que a preocupação de editar as suas obras passou a dominá-lo como uma ideia fixa, que

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nunca mais o abandonaria, como manifesta repetidamente nas cartas aos seus superiores. E não se ficou nas intenções. De facto, o abandono da cátedra permitiu-lhe consagrar-se totalmente ao projecto de completar e rever as suas obras em ordem à publicação: primeiro em Évora, até finais de 1585 ou princípio de 1586; depois em S. Roque, em Lisboa; e, finalmente, a partir do início de 1591, em Cuenca, sua terra natal. A fama com que o professor Molina exornou a Universidade de Évora propagara-se de tal maneira pelos meios cultos da Península Ibérica, que o cronista António Franco não conseguiu conter a sua admiração ao afirmar: “[…] De Castela vinham muitos a ser seus discípulos em Évora […], pois “nele concorreram todas as partes que constituem um mestre de marca maior. Era admirável no disputar, arguir e responder, muita lição de livros, singular segurança e prontidão em resolver casos, notável conhecimento das leis civis e canónicas”. Por isso, “com tão excelente Mestre, esta Universidade, que estava em seus princípios, cobrou fama em toda a Espanha”26.

5. Molina escritor Molina acalentava o sonho de escrever, além de um comentário a toda a Summa Theologica de S. Tomás de Aquino, muitas outras obras, entre as quais duas Sumas de Teologia, um Curso completo de filosofia, que já estava redigido, e um síntese da mesma, destinada a alunos menos bem preparados, e aos jovens das missões do Brasil, da Índia e do Japão27. Esse plano foi descrito ao Geral Aquaviva, em carta escrita em 1582. O cronista Francisco Rodrigues sintetiza assim os pontos fundamentais desse documento respeitantes àquilo que estamos tratando: “Vinham de longe estes projectos. […] Primeiro pensava em dar à imprensa os Comentários à Primeira Parte de S. Tomás; logo um tomo das

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virtudes teologais; a seguir, dois tomos De justitia e depois um Curso completo de filosofia, já composto, do qual extrairia em menos de seis meses um Curso menor, abreviado e claro com todas as questões substanciais do maior, que não seria difícil explicar nas escolas em dois anos ou ano e meio, de modo que estudantes de mediana capacidade ficariam suficientemente instruídos e fundados para ser teólogos e pregadores, e até se poderia ler nas missões do Brasil, da Índia e do Japão. «Muitos anos há que trago esta ideia na cabeça, escreveu Molina, e parece-me que havia de ser para muito serviço de Deus”28. Doze anos mais tarde, declarava a Léssio, professor jesuíta da universidade de Lovaina, que ainda estava determinado a realizar esse projecto, se para tanto viesse a ter tempo29.

5. 1. O Curso de filosofia A primeira obra a ser escrita por Luís de Molina foi, como já tivemos o ensejo de dizer, o curso de filosofia que ministrou aos alunos do Colégio das Artes, entre 1563 e 1567. Apesar de ainda se encontrar inédito, hoje temos acesso a esse curso, graças a um códice existente na Biblioteca Pública de Évora, sob o n.º 118/1-630. Nele podemos ler integralmente os seguintes tratados: Annotationes in Porphyrii Isagogen (1r-73r), começado em 7 de Dezembro de 1563; In Dialectica (73r- 82r); In Praedicamenta (82v-158v); In Perihermenias (160r-189v); In II Perihermenias (190r-211r); In Analytica Priora (212r-251v), começado em 3 de Outubro de 1564; In Analytica Posteriora (252v-315v), começado em 18 de Novembro de 1564; In Topica (315v-325v); In Libros Elenchorum (326r-333v31); In Libros Physicorum (337r-356r).

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Molina lutou denodadamente para fazer publicar essa obra, pela qual nutria especial interesse. Tentou levar os seus superiores a aceitá-lo como o tão ansiado Cursus Conimbricensis, sobretudo a partir do ano 1580. Com efeito, nesse ano, o Geral Mercuriano, decidiu reactivar o projecto da redacção de um compêndio de filosofia que pudesse apoiar científica e pedagogicamente os alunos do Colégio das Artes e de outras escolas da Companhia, pois a tarefa confiada a Pedro da Fonseca, Marcos Jorge, Cipriano e Pedro Gómez, havia redundado em total fracasso. A morte surpreendeu nesse mesmo ano o Geral da Companhia. Coube ao seu sucessor, Aquaviva, a sorte de levar a bom termo a empresa. Quando se procurava uma nova equipa capaz de redigir o referido curso, apareceu Luís de Molina, então catedrático de Prima da Universidade de Évora, a candidatar-se com o texto das lições do curso que ministrara em Coimbra durante os anos de 1563 a 1567. As cartas do catedrático eborense multiplicavam-se afanosamente, com o objectivo de fazer valer os seus interesses editoriais. Na de 29 de Agosto de 1582, dizia ele ao Geral: “Há dezanove anos [isto é, em 1563] que recebi ordem de ler um Curso de Artes. Li-o, compondo glosas, e ditando-as palavra por palavra, conforme ao estilo de cá. […] Fiz, a juízo de todos, uns ditados, que se avantajavam a quanto até então se tinha impresso e ditado em matéria de artes; e quem quer que os vir, creio que os achará muito dignos de impressão”32. A presunção com que afirmava o valor da sua obra não era menor que a sua convicção. Apesar disso, foram baldadas todas as diligências envidadas para atingir os seus objectivos. Molina viu rejeitadas todas as suas pretensões e tomou isso como uma desconsideração que nunca viria a perdoar aos superiores e aos colegas universitários portugueses. Espírito ensimesmado e meditabundo, estava convencido de

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que a rejeição de que era vítima tinha as suas raízes na inveja, na ambição e na “aversão aos estrangeiros, especialmente aos espanhóis”. Acusava os seus superiores, pois, ainda segundo ele, “levantam e preferem os seus naturais e deprimem os estrangeiros”. O ambiente conturbado que se seguiu à união das coroas ibéricas explica plenamente os atritos que envenenaram as relações entre os portugueses e espanhóis, mesmo dentro das casas religiosas33. O compêndio em que a Companhia de Jesus estava empenhada, e que viria a ser conhecido por Cursus Conimbricensis, acabou por ser redigido pelo P. Manuel de Góis, com a colaboração de Baltasar Álvares, Cosme de Magalhães e Sebastião do Couto. Por seu lado, o curso de Molina apesar do seu valor científico que tinha na época em que foi escrito e do valor histórico-filosófico de que hoje se reveste, ainda está por publicar. À Universidade de Évora que, de há um ano a esta parte, pôs a funcionar o Curso de Filosofia nos mesmos espaços em que Luís de Molina dignificou essa ciência, bem como a teologia, o direito e a moral, e à Fundação que do grande professor e polígrafo tem o nome, também aqui sedeada, atrevo-me a lançar um repto formal: porque não patrocinarem a publicação do Curso de Filosofia do grande mestre eborense? Esse gesto constituiria uma prestigiante homenagem póstuma ao autor, um excelente contributo para a cultura ibérica e europeia e uma dignificação não despicienda para as instituições intervenientes. E mais ainda, porque não fazer desse gesto o início de uma empresa de maior vulto, a da tradução e edição de toda a obra inédita de Luís de Molina34?

5. 2. A Concordiam e o Appendix ad Concordiam As duas mais importantes obras, que imortalizaram internacionalmente Molina e a Universidade de Évora e em que tenta conciliar filosófico-teologicamente a graça divina com

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a liberdade humana e a presciência divina com a predestinação, são a Concordia liberi arbitrii cum gratiae donis, divina paraescientia, providentia, predestinatione, et reprobatione, ad nonnullos primae partis S. Thomae articulos, impressa em Lisboa, em 1588, com 512 páginas35, e o Appendix ad Concordiam Liberi Arbitrii, também impresso em Lisboa em 1588, com 44 páginas. Molina teve uma enorme dificuldade em publicar a Concordia. Os dominicanos, sobretudo os espanhóis, liderados por Domingos Bañez, defensor acérrimo da predeterminação física da liberdade humana por Deus, moveram-lhe uma guerra sem tréguas, pressionando todas as pessoas, nomeadamente o inquisidor-mor e governador de Portugal, que ao tempo era o cardeal-arquiduque Alberto de Áustria, sobrinho de Filipe II de Espanha e arcebispo de Toledo. Os frades de S. Domingos pensavam contar, embora erradamente, com o apoio do censor inquisitorial, Bartolomeu Ferreira, que era também dominicano. Molina conseguiu vencer todos os obstáculos e levar a cabo a impressão da obra. Já depois de impressa, em Lisboa, em 1588, o Cardeal Alberto, sempre pressionado pelos dominicanos de Salamanca, proibiu a sua venda. Há males que, vencidos, redundam em bem. Acicatado pela luta, Molina escreveu então um libelo de defesa, o Appendix ad Concordiam liberi arbitrii cum gratiae donis, divina praescientia, providentia, pedestinatione, et reprobatione, que foi posto na mão de uma comissão de teólogos e lhe granjeou a vitória sobre

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os adversários. A partir de então, as edições sucederam-se e a Concórdia galgou fronteiras, entrou nas grandes academias da Europa e atraiu as atenções de teólogos e filósofos para o seu autor e para a Universidade de Évora. Os meios cultos da Europa, arregimentaram-se em dois grandes grupos à volta da questão da graça divina e da liberdade humana: uns alinharam com Domingos Bañez, o representante dos Frades de S. Domingos que, com a doutrina da predeterminação física defendiam a omnipotência divina a mover previa e eficazmente a vontade humana a agir; outros, alinharam com Luís de Molina, representante dos jesuítas, que conciliavam a omnipotência divina com a vontade humana, na medida em que esta continua livre sob a acção da graça. É a proclamação do humanismo cristão. O homem, feito à imagem e semelhança de Deus, é o gestor da sua liberdade, é responsável pelo seu destino, quer para o bem, quer para o mal. A ciência média situa-se entre duas outras ciências de Deus: a natural ou necessária, ou de simples inteligência, pela qual Deus conhece todos os seres possíveis, como meramente possíveis; a ciência livre, ou de visão, pela qual Deus conhece presencialmente todos os seres e acontecimentos realmente existentes: os passados, os presentes e os futuros. A ciência média, situando-se entre as duas primeiras, permite a Deus conhecer os futuríveis ou futuros livres, isto é, os futuros condicionados por circunstâncias

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naturalmente imprevisíveis. Através da ciência média, Deus tem presente, por um conhecimento prévio, não temporal mas ontológico, o comportamento do homem face às diversas combinações de circunstâncias que irão condicioná-lo e, por um acto totalmente livre, concede-lhe a graça necessária para agir correctamente. O conhecimento de Deus dos futuríveis não é um conhecimento cego, pois conhece todos os efeitos de todas as possíveis combinações de circunstâncias. A graça chama-se eficaz quando Deus prevê que o homem a aceita; é suficiente quando, apesar de ser adequada para o homem, agindo em conformidade com ela, realizar o bem, Deus prevê que aquele a vai rejeitar. A polémica tornou-se de tal maneira renhida que pessoas sensatas, entre as quais Francisco Suárez Granatense, apelaram para o Papa. A questão desencadeou uma torrente interminável de disputas em Roma e só viria a ter uma resposta em 1607, quando Molina e Bañez tinham já partido deste mundo. Paulo V libertou a opinião dos dominicanos da acusação de luteranismo e a dos jesuítas da de pelagianismo e, abstendo-se de proferir uma definição da questão, autorizou a divulgação da Concórdia e as discussões acerca da conciliação da graça divina com o livre arbítrio humano36. Ainda hoje se discute sobre a paternidade da Ciência Média, que recebeu o nome de molinismo. Pedro da Fonseca reivindicou para si essa glória nos Comentários à Metafísica de Aristóteles, dizendo que havia trinta anos que a ensinara. “Trinta anos atrás do ano em que escrevíamos, que era o de 1596, entrando a explicar em aulas públicas a matéria da Providência divina e da Predestinação, e sendo muitas e graves as dificuldades que nela se nos ofereciam, pareceu-nos que não havia modo mais fácil de resolver essas dificuldades, do que estabelecer a distinção […] do dúplice estado destes contingentes, que realmente existirão, absoluto e condicionado, e asseverar em Deus a certeza do conhecimento deles, em um e outro estado, primeiro condicionado e

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depois absoluto. Esta distinção e confirmação de ambas as certezas, de tal maneira nos dissiparam as trevas de todas as dificuldades, que uma nova luz nos brilhou aos olhos da inteligência”37. Esta ciência de Deus, situada entre a natural e a livre, e que, na altura em que Pedro da Fonseca publicava a sua obra, já havia sido vulgarizada com o nome de ciência média, foi ensinada por aquele pensador quando, entre 1564 e 1566, leccionava teologia na Universidade de Évora38. Por sua vez Molina, com termos análogos, já havia reclamado para si tal paternidade, afirmando, na 1ª edição dos Commentaria in primam divi Thomae partem, impresso em Cuenca, em 1592, que havia trinta anos que ele discutia particular e publicamente essa problemática e que, vinte anos antes, a ditara, nos seus comentários à Primeira Parte da Summa, sempre com o nome de ciência natural. Afirma ainda que antes ninguém ensinara essa doutrina (a nemine quem viderim hucusque tradita)39. Não pomos em dúvida a afirmação de que Molina tenha ensinado em 1572 a ciência média. Ensinou-a, efectivamente, na Universidade de Évora. Os referidos Comentários à I Parte da Summa, que recolhem o ensino de Molina na Universidade de Évora são a prova irrefragável da veracidade daquela afirmação. Também não contestamos a afirmação de que a primeira obra impressa em que aquela doutrina foi denominada ciência média foi a Concórdia, editada em 1588, em Lisboa. O que seriamente pomos em dúvida é que Molina tenha discutido e assumido, em 1562, privada e publicamente, como ele próprio afirma, a doutrina da ciência média. Com efeito, é profundamente estranho que Molina diga, em 1592, que havia trinta anos que ensinava, em disputas privadas e públicas, a doutrina da ciência média. Trinta anos antes, em Março de 1562, terminava ele os estudos

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curriculares de teologia, em Coimbra e, ainda no mesmo ano, seguiu para Évora, onde permaneceu até Setembro de 1563. Aí aperfeiçoou os estudos teológicos e é muito provável que tenha também substituído o lente de Prima, P. Jorge Serrão, o seu primeiro mestre coimbrão, que então se encontrava doente. Se nessa altura ele defendesse já a ciência média, teria todo o interesse em referir e enfatizar o contexto universitário em que o havia feito. Mas há mais, e creio que isto é absolutamente inédito. Mais do que estranho é inexplicável que, ao ministrar no Colégio das Artes o curso de filosofia de 1563/64 a 1566/67 e ao tratar extensamente a temática do conhecimento divino dos futuros contingentes, no I livro do Perihermenias, Molina não tenha feito qualquer referência à ciência média, nem mesmo com o nome de ciência natural. Limitou-se a atribuir a outros a afirmação de que Deus conhece não só os futuros contingentes, mas também os futuríveis, sem explicar o modo como os conhece, isto é, a ciência média, de que mais tarde viria a reclamar a paternidade, situando-a precisamente nessa época. Diz concretamente o seguinte: “Outros pensam que isto [o conhecimento divino das coisas futuras] deriva do facto de Deus não conhecer apenas as causas contingentes, mas também todas as coisas que hão-de ser impedidas para que as causas não actuem, ou hão-de ser determinadas as causas a agir. Mas isto deve ser examinado e discutido noutro lugar” 40. Acrescem a estes argumentos os que são normalmente invocados pelos historiadores portugueses e por muitos outros, que atribuem a paternidade da doutrina da ciência média a Pedro da Fonseca, argumentos que estão muito longe de ser apodícticos e que não nos cabe desenvolver neste lugar. Para encerrar esta temática, e por exigência de justiça, devemos dizer que o facto de o Aristóteles Português ter sido o seu autor da doutrina da ciência média não retira a Luís de

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Molina a honra de ter sido o primeiro a publicála e a defendê-la tenazmente contra todos os ataques que lhe foram movidos41. De qualquer modo, cabe à Universidade de Évora a glória de ter sido o palco onde foi pela primeira vez ensinada a ciência média. Fonseca ensinou-a no curso de teologia que ministrou entre 1564 e 1566, ao tratar as questões da Providência divina e da predestinação; Molina, ensinou-a em 1572, quando ditou os Comentários à I Parte da Summa, onde fez a distinção entre futuro e futurível.

5. 3. Os Commentaria in primam divi Thomae partem A primeira obra a ser publicada, após a Concordia, foi, já em Cuenca, sua terra natal, em 1592, o Comentário à I Parte de S. Tomás que recolhe uma parte da sua docência na Universidade de Évora, isto é, a ministrada desde o final de Setembro de 1570 até 31 de Julho de 1573, e constitui o primeiro comentário da obra de S. Tomás publicado pelos jesuítas42. Com os retoques que o autor lhe deu em finais de 1586, quando já se encontrava na casa de S. Roque, de Lisboa, a obra ficou pronta para a tipografia. Tal como em relação às outras obras, também em relação a esta, Molina tinha plena consciência do seu valor. É isso que ele exprime, sem rodeios, em carta ao Geral Aquaviva: “Saiu tão acertada, que todos a julgaram muito avantajada a quanto naquela matéria se tinha escrito. […] Muitos religiosos e seculares a trasladaram, e foi levada a diversas partes”43. Apesar desse valor, não foi fácil nem pacífica a sua publicação. Os obstáculos e delongas saturaram de tal maneira Molina que, em breve se exasperou contra tudo e contra todos aqueles que ele pensava que se opunham ao seu pensamento: Contra os jesuítas portugueses, em geral, por pensar que estavam sistematicamente contra ele pelo facto de ser espanhol44;

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Contra os censores da Companhia de Jesus, Jorge Serrão, Fernão Pérez e António de Carvalho, em especial, pelo facto de o parecer favorável por eles emitido em relação à publicação da obra ter sido acompanhado de algumas indicações de correcção; Contra o P. Pedro da Fonseca, especialíssimamente, por suspeitas de que ele travava a referida publicação para não serem descobertas as importações que dela fizera para a sua Metafísica45. Incompreendido contraditado em Portugal, Molina apelou para os doutores romanos da Ordem, a quem enviou uma cópia do texto para poderem pronunciar-se com conhecimento de causa. Condicionada por alguma censuras referentes, sobretudo, à doutrina da predestinação, que era, precisamente o ponto mais sensível do autor, que ele considerava a sua grande novidade teológica, a aprovação dos mestres de Roma provocou nova tomada de posição por parte do autor. Inconformado, escreveu apologias, defesas e cartas explicativas do seu pensamento, que fez chegar às mãos do Superior Geral e dos censores romanos. Esses documentos científicos foram de tal maneira forma convincentes, que o autor viu, finalmente, satisfeitos os seus objectivos: a aprovação incondicional de toda a sua obra. Vencida essa barreira, fácil lhe foi vencer a segunda: a da censura por parte da inquisição portuguesa, que lhe foi favorável. Quando tudo parecia solucionado, os ânimos mais serenados e a obra em condições de ser impressa, Molina, ressentido pelas dificuldades anteriores e agastado pelas delongas que continuavam a bloquear o processo, solicitou a autorização dos superiores para abandonar Portugal. Em Janeiro de 1591, regressava à Espanha, passando por Évora, a cidade de muitos sonhos, muitas realizações e, também de algumas desilusões. Apesar das instâncias do Provincial português para regressar e de lhe ter enviado amostras de novos tipos de letra existentes em Portugal,

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Molina resistiu sempre com um não rotundo. A obra que tantos dissabores lhe dera em Portugal viria a ser publicada em Cuenca, sua terra natal, em 1592, quando ainda estava oficialmente vinculado à Província Portuguesa da Companhia de Jesus, de que acabou de se desligar definitivamente, por pressão do Geral Aquaviva, em 159446. Dois anos depois, a Universidade de Coimbra e a Companhia de Jesus ainda voltaram a propor a Molina o regresso a Portugal, desta vez para ocupar a cátedra de Prima daquela academia, então vaga, mas Filipe II, talvez para evitar novas controvérsias à volta da Concórdia, preteriu-o em favor do grande pensador Francisco Suárez, que também havia sido indigitado por aquelas duas instituições. “Tanto ela [a Universidade] como o Conselho de Portugal concordaram em que fosse o Padre Molina, mas representando-se isto a Sua Majestade, disse que nomeassem outro, e nomearam de consenso unânime, o Padre Francisco Soares”47. Molina morreu em 12 de Outubro de 1600, com a idade de 65 anos, no Colégio de Madrid, onde, seis meses antes, começara a reger a cadeira de Teologia Moral.

5. 4. O De justitia et jure Uma das obras que mais dignificaram Molina e a universidade onde ele ensinou foi o De iustitia et iure, cujos seis tomos da 1ª edição foram sucessivamente publicados entre 1593 (Cuenca) e 1609 (Antuérpia)48 . Posteriormente, foram objecto de outras edições parciais, em Mogúncia, Veneza, Lião e Colónia. No nosso século, esta importante obra moliniana foi objecto da tese de doutoramento do Doutor Manuel Fraga Iribarne, ilustre participante nestas jornadas, que a traduziu para castelhano e a fez editar entre os anos 1941 e 1944.

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Molina trata nesta obra temas candentes e ainda hoje actuais, como as relações entre a Igreja e o Estado, a origem da sociedade, a escravatura, a colonização, a guerra justa e o direito à resistência, em que se manifestam influências de Vitória, Domingos Soto e Afonso de Castro, entre outros. É de notar que o conteúdo deste livro foi redigido e ditado nas aulas da Universidade de Évora, durante os anos lectivos 1576/77 e 1581/82, integrada nos comentários à IIa, IIae, q. 57-89, de S. Tomás. Os próprios manuscritos das lições eborenses, que se encontram espalhados por várias bibliotecas, principalmente pelas da Universidade de Coimbra, Nacional de Lisboa e Pública de Évora 49, dão testemunho da sua procedência eborense, na medida em que as datas da redacção dos respectivos tratados coincidem com a docência dessas matérias em Évora, como pode ver-se pelos seguintes exemplos arquivisticamente documentados: o De Bello, foi leccionado no ano lectivo 1574/75; o De homicidio, foi começado em 11 de Abril de 1579; o De iustitia Commutativa, foi terminado em 6 de Outubro de 1581; o In III S. Th., foi começado em 5 de Outubro de 1582; o De iustitia distributiva, foi terminado em 6 de Julho de 1583; o De iudicio temerario, foi começado em 26 de Maio de 1584; É natural que os restantes tratados, que com estes andam intercalados nos códices, tal como o foram na docência, também tenham sido escritos em Évora, à medida que deles tinha necessidade para os ditar nas aulas Universidade.

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Em Cuenca limitou-se a “rever e a limar” a obra, de acordo com os livros que, entretanto, tinham sido publicadas sobre o tema, e a prepará-la para a tipografia. É isso também que explicitamente declara na carta que escreveu, precisamente quando leccionava essa matéria na Universidade de Évora, em 29 de Agosto de 1582, ao Superior Geral, Aquaviva: “…não tenho necessidade de ver outros livros para isso, a não ser os que saíram desde que o fiz para cá, por causa da muita exacção e diligência com que, enquanto o fazia, resolvi o resto”50. Molina tinha plena consciência do valor científico desta obra. Ele próprio, não sem uma boa dose de presunção, dá conta desse valor ao geral Aquaviva, na carta que acabámos de referir: “[…] Creio certamente que se achará com grande excesso mais copiosamente tratada, e mais reduzida a arte e ordem, do que nunca ninguém a tratou, e se encontrará nela o universal e particular da Moral, que lhe cabe, suficientemente tratado com resolução e clareza, peso de razões e muita invenção, e com luz do direito civil e canónico bastante para teólogos. […] Muitos juristas doutos e exercitados na teórica e na prática do direito, que viram com vagar os meus ditados, estão espantados de quanto eu entro na inteligência do direito e seus doutores, e quão seguros ponho os pés; e não se podem persuadir de que eu não tenha cursado muitos anos nas escolas de direito”51. As incursões que faz ao direito português e às constituições do arcebispado de Évora, sobretudo no primeiro tomo, e ainda mais o tratamento de temáticas que tinham que ver com o posicionamento de Portugal no mundo de então, manifestam também o contexto em que a obra foi escrita. As revisões de que foram alvo os tomos seguintes tiveram como objectivo, além do aperfeiçoamento do texto, a adaptação ao contexto espanhol em que

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aqueles foram revistos e iriam ser publicados, o que explica a substituição do referencial da legislação portuguesa pelo da espanhola. O De justitia et jure foi, pois, uma obra pensada, ensinada e redigida na Universidade de Évora. De lamentar que as polémicas e aborrecimentos suscitados pela Concórdia tenham travado a sua actividade intelectual e precipitado de tal maneira a sua saída de Portugal que tenha sido Cuenca a receber os louros que naturalmente pertenciam a Évora e à sua universidade. O De iustitia et iure tornou-se uma obra clássica nos campos da moral e do direito, o que é verdadeiramente extraordinário, se pensarmos que o autor era um filósofo e teólogo por formação e, quase diríamos, por profissão. É pena continuarem ainda inéditas muitas das suas obras, entre as quais vários comentários à Summa Theologica de S. Tomás, toda a obra filosófica e algumas dezenas de cartas. Algumas destas são documentos de elevado valor científico, sobretudo aquelas que têm por objectivo defender os seus pontos de vista filosófico-teológicos sobre as suas obras e sobre o conteúdo do seu ensino nas universidades de Coimbra e Évora. Algumas destas obras continuam a ser corroídas pela traça e pelo pó dos nossos arquivos e bibliotecas, concretamente em Évora, Lisboa, Coimbra, Madrid, El Escorial, Granada, Oxford, Roma e Nápoles52.

Conclusão Luís de Molina foi certamente o professor que maior prestígio nacional e internacional granjeou à Universidade de Évora, quer através do ensino, que atraiu a essa academia muitos alunos de Portugal e Espanha, quer através das obras teológicas e jurídicas, cujas edições se multiplicaram através da Europa culta de então, quer ainda através das renhidas polémicas filosóficas e teológicas que envolveram

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não apenas as universidades e as ordens de S. Domingos e S. Inácio de Loiola, mas também a atenta inquisição portuguesa, a poderosa corte de Espanha e a cautelosa cúria pontifícia. Luís de Molina contribuiu decisivamente para fazer da Universidade de Évora e da Companhia de Jesus pontos de referência científica internacional. O célebre livro Concordia levantou problemas como a conciliação da graça divina com a liberdade humana, e da presciência de Deus com a predestinação, que Roma nunca definiu em termos dogmáticos e que ainda hoje continuam em aberto no horizonte da filosofia e da teologia católicas. Molina era um pensador consciente do seu valor como filósofo, como jurista e como teólogo; era um lutador capaz de defender com denodo as suas ideias; era um homem honesto, que agia de acordo com a sua consciência; era um peregrino da verdade, que não se dobrava diante de nada nem de ninguém quando estava convicto de a haver encontrado; era um temperamento de rija têmpera, de antes quebrar que torcer, quando se tratava de defender os grandes princípios em que acreditava. Isso levou muitos críticos e historiadores a caracterizarem-no como soberbo e orgulhoso. Para mostrar o mal-fundado de tais caracterizações, damos a palavra a Manuel Fraga Iribarne, que soube delinear com justeza os traços mais salientes da sua personalidade: “Según se deduce de una actitud constante de toda su vida y en particular de sus cartas, Luis de Molina puso una in­teligencia genial al servicio del ideal ignaciano: la mayor gloria de Dios. Ahora bien: tan prodigiosa como la luz de su entendimiento era la fuerza de su voluntad; por eso, cuan­do Molina cree que sus ideas son ciertas y útiles para su ideal, las impone con una tenacidad y una constancia admi­rable. Esto nos explica algunas de sus actuaciones, que de otro modo podrían ser discutibles”53.

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1 Cf. António Franco, Évora Ilustrada, Évora, Edições Nazareth, 1945, p. 242. 2 Cf. Francisco Rodrigues, História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1939, t. I, Vol. I, p. 505; cf. José Filipe Mendeiros, “A necessidade da Incarnação e da Redenção em Luís de Molina”, Separata da Lumen, Lisboa, União Gráfica, 1944, p. 7, n. 21. 3 Tendo começado como autónomo, o Colégio das Artes foi integrado na Universidade de Coimbra por alvará de 1550. Cf. António José Teixeira, Documentos para a História dos Jesuítas em Portugal, Coimbra, 1899, p. 49-53. 4 José Filipe Mendeiros, A necessidade…, p. 7, n. 21. 5 Cf. Francisco Rodrigues, História…, p. 139, n. 1; Manuel Fraga Iribarne, , Luis de Molina, Los seis Libros de la justicia y el derecho, Madrid, Imprenta de José Luis Cosano, 1961, p. 25.

ed. por Ladislaus Lukács, Monumenta

vos graus académicos. Cf. José Filipe

paedagogica Societatis Iesu, III, Roma,

Mendeiros, A necessidade…, p. 17-18,

Inst. Hist. Soc. Iesu, 1974, p. 63.

n. 79. Foi a mesma falta inicial de docentes academicamente habilita-

10 Ibidem, l. c.

dos que levou os jesuítas de Évora a convidar para professores personali-

11 Nadal, I, 666; Arq. S. J., Lus., 43,

dades estranhas à Companhia, como

fl. 168,198, 201; cit. por Rodrigues,

o dominicano Frei Bartolomeu dos

História…, p. 139-140, n. 1.

Mártires e o cónego da sé de Évora, Pedro Margalho. Luís de Molina,

12 O seu magistério de filosofia na

em carta dirigida ao superior geral,

Lusa Atenas começou já depois de o

Mercuriano em 23 de Março de 1573,

ano lectivo 1563/64 ter sido inicia-

queixava-se ainda das consequên-

do. No primeiro ano de actividade

cias funestas que advinham para a

docente herdou os alunos do curso

vida religiosa dos jesuítas do facto

do P. Manuel Rodrigues.

de simples noviços serem chamados para o ensino quando o Colégio das

13 Jerónimo Nadal, Instructiones Co-

Artes foi entregue à Companhia de

nimbricae de cursu artium datae, n.5 e

Jesus e os colégios de Évora e Lisboa

6, ed. por Ladislaus Lukács, o. c., p. 60.

cresciam e necessitavam de aumentar o número de professores para

14 Jerónimo Nadal, Instructiones datae

leccionarem. Cf. Arq. S. J., 65, 169v,

Eborae de studiis universitatis n.º 47, ed.

ap. Francisco Rodrigues, História…,

por Ladislaus Lukács, o. c., p. 79-80.

II, I, p. 267-268. Na mesma carta, Molina queixava-se ainda da dureza

15 Nos primeiros tempos das primei-

dos estudos e do ensino na Compa-

ras actividades académicas, sobre-

nhia de Jesus:

6 Cf. Francisco Rodrigues, História…, p. 139, n. 1; Mendeiros, A necessidade…, p. 8-9.

tudo universitárias, a Companhia de

7 Monumenta Historica Societatis Jesu a Patribus eiusdem Societateis edita, Epistolae P. Hieronimi Nadal Societatis Jesu ab anno 1556, Madrid, 18981905, I, p. 666, n. 5

Jesus teve de lançar mão de licencia-

“Porque, dizia o teólogo, o peso de

dos e simples bacharéis, que prepa-

tantas classes faz que os estudos de seus

ravam as provas de doutoramento,

religiosos sejam muito prolongados, que

para assumirem a função de lentes.

de ordinário se estuda catorze, dezóito,

Foi o que aconteceu com pensadores

vinte anos e daí para cima; e o exercício

de grande nomeada, como Pedro da

de ler cinco horas cada dia e de se prepa-

Fonseca, Fernando Perez, Sebastião

rar para as aulas, é tão violento, e ocupa

Barradas, Brás Viegas, e Francisco

de tal modo o entendimento e cansa

Suárez Granatense, na Universidade

tanto o corpo e o espírito, que é muito

Henriquina de Évora e tem aconteci-

dificultoso, em tão prolongado tempo

do até aos nossos dias, nas modernas

de estudo e de ler humanidade, como

universidades, até que possam dispor

têm os desta Província, não se debilitar

9 Jerónimo Nadal, Instructiones Co-

de um corpo de professores devida-

notavelmente o espírito e as virtudes...”.

nimbricae de cursu artium datae, n. 23,

mente habilitados com os respecti-

Cf. Idem, fl. 167, cit. por Ibidem, p. 268.

8 Nadal, I, 667; cf. Francisco Rodrigues, História…, II, II, p. 139, n. 1.

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Molina fazia análogas críticas ao

a dito juramento. Em face do qual

cit. por José Filipe Mendeiros, A

Colégio do Espírito Santo de Évora

eu o licenciado Diogo de Gollete

necessidade…, p. 36.

em carta de 29 de Janeiro de 1579;

escrivão da dita universidade fiz este

cf. Arq. S,. J., Lus. 68, fl. 76v, Ibidem,

estromento que asinei de meu sinal

21 José Filipe Mendeiros, A necessi-

p. 268.

acostumado aos onze dias de Julho

dade…, p. 17-18, n. 79.

do ano de mil quinhentos setenta 16 António Franco, Imagem… de

e dous anos com hos riscados que

22 Este códice foi oferecido por

Coimbra, I, p. 499; Idem, Annus

diziam /treze dias/ acento”.

um dos autores, o “P.e F.o Pereira ao

Gloriosus Societatis Jesu in Lusitania, p. 589.

Collegio de Evora”. 18 In Livro dos Juramentos e Profissões de Fé, cód. CXXX / 1-3. O primeiro juramento de fee para doutoramento

sões de Fé, cód. CXXX/1-3, fl. 9r. No

que aparece é o dos padres Ignacio

24 F. Stegmüller, Filosofia e Teologia

mesmo códice, fl. 34r - 34v, e com

Martins e Pero da Fonsequa, feito a

nas universidades de Coimbra e

data de 22 de Abril de 1572, o mes-

28 de Março de 1570.

Évora no século XVI, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1959, p. 43.

mo Diogo Golete lavrou novamente a acta do juramento de Molina,

19 O primeiro professor da cátedra

inserida no conjunto de outros

de Prima, que foi também o primeiro

25 Em carta ao Geral, Fernão

juramentos, como segue:

cancelário e o segundo reitor da

Rebelo, que lia teologia em Évora,

Universidade de Évora, foi Jorge

queixava-se, em 1584, de que tives-

“ […] E aos vinte e dois dias de Abril

Serrão, que havia pertencido, ainda

sem demitido Molina de consultor

de mil quinhentos setenta e hum na

que apenas durante alguns dias, à

do Colégio, ele que possuía quali-

dita igreja [do Spirito Sancto] sendo

primeira leva de jesuítas que ensi-

dades para ser consultor do próprio

presentes o padre Manoel Rodriguez

naram filosofia no Colégio das Artes,

Provincial. Alegava ainda que devia

vice reitor da dita universidade e o

em Outubro de 1555. A seguir a Jorge

continuar com esse cargo, pois

padre Pero Paulo Ferrer cancelario

Serrão, ocupou a cátedra de Prima o

“serviria isso para de algum modo se

della e o padre doctor Fernão Peres

P. Fernão Pérez, que antes detivera a

unirem estes humores de castelha-

e o padre doctor Diogo Cisneiros

de Vésperas (1559-1567).

nos e portugueses, e atalhar-se-ia

e o padre Pero Martinz fez o dito

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23 Cf. Idem Ibidem, p. 34-35.

17 In Livro dos Juramentos e Profis-

a murmuração dos castelhanos que

juramento da fee o padre Luiz de

20 As cartas que escreveu de Évora

dizem que os queremos lançar, pou-

Molina, depois de ser aprovado por

ao Geral Aquaviva, em 20 de Ou-

co a pouco, desta província”. Esta

bom catholico Christão pello dito

tubro e 23 de Novembro de 1583,

queixa reveste-se de valor acres-

padre vice reitor pelo poder que

e em 21 de Março do ano seguinte,

cido, se pensarmos que foi feita no

pera isso tem do muito reverendo

Molina enunciou e defendeu a sua

ano em que Molina abandonava a

senhor arcebispo assima dito [Dom

posição teológica sobre as teses

docência na Universidade de Évora.

João de Mello] conforme ao acen-

censuradas, isto é, sobre a impeca-

Cf. João Pereira Gomes, Os Profes-

to que eu escrivão fiz neste livro

bilidade de Cristo, a predestinação

sores de Filosofia da Universidade

atras folhas sete na volta. Os quaes

decorrente da presciência divina e a

de Évora, Évora, Câmara Municipal,

padres cada hum no dia em que fez

possibilidade natural da contrição.

1960, p. 101.

o juramento forão agraduados a

Como vemos, anda sempre presente

doctores na sancta theologia pera

nestas questões a da concórdia.

26 António Franco, Imagem….

o qual grao era necessário preceder

Arch. S. I., EE. NN. 86, fl. 289r- 292r,

Coimbra, I, p. 453.

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27 Carta ao Geral Aquaviva, de 29 de

dade entre todos.[…] Nos superiores

34 Esta interpelação foi bem aco-

Agosto, de 1582, cit. por Rodrigues,

percebe-se que levantam e prefe-

lhida pela Fundação Luís de Molina

História…, II, II, p. 138.

rem os seus naturais e deprimem

e estão já a ser dados os primeiros

os estrangeiros [...], e nos demais

passos para a efectivação dessa

28 Francisco Rodrigues, História…,

uma aversão de ânimos que espan-

honrosa empresa.

II, II, p. 138.

ta, ainda que nuns mais, noutros menos e nalguns nenhuma [...].

29 Carta de Molina a Léssio, em 4

35 Outras edições da Concórdia: Cuenca, 1592; Lião, 1593; Veneza,

de Julho de 1594, cit. Por Bachelet,

O princípio disto creio que foi co-

1594; Antuérpia, 1595; Veneza, 1602;

Prédestination et Grâce efficace, I, p. 44.

meçarem a sentir-se de que os

Antuérpia, 1609; Antuérpia, 1615;

estrangeiros fossem aqui superiores

Leipzig, 1722; Paris, 1876.

30 Trata-se de um belo códice

[...] Pouco a pouco se foi dando mais

quinhentista, de 356 fólios, in 8o, de

lugar a isto, e tem-se em vista que

36 Cf. José Filipe Mendeiros, As

fácil leitura, com poucas abrevia-

os portugueses sejam preferidos

Ciências Sagradas no primeiro meio sé-

turas. O seu estado de conservação

em tudo.

culo da Universidade de Évora, Évora,

é de tal maneira bom que permite uma edição fac-similada.

1963, p. 14-15. Também creio que ajudou para esta disposição ter-se perdido aquela

37 Commentariorum Petri Fonsecae D.

31 Os fólios 334 a 336 estão em

devoção, caridade, humildade e

Theologiae Societatis Jesu in in libros

branco.

simplicidade antiga, com que estavam

Metaphysicorum Aristotelis Stagiritae,

enfreadas as naturezas desta nação, de

ed. Évora, de 1604, Tomus Tertius, l.

32 Arq. S. J., Epp, NN., 86, fl. 282v,

si mais inclinada que qualquer outra,

6, c. 2, q. 4, s. 8, p. 138. Os Comen-

Carta de 29 de Agosto de 1582, cit.

quanto eu sei, ao amor da pátria e a

tários de Fonseca foram editados

Por Francisco Rodrigues, o.c., II, II,

suas coisas, o que de costume é origem

pela primeira vez em Roma, em 1577;

p. 112-113.

de rivalidade com as alheias. E posto

seguiram-se as edições Roma, em

que nesta guerra e dissídio da sucessão

1599; Évora e Colónia, em 1604; Lião,

33 Este trecho de Molina ajudar-

deste reino se agravou muito mais que

em 1612; e Colónia, em 1615. Em nota

nos-á a compreender melhor o

no passado, esta desunião e aversão

marginal, Fonseca refere os nomes

ambiente de hostilidade luso-espa-

que a nós têm, já esse sentimento vai

de Molina e de Suárez entre os

nhola que então se respirava:

decrescendo e volta quase ao mesmo

pensadores que seguiram e desen-

estado de antes [...].

volveram esta doutrina.

veio a esta Província, e deixou de

«Em alguns sinto desconsolação de

38 O Aristóteles Português voltou a

ser Provincial o P. Mirão, sinto ter

estar desta maneira nesta Província,

leccionar teologia na Universidade

entrado nela um pouco de aversão

e inclinação a sair dela, se lhes fosse

de Évora, durante o ano lectivo de

aos estrangeiros, especialmente aos

ordenado. E certifico a V. P. que não

1569/70. Aí se doutorou em teologia,

espanhóis, e ir-se perdendo a paz e

sou eu desses, e que trabalho por

no dia 7 de Março. Durante o tempo

igualdade, que se guardavam com

suavizar o que posso”.

em que permaneceu na Cidade do

“Desde que o P. Luís Gonçalves, diz,

eles, de modo que todos pareciam

Giraldo, participou em muitas pro-

da mesma nação, sem diferença de

Arq. S. J., Epp. NN,. 86, fl. 280-280v; cit.

vas académicas e chegou a tomar

uns com os outros, antes havia um

Por Francisco Rodrigues, História…,

posse do cargo de cancelário, em

amor universal, união e conformi-

II, I, p. 334-335.

27 de Junho de 1570, mas por pouco

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tempo, pois, a 4 de Outubro desse mesmo ano, era substituído no cargo pelo P. Dr. Pero Paulo Ferrer. 39 “A triginta annis in privatis et publicis disputationibus, a viginti vero in nostris ad primam partem Commentariis eam sub nomine scientiae naturalis idcirco tradiderimus, quod libera in Deo non sit omnemque divinae voluntatis liberum actum antecedat, novissime autem exactius quam antea, sub nomine scientiae mediae, eamdem in nostra docuerimus Concordia, nemo sane potest jure id nobis vitio vertere. Commentaria, p. 241, ed. 1594; cf. Concordia, q. 114, a. 13, disp. 53, ed de Antuérpia, 1595, p. 241. 40 “Nam id quod in se spectatum est necessario eventurum est necessarium necessitate consequentis. Si vero res futurae prae cognitae sint à Deo, solum evenient necessario necessitate consequentiae et non necessitate consequentis. Et haec solutio est valde notanda. Quod si petas unde ergo provenit, quod scientia dei, qua cognoscit futura sit inefabilis, D. Th. ut …. 1 p. q. 14. art. 13, existimat ex eo provenire, quod res omnes futurae ab aeterno sint praesentes deo in esse existentiae; et intuitus divinus fertur in res futuras nobis, ut in res praesentes sibi, et actu existentes extra suas causas, et ita sicut ego modo inefabiliter cerno hanc papyrum actu existere, siquidem video illam extra suas causas. Ita deus optimus multo infalibilius cernit res omnes, quae futurae sunt nobis eo quod sint sibi praesentes,

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et actu existentes extra suas causas. Alii existimant id provenire ex eo, quod deus non solum cognoscit causas contingentes, sed etiam omnia, quae vel impeditura sunt ne causae operentur, vel determinatura sunt causas ipsas ut operentur. Sed haec latius examinare, et discutere ad alium locum pertinet”. Periherminias seu de Interpretatione, c. 8; BPE, cód. CXVIII/1-6, fl. 189v. O outro lugar aqui referido deve procurar-se nos tratados de teologia, como se depreende do que havia escrito no fl. 187v: Quaestio haec ad theologus potius, quam ad dialecticum spectat; ob id paucis eam absolvam”. 41 Sobre toda esta problemática, ver Rodrigues, História…, II, II, p. 154 e ss. 42 Cf. José Filipe Mendeiros, As Ciências Sagradas, 1963, p. 14. 43 Arq. S. J., Epp., NN., 86, fl. 282v; cit. Por Francisco Rodrigues, História…, II, II, p. 139-140. 44 É natural que, mesmo no ambiente recatado da Companhia de Jesus, o ambiente polémico decorrente da união ibérica sob a égide de Filipe II de España, se fizesse sentir e desse aso a atitudes de marginalização mútua. 45 Cf. Manuel Fraga Iribarne, Luis de Molina…, p. 26. 46 Cf. José Filipe Mendeiros, A necessidade…, p. 20-21.

47 Carta de Baltasar barreira ao Geral da Companhia, em 18 de Maio de 1596, cit. por Francisco Rodrigues; “O Doutor Exímio” na Universidade de Coimbra”, in Brotéria, 24, 1937, p. 439. Para poder legalmente assumir a cátedra coimbrã, o Doctor Eximius teve de se sujeitar às provas de doutoramento na Universidade de Évora, em 4 de Junho de 1597, onde encontrou como opositor o lente Cristóvão Gil, a quem aquele muito admirava.. 48 É de notar que só os dois primeiros volumes saíram em vida do autor, em Cuenca, onde ele ultimou e reviu toda a obra. 49 O códice CXIX/2-3 da BPE, com 578 fólios, escritos com letra do século XVI, integra os seguintes tratados: Iustitia commutativa circa bona corporis; eadem iustitia circa bona honoris et fame, et circa bona spiritualia; De correctione iuditiali …; e De iustitia distributiva. 50 Cf. Manue Iribarne, Luis de Molina…, p. 68-69. 51 Arq. S. J., Epp. NN. 86, f. 238v; cit. por Francisco Rodrigues, História…, t. II, vol. II, p. 131. 52 Cf. F. Stegmüller, Filosofia e Teologia…, p. 45-46: José Filipe Mendeiros, A necessidade…, p. 31-33.. 53 Manuel Fraga Iribarne, Luis de Molina…, p. 32.

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Características Educativas Inacianas

Algumas reflexões

Texto: Miguel Corrêa Monteiro

nnor

eland, nooth

I

nácio de Loiola não desprezou o valor e a ajuda recebida de outros mestres que teve na sua aprendizagem, até porque a sua capacidade de assimilação e adaptação foi grande e, por isso, a sua pedagogia sofreu influência destas duas fontes. Por conseguinte, à influência da experiência divina, Loiola teve a capacidade para saber apreciar e integrar a riqueza e a multiplicidade da experiência humana. “Inácio de Loiola, em diversos momentos dos seus catorze anos de estudante, sentiu-se sem dúvida influenciado pelos grandes humanistas e pedagogos do seu tempo - Erasmo e Vives, entre os principais -, ainda que o impacto final que deixaram nele tivesse sido muito diverso. A pedagogia inaciana de recorte humanista não seguiu a linha fria do puro humanismo intelectual que se sente independente de toda a autoridade religiosa e hierárquica, à maneira de Erasmo. Está muito mais perto das intuições psicológicas e pedagógicas renovadoras de Vives, que favorecem a adaptação e aproximação cordial do mestre ao aluno, dentro de um marco espiritual de fidelidade religiosa”. 1

Inácio de Loiola reconheceu o valor da educação em si mesma bem como a importância da actividade apostólica. E se existem dúvidas sobre isto, recordemos que Inácio escreveu para Espanha dando normas precisas acerca da fundação de novos colégios. As razões avançadas realçam o valor atribuído à educação dada nos colégios inacianos, que devia ser acima da

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média, ser gratuita, possibilitando aos pobres a oportunidade de estudarem, e os alunos deviam ser um exemplo de simplicidade e de virtude para os demais tal como assinalámos. Temos vindo igualmente a realçar que a espiritualidade inaciana foi sempre uma presença constante nos colégios da Companhia, facto que não pode ser esquecido quando estudamos as características da metodologia que os primeiros jesuítas aplicavam à educação. Podem parecer demasiado simples ou mesmo elementares, mas nos nossos dias ainda têm a sua actualidade. Os alunos não deviam estar na aula de um modo passivo, mas pelo contrário eram desafiados a ser participativos; Os professores tinham obrigação de prestar atenção individualizada na sala de aula; O ensino tinha em conta a idade dos alunos e a sua personalidade; Estamos perante algumas características educativas que não eram, de modo algum, comuns na época de Loiola, pelo que os colégios da Companhia têm mérito na sua divulgação fazendo-as chegar aos nossos dias, assim como outros princípios da espiritualidade inaciana que fizeram e fazem parte do modelo educativo dos Jesuítas através dos tempos.

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Em primeiro lugar, consideramos a visão do mundo e da vida que Loiola tinha. Uma visão particular em que existe bem e mal misturados, não somente nas pessoas, mas também nas estruturas da sociedade. Mas nada esteve perdido, porque a redenção é realizada por Cristo (visão cristocêntrica, sempre presente em Loiola). Por conseguinte, é preciso que cada pequena coisa ou acontecimento nos conduza para Deus, aspecto referido logo no início da Quarta parte das Constituições: “o fim que a Companhia tem directamente em vista é ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o fim último para o qual foram criadas”2, mas sempre com a intenção de podermos contribuir para os demais, tendo em vista a construção de um mundo melhor. É uma espiritualidade que parte de circunstâncias concretas, apesar de manter um ideal que pode ser considerado por alguns como abstracto. Por isso é que as Constituições insistem na necessidade do discernimento que nos proporciona a aprendizagem da nossa situação particular, sem esquecer a necessidade da doutrina.3 A pedagogia inaciana esteve sempre assente numa base de exigência e de grande qualidade, mas a nível de todas as disciplinas e não somente para a aprendizagem das primeiras noções cristãs. Uma outra característica fundamental encontra-se na sua apetência integradora, isto é, o homem deve ser integrado num determinado modelo de vida, aquele em que vive com todos os restantes homens, e formando como um corpo, cujas partes se juntam debaixo de uma única cabeça que é Cristo, como foi afirmado pelo apóstolo Paulo na Primeira Carta aos Coríntios. Um estudante inaciano tinha que tentar ser bom em qualquer disciplina, tendo em conta o que foi dito atrás para a obtenção de uma visão cristã da vida sob o ponto de vista da razão e da ciência, mas tendo em linha de conta que a unidade é obtida pela ciência teológica. Os colégios dos Jesuítas destinavam-se a formar líderes, mas esta expressão, que tem

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actualmente um sentido elitista e exclusivista, não queria dizer que o Fundador pretendesse educar apenas os filhos dos mais ricos ou influentes, mas apenas pessoas que mais tarde pudessem ser úteis à comunidade, sendo bons cristãos e cidadãos honestos na visão inaciana dos agentes multiplicadores que está contida nas Constituições. Na educação dada pela Companhia outro dos princípios fundamentais foi, e ainda é, a aprendizagem do que significa a dignidade humana. Este facto está bem patente na abertura das portas dos colégios aos mais pobres, o que demonstra o sentido da justiça, na preocupação demonstrada em relação a professores e a alunos e à aspiração do desenvolvimento completo da educação 4. Modernamente, o padre Geral Pedro Arrupe explicou o princípio da educação de líderes, numa intervenção que teve oportunidade de fazer no Décimo Congreso Europeu de antiguos Alumnos, em Valência (Espanha) a 31 de Julho de 1973, e que transcrevemos: “Hoy el primer objectivo de nuestra educación ha de ser formar hombres y mujeres para los demás: hombres y mujeres que no vivan para si mismos, sino para Dios y su Cristo - para el Dios - Hombre que vivió y murió por todo el mundo. Hombres que no puedan concebir un amor de Dios que no incluya el amor por este último de sus prójimos; hombres completamente convencidos de que el amor de Dios que no se traduce en justicia para el hombre es una farsa”.5 Na formação dos Jesuítas esteve sempre presente um outro pensamento do Fundador, que foi a noção clara de que toda a realidade conhecida procede de Deus e que o seu valor reside no modo como nos pode conduzir a Ele, tal como está assinalado nos Exercícios Espirituais.6 Este é um Deus que nos acompanha e que segundo Loiola, pode ser identificado com os acontecimentos humanos ou através da fé. Por conseguinte, a educação da Companhia, ao incluir uma dimensão religiosa, promoveu desde

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sempre o entrosamento entre a fé e a cultura. “A educação da Companhia reconhece a Deus como Autor de toda a realidade, toda a verdade e todo o conhecimento, dentro da linha de pensamento do seu fundador. Deus está presente e activo em toda a criação: na natureza, na história e nas pessoas. A educação da Companhia, consequentemente, afirma “a bondade radical do mundo, carregado da grandeza de Deus”, e considera cada elemento da criação como digno de estudo e contemplação, susceptível de uma exploração que nunca termina”.7 A formação da Companhia, ao estudar a obra da criação, procurou transmitir a ideia da admiração e do louvor devido a Deus, para que os estudantes se sentissem motivados a trabalhar nessa mesma criação. Por conseguinte, as matérias eram explicadas de maneira a que o estudante sentisse prazer pelo acto de aprender e colaborasse activamente nesse sentido, para maior glória de Deus. “Deus revela-se especialmente no mistério da pessoa humana, “criada à imagem e semelhança de Deus” como está escrito no Genesis. Por isso, a educação jesuíta explora o significado da vida humana e preocupa-se por uma formação global de cada estudante como ser amado pessoalmente por Deus. O objectivo da educação jesuítica consiste em ajudar o desenvolvimento mais completo possível de todos os talentos dados por Deus a cada pessoa individual como membro da comunidade humana”.8 Esta dimensão religiosa impregnou toda a educação inaciana, uma vez que as matérias leccionadas eram vistas como meios para levar o aluno à descoberta de Deus, cabendo uma enorme responsabilidade aos professores, que era a de guiarem os alunos nessa descoberta. É assim que a Teologia, como referiu Francisco Migoya, é apresentada como factor integrador no processo de descoberta de Deus e do próprio sentido da vida, acompanhando a formação espiritual que é parte integrante da educação ministrada pelos Jesuítas. Segundo o autor, “hoje em dia, com aquela sensatez

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de métodos e de recursos não seria possível alcançar tão brilhantes resultados. Na actualidade as ciências da educação abarcam um amplo conjunto de disciplinas que avançam aceleradamente, cada uma com os seus próprios objectivos e preocupações, com uma metodologia específica altamente desenvolvida e até com terminologia própria. (...) Por outro lado, os grandes programas educativos, pelo elevado financiamento que requerem, vão ficando reservados aos pressupostos estatais, a fundações excepcionalmente bem dotadas ou aos organismos internacionais. Mas mais que uma metodologia educativa, a pedagogia Jesuíta é um espírito formulado nos grandes princípios que animam a actividade apostólica da Companhia de Jesus. Os métodos têm um valor relativo; ainda que tenham sido válidos numa época, necessitam renovar-se e enriquecer-se para estar à altura dos tempos e poder enfrentar a difícil problemática que se apresenta numa época complicada como é a nossa, mas que oferece enormes possibilidades apostólicas” 9. O que estava em causa na educação da juventude era a realização de um ideal apostólico e formar “bons cristãos”, como já referimos. As Constituições esclarecem-nos sobre este ponto: “tendo em vista que os nossos colégios não devem ajudar a instruir-se nas letras e nos bons costumes só os próprios Escolásticos, mas também os de fora, onde convenientemente se puder fazer, instituam-se aulas públicas ao menos de humanísticos, e mesmo de estudos superiores, conforme as possibilidades que houver nas regiões onde se encontram tais colégios, tendo sempre em vista o maior serviço de Deus Nosso Senhor” 10. Inácio de Loiola, ao aceitar os estudantes laicos nos colégios, procurou a sua salvação. Mais tarde, também as famílias seriam beneficiadas através do seu exemplo. Este ideal de realizar a junção entre virtude e letras já assinalado, é uma das características fundamentais da pedagogia inaciana inspirada pelo humanismo

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cristão. É esta conciliação entre educação da juventude e pregação, que esteve na origem da opinião de Nadal, segundo o qual os Jesuítas tiveram como objectivo na abertura de escolas, o ensino da piedade aos que queriam aprender as letras, o que de facto se foi realizando enquanto os alunos estudavam. A Parte IV das Constituições inacianas realça a importância dos motivos apostólicos para a abertura dos colégios aos não Jesuítas.

Os professores, durante as aulas quando se oferecer ocasião, ou fora delas, procurarão especialmente levar os alunos ao amor e ao serviço de Deus Nosso Senhor, e às virtudes com que lhe hão-de ser agradáveis, e a orientar para este fim todos os seus estudos. Para lho recordar há-de um deles, antes de começar a aula, recitar uma breve oração feita para este fim, permanecendo o professor e todos os discípulos descobertos e atentos” 12.

A Companhia de Jesus só aceitou assumir o compromisso da educação dos jovens, porque este esteve ligado à sua formação moral e religiosa, e através de métodos que procuraram o aperfeiçoamento constante dos alunos, pretendeu-se “pescar as almas” como afirmou Nadal. O apostolado que se praticava nos colégios não afectou a qualidade do seu ensino devido à forte motivação e ao espírito de missão dos professores.

Os mestres deviam estar atentos para aproveitar todas as ocasiões para formar os jovens alunos nos valores cristãos, como se constata nesta passagem da Ratio Studiorum, em que se afirma que o professor deve formar os adolescentes de modo que, juntamente com as letras, vão aprendendo igualmente os costumes dignos de um cristão. Recomenda-se também que o professor tenha uma especial atenção, tanto nas aulas como fora delas, na preparação dos adolescentes para o serviço de Deus e das virtudes necessárias para se Lhe agradar 13.

A este fim se adequam os meios que Loiola prescreve nas Constituições da Ordem. “Tenhase muito especial cuidado de que os que vêm às universidades da Companhia para se instruir nas letras, juntamente com elas, aprendam os bons costumes cristãos. Será de grande ajuda para isso que todos se confessem ao menos uma vez por mês, oiçam Missa diariamente, e a pregação todos os dias de festa quando a houver. Neste ponto hão-de os professores olhar pelos seus próprios alunos.” − A regra seguinte complementa a anterior: “para aqueles a quem facilmente se possa impor, seja obrigatório o que se diz da confissão, missa, pregação, doutrina cristã e declamação. Para os outros, procure-se persuadi-los com amor, sem os constranger a isso, nem os expulsar das aulas porque o não fizeram, a não ser que fossem causa de relaxamento ou de escândalo para os mais” 11. Ao jovem que entrava na Companhia para ser formado, recomenda-se que: “não se permitirão nas classes juramentos, nem palavras ou acções injuriosas, nem nada de imoral ou licencioso da parte dos externos que frequentam as aulas.

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Estes ensinamentos deviam ser administrados de uma forma suave para que a semente pudesse vir a dar frutos. Além disso, estava institucionalizada a utilização da doutrina cristã, cabendo ao professor exortar os discípulos à oração, e ajudá-los através do seu próprio exemplo. Refere a Ratio que será conveniente não omitir exortações, pelo menos na véspera dos dias mais solenes e quando se concedem férias maiores. O professor devia igualmente pedir aos alunos para que fizessem o seu exame de consciência à noite e a receber com dignidade e com frequência os sacramentos da penitência e da Eucaristia, a ouvir missa todos os dias e o sermão nos dias de festa. Deviam também os estudantes evitar os maus costumes, fugir dos vícios e praticar as virtudes dignas de um cristão.14 Os alunos eram também exortados a rezar o rosário ou o ofício da Santíssima Virgem, devendo o professor fazer às sextas ou sábados, e durante cerca de meia hora uma exortação piedosa ou

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explicação da doutrina, através da leitura de uma passagem devida de santos. Além disso, o professor devia abster-se nas suas prelecções não somente das leituras de escritores considerados imorais, assim como de determinadas passagens passíveis de causar dano aos bons costumes dos jovens, mesmo que fosse fora da aula 15. Igualmente se encontram diversas regras nas Constituições da Companhia a exortar para o perigo das livros menos ortodoxos, e a recomendar leituras mais sólidas e seguras 16. A desconfiança em relação a qualquer autor tornava um determinado livro não aconselhável, pois podia levar o leitor a “afeiçoar-se ao autor, e a confiança, que se tem no que ele diz bem, poderia vir a estender-se depois ao que diz mal. É bem raro que não se misture algum veneno naquilo que sai dum coração cheio dele”17. Em relação às obras de autores não jesuítas, mas necessárias ao estudo, os inacianos não as desprezavam, tendo grande cautela antes de as utilizar: “(...) depois de maduro conselho e longa reflexão sobre o assunto da parte das pessoas reputadas como mais competentes em toda a Companhia, e com a aprovação do Superior Geral, poder-se-ia ensinar. O mesmo se poderá fazer para as outras disciplinas e para as humanidades, adoptando livros compostos na Companhia, se forem mais úteis do que os seguidos comummente. Isto, porém, far-se-á com muita circunspecção, tendo sempre diante dos olhos o nosso fim que é o maior bem universal” 18. Em relação aos livros de estudos humanísticos, latinos e gregos, assinala a regra 468 das Constituições que se evite “na medida do possível, que, nas universidades como nos colégios, a juventude leia livro algum com coisas ofensivas dos bons costumes, sem serem antes expurgados de passagens ou expressões imorais” 19. * Vimos atrás que nas Constituições (Roma, 1558), o Fundador da Companhia de Jesus contem-

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plou o ensino para duas classes de alunos, isto é: para os futuros membros da sua Congregação e alunos externos. A orientação seguida no curso de Filosofia era a mesma em relação às duas situações. Segundo Alberto de Andrade, “Da mesma forma que na Universidade portuguesa, ensinava-se S. Tomás nas aulas de Teologia, e Aristóteles nas de Filosofia. Nunca, porém, o Estagirita puro, se bem que houvesse, já no século XVI, em Coimbra, mesmo no ensino dos Jesuítas, o cuidado de apurar o verdadeiro pensamento do Peripato. Daí derivou toda a regulamentação posterior, fixada no Ratio Studiorum (1599, embora, o primeiro esboço seja de 1586) e Estatutos particulares das universidades e colégios”.20 As propostas educativas praticadas nos colégios da Companhia de Jesus realçam a relação pedagógica entre o professor e o aluno tendo sempre em vista a liberdade do aluno bem como o seu nível etário. Segundo o padre Francisco Rodrigues, “estas conferências de índole oficial devem ser suavemente reforçadas na intimidade, possuem condão especial de atrair mansamente ao amor da virtude. Aqui tem o mestre ensejo de conhecer melhor o aluno, de se acomodar ao seu temperamento e carácter, de lhe sugerir conselhos mais a propósito ao estado presente de sua alma e de o dispor com prudência e segurança para a carreira futura” 21. Esta questão da livre escolha dos jovens é também referida na Ratio. Se, por um lado, cabia ao professor inculcar bons hábitos de virtude aos seus alunos de modo não forçado, como se quisesse atrair alguém, por outro, não se descurava a hipótese de uma vocação, e se esta fosse detectada no início, o professor devia remeter o aluno ao confessor 22. As Constituições da Companhia, a Ratio Sudiorum e os estatutos particulares das universidades e colégios reflectiram o desejo do Fundador no sentido de se fomentar nos alunos os valores cristãos. O apelo às práticas piedosas transparece por diversas vezes. No que diz respeito

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à oração, a Ratio determina que os alunos deviam dizer uma oração breve apropriada às circunstâncias e todos os restantes a deviam ouvir com atenção, conjuntamente com o professor, de joelhos e de cabeça descoberta. Em seguida, antes de a aula continuar, o professor devia fazer o sinal da cruz 23. Em relação às devoções, a Ratio exorta o professor a fazer recitar ao sábado, na sua classe, as ladainhas da Santíssima Virgem, ou ir com os alunos ao templo para o mesmo efeito, aconselhando-os sempre à devoção à Virgem e também ao anjo da guarda 24. Todas estas práticas piedosas não deviam ser impostas à força. Antes pelo contrário, a sua aceitação pessoal e livre era recomendada, como já referimos. Para Inácio de Loiola, Deus é Criador e Senhor, Suprema Bondade e a única realidade que é absoluta. Para Inácio todas as realidades procedem de Deus e por isso só são válidas se ajudarem a conduzir os homens a Deus. Nesta linha de pensamento as escolas da Companhia são um instrumento apostólico e o conceito educativo inclui uma dimensão religiosa que é como o cimento da educação inteira. Segundo a visão inaciana do mundo, Deus está sempre presente nas nossas vidas, “trabalhando para nós” em todas as coisas. Por conseguinte, a educação da Companhia promove o diálogo entre a fé e a cultura, apostando na formação integral de cada um inserido numa comunidade de pessoas. Toda a pessoa é chamada, segundo Inácio, a ser livre para aceitar as responsabilidades dos seus actos, e livre para trabalhar em prol da verdadeira felicidade, isto é, livre para com os outros ao serviço do Reino de Deus, o que em termos educativos estimula à actividade dos alunos, desenvolvendo-lhes as capacidades para o exercício da verdadeira liberdade.25 Deste modo, a educação da Companhia estimula a compreensão realista do mundo. Ao propor Cristo como o modelo da vida humana, não esqueceu a devoção à Virgem Maria. Em Portugal, o desenvolvimento da devoção à Virgem está bem patente nas congregações Marianas,

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estabelecidas desde 1583, nos colégios de Lisboa e Évora. Havia uma forte emulação para os alunos pertencerem às congregações, mas a entrada não era permitida a todos. Os alunos que mais se distinguiam eram os escolhidos, formando uma cadeia hierárquica, pois tinham um presidente, diversos assistentes, consultores e simples congregados. Tinham momentos precisos em que se reuniam para louvarem a sua Padroeira e a prática da virtude era seu apanágio dentro e fora do colégio. Além das actividades promovidas no âmbito das Congregações Marianas, os inacianos utilizavam um outro meio muito motivador dos alunos e importante do ponto de vista pedagógico: as festas promovidas nos colégios. Segundo o padre Francisco Rodrigues, “a vontade e a imaginação juvenis precisam deste atractivo, e ao coração ainda tenro das crianças e jovens resultam poderosamente salutares para o tempo da vida colegial e talvez mais para o futuro as suavíssimas impressões que deixam na alma as festas graciosas da meninice e da juventude. São alívio proveitoso ao estudo, variedade simpática na vida do colégio, renovação periódica de fervor e lições de virtude que não se desluzem facilmente da imaginação e da memória”. * As festas de carácter religioso eram celebradas regularmente nos colégios da Companhia, mas havia outras que se realizavam segundo os interesses de cada colégio. As solenidades religiosas abrilhantava-as quase sempre uma exibição literária; as profanas eram santificadas pelo elemento religioso e procurava-se animálas de tal espírito que não pouco afeiçoavam os ânimos dos alunos a seus mestres, à educação recebida e consequentemente à virtude 26. As festas eram momentos altos na vida dos colégios e não nos podemos espantar que tivessem provocado grande entusiasmo nos alunos, uma vez que, nestas alturas, o colégio era visitado por muita gente, nomeadamente familiares, e

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este facto constituía uma excelente oportunidade para ver os alunos actuarem, realizando declamações de poesia ou representações teatrais, havendo distribuição de prémios. Os colégios não descuravam os acontecimentos relevantes da vida nacional, e muito menos a História de Portugal. Sempre que a ocasião permitia havia celebrações extraordinárias. E tiveram tanto êxito que muitas delas ficaram na memória de quem participou. Não faltavam nestas ocasiões os exercícios poéticos, as representações dramáticas, que, unidas às cerimónias de cariz religioso, exaltavam acontecimentos relevantes para a Igreja, para o País, para a Companhia e especificamente para os colégios. “Desta maneira se aliava o amor da religião com o amor das letras e da pátria, tríplice afecto que os jesuítas sempre procuraram desenvolver nos corações de seus alunos. A visita de uma personagem ilustre, a coroação do rei, a canonização dos santos deram frequente ocasião a festividades cuja memória se perpetuava muita vez em livros estampados” 27. Se por um lado se procurava agradar à comunidade onde cada colégio estava inserido nestes dias de festa, por outro é necessário perceber que estes dias serviam igualmente de escape aos alunos por serem momentos que quebravam a rotina das prelecções e dos exercícios literários. * Do ponto de vista didáctico, a pedagogia inaciana assentava na prelecção ou explicação do professor, na repetição continuada do aluno e na aplicação, quer nas composições e debates entre os alunos, quer em exercícios em grupo sob a orientação do professor. As aulas diárias de Gramática e de Humanidades duravam duas horas e meia e as de Retórica duas horas. Essa duração fora inicialmente de três horas, como habitualmente se praticava no século XVI, nomeadamente em Paris; no entanto, os jesuítas, como já ficou referido, adaptavamse aos locais e aos tempos; por isso, embora

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aceitando por método inicial, fizeram depois diversas reduções no horário, estabelecendoas como referimos atrás. O método de ensino seguido no curso de Letras exigia uma grande preparação dos professores e era igualmente um desafio à capacidade de memorização dos alunos que tinham que decorar os conteúdos estudados em cada aula para os utilizarem na aula seguinte. Na retórica devia exercitar-se a memória na primeira hora da manhã, cabendo ao professor a tarefa de correcção das composições dos alunos, entretanto recolhidas pelos decuriões. Durante o tempo que durava esta correcção, os alunos praticavam exercícios diversos, como imitar uma passagem de um orador famoso ou de um poeta, ou descrever um jardim, um templo ou uma tempestade, ou ainda traduzir para o latim um discurso grego ou vice-versa, compor epigramas, inscrições, epitáfios ou acomodar figuras retóricas a certas matérias.28 No final, repetia-se a prelecção do dia anterior. A segunda hora da manhã era dedicada à prelecção, cabendo ao professor a explicação dos preceitos, seguindo-se logo a repetição por parte dos alunos. Se houvesse tempo, ainda se faziam revisões sobre o que se tinha escrito durante a primeira hora. Na primeira hora da tarde, depois da repetição da última prelecção, fazia-se outra, sobre um discurso de autor estudado, seguindose a repetição usual. À segunda hora da tarde, depois da repetição da última prelecção sobre um autor abordado, o professor fazia uma outra e colocava questões aos alunos.29 Deste modo, competia ao professor a leitura, no compêndio, da passagem que ia ser estudada, explicando não só o sentido do texto, como a sua ligação com o passo anterior. Para isso podia utilizar frases mais compreensíveis para os alunos, quer em latim, quer traduzindo para a língua nacional, devendo a exploração da passagem ser ajustada ao nível cognitivo e etário da classe, o que nos parece bastante moderno. A principal actividade que os estudantes

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tinham que executar era uma composição em latim sobre um tema apresentado pelo professor. A este competia-lhe igualmente emendar os erros e estar com atenção a alguns aspectos peculiares como acontecia para a Gramática (com as regras gramaticais e ortografia e a pontuação), nas Humanidades (com a harmonia e a elegância do estilo), e na Retórica (com o artifício, graça e nexo). O curso de Filosofia ou Artes vinha a seguir ao curso de Letras. A sua duração era de três anos e sete meses com seis horas de aulas diárias (três de manhã e três à tarde, sendo as duas primeiras teóricas e as quatro restantes de aprofundamento dos conhecimentos). Segundo a Ratio Studiorum, o curso visava um fim moral e religioso, de acordo com as intenções de Inácio de Loiola. Os professores de Filosofia deviam ter sempre em atenção a “maior glória de Deus”, dispondo os alunos, e mesmo outros religiosos, para o estudo da Teologia. As matérias abrangidas eram a Dialéctica, a Lógica, a Física e a Metafísica, sendo Aristóteles o principal autor estudado. A Companhia de Jesus, ao longo dos duzentos anos em que liderou o ensino, manteve a filosofia de Aristóteles, contrariando a perspectiva antropocêntrica do movimento renascentista. Aristóteles foi, assim, defendido de qualquer desvio à sua doutrina, como se verifica em diversas regras da Ratio respeitantes ao professor de filosofia, nomeadamente a Regra 2 que recomenda ao professor não se desviar de Aristóteles, a não ser nalgum ponto não aprovado por todas as Academias, sobretudo no que toca à ortodoxia da fé, devendo demonstrar capacidade e valentia na refutação de argumentos contrários às orientações do Concílio Lateranense. 30 Neste sentido, é recomendado na Ratio que os professores de Filosofia tenham anteriormente estudado teologia e praticado o seu ensino durante dois anos. Ao mesmo tempo advertese que aqueles professores com um espírito

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demasiado livre deviam ser proibidos de leccionar. Foram estas preocupações que deram origem à edição de textos didácticos, unificadores do discurso dos mestres, procurando-se, assim, evitar profundas alterações ao pensamento de Inácio de Loiola. No entanto, os Jesuítas não assumiram uma atitude passiva no ensino da Filosofia e da Teologia.31 Seguiram as orientações da Ratio de 1599 quanto aos autores, mas de uma forma crítica, o mesmo acontecendo em relação à prelecção das doutrinas, tendo alcançado até uma posição de destaque através de livros escolares de inacianos portugueses que foram utilizados durante os séculos XVI, XVII e XVIII em muitas Universidades. A recusa de uma escola passiva está bem presente nos métodos Inacianos. De facto, a aula iniciava-se testando-se a capacidade dos alunos para saberem a lição de memória. Em seguida competia ao professor fazer a correcção dos temas individualmente, sem que, como já vimos, o resto da turma ficasse ociosa, pois estavam ocupados a fazer sobretudo traduções. Depois era repetida a prelecção anterior e a seguinte, e ditava-se o tema aos alunos. Finalmente, as regras gramaticais (preceitos) eram repetidas explicando o professor a nova lição. Este programa de instrução literária foi oficialmente promulgado em 1599, mas em relação à metodologia proposta iria servir de base ao ensino praticado pelos jesuítas até meados do século XVIII. Os alunos tinham uma carga horária relativamente longa, mas diversificada. Assim, a aula de retórica tinha a duração de duas horas. Para as humanidades e gramática havia mais meia hora, de manhã e de tarde. Com a retórica o escolástico inaciano alcançava o patamar da filosofia. O estudante jesuíta aprendera a língua latina, e pudera sentir o fascínio dos seus diversos estilos. Era tempo agora de aprender a escrever tão bem quanto aprendiam a falar. Refere a este respeito o padre Francisco Rodrigues, “os alunos aprendiam a falar com os adornos próprios da época, mas isso não

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significa que não houvesse preocupação com a substância naquilo que diziam. A linguagem devia estar bem organizada e corresponder a um raciocínio lógico dedutivo” 32. O curso de Filosofia ou de Artes tinha uma duração de três anos, com duas horas de lição por dia 33. Se por um lado pretendia formar a inteligência do aluno, por outro não contrariava o desejo de Inácio de Loiola, isto é, tinha em vista um fim moral e religioso. Por conseguinte, é recomendado na Ratio que o professor de Filosofia tivesse em consideração que as artes ou ciências naturais servem para preparar as inteligências para o estudo da Teologia, finalidade principal do estudo dos inacianos. Competia pois ao professor de Filosofia procurar a maior glória de Deus devendo ter um grande cuidado na preparação dos seus discípulos, sobretudo futuros inacianos, na preparação para a teologia, que promove o conhecimento do seu Criador 34. Durante o curso ensinava-se a Lógica, a Física (com as ciências naturais), a Metafísica e a Ética, utilizando-se como autores Aristóteles e S. Tomás. Com o tempo, a física e as ciências naturais passaram a englobar diversas áreas científicas como a mecânica, a geografia física, a astronomia e a cosmologia, sendo então denominada física geral. Designou-se física particular os tratados de organologia, físiologia e anatomia, óptica, electricidade, meteorologia e cosmografia. Na Lógica utilizava-se sob recomendação da Ratio a obra de Pedro da Fonseca 35. Segundo o padre Francisco Rodrigues, “no método de exposição tanto na filosofia como na teologia não se acomodavam os jesuítas com o papel de simples comentadores. Limitar-se a apostilar elucubrações alheias não o poderiam sofrer homens da envergadura intelectual de Maldonado, Fonseca, Molina e Suarez. Seguiam, não há dúvida, os autores propostos pelo Ratio, mas a razão tomava o peso aos argumentos, examinava-lhes o valor intrínseco e se os achava inadmissíveis, sem quebra do respeito para com tão distintos escritores, desviavam-se de

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suas afirmações e apresentavam opiniões suas. Mas nem sequer na prelecção das doutrinas o seu génio se contentava de ler os autores. Analisavam as conclusões, penetravam-nas com a agudeza de seu entendimento, assimilavamnas e propunham-nas como próprias e com a convicção de quem ensina como mestre e não repete o que outros ensinaram” 36. No tratar as questões em que existe liberdade para seguir qualquer opinião, recomenda a Ratio que o professor defenda uma, mas preste atenção e seja benevolente com a contrária, sobretudo se foi essa a ensinada por outro professor. Apela também ao comportamento moderado na refutação das opiniões dos autores37. Também se recomenda para o professor não ser excessivo nas referências à autoridade dos doutores, devendo apoiar a sua opinião com passagens breves desses autores, sobretudo se os tiver lido, mas privilegiando passagens da Sagrada Escritura, dos Concílios, e as dos Santos Padres38. Recomenda igualmente a Ratio de 1599 que o professor continue a utilizar na exposição a forma silogística, como instrumento necessário à distinção do verdadeiro e do falso. É a tradição aristotélica do silogismo demonstrativo, que o filósofo tinha associado ao processo indutivo da ciência. Foi apelidado de retrógrado e de medieval, mas, em 1832, na reforma da Ratio, continuou a ser utilizado como método nas aulas dos Jesuítas. Como já assinalámos, a formação inaciana, abrangendo Letras, Filosofia e Ciências Naturais, servia para preparar os alunos para uma outra meta porventura mais exigente, a Teologia, tal como consta nas Constituições: “o fim da Companhia e dos estudos é ajudar o próximo a conhecer e amar a Deus, e a salvar a sua alma. Ora, sendo a faculdade de Teologia o meio mais apropriado para isso, é nela que principalmente se há-de insistir nas universidades da Companhia (...)” 39. Ninguém podia ser admitido na Companhia sem ter conhecimentos suficientes da teologia escolástica e da Sagrada

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Escritura, para além da formação anterior em letras humanísticas e artes liberais. Depois das artes, os escolásticos deviam dedicar-se ao estudo da teologia durante quatro anos 40. No entanto, podia haver excepção para quem demonstrasse grandes conhecimentos em Direito Canónico, consideradas pelo Padre Geral ou seu representante, compatíveis com o estudo da Teologia 41. O método utilizado era o mesmo da filosofia. Os que se demonstrassem mais capacidades podiam vir a ser convidados para ensinar nos colégios ou universidades, obtendo um período a mais de dois anos para aprofundamento de conhecimentos. Se, por um lado, é referido nas Constituições que o ensino da Lógica, Física, Metafísica e Moral, assim como das Matemáticas, tinha que ser ensinado tendo em conta o fim pretendido pela Companhia, por outro, lamenta-se não se poder ensinar a ler e a escrever todos os que necessitam, mas os Inacianos não podem “acudir a tudo” por não terem gente suficiente 42. Terminava assim o estudante o seu período de formação. Para atingir esta meta tinha o estudante de frequentar o primeiro curso, em que a aprendizagem do latim tinha uma especial importância, visto que agregava em seu redor todas as outras matérias. No segundo curso, este papel era destinado à Filosofia e, no terceiro, concluía-se com a Teologia. Estava assim destinado aos inacianos a nobre tarefa de ensinar outros, ou de os converter através da pregação estando destinada a alguns a elaboração de obras piedosas ou de interesse didáctico e científico. Nos colégios da Companhia nunca houve uma formação baseada no medo dos castigos físicos como era aliás costume na Educação dos jovens na Europa do Antigo Regime. Os “Pais” pretenderam cativar os jovens com exemplos formativos e através de métodos suaves, baseados na liberdade de opção, mas isto não significa que tivessem sido permissivos à indisciplina. Antes pelo contrário, como convém aos soldados do Papa. Em relação a esta questão, refere a Ratio que em questões de disciplina o regulamento deve ser

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cumprido, competindo ao professor e aos seus discípulos o respeito pelas suas regras. Igualmente se aconselha a utilizar mais a esperança dos escolásticos por honras e prémios do que pelo medo da pancada43. A Ratio recomendava também ao professor para não ser precipitado nos castigos, e não pressionar demasiadamente os alunos na inquirição das faltas, devendo ser dissimulado para conseguir os seus intentos. Por outro lado, o professor não devia bater pessoalmente nos alunos, pois havia um corrector para o efeito, e que era compreensivelmente uma figura pouco agradável aos alunos. Também se recomenda ao professor para não ofender os discípulos com palavras, devendo chamar os alunos pelos nomes respectivos. Muitas vezes os castigos consistiam apenas no aumento dos trabalhos literários, o que, em alunos cansados de um dia de trabalho, não devia ser agradável. Nas faltas mais graves os alunos deviam ir ter com o Prefeito, sobretudo se recusassem apanhar ou por serem fisicamente mais crescidos 44. Competia ao Prefeito de Estudos zelar pelo cumprimento das normas inacianas para que houvesse ordem e disciplina conformes à dignidade da educação da Companhia de Jesus. Este desejo bem racional da prevalência da ordem sobre a desordem foi extensível aos pátios das escolas, onde os alunos eram vigiados por um Prefeito do átrio. Nesta tarefa os professores também ajudavam, assim como no acompanhamento dos alunos à missa, “para que se guardasse o respeito devido à casa de Deus” 45. Variando em conformidade com os costumes locais, nomeava-se dentre os alunos mais distintos o chamado Primeiro Decurião, Censor ou Pretor. Tinha como missão ajudar o professor na aula e também era uma espécie de vigilante do comportamento dos colegas. Mas “para que seja estimado entre os condiscípulos, deverá gozar de algum privilégio, e terá direito, com a aprovação do professor, a interceder pelos condiscípulos nos castigos mais leves.” Uma outra

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das suas obrigações era a vigilância do pátio para que nenhum aluno andasse a vaguear ou tivesse eventualmente entrado numa classe diferente da sua. Tirava as faltas dos colegas e comunicava ao Prefeito se algum estranho tinha entrado na turma. Ajudavam-no outros decuriões que ouviam as lições de cor, recolhiam os temas e tomavam nota de pequenas faltas cometidas pelos companheiros e que deviam ser depois comunicadas ao Prefeito de Estudos.46 Com este tipo de procedimento, os inacianos conseguiram manter um elevado nível de disciplina nos colégios. Devido ao carácter de vigilância constante a que estavam sujeitos os alunos pelos seus próprios colegas, os pedagogos modernos criticaram-no, como sendo contrário à liberdade individual e à autodisciplina, conceitos trazidos pelos modelos pedagógicos relacionais. Em relação a esta questão refere o padre Francisco Rodrigues que, “às ideias de agora poderá parecer excessivo este cuidado e vigilância, e exposto a abusos e ocultas vingançazinhas sobretudo nas aulas. Não o nego; era um método humano, havia de ter defeitos; mas a prudência do professor e a acertada escolha dos decuriões, que deviam ser dos mais exemplares, atenuavam os inconvenientes. Em todo o caso o método de excessiva liberdade que se pretendeu opor ao antigo, produziu resultados mais lisonjeiros?” 47. Nas Constituições, estavam igualmente previstos alguns procedimentos para aplicar aos alunos que não aceitassem as boas palavras nem exortações. Estes castigos iam subindo à medida da falta cometida, desde uma simples admoestação oral, aumento dos trabalhos escolares até ao castigo físico e em último caso, à expulsão do aluno 48. Os Jesuítas deviam, conforme nos diz Francisco Rodrigues, “educar como bons pais em que a afeição para com os filhos é o móvel de quanto por eles se afadigam. Ainda quando usam do castigo, o amor é que lhes arma o braço. Se os pais lhes confiavam os filhos, julgavam-se eles obrigados a desempenhar com estes os ofícios da paternidade; amavam-nos,

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e quanto lhes faziam de bem, lhes brotava do amor que lhes dedicavam. Mas para purificar e sublimar este amor, olhavam para o sublime e amoroso exemplar de mansidão, - Jesus Cristo, para o amigo afectuoso dos meninos” 49. Competia ao professor ser um educador generoso, integrado com os alunos num verdadeiro espírito familiar. Assim, a disciplina rigorosa mas assumida com suavidade, a vigilância constante mas realizada com prudência, a realização de festas escolares, a promoção da fé através das Congregações Marianas, as práticas religiosas e a sólida formação cristã, associada ao exemplo dos mestres, ajudou a formar um todo harmonioso para a educação dos jovens alunos, motivando-os para as tarefas literárias e ajudando-os a manterem uma paz de consciência. Era no fundo a tentativa de conciliação entre o desenvolvimento científico com “o aperfeiçoamento moral do homem”. É que o ideal educativo inaciano obedeceu, como já assinalámos atrás, a diversos compromissos para integrar “a virtude com as letras”, a “vida com a ciência”, “a conduta com o saber”, para utilizarmos expressões jesuítas. Assim, a realização deste ideal educativo passou, como não podia deixar de ser, pela figura do professor, que devia ser sabedor, ter método e possuir as qualidades morais e pedagógicas necessárias ao elevado ministério desempenhado, mas a ensinar para a média, sem deixar desmotivados os alunos mais brilhantes. Para o Professor Miguel Bertrán-Quera, “o ideal humanista da Ratio inclui todo o ensino e aprendizagem do saber, seja no domínio das letras seja no das ciências experimentais, filosóficas ou teológicas. Mas com a óptica de que sobressaia o homem como principal beneficiado, para a partir dele e por ele beneficiar a Sociedade; e igualmente – dentro do possível, que seja o homem o principal autor da sua formação e estudo. Com efeito, o que o humanismo da Ratio Studiorum pretendia, era a profunda formação do homem, através principalmente do conhecimento e interiorização

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dos pensadores insignes e das suas obras mais significativas” 50. As escolas inacianas nunca foram locais de clausura ou de imobilismo. Antes pelo contrário, foram sempre locais alegres, cheios de juventude, onde uma comunidade de professores e alunos procurou viver dentro do evangelho a nobre arte de aprender e ensinar. Aí, “não se lhe deparariam ociosos, todos trabalham, mestres e discípulos atentos seguiamno dóceis e animados, porque se cuidava em conservar o interesse em nível sempre elevado, interesse tão encarecidamente recomendado nas pedagogias modernas, e já promovido intensamente pelos jesuítas desde as primeiras estreias de suas escolas no século XVI. A multiplicidade e o atractivo dos exercícios escolares de composição, de desafios, de declamações, de sessões solenes não deixavam esmorecer o ardor juvenil” 51. A Ratio aponta os perigos dos alunos perderem o interesse e caírem na monotonia. Recomenda-se ao professor para que enquanto corrige as composições, mande fazer exercícios diversos tendo em conta o nível da classe. Os inacianos não gostavam de alunos ociosos, considerando que daí poderiam advir consequências prejudiciais ao bom andamento das actividades, através do mau exemplo. A Regra [23] recomenda ao professor que corrija todos os dias as composições dos seus alunos, ou o maior número possível, se o seu número for demasiado. Nos dias em que se apresentem versos, o professor devia distribuir algumas composições para não só manter os alunos ocupados, uma vez que estes se desafiavam entre si na sua realização, mas para dar à aula um ritmo de trabalho dinâmico. O professor devia estimular os alunos através da emulação saudável e honesta, isto é, aquela que permite a competição entre os escolásticos sem os transformar em selvagens competidores. A estratégia do desafio entre alunos, se for devidamente acompanhada pelo mestre, não é

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em si mesma condenável, e do ponto de vista pedagógico trouxe grandes êxitos à formação dos Jesuítas. Uma das formas de que a emulação se revestiu foi a do certame (Concertatio), um concurso literário ou debate. Significa também luta, combate. Consistia normalmente no questionamento feito pelo professor e na correcção pelos alunos rivais. Estes também podiam questionar-se reciprocamente. A Ratio recomenda que se pratique sempre que for possível, como sendo uma estratégia estimulante para o estudo. Os alunos podiam enfrentar-se individualmente ou em grupos rivais, sobretudo os que tinham a responsabilidade de ter cargos, ou ainda um aluno podia desafiar vários ao mesmo tempo. Mas normalmente recomenda-se que os alunos desafiados devam ter um cargo do mesmo nível. Por vezes, também era permitido ao aluno sem cargo, desafiar um outro que o tivesse, e se por acaso ganhasse o primeiro, podia conseguir a dignidade do segundo, um título militar grego ou romano, ou obter um outro prémio ou outro símbolo de vitória, que variava segundo a classe ou local 52. Acontecia com frequência o desafio ser feito entre turmas que estivessem a aprender matérias comuns, sobretudo retórica, em dias que parecessem indicados ao Prefeito de Estudos Inferiores 53. Em todos os exercícios escolares utilizavase este método da emulação, cabendo ao professor a leitura pública dos melhores trabalhos, para exaltar os premiados, dando assim exemplo aos faltosos. Os exercícios extraordinários eram realizados com regularidade, e destinavam-se aos alunos que iam declamar em público. Competia ao professor prepará-los o melhor possível, mas não apelar apenas à utilização da memória, mas também à inteligência. O mesmo se passava em relação à poesia, que seria declamada publicamente, onde aspectos importantes como a colocação da voz e o gesto não eram descurados. As repetições que se faziam diariamente eram igualmente recomendadas aos sábados. Assim,

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também nas aulas de retórica e humanidades recomenda a Ratio Studiorum que se realizassem, em sábados alternados, e com convites a outras classes, recitações em grego ou em latim de discursos e poemas.

fé cristã e das ideias do seu fundador.Por conseguinte, o estudo da pedagogia dos Jesuítas exige uma abordagem aprofundada das ideias pedagógicas assim como da espiritualidade inaciana.

Para além de todas as regras comuns referidas na Ratio e respeitantes aos métodos de ensino, recomenda-se mais algumas aplicadas exclusivamente na formação dos Jesuítas. Os estudantes eram aconselhados a ter em casa mais repetições com o professor, ou um outro designado pelo Reitor, três a quatro vezes por semana, durante uma hora. Deviam, nestas repetições, retomar as prelecções latinas e gregas, e corrigir a prosa e o verso latino e grego. Além disso deviam igualmente cultivar a memória, com aprendizagem diária e também a leitura. Os escolásticos são exortados ao exercício individual para desenvolver a inteligência, falando com frequência na aula, na Igreja, e nas classes comuns com os condiscípulos externos, incluindo o refeitório, devendo expor em público os seus próprios versos devidamente assinados e aprovados pelo professor 54.

A formação dada nos colégios e universidades jesuítas pouco variou até ao século XVIII. No entanto, a Companhia de Jesus esteve atenta aos progressos que a educação tinha sofrido e, em conformidade com o seu lema de se adaptar aos lugares e aos tempos, procurou também adaptar-se aos “tempos modernos” e, em 1820, doze anos depois de ter sido restabelecida, e depois de muita reflexão, levou a cabo a reforma da Ratio Studiorum de 1599, não a adulterando radicalmente, uma vez que os seus princípios fundamentais se mantiveram inalterados.

Nas escolas da Companhia era grande a preocupação com todas as actividades directa ou indirectamente ligadas à prática lectiva. Por conseguinte, estas eram alvo de constantes reflexões e avaliações, efectuadas, não só pelo Prefeito de Estudos que detinha uma grande responsabilidade na organização do ensino, mas também no bom prosseguimento das aulas. De igual modo, as escolas eram visitadas anualmente pelos Provinciais e com mais frequência pelos Visitadores, e que provocava um efeito dinamizador nas escolas. A educaçãofoi sempre fruto de uma determinada época histórica, e com ela estabeleceu profundas relações. Nascida numa época complexa em que as ideias e os acontecimentos fervilhavam para aproximar ou dividir os homens, a educação inaciana soube no entanto, preservar ao longo dos séculos a identidade da sua pedagogia intimamente impregnada da

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A Companhia de Jesus pretendeu estar sempre ao serviço de todos, ricos ou pobres, estivem oprimidos ou fossem opressores. Ninguém devia ser excluído do apostolado inaciano quer se tratasse das missões ou da formação escolar. E se nos nossos dias a educação da Companhia já não constitui o sistema educativo unificado do século XVII, pois cada país adopta a sua estrutura educativa às diferentes culturas, necessidades, e confissões religiosas locais, muitos são os princípios da Ratio original que ainda se encontram perfeitamente válidos. Isto não significa que o “sistema” educativo inaciano não seja ainda uma real possibilidade. O espírito comum e a visão de Inácio de Loiola tornaram possível que os colégios dos jesuítas desde os primórdios da Congregação até ao século XVIII tivessem desenvolvido princípios e métodos comuns. Mas foi o espírito de unidade, juntamente a uma finalidade igualmente idêntica, que criou o “sistema” escolar jesuítico do século XVII, recolhendo na Ratio esses princípios e métodos concretos. Esse espírito comum, em união com as finalidades básicas, os objectivos e as linhas de acção que dele derivaram, foram sempre, e são ainda, exemplo e fonte inspiradora em todas as escolas da Companhia 55.

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N o ta s

la Compañía de Jesús, Madrid, CO-

ria os textos que expõem a doutrina

intellectual do jesuíta. Leis e Factos,

NED, Comisión Nacional de Educa-

mais sólida e mais segura. Não se

Porto, Livraria Magalhães & Moniz,

ción S. J., 1986, p. 13.

adoptarão os que forem suspeitos,

1

Francisco Rodrigues, A formação

1917, p. 20. 2

3

eles ou os seus autores. Mas estes 8

Idem, ibidem, p. 14.

9

Cf. Francisco Migoya S. J., “For-

Constituições [307].

hão-de ser expressamente citados em todas as universidades. Em teologia ensinar-se-á o Antigo e o Novo

macion para el Testimonio”, in

Testamento, e a doutrina escolástica

uma vez que se reconhecer nos

Education Jesuitica − Su inspiración: La espiritualidad ignaciana, Roma, CIS,

de Stº Tomás. Na teologia positiva

candidatos o requerido fundamento de abnegação de si mesmos e o seu

1981, pp. 69-70.

Constituições [307]. “Portanto,

necessário progresso na virtude, devem-se procurar os graus de

10

instrução e o modo de a utilizar para

Regra [395], já citada, é referido

ajudar a melhor conhecer e servir a

que: “nas aulas siga-se um método

Deus nosso Criador e Senhor”.

tal que os que vêm de fora sejam

Constituições [392]. Também na

bem instruídos na doutrina cristã. 4

Em relação à capacidade dos

uma vez por mês, se for possível, e

[338] das Constituições refere o

assistam frequentemente às prega-

seguinte: “A pobreza dos estudantes

ções. Haja enfim a preocupação de,

que não são da Companhia será

com a instrução, lhes incutir hábitos

avaliada pelo superior Geral, ou por

dignos de cristãos”.

aquele a quem ele tiver comunicado 11

Constituições [481]-[482].

que se admitam filhos de pessoas

12

Constituições [486]. A regra se-

ricas ou nobres, pagando eles as

guinte recorda que os actos de

suas despesas”.

devoção não devem ser realizados

razões não parece dever-se proibir

de um modo mecânico, mas com 5

Pedro Arrupe, La Iglesia de hoy y del

sentimento: “a oração deve dizer-

futuro, Bilbau, ed. Mensajero, 1982,

se de modo que cause edificação

doc. 28.

e devoção, ou então não se reze. Nesse caso, o professor descubra-

6

“O homem é criado, para louvar,

reverenciar e servir a Deus, nosso

convêm ao nosso fim”. 17

Constituições [465].

18

Constituições [466].

19

Constituições [468].

20

A. Andrade, “Para a História do

E procure-se que se confessem

estudantes pagarem ou não, a Regra

tal poder. Algumas vezes, por justas

escolher-se-ão os autores que mais

se para fazer apenas o sinal da cruz, e comece”.

Senhor, e, mediante isto salvar a sua alma. E as outras coisas, sobre

13

a face da terra, são criadas para o

Stud., Reg. Comm. Prof. Stud. Inf., 1.

homem, para o ajudarem na pros-

(Finis).

Constituições, P. IV, C. XVI; Rat.

secução do fim para que é criado.

ensino da Filosofia em Portugal, o Elenchus Quaestionum de 1754”, Revista Portuguesa de Filosofia, JulhoSetembro, 1966, XXII, fasc.3, p. 258. Em Portugal seguiu-se o método consignado na Ratio Studiorum de 1599, no Colégio de Santo Antão em Lisboa bem como no de Évora. A excepção foi o Colégio das Artes em Coimbra em que não se aplicou tudo aquilo que entrasse em contradição com os seus Estatutos ou a própria vontade real. 21

Francisco Rodrigues, op. cit., p. 21.

22

Ratio Stud., Reg. Comm. Prof. Stud.

Inf., 6. (Colloquia spiritualia). “Privatis etiam colloquiis eadem ad pietatem pertinentia inculcabit; ita tamen, ut nullum ad religionem nostram videatur allicere; sed si quid huiusmodi

Donde se segue que o homem tanto

14

há-de usar delas, quanto o ajudam

(Discipuli ad pietatem invandi).

cognoverit, ad confessarium reiiciat”.

se delas, quanto disso o impeçam.”

15

23

Exercícios Espirituais, 23 trad. do

Inf., 8.

Ratio Stud., Reg. Prof. Sup. Facult., 3.

para o seu fim, e tanto deve privarRat. Stud., Reg. Comm. Prof. Stud.

Veja-se Francisco Rodrigues, A

Padre Vital Dias, S. J., Livraria Apostolado da Imprensa, 1983. 7

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Cf. Características de la educación de

Ratio Stud., Reg. Comm. Prof. Stud.

Inf., 2. (Oratium ante lectionem).

16

Constituições [464]. “Em geral

formação Intellectual do Jesuita,

como se disse ao falar de colégios

Porto, Livraria Magalhães e Moniz,

[358], seguir-se-ão em cada maté-

1917, pp. 22-23.

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24

Ratio Stud., Reg. Comm. Prof. Stud.

Inf., 7. Litaniae et devotio B. Virginis -7.

33

Rat. Stud. Regulae Professoris Phi-

losophiae, 7 (Philosophiae cursus non

44

77

Rat. Stud. Reg. Prof. Stud. Inf. 40.

(Punienti ratio).

minor triennio). 25

45

Exercícios, [313]: “Regras para de

alguma maneira sentir e conhecer

34

as várias moções que brotam na

Philosophiae, 1.

Rat. Stud., Regulae Professoris

46

alma: as boas para as aceitar e as más para as rejeitar”.

35

Rat. Stud., Regulae Professoris

Rat. Stud., Reg. Praef. Stud. Inf., 43,

44, 45, 46. Rat. Stud., Reg. Praef. Stud. Inf., 37.

(Censor seu praetor).

Philosophiae, 9. 26

27

Idem, ibidem, p. 24. Idem, ibidem, p. 25. Segundo o

autor, “são dignas de recordar-se, pela maior solenidade que revestiram, as festas da canonização de S. Inácio e S. Francisco Xavier, da canonização de S. Luís Gonzaga e S. Estanislau Kostka, a do recebimento feito a Filipe II de Portugal em 1619”. 28

Cf. Rat. Stud. Regulae Professoris

Rhetoricae, 5 (Exercitationes inter corrigendum). 29

Cf. Rat. Stud. Regulae Professoris

Rhetoricae, 2. (Divisio temporis). 30

Rat. Stud. Regulae Professoris Philo-

sophiae, 2 (Sequendus Aristoteles, sed quatenus). 31

Segundo o padre Francisco

Rodrigues, op. cit. p. 60, citando as Constituições, “as ciências são o meio e a teologia é o principal”. Para o autor, Letras, Filosofia e Ciências Naturais serviam de preparação para o estudo da teologia, principal obrigação dos trabalhos dos jesuí-

47 36

Francisco Rodrigues, op. cit., p. 57.

37

Rat. Stud. Regulae Communes

Omnibus Professoribus Superiorum Facultatem, 5. 38

Rat. Stud. Regulae Communes

Omnibus Professoribus Superiorum Facultatem,8. 39

Constituições [446].

40

Constituições [518]. É ainda refe-

rido nesta regra, que: “para alguém ser admitido à profissão, será conveniente que se tenha dado ao estudo da teologia por todo esse tempo, e que nela tenha feito bons progressos para glória de Deus Nosso Senhor. Como prova do seu aproveitamento deverá cada um, antes da profissão, defender teses de lógica, filosofia e teologia escolástica, diante de quatro examinadores designados para arguir e julgar com toda a verdade e sinceridade se, em seu sentir, ele atinge um nível satisfatório”.

F. Rodrigues, op. cit., p. 30. O autor

defende que não foi a Companhia que inventou os castigos na educação dos jovens, tendo sido Inácio de Loiola quem suavizou as rigorosas punições que viu certamente serem aplicadas no Colégio de Montaigu. 48

Constituições, P. IV, [395]. “Reco-

menda-se aqui somente que não falte a justa correcção aos de fora quando dela precisarem, mas nunca pelas mãos de algum da Companhia.” A Regra [397] precisa que: “para isto, se for possível haver um corrector que o haja. Caso contrário, encontre-se meio de impor os castigos, ou por um dos estudantes, ou de outra maneira apropriada”. 49

Francisco Rodrigues, A Formação

Intelectual do Jesuíta, p. 36. 50

Cf. M. Bertrán-Quera e outros,

La Ratio Studiorum de Los Jesuitas, Madrid, UPCM, 1986, p. 53. 51

Francisco Rodrigues, op. cit., p. 67.

41

Cf. Constituições [519].

52

Ratio Stud., Reg. Prof. Stud. Inf., 31.

42

Cf. Constituições [451].

53

Ibidem, 34.

encontrar desculpa, mas se não

43

Rat. Stud. Reg. Prof. Stud. Inf. 39

54

Rat. Stud., Reg. Prof. Rhet. 20 (Nos-

apresenta bons teólogos, não cum-

(Disciplinae cura) Disciplinam omnem

priu a sua missão de ensinar. É uma

nihil aeque continet atque observatio

sociedade religiosa, que tem por fim

regularum. Haec igitur praecipua sit

55

levar as almas a Deus”.

magistri cura, ut discipuli tum ea, Ratio

de la Compañía de Jesús, Madrid,

Stud., Reg. Praef. Stud. Inf. 38-41; Reg.

Coned, Comisión Nacional de Educa-

32

Prof. Stud. Inf. 39, 40.

ción S.J., 1986, pp. 52-53.

tas. “Se a Companhia de Jesus não criar insignes historiadores, físicos, astrónomos poder-se-lhes-á talvez

Cf. Idem, ibidem, p. 56.

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trorum exercitatio). Cf. Características de la educación

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The Irish clerical community in the University of Évora*

Texto: Thomas O’Connor National University of Ireland, Maynooth

T

he small Irish clerical community in the University of Évora, which flourished in the seventeenth and eighteenth centuries, was part of an Irish ecclesiastical network that stretched from Portugal to Poland and from the Low Countries to Rome. Ireland enjoyed long-standing trading links with Portugal and it may have been thanks to these that, from 1573, a school run by Irish priests for clerical students existed in Lisbon.1 About this time references to Irish students in Évora begin to appear. Roman sources record the presence of an Irish cleric, Michael Walter, in Évora in the 1570s.2 In 1579 an Irish student arrived in Spain from Évora, having been forced to abandon his studies there due to financial difficulties.3 In 1603 mention is made in Spanish sources of the dire financial straits of Irish students in the city.4 A little later William Malone SJ (1586-1656), the famous controversialist, began his theology studies in Évora, after a spell in Rome.5 Having concluded his studies in Coimbra, he returned to Dublin, before becoming rector of the Irish college in Rome (1637-42) and later superior of the Jesuit mission in Ireland. Malone was only one of a number of peripatetic Irish who moved between Ireland and the Continent, often through Jesuit networks. Indeed, between the Reformation and the French Revolution, the Irish, for a variety of political, economic and religious reasons proved inveterate travellers. Many joined formed foreign armies, others were active

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as merchants and some were political and religious refugees. From the second half of the sixteenth century groups of Irish students, many of them intended for the priesthood, evolved into small, informal communities in cities like Leuven, Paris and Lisbon. These emerged in response to the Tudor confiscations in Ireland, which had dismantled the largely informal medieval educational infrastructure of the Irish Catholic Church and made the establishment of Catholic seminaries, in line with Tridentine legislation, impossible.6 After 1550 Irish students began to turn up in small numbers in Leuven,7 and Rome. 8 In 1562 Richard Creagh, who was well-connected with the Jesuits, subsidised a number of Irish scholars in Rome 9 and over the following twenty years, a small number were put up in the German College, founded by St Ignatius of Loyola and Cardinal Giovanni Morone in 1553.10 The Jesuit interest in the Irish had been encouraged by the Scot, Robert Wauchope, when archbishop-elect of Armagh in the 1540s.11 In 1555 St Ignatius mentioned an Irish student of promise, probably David Wolfe.12 Shortly after his arrival in Ireland as papal legate, Wolfe, in 1561, sent three students to Rome for training.13 For a time in the 1560s, the Holy See considered the possibility of setting up seminaries and schools in Ireland. In 1564 Pius IV envisaged the establishment of a clerical formation network in Ireland, financed by the revenues of suppressed religious houses.14 Although there was some success in

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establishing grammar schools, the ambitious plans for a university fell through.15 Gregory XIII (1502-1585) allocated funds for an Irish seminary in Rome but the money was diverted to support the Second Desmond Rebellion (1579-83). The regular clergy fared better. Irish Franciscans,16 Dominicans17 Capuchins18 and Jesuits,19 thanks to access to continental houses, enjoyed educational advantages that were denied to the secular clergy.20 In general, the provision for the education of Irish secular clergy was piecemeal and uncoordinated until well after the accession of Elizabeth I in 1558. By the 1560s, changes in the domestic situation began to have repercussions on overseas Irish clerical communities and their English, Scots and Welsh counterparts. In England, the accession of Elizabeth and the dismantling of the Marian restoration led to an intellectual haemorrhage of over one hundred fellows and other senior members from Oxford University in the first decade of her reign.21 William Allen (1532-94) was one of these. In the belief that the restoration of the Old Church was only a matter of time, he made arrangements in 1568 to ensure a supply of suitable clergy for that eventuality, setting up a college in Douai in Spanish Flanders. Initially Allen appears to have viewed the Douai venture rather conservatively as an academic support for the restoration of traditional Catholicism. He did not intend it as an instrument of the Catholic reform or as part of an anti-protestant

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crusade. However, hardening government attitudes in England and contact with the Catholic reform milieu on the Continent tended to produce a new breed of English missionary clergy in the mould of Edmund Campion (154081) Robert Persons (1546-1610) and William Reynolds (c.1544-94).22 They were concerned over the implications of the royal supremacy and impatient with the conservative pastoral practices inherited from the Marian era. At this early stage they were very much under Jesuit influence. Allen himself eventually converted to the idea of England as a missionary land and thereafter Douai became a “missionary” college. While the models for clerical formation elaborated by Charles Borromeo (1538-84) and later Pierre de Bérulle (1575-1629) also shaped formation in Douai, the Jesuit influence was paramount until challenged and undermined in the 1610s.23 Some Irish students attended the English and Scots colleges in Douai.24 In the earl 1590s an Irish cleric called Christopher Cusack, from the diocese of Meath was in the town and may have been associated with the English or Scots colleges. According to a kinsman Cusack was a “zealous rather than learned guide”, “meanly languaged” and “unexperienced in foreign countries”.25 Despite these limitations, Cusack set up a small house for Irish students in Douai in 1594. He subsequently established three other houses in the region.26 This Flemish network of Irish student residences and

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* The names of Irish students in Évora reproduced in this article are drawn from a manuscript left with the author by the late Patricia O Connell. Her notes have been reproduced here, with an introduction and some additions by the author. In her notes Patricia O Connell thanked Fr Joaquim Lavajo for kindly allowing her access to a copy of an unpublished paper of his on the history of the University of Évora. The present author wishes to thank Maura O Connell, Patricia’s sister, for permission to use this material.

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Glasgow

IRELAND Dublin

Oxfor

Irish Student Communities Nantes Seculars

War, religious persecution and economic dislocation caused an outflow of Irish students from the 1540s. By the 1570s they were setting up their own hostels on the Continent. Later on these were linked to local universities. While some colleges could rely on local patrons, others led a hand-to-mouth existence. They trained priests, housed medical and law students, supported military migrants and acted as networking centres. Through them European ideas and fashions flowed back into Ireland.

1680

Bordeaux Seculars Cistercians

1603 1615

Santiago Seculars

1605

Valladolid Seculars Notes:

dates given refer to earliest evidence of student community’s existence Boundaries are those of 1648 Source: John J. Silke in a New History of ireland iii (oxford, 1976), p. 616, with revisions

1592

PORTUGAL

Alcalá

Salamanca Seculars

1592

Lisbon Seculars Dominicans Dominican Nuns

Seculars

Madrid

1590 1615 1639

Seculars

1629

SPAIN

Évora Seculars

infografia cedida pelo autor do texto

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1593

Seville Seculars

1612

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1579


St Andrews

lasgow

Edinburgh Antwerp Dunkirk

Seculars

Nieuport

Poor Clare nuns 1626

Capuchins

1627

Leuven

Ypres

Franciscans OFM 1607 Seculars 1624 Dominicans 1624

Benedictine nuns 1682

ENGLAND

Tournai

Lille Seculars

1600

Seculars

1610

1600

Wieluล

Douai

Cambridge

POLAND

Franciscans OFM 1645

Seculars 1594 Franciscans OFM 1607 Cistercians 1612

Oxford Cologne Capuchins

Charleville

Rouen Seculars

Capuchins

1610

1615

Sedan Capuchins

Franciscans OFM 1697

Bar-sur-Aube

1680

Franciscans OFM 1629

Boulay

Seculars 1578 Franciscans OFM 1617

lars

Prague

1639

Paris

Nantes

1611

Capuchins

1685

HOLY ROMAN EMPIRE

Wassy Capuchins

1685

FRANCE SWITZERLAND Poitiers Jesuits

1674

Bordeaux

Seculars Cistercians

1603 1615

NORTHERN ITALIAN STATES

Toulouse Seculars

PAPAL STATES

1603

Capranica Franciscans OFM 1656

Alcalรก

culars

1579

Rome Franciscans OFM Seculars Augustinians Dominicans

1625 1627 1656 1677

Valencia Seculars

1672

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seminaries later came to dominate the Irish student community, which had existed in Paris since the 1570s. In Portugal and Spain, a network of Irish student residences and colleges developed from the 1590s. The Irish student communities in the Iberian Peninsula operated as part of the geo-political strategy of the Hapsburg monarquia. Royal policy ensured that the network was almost entirely under the control of the Irish Jesuits and their Spanish and Portuguese confrères. The remote roots of the Portuguese and Spanish colleges were in the clerical entourages of those Irish prelates27 who, from the late 1570s, gravitated towards Lisbon, Santiago de Compostela and elsewhere to benefit directly from the assistance of the Spanish monarchy.28 One of the largest Irish episcopal student retinues formed around Thomas Strong, bishop of Ossory. He arrived in Santiago de Compostela in 1582, accompanied by his nephew, Thomas White.29 The small group of Irish students that formed around them 30 lived off charity and attended the local university. They were assisted by the local Jesuits, who, at this stage, were attempting to establish a presence in the city. As in Flanders, the inspiration for setting up an organised Irish student community seems to have come from English contemporaries. In 1589, thanks to the lobbying of the Douaieducated Jesuit Robert Persons a college for English students, St Alban’s, had been endowed by Philip II in Valladolid.31 As was the case in Douai, it appears that some Irish students were associated with this establishment. 32 In 1592 White presented an Irish student group to Philip II on the occasion of the latter’s visit to Valladolid. His plan was to secure a foundation, like St Alban’s, for his students.33 Philip II did make provision for a grant of 500 ducats a year, but considered Valladolid unsuitable, as the English were already established there.34 He ordered the Irish to Salamanca and requested that the Jesuits take charge of the community. From the beginning the new community in Salamanca operated under the authority of the

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local Jesuit college with its day-to-day running in the hands of an Irish vice rector. The Jesuits also exercised a decisive influence on Irish student communities in Portugal. In Lisbon an organised community of Irish clerics had emerged by 1590, under the patronage of Garcia de Mello de Silva (d. 1600).35 From the beginning this project had Jesuit backing and was initially housed, it seems, in the Jesuit São Roque. John Howling, the Irish Jesuit played an important role at this time, aided by Pedro Fonseca SJ.36 In May 1592 Archbishop Edmund MacGauren of Armagh 37 celebrated Mass to inaugurate the establishment. The event was boycotted by the bishop of Killaloe, Francis Cornelius Ryan OFM,38 an indication, possibly, of Franciscan disquiet concerning this Jesuitdominated college venture.39 Until 1605, the new college was run by a board of directors, elected from a confraternity of benefactors, many of them noblemen and some Jesuits, administering funds donated in alms and by a royal grant. In that year, however, Philip III formally transferred the government of the college to the Jesuits, the rectorship and main offices remaining in Irish Jesuit hands.40 The students initially attended class in the Jesuit college of St Anthony.41 Later, thanks to the generosity of Don Antonio Fernandes Ximenes, college chairs in moral theology and controversy were later established.42 Due to the lack of a University in Lisbon at this time, the local Jesuits sent some of their best students to do degrees (bacharelat, mestre and doutorado) in the Jesuit University at Évora, founded in 1559.43 A good number of the Irish students at Évora identified in this article had already spent time in the Irish college in Lisbon.44 As students for the secular priesthood, or as already ordained secular priests, Irish students seem to have been associated while in Évora with the Colégio da Purificação, which was dedicated to the education of secular clergy and their names appears in college records. This college was originally intended to cater for

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fifty students but financial difficulties cut intake to about half that number. There was provision for two foreigners and these were often Irish. From the records examined it is not possible to establish with certainty the existence of an officially recognised Irish college in Évora but there is no doubt that a small Irish community, associated with the Jesuits, did subsist there, at least for certain periods in the seventeenth and eighteenth century. When Arthur William Costigan wrote to his brother from Villa Viçoza in 1778, he recounted his encounter in Évora with the Irish priest Dr Butler, who described himself as rector of the Irish college in the city. Interestingly, Costigan says that the Irish college had been founded by Peter II (1648-1706) for the ‘education of young students from Ireland who should afterwards return as missionaries to support the good old cause in their own country’.45 Peter was the youngest son of João IV and acted as regent for his brother from 1668 before becoming king in his own right in 1683, following his brother’s death. If Peter II did found the Irish college it may have been after 1683. In any case, Butler informed Costigan that the college’s rents had been “under various pretexts” alienated by the “late administration” (perhaps a reference to Pombal’s reforms and his government’s expulsion of the Jesuits in 1759) and that no students had been received there since 1762. The rector lived off a meagre income in the college building which, he observed, was now falling into ruin, and derived some extra sustenance from mass stipends. His penury did not prevent him maintaining a tolerable wine cellar, which, in the letter writer’s opinion, housed vintages far superior to anything available in the local inns, largely because Butler’s wines were elaborated under his own strict instructions! In his letter Costigan has little good to say of Portuguese viticulture. The university records consulted for this article preserve the names of fifty-nine Irish students, who pursued their studies in Évora, under Jesuit supervision, mostly in the late seventeenth and early eighteenth centuries, with peaks in

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the 1640s and 1650s.46 The high social status of some of these students suggests that Évora operated like a theological finishing schools for individuals destined for important ecclesiastical office in Ireland. The most important of these was John Burke (João de Burgo), who was a student in Évora from 1621 to 1625. He was a member of the famous de Burgo family of Connaught and later became bishop of Clonfert (1641-47). He was subsequently elevated to the see of Tuam in 1647. In the late 1640s he played a leading role in the political and ecclesiastical crisis that engulfed Ireland prior to and during the Cromwellian wars. He spent most of the remainder of his minister in exile, returning to Ireland shortly before his death in 1666. Some other bishops feature in the Évora student lists including Eustace Browne, bishop of Killaloe 1713-1724 and John Verdon, bishop of Ferns 1709-1728. Another well-known Évora alumnus was Andrew O’Brien, subsequently chaplain to Queen Catherine of Braganza. In the following list Irish names appearing in the university archives of Évora are listed. The names are reproduced as in the original entry and in some cases more familiar Englishor Irish-language equivalents are suggested. The date coming immediately after the names is that of the entry in the university registers. It will be important to complete the examination of the archives begun by Patricia O Connell in order to form a full picture of the extent of the Irish presence in Évora during the seventeenth and eighteenth centuries. It will also be useful to cross-reference the Évora student lists with those of Lisbon and the Spanish colleges and to compare these student lists for the Society of Jesus. Also, some historical detective work will be necessary to discover the exact location of the Irish community and college in Évora and to establish if and when it was officially established and what became of it subsequently. This work would be an important contribution to the history both of the Irish colleges in Europe and to the University of Évora.

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A list of Irish students taken from the university records of Évora

Thadeo Bernard (O’Brien) 1665.

João Cherit/Sherkin (John Sherrard/Sherkin/ Skerret) 1700-11.

Miguel Bluet (Michael Bluet 1) 1665. Patricio Colfer (Patrick Colfer) 1665. Miguel Bluit (Michael Bluet 2) 1717. A Michael Bluett was ordained in St Patrick’s Lisbon on 10 February 1709.47 Antonio Broder (Anthony Broder) 1694. Eustaquio Bruno (Eustace Browne) 1674. Browne was awarded a doctorate in Évora on 31 December 1681. He also studied in Lisbon and was ordained in 1672. He was parish priest of Emly in the diocese of Cashel and his name appears in the 1704 registration of priests. Later, he was bishop of Killaloe, 1713-24.48 Cormacho Calacano (Cormac Callaghan) 1617-18. He was the son of Cormac Caliano and Ursula Nigreli and attended the Irish college, Lisbon, where he was ordained in 1617.49

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Diogo Cusack (James Cusack) 1615 (or 1680?). There was a James Cusack SJ in St Patrick’s in Lisbon, who was ordained in 1692 and said foundation masses in the college until 1694. He received a licence in Évora.51 Miguel Cusaco (Michael Cusack) 1667. Daniel Daly (O’Daly) 1653-5. Jacobo Daly (James Daly) 1712. Alexandre Daniel (Alexander Daniel or Donnell) 1709. Miguel Doherty (Michael Doherty) 1718. João Estud (John Stuart?) 1716.

Thadeo Carlos (Thady Carlos) 1652-6.

Diogo Eustace (James Eustace) 1694.

Malachias Carrano (Malachy Carron) 1639-49. He was examined for admission to holy orders in 1638.50

Cornelio Falonio (Cornelius Fallon) 1634-7.

Bernardo Carty (Bernard Carthy) 1709.

Miguel Ferreira (Michael Smith or Ferrar) 1680-6. He took his licence and masters in philosophy in Évora in 1686.52

Andre Cassin (Andrew Cassin) 1665.

Guilhelmo Fineo (William Finn/Finan) 1661.

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Roberto Fosteiro (Robert foster/Forestal) 1674. Christorião Franh (Christopher French) 1716. Patricio Furlong (Patrick Furlong) 1665. Eugenio Galaffi/Galesiffi (Eugene Gillespie?) 1685.

Guillermo Morfeo (William Murphy) 1694. He defended a thesis in theology in St Patrick’s Lisbon in May 1693.53 Andre O’Brien (Andrew O’Brien) 1680. He was later chaplain to Queen Catherine of Braganza, wife of King Charles II of England, Scotland and Ireland.

Terencio Gannon (Terence Gannon) 1665.

Guilhelmo João O’Connor (William John O’Connor) 1647-49.

Guelhermo Guegan (William Geoghegan) 1694.

Pedro Pueros (Peter Power) 1616.

Miguel Hawquet (Michael Hackett) 1627-35.

Diogo Redmond (James Redmond) 1665.

Joseph Harges (Joseph Hayes?) 1717.

Raimondo da Rocha (Raymond Roche/ Carrick) 1625-26.

Patricio Jois (Patrick Joyce) 1704. Edmundo Quelli (Edmund Kelly) 1650-1. João Kely (John Kelly) 1665. João Kemano/Quenano (John Comyn/Cummin, Keenan?) 1616-17. Ugo MacDaniel (Hugh MacDaniel) 1718. Guillermo MacNally (William MacNally) 1665. Ugo Maguer (Hugh Maguire) 1719. Miguel Malachias (Michael Malachy) 1703 and 1710.

Patricio de Saa (Patrick Shea) 1665. João Sinnott (John Sinnott) 1665. Patricio Seigmat (?) 1703. Diogo Escaret (James Skerrit) 1619-23. He received orders from Archbishop David Kearney of Cashel in 1621.54 Thomas Tobias (Thomas Tobin?) 1707-08. Olivero de Valle (Oliver Wall?) 1643-47. Patriocio Valves/Valloes/Valloiz (Patrick Wallace/Walsh?) 1644-52.

Diogo Marin (James Marron) 1718.

João Verdon (John Verdon 1680-87 [?]). He was bishop of Ferns 1709-28. Verdon was ordained in Lisbon in 1676 and had enjoyed a distinguished career at Évora, where he was conferred with a doctorate cum duplici laude, on 19 January 1687.55

Christorio Margant (Chiostpher Morgan?) 1703.

Nicolao Vellois (Nicholas Walsh) 1680 or 1685.

João Meli (John Mally/Mealy) 1708 (?). Bernardo Maran (Bernard Marron) 1708-12 (?).

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notes

1 Alphons Bellesheim, Geschichte der Kattholischen Kirche in Irland (3 vols, Mainz, 1890), ii, 216. 2 Enrique Carcía Hernán, Irlanda y el rey prudente, (2 vols, Madrid, 2003), ii, 115. On p. 120 the same author give 1593 as the date of the foundation of an Irish college in Évora without supporting evidence. 3 Karin Schüller, Die Beziehungen zwischen Spanien und Irland im 16. und 17 Jahrhundert (Müunster, 1999), p. 150. 4 Archivo General de Simancas (AGS), Consejo y juntas de Hacienda (CJH), leg. 429, carp. 14, 15.9.1603, cited in Schüller, op. cit., p. 179. 5 Francis Finegan SJ, ‘Irish rectors at Seville, 1619-1687’ in Irish Ecclesiastical Record, 5th series, cvi (July-Dec., 1966), pp 56-7. 6 Colm Lennon, ‘Education and religious identity in early modern Ireland’ in Paedagogica Historica, supplementary series v (Ghent, 1999), pp 57-75; Colm Lennon and Ciaran Diamond, ‘The ministry of the Church of Ireland, 1536-1636’ in T.C. Barnard and W.G. Neely (eds), The Clergy of the Church of Ireland, 10002000: messengers, watchmen and stewards (Dublin, 2006), pp 44-58; Henry A. Jeffries, ‘Parishes and pastoral care in the early Tudor era’ in Elizabeth FitzPatrick and Raymond Gillespie (eds), The parish in medieval and early modern Ireland (Dublin, 2006), pp 211-227. 7 Jeroen Nilis, ‘Irish students at Leuven’ in Archivium Hibernicum, lx (2006/7), pp 1-304; Brendan Jennings, ‘Irish students in the university of Louvain’ in Sylvester O’Brien (ed.), Measgra i gcuimhne Michíl Ó Cléirigh (Dublin, 1944), pp

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75ff; Joseph P. Spellman, ‘The Irish in Belgium’ in Irish Ecclesiastical Record, 3rd series, vi (1885), pp 791-801; 3rd

17 Thomas S. Flynn, The Irish Dominicans 1536-1641(Dublin, 1993), pp 189-230.

series, vii (1886), pp 350-57; pp 43744; pp 641-48; 3rd series vii (1886), pp 732-42, pp 1100-06.

18 F.X. Martin, Friar Nugent (Rome, 1962), passim.

8 See Hugh Fenning, ‘Irishmen ordained at Rome 1572-1697’ in Arch. Hib., lix (2005), pp 1-36.

19 Thomas Morrissey, ‘Some Jesuit Contributions to Irish Education’ PhD (NUI, 1975).

9 See Colm Lennon, Archbishop Richard Creagh, p. 50, note 10, citing Creagh’s statement to Cecil, 23 Mar. 1565, (The National Archive [London], PRO, S.P. 63/12/60).

20 This was also the case of the canons regulars and the monastic orders, especially the Cistercians. See Colmcille Ó Conbhuidhe Studies in Irish Cistercian history (Dublin, 1998), pp 1-47.

10 Alphons Bellesheim, Geschichte der Kattholischen Kirche in Irland (3 vols, Mainz, 1890), ii, 714-54.

21 John Bossy, The English Catholic Community 1570-1850 (London, 1975), p. 12.

11 Benignus Millett, ‘The pastoral zeal of Robert Wauchope’ in Seanchas Ardmhacha, ii, 1 (1956), pp 32-60; Martin Coen, ‘Rome’s Irish college under the Franciscans’ in Bethlehem, viii (Dublin, 1959), pp 3341, p. 33; Edmund Ignatius Hogan, Ibernia Ignatiana, (Dublin, 1880), pp 4, 16.

22 Bossy, English Catholic Community, p. 15.

12 Ignatius to Cardinal Pole, Rome, 24 Jan. 1555 (Hogan, Ibernia Ignatiana, p. iv). 13 Hogan, Ibernia Ignatiana, p. 12. 14 For faculties for erecting a pontifical university in Ireland (1564) see P. F. Moran (ed.) Spicilegium Ossoriense, (3 vols, Dublin, 1874-84), i, 32; Hogan, Ibernia Ignatiana, p. 14. 15 Colm Lennon, ‘Education and religious identity in early-modern Ireland’, pp 64-5. 16 Benignus Millett ‘Irish Franciscans and education’ in Seanchas Ard Mhacha, xviii, 2, (2001), p. 19.

23 Bossy, English Catholic Community, pp 27-9. Both encouraged the hierarchical ordering of the Church. 24 Between 1575 and 1588 over a dozen Irish names appear in the records of the English College, Douai. See T. F. Knox (ed.), The First and Second diaries of the English college, Douay (London, 1878), passim; J. Brady, ‘Irish colleges in Europe and the Counter-Reformation’ in Proceedings of the Irish Catholic Historical Committee (1957), pp 2-3. 25 Henry Fitzsimon, ‘On the Masse’ in Irish Ecclesiastical Record, lx, (18723), pp 262-3 26 See John Brady, ‘Father Christopher Cusack’ in Sylvester O’Sullivan (ed.), Measgra Mhichíl Uí Chéirigh (Dublin, 194), p. 99. 27 Enrique García Hernán, ‘Obispos irlandeses y la Monarquía Hispánica

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en el siglo xvi’ in M.B. Villar García and P. Pezzi Cristóbal (eds) Los extranjeros en la Espana (2 vols, Málaga, 2003), i, 275-80. 28 Javier Burrieza Sánchez, ‘Escuelas de sacerdotes y mártires: los colegios del exilio católico’ in Enrique García Hernán et al (eds) Irlanda y la monarquía hispánica: Kinsale 1601-2001 (Madrid, 2002), p. 51.

Guerre, reg. 12, p. 9, cited in Arch. Hib., xii (1946), p. 71). 38 John Howling to Patrick Sinnott, Lisbon, 21 May 1592 cited in M. Gonçalves da Costa (ed.), Fontes inéditas Portuguesas para a história de Irlanda (Braga, 1981), p. 205. Ryan had been resident in the city since 1582, after his involvement in the Desmond rebellion. See Bellesheim, Geschichte, ii, pp 709-710

29 Thomas Morrissey, ‘The Irish student diaspora in the sixteenth century and the early years of the Irish college at Salamanca’ in Recusant History, xiv (1977-8), pp 242-60 at p. 246.

39 These differences did not hamper the college’s progress: in 1598 it was claimed that it housed as many as sixty priests and students. See Hogan, Ibernia Ignatiana, p. 57.

30 Hogan, Ibernia Ignatiana, p. 31.

40 Hogan, Ibernia Ignatiana, p. 177.

31 See E. Henson (ed.), ‘Registers of the English college at Valladolid 1589-1862’ in Catholic Record Society, xxx (London, 1930), pp xiv-xv.

41 For an ordination list for the college see Hugh Fenning, ‘Irishmen ordained at Lisbon, 1587-1850’ in Collectanea Hibernica, xxxi-xxxii, (1989-90), pp 103-7.

32 Óscar Recio Morales, Irlanda en Alcalá (Alcalá, 2004), p. 52.

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45 Arthur William Costigan, Sketches of society and manners in Portugal in a series of letters from Arthur William Costigan Esq., late a captain of the Irish Brigade in the service of Spain to his brother in London, (2 vols, London, 1778), 1, 122-3. 46 Patricia O Connell consulted, in the Biblioteca de Évora, the ‘Livro das provas dos cursos e casos na universidade de Évora desde 1618 até 1685’ (CXXX 1-6). This includes lists from 1618-56. She also searched CO’D CVIII/1-20; CVIII/2-6; CVIII/1-35; CXIV/2-3; CXXX/1-3; CXXX/l-4. She consulted some other manuscript sources dating up to 1718. 47 O Connell, The Irish college at Lisbon, p. 60 48 Ignatius Murphy The diocese of Killaloe in the eighteenth century (Dublin, 1991, p. 46.

42 O Connell, Irish College at Lisbon, pp 45-6.

49 O Connell, The Irish college at Lisbon, p. 62.

43 John Silke, in his ‘The Irish abroad, 1534-1691’ in T.W. Moody, F.X. Martin and F.J. Byrne (eds), New History of Ireland III: early modern Ireland 1534-1691(Oxford, 1976), p. 618 attributes the foundation of the Irish college at Évora to the Cardinal Infante Dom Henrique (1512-1580). The Cardinal was, in fact, the founder of what became the Jesuit college (1559). The Irish college was a later foundation, due, it would seem, to Peter II.

50 Da Costa, Fontes inéditas, p. 411.

33 Hogan, Ibernia Ignatiana, p. 31. 34 M. Henchy, ‘The Irish college at Salamanca’ in Studies, lxx (1981), pp 220-27. 35 For a recent history of the Irish college in Lisbon, see Patricia O Connell, The Irish college at Lisbon 1590-1834 (Dublin, 2001). 36 Hogan, Ibernia Ignatiana, p. 57; O Connell, The Irish College at Lisbon, pp 22-5. 37 He may have been in Iberia since 1589. (Passport for Spain for Edmund MacGauran, archbishop of Armagh, Brussels, 7 May 1589 (Archives Générales du Royaume, Brussels, secrétairerie d’État et de

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51 Da Costa, p. 414; O Connell, p. 67. 52 Da Costa, p. 412. 53 Da Costa, p. 414. 54 Da Costa, p. 410. 55 O Connell, The Irish college at Lisbon, p. 50.

44 Patricia O Connell, ‘Irish students at the university of Évora 1618-1718’ in Seanchas Ardmhacha: Journal of the Armagh Diocesan Historical Society, xx, 1 (2004), pp 67-70.

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A Missão dos Jesuítas Eborenses no Ultramar

Texto: Maria de Deus Manso

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Bula Regimini Militantis Eclesiae de 27 de Fevereiro de 1540 assinala a criação oficial da Sociedade ou Companhia de Jesus, organizando em ordem canónica tanto o pensamento religioso como a acção espiritual comum reunindo, assim, um activo grupo de alunos castelhanos, navarros, saboianos, bascos e portugueses, estudantes em Paris no Colégio de Santa Bárbara. A este grupo organizado em torno de Inácio de Loyola se deve a investigação de uma ratio para o estudo e a acção católicas, depois vertida em corpus organizado de ordenamento religioso e espiritual apostado na elevação de um novo modelo evangelizante. Encorajados pelo desejo da peregrinação a Jerusalém, unidos pela propagação da Fé entre os “infiéis”, associados também pela necessidade de polémica com as várias confissões do Protestantismo, encaravam a urgência fundamental de ensinar exemplarmente todos aqueles que não estavam verdadeiramente instruídos na doutrina cristã. Mais importante ainda, a fundação canónica da nova Companhia religiosa acabaria por irradiar uma ampla evangelização de sociedades não-europeias, encontrando precisamente nos espaços ultramarinos frequentados pelas conquistas e tratos ibéricos uma das grandes polarizações e novidades do seu carisma e ordem religiosos. Assim nasceria essa ideia de missão que, subjacente ao impulso evangélico das origens da Companhia, se começou por organizar em tor-

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no de uma dinâmica concepção de “conquista espiritual” com que se procurava converter à fidelidade da Igreja de Roma todo aquele que “simplesmente” ignorava ou se havia afastado das doutrinas católicas. A vocação da Ordem torna-se desde finais de Quinhentos fundamentalmente missionária, multiplicando-se por uma frenética actividade de pregação e evangelização dirigida tanto para o coração, sobretudo rural, dos territórios europeus quanto para as culturas e populações das Américas e Ásias ibéricas que se pensava dominadas pela superstição, pela ignorância e pela idolatria. No interior do continente europeu, assim como nos diferentes territórios de circulação ultramarina, as primeiras gerações de jesuítas, largamente inspiradas na acção evangélica de S. Francisco Xavier, tornam-se cada vez mais viajantes missionários: “sont donc composées de voyageurs, circulant pauperum more. L’unité profonde entre voyage et mission se marques d’ailleurs dans le vocabulaire même, le terme missio étant utilisé pour désigner toute forme de voyage».1 A missão tornou-se num distintivo fundamental da Ordem desde o seu início. Esta foi um elemento indispensável da sua acção e factor basilar da aceitação da ordem colonial. Chegaram a regiões afastadas, entre outros lugares Brasil, Índia, Indonésia, Malásia, Japão e China.2 A missão passou a ser a obra por excelência à qual os jesuítas se deveriam consagrar em

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exclusividade. Mas, para ser eficaz, deveria instruir-se conforme preceitos precisos. Tratava-se de a dispersar pelo Mundo e adaptá-la às condições locais. As missões foram uma ferramenta de aplicação das resoluções de Trento. Ensinar e fazer praticar os sacramentos, eram um dos princípios orientadores dos missionários. Cientes de que era necessário conduzir a formação dos padres e das elites, edificaram colégios e universidades.3 A instrução religiosa tornou-se essencial. Com este desígnio foram lavrados catecismos e outras edições. O ensino e as pregações tornar-se-ão dois dos principais mecanismos de acção.

II A cidade de Évora soma nas suas memórias com uma vasta ligação ao passado ultramarino. Aqui morou a corte (1531-1536) e foram muitos os que daqui partiram com o plano de assentar a colonização portuguesa. Ao folhearmos os nobiliários, perscrutamos figuras que aqui nasceram ou que por aqui passaram: o 1º Governador de Ceuta, D. Pedro de Meneses, Fr. João dos Santos, dominicano, autor da Etiópia Oriental, entre muitos outros. A cidade viu no acontecer da Idade Média firmarem-se as distintas Ordens religiosas, às quais se juntou, na Idade Moderna, a Companhia de Jesus, tendo lhe sido confiado o governo da Universidade de Évora de 1559 a 1759. A Universidade recebeu mestres e preparou discípulos que irão assinalar a história universal 4. Para além da Teologia, da Filosofia e das Humanidades, a Universidade de Évora elegeu também um centro de expressiva propagação missionária. Das suas cátedras e classes saíram muitos professores e estudantes jesuítas, que demandaram pelas missões do Brasil, de África e do Oriente. Conforme as palavras do Padre António Franco, a Segunda Capela do Noviciado, consagrada a Nossa Senhora da Modéstia, tinha peças trazidas ou ligadas a padres missionários:

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um retábulo feito com doações deixadas em testamento pelo P. Inácio Gago, depois Inácio de Almeida, que faleceu no Malabar. Também descreve diversos nichos com imagens e memórias pias vindas das missões: “No cubículo do Padre Mestre disse-nos estarem algumas memórias pias, como são um copo de unicórnio, por onde bebia o P. José de Anchieta, um livrinho de doutrina cristã em língua brasílica, escrito por sua letra, um breviário do P. Bento Fernandes, natural de Borba, mártir do Japão, umas tamancas, usada pelo P. Francisco Laynes, Bispo de Meliapor, algumas cartas de mártires da Companhia e diversas relíquias de Xavier e outros santos das missões”.5 Sustentado no conselho de Diogo de Gouveia (1471-1557), considerando os jesuítas “os mais autos pera converter toda a Índia” 6, D. João III parece ter visto nestes religiosos uma possibilidade de renovação da evangelização das terras do Oriente7. Diogo de Gouveia soubera que no Malabar se tinham convertido ao Cristianismo mais de 60 000 Paravás 8 que exigia preparar e ajustar devotamente,9 um trabalho maior em que os jesuítas poderiam ser os únicos capazes de cuidar pela fé cristã destas muitas gentes asiáticas convertidas. O surto de evangelização dos lugares de circulação política e comercial exteriores à Europa fortaleceu o forte princípio unificador do cujus regio, illius religio, fazendo com que o Estado e a Igreja se unissem. Os missionários eborenses ao serviço do Padroado Português repartiram-se pelos diferentes continentes. A Universidade foi criada numa altura em que as missões do Oriente recebiam um forte cuidado do monarca luso, por isso, a universidade depressa se congregou à vontade e foi nas missões da Ásia que mais fervorosamente se diferençou 10. De uma forma geral, o zelo missionário de Portugal foi maioritariamente direccionado para as províncias do Oriente — Índia e Japão. Foi de Évora que saiu o primeiro bispo do Japão, Pedro Martins11 e mais tarde Luís de Cerqueira também foi nomeado bispo. Entre outros des-

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tacamos Nicolau Pimenta, Visitador da Índia; Pedro Martins leu na Universidade um curso completo de Filosofia, de 1561 a 1565, exerceu o cargo de Propósito da Casa Professa de Goa e, depois, foi Provincial. Foi eleito Bispo do Japão e foi o primeiro bispo que aqui entrou. Outros nomes aparecem ligados ao ensino: Francisco Dias pregador na Casa Professa de Goa e Lente de Escritura no Colégio de S. Paulo; Manuel de Albuquerque que trabalhou na cristandade do sul da Índia; no Colégio de Baçaim e em Salcete; António de Magalhães foi professor de Teologia no Colégio de S. Paulo; Francisco Ferreira em Goa leu Teologia Moral e Especulativa, foi Reitor da casa do Noviciado e do Colégio de S. Paulo Novo e Propósito da Casa Professa; Miguel Cardoso foi professor de Teologia Especulativa no Colégio de Goa e de Moral no de Rachol. Também esteve na missão do Maisur, no sul da Índia. Não aceitou o cargo de Reitor do Colégio de Rachol; António Fernandes foi Superior da Casa de Chaul, perfeito espiritual do Colégio de S. Paulo e Propósito da Casa Professa de Goa; Francisco da Veiga foi pregador em Goa, Reitor do Colégio de S. Paulo e Propósito da Casa Professa; Manuel Rodrigues esteve nas missões do Oriente assim como Pedro Freire em Goa e Madagáscar e António de Proença também em Goa e Ceilão. Paulo Oliveira nasceu em Chaul (Costa Ocidental da Índia), formou-se em Évora, voltou ao Oriente, tendo-se ocupado dos ministérios apostólicos na Casa Professa de Goa, no Colégio de Taná e nas residências de Salcete e Baçaim; Inacio Gago, depois Inácio de Almeida, missionou e morreu no Malabar; Domingos Pinheiro missionário na China ensinou retórica e humanidades. A maioria dos jesuítas ao serviço do Padroado Português eram de origem portuguesa, facto que prova que era a coroa portuguesa quem financiava e controlava o envio de missionários para o Império. As autoridades portuguesas desconfiavam dos missionários de outras nacionalidades europeias, sempre suspeitos de serem agentes duplos a soldo de sua nação de origem, podendo colocar em causa a hegemo-

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nia de Portugal no Império, mesmo depois da união ibérica a situação mantém-se 13. No que concerne à análise das dioceses portuguesas de origem, permite-nos perceber quais os grandes centros de propagação missionária da Província de Portugal. Tomando como exemplo os jesuítas que partiam para o Brasil, provinham, maioritariamente, de Braga, Coimbra, Évora e Lisboa. Embora os jesuítas portugueses do Brasil originários de Lisboa fossem em maioria, Évora era um centro de recrutamento dos jesuítas para o Brasil, mais importante do que Coimbra, de facto, houve alguns superiores da Província do Brasil originários de Évora: Fernão Cardim e Pero Rodriguez, o que pode supor uma rede familiar, no caso da família Cardim e de amizade 14. Como Visitadores foram enviados: Cristóvão de Gouveia foi Visitador do Brasil, Manuel de Lima 15; Pedro de Moura; Antão Gonçalves 16. Luís Lopes foi secretário do Visitador Pedro de Moura; Marçal Beliarte governou a Província quase oito anos; Francisco Botelho foi para o Brasil em 1692 e confiaram-lhe, no Colégio da Baía, a primeira cátedra de Teologia Especulativa; Frutuoso Correia foi nomeado professor de Teologia no Colégio do Maranhão; Diogo Soares foi encarregue de fazer os mapas daquele estado e João Cortês administrou o engenho de Santa Ana dos Ilhéus. As missões nas regiões de África no período moderno não tiveram o mesmo significado do Oriente e do Brasil. No entanto, foi da Universidade de Évora que partiram João da Rocha e Afonso Mendes como Patriarcas da Etiópia. Outros missionários fazem parte do rol dos enviados: Diogo Gomes 17 foi em 1547 para o Congo, regressou a Évora e voltou; Jorge Pereira embarcou para Angola em 1584 e aí morreu. Residia de ordinário em Luanda, fez diversas incursões pelo sertão, esteve no Congo e por diversas vezes em Massangano. Fez uma memória propondo que os jesuítas abandonassem aquela Província, pelas dificuldades religiosas, políticas, climáticas e morais que tornavam quase estéreis os seus trabalhos; João Delgado esteve nas missões de Cabo Verde e Guiné;

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Manuel Soares ensinou Latim no Colégio de Luanda até 1629 ou 1630; Manuel Correia nasceu em Luanda em 1636 e em Évora estudou Filosofia e Teologia. Apenas voltou de visita a Luanda, tendo regressado a Portugal; Manuel Pinheiro ensinou Latim em Luanda 18.

III Uma das marcas distintivas da Companhia de Jesus foi a importância dada ao ensino, à pregação e à preocupação pelo conhecimento das culturas locais — pelo menos, nos primeiros anos da sua criação. Das missões chegavam as cartas ânuas que serviam para divulgar e preparar os que para aí partiam. Muito dos conteúdos eram seleccionados e publicados, constituindo um momento de propaganda da Ordem e da Igreja Católica. Um dos jesuítas que mais se destacou na difusão destas matérias foi Fernão Guerreiro que escreveu 5 volumes das Relações Anuais das coisas que fizeram os padres da Companhia de Jesus nas suas Missões do Oriente, da África e Brasil nos anos de 1600 a 1609. Pois, nada nas missões era deixado ao acaso e cada um dos missionários era colocado de acordo com os seus talentos, as suas capacidades e as suas competências 19. A Portugal chegavam as notícias e foram muitos os que de Évora nos deixaram esse registo. Do Oriente: Álvaro Semedo, de Niza, missionário na China, para além das Cartas Anuas, escritas de Nanquim, deixou uma obra notável História do Império da China. Esta obra foi traduzida para diversas línguas europeias e compôs também documentos linguísticos, dois Dicionários: Lusitano-Sínico e Sínico-Lusitano; António Francisco Cardim, de Viana do Alentejo, foi aqui noviço, compôs um catecismo em siamês e deixou várias outras obras que retratam costumes, paisagens e acontecimentos. Vindo da Índia imprimiu em Latim Vulgar, com estampas, o Ramalhete dos Mártires do Japão; O Martírio dos quatro Embaixadores Portugueses e os de sua

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Companhia no Japão e um catálogo geral de todos os Mártires de Japão; Diogo Antunes, do Crato, foi para Macau e aqui morreu. Escreveu as Ânuas da China de 1603; Francisco Barreto foi para a Índia, vindo a Roma imprimiu em italiano Das Missões do Malabar; Gabriel passou à Índia, morreu em Macau e escreveu Ânuas de Japão dos anos 1603, 1613; Luís de Cerqueira, de Alvito, Bispo do Japão, onde morreu a 16 de Fevereiro de 1614, escreveu sobre os progressos daquela cristandade e um manual de casos de consciência e instruções dos Sacramentos; Luís Fernandes passou à Índia e escreveu as Ânuas das Malucas de 1603; Manuel Dias de Alpalhão escreveu duas cartas ânuas das Cristandades da China de 1618, 1625 e um seu sobrinho, Manuel Dias, acabou na jornada ao Reino do Tibete e escreveu um tratado dos cometas por ocasião dum cometa no ano de 1618; Manuel Martins morreu no Malabar e escreveu para os cristãos do Malabar alguns 10 tratados da Religião Cristã e Doutrina; Nicolau Pimenta foi como Visitador dos da Companhia da Índia e escreveu duas relações das missões da Índia; Rodrigo de Figueira morreu na China, a 9 de Outubro e verteu na língua sínica os livros de Céus de Aristóteles. Compôs na mesma língua dois tomos de orações e quatro livros de mistérios da fé; Sebastião Barreto morreu em Goa e escreveu Ânuas da Província de Goa; Sebastião Gonçalves passou à Índia e aqui compôs três tomos da História da Companhia da Índia; Valentim de Carvalho morreu em Goa em 1631, onde escreveu o suplemento das ânuas do Japão em 1600, impressas em Roma; Jerónimo Rodrigues, Visitador da Província do Japão, missionário em Tidor e Reitor do Colégio de Macau, escreveu uma obra que foi traduzida para o malaio: Breve Relação da doutrina cristã; Gaspar Amaral, Provincial no Japão e China, fez um Dicionário de língua anamita; Francisco Barreto publicou em Roma uma obra de carácter etnológico: Relação da Província do Malabar. Dos que missionaram em África, restam-nos, hoje, muitas obras impressas: Doutor Afonso Mendes, natural de S. Aleixo, Arcebispado de

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Évora, Lente de Escritura foi eleito Patriarca da Etiópia. Escreveu 3 tomos sobre a sua entrada na Etiópia entre outras; António Fernandes, de Lisboa, Missionário da Etiópia, imprimiu a Vida da Senhora. Verteu na língua da Etiópia, o Missal, Ritual e Calendário Romanos; João Ribeiro, de Tavira, entrou em Évora a 7 de Dezembro de 1653, foi por muitos anos Missionário em Angola. Morreu em Évora. Imprimiu em Lisboa, em 1689, uma apologia com o título: Defensa dos Padres da Companhia residentes em Angola contra as murmurações de alguns caluniadores; P. Luís Cardeira, mártir na Etiópia, natural do termo de Beja, entrou em Évora, compôs um calendário para os Etíopes e fez umas instruções sobre o Jejum. Com outro elemento da Companhia verteu a Bíblia na língua mais culta da terra; Luís Figueira, de Almodôvar que morreu num naufrágio, no Maranhão, em Junho de 1643, escreveu a Arte da Língua do Brasil, que se imprimiu; Manuel Correia, de Angola, aqui ensinou todas as ciências até Prima de Teologia. Faleceu em Roma e aqui imprimiu um livro: Idea Consiliarii, sive methodus tradenti consilii ex Regulis conscientio; Manuel Álvarez que missionou na Guiné e na Serra Leoa, escreveu uma obra que ficou inédita: Descrição geográfica da parte da África chamada Guiné; Apolinário de Almeida, nomeado Patriarca da Etiópia, fixou-se na Abissínia escreveu uma Carta sobre coisas de Etiópia, dirigida ao Duque de Bragança, futuro D. João IV. Terminamos destacando um dos mais famosos jesuítas, Fernão Cardim enquanto geógrafo, etnólogo e historiador no século XVI. A sua obra Tratado da Terra e da Gente do Brasil é considerada uma fonte fundamental sobre a Natureza, os Índios e a sociedade colonial brasileira no século XVI. A Biblioteca Municipal de Évora, herdeira da biblioteca da Universidade, tem um manuscrito intitulado Cousas do Brasil, o qual é composto de diversos cadernos, que contêm inúmeros títulos, ligados à observação dos homens e da Natureza, dos quais destacamos um assinado por Fernão Cardim, datado de 1590 20.

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Re v u e Páteo dos Irmãos ou Claustro da Cisterna e Torre do Cruzeiro Foto: Susana Rodrigues

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1 Bernard Dompier, La Compagnie de Jésus et la mission de l’intérieur, in Luce Giard & Louis de Vaucelle (dir.), Les Jésuites à l’âge baroque 1540-1640. Grenoble, Ed. Jérôme Million et les auteurs. 1996, p.169.

guês do Oriente, 2002; Maria de Deus Beites Manso, A Companhia de Jesus na Índia: 1542-1622. Aspectos da sua Acção Missionária e Cultural, Évora, Universidade de Évora, 1999 (texto policopiado).

2 Manuel Ruiz Jurado, “Espirito misional de la Compañía de Jesús”, La misión y los Jesuitas en la América Española, 1566-1767: Cambios y Permanencias, coord: José Jesús Hernández Palomo e Rodrigo Moreno Jeria, Sevilla, Consejo Superior de Investigaciones Científicas Escuelas de Estudios Hispano-Americanos, 2005, pp. 16-19.

7 Apesar da necessidade do envio de religiosos para a Índia, Francisco Xavier e outros jesuítas foram retidos algum tempo na Corte, situação fruto não só da simpatia que ofereciam

3 Sobre o método de ensino ler: “Ratio Studiorum da Companhia de Jesus (1599-1999)”, Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, Julho – Setembro, Tomo LV, fasc. 3, 1999. 4 José Vaz de Carvalho, “A Acção Missionária da Universidade de Évora”, História da Universidade em Portugal Carvalho, Joaquim Barradas de, 2 vol., Ed. Universidade de Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp.965-969 5 P.e António Franco, Évora Ilustrada. Extraída da obra do mesmo nome do P.e Manuel Fialho, Publicação, Prefácio e Índices de Armando Gusmão, Évora, Ed. Nazareth, 1945, p. 263 6 Idem, Ibidem, pp. 62. A acção religiosa jesuíta não se cingiu evidentemente apenas à Índia, estendendo-se a todos espaços coloniais ultramarinos. Entre outras obras que ajudam a perspectivar a irradiação da actividade da Companhia na Ásia, consultem-se, entre outras, as seguintes obras: Michael Cooper, Rodrigues o Intérprete. Um Jesuíta Português no Japão e na China do Século XVI, Lisboa, Quetzal Editores, 2003; Horácio Peixoto de Araújo, Os Jesuítas no Império da China. O Primeiro Século (1582-1680). Lisboa: Instituto Portu-

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como, possivelmente, pelo trabalho que desenvolviam. 8 Paravás: pescadores de pérolas da Costa da Pescaria, Sul da Índia. As fontes não são unânimes na quantificação dos convertidos, encontrando-se documentação que refere serem cerca de 50.000, enquanto Joseph Wicki, Documenta Indica, vol. I, Roma, Monumenta Historica Societatis Iesu, 1988, pp. 748-749, fixa cerca de 60. 000. Em qualquer dos casos, trata-se de números redondos, expressando mais qualidades do que quantidades rigorosas, sublinhando um processo de larga conversão local colectiva ao cristianismo. 9 Georg Schurhammer, Francisco Xavier su vida y su tiempo, Tomo I: Europa: 1506-154, Pamplona: Gobierno de Navarra/ Compañía de Jesús/ Arzobispado de Pamplona, 1992, pp. 573 e segs. 10 Não é nossa pretensão inventariar na sua totalidade os nomes dos que passaram pela Universidade de Évora. Os dados recolhidos sobre estes missionários encontram-se nas seguintes obras: P.e António Franco, Évora Ilustrada. Extraída da obra do mesmo nome do P.e Manuel Fialho, Publicação, Prefácio e Índices de Armando Gusmão, Évora, Ed. Nazareth, 1945; José Vaz de Carvalho, “A Acção Missionária da Universidade de Évora”, História da Universidade em Portugal Carvalho, Joaquim Barradas

de, 2 vol., Ed. Universidade de Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp.965-969; Charles, Sommervogel, Bibliothèque de la Compagnie de Jésus, 12 volumes, Paris, 1890; João Pereira Gomes, Os Professores de Filosofia da Universidade de Évora: 1559-1759, Évora, 1960. 11 Esteve em Alcácer Quibir. No Japão administrou o crisma a 4000 japoneses. Pedro de Arouche e José Ferreira morreram na viagem. 13 Charlotte de Castelnau-L’Etoile, Operários de uma vinha estéril. Os Jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620, S. Paulo, Edusc, 2006, p. 197. 14 Idem, Ibidem, p. 201. 15 Foi Reitor em Évora. 16 Também foi Comissário Geral. 17 Adoptou o nome de Cornélio Gomes. 18 Alguns missionários acompanharam D. Sebastião a Alcácer Quibir: Inácio Martins Pedro Martins e Martim de Melo. 19 Sobre o assunto ler: Charlotte de Castelnau-L’Etoile, Operários de uma vinha estéril. Os Jesuítas e a conversão dos índios no Brasil – 1580-1620, p. 187 e segs. 20 Idem, Ibidem, 379 e segs. Relativo à missão do Brasil destacamos, ainda, Mateus de Moura Reitor dos Colégios do Rio de Janeiro e da Baía e que publicou a obra Exortações panegíricos e morais.

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Fundar no ermo Descrição histórico-arquitectónica e artística do Colégio e Complexo do Espírito Santo (sécs. XVI-XVIII)

Texto: Manuel Francisco Soares do Patrocínio Universidade de Évora Departamento de História Centro de História da Arte e Investigação Artística

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emontam às décadas iniciais do séc. XVI as primeiras notícias referentes a um propósito de instalação de Estudos Gerais em Évora, no lugar em que, na verdade, se veio a instalar o Colégio do Espírito Santo, cerne da Universidade a atribuir depois à gestão da Companhia de Jesus, e de que o Reino seria beneficiário. Era ainda o tempo de D. Manuel I que, por volta de 1520, enceta a aquisição de terrenos situados à saída daquela que era conhecida como a Porta do Moinho de Vento, à primitiva Cerca, ou seja, o acesso nascente ao alto da cidade. O lado estava dominado pelos volumes da Sé Catedral, e, em proximidade, o emblemático Palácio dos Condes de Basto era, não menos, sobranceiramente tutelar sobre essa parte do horizonte, alicerçado sobre a picada escarpa, onde se disponibilizava uma área considerável. De facto, tendo-se aí iniciado, a área de influência da vida desencadeada pelo fervilhar da futura Universidade chegou às Portas de Machede, tendo em conta a referência a outros Colégios, funcionando como albergues estudantis, e capelas com estreita dependência de congregações e grupos universitários. Ignorando-se o que entretanto veio a suceder com o eventual edifício dos anteriores Estudos Gerais eborenses, a área do Colégio foi ganha a partir da expropriação, ainda que diplomática e por troca, primeiro com o Paço dos Camões (actual Largo da Misericórdia) e, a seguir, com a área do antigo Paço dos Condes de Sortelha (actuais Rua de Olivença e Praça de Sertório), da

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congregação feminina do Convento da Ordem do Senhor Salvador do Mundo. Foi esta congregação instituída também em 1550, tendo sido então vizinha do funcionamento dos primeiros anos da nova Universidade, mas deslocada assim que foi necessário rasgar terrenos para o alargamento do Complexo. Subsistiu, em relação com esta presença, o topónimo da Rua de Salvador Velho. O enquadramento histórico e cultural em que se sucede a fundação da Universidade de Évora será particularmente significativo para o carácter específico da instituição. Desde logo, a importância de Évora como lugar favorito de permanência da Corte e como centro de fomento do pensamento e arte, desde os fins da Idade Média, associou-a às estratégias mais eminentes dos Reis portugueses que, obviamente, incluíam concessão de privilégios e investimentos resultando em obras de vulto que dignificavam a cidade e reflectiam o seu estatuto. Ao nível eclesiástico, como se verificaria com os programas fundacionais e de reconstrução de igrejas ou casas conventuais, decorrentes ao longo dos finais do séc. XVI e séc. XVII, em Évora e seu aro, também se realçaria uma importância não menos assinalável enquanto centro de decisões da Igreja. Assim mesmo, à reorganização do Estado, tal como a concretizavam decisões de D. Manuel, já quase na posição de Imperador do Mundo graças à extensão do domínio português e ao ímpeto da política cultural renascentista de

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D. João III, convergia o protagonismo de D. Henrique (1512-1580), Cardeal e Príncipe de Avis, elevado à dignidade de Arcebispo de Évora, e, por fim, Rei. Após as deliberações do Concílio de Trento (1545) que definiriam o novo papel da Igreja Católica e sua intervenção, tendo como resultado a Contra-Reforma, ao que era a força do Humanismo adicionou-se a determinação religiosa, traduzida em instituições marcantes. Foi com tal qualidade dominante que assim emergia a Universidade que se estabelecia, ao tempo, em Évora, assumindo-se uma postura didáctica e científica apoiada na índole dos cânones modernos, mas dirigindo-se aos propósitos da missionação que, de um canto europeu, partia em contingentes organizados para prosseguir na descoberta do Mundo, ao mesmo tempo que firmava a presença cristã. Após os intentos de D. Manuel I quanto aos Estudos em Évora, D. João III autoriza em 1550 a instituição de um Colégio, que lhes daria continuidade, e para o qual prosseguiriam as aquisições de terrenos na mesma zona além do Moinho de Vento e que acompanhavam a Cerca antiga; pouco antes teria Garcia de Resende insistido, junto do mesmo monarca, para que se prosseguisse a implementação dos Estudos Gerais alentejanos, a bem da cidade. Terá sido no seguinte ano de 1551 que um primeiro Colégio do Espírito Santo começou a ser edificado. Entretanto, fundava-se, por via de Santo Inácio de Loyola, a Societá Jesú que o Papa Paulo III reconhecera, em 1540, como uma importante congregação da Igreja. Logo no mesmo ano, a Companhia de Jesus introduzia-se de imediato no Reino, com o apoio e a instâncias do Príncipe D. Henrique. Também em 1551, para se preparar o que seriam as actividades do recém-criado Colégio de Évora, chegavam os primeiros membros da Companhia de Jesus, que ainda teriam, porém, de se instalar no velho Convento das Maltesas e no Paço Real de S. Francisco. Em 1553 abre, no Colégio de Évora, a primeira Faculdade, a de Humanidades e Casos de

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Consciência. Em 1554, o Prelado D. Henrique decide preparar a instalação de uma Universidade no mesmo Colégio, considerando o exemplo de Coimbra. Discute-se, porém, a autoria do projecto para um novo edifício universitário, embora estudos recentes, apoiados num documento precisamente do ano de 1554 relativo a Évora, identifiquem a possibilidade de ter havido um projecto de um Padre arquitecto estrangeiro, Bartolomé de Bustamente, ao qual deram a sua sequência os Mestres associados às iniciativas de D. Henrique: Jerónimo de Torres e Silvestre Jorge e também Manuel Pires ou Afonso Álvares. Falecendo o Rei D. João III em 1557, a proposta do Cardeal D. Henrique continuaria a granjear o apoio da sua cunhada Regente, a viúva D. Catarina de Áustria. Datada de 15 de Abril de 1559, a bula do Papa Paulo IV consagraria a criação definitiva da Universidade de Évora, com o acréscimo de outras Faculdades de Ciências à previamente existente de Humanidades. O próprio Colégio continua a transformar-se fisicamente e chega o momento de se completar a primeira fase de obras quanto à edificação que se iniciara oito anos antes. A 1 de Novembro do ano de 1559 procedia-se, por fim, à abertura solene das Aulas, na Capela universitária, a que é hoje a Sala dos Actos. No que havia sido um declive de “terrenos além da Porta do Moinho de Vento”, tratasse-se o lugar de algum ermo fora de muralhas ou, conforme sugestão do próprio topónimo, de terras destinadas à lavra ou a hortas, desenhou-se o volume de um edifício solene e funcional que foi fulcro do que, na prática, se constituiria como uma outra cidade, abrindo-se a vivências do saber e do espírito, e a sociabilidades ainda por recobrar. A nascente do edifício, abria-se a ampla planície do país alentejano, num apelo de carácter deveras contemplativo. O desenho, bem como as formas da construção do novo Colégio do Espírito Santo, são inequivocamente modernas, integrando-se nos programas que, ao séc. XVI, se assumiam como de arquitectura

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nova, com carácter racional. Levantada sobre princípios clássicos e normativos, é uma arquitectura inspirada em modelos que facilmente se reconhecem nos livros trazidos de Espanha ou Itália até às mãos dos mais eminentes Mestres-fortificadores do Reino. Se bem que as notícias tivessem indicado o funcionamento, já em 1536, dos referidos Estudos Gerais de D. Manuel, desconhecendo-se em que espaços, e sabendo-se que a definitiva instalação em Coimbra dos velhos Estudos Gerais de Lisboa, como Universidade, decorreria em 1537, as obras de lançamento construtivo do Colégio do Espírito Santo, conformando a segunda universidade portuguesa, não começaram senão mais de uma década depois, noutro reinado e noutras circunstâncias culturais. A vocação religiosa, como pedagógica, do lugar seria porém acentuada nessa mesma zona adjacente à Porta do Moinho de Vento, sendo que foi aí que se proporcionou a fundação de estabelecimentos católicos. Assinalar-se-iam, então, o futuro Colégio de Nª Sr.ª da Purificação (actual Seminário Maior de Évora) iniciado em 1577, e o Noviciado ou Conventinho do Colégio do Espírito Santo, habitado a partir de 1567 e reservando-se aos estudantes finalistas que tivessem ingressado na carreira religiosa. Por fim, suceder-se-ia a composição do perfil da Igreja do Espírito Santo, com desenho de 1564, a edificar-se também a partir de 1567, em coincidência com o arranque da quadra do Noviciado, numa construção que veio substituir o que eram, até aí, os primeiros Aposentos do Cardeal-Infante D. Henrique, obrigando à sua transferência para outra zona do Colégio. O Conventinho, em posição periférica e, como tal, destacando-se enquanto área reservada por se destinar aos professos, no contexto da organização das partes do Colégio, vinha comunicar, por intermédio de um pequeno pátio, com as Sacristias da Igreja do Espírito Santo, restando, do exterior, uma porta com

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acesso directo a esse mesmo pátio. Este acesso, voltado para a antiga Porta do Moinho de Vento à Cerca Velha, conservou as suas molduras de granito e cimafronte destacada, com o duplo adintelado recolhido do compêndio clássico toscano, sobrepujando-se de cornija em ressalto, conforme formas correntes que seriam predominantes na própria arquitectura eborense de finais do séc. XVI, em sinal distintivo das obras de programa henriquino para o que contribuiu a estruturação do que se pode entender então como o Complexo do Espírito Santo. Finda a longa Era em que os contingentes régios se haviam afadigado na fundação de castelos, de robustas catedrais, abadias e aquartelamentos, chegava uma época em que a imagem dos edifícios se colava a uma estética de aberturas, com amplas janelas a desmaterializarem os pesados aparelhos de calcário ou granito que formavam as cercas e paredes, e emergindo colunatas a definir perímetros ou a postarem-se em beirais de loggiae e varandas dirigidas à rua. Assim mesmo, o edifício do Colégio do Espírito Santo começou por se concretizar em torno de uma área aberta, designada como Pátio dos Estudos Gerais, a que corresponde o que, quotidianamente, se chama Grande Claustro do Espírito Santo. Compunha uma área intermédia entre o acesso exterior e a passagem para as Aulas, sendo que, diante da entrada para o Pátio, estava o Terreiro dos Estudantes, actual Largo dos Colegiais e ladeira. Quando, volvidos alguns anos sobre a inauguração do Colégio, a Igreja do Espírito Santo foi, por sua vez, construída, o mesmo Terreiro servia de adro ao templo. Mas seria necessário esperar até aos finais do séc. XVII para que a frontaria principal do complexo universitário, tal como subsistiu, fosse completada, encerrando o Pátio dos Gerais, que, até então, não dispôs da sua ala sul. Os elementos classizantes identificam-se, de qualquer modo, ao longo das diversas fases. Arcos e colunas dóricas são documento do primeiro ciclo

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O arranjo da parede de frontaria, onde está o Portão da Universidade com acesso ao Pátio dos Estudos Gerais, foi somente definido nos finais do séc. XVII, também da época de gestão do Reitor Manuel da Silva, e de que resultariam as obras para os Aposentos do Príncipe D. José, revelando-o a moldura recurvada que envolve as janelas nobres da fachada

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construtivo, que ainda permanece e distingue o prédio universitário, e testemunho de um gesto criativo fundacional no que teria cabido à intervenção de Manuel Pires e Afonso Álvares. Abóbadas com revestimento em emolduramento de caixotões e as duas colunas jónicas, esguias, que antecedem hoje a entrada no Grande Claustro, testemunham, por sua vez, o quadro de uma posterior, mas não menos decisiva, obra de remate. Ainda quanto aos Mestres Pires e Álvares, estes estavam, efectivamente, não apenas ligados à quase imediata obra adjacente da Igreja do Espírito Santo, como a restantes e significativas obras eborenses do período: a Igreja de Santo Antão (à Praça do Giraldo) ou o Convento de Santa Helena do Monte Calvário (às Portas da Lagoa). Foram estes Mestres igualmente responsáveis pela aplicação de formas clássicas, de ordem dórica e toscana moderna, em pilares que suportavam paredes ou em emolduramentos que rodeavam janelas, na plena génese do que se chamou o Estilo – Chão português, caracterizando os prédios eclesiásticos das novas encomendas dos finais de Quinhentos, e influenciando directamente o próprio desenho urbano de Évora, que se renovava sob a égide do CardealInfante, aliás igualmente ligado à renovação do Passal da Mitra e Convento do Bom Jesus de Valverde (hoje também propriedade da Universidade), constituindo tais iniciativas um foco da própria transformação da Arquitectura portuguesa Neste sentido, o Colégio do Espírito Santo assume-se não menos como realização fundadora da nova arquitectura subsequente ao Renascimento; ou seja, integrando-se no Maneirismo e comportando aspectos que serão comuns com a vertente, também própria à arquitectura religiosa nacional, do citado epíteto de Estilo-Chão que deriva do mesmo compêndio do pensamento construtivo maneirista, mas em que o formalismo e funcionalidade eram reduzidos ao mínimo essencial, dispensando a decoração mas sem prejudicar a firme concepção dos espaços e a sua elegância, ainda

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que austera porque adequada a uma intenção sóbria e respeitosa. Por isso mesmo, quanto ao aparato final do Pátio dos Estudos Gerais, reconhecem-se elementos de uma qualidade acometida mas de sugestão equilibrada quanto à distribuição de linhas com apoio em arcos redondos e suporte em colunas dóricas clássicas, sem ser contudo demasiado estático quanto à colocação de outros elementos. Se bem que as Salas de Aula disponham de poucas aberturas para a entrada de luz, repetindo-se, na própria divisão interior das mesmas, o alinhamento de divisão em arcarias com apoio em colunas de idêntico estilo às que estão de fora, o desenho do Pátio é proporcionalmente largo e simétrico, e a disposição das colunatas comporta uma boa criação de corredores abertos, expostos ao ar e ao efeito da luz natural. O resultado estético será, enfim, mesclado de elementos, combinando um característico toque de austeridade construtiva com apontamentos tipológicos de efeito pontualmente dinâmico. Ou seja, no piso superior, as janelas em qualidade regular, de molduras rectas, quebram, na verdade, o que poderia ser a monotonia de paredes contínuas, que poderia ter sido trazida pela inspiração das construções religiosas portuguesas do tempo. Enfim, se tal traça não deixa de se reconhecer no Colégio do Espírito Santo, certo é que o andar superior que rodeia o Pátio dos Estudos Gerais adquire contornos de um sóbrio propósito palaciano. De facto, em dois momentos distintos, cada uma das alas que enformam o Pátio, do lado nascente e do lado poente, foi pensada para Aposentos de eminentes figuras da Corte. No séc. XVI, quando da inauguração do Colégio, assistia-se aí ao provisório alojamento do Cardeal-Infante e, nos finais do séc. XVII, ao de outro eclesiástico de sangue real, o Príncipe D. José (1703-1756), filho de D. Pedro II e irmão de D. João V. Este doutorou-se em Teologia nesta Universidade, em Junho de 1735, tendo sido depois nomeado Arcebispo de Braga (em 1736).

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Abrindo-se para o Pátio, surgem assim as galerias do andar superior, também estruturadas por apoio em seguimento de colunata, correspondendo, tal como as outras obras do piso térreo, aos finais de Seiscentos. É sabido que datam de 1687, no período do Reitor Manuel da Silva, pouco antecedendo o que se referiu ao arranjo dos Aposentos do Príncipe D. José. Aí, de resto, no que seriam depois as Aulas de História Natural, encontram-se os registos de dois programas sucessivos de aplicação de azulejos, em que painéis azuis e brancos, com temática floral de inícios de Setecentos, que prenunciavam já o vasto ciclo que enriqueceria todas as salas principais do Colégio durante o Barroco pleno, assentavam sobre bandas de placas diversas indicadas como ainda do século anterior, período a que pertence igualmente a colocação dos púlpitos nas Salas de Aula, assentes em robustos embasamentos de mármore branco esculpido. Foram vários os ciclos de obras que trouxeram, então, ao edifício da Universidade alguns dos seus aspectos mais marcantes. Assim sendo, se o desenho do Colégio remonta à década de 1550, e como tal o foi o afeiçoamento do Pátio, a Igreja só seria edificada por volta de 1570, obrigando a trasladar para o lado oposto as já referidas Câmaras do Cardeal D. Henrique (actual Biblioteca Geral). O arranjo da parede de frontaria, onde está o Portão da Universidade com acesso ao Pátio dos Estudos Gerais, foi somente definido nos finais do séc. XVII, também da época de gestão do Reitor Manuel da Silva, e de que resultariam as obras para os Aposentos do Príncipe D. José, revelando-o a moldura recurvada que envolve as janelas nobres da fachada. Antes disso, em período filipino, há notícia de outro decurso de arranjos, da década de 1620; na Sala dos Actos, colocaram-se nesta altura vários retratos pintados de ilustres fundadores, restando somente os dois que se podem apreciar de D. Henrique e D. Sebastião. No séc. XVIII, já em pleno período do Barroco da época de D. João IV, também quanto à Sala

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dos Actos, refaz-se o seu frontispício, com decoração em mármore, reformulando-se molduras e aplicando-se painéis de folhagem decorativa, bem como acrescentando à cimafronte as esculturas alegóricas e os querubins que ostentam, em emblema de significado profundamente simbólico, o Sol e a Lua. Antes ainda, de 1708 é a data da realização final do tecto da Sala das Belas-Artes, e, de 1718, a data de colocação da fonte ao centro do Pátio, a qual, durante muito tempo, suportou também uma estátua. Durante a segunda metade do mesmo século, completar-se-ia, por fim, o revestimento dos rodapés das paredes exteriores e das Salas de Aula, com os abundantes sentidos narrativos e filosóficos que aludiam ao saber e à sensibilidade. Apesar das várias intervenções, o Pátio dos Gerais reveste-se de notável homogeneidade tanto em qualidade arquitectónica como visual. Cada um dos elementos que o vieram a compor tem, de facto, a sua cronologia, materializando ideias construtivas e arranjos distintos, o que não desvirtuou o âmbito de realização de uma projecção inicial. O Pátio torna-se, assim, no rosto do próprio Colégio, assumindo-se como a parte que se oferece ao exterior. A aplicação ao Pátio do termo corrente de claustro adquire vários sentidos; num entendimento estritamente arquitectónico, começa por ser um falso claustro, de certa forma surgindo como contrário à funcionalidade edificada que, segundo a regra construtiva, os claustros detinham na arquitectura monástica tradicional, enquanto áreas encerradas e delimitadas quanto ao exterior. Embora haja, no Colégio do Espírito Santo, princípios reconhecíveis de organização que advêm da concepção dos espaços religiosos, sucede que o Pátio dos Gerais não se oferece à clausura, mas sim à congregação e até à deambulação. É, porém, igualmente correcto que claustro vem afinal designar o que fosse lugar de reunião; neste caso, a congregação reunida dos escolares.

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Re v u e Aula de Disputas dos Teólogos, actual Sala do Senado Foto: Susana Rodrigues

Definindo-se esta necessidade, a forma construtiva que se elaborou foi a de um pseudo-claustro, mas com forma de pátio aberto, destinado a receber os vindouros, copiando, enfim, formas modernas, como as que se desenvolviam, já no séc. XVI, nas propostas da edificação italiana civil. O que decorre, então, é uma tipologia diferenciada, que não é da arquitectura religiosa ou da palaciana, mas correspondente ao que fosse, para o séc. XVI, uma arquitectura das Universidades e dos Colégios universitários, exprimindo, de algum modo, a importância crescente que na sociedade e cultura da Época Moderna detinham já, e em definitivo, os universitários como grupo significativo. Outros espaços de pátio, ou pseudo-claustros, atrás do Pátio principal, são definidos pelo Pátios da Botica e dos Irmãos; este também conhecido como Claustro da Cisterna ou da Nora, mantendo-se ainda à vista o referido poço. Era a partir do Claustro dos Irmãos, o mais oriental, que se acedia à Casa do Lavabo, erguendo-se aí outro fontanário (datado de 1596), e ao Refeitório que ainda guarda elementos originais de Quinhentos: colunas que suportam um prolongado espaço interior; a cobertura azulejar das paredes, de placas com padrão geométrico verde e branco. Antecedendo o Refeitório estava, obviamente, a Cozinha, e do mesmo ponto partia o lanço de escadas conducentes às alas nascente do piso superior. A ocidente, ficava o Claustro da Botica (junto da Farmácia do Colégio) que comunicava com o piso do Noviciado ou Conventinho. Nesta outra área, precisamente, desenvolver-se-á, encostado à parte topográfica em que se iniciava o declive natural da espalda subjacente ao alto rochoso em que se implantara a velha cerca, o terceiro piso (actual andar da Reitoria), em que se rasgou uma nova porta (a designada Porta da Reitoria) que, somente no séc. XIX, se adornou com o portal renascentista que havia sido desenhado pelo eminente artista Nicolau de Chanterenne para a Igreja do Convento de S. Domingos de Évora (e que foi demolido antes

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de 1850). O bloco do Noviciado estrutura-se, por sua vez, em torno de um terceiro pátio secundário assente na base natural da encosta nascente da cidade, e que fornecia luz natural para as celas e aposentos aí distribuídos, articulando-se, não menos homogeneamente, com as restantes partes do Colégio, ao inserir-se nos eixos a que correspondem as linhas dinâmicas dos seus amplos corredores abobadados. As zonas interiores do Colégio acentuam-se, portanto, numa perspectiva plural: cada área tem uma definição de uso que originalmente se diferenciava grandemente, mesmo dentro do mesmo complexo. A planificação inicial foi, assim, determinante quanto ao desenho dos espaços que são, na verdade, diversificados e se distribuíam por áreas destinadas ao ensino, ao estudo, aos aposentos principescos, aos aposentos dos noviços, às salas utilitárias. Uniam-nos os braços dos corredores, alguns juntando-se no ponto do Cruzeiro, também designado como Panteão ou Octógono, cujos lanços baixos de parede, nas suas linhas de esquina cortada, estão ocupados por registos azulejares (com data de 1740) com o tema das Quatro Essências e sobrepujados por nichos albergando imagens santas. Ao alto destaca-se a torre-lanterna, apenas concluída no Barroco (1723), por indicada autoria do Padre António Franco. A axialidade dos corredores tem a própria forma da Cruz, e os remates, iniciando-se em portarias, pelas quais se chegava da rua ou dos terreiros, acabam por ser janelas que oferecem a vista do horizonte alentejano. Os blocos do Colégio, unidos também pelas formas arquitectónicas, e que vieram a ser ocupados pelos vários serviços e departamentos da nova Universidade de Évora, construíram-se em torno dos mesmos corredores. No sentido dos cruzamentos dorsais e transversais que percorrem, enquanto linhas dinâmicas, o centro do Colégio, distribuem-se, respectivamente, na direcção norte-sul, os dois corredores das Visitas e o da Laje, este conduzindo à Biblioteca. Na direcção nascente-poente, alinha-se a grande

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Após 1578, data da definitiva saída de Évora do Cardeal D. Henrique, chamado a ocupar o trono, os seus Aposentos foram substituídos por outro espaço religioso, a Capela do Cristo Crucificado, terminada em inícios do séc. XVII e presentemente dividida por parede, ocupada por serviços da Biblioteca Geral Foto: Susana Rodrigues

Galeria da Tábua, no qual não só desembocam os corredores citados, como as zonas de escadaria em que se acede do piso inferior para o piso nobre, e onde se situa igualmente o acesso para o actual Piso da Reitoria, actuando assim como o grande ponto de união orgânica das várias partes do Colégio. O primeiro destes dois corredores, o das Visitas, abrindo-se a partir da actual Portaria, ocupou o que havia sido a zona dos primitivos quartos do Cardeal-Infante, e destinava-se, conforme o nome, a receber quem não pertencia à Universidade, como parte de um acesso mais público. Do lado que lançava com o Pátio, estavam as Salas de Visitas, que vieram depois a comportar não apenas registos azulejares de padrão azul e branco de Setecentos com temática floral, como o curioso dispositivo formal, disposto ao longo do corredor, de abertura com sistema de arquitrave e arquivolta, assente em pilares, retirado dos compêndios construtivos clássicos-modernos. Há notícia de que esta primeira zona foi somente terminada por volta de 1677, quando foi Reitor o Padre Manuel Luís. Quanto ao Corredor da Tábua, com o qual se toca o Corredor das Visitas, terá sido esta galeria traçada ainda no âmbito do arranque inicial do Colégio, cerca de cem anos antes ao da área atrás descrita. Abrindo-se no ponto da actual Porta da Reitoria, conduz-nos ao longo do braço norte do Complexo, levando também à antiga Livraria, bem como ao Pavilhão dos Lentes e à Enfermaria, e terminando no janelão de fachada do prédio nascente do Colégio. Davam para este Corredor as celas ocupadas pelos professos filósofos, diante das quais se dispunha a sala da Aula de Disputas dos Teólogos (actual Sala do Senado), refeita no ciclo de reparos do ano de 1723, que lhe trouxe novo abobadamento, por sua vez decorado já com pinturas recentes no séc. XIX, contendo apontamentos onde surgem, em cartela redonda, tomadas de vista de monumentos da cidade, enquadradas numa composição figurativa de padrão neoclássico mas de pendor pitoresco.

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Similar interesse de acabamento confere-se obviamente à Sala de Belas-Artes, situada ao antigo Corredor da Laje que se toca com a Galeria da Tábua no lugar do Cruzeiro mas integrando a Livraria. A Sala foi somente composta em 1626 e o seu tecto seria também apenas acabado e pintado no séc. XVIII, em 1708. Virada a nascente, a Sala de Belas Artes foi adornada, do lado de fora, com janelas em sacada, que davam para a vista de uma desaparecida ermida que se implantava em pleno centro do chamado Jardim do Granito, em obra que provavelmente se correlaciona com o próprio lançamento de muralhas da Cerca Nova que, ainda nos finais do séc. XVII e na sequência da Restauração Portuguesa, veio a encerrar o Jardim, englobando definitivamente à área ocupada pelo Colégio na extensão urbana eborense. Tal Capela foi entretanto demolida para ceder lugar à presente zona de Anfiteatro, obra contemporânea, que alterou também o referido Jardim, ainda que elementos da fortificação seiscentista, como sejam guaritas ou baluartes se viessem a conservar dentro do recinto universitário. Aspecto curioso do Colégio do Espírito Santo é, com efeito, o que se refere às múltiplas capelas que outrora existiam e que o decurso do tempo se encarregou de fazer desaparecer, sobretudo após o encerramento e secularização da Universidade em 1759. Desde logo, é bem sabido que a primeira Capela do Colégio, e onde se inaugurariam, de resto, as próprias aulas universitárias em 1559, se situava no espaço que, logo a seguir, volvidos menos de vinte anos, se transformaria em Sala dos Actos, assim que se tratou da necessidade de se edificar a Igreja do Espírito Santo. Por sua vez, após 1578, data da definitiva saída de Évora do Cardeal D. Henrique, chamado a ocupar o trono, os seus Aposentos foram substituídos por outro espaço religioso, a Capela do Cristo Crucificado, terminada em inícios do séc. XVII. Situava-se sobre a frontaria norte, sobre a varanda nascente, que se voltava para o Pátio dos Estudos Gerais, comunicando também por esse lado para o Coro da Sala dos Actos, tendo-se conservado o seu

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tecto de madeira, obra de 1716. Comportando ainda, cronografado da década de 1740, um revestimento azulejar na área de intradorso de uma das suas portas que comunicam para a referida varanda, corresponde esta Capela a uma área presentemente dividida por parede, ocupada por serviços da Biblioteca Geral. Outra desaparecida capela, inserida nas alas a nascente do Colégio, encontrava-se no lado do antigo Pavilhão da Enfermaria, tendo sido consagrada como Capela de S. Francisco Xavier, e estabelecida em legado do testamento do Padre Manuel de Lima, datado de 1666. Ficou registo do seu espólio litúrgico e cultual, bem como de um altar de talha com imagens pintadas do Santo. Também conhecida era a Capela de Nª Sr.ª da Modéstia, anexa ao lado norte do Bloco do Noviciado, que transitava para as vizinhanças do contíguo Colégio de Nª Sr.ª da Purificação. Subsistiu, de qualquer modo, na ala do lado norte do Cruzeiro em que se prolonga o Corredor da Laje, a Capela dedicada a Nª Sr.ª da Conceição, iniciada em 1641 e sagrada em 1647, no período do Reitor Pedro de Brito, e cujos arranjos prosseguiram pelo séc. XVIII, moldando um espaço interior amplamente decorado. A data de fundação, bem como a sua concepção, constitui esta capela como um dos primeiros riscos de Arquitectura Barroca portuguesa. Conservou os mármores, tendo sido usados, na monumentalização da frontaria que se volta para a galeria, em diversas molduras de combinação colorida, e quanto ao interior, em painéis embrechados, resultado da intervenção de 1723. A cobertura desta capela compõe-se de uma abóbada com medalhões estucados e assente também em pilastras de estuque. O altar destaca-se da acometida nave, tendo-se esboçado sob uma pequena cúpula, cuja parede de fundo está ocupada por altar com base em banqueta também azulejada – a particularidade destes azulejos que, por serem do séc. XVI, pertencem

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a uma tipologia distinta dos revestimentos próximos, reside no facto de terem sido trazidos da referida Capela de Nª Sr.ª da Modéstia, que teria então já desaparecido. O Complexo do Espírito Santo, enquanto conjunto de corpos construídos que vieram a constituir um colégio universitário, moldou-se assim, e essencialmente, sobre momentos de intervenção localizados ao longo dos sécs. XVI e XVII, que legaram uma marca sobretudo clássica e que cumpriram o eventualmente previsto num plano inicial. As intervenções posteriores, não tendo sido de carácter estrutural, foram, de qualquer modo, significativas quanto ao acabamento estético que distingue a Universidade. Haverá, nomeadamente, a referência aos sucessivos ciclos decorativos, começando, de resto, e pontualmente, ainda no séc. XVI, mas ressurgindo em Seiscentos e tomando plena força ao longo do séc. XVIII, trazendo ao Colégio colecções únicas de azulejaria historiada, além de outros apontamentos emblemáticos, caso da Torre do Cruzeiro e, claro, da nova frontaria da Sala dos Actos, a qual de resto conheceria o afeiçoamento do aspecto actual somente no séc. XIX, quando o Colégio detinha outras funções oficiais. O sentido de um progressivo empenho construtivo e de reforço aparatoso seria dominante, tal como se pode reconhecer nos detalhes que emergem como indício de uma intenção de enobrecimento, mantida ao longo de duzentos anos.

Capela de Nossa Senhora da Conceição, sagrada em 1647 Foto: Susana Rodrigues

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Antijesuitismo, Educação e Universidade de Évora “Com aproximadamente dez homens, sem nenhum capital nem plano empresarial, os jesuítas fundaram em 1540 uma companhia que, em pouco mais de uma geração, se tornaria a mais influente do seu género. Confidentes de monarcas europeus, do imperador Ming da China, do xógum japonês e do imperador mogol (…), os Jesuítas podiam gabar-se de terem uma agenda com mais contactos do que qualquer outra entidade, fosse ela comercial, religiosa ou governamental. (…) Na Europa, os seus companheiros empregavam entusiasticamente a mesma força e vontade e energia para construir o que viria a ser a maior rede mundial de estabelecimentos de ensino.” Chris Lowney1

1. A emergência de uma Ordem globalizante Quando o primeiro grupo de estudantes parisienses liderados pelo então asceta peregrino e antigo nobre espanhol Inácio de Loyola se dirigiram à Santa Sé, presidida por Paulo III, com a pretensão de fundar uma nova ordem religiosa, cujos membros dariam a vida por Cristo tendo como primeiro horizonte a conversão dos muçulmanos e como primeiro palco de acção a Terra Santa, seduzidos pelo ideário de outras antigas ordens medievais como os Templários, poucos auguraram sucesso para os planos destes jovens idealistas e entusiastas. Assim como os Templários, os Jesuítas afirmaramse e impuseram-se de forma fulgurante para espanto de muitos e, como a mesma Ordem do Templo, o seu sucesso foi enredado em polémicas e foi alvo de suspeitas graves. No entanto, apesar dos sérios ataques, reveses, expulsões e extinções sofridos pelos Jesuítas, estes souberam renascer poderosamente, adaptar-se e perdurar melhor que os extintos Templários, como hoje se pode comprovar

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com a verificação da importância e presença mundial que a Ordem de Santo Inácio continua a ter no quadro da Igreja Católica. Com efeito, a Companhia de Jesus afirmou-se na modernidade de forma fulgurante, com uma celeridade incomum e invulgarmente bem sucedida. As suas estratégias, competências, eficácia e prestígio alcançado de forma tão rápida trouxeram-lhe a hegemonia e o estatuto de pivot na liderança das esferas de acção das ordens religiosas do catolicismo. Sem olhar a esforços e ensaiando o recurso a novos meios, estratégias e métodos, alguns pouco convencionais, em nome do labor ad maiorem Dei gloriam, formou elites, afrontou a expansão do protestantismo, pregou a renovação das velhas cristandades e, ao mesmo tempo, penetrou com algum sucesso em culturas e povos até então difíceis de abordar para efeitos de proselitismo religioso, alguns deles desconhecidos da cultura ocidental. Partindo normalmente de uma prospecção prévia da realidade etno-antropológica de cada comunidade humana para onde orientava o seu

Texto: José Eduardo Franco Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa

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esforço de missionação, adequava e reinventava os métodos para melhor veicular a doutrina cristã. Mas aquilo que Eduardo Lourenço chamou de “pragmatismo transcendente”2, tornouse fonte da mais imaginativa suspeita.3

2. Sucesso e detracção A capacidade de adaptação revelada pela Companhia de Jesus foi entendida pela oposição antijesuítica como maquiavelismo religioso, desapiedado e despido de escrúpulos. A angariação pelos Jesuítas de meios materiais suplementares de sustentação das estruturas e equipas de evangelização ad extra e de educação ad intra – não se coibindo, quando necessário, de praticar comércio e de alargar propriedades –, foi interpretada sob o signo da cupidez, dada como imprópria, porque inconciliável com o estado de vida religiosa. A sua larga aposta na educação foi vista como forma de conquistar influência sobre a sociedade. A sua presença entre as esferas do poder como confessores, técnicos, sábios ou conselheiros, foi lida como o fruto de uma ambição cujo limite não era menos que o universo inteiro. A sua visão optimista do homem, com consequências no aliviar de uma concepção rigorista da moral, foi censurada como laxismo e permissividade. Estes e outros princípios – dados pelos seus adversários como opostos aos estabelecidos no acto constitucional primigénio da Companhia de Jesus e, no extremo, como uma inversão dos princípios do próprio Cristianismo – foram encerrados num conceito doutrinal amplo denominado pelos antijesuítas de Jesuitismo4. O antijesuitismo encerra em si uma longa tradição de debate em torno da modernidade e dos que ousaram responder de forma inovadora e adaptativa aos desafios da mesma modernidade que se afirmou sob o signo da secularização em relação à hegemonia unificante do religioso. Progressivamente o antijesuitismo foi-se tor-

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nando e definindo como uma luta não só contra uma instituição ou contra o seu modus procedendi, mas contra uma doutrina, uma filosofia de vida que transbordava muito para além dos limites institucionais, de acordo com a ampliação dada pelo desenvolvimento deste mito negativo. Como foram diversos os suportes e os géneros de discurso utilizados para produzir e veicular a imagem mítica dos Jesuítas também foram diversificadas as proveniências, tipos e graus de formação, estatutos e classes sociais dos seus produtores e difusores: políticos (do governo e da oposição), eclesiásticos (religiosos, padres seculares, missionários, inquisidores, bispos, cardeais e papas), administradores públicos, advogados, deputados, colonos, comerciantes, magistrados, romancistas, historiadores, filósofos, dramaturgos, actores, caricaturistas, jornalistas, juristas, cientistas, professores, pedagogos, as elites ilustradas em geral (da nobiliarquia e da burguesia) e o povo em geral participante em manifestações, em motins e proferindo palavras de ordem contra a Companhia de Jesus e os seus membros. Foram ainda diversas as suas filiações ideológicas e religiosas: absolutistas, liberais, mações, republicanos, socialistas, marxistas, anarquistas, livre-pensadores, crentes e ateus, católicos e protestantes. Assim sendo, está por demais comprovado que o movimento anti-jesuítico a que o Marquês de Pombal deu força política, com efeitos sísmicos que reduziram a ruínas o trabalho de séculos operado pela Companhia de Jesus, não é um caso isolado, mas enquadra-se num movimento internacional de forte oposição a esta ordem que contrabalançava com um movimento filo-jesuítico de apoio à mesma que também explica, em parte, o seu grande sucesso e sua proliferação global. Com efeito, o anti-jesuitismo, a nível internacional, constitui um fenómeno e um movimento religioso, cultural e sociopolítico, tão antigo quanto a própria Companhia de Jesus. Ele nasce logo na oposição e no processo de crítica ao grupo fundador da Ordem dos Jesuítas liderado pelo

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espanhol de origem basca, Inácio de Loyola. Jean Lacouture, constatando isto mesmo, sublinha que a atitude histórica que denomina por “la jésuitophobie est née avec la Compagnie. Il en existe même une forme utérine”5. A história do antijesuitismo encontra as suas primeiras germinações no momento embrionário, nos primeiros passos que conduziram à criação de uma das mais influentes instituições católicas que marcaram a presença da Igreja Católica no mundo a partir da modernidade. A crítica aos Jesuítas conhece os seus inícios logo nas censuras, nas suspeitas e nos requisitórios inquisitoriais que puseram em causa o modo de vida do Fundador e dos seus companheiros e o seu modo de actuar em termos pastorais. Na realidade, o fenómeno do antijesuitismo sendo tão antigo e primordial como a Ordem de Santo Inácio, também é um fenómeno que acompanha a expansão dos Jesuítas por toda a Europa e, mais ainda, por todo o mundo onde os Padres da Companhia chegaram cumprindo o seu programa constitucional de carácter orbícula que tinha por fim levar o reino de Cristo a todo o universo. Stefan Gatzhamer, neste sentido, afirma, no seu estudo sobre as campanhas portuguesas contra os Jesuítas na Europa, que o “antijesuitismo não conhece fronteiras”6. Sendo este um axioma que a nossa investigação tem confirmado largamente, podemos, pois, classificar o antijesuitismo como um fenómeno originário, universal e quase permanente. Originário porque remonta à génese da Societas Iesu começada a constituirse na década de 30 do século XVI e aprovada pelo Papa Paulo III em 1540; universal porque assistimos à sua manifestação em todos os cenários onde os Jesuítas desenvolvem uma acção mais ou menos consistente com visibilidade e impacto social; e quase permanente porque o antijesuitismo acompanha de forma significativamente fiel a afirmação desta ordem religiosa nos diferentes espaços nacionais, suscitando do lado contrário o filojesuitismo mais devoto que contrabalança aquela reacção

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hostil. Realmente, como compara, de forma prosaica mas bem sugestiva, o crítico português Pires Lopes: “falar dos Jesuítas é como discutir futebol: conforme a cor do clube, para aí vai a simpatia. Basta abrir a boca e fica-se logo no meio-campo preferido”7.

3. Educação, poder e cultura de combate Uma das expressões mais importantes do poder e influência pedagógica de uma instituição passa, desde a modernidade, pela erecção e controlo de universidades ou de colégios de prestígio e de dimensão significativos. A Universidade de Évora erigida em 1559, como a segunda universidade que complementou o ensino universitário ministrado pela Universidade de Coimbra em Portugal durante dois séculos, graças ao espírito empreendedor revelado pela emergente Companhia de Jesus fundada em 1540. Desde a chegada dos primeiros jesuítas, Simão Rodrigues e Francisco Xavier logo no primeiro ano da década de 40, que a Ordem de Santo Inácio de Loyola revelou uma capacidade empreendedora que suscitou simpatias devotadas como hostilidades militantes. A Universidade de Évora foi o ícone maior de todo um empreendedorismo educativo que em poucas década produziu a erecção de uma autêntica rede nacional de ensino com a criação progressiva de grandes colégios nas principais cidades do país e nos territórios coloniais portugueses onde os jesuítas se entregaram à actividade missionária e educativa. Regidos a nível internacional pelo código pedagógico da Companhia aprovado no final do século XVI com o nome ratio studiorum, Portugal teve com os Jesuítas aquela que pode ser considerada a primeira rede nacional e até internacional de ensino unificado por um mesmo método e ideário pedagógico que vigorou durante cerca de dois séculos atingindo uma população estudantil que em média rondava os 20 mil alunos na metrópole portuguesa.

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A surpreendente obra pedagógica dos Padres de Loyola juntamente com a vastíssima obra missionária, cultural, científica e espiritual desenvolvida a partir das suas instituições de ensino e residências espalhadas desde a metrópole portuguesa, com grande implantação no Brasil, algumas missões e colégios em África e nas Ilhas Atlânticas, até à sua importantíssima presença no Oriente e Extremo Oriente no quadro do Padroado Português vai acabar por ser totalmente varrida pela forte corrente antijesuítica que se gerou em Portugal e que o Marquês de Pombal acabou dar conteúdo ideológico sistematizado e força política. De um momento para o outro e com um investimento extraordinário de meios do Estado, o Governo do Rei D. José I liderado pelo ministro Carvalho e Melo pôs fim à presença da Ordem de Santo Inácio em Portugal e ordenou o encerramento da rede imensa de casas, colégios e universidade dos Jesuítas e a reconversão de suas infraestruturas no final da década de 50 do século XVIII. Colocava-se fim ao trabalho da maior e mais dinâmica ordem religiosa presente no país que perdia, com o fim da Companhia, a sua segunda universidade e toda a rede de ensino erguida durante dois séculos que já perfazia as três dezenas de colégios. Não é possível isolar de forma perfeita, os debates e as disputas em torno da educação, instrução, didáctica, princípios pedagógicos das questões já glosadas do poder, das clivagens entre paradigmas culturais e concepções políticas, nem da ideia de homem e de sociedade a estas subjacentes. As polémicas em torno do pensamento, investimento e acção educativa desenvolvida pelos Padres da Companhia de Jesus e pelas instituições que estes fundaram, dirigiram e fizeram proliferar, devem, pois, ser compreendidas neste leque mais abrangente de questões. São questões que derivaram em controvérsias agudas, cuja hermenêutica não pode ser desligada do conceito operatório que Diogo Ramada Curto denomina “civilização de com-

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bate”8 que lhes dá sentido profundo e global. Esta civilização/cultura/mentalidade marcada por uma ortodoxia, por um modelo de ordem social e de religião que estava a ser posto em causa, teve o seu centro difusor na Roma póstridentina. O ambiente programático da contrareforma modelou este perfil mental que imbuiu a cultura do tempo da Reforma, marcado pelo combate, ou melhor, pelo contra-ataque9, em paralelo com a promoção de um processo de reforma interna da própria Igreja Católica. Os Jesuítas situam-se nesta ambiência combativa fracturada pelas modernas situações de ruptura, lutando por restabelecer um diálogo ou debate que se revela penoso na demanda de compromissos que os colocaram sob suspeita e em conflito quase permanente. Esta ordemsempre-em-conflito e paradoxalmente sempreem-compromisso faz descer sobre si o estigma da ambiguidade, numa sociedade que tinha cada vez mais dificuldade em conviver com as situações de ambiguidade, tendo-lhe mesmo horror, e que desenvolvia mecanismos expurgatórios de todas as expressões que não se coadunassem com o rigor dos cânones instituídos. Tanto a Reforma Protestante, como também a Contra-Reforma Católica (que se afirmaram, em grande medida, por contraposição aos valores da Renascença, entendidos como inspiradores da degeneração do cristianismo e de um «afastamento de Deus»), ambas perfilhavam um regresso a uma ideia de «pureza original», um regresso às origens, às fontes da religião de Cristo, de modo a suster as cedências renascentistas feitas ao paganismo. Comprometidos com este ideário, os religiosos inacianos intuíram que o ensino seria, a longo prazo, um dos instrumentos mais adequados e eficazes para realizarem a sua missão de restaurar a alma da Igreja Católica e de conquistar novas almas para o redil cristão. Contudo, neste processo de contra-corrente da Igreja em relação à experiência renascentista, a Companhia de Jesus revelou-se ser filha do seu tempo, her-

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dando e assimilando algumas características do momento histórico em que nasceu, tanto no plano antropológico, como espiritual. Os Jesuítas desenvolveram, assim, uma espécie de simbiose entre a cultura reformista tridentina e a cultura renascentista. Recorde-se que a peça mestra de toda a construção teológica do Concílio de Trento foi o decreto sobre a justificação. Este decreto confuta a doutrina luterana que subalterniza a importância das obras de sóciocaridade, reafirmando a liberdade do homem nas suas relações com Deus e reequilibrando o papel do homem com o da graça divina no que respeita ao alcance da salvação. Rapidamente, os membros do grupo fundador da Companhia de Jesus, todos eles formados no centro universitário parisiense, ganharam consciência de que a aposta na Educação seria um grande meio de transformar a velha Cristandade, incutindo-lhe uma nova consciência. Ao mesmo tempo este investimento no ensino permitiria recrutar e formar qualificadamente missionários e professores das novas gerações. Embora esta aposta programática no ensino não decorresse de um consenso, nem sequer de um vislumbre da primeira hora, não demorou, contudo, muito tempo a que os fundadores ganhassem a convicção acerca da importância de um forte investimento neste domínio. Com efeito, logo a 4 de Março de 1541 o compromisso com a Educação foi integrado como um tópico importante do ideário da nova Ordem, no quadro das deliberações sobre a pobreza, constituindo um repentino e significativo volte-face constitucional da Companhia de Jesus, como ficou estatuído: “Por tanto nos pareceu a todos, desejando a conservação e aumento dela [Companhia] para maior glória e serviço de Deus nosso Senhor, que tomássemos outra via, a saber, de colégios”10. Os constitucionalistas jesuítas partiram da constatação sócio-educativa da falta de letrados e homens qualificados intelectualmente para responder aos desafios que se estavam a colocar à Igreja na modernidade. A resposta a esta necessidade revelou-se altamente expansiva da

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parte da Companhia, passando a ser uma das frentes de actuação, onde, ao lado da missionação, esta ordem mais se veio a notabilizar. Uma excepção estratégica introduzida na observância da pobreza regular (que deveria ser vivida à maneira das ordens mendicantes, sendo os Jesuítas constrangidos, em nome desta pobreza, a viver somente das coisas que lhes fossem dadas para satisfazer as necessidades) veio a facilitar imenso e ajuda a explicar a vasta expansão da rede de colégios da Ordem de Santo Inácio. Na Fórmula aprovada por Paulo III em Setembro de 1540, a Companhia de Jesus é autorizada a usufruir de rendas, frutos ou propriedades adscritas às universidades e colégios para sustentar os estudos e funcionamento dessas instituições de ensino11. Esta cláusula favoreceu enormemente a independência e a expansão das instituições educativas da Companhia e, por seu intermédio, das outras obras pastorais que a Ordem desenvolvia paralelamente, que não deixaram de ir muitas vezes colher subsídios económicos aos seus colégios. Os Jesuítas não só se afirmaram pelo número e abrangência sociológica das suas instituições de ensino, como também pelos métodos pedagógico-didácticos introduzidos e praticados, que se inspiravam no chamado modus parisiensi. Com o seu vasto empreendimento educativo e a experiência dele adveniente acabaram por estatuir uma espécie de código pedagógico da Companhia de Jesus chamado Ratio Studiorum, cuja redacção foi concluída em 1598 e o texto final promulgado a 8 de Janeiro do ano seguinte. Antes desta codificação da metodologia de ensino dos Jesuítas mandada consignar por uma comissão designada pela Congregação Geral em 1581 (assembleia que elegeu para quinto Superior Geral o Pe. Cláudio Aquaviva, que iria supervisionar a sua aplicação durante duas décadas de maturação), havia um texto provisório que regia o ensino nas escolas portuguesas da Companhia, que tinha sido redigido em 1565 pelo jesuíta espanhol Pedro Perpinhão. Este regimento, aliás, não divergia

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significativamente dos métodos praticados nas escolas da Ordem nos outros países. O projecto multinacional de ensino preconizado e codificado pelos jesuítas encerrava uma utopia educativa que consistia em alargar o acesso às letras a um número cada vez mais amplo de discentes, a fim de, através deste acesso, modelar um homem e uma sociedade nova. Este projecto foi empreendido à custa do afrontamento de uma mentalidade adversa e da gestão e superação (ou não) de uma trama complexa de tensões, de conflitos e de interesses. As contundentes controvérsias em torno do ensino e da pedagogia dos Jesuítas, não deixaram de estigmatizar, de forma profunda, a sua crescente hegemonia neste domínio. Tanto mais que a mentalidade social reinante no tempo ainda não estava preparada para aceitar e compreender um investimento deste vulto no ensino, sendo-lhe mesmo adversa, pois considerava tal aposta excessiva e até depauperadora dos recursos da nação. Já na primeira fase do reinado de D. João III, classificada por muitos autores como sendo a fase do cosmopolitismo humanista 12, que foi sensivelmente até ao fim da década de 30, o monarca português sentiu a oposição de parte considerável da nobreza que discordava do incremento real do “acesso à escrita”. Dessa altura, é reveladora da mentalidade reactiva contra o acesso ao ensino, a carta que Vasco Pina escreveu em 1532 ao Rei, dando conta da forte corrente que contestava a política cultural da coroa. É dado conhecimento ao monarca de um dito que corria de boca em boca, atribuído ao Bispo da Guarda, segundo o qual a pior coisa que podia haver era um homem de má índole ter acesso às letras, sendo que as letras associadas ao mal desencadeavam uma autêntica praga moral para a sociedade. Esta observação apotegmática é bem indiciária de uma mentalidade que olhava com pouco optimismo para a utilidade social, moral e mesmo práxica da educação alargada, o que é bem expressa neste trecho poético de Sá de Miranda, composto por aquela altura:

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“Dizem dos nossos passados Que os mais não sabiam ler; Eram bons, eram ousados. Eu não louvo o não saber, Como alguns às graças dados; Louvo muito os seus costumes, Dói-me hoje não são tais; Mas, de letras e perfumes, Donde vem o dano mais”13.

O projecto educativo da Companhia de Jesus levado a cabo pelos seus membros em Portugal situava-se nos antípodas desta mentalidade prevalecente que pouco cria nas possibilidades do incremento do estudo para proveito do reino. A partir de meados do século XVI os Jesuítas abrem caminho para o controlo generalizado dos centros de ensino colegial das principais cidades portuguesas. A 10 de Setembro de 1555, o Rei entregou ao Provincial da Companhia de Jesus, Pe. Diogo Mirón, o Colégio Real das Artes e Humanidades, mais conhecido pelo nome abreviado de Colégio das Artes, que tinha sido instituído por D. João III a 16 de Novembro de 1547 destinado a ministrar o ensino médio, preparatório do ingresso na Universidade de Coimbra. Este colégio foi entregue à direcção dos Padres da Companhia depois de um rumoroso processo inquisitorial em que são colocados sob custódia do Santo Ofício mestres eminentes, como Diogo de Teive, João da Costa e o professor escocês Jorge Buchanan, nos quais recaía a suspeita de heresia, desregramentos morais e outros procedimentos considerados reprováveis14. No decurso das intrigas e das delações que conduziram a este processo judicial que acabou por resultar na condenação de administradores e mestres daquele colégio real, a Companhia de Jesus tomou posse desta instituição de ensino, permitindo-lhe estar à frente de mais uma escola pública, agora em Coimbra, à semelhança do que já acontecia em Lisboa e em Évora. Pois, o chamado Colégio de Jesus que os Jesuítas

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tinham começado a edificar em 1547 na cidade universitária de Coimbra estava apenas reservado ao ensino privado da Ordem. Esta transferência de direcção não deixou de suscitar fortes murmurações contra a preponderância cada vez maior dos Jesuítas no controlo do ensino pré-universitário. Esta preponderância foi ampliada significativamente logo a seguir com a elevação do seu Colégio do Espírito Santo, sediado em Évora, ao estatuto de universidade, colégio que tinha sido inaugurado poucos anos antes, em 1553. Neste processo fundacional de celeridade inédita em Portugal, a Companhia de Jesus muito contou com o apoio decisivo do cardeal D. Henrique que, entretanto, se tinha tornado um protector dedicado desta nova Ordem. Como se esperaria, a própria Universidade de Coimbra, preocupada em manter incólumes os seus privilégios e primazias, temeu esta expansão impressionante dos Jesuítas no domínio dos vários níveis de ensino. Além da série de colégios que estava a erguer com uma celeridade inabitual, juntava agora o novo centro universitário de Évora com direitos e prerrogativas paritárias com as da clássica universidade portuguesa. A universidade coimbrã chegou a recear que estes Padres estrangeiros, como eram no princípio apelidados os jesuítas, viessem também tomar conta da direcção desta que era considerada a primeira grande instituição de ensino do país. Aliás, como de facto teriam chegado a propor alguns docentes, entre os quais o famoso Doutor Martim de Azpilcueta. O que, na realidade, nunca chegou a acontecer. E as poucas intervenções directas que os Padres Jesuítas tiveram naquela Universidade verificaram-se relativamente à leccionação das cadeiras de Teologia e Matemática, em que se destaca a contratação do célebre jesuíta Francisco Suárez, que ficou conhecido com o cognome de Doutor Exímio, para lente de Prima Teologia. De facto, a pouca influência histórica dos Jesuítas na Universidade de Coimbra contrasta com

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a tese que vai ser mais tarde muito propalada pelo panfletismo antijesuítico pombalino, segundo o qual a decadência pedagógica daquela universidade se deveu exclusivamente ao controlo jesuítico a partir da segunda metade do século XVI em associação com o uso de metodologias e ideários semelhantes ao que era usado na Universidade de Évora15.

4. Choque de paradigmas: iluminismo e antijesuitismo pedagógico Com a emergência do século das Luzes, as tendências internacionais pedagógico-científicas ocorridas à margem da Companhia de Jesus não deixaram de ter reflexo na própria Ordem de Loyola. E as polémicas de pendor iluminista em torno do ensino dos Jesuítas vão como que fazê-los acordar progressivamente para uma cada vez maior atenção e adesão aos novos sistemas filosóficos e para o desejo de ver Portugal agarrar a carruagem do progresso europeu nestes domínios, como se tornou bem patente na aludida tradução da obra de Noel Regnault. Isto não apaga, todavia, as dificuldades reveladas na adaptação aos novos tempos e de abdicação dos clichés e sistemas epistemológicos e científicos que tinham dado à Companhia tanto renome nos duzentos anos anteriores. Os contraditores dos Jesuítas procuravam afirmar um novo modelo pedagógico e cultural assente no paradigma iluminista que se opunha à mundividência e à antropovidência fundada no sistema de ensino escolástico. Neste clássico sistema a Companhia de Jesus aparece como o símbolo e o bastião a abater no quadro do novo ideário de mudança. Os seus inimigos revelaram-se implacáveis no ataque a esta instituição que preponderou durante dois séculos de história em Portugal. O famoso Curso Filosófico dos Conimbricenses, glória pedagógica dos jesuítas portugueses, que serviu de manual a muitas gerações de alunos

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a nível internacional (tendo o próprio Descartes estudados por estes manuais) não resistiu à erosão do tempo e revelou-se desactualizado e inadequado às novas exigências e aos novos desafios do pensamento. A reforma pombalina foi, com efeito, imposta de cima, por um grupo de “iluminados”, uma comissão externa, para “destruir o ethos educional jesuítico”. Contudo, esta reforma universitária não foi realizada, pelo menos de maneira significativamente visível e comprometida, em cooperação com o corpo docente da instituição coimbrã. Reformou-se sem um compromisso com as bases. Talvez resida aqui também, em parte, alguma explicação para os parcos resultados verificados a breve trecho em termos de adesão ao novo paradigma universitário imposto pela administração pombalina. Importa salientar que as reformas pombalinas do ensino tecem-se e concretizam-se à sombra da montagem de um aparato historiográfico acentuadamente imaginário, o imaginário da conspiração jesuítica, erguido para justificar e potenciar a acção reformista na linha hermenêutica definida por Gilbert Durand acerca da funcionalidade do imaginário: “Aussi l’imaginaire, loin d’être vaine passion, est action euphémique et transforme le monde selon l’Homme de Désir”16. Em suma, o Marquês de Pombal luta contra um mitificado sistema de ensino, estabelecido pelos Jesuítas em Portugal e que tinha por ícone máximo a Universidade de Évora, presidido pela inteligência destruidora da Companhia de Jesus, que teria difundido por todo o País uma ignorância sistemática em relação ao que seria a prossecução dos interesses do Estado. Como reverso deste quadro imaginário situado no passado, apresenta com carácter dogmatizante um novo sistema de educação que pretende demonstrar ser perfeito na aparência, como meio privilegiado para levar a cabo a sua utópica salvação nacional. Assim sendo, o governo pombalino coloca-se oficialmente do lado da

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corrente que propugnava o triunfo da inovação contra a tradição, contribuindo para acentuar de forma irreconciliável o fosso que se vinha cavando entre estes dois «partidos» na sociedade portuguesa. Esta cisão iria prolongar-se por mais de dois séculos dificultando a concertação cultural e gerando uma espécie de esquizofrenia nacional. Contudo, em última análise, entendemos que a maior ou menor modernidade da política reformista pombalina está menos nas suas consequências práticas a curto ou médio prazo, e mais na inauguração, através daquele poderoso gesto reformista depois mitificado, de uma nova mentalidade, de um nova atitude científica, cujos frutos podem ser aferidos a longo prazo. Modernidade pombalina aconteceria mais naquele movimento que gerou ou que se havia de rever mais tarde no gesto prometaico do Marquês de Pombal, criador de uma nova era cultural e mental marcada pelo desejo de ruptura com o paradigma tradicional de matriz escolástica para acolher em plenitude o novo paradigma emergente na Europa: o paradigma iluminista de pendor racionalista. Mas mesmo aqui as porosidades entre ruptura e continuidade e as filiações entre os seus representantes hipotecam as visões que tendem a arrumar a história em compartimentos estanques. O sistema de ensino da Companhia de Jesus promovido através das suas estruturas de ensino, colégios e universidades, acabou por ser um dos alvos preferenciais do ataque pombalinoiluminista ao paradigma que os Jesuítas passaram a representar no ideário de execração: uma idade de “trevas” que se opunha, para efeitos propagandísticos, à nova era “iluminada” que se pretendia erguer por oposição e combate àquela. No entanto, a ambição de rupturas esconde panfletariamente as continuidades, que acabam por ser mais significativas do que a história contada deixa antever.

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1 Chris lowney, Liderança Heróica, lisboa, 2006, pp. 14-15. 2 eduardo lourenço, “Portugal e os Jesuítas”, in Oceanos, Nº 12, 1992, p. 47. 3 este artigo foi composto a partir do trabalho realizado pelo autor para constituir a sua tese de doutoramento entretanto publicada: José eduardo Franco, O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil, no Oriente e na Europa, Pósfácio de eduardo lourenço, 2 Vols., lisboa, 2006-2007. 4 Cf. Juan José Coy, Requiem por el Jesuitismo: Ensayo sobre la verdad y la imagen de la Compañía de Jesús, Salamanca, 1974, p. 17 e ss. 5 Jean lacouture, Jésuites, Vol. 2, Paris, 1992, p. 80.

6 Stefan Gatzhamer, “o antijesuitismo europeu: relações político-diplomáticas e culturais entre a Baviera e Portugal (1750-1780)”, in Lusitania Sacra, Vol. V, 1993, p. 159. 7 F. Pires lopes, “Bibliografia-História”, in Brotéria, Vol. 150, 2000, p. 113. 8 diogo ramada Curto, O Discurso político em Portugal (1600-1650), lisboa, 1988, p. 14.

13 Francisco de Sá de Miranda, Poesias, introd. e notas de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Halle, 1885, p. 790. 14 Cf. aNtt, Inquisição de Lisboa, processo nº 9510. e ver Mário Brandão, Os professores dos cursos das Artes nas Escolas do Convento de Santa Cruz, na Universidade e Colégio das Artes, de 1535 a 1555, Coimbra, 1929.

9 Cf. Ibidem.

15 Cf. Junta da Providência literária (Marquês de Pombal), Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra, edição Coordenada por José

10 Constitutiones Societatis Jesu latinae et hispanicae cum earum declarationibus, apêndice iV, p. 307.

eduardo Franco e Sara Marques Pereira, Porto, Campo das letras, 2008.

11 Cf. Manuel Pereira Gomes, s.j., S.to Inácio e a Fundação de Colégios, [Santo tirso], 1996, p. 42.

16 Gilbert durand, Les strutures antropologiques de l’imaginaire, 9ª ed., Paris, 1969, p. 501.

12 V.g. luís Filipe Barreto; José Manuel Garcia, Portugal na abertura do mundo, 3ª ed., lisboa, 1991.

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A Língua Portuguesa no Mundo A Universidade de Évora e a actividade missionária

“Quando, finalmente, penetramos nas selvas e florestas da barbárie, achamo-nos mudos e surdos; mudos, porque falando não somos entendidos; surdos, porque ouvindo não entendemos; por isso, somos forçados a incumbir-nos, ou quase a sucumbir, da pesadíssima tarefa de aprender as suas dificílimas e obscuríssimas línguas, sem nenhum guia ou luz que nos oriente, arrancando dos fundamentos as formas totalmente abstrusas das novas gramáticas e, de tão obscuras, como que adivinhando-as” Pe António Vieira, Clavis Prophetarum. Chave dos Profetas, 2000

Texto: Maria João Marçalo Maria do Céu Fonseca

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ão são necessárias razões para, a propósito da língua portuguesa, se evocar o nome de Pe. António Vieira. Vai sem dizer que não estão a confundir-se efemérides comemorativas – o ano Centenário do nascimento do jesuíta barroco e os 450 anos da fundação da Universidade de Évora, a par dos 250 da sua interrupção forçada –, nem a

estabelecer-se entre elas ligações artificiais. Dá-se é o caso de Vieira encarnar o “protótipo do missionário” (Maria Lucília Gonçalves Pires, O protótipo do Missionário em textos de Vieira, 1997), coisa que calha a propósito da “Acção missionária da Universidade de Évora” (António Fernando M. Janela, Alvoradas, 1960-62) fora do continente europeu, onde os destinatários eram gentios e infiéis. O assunto, porque ligado ao estabelecimento do ensino jesuítico numa das principais cidades do reino, não espera defesa nem ilustração. Por diferentes que tenham sido as trajectórias dos protagonistas desta acção missionária e a fortuna do seu labor nos ministérios da pregação, da catequese e da confissão, os dois séculos que constituíram o primeiro ciclo de existência da Universidade de Évora foram também de integração no “Ciclo do Império” (Rosado Fernandes, A Universidade de Évora – Ontem), pela vivência do apostolado missionário que o Instituto de Loyola abraçava. De forma indirecta, através de acção diplomática, ou directa, através de produção científicopedagógica ou envolvimento em cargos eclesiásticos (caso do mestre de teologia D. Pedro Martins, primeiro bispo do Japão, em 1596), a ligação indissociável da Universidade de Évora à actividade missionária na Índia, China, Japão, Brasil e Angola marca a história do ensino jesuítico português a sul do Tejo. Toma-se aqui de empréstimo, data venia, o título A língua portuguesa no mundo de obra de Jorge Morais Barbosa, datada de 1969, desta

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feita para uma incursão por factos e nomes da história da Universidade de Évora durante o período do preceptorado da Companhia de Jesus (1559-1759), que correspondem aos valores do modelo ideal do missionário vieirino. A alfabetização na língua europeia e o envolvimento na aprendizagem das línguas indígenas, dois campos de acção desde a primeira hora articulados com intenções catequéticas, constituíram dois dos mais determinantes ministérios da missão dessa figura ideal, que a Companhia de Jesus tinha como definidores da sua vocação apostólica a povos que a Europa culta e cristã imaginava miserabiles personae. Como agentes de ensino, bem sabiam Vieira e os seus irmãos de roupeta em missão nos territórios extraeuropeus, que o domínio das línguas orientais e ameríndias era a melhor medida profiláctica e europeísta de instaurar a comunicação para depois melhor se exercer o magistério. Não é por acaso que o popular catecismo dos padres Marcos Jorge e Inácio Martins – dois nomes ligados à génese da Universidade de Évora – foi traduzido (com adaptações, que hoje se denominariam “tradaptações”) para concani, tâmil, japonês, quicongo e tupi, mas porque, como modelo da evangelização jesuítica e daí a sua larga fortuna editorial além-fronteiras, serviu para o exercício da gramática da comunicação, propedêutica da gramática da língua. A eficácia linguística dos catecismos ou cartilhas, em geral, e, em particular, da Doutrina Cristã dos jesuítas Marcos Jorge e Inácio Martins mede-se pelo facto de terem sido os primeiros instrumentos pedagógicos ao serviço da instrução alfabetizada e da comunicação religiosa, com precedência editorial relativamente às gramáticas e dicionários. Escritos em português ou nos próprios idiomas locais utilizados na missionação, permitiam pregar aos nativos e supletivamente alfabetizá-los no português. Sobre Jerónimo Rodrigues, alentejano e mestre da Universidade de Évora também com actividade missionária no Oriente (Japão, Tidor, Macau), escreveu um cronista da Companhia de Jesus a propósito do trânsito dos catecismos

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no meio escolar autóctone da segunda metade de Quinhentos: “& para instruir a todos compoz o Padre [Jeronymo Rodriguez] à imitação de S. Francisco Xavier hũa breve declaração da doutrina na lingua Malaya (…) e foi grande o fruto, que resultou desta obra” (Pe. Francisco de Sousa, Oriente conquistado a Jesus Cristo, 1978 [1710]). No quadro da expansão linguística, estamos entendidos quanto ao rol de batedores da Universidade de Évora. Marcos Jorge e Inácio Martins, chamados a fundar, respectivamente, os ensinos de teologia e filosofia no primitivo Colégio do Espírito Santo (inaugurado em 1553), agenciaram o processo de difusão da língua através do ensino da doutrina cristã em todo o mundo português. A Marcos Jorge tributa-se a autoria do catecismo que maior acolhimento teve nas missões ad infidelem; já em relação a Inácio Martins, que apresenta um vínculo especial à universidade eborense, os encómios registados na história da província portuguesa acentuam, não tanto o seu papel de quase co-autoria da obra de Marcos Jorge, mas o extraordinário apostolado de catequista pelas ruas de Lisboa, na década de 1580. Depois destes, outros, oriundos de geografias diversas, mas com prevalência do Alentejo, continuaram no mesmo trilho com igual valimento. Dos catecismos e literatura cristã, muita na versão hindu dos puranas cristãos, até aos dicionários bilingues, gramáticas ou simples cartilhas, passando pelo sermonário, epistolografia e historiografia, tudo foi cultivado, em português e nas línguas locais, com o propósito pragmático de catequização e educação das populações. Na Central Library de Pangim (capital do Estado de Goa), que goza da reputação de uma das mais antigas bibliotecas da Ásia, podem hoje consultar-se muitos destes documentos manuscritos e impressos da época da Índia portuguesa. No contexto da hegemonia do latim, base da cultura humanística que não se desligava do estudo da gramática e da retórica, os nomes de Manuel Álvares e de Bento Pereira fizeram

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história, cada um à sua maneira. Deixando de remissa, por enquanto, Bento Pereira, comece-se pelo primeiro. Manuel Álvares, catedrático na gramática latina do ensino jesuítico aquém e além fronteiras da Europa (note-se a sua presença no Ratio Studiorum ou método de estudos da Companhia), não menos ligado está à história da gramática em língua japonesa. O exclusivismo da sua De Institutione Grammatica Libri Tres (Lisboa, 1572), regimento dos estudos latinos durante quase dois séculos, que alimentou muitas e variadas gerações de estudantes, além de uma legião de comentadores, glosadores e reformuladores, justifica que uma tradução japonesa tivesse surgido da parte de um ou de vários religiosos do colégio de Amacusa. Em 1594, é assim publicada, numa tipografia do Japão, a chamada gramática japonesa do célebre jesuíta madeirense, De Institvtione Grammatica Libri Tres. Coniugationibus accessit interpretatio Iapponica (Amacusa, 1594), para uso dos missionários do Japão. Desta raríssima obra, cujos dois únicos exemplares conhecidos pertencem à Biblioteca Pública de Évora e à Biblioteca Angélica de Roma, as notícias dão-na como a edição japonesa da gramática latina do Pe. Manuel Álvares. De facto, no âmbito da conjuntura editorial que a gramática latina do mestre da universidade eborense alimentou durante vários séculos e sobretudo no XVII, a obra parece corresponder ao desejo de pôr ao alcance dos educadores do Japão, que tinham por desbravar o vasto campo do ensino elementar, regras conjuntas da gramática latina e da gramática japonesa, no caso “De verborvm conivgatione”, para maior eficácia da sua acção. Por outro lado, recorde-se, desde que Francisco Xavier chegou ao Japão, em 1549, a aprendizagem da língua japonesa passou a ser recomendação sistemática na correspondência que chegava das missões do Japão e da China. O Pe. João de Lucena, mestre de filosofia na Universidade de Évora e tido por clássico da literatura portuguesa, também dá notícia da intensa actividade linguística desenvolvida pelos primeiros jesuítas que com Francisco Xavier chegaram à Costa do Malabar.

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A sua História da vida do Padre Francisco Xavier e do que fizeram na Índia os mais Religiosos da Companhia de Jesus (1600), que tem servido de fonte ao estudo da missionação portuguesa no Oriente, traz informação sobre escolas de línguas – de sânscrito e de línguas faladas como o tâmil e concani – criadas em terras sob o padroado dos inacianos; e ao próprio Francisco Xavier é atribuída a autoria de abundante literatura cristã, que conta com compêndios doutrinais escritos em português e traduções para tamil de catecismos latinos. Note-se, porém, que o imperativo da aprendizagem do português era ciclicamente sublinhado por autoridades civis e eclesiásticas. Veja-se alvará do vice-rei Conde de Alvor, emanado a pedido dos franciscanos, que estabelecia três anos a contar de 1684 para que todos os que falavam concani aprendessem português; na mesma linha, a proibição do Papa Alexandre VIII (1658) de se realizarem confissões com recurso a intérpretes; ou ainda, já no século XVIII, a pregação do arcebispo D. Frei Lourenço de Santa Maria relativa à permissão de casar apenas para aqueles que falavam português. Quanto às traduções realizadas, tal actividade linguística é também sintomática da permeabilidade de culturas que caracterizou a acção missionária portuguesa, da tolerância pelo desconhecido e da capacidade de espanto pelo refinamento de uma cultura alheia aos ditames do cânone ocidental. Disso dão testemunho muitos alentejanos e universitários eborenses, quase sempre com total conhecimento de causa, como Álvaro Semedo, António Francisco Cardim, Fernão Guerreiro, Francisco Barreto e Gaspar Afonso, em abundante literatura de missionação escrita em português desde finais do século XVI e intensamente durante o XVII: cartas, relações e crónicas sobre o apostolado jesuítico vivido na Índia, China e Japão, mundos de difícil penetração evangélica. Quando, já entrado o século XVII, um correligionário nortenho, o Pe. João Rodrigues, declarou na sua Arte Breve da Lingoa Iapoa (Amacau, 1620)

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tratar do “estillo da escritura, & sua variedade, & de outras cousas proveitosas pera entender os livros Sinicos & Iaponicos”, tal não é senão a resposta de uma descrição gramatical adequada aos elevados níveis da cultura nipo-chinesa e ao mistério das letras sínicas (base do sistema gráfico japonês). A língua, quer a japonesa, quer a chinesa, apresentava uma antiguidade documentada em abundante tradição literária; a universidade estava constituída e organizada; a religião estabelecida em igreja. Esta era a imagem da China e do Japão alimentada pelos homens de Quinhentos – cronistas da expansão com informações indirectas, os pioneiros Tomé Pires e Gaspar da Cruz – e que, no campo da missionação, não deixou de suscitar comparações diversas com os índios das florestas brasileiras. Uma dessas imagens, em forma de bosquejo da história da China, foi construída pelo atrás citado Pe. Álvaro Semedo, narrador e por vezes protagonista das histórias de um império notável retratado na Relação da Grande Monarquia da China, obra que, antes de impressa em português, saiu em espanhol, italiano, francês e inglês. Atribui-se-lhe ainda o epíteto de “lexicógrafo luso-chinês”. Os caminhos que percorreu, da Universidade de Évora à província de Nanquim, passando pelos anos de formação no colégio jesuítico de Ranchol, em Goa, e o saber de experiência feito em muitos anos de missionação na China explicam a sua actividade de lexicógrafo na redacção dos dicionários de português-chinês e chinês-português. Embora de autoria comprovada em vários registos bibliográficos, não chegaram a passar para letra de forma, interrompidos pela morte do Autor. No mesmo âmbito – lexicografia e línguas orientais –, encontra-se o nome do discípulo da Universidade de Évora Gaspar do Amaral, desta feita vinculado ao então chamado reino da Cochinchina, região que, correspondente à parte mais meridional do Vietname, ficava a caminho da China. Quando se agudizaram as relações com o Japão e os conflitos entre as ordens religiosas, ali se instalou a missão por-

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tuguesa, a partir de 1615, com Francisco de Pina à frente, pela antiguidade. A fazer fé nas fontes de Seiscentos, pode dizer-se que este terá sido o primeiro europeu a falar correntemente a língua anamita, que Gaspar do Amaral será autor de um vocabulário anamita-português, cuja versão português-anamita é atribuída a António Barbosa e que os três decerto terão tido responsabilidades no processo de romanização então operado no sistema da língua anamita. Mas a notoriedade deste trio entre os Portuguese Pioneers of Vietnamese Linguistics (Roland Jacques, 2002) advém de obra conhecida de visu. O dicionário de anamita-português-latim Dictionarivm Annamiticvm Lvsitanvm et Latinvm (Roma, 1651), publicado sob a autoria do jesuíta francês Alexandre de Rhodes, contou com os trabalhos já existentes dos padres Gaspar do Amaral e António Barbosa. Muito provavelmente, a parte anamita e a parte portuguesa deste dicionário trilingue serão compilação dos vocabulários dos dois jesuítas portugueses, segundo as informações do preâmbulo “Ad lectorem”, assinado por Alexandre de Rhodes. Não termina ainda a vivência linguística dos académicos eborenses, sempre através da observação contrastiva com o latim e o português, por diferentes que fossem as línguas estudadas. De entre os muitos textos vieirinos relativos ao tema da acção missionária, o excerto atrás citado em epígrafe é talvez das mais pragmáticas descrições do envolvimento linguístico dos de Loyola no vasto continente americano. “Milagre”, “desesperação”, “martírio”, “horror” são predicados usados pelo pregador barroco para caracterizar nesta parte do mundo a tarefa de imprimir disciplina gramatical a línguas ameríndias sem escrita, sem gramática, sem regras. Talvez por isso poucas foram as descrições linguísticas produzidas entre 1500 e o “grito do Ipiranga”. Tal era a dificuldade que Vieira atribuiu natureza de milagre à primeira gramática da língua tupi da autoria do espanhol de Tenerife José de Anchieta (Arte de Gramática da Lingua mais usada na Costa do Brasil, Coimbra, 1595), o que, conquanto se reconhecesse a

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Anchieta fama de santidade idêntica à do navarro Francisco Xavier nas Índias, não é senão uma das muitas metáforas do prodígio que constituía a gramaticalização de tão estranhas e diversas línguas. Para se ter uma ideia deste perfil plurilinguístico e multiétnico, leia-se o capítulo “Da diversidade de nações e línguas” (Tratados da Terra e Gente do Brasil, 1925) do historiador e etnógrafo de Viana do Alentejo Pe. Fernão Cardim. Na Biblioteca Pública de Évora encontram-se dois dos manuscritos deste jesuíta alentejano – como o seu irmão, António Francisco Cardim, missionário no Oriente, terá passado pelos bancos da Universidade de Évora –, cuja descrição seiscentista da história natural e social do Brasil, hoje com o valor documental de colecta feita in loco, visava levar ao conhecimento do homem culto europeu notícias das novas terras e gentes. Aos escritos de Anchieta e de Fernão Cardim, seguiram-se os do Pe. Luís Figueira, natural de Almodôvar, estudante da Universidade de Évora e figura incontornável dos estudos linguísticos sobre o tupi. O lugar cimeiro que lhe cabe no âmbito da literatura didáctica genericamente conhecida pelo nome de tupinologia, fica a dever-se à sua Arte da Lingva Brazilica (Lisboa, 1621 e 1687). Os vinte e seis anos que a separam da congénere de José de Anchieta são também mensuráveis em distância epistemológica, já que a obra do missionário alentejano é didacticamente mais estimável que a sua primogénita. Não sofrem dúvidas os termos em que o Superior Manuel Cardoso assina a “Aprovaçam” desta gramática: “& se deve ao P. Luis Figueira muito agradecimento, por facilitar com seu trabalho, o muito, que os que aprendem esta lingua brasilica costumaõ ter: naõ obstante a arte do P. Joseph Anchieta, que por ser o primeiro parto ficou muy diminuta, & confusa, como todos experimentamos”. A esta actividade de gramático, acresceu a responsabilidade na organização da vida escolar, à medida que se edificavam cidades e fundavam núcleos populacionais. A primeira escola do Estado do Maranhão com ensino de latim

e humanidades foi aberta por Luís Figueira à roda de 1625, para o ensino de portugueses e população convertida. Seriam para isso de excelente efeito obras como a que o jesuíta Bento Pereira escreveu, a Ars Grammaticae pro Lingva Lvsitana Addiscenda (Leão, 1672), que, podendo servir aos “domesticis”, visava directamente acautelar o ensino do português às nações estrangeiras: “obra que te ofereço para que aprendas – caso sejas estrangeiro –, ou para que te corrijas – caso sejas português”, escreveu o Autor dirigindo-se aos leitores (Prefácio “Ad lectorum”). Note-se que, desde o início da colonização foi sentida a falta de livros que “nos fazem muita míngua para dúvidas, que cá há”, queixava-se o Pe. Manuel da Nóbrega em encomenda bibliográfica ao Reino. Na medida em que o ensino estava cometido a um grupo de missionários multinacionais do mundo católico, cuja língua franca era o latim, tornava-se necessário facultar-lhes o acesso a textos gramaticais acomodados ao idioma culto internacional. Compreende-se assim que este estimado gramático da Universidade de Évora, que aí, porém, regeu filosofia e teologia, tenha escrito em latim uma Gramática da Língua Portuguesa, orientada para os negociantes, agentes de intercâmbio linguístico, e para os missionários, agentes da alfabetização. Facilitando-se-lhes a aprendizagem da nossa língua, uns e outros assegurariam as suas refracções culturais.

Fonte dos Claustros, Colégio do Espírito Santo Foto: David Prazeres

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Inovação ~ Tradição ~ Globalização Projecto ciências, literatura e memória

Apontamentos andarilhos

Memórias da Companhia de Jesus no Centro Académico de Évora

Texto: Ana Luísa Janeira Professora Associada com Agregação em Filosofia das Ciências Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Co-fundadora, primeira coordenadora e actualmente investigadora Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL) Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral

Ana Luísa Janeira – Topologias da Memória. In “Marcas das Ciências e das Técnicas pelas Ruas de Lisboa”. Lisboa, 2009. http://marcasdasciencias.fc.ul.pt/ conteudo/ficheiros/topologias.pdf 1

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senso-comum associa a memória predominantemente ao tempo, mas também aqui, será importante que a Filosofia procure questionar ou complementar o óbvio, reflectindo sobre essa associação de ideias e abrindo uma articulação ao espaço. Na verdade, importa relevar como o conceito é configurado pela “ordem das sucessões”, mas também pela “ordem das coexistências”, como Gottfried Wilhelm Leibniz sabiamente os expressava. Forma de pensar que proporá, como consequência, uma “topo - logia” associada à “crono - logia”. Situação que é por demais essencial, quando a cidade é pensada, no traçado como no edificado, nos arruamentos como nos complexos arquitectónicos. De facto, vazios e cheios concorrem para a representação deste tipo de espacialidade, como ainda para as vivências e as apropriações que deles são feitas1. Num processo com mudanças e descontinuidades, com património e paisagem em insistente alteração. Paralelamente, as representações e as imagens, as ocupações e as reminiscências constroem um não sei quê de visível e de inatingível que tão bem se sente, quando se diz o espírito do lugar. Seja o que perpassa para quem o vive, num misto de presença e de ausência, de actualidade e de passado. Tão permanente, quanto

alimentado por uma energia que supera o efémero. Mas para que isso aconteça no convívio quotidiano com edifícios, avenidas, praças e jardins, importa que a cultura histórica e o conhecimento epistemológico enriqueçam o sentir imediato, fornecendo-lhe conteúdos interpretativos. Assim sendo, o espírito do lugar, no caso do núcleo central da Universidade de Évora, trans(ins)pira uma hermenêutica que passa, naturalmente, pela Companhia de Jesus. Dada a soberania conquistada e mantida, entre actuações do poder e saber, com manobras nas cortes e academias, muitas cidades mostram topónimos correlativos, desde a Couraça dos Apóstolos em Coimbra ao Largo da Companhia de Jesus em Macau, passando pelo Pátio do Colégio em São Paulo e a Manzana Jesuítica em Córdoba. Daí a frequência de uma iconografia e de uma toponímia espalhadas pelo mundo, ambas existentes em Évora: Largo do Colégio, entre o Largo dos Colegiais e a Travessa do Cordovil, em frente da Igreja do Espírito; Largo dos Colegiais, entre a Rua José Estêvão Cordovil e o Largo do Colégio, o qual ladeia o actual Seminário, a Universidade e a Igreja; sigla IHS numa casa na Rua do Cardeal-Rei. Com casas onde frequentemente coabitavam muitas bocas a alimentar e devido à necessida-

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Quinta de Valbom, casa de recreio dos professores da Companhia de Jesus em Évora, entre 1580 e 1759. Actual propriedade da Fundação Eugénio de Almeida Foto: Susana Rodrigues

de de fortalecer a saúde para/em climas hostis, é óbvio que precisavam de manter economias auto-suficientes, servidas por espaços agrícolas adequados, como aconteceu nos engenhos de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, nas estâncias à volta da província de Córdoba – Caroya, Jesús Maria, Santa Catalina, Alta Gracia, Candelaria e San Ignacio – onde principiou o cultivo da vinha argentina, ou ainda no Rio Grande do Sul, com a erva-mate e as ovelhas missioneiras. Daí a administração de quintas e herdades, muitas vezes com alguma dimensão, ambas a terem existido nos arredores de Évora: Quinta de Valbom, hoje Adega da Cartuxa, ou Quinta do Louredo, na Estrada da Igrejinha. Esta milícia religiosa incorpora uma relação especial com a memória, nomeadamente com a sua memória. Como consequência, retomou a tradição cristã de edificar – onde aplicava a essência da arquitectura ao serviço da perenidade, lembre-se a volumetria e a robustez das igrejas, da América do Sul à Ásia – como lhe acrescentava a preocupação constante de acumular um discurso descritivo que permitisse transcrever e fazer perdurar o passado, recordem-se a obrigatoriedade das cartas ânua e a riqueza historiográfica sequente. Os aspectos anteriores articulavam-se com o paradigma que a orientou desde sempre: a missão. De facto, o alvo maior centraliza-se na ideia de exercitar a alma em favor da actuação do espírito, incluindo naturalmente o aperfeiçoamento dos caminhos da fé, mas também os dons e as perícias da razão, a propagar sem tréguas e por toda a parte. Daí a importância de duas instituições maiores: os noviciados e os colégios, ambos existentes em Évora: o Colégio do Espírito Santo (1551?1559-1759), com a igreja primitiva na

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actual Sala de Actos e três pátios, dois mais antigos, de cada lado da primitiva igreja e um terceiro, o grande, posterior, chamado Pátio das Escolas; o Conventinho, entre a Igreja do Espírito Santo e o Colégio de Nossa Senhora da Purificação, com entrada pelo Largo dos Colegiais e dois pisos, sendo o inferior para os irmãos do recolhimento. Paralelamente, a premência de registo ou de arquivo, de estudo ou de catequética implicaram cuidados precisos com a palavra escrita e impressa, pelos que geraram processos de divulgação e de evangelização sofisticados, chegando ao ponto de latinizar caracteres estranhos para os vietnamitas, ou de implementar pautas de música sofisticadas para os mojos. Daí a importância de espaços e mecanismos para imprimir, ambos existentes em Évora: a Imprensa Académica localizada no Colégio de Nossa Senhora da Purificação (século XVII), com uma planta quadrangular e o Pátio dos Estudos, onde hoje está instalado o Seminário. Vocacionados excepcionalmente para a evangelização, os primeiros companheiros de Santo Inácio usaram a inteligência e a vontade para veicular um discurso que encontrava no ouvir - ler um imenso canal de aprendizagem religiosa e profana. Na verdade, a competência educativa onde primaram começou ligada a este paradigma e só mais tarde adoptou o olhar - ver, em relação directa com as vivência emanadas entre os “segredos da Natura”. Daí a importância do sermão, da leitura e do comentário em voz alta, ambos desenvolvidos em Évora: Púlpitos na Igreja do Espírito Santo (1566-1574), e nas Salas 104, 105, 106, 107, 110 e no Refeitório do Colégio do Espírito Santo. Quer isto dizer que lhe coube reunir os caminhos mais adequados de cada época e

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circunstância, em favor de quem a constituiu, como de quem pôde usufruir desse aperfeiçoamento pessoal, alargada à dimensão global do planeta, em termos e nos termos de uma completa formação que assumia, como sua, a dimensão da Terra. Como consequência, ficou munida de uma capacidade invulgar para reunir membros apostados numa visão expansionista, a desdobrarem os territórios que os viram chegar, procurar a melhor adaptação e evangelizar. Daí a sensibilidade e o conhecimento das ciências da terra e do espaço, ambos representados em Évora: os azulejos nas Salas de aula do Pátio das Escolas incorporam temas de Geometria e Astronomia, Física e Geografia, os quais incluem continentes e elementos, também disseminados pelo “Centro do Mundo”. O alvo distante apontado à escala dos Novos Continentes indicou a capacidade de um sistema habilmente dotado para adequar, entre si, quer um governo centralizado em Roma, quer as particularidades inerentes às diferentes sociedades e aos diferentes povos encontrados. De facto, foi notória a preocupação de conhecer as línguas autóctones, como a atenção posta no levantamento das características etnográficas e antropológicas Daí a acuidade e a penetração face ao exótico, ambas inscritas em Évora: paredes azulejadas figurando cenas e envolventes exóticos. A necessidade de lidar com grupos humanos dimensionados, levou-os a apropriar-se, como ninguém, da vigilância possibilitada por formas arquitectónicas em torno de pátios, estrutura que melhor serviu o modelo disciplinar que passaram às construções. A ponto de quando a dimensão comunitária atingiu mais de duas mil pessoas, transpuseram-na para o traçado de aldeias, logo da arquitectura para o urba-

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nismo, como ocorreu no interior do mundo sul-americano, pois os centros guaranis e chiquitos foram riscados à volta de uma praça, garante de controle e punição. Associado a este aspecto e decorrente também da globalidade de intenções e de pretensões, os jesuítas assumiram assistência em termos da prática farmacêutica e médica. É sabido como dinamizaram materiais preventivos e curativos juntos das populações e como transferiram adquiridos entre diferentes paragens. Pelo que contribuíram, a seu modo, para rotas farmacológicas, munidas de preparados naturais, com base na fauna ou na flora, entre as quais se destaca a celebrada Triaga brasílica, uma receita datada de 1766, e desenvolvida pelo Colégio dos Jesuítas da Bahia, com simples compostos de raízes, sementes, extractos e partes vegetais, tais como cipós e cascas. Daí a razão de ser de unidades punitivas e hospitalares, ambas mantidas em Évora: Cadeia dos Estudantes (1584), em torno de um pátio, no rés-do-chão; Hospital Real da Piedade, incluindo o Hospital Académico e a Botica, no primeiro andar. A sequência destes apontamentos andarilhos evidencia como o paradigma inscrito no Ad Majorem Dei Gloriam articula um conjunto de princípios e de pressupostos, de onde saem dedutivamente outras tantas capacidades e limites, consignados nas Constituições, nos Exercícios Espirituais e na Ratio Studiorum. Por isso, também fixam articuladamente a configuração de onde emerge uma actuação missionária, desde sempre, e por todo o mundo. Assim sendo, a Cidade de Évora acolheu a materialização de um património, invisível e visível, que continua a mostrar marcas indeléveis da cultura jesuítica, ao mesmo tempo que a Universidade de Évora, só através dela, poderá manter e conservar a memória da sua identidade.

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B i B l i o G r a f i a s o B r e o e s ta r- N o - m u N d o d a C o m pa N h i a d e J e s u s

- JaNeira, ana luísa - Do planeta à planetização. Explorando pistas abertas por Pierre Teilhard de Chardin. “revista Portuguesa de Filosofia, Braga, 28(1) Jan.-Mar., 17-34. - JaNeira, ana luísa - A dialéctica energética em Teilhard de Chardin. “revista Portuguesa de Filosofia”, Braga, 28(3) Jul.- Set. 1972, 284-298. - JaNeira, ana luísa - Fenómeno humano, Energética e analogia evolutiva em Teilhard de Chardin. “Brotéria”, lisboa, 105 (1) Jul. 1977, 21-34. - JaNeira, ana luísa - A Energética no pensamento de Pierre Teilhard de Chardin. Introdução e estudo evolutivo. Prefácio de Henri GoUHier, Braga, livraria Cruz-Faculdade de Filosofia, 1978, 360. este livro é a tradução de Réflexion philosophique sur l’Energétique dans la pensée de Pierre Teilhard de Chardin. tese de doutoramento orientada pelo Professor Henri Gouhier e apresentada à Université de Paris i (PanthéonSorbonne), vol. policopiado, Paris, 1971, 840. - JaNeira, ana luísa - O humanismo na Energética de Teilhard de Chardin. “Brotéria”, lisboa, 113 (5) Nov. 1981, 339-450. - JaNeira, ana luísa - O sujeito em Teilhard de Chardin. Questões levantadas pelo pensamento francês actual. “revista Portuguesa de Filosofia”, Braga, 37 (4) out.-dez. 1981, 387-400. - JaNeira, ana luísa - Sistemas epistémicos e ciências. Do Noviciado da Cotovia à Faculdade de

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Ciências de Lisboa. lisboa, imprensa NacionalCasa da Moeda, 1987, 225. - JaNeira, ana luísa - A ciência e a virtude no Noviciado da Cotovia (1603-1759): organização do espaço, produção do discurso e sistema epistémico. ‘’revista Portuguesa de Filosofia’’, Braga, 52 (1-4), 1996, 441-447. - JaNeira, ana luísa (org.) - “Gabinete de Curiosidades”. lisboa, Centro interdisciplinar de Ciência, tecnologia e Sociedade da Universidade de lisboa (CiCtSUl), 1999. inclui estes textos adaptados de ana luísa Janeira: Ouvir e ler, olhar e ver, observar e experimentar, 31-38; Explorar, expor e crer, 41-49; Do Paço da Ajuda à Escola Politécnica de Lisboa, 55-58; O jardim botânico das reais quintas do Paço de Nossa Senhora da Ajuda, 61-65; O Hospicio dos Apostolos da Cotuvia (1603-1759): Bairro do Andaluz, cidade de Lisboa, 79-82; O quadrilátero jesuítico: uma arquitectónica cultural e científica entre os guaranis, 91-95; Viagem filosófica pelo espaço-tempo dos jardins botânicos, 97-101; Jardins entre dois mundos, 103106; O exótico nas colecções dos jardins botânicos, 109-118; Naturacultura: jardins e utopias, 121-127. - JaNeira, ana luísa - A memória na comunidade científica actual. “territórios e Fronteiras”, Cuiabá, 2004. desde 2002 publicado no primeiro. em 2008, reescrito e publicado no segundo. http:://www.triplov.com/ana_luisa/memoria.html http://marcasdasciencias.fc.ul.pt/conteudo/ ficheiros/topologias.pdf

- JaNeira, ana luísa - Notas de viagem sobre formas de globalização histórica em Misiones, 2006. http://www.triplov.com/ana_luisa/notas-deviagem/index.htlm - JaNeira, ana luísa - Da natura à cultura. O povoado nos trinta povos. In ana luísa Janeira et al. – “os Povos nos Novos Mundos”, apenas livros, lisboa, 2007, 3-10. - JaNeira, ana luísa - Por uma epistemologia interdisciplinar das fontes na configuração missioneira, no prelo. - JaNeira, ana luísa - A estratégia epistemológica da Companhia de Jesus na memória americana e asiática, no prelo.

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17 62 a 1 81 6 Professores RĂŠg i o s e a Ordem Terceira

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O ensino no Colégio do Espírito Santo Desde a expulsão dos Jesuítas à Fundação do Liceu (1759-1841)

Texto: Francisco António Lourenço Vaz

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m 1759 o Marquês de Pombal expulsou os Jesuítas, e o anti-jesuitismo passou então a ser a nota dominante no discurso político do poder. Com Pombal, o discurso oficial insiste na decadência do ensino, que é atribuída aos “estragos e maquinações” dos Jesuítas, por persistirem num mau método e na “servidão aristotélica”. Estes factos, como referenciam os reformadores da Universidade de Coimbra, além de instalarem a confusão nos estudantes, impediam o progresso dos estudos. Impunha-se, por um lado, a adesão ao pensamento dos modernos, que passou a ser encarada como questão de bom gosto e, ao mesmo tempo, restaurar o antigo esplendor do ensino, retomando a herança quinhentista, que se considerava interrompida, ou delapidada, pelo domínio pedagógico dos inacianos1.

A verdadeira razão da sanha persecutória de Pombal contra os Jesuítas não se encontra, portanto, na tão propalada decadência dos estudos, mas sim nas motivações políticas, hoje diríamos ideológicas, do ministro de D. José, que se norteavam pela defesa de um absolutismo esclarecido, fundamentado nas teses jusnaturalistas, regalistas e anti-curialistas3. Pombal terá compreendido que para reforçar o aparelho do Estado, além do controle do clero e da nobreza, era também necessário obter a uniformidade doutrinal, que se conseguiria com um ensino oficializado e secularizado e com uma vigilância mais apertada, sobre as publicações e meios de informação. Com a criação da Real Mesa Censória o poder demonstrou a importância que atribuía a estes dois sectores, quer no ponto do vista de reforço do aparelho de Estado, quer para modernizar o país 4.

A historiografia reconhece que existe bastante exagero nesta matéria e que as reformas do ensino pombalinas, apesar de necessárias , poderiam ter tomado em melhor conta as inovações metodológicas que vinham sendo introduzidas, mesmo nas escolas dos Jesuítas. Recordemos, também, que os Oratorianos, inicialmente tolerados por Pombal, foram depois perseguidos pelo poder; o que não deixa de ser significativo, pois o ensino nas casas do Oratório representava, na segunda metade de setecentos, o que de mais avançado acontecia em Portugal, em matéria de ensino científico e de novo método.2

Um bom exemplo da praxis política do governo pombalino foi a extinção da Universidade de Évora, em 1759. Com efeito, se a Universidade estava decadente era preciso reformá-la, como se fez mais tarde em Coimbra, e não extinguila. Mas, a Universidade estava nas mãos dos Jesuítas e, uma vez expulsos estes, não havia professores no reino que os substituíssem. Por isso, como quase sempre, em vez do “bom senso” prevaleceram as motivações políticas. É neste contexto cultural que consideramos de grande interesse analisar o ensino que o governo pombalino estabeleceu em Évora, no Colégio do Espírito Santo, para substituir o que há duzentos

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anos aí se fazia, e traçar evolução desse ensino até às reformas pedagógicas de Passos Manuel que, em nossa opinião, retomaram alguns dos parâmetros presentes nas reformas pombalinas.

O ensino no tempo de Pombal Não há muitos testemunhos sobre a extinção da Universidade de Évora em 1759. Um dos mais comentados é o de Bento José de Sousa Farinha, autor que estudámos em anteriores trabalhos 5 . Podemos também anotar que Frei Manuel do Cenáculo, na época estadista e muito próximo do círculo do poder, ficou surpreendido com a expulsão dos Jesuítas e deixou testemunho credível sobre a razão de fundo que a originou, ou seja, o predomínio e influência que a Companhia de Jesus tinha no comércio brasileiro, e o obstáculo que representava para a política regalista e centralista de Pombal6. Mas, se Frei Manuel estava ao corrente de toda a situação que levou à expulsão, não se vê nas suas palavras qualquer anti-jesuítismo. A objectividade com que aborda a questão está muito longe dos textos pombalinos onde os regulares são acusados de todos os malefícios.

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Cenáculo as acusações que é fácil ver em outros autores da época particularmente os pedagogos, como Luís António Verney, Ribeiro Sanches e Bento Farinha. E quanto à Universidade de Évora as referências não abundam. Vejamos como evoluíram os factos, enquanto Frei Manuel se preocupava com a formação do herdeiro da coroa e participava activamente nas reformas pedagógicas pombalinas, na sua qualidade de Presidente da Mesa Censória. Em 1759 a Universidade de Évora fechava a portas, duzentos anos após a sua fundação, mas o estabelecimento brevemente as abriu para acolher de novo estudantes. De facto, durante o tempo do governo de Pombal, em 1760, como testemunha Bento José de Sousa Farinha, aí começaram a dar aulas de Latim, Retórica, Grego e Filosofia os professores régios pagos pelo Estado, assegurando os Estudos Menores em Évora e deste modo possibilitando o acesso ao ensino universitário em Coimbra. Os testemunhos revelam que este ensino dos professores régios se manteve até 1776, com grande adesão das populações e que se enquadrava no contexto da reforma pombalina dos estudos a nível de rigor científico e pedagógico7.

Alguns laivos de anti-jesuítismo podem deduzirse do ensino que Cenáculo ministrou a D. José, o Príncipe da Beira e herdeiro de D. Maria I. Este foi um papel relevante que o prelado teve e em estreita colaboração com o governo pombalino. Relativamente às matérias leccionadas pelo preceptor o realce é atribuído à História, como fonte de exemplos para a governação, em concordância com ideal romano da História como mestra da vida, e também à leitura ideológica do passado. Assim os duzentos anos do domínio jesuítico são associados à perda da independência, enquanto a gloriosa idade de ouro é associada ao presente, época de restauração da glória e feitos dos portugueses.

As Aulas, ou classes, eram duas de Latim, e uma para as restantes disciplinas, Retórica, Grego e Filosofia. A falta de professores, logo a seguir à expulsão dos Jesuítas, e o desejo de aplicar um novo método aos estudos obrigaram o governo pombalino a recorrer a mestres estrangeiros, não apenas para os estabelecimentos mais conceituados, como o Colégio dos Nobres e a Universidade de Coimbra, mas também para os Estudos Menores. Por exemplo, a Aula de Grego no Colégio do Espírito Santo foi assegurada por João Goth, professor de origem irlandesa. Merece também referência o facto de ter sido professor de Retórica e Poética no Colégio do Espírito Santo, entre 1766 e 1768, o poeta satírico Nicolau Tolentino (1740-1811).

Enfim, quanto à questão jesuítica não se encontra na extensa obra de Frei Manuel do

Quanto ao novos parâmetros que regiam os estudos, a dar crédito a Bento Farinha, no

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Colégio se começou a dar o ensino científico dos filósofos modernos, como nos diz na sua História Literária da Cidade de Évora. No ano de 1764 com licença de Sua Majestade abri eu Aula de Filosofia, no mesmo Pátio, e tendo 22 discípulos lhe ensinei a Lógica de Verney; a Metafísica de Genuense, a Geometria de Euclides, e a Física de Muschenbroek e S’ Gravezande, conforme as ordens que tinha para o governo desta Aula, com isto gastei três anos, no primeiro defenderam quatro estudantes as suas Conclusões impressas, de toda a Lógica e outros quatro de toda a Metafísica8. Este testemunho de Bento Farinha permite também comprovar que os estudos tiveram uma evolução positiva, com boa adesão por parte da comunidade e crédito dos professores. Segundo Bento Farinha durante estes 12 anos teriam concluído o estudo filosófico 200 alunos e nas outras disciplinas mais de 1000. O próprio governo pombalino reconheceria este bom funcionamento do ensino pois, em 1774, Évora e o Colégio do Espírito Santo foram escolhidos para se fazerem os exames públicos dos candidatos a professores régios, sendo os outros exames feitos em Lisboa e Coimbra. De facto, compareceram a estes exames 150 candidatos e muitos deles foram providos em professores régios em diversas localidades do reino. Portanto, a oficialização do ensino parece ter dado bons frutos, mas fosse pela inveja dos frades, como insinua Bento Farinha, fosse porque o poder se cansou de gastar dinheiro com os ordenados dos professores, a verdade é que ainda no tempo de Pombal o ensino dos professores régios terminou abruptamente em Julho de 1776.

O Colégio no tempo dos Frades da Terceira Ordem No último ano do governo pombalino, o Colégio do Espírito Santo foi doado pelo Rei D. José

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I aos frades da Terceira Ordem de S. Francisco. A doação teve a intervenção de Frei Manuel do Cenáculo, ao tempo Presidente da Mesa Censória, e ainda muito ligado aos franciscanos, por ter sido seu Provincial e reformador dos seus estudos. O próprio Manuel do Cenáculo no diário confessa que foi ele a conseguir essa doação régia para os frades terceiros9. Évora e o Colégio do Espírito Santo eram sem dúvida vistos como um dos melhores estabelecimentos para implementar os estudos pensados para a Ordem. A nomeação de Frei Vicente Salgado, no ano de 1776, como Reitor do estabelecimento revela bem a importância que se queria dar ao ensino no Colégio. Vicente Salgado fora discípulo de Cenáculo em Coimbra e foi um dos melhores e mais conceituados eruditos do seu tempo, autor de obras com importância para a arqueologia e antiguidades, onde sobressaem as Memórias Eclesiásticas do Reino do Algarve. Frei Vicente Salgado deixou registada a memória do seu governo do Colégio, que decorreu entre 17776-177910. Enquanto esteve à frente do estabelecimento, Frei Vicente começou por se preocupar em inventariar os bens existentes, particularmente o património artístico e bibliográfico que aí encontrou. Chegou até nós a sua Memória do Real Colégio do Espírito Santo, texto manuscrito onde inventariou o que deixara no cartório do Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa, quando abandonou esse convento e o que encontrou no Colégio do Espírito Santo, quando aí chegou em 177611. Com base na Memória de Vicente Salgado comprova-se que, em 1777, grande parte dos livros de registo da antiga Universidade jesuítica continuava no Colégio, nomeadamente toda a contabilidade que era usual fazer-se, como livros de recibo e receita, gastos, escrituras, soldadas e do pão. E tudo em volumosos fólios que remontavam à fundação da Universidade. Do mesmo modo, continuavam aí os fólios onde estavam registados, os graus atribuídos, os exames, os juramentos dos oficias e até o “livro dos assentos dos presos e alvarás de soltura da cadeia da Universidade”. Importa também

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referir que existia igualmente o Catálogo da Livraria da Universidade, feito por iniciativa do P. Paulo Carvalho em 1613, e que tinha sido renovado em 1634 que, como nos diz Frei Vicente, era “um volume fólio gordo encadernado em pergaminho”12 A descrição de Vicente Salgada assume particular interesse para sabermos qual era em 1777 o estado do Colégio do Espírito Santo, uma vez que o autor procede a um inventário pormenorizado das obras de arte e outros bens patrimoniais existentes na igreja, capelas e nas restantes dependências do estabelecimento13. Com efeito, começa com uma apreciação geral sobre o edifício em si e a sua situação no contexto urbano:« Fica este Colégio fora das portas antigas desta cidade, e como em arrabalde: ainda que não muito distante da catedral»; e continua depois com a descrição que em muitos casos dispensa a imagem sobre as várias dependências, como por exemplo a avaliação do autor sobre “ Pátio ou Geral da Universidade”. O Pátio da Universidade é digno, e obra que salta bem a vista, sempre agradável, e que não enfada. Entra-se por uma porta de respeito elevada, e de majestade, com duas colunas de mais de vinte palmos, suas bases; tímpano, ou cornija digna, e a figura do Espírito Santo (…) Compõem-se o geral de catorze aulas todas azulejadas, e de pinturas modernas: Em todas há cadeiras de angelim, e escadas de pedra para se subir a elas; com sua base, tudo da digna pedra de Estremoz. Quase todas têm colunas pelo meio, para segurança do madeiramento, que é de estuque em todas14. Relativamente à Livraria a descrição é sucinta, mas fornece alguns aspectos da concepção do espaço e decoração próprias de uma sala de leitura, mencionando que a “digna pintura a fresco, que tem no tecto, é que faz respeitável, e vistosa esta Casa, que tem três janelas rasgadas a nascente: de comprido tem 95 palmos e de largo 33”15.

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A própria envolvência do conjunto arquitectónico é dada com rigor através da descrição das 3 cercas existentes, para as quais se indicam a área, medida em varas, as árvores de fruto, nomeadamente as laranjeiras, limoeiros e latadas de vinha, bem como as noras existentes (duas delas já desactivadas) e as culturas que então aí se faziam. Lamenta-se Frei Vicente Salgado que, relativamente à cerca grande, existissem muitas árvores; pirliteiros, loureiros e amendoeiras, que impediam um melhor aproveitamento hortícola. A novidade neste domínio é a indicação da existência de um jardim ou horto botânico numa das cercas e que como se diz vinha do tempo dos Jesuítas e pertencia à botica, dando assim a entender que ai se cultivariam as plantas medicinais usadas. Como escreve Frei Vicente, “é o tal jardim botânico com seus canteiros sua fonte no meio de repuxo muito bonito, tem sua nora chamada do cardeal e o seu tanque muito bom”16. Enfim, com a descrição dada por Frei Vicente e relativa aos anos que permaneceu a frente do estabelecimento, é possível avaliar o estado em que se encontrava o conjunto arquitectónico e a riqueza do património artístico e bibliográfico que o Colégio possuía em 1777. Com a chegada dos frades terceiros, terminou o ensino dos professores régios seculares e iniciou-se nova fase na vida do Colégio do Espírito Santo. Uma fase inicialmente pautada pela dificuldade em assegurar economicamente o prosseguimento dos estudos, dada a falta das antigas rendas da casa no tempo dos Jesuítas e a falta de proventos da Terceira Ordem para pagar aos professores. Uma das rendas mais importantes que a casa tinha, no tempo dos Jesuítas, era o pagamento de 30 moios de trigo e 10 de cevada, o equivalente a 2.880.000 réis pagos anualmente pela Mitra da cidade e que foi transferida para o Colégio dos Nobres no tempo de Pombal17. Esta falta de rendimentos seria em parte superada com a atribuição aos frades dos ordenados dos professores, que totalizavam 1.780.000 réis anuais e que segundo

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Bento Farinha os frades tudo fizeram para os conseguir. O governo de D. Maria I viria a agir, em 1779, em conformidade com a vontade dos eclesiásticos, uma vez que entregou às corporações religiosas a grande maioria das cadeiras de Estudos Menores, embora com uma diminuição substancial nos vencimentos dos professores. Um exemplo ajuda a compreender melhor esta medida economicista do poder. Um professor régio de Filosofia que no tempo de Pombal tinha de ordenado 400.000 réis por ano, passou a ser substituído por um frade que ensinava no seu convento, passando o Estado a pagar 70.000 réis, sendo 20.000 para o frade e 50.000 para o convento. É possível, como base na correspondência que Vicente Salgado manteve com Cenáculo, comprovar que o ensino no Colégio do Espírito Santo se manteve, ainda que com muitas dificuldades por falta de mestres e rendimentos. Frei Vicente, como vimos, não esteve muito tempo à frente do estabelecimento, provavelmente pelas razões enunciadas. Com efeito, as cartas que escreve de Évora a Frei Manuel do Cenáculo datam de 2-10-1776 e 18-10-1779, um total de 9 cartas, com notícias interessantes sobre estudos. Logo na primeira e comprovando as dificuldades económicas, diz-se perseguido “com empréstimos de trastes”, e noutra missiva fala das dificuldades em encontrar professor para Aula de Grego. Mesmo assim o estabelecimento deve ter assegurado pelo menos durante algum tempo as aulas de Latim, Retórica, Filosofia e Grego. No ano de 1777 os estudos no Colégio passam a ser idênticos ao da casa mãe, o Convento de Nossa Senhora de Jesus de Lisboa, portanto passou a ser ministrado um ensino destinado apenas a eclesiásticos. Em Dezembro desse mesmo ano o Provincial da Ordem mudava-se para Évora e o Colégio do Espírito Santo recebia a visita do Rei e restante Família Real, que estava de passagem para o Paço de Vila Viçosa18.

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Entre 1777 e 1790 o ensino no Colégio obedecia aos cânones determinados por D. Manuel do Cenáculo quando conseguiu alvará régio de aprovação do plano para os estudos a Terceira Ordem, em 1769 19. O plano de estudos tem sido considerado pela historiografia um bom exemplo da modernidade e novo método que os reformadores pombalinos pretendiam aplicar também no ensino dos regulares 20. Limitámo-nos aqui a dar uma breve sinopse desses estudos e de algumas das orientações pedagógicas que Frei Manuel deixou escritas. As cadeiras passavam a ser: Retórica, Grego, Hebraico, Árabe, Filosofia, Moral, Teologia Moral, Cânones, História Eclesiástica, Religião Revelada e Escritura Sagrada. Esta simples enumeração comprova sentido filológico e humanista que se pretendia incutir aos estudos. Quanto ao método, citemos apenas o exemplo das recomendações dadas por Cenáculo para o ensino filosófico: “O Professor de Filosofia ensinará a História, e Lógica de Verney: e os Princípios de Geometria e de Física pelo Padre Brixia. Ensinará Ontologia por Verney; e dará algumas lições de Pneumatologia por Genovesi. No terceiro ano se fará o Estudo da Ética pelos Ofícios de Cícero, e de Santo Ambrósio. Acabados estes de explicar, dará o Professor as Lições de Direito Natural por Burlamaqui”21. Esta defesa do “bom gosto filosófico” está bem presente nos Catálogo dos Livros dirigido aos mestres e que o próprio Cenáculo redigiu. Nele de forma pormenorizada se indicam as obras e leituras que devem ser utilizadas nas aulas; referem-se, a par dos clássicos e humanistas, como Erasmo e Luís Vives, os Doutores da Igreja e autores modernos, nomeadamente, Genovesi, Verney, Locke, Mallebranche, Musschenbroek, S’Gravesande, Muratori, Heinécio, Pufendor, Burlamaqui e muitos outros22. As mudanças pedagógicas do governo de D. Maria I e que afectaram os Estudos Menores teriam também consequências neste ensino eclesiástico. Com efeito, em 1790 um alvará régio aboliu os estudos criados por D. Manuel

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do Cenáculo e portanto, o ensino passou a ser feito em novos moldes23.

Durante o Arcebispado de Cenáculo Com a chegada de Frei Manuel do Cenáculo a Évora abre-se um novo capítulo no ensino no Colégio. Cenáculo chegou em finais de 1803 e no início do ano lectivo seguinte, em 19 de Novembro de 1804, presidiu à abertura solene das aulas, deixando no seu diário uma descrição pormenorizada. A cerimónia durou dois dias e incluiu o juramento dos professores, feito sobre os Santos Evangelhos, de respeitarem a ortodoxia reinante, as orações académicas feitas na presença de numeroso público e na sala dos actos, ricamente ornamentada para o efeito. Com base nesta descrição, constata-se que o ensino continuava a ser dirigido para futuros eclesiásticos, leccionavam-se as seguintes disciplinas: Teologia (incluía a Dogmática e Escritura Sagrada), História Eclesiástica, Gramática Latina, Filosofia, Música e Geografia. Esta última era a grande novidade dos estudos e ficou a cargo de um secular, Francisco Oliveira, que nessa sessão recitou uma prelecção que chegou até nós. A oração académica de Francisco Oliveira, além de documentar ter sido Frei Manuel do Cenáculo o impulsionador do início deste novo ciclo de estudos no Colégio do Espírito Santo, merece uma leitura para nos apercebermos como era vista a Geografia em geral e o ensino científico nessa época. Francisco Oliveira inicia, à boa maneira, com uma citação de Cícero: “Que maior, ou que mais importante serviço podemos fazer à Republica, do que o de ensinarmos e instruirmos a mocidade?”24. Seguem os elogios ao Arcebispo Cenáculo, considerado um sábio protector das letras, um promotor das Escolas e conhecimentos úteis. Importa, também, reter a ideia eclética acerca da Filosofia, vista como repositório de toda a “Ciência humana, assim de Deus e das coisas divinas, como das naturais e profanas”,e sobretudo a importância que se atribui à Geografia como propedêutica

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da História profana e religiosa. A Geografia é para o orador, “oolho direito da História” e é um estudo da suma importância, porque ajuda a dissipar os erros cometidos no passado, como a negação das antípodas, ou a existência de uma zona tórrida inabitável, porque todos esses erros derivaram da falta de conhecimento geográfico. Daí ser um estudo de grande utilidade para os empregos da Igreja e do Estado. Outro dos Mestres que iniciou o seu magistério em 1804 foi o bibliófilo eborense António Baptista Sequeira Facamelo (1768-1824), que foi escolhido por Cenáculo para reger a cadeira de História Eclesiástica. Este cónego da Sé manteve-se nesse cargo até à morte e doou, com o seu testamento em 1824, à Biblioteca Pública de Évora a sua livraria, que se compunha de aproximadamente 1.500 exemplares, e um fundo de 600.000 réis para com os juros ir pagando os ordenados dos funcionários25. Embora o elenco das disciplinas não revele uma grande mudança, importa sublinhar esta abertura ao espírito científico, baseado na observação e que nos mostra a influência das ideias pedagógicas de Frei Manuel do Cenáculo. Mas a conjuntura politica de início de oitocentos não era favorável a projectos pedagógicos, a Europa mergulhara nas guerras revolucionárias e napoleónicas, Portugal cedo se viu invadido e à semelhança de outras localidades os exércitos napoleónicos saquearam Évora e particularmente os conventos e casas religiosas. O Colégio do Espírito Santo não escapou à voracidade dos franceses, que cometeram os desacatos habituais, roubando ou vandalizando as imagens da igreja e todo o dinheiro que conseguiram encontrar nas celas dos frades, tal como testemunha o Mestre do Estabelecimento, Frei António de Santa Rosa de Viterbo, na Évora Lastimosa26. Após a morte de D. Manuel do Cenáculo, em 1814, o Colégio do Espírito Santo continuou a ser administrado pelos frades da Terceira Ordem até ao ano de 1834, quando foram extintas as ordens religiosas masculinas e os seus bens passaram

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Topo do pórtico de entrada nos Claustros do Colégio do Espírito Santo ~ Pormenor Foto: David Prazeres

para o Estado. Abriu-se então um novo ciclo de vida para os estudos a nível nacional que teve como base as reformas de ensino de Passos Manuel, entre 1836 e 1837, com destaque para a criação de liceus nas capitais das províncias. Em Évora foi o Colégio do Espírito Santo escolhido para instalar o Liceu, que só abriu as suas portas aos estudantes em 18 de Novembro de 1841. Nesse primeiro ano matricularam-se 17 alunos, mas só frequentaram 16, sendo a leccionação assegurada por três professores: o Reitor, João Luís de Sousa Falcão, Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara e João Gonçalves Fino, que era o secretário27. O Liceu adoptaria por divisa o dístico latino que se encontra por cima da porta de entrada do claustro principal: , prestando assim tributo ao patrono da casa Ille vos docebit omnia28.

Considerações Finais A estima que Frei Manuel do Cenáculo tinha pelo Colégio do Espírito Santo, pode ter estado na origem de o escolher por vontade testamentária para última morada, pois o mausoléu do Arcebispo encontra-se na sacristia da Igreja do Espírito Santo29. Em jeito de conclusão desta breve sinopse, e tomando em conta os testemunhos sobre este conturbado período, que vai de Pombal a meados de oitocentos, podemos dizer que após a decisão pombalina de fechar a Universidade jesuítica em 1759, seguiu-se ainda com Pombal uma secularização do ensino que remediou a lacuna criada pela expulsão dos mestres Jesuítas. O ensino que os professores régios asseguraram no Colégio do Espírito Santo integrava-se no reformismo pedagógico pombalino, que tinha subjacente a defesa do ensino científico e uma valorização do estatuto de professor. Mas tal política educativa não teve continuidade e, com D. Maria I, o Estado enveredou por uma solução mais “económica” ao entregar aos frades grande número das cadeiras dos Estudos

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Menores. A nível local este facto traduziu-se no abandono do ensino dos seculares no Colégio do Espírito Santo e este estabelecimento com grandes potencialidades pedagógicas passou a estar restrito à formação de eclesiásticos. De algum modo só em 1841, com a abertura do Liceu de Évora, se retomou o ensino oficial, em novos moldes mas norteado de novo pelos princípios da actualização científica e pedagógica. Podemos também concluir que a falta de continuidade nas políticas educativas se revelou nefasta para o progresso do ensino. De facto, ontem como hoje, as reformas que se orientam por dificuldades financeiras conjunturais e que tomam essas dificuldades como a principal razão para a política educativa, redundam mais tarde ou mais cedo em prejuízo económico para o país e para as suas gentes. Usando uma linguagem metafórica, é necessário dar tempo à árvore para crescer e dar os frutos pretendidos. Como se constata com os testemunhos, não foi benéfica para os estudos a extinção da Universidade em 1759, como não foi posteriormente benéfico que os parâmetros de actualização científica e pedagógica das reformas pombalinas não tenham tido a devida continuidade e investimento por parte do Estado. Pese este facto, temos de reconhecer a vontade e sentido de inovação de Frei Manuel do Cenáculo que, remando contra a maré e em tempos de instabilidade política e guerra, conseguiu deixar uma valiosa herança cultural. Na realidade, não só deu o apoio à instrução adequada de uma elite eclesiástica, mas sobretudo fundou uma Biblioteca-Museu, constituída a partir das suas valiosas colecções de livros, produtos naturais e antiguidades, que abriu as suas portas logo em 1805 para servir a comunidade, particularmente os estudantes e professores. Deste modo, D. Manuel do Cenáculo perpetuava a sua intenção de difundir o saber e as ciências pelo maior número dos seus concidadãos e assegurava para os vindouros um património valioso e importante para garantir a instrução e salvaguardar a memória.

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Notas

para a Província da minha Ordem». BPE, Cod. CXXIX/1-21, 1794-1812, fl. 10.

1 - VAZ, 1993. CALAFATE, 1994. 2 - PEREIRA, 1989. 3 - VAZ, 2005. 4 - A prevalência das motivações políticas no reformismo pedagógico pombalino, bem como o paradoxo que lhe estava inerente, foi denunciada, exemplarmente, por António Ribeiro dos Santos, quando designa a governação pombalina como um “ impossível político”. Cf. BRAGA, 1898, t. 3, p. 569. 5 - VAZ, 1993, 1997 e 2007. 6 - Numa carta a Juan Buytrago, Frei Manuel do Cenáculo fala sobre o descrédito em que tinha caído a Ordem, dizendo que não se sabiam os motivos desta situação, mas julgava que fosse devido à resistência que tinham movido ao governador do Grão-Pará e outras intrigas do comércio. BPE Cod CXXVIII/2-9, fl. 15 e 15v. 7 - VAZ, 1996-1997, pp. 447-492. 8 - FARINHA, cit. VAZ, 1996-1997, p.315. Este ensino seria certificado por diversas personalidades eborenses. Cf. ALMEIDA, 1947, p. 15. 9 - Em registo, datado de 27-2-1804, diz Frei Manuel: «…fui à Igreja do Colégio do Espírito Santo que impetrei ao Senhor Rei D. José I

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10 - Em carta dirigida a Frei Plácido Barroco, datada de 11-11-1779, Frei Manuel do Cenáculo noticia, que Frei Vicente Salgado deixara Évora e passara por Beja em direcção a Silves onde ensinaria Gramática. BAC, Cod. 802V, fls. 27-27v. 11 - BAC, Cod. 382, fls. 132. 12 - Cathalogo dos Livros da Livraria publica deste Collegio de Évora que no anno de 1613 se fez por industria do P. Paulo Carvalho; e foi logo reformado no anno de 1634. He um volume de folio gordo encadernado em pergaminho. Ob. cit. fl. 103. 13 - São descritas a igreja, sacristia, torres, coro, portaria, pátio ou geral da Universidade, varanda para a sala dos exames privados, dormitórios, capela da comunidade, livraria, noviciado, recolectado, giro da água da prata, casa do lavatório ou , refeitório, cozinha, despensas, boticas, enfermaria adegas, palheiro de fora, portaria do carro, casas de moços, celeiros e cercas. Ob. cit fls. 111-127.

16 - Idem, fl. 128v. 17 - Esta renda passou a ser paga em dinheiro a partir de 1811. BPE, COD. CXXIX/2-11, fls. 105-106. 18 - BPE, Cod. CXXVIII-1/2, fls. 43-57. 19 - CENÁCULO, 1790. Veja-se em particular a Patente sobre a reforma dos estudos da Província, datada de 13 de Junho de 1769, onde se descreve com pormenor o plano de estudos, a sua aprovação régia com o alvará, bem como as orientações para os mestres e matérias a leccionar, regulamento a seguir e demais disposições. 20 - VAZ, 2002, p. 320-323. 21 - CENÁCULO, 1790, p.28. 22 - BPE, Cod. CXXVIII/2-5, fl. 214-220. 23 - BAC, Ms. 348, fl. 110. 24 - BPE, Cod. 42, nº 14, Discurso Na abertura da Aula de Geografia novamente erigida na cidade de Évora. Pello Ex.(mo).... Frei Manuel do Cenáculo fl. 1.

14 - Ob. cit. fl. 117. 25 - ESPANCA, 1981-1982, p. 220-221. 15 - Idem, fl. 122. Acrescenta Frei Vicente que os telhados da livraria bem como da capela e dos dormitórios foram reparados, enquanto esteve à frente do estabelecimento.

26 - VAZ, 2008. p. 150. 27 - A. GROMICHO, 1954, 1954, p. 49. Para a

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evolução do ensino veja-se: NOVOA e CLARA, 2003, pp. 262-274. 28 - A máxima latina é extraída do Evangelho de S. João e refere-se ao Espírito Santo, o Paráclito: “Ele vos ensinará todas as coisas”. 29 - A descrição das cerimónias fúnebres pode ser consultada em ESPANCA, 1981-1982, p. 197-199.

CXXVIII-1/2, fls. 43-57.

NÓVOA, António e CLARA, T., coord de, Liceus de Portugal – História, Memórias, Lisboa, Asa, 2003, pp. 262-274.

Biblioteca Publica de Évora (BPE), Cod. CXXVIII/2-5. [Documentos sobre a reforma de Terceira Ordem], fl. 214-220

PEREIRA, José Esteves Pereira, O pensamento político em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Imprensa Nacional, 1989.

Impressos

VAZ, Francisco, “A cidade de Évora na vida e obra de Bento Farinha”, Revista a Cidade de Évora, Évora, Câmara Municipal, 1996-1997, pp. 447-492.

ALMEIDA, Manuel Lopes de, A Propósito de Bento José Professor de Filosofia em Évora, Coimbra, 1947.

Referências Bibliográficas Manuscritos

Biblioteca da Academia das Ciências (BAC), série vermelha, Ms. 348, fl. 132. Biblioteca Pública d Évora, Cod. 42, nº 14, Discurso na abertura da Aula de Geografia novamente erigida na cidade de Évora. Pello Ex.(mo) Frei Manuel do Cenáculo. Biblioteca Pública d Évora (BPE), Cod. CXXIX/1-21, Diário de D. Frei Manuel do Cenáculo (1794-1812). Biblioteca Pública de Évora (BPE), COD. CXXIX/2-11, fls. 105-106. Biblioteca Publica de Évora (BPE), Cod.

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BRAGA, Teófilo, História da Universidade de Coimbra, t.3, Lisboa, 1898 CALAFATE, Pedro, O Conceito de Natureza no Discurso Iluminista do século XVIII em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1995. CENÁCULO, Frei Manuel do, Disposições do Superior Provincial para observância regular, e literaria da Congregação da Ordem Terceira de S. Francisco destes reinos, feitos nos annos de mil, setecentos e sessenta e nove e setenta, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, 1790 ESPANCA, Túlio, “Subsídios para a História a Biblioteca Pública de Évora” (1804-1950), Revista Cidade de Évora, 1981-1982, p. 220-221. GROMICHO, A. “Liceu Nacional de Évora”, A cidade de Évora, 1954, p. 49. :

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1 8 3 6 a 1 9 57 A Casa Pia de Évora

1 843 a 1 9 5 9 O Liceu Nacional

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A Casa Pia de Évora (1836 – 1957)

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de a mais m Durante 121 anos o edifício do Colégio de Espirito Santo foi ocupado, entre outras instituições, pela Casa Pia de Évora. Entre 1836 e 1957 as vozes de alunos e mestres casapianos encheram os corredores e as salas do edifício mantendo presentes os valores que haviam presidido à sua fundação e os conceitos de ensinar e aprender. Mas, talvez tenha sido o único período da história deste magnífico edifício em que a aprendizagem foi mais prática do que teórica e em que as elites intelectuais cederam lugar aos mais desfavorecidos.

A Fundação

Texto: Isabel Gameiro

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O decreto que cria a Casa Pia de Évora data de 27 de Outubro de 1836, mas a instituição recebeu os seus primeiros alunos no dia 8 e foi inaugurada a 11 de Agosto de 1836, tendo ficado sob a tutela do Ministério do Reino e mais tarde do Ministério do Interior.

Foi seu mentor António José de Ávila, depois conde de Ávila e mais tarde duque de Ávila e Bolama, que, na época, era governador civil do distrito de Évora.1 Oficialmente, António José de Ávila fundou a Casa Pia de Évora em resposta a uma iniciativa de Passos Manuel, a qual visava introduzir ordem e tornar profícuos para a sociedade determinados estabelecimentos pios. Para tal reuniu os rendimentos de quatro recolhimentos existentes na cidade “que nenhum satisfazia aos seus fins”, arranjou donativos valiosos, na cidade e fora dela, e escolheu o edifício do Espírito Santo - o qual durante algum tempo servira de quartel de tropas e por isso se encontrava em péssimo estado de conservação - preparando a casa, em poucos meses, para receber os primeiros alunos.2 O edifício era majestoso, mas de difícil manutenção, para além de ter sido necessário adaptá-lo a novas funções, tendo a falta de espaço, luz e salubridade obrigado a obras permanentes de conservação. A fundação desta instituição em Évora implicou a extinção dos Recolhimentos da Madalena, da Piedade, de S. Manços, e do Colégio dos Meninos Órfãos, revertendo para a Casa Pia todos os seus bens e rendimentos, bem como o produto da venda ou arrendamento dos edifícios em que estes se encontravam colocados. Três destas instituições existiam desde o século XVI. O Recolhimento de Santa Maria Madalena,

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fundado por D. Teotónio de Bragança onde se recolhiam mulheres de vida licenciosa que quisessem regenerar-se. O Recolhimento de Nossa Senhora da Piedade, fundado pelo mesmo arcebispo, que recolhia meninas órfãs e pobres. O Colégio de São Manços, também fundado por D. Teotónio, inicialmente destinado à educação de crianças pobres, tornou-se depois recolhimento de donzelas desamparadas; nesta fase era ocupado por senhoras colegiais e porcionistas. O Colégio dos Meninos Órfãos, do início do século XVII, foi fundado por Manuel de Faria Severim. Recolhia meninos órfãos e desamparados aos quais era ensinado a ler, escrever e contar, sendo depois colocados num ofício; por isso deste colégio herdou a Casa Pia não só os bens, como a missão a cumprir, já que o próprio fundador estipulou que o colégio devia receber “órfão, desamparados e enjeitados” que seriam alimentados, vestidos e educados de forma a saírem “mestres consumados”. 3

Instalações A utilização do magnífico edifício do colégio do Espírito Santo viria a levantar inúmeros problemas à Casa Pia de Évora. Não só teve de o partilhar com outras instituições – como o Governo Civil, a Junta Geral, a Repartição de Fazenda e, sobretudo, o Liceu de Évora, com quem manteve algumas questões de difícil resolução – como deu origem a que faltassem “ dormitórios espaçosos e ventilados, oficinas de trabalho, locais próprios para recreio e exercícios, casas de banho, aulas onde as crianças não estivessem comprimidas”4 É que a Casa Pia teve de adaptar o espaço existente às suas novas funções. No rés-do-chão situava-se o refeitório, a cozinha, as oficinas e os espaços ao ar livre para recreio e ginástica. No piso superior ficavam os dormitórios, as arrecadações e as salas de aula. A aula de instrução primária situava-se no corredor norte-

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sul do piso superior. As oficinas situavam-se no pavimento térreo do edifício. De acordo com o seu primeiro regulamento a Casa Pia dividia-se em dois colégios, um para cada sexo, dirigidos por um regente e uma regente sob a inspecção do administrador. O espaço era dividido pelos dois colégios, destinando-se à secção feminina o corredor que, partindo do cruzamento denominado “centro do mundo”, se orientava para norte e onde se situava a capela do fundador. Todo o restante espaço era ocupado pelo colégio masculino. Esta situação levou os administradores a considerarem que era urgente proceder a obras no edifício: “por estreiteza do local do colégio das órfãs têm estas que sair do seu aposento, pelo menos quatro vezes por dia, atravessarem o colégio dos alunos, para irem ao refeitório e à aula de ensino mútuo, do que se seguem graves inconvenientes que necessariamente reclamam providências apesar das cautelas que se tem posto para não serem observadas no seu trânsito e concorrerem àqueles locais a horas desencontradas.” 5 Essas obras teriam permitido que as alunas passassem a ter no seu colégio cozinha, refeitório, armazéns, lavandarias, casa de engomar, salas de aula e de costura - sendo esta uma das mais frequentadas já que todas as alunas por aí passavam - “cómodos indispensáveis para uso e ensino das alunas que por seu estado e condição muito lhe aproveita saberem todos os usos domésticos para que um dia possam ser boas criadas de servir ou boas donas de casa.” 6 Já a anterior administração tinha solicitado o edifício do extinto convento da Purificação para aí instalarem o colégio feminino, o que acabou por ser recusado pelo Ministério do Reino. Só em 1906 o colégio feminino saiu do edifício do Espírito Santo instalando-se, junto com o recolhimento escola e o asilo de cegos João Baptista Rolo, no Convento Novo.

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No colégio dos alunos havia três dormitórios. As capacidades e dimensões desses dormitórios foram consideradas insuficientes pelas duas comissões que, em 1863 e 1879, avaliaram o estado da instituição. O ar disponível era insuficiente para o número de alunos que habitava cada um deles. Já quase no final do século ainda a professora de costura considerava que o ar existente na sala de costura era insuficiente para o número de pessoas aí concentrado e para os bicos de gás que forneciam a iluminação, apresentando como argumento a obra de Mrs. Bray “Fisiologia e Higiene”.7 Ambas as comissões consideraram ainda que as latrinas e os canos de esgoto necessitavam urgentemente de ser reformulados pois representavam um perigo para a saúde de todos quantos habitavam na Casa Pia. A comissão de avaliação de 1879 considerou também que a enfermaria, com luz suficiente mas espaço e ventilação reduzidos, reclamava ampliação; as oficinas eram más - porque o espaço por aluno, a luz e a ventilação eram escassos - ; as salas de aula tinham condições higiénicas, mas elevado número de alunos, bem como péssimas condições acústicas; as salas de desenho e música satisfizeram; o refeitório “magnífico e luxuoso” necessitava de luz e ventilação; os pátios e terrenos anexos eram espaçosos para o recreio. 8 O regulamento de 1887 estabeleceu a existência de 3 colégios masculinos, divididos de acordo com a idade dos alunos (7-10 anos; 1014 e 14-18 anos), e dois colégios femininos (7-12 anos e 12-18 anos). Depois da implantação da República o novo regulamento dividiu a Casa Pia em dois colégios masculinos e apenas um feminino. Nos colégios, tanto masculino como feminino, os alunos viviam uma rotina rígida, e alimentavam-se sem quantidade nem qualidade, já que às teorias sobre as dietas alimentares não correspondiam as ementas diárias. Vestiam-

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se de igual, de um guarda-roupa que se foi tornando menos parco e mais asseado, numa indumentária austera que garantia o anonimato do indivíduo e a identificação da instituição. A higiene do corpo era condição obrigatória, o que, conjuntamente com a prática desportiva e os cuidados médicos, permitiu que gozassem de boa saúde, situando-se os valores da mortalidade em níveis baixos. O decreto fundador de 1836 haveria de servir para que em 1913 a Casa Pia de Évora registasse a seu favor, na conservatória, a posse do edifício do Espírito Santo obrigando o Liceu, a Direcção de Finanças e de Obras Públicas e a Escola Industrial a pagarem-lhe renda. Só em 1931 através do decreto n.º 19910 esta situação seria alterada e seriam redistribuídos os diferentes espaços do edifício do Espírito Santo pelas diferentes instituições que o ocupavam. Assim, a Direcção de Finanças passou para o Palácio do Amaral e a Escola Industrial deveria passar para o Convento do Salvador o que não chegou a acontecer, devendo ficar no edifício do Espírito Santo apenas o Liceu de Évora e a Casa Pia. O Liceu deixa de pagar renda à Casa Pia e instala-se no 1º andar, cave e terrenos anexos, passando a ocupar a ala NE-SO (ala dos infantes), a ala NO-SE (desocupada pelas finanças); os subterrâneos do lado da frontaria; os terrenos N-NE, E-S e O, NO e SE e a horta SO e NO que se destina a campo de jogos e ginásio. Para a Casa Pia fica apenas a ala NO-SE do lado da portaria. Em 1951 foi a vez da Escola Industrial sair do edifício do Espírito Santo. A partir de 1932 decorrem obras no Convento de São Bento de Castris para preparar o edifico para o seu novo inquilino. Ai se irá instalar em 1957 a Casa Pia, a qual abandona o magnífico edifício do Espírito Santo que tinha ocupado ao longo de 121 anos.

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Administração A Casa Pia de Évora era administrada por uma elite local, rica e poderosa, que lhe emprestava o seu prestígio e dessa forma punha em prática a sua filantropia traduzida numa política que tinha como principais preocupações a ordem, a disciplina, a aprendizagem, o bem-estar dos alunos e a gestão razoavelmente equilibrada de um património vasto, mas gerador de um rendimento que, devido à antiguidade da esmagadora maioria dos contratos, dificultava a melhoria dos espaços físicos e as condições de vida daqueles que neles habitavam. Aquando da fundação foram cedidos à Casa Pia herdades, casas, ferragiais, quintas, courelas, quartéis, vinhas e a importância dos ónus e encargos pios de todos os vínculos e capelas do distrito administrativo de Évora que eram cumpridos nas casas religiosas extintas.9 Foi vasto o património que a instituição recebeu e, graças a ele, pôde não só sobreviver, como tornar-se uma das maiores instituições de crédito da cidade de Évora,10 posição que manteve até à década de 1880. As suas despesas eram feitas sobretudo com a reparação e manutenção do edifício; a secretaria; a iluminação; a instrução; as oficinas; a limpeza; o culto; as pensões às recolhidas do conventinho; a alimentação, medicamentos, vestuário, calçado e roupa de cama para os alunos; ordenados do médico, advogado, cirurgião, procurador, enfermeiros, professores, mestres das oficinas e outros funcionários; os enfermos e os mortos, livros e utensílios para o ensino e subsídios aos alunos que deixavam a instituição. A gestão financeira da Casa Pia era difícil por três ordens de razão: 1.º a riqueza da instituição, vasta mas difícil de administrar, de actualizar e de rentabilizar. O património estava distribuído por uma extensa área geográfica, as cobranças eram difíceis,

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as rendas desactualizadas e muitos dos bens imóveis, sobretudo edifícios dos extintos conventos, pelo seu estado de degradação, eram mais uma fonte de despesa do que de receita. Em suma, o património da Casa Pia sendo a sua maior riqueza era, simultaneamente, uma das suas maiores preocupações. 2.º Os administradores, notáveis locais que emprestavam o seu prestígio à instituição, mas que, para lá do carácter gratuito do seu cargo, tinham o poder de administrar não só a vida dos órfãos, mas também, e principalmente, um vasto património em terras, casas e capital, o que reforçava o seu papel no seio da elite a que pertenciam e a quem concediam a herdade para arrendar ou o capital para mutuar. Era, no fundo, um círculo fechado já que o maior volume de negócios era feito dentro do pequeno grupo da elite local. 3.º As dificuldades pelas quais a Casa Pia passou ao longos destes anos de existência. Os dois factores anteriormente enunciados ajudam a explicar um edifício onde faltava ar e luz; alunos com fracas aprendizagens porque as classes tinham excesso de pessoas; alunas que não podiam estudar para os exames porque tinham de fazer a costura da Casa ou as obras tardias para melhorar as condições de higiene.

Alunos Inicialmente deram entrada na instituição 200 alunos, 100 de cada sexo. Mais tarde a Casa Pia passou a admitir apenas 1/3 de raparigas e o total de alunos desceu para 150. Número que nem sempre era respeitado, sendo o total de alunos que frequentavam anualmente a instituição superior a 150. Num século de existência - entre 1836 e 1936 - a Casa Pia de Évora acolheu 1378 alunos e 684 alunas. Os alunos na Casa Pia eram provenientes de todo o distrito de Évora, e alguns de outras

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regiões, eram crianças com idade superior a sete anos que chegavam à Casa Pia por serem expostas ou órfãs, mas também a pedido dos pais que, pela sua indigência ou pobreza, solicitavam a sua admissão. Sempre que havia vaga as crianças eram admitidas, desde que apresentassem a documentação exigida. Quando tal não acontecia ficavam em lista de espera. Os pobres, sobretudo se tinham alguém que assinasse como fiador, conseguiam colocar o filho como pensionista até que houvesse uma vaga de aluno ordinário. Mas nem sempre o aluno é órfão, enjeitado ou filho de pais pobres ou indigentes. Havia artífices, professores e militares, entre outros, que também solicitaram a entrada de seus filhos na Casa Pia. Antes da idade regulamentar o casapiano podia abandonar a instituição a pedido dos seus pais, familiares ou tutor. As raparigas partiam se alguém as solicitava para criadas de servir. Atingida a idade legal, o aluno desligava-se da instituição quando encontrava uma ocupação. Na sequência do estipulado pelo decreto da sua fundação, o principal objectivo da criação, em Évora, de uma Casa Pia era “dotar o distrito com um estabelecimento de beneficência que participasse tanto dos asilos destinados a dar acolhimento e educação moral e literária à infância, como das sociedades organizadas em outros países para ministrarem o ensino fabril aos filhos do povo.”11 Para satisfazer este objectivo a instituição alojava, vestia e alimentava; oferecia ensino elementar, oficinas de alfaiate, sapateiro, carpinteiro, abegão e ferreiro, ensino de trabalhos de agulha, costura, bordado e marca, bem como lavar, engomar e cozinhar.12 Estas ofertas de formação técnica foram-se alterando ao longo dos anos de funcionamento da instituição. No século XX encontram-se em funcionamento oficinas de marceneiro, torneiro, carpinteiro, ferreiro, serralheiro, modelador, sapateiro e alfaiate. Para as meninas

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continuava a haver costura, lavores e trabalhos domésticos. Essa evolução foi a forma de o estabelecimento corresponder às novas exigências e de dar a formação necessária aos seus alunos. A mudança na formação técnica permitiu uma evolução qualitativa nas profissões que os alunos da Casa Pia vieram a desempenhar como adultos.

Recolher, educar e instruir A Casa Pia de Évora foi a mais importante instituição de assistência a crianças pobres e desvalidas na cidade, a maior do Alto Alentejo na assistência à segunda infância e, para além da de Lisboa, a única Casa Pia do país que prolongou no tempo a sua existência. Seguidoras dos princípios de Diogo Inácio de Pina Manique existiram apenas três Casas Pias em Portugal: a de Lisboa, a do Porto e a de Évora13. Apenas a Casa Pia de Lisboa, depois de 1833, e a Casa Pia de Évora, a partir de 1836, deram continuidade a tão importante projecto. Longe de ser um local de acolhimento de “pobres criancinhas”, tornou-se numa instituição de formação de jovens aptos para o mundo do trabalho e suficientemente reconhecida para que os pais aí desejassem educar os seus filhos, abrindo-lhes portas que de outra forma teriam ficado fechadas. Por certo o seu ensino técnico cobria uma lacuna na instrução que se ministrava na cidade onde, depois da escola primário, apenas existia o liceu, cujo carácter teórico, pelo menos até 1880, não atraía os que eram menos dotados para as letras ou os que necessitavam de trabalhar para sobreviver. Os alunos na Casa Pia recebiam educação e instrução. No plano da educação, funcionando como forma de inculcação de valores - o respeito, a honra, o trabalho, a privação,

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a ordem, a família, a higiene, a saúde -, recebiam ensinamentos morais, cívicos e religiosos, visando prepará-los para uma sociedade que procurava não os deixar esquecer o seu papel social. Constituindo a futura mão-de-obra de um mercado de trabalho em expansão havia que desencorajar a ociosidade e os vícios limitadores da capacidade produtiva. A frequência obrigatória do ensino elementar garantia a todos os alunos a aprendizagem da leitura e da escrita. Havia também as aulas de música, de desenho, de ginástica. As aulas, diárias e obrigatórias, tinham a duração de seis horas, sendo 3 horas de manhã e igual número de tarde. As matérias leccionadas eram leitura, escrita, caligrafia, aritmética, gramática, sistema métrico, história sagrada, história pátria, coreografia portuguesa, doutrina cristã e civilidade. Havia ainda uma aula nocturna para os alunos que frequentavam as oficinas, a qual funcionava três dias por semana; uma aula de música que funcionava diariamente e que compreendia música vocal e instrumental, incluindo instrumentos de corda e arco; uma aula de desenho que funcionava à 2ª, 4ª e 6ª feira e onde se aprendia desenho linear, de ornato e de figura, elementar e rigoroso, aplicado às artes mecânicas e industriais; e uma aula de ginástica à 3ª, 5ª e Sábado que compreendia canto coral, jogos de bola, malha e barra; ginástica; salto de obstáculos; argolas; escadas; paralelas; varas; mastro; cordas; trapézio e esgrima. Nas primeiras décadas do século XX vamos encontrar também aulas de táctica e exercícios militares.

imagem da página anterior cedida pela Associação dos Antigos Alunos da Casa Pia de Évora

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Para o ensino feminino existia uma aula de primeiras letras e ensino de doutrina cristã, outra aula de todos os trabalhos de agulha, como costurar, talhar, cortar, bordar, rendilhar, fazer croché e marcar,14 uma terceira aula de lavar e engomar roupa branca e uma última de cozinha. O regulamento de 1910 fazia ainda referência a uma aula de tapetes de Arraiolos15 e à oficina de doces. O fabrico de tapetes de Arraiolos era

mesmo uma das actividades mais distintas para as alunas. Estes conteúdos não se afastavam do que era ministrado às jovens asiladas em todo o país. No Asilo N.ª S.ª da Conceição, em Lisboa, as meninas aprendiam ainda a encerar pavimentos e móveis e costura à máquina.16 As oficinas eram frequentadas de acordo com a aptidão de cada um, revelando uma preocupação com a qualidade dos artesãos que aí se formavam. A partir da abertura do Liceu Nacional de Évora os alunos com talento para o estudo teórico passaram a frequentar essa instituição, realizando os exames das diferentes disciplinas com aproveitamento. O percurso escolar de alguns destes alunos permitiu-lhes que viessem a frequentar a Universidade de Coimbra, as Escolas Normais de Lisboa ou de Évora, a Academia de Música de Lisboa, ou vir a exercer uma profissão não mecânica. Foi grande o contributo dado pela Casa Pia, não só para a formação integral dos seus alunos, mas também para a integração destes na sociedade e na economia da área de influência da instituição. O seu papel não se reduziu ao de uma instituição de assistência mas assumiu-se, sobretudo, como formadora de cidadãos, dando instrução a quem precisava, ensinando a produzir a quem no futuro teria de produzir para viver, tornando o seu ensino muito mais oficinal do que livresco, um saber prático que se tornou essencial para aqueles que o recebiam. Esta importância é de tal forma grande que foi da Casa Pia de Évora que nasceu a Escola Industrial da Casa Pia, mais tarde Escola Industrial e Comercial Gabriel Pereira, a qual herdou o seu ensino, as suas oficinas e os seus alunos. Esta escola Profissional da Casa Pia de Évora já em 1906 oferecia um curso de marceneiro com as disciplinas de português, aritmética, desenho, francês e frequência da oficina, e um curso elementar de comércio, do qual faziam parte

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as disciplinas de português, aritmética, francês, geografia e escrituração comercial.17 Na Casa Pia de Lisboa o Curso Comercial tinha sido criado em 1904. Em 1894 já tinha surgido o ensino de relojoaria e em 1899 a escola Prática Elementar de Telegrafista. Ambas as instituições procuraram adaptar o seu ensino aos novos tempos.18 No ano lectivo de 1915-16 funcionavam na escola industrial da Casa Pia um curso industrial com 22 alunos; um curso agrícola com 3 alunos; um curso comercial com 66 alunos e um curso nocturno com 3 alunos. Havia também uma secção feminina com 9 alunas. O objectivo fundamental da Casa Pia era fornecer uma formação técnica aos seus alunos. Essa formação foi-se alterando em função da qualidade do ensino, das necessidades e oportunidades locais, já que existia uma articulação entre a escola e o mercado de trabalho (desde a oficina que devia funcionar porque era fácil encontrar trabalho com essa profissão, passando pelos mestres que recebiam os alunos em formação, até ao proprietário, comerciante ou industrial que sugeria a formação que se devia ministrar e procurava na Casa Pia o trabalhador qualificado de que necessitava). Assim sendo pode-se afirmar que a Casa Pia de Évora obedecia a um projecto que pressupunha e fomentava a mobilidade social.19 Como era isso possível no seio de uma sociedade fortemente hierarquizada e quando esse projecto era posto em prática pelas elites locais? Pela simples razão de que esta mobilidade não ameaçava essa sociedade e essa elite, antes pelo contrário as reforçava. O que estava em causa era a mobilidade entre o pobre ou indigente e o trabalhador qualificado e, com esses trabalhadores, beneficiavam a sociedade e a elite local. Se um ou outro ascendia a uma posição profissional mais elevada tanto melhor para o orgulho filantrópico dos beneméritos.

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Mas a passagem pela Casa Pia entre os sete e os dezoito anos não se reduzia à frequência das aulas e oficinas. Teceram-se teias de relações entre os alunos, cumplicidades feitas de partilhas das coisas boas e más registadas em certificados de louvor e em processos disciplinares que, regra geral, são colectivos. Relações complexas que se traçavam também entre alunos e alunas, e que algumas vezes se traduziram em casamento, apesar de a conversa e a troca de correspondência estar proibida. Formas de quebrar uma rotina e um rigor que elas sentiam, mais do que eles, fechadas nas suas salas de tecer e coser. O rigor era indispensável numa assistência feita também de repressão, já que só assim era possível reeducar, nos princípios da moral e dos bons costumes, os alunos portadores de “vícios” familiares.

Imagem colectiva Itinerários pessoais A imagem colectiva do aluno da Casa Pia de Évora revela uma criança de 7 anos, do sexo masculino, com 3 ou mais irmãos, órfão ou exposto, indigente, entregue à instituição ou pela ama ou pela mãe viúva, residente no concelho de Évora. Durante os 11 anos em que frequenta a instituição aprende uma profissão na oficina de sapateiro, marceneiro ou alfaiate, e aprende a ler, escrever e contar. Com as competências profissionais e as capacidades adquiridas na instituição, exerce as funções básicas para as quais foi preparado (sapateiro, marceneiro, carpinteiro, tipógrafo), e, ultrapassando algumas vezes as expectativas, ascende a professor primário, a enfermeiro, a músico, a lente universitário. Instalase no concelho de Évora e em alguns casos fora dele. As raparigas, representando cerca de 1/4 das crianças admitidas, destinam-se na maior parte dos casos a criadas de servir.

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O aluno da Casa Pia vestia-se com calça e jaqueta de saragoça preta, lisa e com botões pretos, blusa de riscado de algodão e usava boné da mesma fazenda. Os músicos tinham direito a duas liras de metal na gola da jaqueta. Ao domingo saíam à rua vestidos com os seus uniformes de pano azul ferrete, compostos por boné, jaqueta, colete e calça. Elas usavam vestido de lã, em xadrez preto e branco, chapéu de palha escura com fita preta, botinhas pretas de bezerro e meia branca. Se estava frio usavam casaco de saragoça escura ou pano preto. Quando estavam “na casa” colocavam avental de linho cru. No peito um número e as iniciais CPE, as mesmas iniciais que brilhavam no boné e nos botões do fato deles. O fato dos alunos poucas alterações sofreu, já o das meninas mudou com a passagem da monarquia para a República. De acordo com o regulamento de 1910, passaram a vestir vestido de flanela de lã azul, chapéu de oleado preto com fita preta e meias pretas, sendo no Verão o vestido substituído por um fato completo de linho escuro. O vestuário era uma das formas de identificação do aluno da instituição e de anonimato enquanto indivíduo. Era, acima de tudo, uma forma de diferenciação social. Mas o anonimato pode-se desfazer e a diferenciação pode ser positiva. Se houvesse um aluno modelo da Casa Pia seria João Francisco da Costa, órfão de pai, que morreu a servir a causa liberal, deu entrada na instituição aos sete anos a pedido da mãe, que não o podia continuar a criar. Aprendeu um ofício e estabeleceu-se na cidade com loja aberta de seu ofício de funileiro. Casou em 1856, na Igreja da Casa Pia, com Rosa do Sol Neves, também ela aluna do estabelecimento.20 Ou José Agostinho que era exposto. Natural de Estremoz, deu entrada na Casa Pia de Évora em 30-1-1860 a pedido da ama. Em 18 de Maio de 1865, tinha então 13 anos, saiu da Casa Pia

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a pedido de José Agostinho Segurado que era carpinteiro com loja na Rua Ancha e se comprometia a ensinar-lhe o ofício em cinco anos. Em 1890 José Agostinho surgia no Inquérito Industrial com uma loja de carpinteiro na Rua da Carreira do Menino Jesus, n.º 8, a qual contava com o trabalho de três operários e um aprendiz e possuía um capital fixo de 20$000 réis e um capital circulante de 120$000 réis.21 Por vezes superavam-se as expectativas. Francisco António Calado era natural do Crato. Deu entrada na roda em 22-11-1874 e entrou na Casa Pia em 8-9-1886. Mereceu a menção honrosa pela sua aplicação na aula de desenho e frequentou o Liceu de Évora. Em 1890 deu entrada no seminário de Coimbra para cursar os preparatórios requeridos para o curso de medicina. Ou Amílcar, exposto, natural de Montemor-oNovo que entrou em 1909 e em 1918 concluiu o curso do magistério primário na Escola Normal de Évora com 16 valores pelo que em Outubro desse ano se desligou da instituição para concorrer ao lugar de professor de primeiras letras. 22 Colectiva ou individualmente, o que a reconstituição dos itinerários pessoais nos permite verificar é que, de facto, a passagem pela Casa Pia de Évora permitiu que os seus alunos, sobretudo os rapazes, desenvolvessem capacidades que lhes permitiram voar autonomamente. É a vertente da formação dirigida para a autonomia pessoal e profissional que se deve realçar bem como o carácter inovador do ensino e a visão educativa do seu corpo directivo recrutado entre a elite local. O que as biografias permitem concluir é que a alfabetização e a formação técnica foram o meio pelo qual as crianças que entraram pobres ou indigentes, com o destino traçado, saíram adultos qualificados para, pelos seus meios, garantirem o seu sustento e das suas famílias. Rescreveu-se o destino.

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Cartão de aluno de aprox. 1953

(Endnotes)

9 ADE/GC/CPE Mç 104

1 Gabriel Pereira – Estudos Eborenses. Évora, Ed. Nazareth, 1948, p. 17-20

10 Sobre esta questão veja-se Helder Fonseca – Alentejo no século XIX. Economia e Atitudes Económicas. Lisboa, INCM, 1996., p. 428 - 524

2 O Manuelinho d’ Évora. N.º 139, 18-9-1883 3 Cf. Alexandre Rosado – A Casa Pia de Évora. Évora, C.P.E. 1928, p. 12-14 4 ADE/CPE Mç 208 Relatório da Comissão de Avaliação da Casa Pia, 1879. 5 ADE/GC/CPE Mç. 41 Relatório da Comissão Administrativa da Casa Pia, 24-1-1851. 6 ADE/GC/CPE Mç. 41 Relatório da Comissão Administrativa da Casa Pia, 24-1-1851. 7 ADE/CPE Mç. 385 Carta da Professora, 1892 8 ADE/CPE Mç 208 Relatório da Comissão de Avaliação do Funcionamento da Casa Pia, 1879.

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11 ADE/CPE Mç 208 Relatório da Comissão de Avaliação da Casa Pia 11-8-1879 12 Decreto de 27 de Outubro de 1836. 13 MIGUEL, Mª Angela Montenegro – “Casa Pia de Lisboa”; “Casa Pia das Convertidas”; “Casa Pia de Évora”, “Casa Pia das Moças Desamparadas”, “Casa Pia do Porto” in Dicionário de História de Portugal. dir. de Joel Serrão, vol. I, Porto, Livraria Figueirinhas, 1985, p. 513 - 515 14 ADE/CPE Mç 385; 15 ADE/CPE L 524 Actas das Sessões Administrativas, 1909. 16 Caldeira, M.ª de Fátima - De

Meninos se Fazem Homens(…)Lisboa, Tese de mestrado, 1993., p. 140. 17 ADE/CPE L 295, 1906 18 Coelho, Maria Helena - Casapiano. Uma questão de identidade (...). Lisboa, 1996, p. 35 19 Os estudos feitos sobre mobilidade social comprovam que é entre os trabalhadores não qualificados que se verifica menor mobilidade devido à instabilidade do seu trabalho e à mudança constante de ocupação. Cf. KAELBLE, Hartmut - Vers une Société Européenne. Munchen, Editions Belin, 1988, p33-40 20 ADE/CPE Mç289 21 GC/CPE MÇ. 776, 1860; CPE L 314, 1865; Inquérito Industrial, 1890, p. 458 22 ADE/CPE Mç 291, L 312, ADE/GC/ CPE Mç 851; ADE/CPE L 274; ADE/ CPE L 295

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O Liceu (1841-1959)

Introdução Texto: Fernando Luís Gameiro Centro de Investigação em História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora

Um factor determinante para a robusta imagem da instituição liceal, que ainda hoje persiste, foi a recuperação arquitectónica do edifício, ocorrida nos anos 30 e 40 do século passado. No entanto, foram sobretudo os consensos alargados em matéria educativa que permitiram a afirmação dos liceus, ainda que situados na província. Abordar a presença do Liceu no espaço da antiga universidade henriquina implica, necessariamente, compreender a importância que adquiriu durante os mais de cem anos em que ali permaneceu. Em Évora, como no País, o Liceu foi em grande medida o produto de empreendimentos legislativos que lhe determinaram o estatuto. Fosse a sua importância local, regional, ou mesmo nacional, a preocupação dos reformadores em estabelecer uma hierarquia institucional esteve sempre presente. Não foi tarefa fácil sobreviver à vaga de reformas que, em diversos momentos, ameaçaram a presença do Liceu de Évora no topo da hierarquia institucional. De facto, é necessário sublinhar que, de 1836 até 1900, foram produzidas nada menos de sete reformas e muita legislação avulsa dirigida ao ensino secundário liceal.

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Visto sob o prisma do reformismo educativo, o século XIX constituiu o exemplo paradigmático da aplicação do ‘império da lei’ teorizado por Max Weber. O processo reformista em educação constitui um caso levado ao extremo da conhecida afirmação de Alexis de Tocqueville, segundo a qual costumes livres haviam originado leis liberais, como foi o caso da Inglaterra, enquanto que noutros países era preciso que leis liberais criassem costumes livres1. Tendo por referência a reforma de 1905, que recuperava a bifurcação curricular da reforma de 1880, o ímpeto reformista monárquico foi estancado até 1918. A República manteve a legislação fundamental sobre o ensino secundário liceal, em vigor desde 1905, que introduzira uma alteração substancial e de implicações positivas, ao recuperar os cursos complementares de letras e de ciências dos liceus. Manteve também a divisão entre liceus nacionais e centrais, sem prejuízo das alterações que introduziu no ensino liceal feminino consolidando o princípio da coeducação. O ímpeto reformista foi retomado com a reforma de 1918, suspensa pelo fim da ditadura de Sidónio Paes, mas novo alento foi dado pela reforma de 1921, que confirmaria a tradição contemporânea de promover mudanças: muitas e inconsequentes. Em perspectiva, verifica-se que, entre 1836 e 1926, as reformas surgiram do topo para a

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base: o sistema de ensino público obedeceu a essas transformações independentemente das vicissitudes pelas quais cada instituição passou ao longo daqueles regimes políticos. Limitando o movimento reformista liberal, o Estado Novo consolidou os processos de controlo iniciados ainda durante a I República, desenvolvendo em momentos chave, os mecanismos destinados a direccionar a procura para o ensino técnico.

riquina. Colmatando um hiato de dois séculos, o liceu parece ter contribuído para transportar a memória do glorioso passado académico ao presente, gerindo a recuperação de espaços, defendendo a dignidade da arquitectura, mantendo a essência das tradições académicas que a universidade do século XXI projecta.

No caso do liceu de Évora, a criação do curso complementar, em 1880, e a obtenção do estatuto de Liceu Central em 1898, determinaram em muito a evolução institucional durante as décadas seguintes

Da fundação

A extensa e inconsequente produção legislativa tem sido apontada por diversos autores como um dos principais factores da degradação do ensino secundário. Contudo, no caso estudado e do ponto de vista estrito da hierarquia liceal, o liceu de Évora nos momentos cruciais de mudança, saiu reforçado, ainda que para isso as forças locais se tenham mobilizado para o conseguir. A proposta cronológica para este exercício de escrita, parte da ideia que tanto os agentes educativos como a instituição liceal, se encontraram dominados pelo princípio da afirmação no período que decorreu entre 1841 e 1880; pelo estatuto e as transformações que o mesmo implicou entre 1880 e 1910; pelo predomínio das opções em matéria de política educativa, com o privilégio do ensino técnico em detrimento do liceal entre 1910 e 1926. Finalmente, entre 1926 e 1959, ter-se-á assistido ao apogeu e declínio simbólicos do liceu de Évora: entre o prestígio do liceu salazarista e a perca do estatuto de primeira instituição de ensino, com a discussão em torno do regresso dos estudos superiores à cidade. O texto articula-se em função deste eixo. Sustenta-se numa análise da presença da instituição liceal no espaço ocupado pela antiga universidade, espaço que procurou monopolizar, defendendo ser portadora da herança cultural e patrimonial da antiga “fábrica” hen-

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A reforma de 1836 permitiu que, logo nesse ano, Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara tivesse sido autorizado a abrir um curso de Filosofia Racional e Moral nas instalações do Colégio do Espírito Santo. Iniciava-se assim o processo de retorno dos estudos organizados ao edifício, numa acção fundamental para que Évora ombreasse com as maiores cidades do país em matéria de oferta de ensino. O liceu cujo funcionamento regular tem início em 14 de Outubro de 1841, começou por ocupar o núcleo nobre do Colégio, o claustro principal, e algumas das salas que o circunscrevem. No final do século XIX a actividade lectiva distribuíase por onze salas de aula e três salas nas quais funcionavam os serviços de apoio. O resto do edifício encontrava-se ocupado com diversos serviços e entidades públicas e com uma instituição de assistência, a Casa Pia, que desde 1836 ocupava as instalações do Conventinho. As guerras entre vizinhos – leia-se com a Casa Pia –, iniciaram-se logo no ano de inauguração e constituem um conflito secular com episódios diversos, sanado apenas com a mudança da instituição de assistência em 1957. Do ponto de vista formal o Liceu Nacional de Évora foi instalado em 14 de Outubro de 1841 no “Colégio do Espírito Santo, antiga Universidade de Évora”. O acto de instalação concretizou-se formalmente pela posse dada ao Conselho do Liceu, pelo Administrador Geral do Distrito. Assumiram funções os professores João Luís

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de Sousa Falcão – que assumiria o cargo de reitor, por ser o decano –, João Gonçalves Fino, e Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, que começaram por trabalhar com um pequeno grupo de dezassete alunos. Desde as origens que, para o reduzido corpo docente, a afirmação da nova instituição na cidade constituiu uma prioridade. O relato da primeira presença num acontecimento público é sintomático da preocupação enunciada. Em 1843 quando da visita à cidade da Rainha D. Maria II e da corte, acompanhados pelo Ministro da Guerra, o Duque da Terceira, e pelo Ministro do Reino, António Bernardo da Costa Cabral, os três professores decidiram em reunião do Conselho Escolar apresentar-se na real recepção, que incluía a nata da política e da sociedade locais, reunidos “em corporação” e “vestidos à corte”, uma decisão que deve ser interpretada no quadro do processo de afirmação da instituição na cidade. Os docentes investiram no momento solene, introduzindo por entre a elite o simbolismo da sua presença como representantes da recém criada instituição de ensino. O relato da visita da Rainha e da restante comitiva às instalações liceais, permite constatar a degradação que já era visível na sala dos actos da antiga universidade, ao mesmo tempo que se constata a beleza do edifício e das suas melhores salas. Destacava-se a sala de Geografia, Cronologia e História e a sala do Conselho. Esta última destinava-se às reuniões de professores e funcionava como uma espécie de salão nobre decorado por diversos quadros, com destaque para os de D. João III e de D. Sebastião, que motivaram a curiosidade de D. Fernando2.

Do liceu liberal A diferenciação em matéria de ensino secundário surge com a instalação dos primeiros liceus, distinguindo as cidades que mais cedo

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concretizaram o projecto de ensino setembrista. O decreto que previa a criação de um liceu em cada uma das capitais de distrito, à excepção do distrito de Lisboa onde seriam criado dois, é produto da acção governativa do ministério de Passos Manuel. O primeiro dos liceus da capital começaria a funcionar em 1838-1839, o de Coimbra em 1836-1837, o do Porto em 1840-1841. O liceu de Évora iniciou funções no ano lectivo de 1841-1842, integrando o lote de ”academias distritais” pioneiras. No continente está entre os primeiros a entrar em funcionamento, integrando os chamados liceus de 1º grau cuja instalação decorreu até ao final do ano lectivo de 1846-1847. Apesar de previstos em 1836 os restantes liceus, que seriam instalados nas capitais de distrito ainda não contempladas, encontraram sérias dificuldades dada a falta de edifícios, de apoio financeiro do poder central, da indefinição que resultava da reestruturação das divisões administrativas distritais, o que acabou por conferir uma inaudita exclusividade às instituições que primeiro se conseguiram instalar. Em finais da década de quarenta os liceus de Coimbra, Lisboa, Porto, Évora e Braga estavam já estruturados do ponto de vista administrativo, contando com um espaço próprio e os recursos humanos indispensáveis: professores, o reitor e o secretário, embora não funcionassem todas as disciplinas curriculares3. O regulamento de 1860, embora nunca tivesse verdadeiramente sido posto em prática, consagrou a distinção entre liceus de 1ª e de 2ª classe. O estatuto de primeira classe contemplava os liceus que no continente primeiro se haviam constituído, entre eles o de Évora. A única diferença estava no desenvolvimento dado ao estudo de algumas disciplinas. Novo quadro legal é definido pelo regulamento de 31 Março de 1873, provocando sérias implicações na procura do ensino liceal nos distritos em que os liceus estavam implantados. Ao distinguir

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1895, Sala dos Actos em ruína, antes de maior destruição e transformação em ginásio

Sala dos Actos transformada em ginásio liceal

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1931, Sala dos Actos após a primeira fase de restauro

1905, Materiais da Sala dos Actos

imagens cedidas pela Biblioteca da Escola Secundária André de Gouveia

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os liceus de primeira classe, que haviam sido contemplados com o curso de seis anos, um requisito essencial para admissão em qualquer estabelecimento de ensino superior, tornou diminuta a procura nos liceus de segunda classe. Estes ficaram circunscritos à oferta de um curso de quatro anos, o que na prática significava a diminuição do número de alunos matriculados. O prosseguimento de estudos implicava, necessariamente, a frequência de um Liceu de primeira classe. No caso concreto da região do Alentejo, só o Liceu de Évora possuía o estatuto de Liceu de primeira classe, portanto, a única instituição da região em que os candidatos a prosseguir estudos poderiam frequentar os chamados “preparatórios”, confirmando a sua importância regional. Com a reforma de 1880, verifica-se, na prática, a distinção entre os liceus pioneiros, sendo manifesta a perca de estatuto dos liceus de Braga e Évora, cidades que não possuíam instituições de ensino diferenciado – o Porto já possuía a Academia Politécnica, Coimbra a Universidade e Lisboa a Escola Politécnica. A reforma confirmava a concepção centralizada da geografia da oferta ensino, recusando às academias da província o estatuto equiparado às suas congéneres das grandes cidades. As elites locais não tardaram a reagir, inserindo-se numa lógica reivindicativa a nível nacional. No caso concreto de Évora a acção desenvolvida caracterizou-se pela unidade dos esforços das vereações municipais e do conselho escolar, num mesmo desiderato: dotar a cidade de uma “Academia Distrital” representada pela primeira instituição de ensino da cidade4. Os bem sucedidos esforços das autoridades locais na defesa do estatuto do liceu de Évora foram particularmente relevantes em duas reformas: a de 1880 e a de 1894-1895. As diligências efectuadas junto das sedes do poder permitiram consolidar uma oferta similar à dos liceus de Lisboa. Deste modo, pela via meri-

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tocrática, os outputs passaram a incorporar as elites nacionais, consagrando o liceu de Évora como uma das escolas de recrutamento das instituições de ensino diferenciado nas cidades de Coimbra e de Lisboa5. O advento da República trouxe, pela primeira vez de forma sistemática, a assunção de uma alternativa ao perfil da oferta de formação herdada da monarquia. Os governos republicanos utilizaram o investimento na criação de escolas de ensino técnico com claros intuitos eleitorais, com a oferta de ensino a orientar-se mais para uma população já alfabetizada “isto é com capacidade para votar e, além disso, socialmente mais susceptível de apoiar o regime e portanto de retribuir com votos a oferta educativa”. Esta opção é muito clara sobretudo depois do Sidonismo, e reforça a tese de que a grande procura que tiveram as escolas industriais e comerciais estava relacionada com a boa aceitação que os seus diplomados tinham nas fábricas e oficinas6. Em Évora, em 1914, o ensino técnico passava a estar acessível a um público mais alargado, com a criação da Escola Industrial da Casa Pia de Évora, que constituiria o embrião da futura Escola Industrial e Comercial. Évora passaria a ter paredes-meias com o liceu uma escola de ensino técnico, facto que provocou importantes transformações quer de estatuto a nível local, quer do ponto de vista do recrutamento de discentes. Na cidade, a histórica lógica de disputa de espaço e influência a nível local, agudiza-se entre 1914 e 1926, pautada pela divisão entre grupos de elites e por processos de afirmação institucional. Estes processos foram condicionados pela decisão do poder político central, que, genericamente, se traduziu pela aposta na diversificação da oferta de ensino. Verifica-se que a acção dos interesses locais e regionais em matéria de ensino secundário se orientou, durante a Monarquia, por uma lógica

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nacional mediante a discussão do estatuto da instituição local em comparação com as suas congéneres nacionais. Com a I República foram desenvolvidas estratégias institucionais visando a afirmação local por via da concorrência com o ensino técnico, tanto em termos do recrutamento de discentes, como da disputa pelo estatuto na cidade e na região. Nos dez anos que medeiam entre a última tentativa reformista republicana, em 1926, e a primeira reforma do ensino liceal do Estado Novo, em 1936, o ensino secundário fez um compasso de espera consonante com a definição da nova ordem política.

Da “educação nacional” A pressão da procura sobre o ensino liceal intensifica-se durante a liderança do Ministro Cordeiro Ramos (1929-1933), prolongandose até 1936. Durante o período que medeia entre 1936 e 1940, tendo já como Ministro da Educação Carneiro Pacheco, verifica-se a estabilização da procura no ensino liceal público, obtida graças ao funcionamento do ensino técnico como válvula que permitia limitar a pressão sobre aquele subsistema. É portanto durante este período que, com o auxílio do crescimento do ensino liceal privado, se lançam as bases do controlo da mobilidade social associada ao aumento das qualificações de nível secundário7. Nos anos 40 o Estado Novo contraria a procura popular das escolas industriais e comerciais, recusando a ampliação da rede escolar por razões de política económica. Em paralelo promove o ensino liceal apostando na formação das classes médias. Nas décadas de 50 e 60 acontece o inverso, perante a crescente pressão sobre o ensino liceal, que também acaba por ser parcialmente absorvida pela rede de ensino privado em franco crescimento8.

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Em Évora foi no quadro das mudanças ocorridas nos anos 20 e 30, isto é a transição do liceu como rampa de acesso à Universidade, para o liceu como instituição de formação dos quadros da administração pública, que se configurou a concepção de um liceu de província que se esforçava por conferir aos alunos uma formação nos moldes em que o regime a entendia e em que o reitor a aplicava. Estava bem presente no funcionamento desta instituição o quadro da política educativa do Estado Novo. Os testemunhos dos alunos que a frequentaram nos anos 30 e 40 insistem na referência às “gerações ilustres” que formam o “seu espírito” usufruindo dos “salutares ensinamentos que lhes abriram e franquearam o caminho”9. Até à década de 60 os liceus surgiram associados a uma imagem de qualidade, que, independentemente da matriz autoritária e uniformizadora omnipresente, no contexto de uma política educativa onde os consensos em matéria de ideologia e de valores eram significativos, alunos e professores desenvolveram processos identitários em relação ao seu liceu10. Entre 1933 e 1959 o Liceu Nacional de “André de Gouveia” construiu uma identidade cuja matriz radicou na valorização de uma história liceal secular, identidade essa que se alicerçou também num espaço e numa arquitectura – o edifício da universidade henriquina. Tanto a existência destes processos identitários, como dos mecanismos locais de reconhecimento social dos liceus são referidos pela literatura, mas até ao momento não foram objectos de análise específica, constituindo-se como dois dos aspectos menos estudados do ensino liceal11. Em Évora, em grande medida, o progressivo alargamento do espaço ocupado pela instituição liceal foi sendo justificado pelo crescimento do número de alunos e pela necessidade de dar cumprimento à política educativa do regi-

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António Gromicho, Reitor do Liceu imagem cedida pela Biblioteca da Escola Secundária André de Gouveia

me, incluindo o apoio logístico às actividades circum escolares inerentes ao funcionamento da estrutura regional da Mocidade Portuguesa12.

Do espaço arquitectónico O reitor que mais marcou os destinos do liceu de Évora, António Gromicho, balizou os seus trinta anos de exercício enquanto reitor com dois acontecimentos particularmente polémicos. O primeiro, no início da sua carreira, em 1929, quando optou pela recusa da construção de instalações liceais de raiz, defendendo a adaptação das instalações da antiga universidade, local em que o Liceu se encontrava instalado desde a sua fundação. O segundo, entre 1957 e 1959, enquanto deputado à Assembleia Nacional, em que foi publicamente acusado de pretender evitar a reinstalação de estudos universitários em Évora, sobretudo se os mesmos viessem a ocupar o espaço da antiga universidade13. No limitado espaço de autonomia que a política de ensino permitia, a acção reitoral focou-se na dimensão física da escola. O reitor optou pela tradição do espaço arquitectónico da antiga universidade, promovendo uma criteriosa recuperação do edifício, em detrimento da opção por um novo edifício que, obedecendo à linguagem funcional e modernista da época, daria forma a uma nova construção escolar14. Esta decisão, determinante para a configuração do actual espaço, radica no conhecimento que possuía dos problemas com que se debatia o liceu eborense. Muito cedo o reitor definiu as suas prioridades de actuação em termos do espaço físico do liceu. Para o restauro e ampliação do parque escolar conseguiu mobilizar vontades e obter resultados. Contou para tanto com o apoio explícito quer dos responsáveis políticos nacionais, quer dos técnicos que no terreno puseram em prática a reconstrução física do espaço.

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Os primeiros legitimaram-lhe a autoridade. Os segundos, em particular o arquitecto António do Couto, materializaram-lhe o gosto estético, marcado por uma determinação férrea em devolver o edifício, em particular a simbólica Sala dos Actos, à sua traça e decoração originais15. Num dos seus primeiros discursos públicos, poucos meses depois de ter sido nomeado, na sessão de abertura do IV Congresso do Ensino Liceal que decorria em Évora enunciou um programa de readaptação do edifício, mas também de clara adesão à ideia de ressurgimento nacional neste caso aplicada ao sector do ensino. Esta intervenção deve ser também vista no quadro da recusa de construção de um edifício liceal de raiz e como início de um processo de apropriação e restauro dos espaços da antiga universidade. Tal estratégia foi suportada ao longo de uma década pelo decreto de 12 de Junho de 1931, diploma que retirou à Casa Pia de Évora a posse das instalações que lhe haviam sido concedidas em 1913. Nesta data, por decisão ministerial, o liceu transformou-se em inquilino da Casa Pia o que impossibilitava a realização de quaisquer benefícios nas instalações, sem o consentimento daquela instituição de assistência. O citado decreto veio permitir, para além das intervenções no perímetro do claustro grande, a utilização dos terrenos junto à circunvalação com o objectivo de aí serem construídas as infra-estruturas desportivas. O processo de restauro e ampliação decorreu nos dez anos seguintes. Não foi mais do que o corolário do que o reitor considerou ser a justificação da grande opção de 1929. A recusa de novas instalações levou-o a defender a decisão de forma recorrente sempre que o momento o justificava ou a ocasião o permitia. Depois da saída da Casa Pia, em 1957, acalentou o sonho de ocupação total do edifício, incluindo a área do Conventinho, “porque ficará o maior, o mais belo e completo liceu do país” 16. A preparação das comemorações dos quatro séculos da fundação da Universidade de Évora,

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em 1959, serviram para criar a opinião favorável à restauração dos estudos universitários na cidade, encetando um processo que culminaria com a criação do Instituto de Estudos Superiores, em 1964, e se concretizaria mais tarde com o regresso da universidade a Évora17. O processo de adaptação física do edifício da antiga universidade, teve o seu ponto alto com a recuperação da Sala dos Actos – em ruínas desde 1894 e quase toda restaurada, entre 1931 e 1939 –, longo acto simbólico que deu corpo a uma estratégia de actuação. Simbolizou também uma prática política dado que esta dependência nobre do edifício, símbolo da excelência do saber, havia atravessado dois regimes, sem as necessárias obras de restauro e em decadência acentuada. Não foi impunemente que o financiamento para a execução das obras se concretizou. As comemorações do duplo Centenário Nacional de 1940, foram o momento para a concretização do projecto, pois do programa constava uma sessão solene na sala dos actos em honra dos feitos ocorridos no Alentejo por ocasião das lutas da Restauração, o que terá permitido que em 1939 se concluísse a segunda fase do restauro. Paralelamente procedeu-se à conservação e restauro do Claustro Maior, à demolição de uma sala que sobre elevava ao telhado do lado direito da Sala dos Actos, o que restaurou o equilíbrio arquitectónico do conjunto. Junto à circunvalação desenvolveu-se a construção do parque desportivo iniciado em 1931, com destaque para o Ginásio que, apesar de muitos esforços, e uma visita do Ministro das Obras Públicas, Carneiro Pacheco, só estaria concluído em 194218. Este período de realizações, entre 1929 e 1941, inseria-se numa política deliberada de contenção da rede escolar do ensino liceal público (que se iria manter até 1947), procurando criar obstáculos ao acesso ao ensino liceal, aliciando alunos para o ensino técnico. Nesta primeira fase foi possível investir na construção de novos edifícios escolares, ou na recuperação

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e adaptação de edifícios já construídos para o ensino, ocorrendo a sua conclusão principalmente na década de 40. É neste contexto que devem ser vistas as preocupações com a reinstalação da Escola Industrial e Comercial de Évora, que ocupava parte do edifício da antiga universidade. Não apenas como necessidade de crescimento do espaço ocupado pelo liceu, mas como estratégia de criação de uma alternativa à pressão que se começava a fazer sentir sobre o ensino liceal, pondo em causa a estabilidade dos mecanismos de mobilidade social controlada, introduzidos neste subsistema de ensino19.

Tradição e identidade Uma parte do processo de construção de uma identidade pode decorrer da existência de uma cultura própria, para a qual não foram desenvolvidos de forma explícita mecanismos específicos. Noutros casos em contextos socioculturais circunscritos, e com objectivos mais ou menos claros, foram concebidos mecanismos destinados a estimular e amplificar a existência de uma ligação de alunos e professores ao seu Liceu. É neste último caso que partindo de uma longa tradição de ensino liceal, das marcas deixadas pela antiga Universidade de Évora, se procurou projectar a construção de uma identidade específica no Liceu Nacional de “André de Gouveia”, entre os finais da década de 30 e o início da década de 60, correspondendo ao longo exercício do mais carismático dos reitores que dirigiram a centenária instituição. Das antigas tradições liceais que mais relevam para a construção de uma identidade devem destacar-se, entre outras, o movimento associativo estudantil, a actividade de representação exterior garantida pela Tuna Académica, e a antiguidade do uso da capa e da batina 20. No primeiro caso, surgiu com fins assistenciais, em 1890, a Associação Filantrópica Academia

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páginas anteriores: 1913, Demolição do escadório exterior imagem cedida pela Biblioteca da Escola Secundária André de Gouveia

Eborense, da qual nasce a Associação da Tuna dirigida para a promoção de espectáculos visando a recolha de fundos para auxiliar o financiamento de viagens dos estudantes. A sua estreia oficial terá ocorrido em 1900, no 1º de Dezembro, dia de grande significado ainda hoje para os estudantes da Escola Secundária André de Gouveia, instituição que sucederia ao Liceu.

taque literário dado à produção bibliográfica de alunos e professores, a saliência dada aos alunos mais prestigiados da instituição com destaque para os que desempenhavam cargos públicos, projecção da imagem de “um bom liceu” como aceitou escrever na colaboração para o jornal académico o Director Geral do Ensino Liceal, Riley da Mota, completaram o processo22.

Em 1920 foi fundada a Associação Académica, que acabaria por enquadrar as restantes estruturas da actividade associativa liceal. Finalmente, o vestuário académico, cujo uso foi autorizado em 1860, por iniciativa de D. Pedro V, em homenagem ao passado universitário da cidade de Évora.21

A imprensa deu a conveniente projecção ao evento. Na imprensa local os ecos das comemorações foram assunto regular durante o ano seguinte, a consagração internacional também não faltou23.

Com a refundação da universidade o edifício mudou de inquilino e de estatuto. Porém a população citadina não estranhou a tradicional agitação entre o Largo dos Colegiais e a rua do Cardeal Rei. As récitas da Tuna continuaram. O uso do traje académico não constituiu novidade.

O processo de projecção institucional por via da criação de infra-estruturas nos espaços adjacentes continuou para além das comemorações. O Século deu conta da visita do ministro Duarte Pacheco às obras em curso na sala dos actos e no ginásio. Por seu turno a imprensa local noticiou amplamente as obras de criação do complexo desportivo24.

O liceu continuou também. Hoje a Escola Secundária André de Gouveia mantém-lhe as tradições e a memória.

Nota final

No entanto, para a memória mais recente, foram sobretudo as comemorações do primeiro centenário, em 1941, que projectaram a imagem do liceu arrumado, austero, de qualidade, instalado no soberbo edifício, símbolo maior da pujança intelectual da cidade.

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A história do liceu de Évora pode estruturar-se em função das opções de política educativa.

No cenário privilegiado da antiga universidade, estiveram presentes, vindos de todas as partes do império, mais de um milhar de pessoas entre alunos e professores.

No regime monárquico constitucional e no republicano, a sucessão de reformas não só manteve o liceu de Évora com um invejável estatuto de proeminência regional, como permitiu que este ombreasse com as principais instituições de ensino secundário dos grandes centros urbanos do País.

O evento pretendia acentuar o simbolismo e a carga emocional que o regresso aos lugares de juventude sempre proporcionou. O reforço do processo identitário verificou-se com o relevo dado às tradições académicas, à divulgação das representações do liceu produzidas pelos antigos alunos. A iconografia académica, o des-

Durante o regime do Estado Novo, muito por via dos consensos alargados em matéria educativa – que acabariam por construir uma imagem de qualidade do ensino ministrado –, mas também pela dignidade conferida pelas intervenções arquitectónicas, o liceu de Évora adquire uma notável e duradoura projecção institucional.

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Notas

1 RAMOS, Rui – João Franco e o fracasso do Reformismo liberal 1884-1908. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais, 2001, p. 13. 2 AHLE [Em catalogação], Relatório, 1943. GROMICHO, António Bartolomeu - «A Sala dos Actos da Antiga Universidade de Évora». Cidade de Évora, nº 21-22, 1950, pp. 43-52; AMADO, Casimiro - «A Sala dos Actos», Jornal da Universidade de Évora, nº 1, 1998, p. 10. 3 GOMES, Joaquim Ferreira – Relatórios do Conselho Superior de Instrução Pública (1844-1859). Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985, p. 49. 4 ADÃO, Áurea – As Políticas Educativas nos debates parlamentares. O caso do Ensino Secundário Liceal. Porto: Afrontamento, 2002. 5 GAMEIRO, Fernando – «Elites e Educação no Sul de Portugal – Estratégia e Capital Escolar». Actas do 2º Colóquio sobre História Social das Elites, Lisboa: Instituto de Ciências Sociais/Universidade de Lisboa, 2005 6 GÁCIO, Sérgio – «Ensino Técnico e Indústria. Uma perspectiva da Sociologia Histórica». O Sistema de Ensino em Portugal, séculos XIX e XX. Lisboa: FCSH/IHC/Colibri, 1998, 69-75. 7 AMARAL, Luciano, “Educação no Período do Estado Novo (1930-1973)”. RAMADA CURTO, Diogo (Dir.), Estudos de Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX .Lisboa: Fundação Calous-

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te Gulbenkian, 2006, 119-146; GAMEIRO, Fernando - «A política educativa do Estado Novo. O ensino secundário liceal». Actas do III Encontro Luso-Espanhol de História Política. Lisboa: Colibri, 2009. 8 GRÁCIO, Sérgio – Ob. Cit. 9 TORRINHA, Francisco, «Évora e o Centenário do Liceu André de Gouveia», O Corvo, n.º 4 da 28ª Série, Évora, s/e, p. 8. 10 NÓVOA, António, - «Ensino Liceal». ROSAS, Fernando e BRITO, José Brandão, Dicionário de História do Estado Novo, vol. I Lisboa, Círculo de Leitores, p. 301. 11 BARROSO, João, Os Liceus organização administrativa e pedagógica 1836-1960, Lisboa, 1995; GAMEIRO, Fernando - «Identidade, Legitimação e Poder. Évora e o Liceu Nacional de André de Gouveia durante o Estado Novo». Economia e Sociologia nº 76, Évora: ISES, 2003, pp. 157-178. 12 GROMICHO, António - «O Liceu Nacional de Évora», Cidade de Évora, n. º 35-36, p. 54.

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15 GROMICHO, António Bartolomeu - «A Sala dos Actos ….». Cit 16 Diário Ilustrado, 10.5.1958. «Problemas Eborenses. Recidivas do deputado por Évora Dr. A.B. Gromicho», Évora, Maio, 1958. SILVA, Augusto da - Ob. Cit. p. 6 a 27. 17 SILVA, Augusto da - Ob. Cit. p. 23 18 GROMICHO, António Bartolomeu - «A Sala dos Actos ….», Cit. p. 49-51. 19 BARROSO, João, Ob. Cit. p. 577 vol. I, e também Sérgio Grácio – Ob. Cit.. 20 PINHEIRO, Monarca – Memória do Liceu. Évora, 1991, p 19-20. 21 Ministério do Reino, portaria de 27.10.1860; Sholástico Eborense, 1.10.1861 22 MOTA, Riley da «Um bom Liceu», O Corvo, 1941, p.4.

13 MARTINS DOS REIS, Sebastião - «A Restauração da Universidade de Évora», A Cidade de Évora, 1959 pp. 20-23. SILVA, Augusto da - O Conde de Vill’Alva (1913-1975), percursor dos Estudos Universitários em Évora. Évora,:Instituto de Cultura Vasco Vilalva, Évora, 1999, pp. 6-27.

23 L’ Osservatore Romano, 14.11.1941. GAMEIRO, Fernando Luís - «Educação e Elites No Portugal Contemporâneo. Os Liceus do Sul na imprensa generalista (1930-1960)». Percursos e Desafios da Pesquisa e do Ensino em História da Educação, Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação, Minas Gerais:Universidade Federal de Uberlândia, 2007.

14 TOSTÕES, Ana «Silva, Luís Ribeiro Cristino», Dicionário de História do Estado Novo. Vol. II, Lisboa: Círculo de Leitores, p. 909-910.

24 O Século, 19-11-1941. Primeiro de Janeiro, 2311-1941. Comércio do Porto, 19-11-1941; Brados do Alentejo, 23-11-1941.

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A restauração do Ensino Superior em Évora O debate na imprensa eborense (1957-1958)

Texto: Casimiro Amado Universidade de Évora

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m 22 de Março de 1957, na “Página Literária” do semanário eborense A Defesa um sacerdote diocesano, capelão militar e capelão do hospital, José Manuel Guerreiro, publicou o artigo que desencadeou o processo que culminaria na realização do Congresso Comemorativo do IV Centenário da fundação da Universidade de Évora, o qual decorreu entre 28 de Outubro e 1 de Novembro de 1959. O facto de o autor deste texto, intitulado “Centenário da Universidade de Évora”, não voltar a participar na discussão que ele próprio abriu é significativo na perspectiva de uma das teses fundamentais que aqui defenderemos: o debate eborense em volta da restauração do ensino universitário em Évora ocorrido em finais dos anos 50 deve ser entendido como algo muito mais complexo do que uma mera discussão a propósito de uma efeméride. Na verdade, como veremos, as comemorações foram principalmente um pretexto para que na cidade de Évora e no contexto nacional se levantassem alguns problemas que, sendo também locais, tinham, no entanto, uma dimensão nacional evidente, como era o caso do velho problema da restituição dos bens eclesiásticos por parte do Estado – problema que, como se verá, não tinha sido inteiramente resolvido com a Concordata. Por outro lado, a ocasião era também de discussão acerca do modelo a adoptar no desenvolvimento económico e social do país e da região. Efectivamente, a defesa da restauração do ensino universitário em Évora far-se-á nestes anos terminais da década de 50

em Évora principalmente nas páginas da sua Imprensa, mas também fora dela, num debate que envolverá toda a comunidade, incluindo aí os poderes municipais e a representação do Círculo de Évora na Assembleia Nacional. O leitmotiv dos contendores nem sempre – pelo contrário – será exposto por eles com clareza, pois no caso das reivindicações eclesiásticas, assinada a Concordata, os clérigos careciam de cobertura jurídica para tal, e no caso das reivindicações desenvolvimentistas e regionalistas estas não tinham cobertura política consensual. Na imprensa e na sociedade eborenses de finais dos anos 50 aproveitou-se a oportunidade das comemorações do IV Centenário da fundação da Universidade para se reivindicar a restauração do ensino superior em Évora com razões mais vastas que as dos interesses e direitos “históricos” da cidade. O debate que se travou exige que o analisem tendo presentes não apenas as circunstâncias miúdas da vida local mas também o contexto epocal da região, do país e do Mundo. Vivia-se uma era de grande optimismo técnico-científico, era o tempo de teddy boys e da afirmação da ideologia desenvolvimentista que no Alentejo se reflectia na realização de algumas grandes obras públicas no campo da hidráulica, ao mesmo tempo que outros colocavam no espaço o Sputnik e se lançava a corrida do homem para a viagem à Lua1.

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O artigo de José Manuel Guerreiro evocava a grandeza cultural de Évora quando na primeira metade do século XVI ostentara os títulos de “segunda cidade do reino”, sob o ponto de vista político, e de “primeiro centro cultural e artístico”. A memória da glória antiga deveria levar a cidade a pensar “seriamente” nas comemorações centenárias da sua Universidade. Obviamente, o que havia que comemorar não era a passagem dos duzentos anos do “golpe” que o primeiro-ministro de D. José vibrara no “coração e no cérebro” da cidade que “sempre desempenhou um papel preponderante nos momentos mais importantes da vida nacional”, cidade de onde partiu Vasco da Gama, cidade que preparou o movimento libertador de 1640. O objectivo seria, naturalmente, antes, a evocação do lugar de relevo que Évora ocupou entre estas duas datas (1559, ano da fundação da Universidade, e 1759, ano do seu encerramento). O sacerdote sugere logo que seja a Câmara Municipal a organizar uma Comissão que oriente e coordene os trabalhos, e procure associar a si as restantes entidades oficiais e particulares. Porém, a terminar o artigo vai mais longe e propõe que as comemorações sejam mais do que uma mera evocação do contributo de Évora e da sua Antiga Universidade para a cultura nacional: “Que bela oportunidade se oferece para desafrontar a cidade da ignomínia de que foi vítima. Porque não agenciar, junto do Governo da Nação, a restituição da universidade ao Alentejo?! Seria a satisfação duma legítima aspiração e a melhor maneira como o Governo se associava à comemoração deste centenário.”

Dois meses depois da publicação deste artigo rebentou nas páginas de A Defesa uma feroz discussão acerca do “destino do Liceu de Évora”. Do ponto de vista dos articulistas deste

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“semanário católico e regionalista”, está em causa decidir o destino do edifício do Colégio do Espírito Santo agora que a Casa Pia está de saída para S. Bento de Cástris já no próximo Outubro e quando se prevê que, a curto prazo, novo edifício seja construído para nele funcionar o Liceu de Évora. Temem – e o futuro próximo vai dar-lhes razão – que, em vez de sair dali depressa, o Liceu venha a ocupar as instalações libertadas com a saída da Casa Pia. Na verdade, estava em curso um processo de redefinição da função de vários edifícios situados no centro histórico de Évora e a Câmara Municipal discutia um plano de urbanização da zona envolvente do templo romano. Discutia-se qual a finalidade a dar ao Palácio da Inquisição (até há pouco o Hotel Alentejano), bem como ao Convento dos Lóios, ao Palácio Amaral, e ao antigo Paço Arquiepiscopal (Museu Regional). O Reitor do Seminário, director de A Defesa, Padre Dr. José Filipe Mendeiros, iniciara a publicação de uma série de artigos sobre este assunto (“ambiência do templo romano”), sob o título Problemas Eborenses2. Para o Padre Mendeiros era necessário conciliar o respeito pela riqueza patrimonial da cidade com a satisfação das suas novas necessidades no campo do ensino e do turismo. No debate que se gera a propósito desta reorganização do tecido urbano, a defesa dos interesses da Igreja, designadamente dos patrimoniais, acabaria, entretanto, por ser assumida em acirrados artigos assinados com os pseudónimos3 O Terceiro Homem, Um dos Dois, e Um dos Três. Em artigos publicados nas edições de 25 de Maio, e 1 e 8 de Junho de 1957 de A Defesa, todos eles têm como alvo principal o Reitor do Liceu e deputado pelo círculo de Évora na Assembleia Nacional, Dr. António Bartolomeu Gromicho. Antes ainda da publicação destes textos decisivos, A Defesa publicara já o primeiro de uma série de três artigos do médico A. Garção sobre o ensino superior em Portugal. Na sua “Tribuna dum médico” advoga nos dois primeiros a

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criação de uma Universidade Católica no país e no último defende que ela seja criada em Évora. No primeiro dos artigos, publicado em 27 de Abril de 1957, afirma que não existe em Portugal o tipo de Universidade que faz falta aos católicos portugueses: “A Universidade em Portugal é agnóstica. Limita-se a ensinar as letras, a ciência e a técnica, sem cuidar do complemento necessário – a formação religiosa dos alunos”.

A. Garção entende que aos católicos não basta poderem frequentarem uma Universidade que não seja contrária à doutrina e moral cristãs, pois precisam de uma na qual se concilie a Fé com a Ciência, e isso só acontecerá numa Universidade Católica: “Só na Universidade Católica há um acordo perfeito entre o Poder e o Crer; só aí os Universitários iluminarão as conquistas da Ciência com os esplendores duma Fé viva e esclarecida. A Universidade Católica tem de ser um farol de progresso da Ciência e um baluarte na defesa da Fé, pois a sua missão consiste em formar homens completos, técnica e culturalmente bem preparados, modelos de vida cristã, porque só assim poderemos recristianizar as classes cultas”.

Como dissemos, no segundo artigo4 o tema continua a ser a necessidade da criação de uma Universidade Católica em Portugal, lembrando a propósito que isso mesmo tinha sido defendido pelo Arcebispo de Évora no 1º Congresso Nacional da Juventude Universitária Católica (Lisboa, 1953). Só no terceiro artigo5, intitulado “Uma Universidade Católica, aonde?” vai discutir qual a localização ideal da mesma em Portugal. Parecendo não querer ferir

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susceptibilidades, recorda que Braga “já por diferentes modos tem manifestado o desejo de ser a sede da futura Universidade Católica”. Mas, porque Braga já se orgulha de ter adentro dos seus muros a Faculdade Pontifícia de Filosofia e o Norte do País já tem uma Universidade Clássica no Porto, pergunta: e por que não Lisboa… ou Évora?: “Lisboa merece também uma Universidade Católica, porque é capital duma grande nação católica, porque é capital duma grande Nação missionária. Mas… Portugal não é só Lisboa, e além disso a capital já tem duas Universidades: a Clássica e a Técnica. E, porque não em Évora? Évora tem também as suas tradições e sente-se com pleno direito a ser reintegrada no seu papel de cidade universitária em todo o Sul de Portugal.”

Recordando depois a grandeza a que a cidade de Évora se alcandorou com os ilustres humanistas eborenses e com o ensino dos mestres da sua antiga Universidade, fecha como segue a sua argumentação em defesa da criação de uma Universidade Católica em Portugal e muito concretamente em Évora: “Por isso digo e repito, não só o nosso sentimento católico como a necessidade duma cultura mais profunda e mais sólida (…) impõem a criação, a restauração duma Universidade Católica, que muito bem poderia ser em Évora, atendendo assim às legítimas aspirações do Sul do País. E como o rev. Dr. José Manuel Guerreiro, eu digo também: que bela oportunidade tem Évora, no próximo ano de 1959, para comemorar o Centenário da sua Universidade, e o governo a de a restituir ao nosso Alentejo. Pois como é sabido a universidade Alentejana até 1759 manteve em terras do sul, e durante dois séculos o facho da cultura portuguesa!”6Na verdade,

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tanto no pontapé de saída inicial do Padre José Manuel Guerreiro como nestes textos do médico A. Garção defende-se a restauração da Universidade de Évora aproveitando a oportunidade das comemorações do Centenário mas isso faz-se sem quaisquer considerações acerca de qual o edifício a ocupar pela Universidade que desejam ver restaurada. Pelo contrário, o problema do edifício foi o ponto fulcral da polémica aberta pelos articulistas de A Defesa em 24 de Maio de 1957. No lado oposto às pretensões eclesiásticas está o Reitor do Liceu, Dr. António Bartolomeu Gromicho, um antigo seminarista da mesma geração dos que, ali ao lado, dirigem o Seminário e A Defesa. Insistirá na defesa da manutenção do Liceu nas suas actuais instalações pois a sua expansão (necessária para satisfazer o aumento do número de alunos que o procuravam), estaria assegurada com o recurso aos espaços que a Casa Pia em breve deixaria livres. A disputa territorial entre os dois vizinhos, Seminário e Liceu, (e, em geral, entre a Igreja e o Estado) estará ao rubro nesta encruzilhada da história da cidade de Évora. A defesa da conveniência da oportunidade da restauração da Universidade de Évora no contexto das Comemorações do IV Centenário serve aos eclesiásticos eborenses de pretexto para a pedir a restituição à Igreja dos edifícios em que outrora funcionou a universidade jesuítica. Um ano mais tarde, quando azedar a polémica com o reitor-deputado, Os Mesmos que agora, em Junho de 1957, já escrevem que “(…) não há dúvida que aquelas paredes parecem estar sempre a reclamar a presença dos seus antigos proprietários…”7 deixarão mais claro ainda que, em seu entender, está em causa um legítimo problema de propriedade: “A ideia da restauração está ligada e encontra a sua justificação nas paredes que mandou erguer o Arcebispo de Évora D. Henrique, com o seu dinheiro e com o dinheiro do Cabido eborense”8. O debate que em Évora se travou no contexto da preparação das comemorações do IV Centenário da fundação da Universidade foi

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parte de uma disputa larvar entre a Igreja e o Estado (que supostamente tinha sido encerrada pela assinatura da Concordata) em termos de restituição do património eclesiástico. Isso mesmo é explicitamente referido, a certa altura, pel’O Terceiro Homem quando escreve em 1 de Junho de 1957: “É certo que depois da Concordata já não é lícito falar em deveres de restituição do edifício aos antigos donos, esbulhados pela sanha do Marquês. Todavia, se não se pode falar em obrigação moral e jurídica, estritamente dita, talvez já se possa invocar, embora sob um ângulo diverso, uma justíssima conveniência histórica em dar o seu a seu dono, uma vez que todas as possibilidades se conjugam em o facilitar”.

Terá sido precisamente a percepção de que estavam perante uma oportunidade de ouro para recuperar património perdido que constituiu a motivação principal dos clérigos eborenses na sua cruzada em favor da construção de um novo Liceu em Évora. Construído esse, o edifício da Antiga Universidade ficaria livre e poderia servir para a instalação de uma Universidade Católica, em princípio conseguida por transferência da Faculdade Pontifícia de Filosofia de Braga para Évora. Mas, se isto não fosse viável, então o edifício do Liceu poderia a servir para instalar o Museu, e desta forma poderia ser devolvido à Igreja… o antigo Paço Arquiepiscopal. Alvitra O Terceiro Homem: “Para a hipótese inadmissível de a Faculdade Pontifícia de Filosofia não aceitar a proposta do seu regresso a Évora, lembramos que o edifício do museu citadino está em condições precárias e deficientes para esse destino forçado, pois era o antigo Paço Arquiepiscopal, ao passo que o actual Liceu é susceptível de resolver perfeitamente esse problema. Lembra-se, ainda, que outras cidades, como o Porto, já restituíram ou estão em vias de restituir, a quem de direito, os antigos paços episcopais…”.

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Analisemos, então, um a um, estes três números consecutivos de A Defesa, publicados em 25 de Maio, 1 de Junho e 8 de Junho de 1957. No primeiro deles encontramos dois artigos relativos ao nosso tema. Na rubrica “Problemas eborenses” e com o título “O destino do Liceu de Évora”, O Terceiro Homem inicia um muito longo texto com as palavras “O caso não pode nem deve passar em julgado” e termina-o com a promessa de continuação no número seguinte onde se indicará uma “solução magnífica” para o problema. Por seu lado, na rubrica “Quinta Coluna”, Um dos dois escreve um texto bem mais breve cujo tema é o mesmo assunto e tendo por título simplesmente “Liceu Nacional de Évora”, título que será retomado também no artigo da mesma rubrica que será publicado no número seguinte, em 1 de Junho de 1957. Afinal, a “solução magnífica” proposta para o edifício do Liceu nesta edição de A Defesa pel’O Terceiro Homem no seu segundo artigo encontramo-la indicada logo no título do texto – agora já não enquadrado na rubrica “Problemas eborenses” mas apresentado com um sobretítulo “O destino do Liceu de Évora” − : “A restauração da Universidade de Évora em Évora. Pela valorização cultural do Alentejo”. Finalmente, no terceiro dos números de A Defesa em análise, encontramos, sob o título “O destino do Liceu de Évora”, a publicação de uma carta assinada pelo Vice‑Reitor do Liceu, Waldemar de Passos e Sousa comunicando ao semanário católico que o Conselho Disciplinar do Liceu, onde o Reitor fizera “uma elucidativa exposição sobre a evolução do problema da instalação deste estabelecimento de ensino”, aprovara por unanimidade na sua reunião de 31 de Maio último “um voto de repulsa pelos termos em que foram redigidos” os artigos publicados na edição de 25 de Maio de 1957 de A Defesa “e pelo anonimato com que se acobertaram os seus autores”. O corpo do artigo encabeçado pela transcrição desta carta vem assinado por Um dos Três, mas percebe-se nele um tom de resposta institucional do próprio jornal. O anonimato dos autores é justificado por Um

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dos Três com a preocupação de procurar evitar que o problema se deslocasse “para aspectos pessoais” “distraindo as atenções do plano essencial”. Além do mais, alega, também o Reitor não se atrevera a assinar com o seu punho a carta enviada do Liceu para A Defesa. Tinha, inclusive, usado abusivamente a reunião do Conselho Disciplinar para discutir uma matéria que não deveria ser ali tratada, pelo que deverão ser pedidos esclarecimentos ao Ministro da Educação Nacional caso se repita esta situação. E com esta ameaça terminou aquela que podemos chamar uma primeira fase deste debate acerca da restauração da Universidade de Évora em Évora na imprensa eborense, debate restrito, por agora, ao semanário católico A Defesa. A Nota da Redacção, assinada por Um dos Três, publicada em 1 de Junho de 1957, sob o título “Évora quer um Liceu Novo” deixa entender que o debate se terá alargado à cidade logo na sequência da edição de 25 de Maio: “Aconteceu o que era fácil de prever… De todos os pontos do distrito e, designadamente, cá da cidade, têm chovido na nossa redacção aplausos calorosos aos nossos artigos do último número do nosso jornal (…). Por aqui se vê que é sentir unânime de toda a gente de bom senso que só um Liceu novo dará à juventude dos nossos dias as condições pedagógicas indispensáveis para um pleno desenvolvimento das suas dificuldades e aspirações legítimas de ar, luz e higiene. O que importa agora, é fazer chegar às instâncias competentes o sentir da opinião geral, para que pese na balança da verdade e da justiça. Évora quer e tem direito a um Liceu novo. Reclamá-lo-á sempre. E não está certo que, quem tem responsabilidades, queira sacrificar os direitos de uma cidade, de um distrito e de gerações de rapazes e raparigas a uma opinião pessoal, que tem muito de falível e de insustentável.

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“A Defesa” não pode calar nem transigir quando estão em causa os direitos inalienáveis da juventude estudantil e ainda menos quando a querem tornar cúmplice de razões sem razão. Apelamos para a grandeza moral daquelas pessoas que não têm medo da verdade, que tudo sacrificam à defesa dos interesses colectivos, para que façam sentir o peso da sua opinião desassombrada junto de quem pode dar solução a estes remendos que bradam ao céu. Évora será enriquecida com um Liceu novo se os eborenses quiserem. Évora poderá oferecer aos seus estudantes alegria no estudo se lhes der um Liceu novo. Todos por um Liceu novo em Évora.”9 Podemos resumir como se segue a argumentação dos articulistas nestes três números de A Defesa: 1- A cidade não deve continuar a tratar com apatia e indiferença, próprias duma “geração de bois mudos que tudo acham bem e a tudo acenam que sim”, o “problema do liceu”. Problema duplo: de necessidade de um novo Liceu, e do destino a dar ao edifício que vai ficar livre quando o novo Liceu estiver construído; 2- Não é solução para o “problema do liceu”, isto é para a sua expansão, a ocupação da parte do Colégio do Espírito Santo que vai ficar vaga com a saída da Casa Pia, pois isso, além de ser economicamente indefensável, “visto que se gastaria o mesmo, ou, talvez, mais dinheiro que com um liceu novo”, pedagogicamente, seria também “um solene e incontrovertível disparate, quando se pensa nas exigências pedagógicas e nas possibilidades construtivas modernas”. Nem pensar, portanto, em “perfurar, em trabalho de sapa, o Liceu para a Casa Pia”, porque isso equivaleria ao prolongamento e ao alargamento “daquela Califórnia, de verão, e daquela Sibéria, no inverno”;

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3- Se não quiser enveredar por uma política de “abrir buracos e levantar tapumes, como se fosse uma aldeia indígena”, Évora só tem uma única solução digna (e “Évora não é menos que Oeiras ou Lourenço Marques, que Viana do Castelo ou Castelo Branco, que Beja ou Faro, e tantas outras cidades que ostentam os cómodos e artísticos edifícios onde se não fatigam nem indispõem professores e alunos”). Por isso, “a cidade tem de viver intensamente este aforismo, que é a garantia do seu futuro: Tudo por um Liceu novo em Évora; nada contra o Liceu novo em Évora; e tudo o que for contra este Liceu novo, é simplesmente contra Évora!” O Terceiro Homem não duvida de que “as autoridades que a governam” terão “crédito e influência mais do que suficientes” para conseguirem obter agora “o mesmo Liceu que o Estado Novo ofereceu sem ser solicitado!...”; 4- É sabido que Évora já terá desperdiçado uma vez a oportunidade de ter um novo Liceu quando, estando a verba já orçamentada, ela foi “unilateralmente rejeitada”, com benefício para Beja, onde um “excelente liceu” foi construído. O Terceiro Homem nunca identifica o responsável por essa rejeição, mas Um dos Dois vem lembrar que o actual Reitor do Liceu ainda há pouco no boletim «A Cidade de Évora» afirmou não só não se arrepender como orgulhar-se “de ter fortemente contribuído para desviar de Évora a construção algures dum liceu novo, inexpressivo e frio, e de continuar a insistir e lutar pela sua manutenção neste edifício histórico e de beleza sem par, pois que estou certo de que as deficiências pedagógicas actuais serão anuladas quando todo o edifício for restituído à sua primitiva função escolar”. Um dos Dois concede que o edifício poderá ser adequado para estudantes universitários, “homens adultos, que se preocupam com as raízes da tradição e com as linhas da arquitectura”, mas “nunca para a mocidade que passa pelas suas salas durante sete ou mais anos”; 5- Um dos dois denuncia o que considera um lapso, “mais ou menos incompreensível” do

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Dr. Gromicho no mesmo artigo de «A Cidade de Évora» ao classificar o Liceu como a “instituição escolar mais importante e mais antiga, que funciona intra-muros” em Évora. Não sendo necessário lembrar qual é a “instituição de cultura mais antiga de Évora”. Só pode ser, portanto, um estranho lapso a motivar que “tenha passado uma rasoira” sobre aquela que também “sobreleva em todos os sentidos o Liceu”, uma “casa” onde a cultura é “uma realidade e não uma ficção mais ou menos limitada”: o Seminário Maior da Arquidiocese; 6- Sendo ponto assente que só a construção de um novo Liceu interessa à cidade, e que o seu Reitor parece ser o único a defender obstinadamente o contrário, é ocasião de se fazer “um inquérito elementar” aos professores que lá estão e aos que por lá passaram, e também aos alunos “e então se verá quantos defendem o alargamento do Liceu para os túneis e porões da Casa Pia…”. O Terceiro Homem está certo de que “para a consciência do público, o primeiro golpe de picareta que se der na Casa Pia, sob pretexto de solucionar ou melhorar o Liceu, é o primeiro tiro contra a Cidade”. E por isso investe contra o único inimigo declarado da solução que se impõe. Como se desconhecesse que o Reitor do Liceu é simultaneamente um desses representantes na sua qualidade de deputado… escreve que “A solução diz respeito à cidade inteira, na pessoa dos seus representantes e dirigentes responsáveis, e nunca pode nem deve resultar do critério, da visão de um só”. E, como se ignorasse que ele é igualmente o Presidente da Direcção do Grupo Pró‑Évora, diz estranhar que esta instituição nunca se tenha manifestado contra a “pseudo‑solução”, parecendo assim “renegar o seu programa” e dando “a impressão de uma confraria para inofensivas e anódinas lucubrações”; 7- Finalmente, admitindo que tenha sido mesmo “posta de lado, necessária e terminantemente, a hipótese de rateio da Casa Pia como solução do problema liceal, (…) ocorre naturalmente a pergunta: E que se vai fazer

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do edifício do Liceu?”. A esta pergunta responde O Terceiro Homem com uma sugestão que admite poder, pelo “inesperado”, suscitar “espanto ou estranheza”: como “as pedras da Universidade e do colégio são sagradas”, e como “não há dúvida que aquelas paredes parecem estar sempre a reclamar a presença dos seus primitivos proprietários…”, Évora deverá aproveitar a “espécie de «fatalismo» de certas datas, referentes à velha Universidade Eborense”. Inaugurada e entregue à companhia de Jesus em 1559, foi apunhalada exactamente duzentos anos depois, e agora… “Faltam apenas dois anos exactos! Dir-se-ia que a história se repete, ciclicamente atravessada por um curso regressivo que a vinga e justifica… Proporciona-se, desta forma, uma ocasião única e estupenda para restaurar, no Liceu de Évora, a sua inesquecível e, até certo ponto, nunca ausente Universidade! Estes dois anos que faltam, dir-se-iam, intencionalmente preparados e oferecidos à cidade, para esta construir o liceu que ambiciona e precisa, de modo que, em 1959, o poderia inaugurar, e, ao mesmo tempo, assistir, comovida, à reabertura da sua Universidade pela mesma Companhia de Jesus!... Talvez algum incrédulo sorria, classificando tudo isto de ingenuidade e sonho. Mas o sonho, quando se têm os pés bem firmes na realidade dos factos e nas generosas possibilidades dos homens, é a crisálida e a alavanca de todas as coisas grandes e belas. Só não sonha quem já morreu, ou reduz a vida a uma rasa letargia vegetativa…”

Fica bem claro, portanto, que toda a argumentação dos articulistas de A Defesa a favor da solução “Novo Liceu” para o “problema liceal” de Évora é, essencialmente uma argumentação visando propor um certo e determinado “destino do [edifício onde funciona o actual] Liceu de Évora”: a entrega (restituição) de todo

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o edifício da Antiga Universidade à Igreja10. Isso se fundamenta no facto de lhes parecer que a restauração da Universidade de Évora só seria possível se dessa tarefa fosse incumbida a mesma Igreja, em princípio através da Companhia de Jesus, que deslocaria de Braga para Évora a Faculdade Pontifícia de Filosofia, visto ser “inquestionável que, no plano histórico, esta mesma Faculdade é a herdeira legítima e a representante autêntica da Universidade de Évora”. Embora depois da Concordata não se justifique jurídica e moralmente reclamar a “restituição do edifício aos antigos donos”, no entanto ela pode ser invocada na base duma “justíssima conveniência histórica em dar o seu a seu dono”. De resto, a opção por esta solução deve-se ao facto de O Terceiro Homem julgar que a localização em Évora da ultimamente tão falada Universidade Católica ou Pontifícia a criar em Portugal “não tem um mínimo de probabilidades”, pois as vantagens de centralizá-la em Lisboa acabarão por suplantar todos os inconvenientes. Pensa também que nem sequer é viável a hipótese de o Estado instituir em Évora o funcionamento de uma Faculdade de Letras ou de Agronomia, essencialmente pelas mesmas razões, complementadas com a dificuldade de fixar os catedráticos a viver em Évora. Embora esteja consciente de que a cidade de Braga procurará evitar perder a sua Faculdade e deixar sair a Companhia de Jesus, crê que esta última é que “não hesitará em vir retomar e continuar o ciclo cultural começado e, infelizmente, interrompido em Évora”. Na hipótese mais remota e menos desejada de, porventura, o edifício deixado completamente devoluto com a saída do Liceu não venha a ser ocupado com a Universidade restaurada, então que se instale nele o Museu, visto que o edifício em que se encontra, era o antigo Paço Arquepiscopal e outras cidades “já restituíram ou estão em vias de restituir, a quem de direito, os antigos paços episcopais…”. As reticências finais são bem o sintoma de que para os articulistas de A Defesa restauração rima a gosto com restituição.

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Na sua reunião ordinária de 21 de Junho de 1957 a Câmara Municipal de Évora, procurando − dirá mais tarde o seu Presidente − “interpretar fielmente os desejos da cidade”, deu os primeiros passos no sentido da preparação das comemorações a realizar em 1959 a propósito do IV Centenário da Fundação da Universidade de Évora, acolhendo assim as sugestões feitas nas páginas de A Defesa nos meses anteriores. Foram aí tomadas duas decisões nesse sentido. A primeira, de apoiar o Padre Jesuíta Pereira Gomes na sua investigação sobre os professores de Filosofia da antiga Universidade. Na sequência de correspondência já trocada sobre o assunto11, foi-lhe atribuído um subsídio “para que não sofressem quaisquer limitações” as suas pesquisas em arquivos de Paris, Londres, Oxford, Bruxelas, Amesterdão, Colónia, Munique, Viena, Veneza e Roma12. A segunda decisão foi a de, sob proposta do Vereador de Arte e Arqueologia da Câmara Municipal e membro do clero eborense, o Padre Dr. Júlio César Baptista, ser criada uma Comissão das Comemorações do IV Centenário. Sabemos que em 31 de Julho de 1957 foi contactado a este respeito o Padre Lúcio Craveiro da Silva, Provincial da Companhia de Jesus, o qual garantiu o seu apoio e a colaboração da Faculdade de Filosofia de Braga. Este contacto, bem como os demais actos preparatórios estiveram a cargo do mesmo Vereador. Na sua edição de 3 de Agosto de 1957 A Defesa noticiava que “numa das últimas reuniões camarárias” foi deliberado que a Câmara tomasse as rédeas das comemorações a realizar em 1959, ficando-se agora a aguardar a divulgação do respectivo Programa. Não teremos nos meses seguintes, até Dezembro de 1957, nenhum eco na imprensa eborense de que o problema da restauração da Universidade voltasse a ser tema de debate público. Nesse mesmo Dezembro os ministros das Obras Públicas e da Educação Nacional visitaram Évora e, acompanhados pelas autoridades locais e distritais, estiveram em vários

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edifícios e monumentos, entre os quais o edifício do liceu (“antiga Universidade dos Jesuítas”, escreve A Defesa), no Colégio do Espírito Santo (“actualmente desabitado”, escreve A Defesa), e no actual Museu e Biblioteca (“antigo Paço Episcopal, escreve A Defesa). Como os ilustres visitantes não fizeram qualquer comunicado à Imprensa e se retiraram (não sem apresentar cumprimentos ao Arcebispo de Évora), A Defesa diz que se fizeram a respeito da visita “as mais variadas conjecturas”, às quais “só Suas Excelências sabem responder”: “Irá finalmente resolver-se o problema do liceu de Évora? Do Palácio da Justiça? Do quartel dos Bombeiros? Da Escola Industrial? Da Pousada? Da Casa Pia? Do mercado da cidade? Da estrada de circunvalação? Do hospital do Patrocínio?”

O Programa das Comemorações do IV Centenário deve ter sido elaborado até final do ano de 1957. Sabemos que em 1 de Janeiro de 1958 foi submetido à apreciação do Padre Lúcio Craveiro da Silva o qual confirmou a colaboração da Faculdade de Filosofia da Província Portuguesa da Companhia de Jesus. Assim, em 3 de Janeiro de 1958, a Câmara Municipal aprovou a proposta do Padre Júlio César Baptista de que as comemorações tivessem “três actos”13:

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acerca das Comemorações do IV Centenário, a realizar em 1959, bem como informar acerca das diligências em curso. Relativamente ao estudo do Padre Dr. João Pereira Gomes, da Companhia de Jesus, informou que o subsídio atribuído foi de 6.000$00 e que o volume a publicar com o estudo bibliográfico dos 215 professores da antiga Universidade (“que, na sua maioria, são alentejanos”), deve aproximarse das 500 páginas. Esta sessão do Conselho Municipal torna-se um dos momentos mais relevantes do processo da preparação das comemorações e da reivindicação da restauração dos estudos universitários em Évora, pois é a partir dela que este processo adquire o cunho de uma reivindicação política da cidade e que se juntam às razões eclesiásticas outras de ordem económica e política, com tal restauração a ser encarada como uma medida que se impõe no quadro de um certo modelo de desenvolvimento do Alentejo. Não compreenderemos convenientemente esta alteração do espírito comemorativo e restaurador da Universidade de Évora se a não entendermos no quadro político‑económico do país, num ano em que se realizará uma eleição presidencial que fará tremer o regime (Humberto Delgado é o candidato da oposição) e em que o desenvolvimento económico do Alentejo recebe contributos decisivos com o Plano de Rega e com a experiência-piloto da Colónia Agrícola de Pegões e a hipótese de alargamento das iniciativas da Junta de Colonização Interna.

1- Sessão solene; 2- Congresso Científico com os maiores especialistas nacionais e estrangeiros; 3- Exposição bibliográfica de manuscritos e impressos de professores da Universidade de Évora, existentes no País. Na reunião ordinária do Conselho Municipal realizada em 27 de Fevereiro de 1958 foi a vez de o Presidente da Câmara dar conhecimento a este órgão do Relatório de Gerência do ano findo e aí se incluíam as deliberações tomadas

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Évora também respira novidade e tem até um novo e mais ousado jornal, o Jornal de Évora, cujo primeiro número saiu em Dezembro de 1957, e no qual não se duvida de que sem industrialização não poderá haver desenvolvimento em Évora, e se afirma estar aberta uma luta entre a “Cidade Antiga” e a “Cidade Nova”. Ao debate sobre a restauração da Universidade nada disto é estranho, como não o é o grande desenvolvimento do turismo tanto estrangeiro como nacional. Até a equipa de futebol do Lusitano se classifica em 5º lugar no Campeonato Nacional. Uma geração nova desafia as

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mais antigas, o que no caso da imprensa se espelha bem nas picardias que se travam entre o novel Jornal de Évora e os mais velhos A Defesa e A Democracia do Sul. Na referida reunião de 27 de Fevereiro de 1958 o Presidente da Câmara tinha já informado o Conselho Municipal das diligências feitas pela Câmara para a construção do novo liceu (incluindo nelas o ter ficado assente na recente visita do ministro das Obras Públicas que o mesmo estabelecimento de ensino se construiria “junto à saída da cidade na zona turística a caminho de S. Bento, em breve a urbanizar pelos serviços municipais”) quando o advogado Dr. António Gonçalves Rapazote (conselheiro que ali representa a actividade forense), depois de ter louvado “a grandeza da administração da municipalidade”, de se ter referido ao problema da construção clandestina “defendendo a situação dos humildes”, e de se ter ocupado da “questão hoteleira eborense”, se pronunciou acerca do restabelecimento da Universidade Henriquina. E fê-lo em termos que não andaram muito longe dos articulistas de A Defesa dos meses de Maio e Junho anteriores. De tal forma que a edição de 1 de Março de 1958 de A Defesa, deixando para a seguinte os pormenores da intervenção do Dr. Rapazote, publica logo ali a Proposta por ele apresentada ao Conselho Municipal e que foi aprovada por unanimidade: “Apreciando a conjuntura presente e a oportunidade de encarar, com a construção de um novo liceu, cujas instalações dêem inteira satisfação às crescentes exigências da população escolar, o desenvolvimento duma nova zona de urbanização da cidade e a devolução dos edifícios do antigo Colégio do Espírito Santo e da Universidade de Évora à sua primitiva e específica função; louvando todos quantos têm pugnado pela restauração da Universidade e interpretando o sentimento dos eborenses; confio ao senhor Presidente da Câmara e à Câmara Municipal, o encargo de diligenciar junto do Governo da Nação no sentido de que,

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neste ano de 1958, em que se completam 400 anos sobre a criação da mesma Universidade, por bula do Papa Paulo IV e pelos bons ofícios do Cardeal D. Henrique, seja decidida a entrega à Igreja eborense, representada pelo seu Arcebispo – legítimo representante daquele mesmo cardeal e dos mais arcebispos que engrandeceram e encheram de benefícios esta cidade, dando-lhe, no domínio da cultura, e através do labor da Instituição criada e entregue à Companhia de Jesus, verdadeira projecção universal das casas do dito Colégio e Universidade, para o fim de nelas ser restaurado o ensino universitário14, ainda com a mesma Companhia, se tanto for possível, ou pela forma que for julgada mais conveniente, mas sempre com vista à cultura humanística e sociológica, em conformidade com a tradição docente da mesma Universidade e as imperiosas necessidades do nosso tempo”.

O conteúdo integral da intervenção de Gonçalves Rapazote foi publicado na edição de 8 de Março de A Defesa e daí a transcrevemos com os entretítulos que, muito provavelmente, são da responsabilidade da Redacção deste jornal. Precedeu a apresentação da sua Proposta com as seguintes considerações: “(…) por via de circunstâncias especiais que favorecem a presente oportunidade, parece-me possível encarar com espírito levantado e ao mesmo tempo prático e realista, a restauração dos estudos universitários em Évora. Podemos começar por pouco mas é preciso começar.

PROJECTO É CONSTRUÇÃO DE UM NOVO LICEU O Senhor Presidente informou este Conselho Municipal de que se encontra estudada a loca-

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lização e se projecta a construção de um novo Liceu em Évora.

das barragens e do regadio, mas no seu aproveitamento em benefício da Nação.

É evidente que o edifício onde actualmente funciona não satisfaz. Em tais condições a construção deverá servir os dois sexos, podendo, segundo creio, as secções masculina e feminina utilizarem serviços e instalações comuns, como a biblioteca, laboratórios, salas de desenho, ginásio, com manifesta economia e perfeito rendimento escolar.

Está à vista de todos a necessidade premente de tratar a sério dos problemas sociológicos do condicionamento agrário, por forma que as gerações futuras tirem do esforço e sacrifício da geração presente, o máximo rendimento e que tudo se faça pelos melhores caminhos.

É uma questão de traça do grande edifício e de horários. A Universidade e o Colégio do Espírito Santo, depois da saída e instalação da Casa Pia em S. Bento, que já se verificou, estariam completamente devolutos. Vai pelo mundo uma febre de cultura; - quem se atrasa não pode sobreviver – e tem-se dado particular atenção ao estudo das humanidades pelo papel que desempenham no tempero a dar aos excessos do tecnicismo. Ainda há pouco o Senado da Universidade do Porto, com tanta autoridade, pedia a restauração da Faculdade de Letras, indispensável a todo o norte do País, e Sua Ex.ª o Ministro da Educação Nacional, cuja alta categoria mental merece o nosso melhor respeito e acatamento, vem definindo uma firme orientação no sentido de valorizar a cultura humanística.

Nenhuma tribuna mais adequada que a da Universidade de Évora, para estudar e ensinar sociologia e nenhuma instituição melhor para a orientar e reger que a própria Igreja Católica pelos seus Padres e Doutores. O estudo das humanidades e sociologia pode ser o fulcro da restauração dos estudos universitários de Évora e com manifesta viabilidade, desde que o Senhor Arcebispo, em cujo alto espírito floresce uma cultura do mais alto nível – Ele próprio um dia esteve designado para dirigir a Universidade Católica – se disponha a ser efectivamente o Protector dessa Universidade ocupando o lugar dos Seus Antecessores.”

Em seguida, A Defesa, optando por abandonar a transcrição ipsis verbis, passa ao discurso indirecto:

“A RESTAURAÇÃO DA UNIVERSIDADE DE ÉVORA NÃO É UMA IDEIA NOVA A PROVÍNCIA ALENTEJANA POR FORÇA DAS OBRAS DE REGADIO CARECE DE MAIOR ATENÇÃO Por outro lado, a província alentejana, praticamente recolhida ao amanho da terra, vai entrar, por força das grandes obras de regadio que se encontram projectadas e em curso, numa fase de conversão económica e social que carece de ser acompanhada com a maior atenção. As dificuldades maiores não estão na construção

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O vogal do Conselho continuou a sua exposição e disse ainda que a restauração da Universidade nem sequer é uma ideia nova visto que muitas pessoas interessadas e empenhadas na valorização da cultura nacional a têm acarinhado e defendido. Recordou que há cerca de vinte anos o Dr. Alfredo Pimenta propôs no Conselho Superior de Instrução Pública a restauração da Universi-

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dade de Évora e quantos não se acomodam a ver esquecidos, nesta terra alentejana, os benefícios das suas passadas épocas de grandeza, têm sonhado e insistido por essa restauração. Demais, o edifício, com suas salas de aula e de actos grandes, tem sido carinhosamente conservado como um autêntico Museu da velha Universidade, trabalho a que zelosamente se tem dedicado o actual Reitor do Liceu Dr. Bartolomeu Gromicho. Assim, parece chegado o momento de meter lá dentro, outra vez, a cultura que aquelas casas respiraram, durante duzentos anos, de acender outra vez as tochas apagadas

Finalmente, as últimas palavras que antecederam a apresentação da Proposta: “As considerações que acabo de fazer, as palavras do Senhor Presidente da Câmara que acabámos de ouvir e aquilo que sei também ser o seu pensamento, e o da própria Câmara Municipal, e bem assim as vantagens que advêm para todo o Alentejo do alargamento e elevação dos seus estudos, põem em equação a solução de numerosos problemas de maior interesse para o desenvolvimento da cidade cujo Conselho nos está confiado, e conduzem-me a apresentar a V. Ex.ª a seguinte proposta:”

Poucos dias passados, foi a vez de se reunir a Câmara Municipal e aqui a sessão foi dominada pela intervenção do seu Presidente Dr. João Luís Vieira da Silva, sobre construções clandestinas, sobre a construção de “um grande hotel” e sobre “o restabelecimento da antiga Universidade de Évora”15. Nesta matéria, era necessário, obviamente, dar seguimento à Proposta do Dr. António Rapazote aprovada por unanimidade no Conselho Municipal. Como vamos ver, e tanto o Jornal de Évora como

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A Defesa o salientam, o Dr. Vieira da Silva vai reformular a Proposta recebida do Conselho Municipal fazendo-lhe um aditamento a que a sua própria formação (era veterinário) não será alheia: que a restauração de estudos superiores em todo o caso inclua um centro de investigação e divulgação de economia agro-pecuária. Percebe-se claramente na sua argumentação que, embora não rejeite liminarmente as razões de base eclesiástica, entende que se justifica a criação de uma Universidade em Évora que seja mais e que seja outra coisa diferente de uma Antiga Universidade de Évora restaurada ou de uma Universidade Católica. Colocando alguma água na fervura dos entusiasmos à solta na cidade, concluiu assim a exposição do seu pensamento acerca da proposta aprovada pelo Conselho Municipal: “Se bem entendi a proposta aprovada pelo Conselho Municipal, ela assenta no pressuposto de que o edifício em que funcionou a antiga Universidade de Évora fique devoluto pela construção de um novo Liceu misto, pois só assim seria possível a sua entrega à Igreja Eborense para o fim de nele ser restaurado o ensino universitário. Ora pode acontecer que nem o Liceu seja considerado com tais características ou que, sendo-o, o Governo discorde desse destino ou ainda que, concordando o Governo, seja a própria Igreja a não desejar a Universidade com a feição humanística e sociológica que consta da proposta. Em qualquer das hipóteses entraríamos num beco sem saída sobretudo naquilo que constitui ambição legítima de todos os eborenses amantes da cultura e ciosos da tradição da sua cidade. Por outro lado, também me parece de considerar a circunstância de o Alentejo, terra que sempre foi o celeiro e dispensa do país, por essas razões ser o local próprio para a investigação e divulgação e estudo daquilo que em qualquer outro país civilizado constitui actualmente um dos ramos de maior acuidade da ciência: a economia agro‑pecuária, cujo nome nem sequer desmente a possibilidade da sua integração na cultura sociológica. Nesta ordem de

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ideias, e sem recusar o meu voto às diligências solicitadas pelo Conselho Municipal, permitome propor o seguinte aditamento: 1º - Que nas hipóteses de não desocupação do velho Colégio do Espírito Santo pelos serviços liceais ou de o Governo entender mais conveniente não o entregar à Igreja Eborense ou, finalmente, de esta resolver não restaurar em Évora a sua Universidade Católica, nem mesmo assim a Câmara Municipal de Évora deixe de pugnar pela instituição nesta cidade de estudos universitários; 2º - Que naquele ou noutro edifício, sob a égide da Igreja ou do Estado, o âmbito da Universidade de Évora compreenda concretamente a investigação e estudos especializados de sociologia e economia agro-pecuária, completamente livre das várias licenciaturas das restantes Universidades do País, inclusive da Universidade Católica”.

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Évora” fazendo referência à afirmação do poeta borbense numa recente entrevista à Flama na qual advogara a criação de “Faculdades Livres”, inclusive de iniciativa não estatal, vocacionadas para campos experimentais ou áreas a descoberto como o Cinema. Dando como exemplo o Brasil, o poeta da Orada pergunta‑se por que não criar instituições de ensino superior fora de Lisboa, Porto e Coimbra, também noutras cidades da metrópole ou dos territórios do Ultramar: “Porque não Escolas Superiores em Angola, Moçambique, em Goa, em Évora ou em Braga? Os nossos padres para se diplomarem com um curso superior têm de ir a Lovaina ou a Roma. Os nossos especialistas em cinema…”. A Defesa comenta simplesmente: “O problema da restauração de uma faculdade em Évora que tem vindo a ser agitado pelas entidades responsáveis de Évora conta com mais um defensor”.

Nem o Jornal de Évora nem A Defesa comentarão o alcance deste aditamento do Dr. Vieira da Silva à Proposta do Dr. Gonçalves Rapazote; nenhum órgão da imprensa eborense comentou a nova formulação das aspirações da cidade em matéria de ensino superior, mas é bem claro que estamos aqui perante uma forma de encarar o problema que o apoia em razões muito mais de ordem económica do que histórico-afectiva ou religiosa. Mais: temos aqui a defesa da criação de uma nova Universidade em Évora, “completamente livre”, que não seja extensão nem apêndice de nenhuma outra, pela simples razão de que o desenvolvimento da cidade e da região o exigem.

A Câmara Municipal, entretanto, continuava a preparação das comemorações do Centenário para o ano seguinte. Em 31 de Março de 1958 foi a vez de o Padre Bacelar e Oliveira, da Companhia de Jesus, dar o seu assentimento ao plano já gizado, mas sugerindo que se associasse à preparação das Comemorações a Sociedade Internacional Francisco Suárez, com sede na Universidade de Coimbra. O Vereador encarregue do processo fez esta proposta à Câmara e, tendo sido aprovada, realizou-se em 18 de Maio, na casa do Professor Miranda Barbosa, em Coimbra, uma reunião com os representantes da Câmara Municipal de Évora, da Faculdade Pontifícia de Filosofia, e da Sociedade Internacional Francisco Suárez, na qual foi deliberado que seriam as três entidades a promover conjuntamente o Congresso Comemorativo do IV Centenário da Universidade de Évora.

Pelo contrário, como se nada de novo nem de diverso tivesse sido adiantado pelo Presidente da Câmara Municipal, A Defesa prossegue no seu próprio registo na edição de 29 de Março de 1957 com um artigo intitulado “O poeta Azinhal Abelho concorda com um Instituto Superior em

Entretanto, na edição de 12 de Abril de 1958 de A Defesa, num artigo iniciado na primeira página, anuncia-se que foi dado mais um passo facilitador da restauração da Universidade de Évora: o Governo decidiu a construção de dezasseis novos liceus nos próximos 8 anos, com

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a particularidade de que “das 13 cidades indicadas para tão importantes melhoramentos, Évora, depois de Lisboa e do Porto, é a primeira cidade capital de distrito a ser beneficiada”. Outra boa notícia no mesmo sentido é dada pelas edições do Jornal de Évora do dia 13 e do dia 20 de Abril de 1958, e também na de 19 de Abril de A Defesa: numa das últimas sessões da Assembleia Nacional, o deputado pelo círculo de Évora, António Bartolomeu Gromicho defendeu, também ele, a restauração da Universidade de Évora. Transcrevendo o Diário das Sessões informa que o tema foi apresentado à Câmara dos Deputados como “de flagrante actualidade para a cidade de Évora”. Bartolomeu Gromicho lembrou aos parlamentares da Nação a recente aprovação por unanimidade de uma proposta nesse sentido por parte do Conselho Municipal, entretanto já enviada ao Ministro da Educação Nacional. Depois, o deputado eborense recorda que já na legislatura anterior um deputado, o Dr. Mendes Correia, defendera na Assembleia Nacional a reposição de estudos universitários em Évora, porventura sob a forma de uma extensão da Universidade de Lisboa nas áreas e especialidades que o Governo entendesse. A terminar, evoca as glórias científicas da Antiga Universidade em “tempos gloriosos que poderiam renascer, se à cidade fosse dada a justa satisfação de ver restabelecidos os seus estudos universitários dentro das suas fernandinas muralhas”. Note-se como nunca na exposição do deputado eborense se admite − e menos ainda se defende − que o local a ocupar pela “nova” Universidade seja o edifício da antiga Universidade Henriquina. A sua intervenção, pelo contrário, é absolutamente omissa nesse aspecto. Parece resumir-se ao cumprimento de um dever político de solidariedade com os órgãos municipais, como se depreende da forma como encerra a alocução parlamentar do deputado-reitor: “Ao Governo me permito de insistir pelo problema, com esperança de que do seu estudo e análise resulte a solução tão ambicionada pela cidade e proposta oficialmente pela sua Câmara Municipal”16.

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Se António Bartolomeu Gromicho não associara a restauração da Universidade à construção de um novo edifício para o Liceu, o certo é que também não a pusera em causa. Naturalmente que os eclesiásticos de A Defesa teriam apreciado mais que ele tivesse feito essa ligação. O que não podem aceitar é que ele venha insistir, decorridos poucos dias, em pôr em causa a necessidade de um novo edifício liceal, o que sucederá em entrevista concedida ao Diário Ilustrado e ali publicada em 10 de Maio de 1958. Na sua edição de 24 de Maio A Defesa transcreve essa entrevista juntamente com um vasto conjunto de “textos e documentos para o público e para a história”, de forma a ilustrar o que considera serem as contradições do Reitor do Liceu. Os textos são encimados por um longo título para um longo artigo assinado desta vez com o pseudónimo Os Mesmos: “Dando o dito por não dito o deputado por Évora, Sr. Dr. A. B. Gromicho, volta a opor-se à restauração da Universidade e à construção de um Liceu novo, em Évora!”. Ora, na referida entrevista o Reitor do Liceu não se opõe explicitamente à restauração da Universidade, limitando-se a afirmar que “junto das entidades superiores” o que “há de concreto” são “…dificuldades, duas principalmente, que julgo neste momento intransponíveis, embora não possamos deixar de reconhecer a boa vontade do Governo. A primeira diz respeito ao preenchimento do quadro de professores; a segunda é de ordem económica e do conhecimento que as Faculdades de Letras de Lisboa e Coimbra chegam para as exigências do País, pois qualquer delas comporta mil e tantos alunos.”

Parece, é certo, que António Bartolomeu Gromicho não se agasta muito com tais dificuldades, e que até de certo modo o tranquilizam porque a tornarem impossível a restauração da Universidade, elas aumentam a possibilidade de o Liceu se manter tranquilamente no edifício onde está. Perspectiva que, claramente, o entu-

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siasma e o entusiasmará sempre muito, mesmo quando em todo o processo nos parece que a defende sozinho contra tudo e contra todos. Na entrevista ao Diário Ilustrado faz questão de lembrar que há até vantagem para o Liceu em que a Universidade não seja possível: “(…) a não se fundar a Universidade, por dificuldades insuperáveis, há que manter o liceu no local onde se encontra porque ficará o maior, o mais belo e completo liceu do País. Todos os estrangeiros que o visitaram são unânimes nos elogios, caindo até no possível exagero dizendo que a consideram a melhor escola do Mundo.”

Explica depois que nem sempre o Liceu dispôs do espaço que ocupa agora, pois que quando foi nomeado Reitor eram apenas 12 as salas de aula. Mas o espaço foi‑se alargando com a saída do edifício dos serviços de Obras Públicas em 1929, da Secção de Finanças três anos depois, da Escola Industrial em 1951, e em 1957 com a saída da Casa Pia. Sente-se esgotado com a “luta travada ao longo de vinte e tantos anos, para emancipação do liceu”, mas sente também que “Enfim… a batalha está quase vencida e hoje o liceu, pelo menos a parte que já lhe está destinada, tem uma capacidade para 1.120 alunos. A população actual é de 980. Pode, no entanto, brevemente receber 1840 alunos em horário simples, podendo funcionar no edifício, ou em forma mista, ou em forma de secção feminina, como actualmente; ou ainda com dois liceus distintos (masculino e feminino) com duas entradas próprias, dado que se queira utilizar a totalidade do edifício”.

Como o entrevistador o interrogasse17 acerca das “instalações complementares”, António Bartolomeu Gromicho esclareceu:

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“- As instalações complementares do Liceu, tais como biblioteca, laboratório, refeitório e cantina do estabelecimento, são o melhor que se possa imaginar. O refeitório, por exemplo, tem uma capacidade para 400 pessoas. O campo de jogos dificilmente encontra paralelo em qualquer outro liceu do País; o ginásio é esplêndido; a própria horta do liceu podia fornecer os mais diversos produtos, etc..(…)”

Os Mesmos transcrevem a entrevista acompanhada dos textos que comprovam a tese de que Bartolomeu Gromicho “deu o dito por não dito”. Desconsiderou assim as páginas de A Defesa a quem prestou as declarações publicadas em 8 de Março último, mas também a carteira da Assembleia Nacional e as colunas do Diário das Sessões. Acusado de insinceridade nessas outras ocasiões terá sido, no entanto, nesta entrevista que ele foi sincero. Mas, se o foi, cometeu a insanidade de como deputado “minar a actividade citadina, camarária e estadual”. Tudo não passa, na perspectiva dos clérigos eborenses articulistas de A Defesa, de um ponto de vista “estreito” e “unilateral”, de um “pessoalismo” que consiste numa obstinada guerra contra “o Seminário que frequentou”. A sua luta insana leva-o até a pretender instalar um “impossível Liceu feminino” junto ao Seminário, o que a lei não admite (“ali mesmo nas suas abas e à sua sombra”), por ser o Seminário um internato masculino; a tentar “apresar essa horta só da Casa Pia” e que na entrevista classificou já como do Liceu e na qual já “fez trabalhar e lavrar sob as suas ordens e sob o seu olhar impassível, alguns pobres jornaleiros, ali, nas barbas dos seminaristas e do seminário, em pleno Domingo, o que é expressamente proibido (…)”; ou ainda ao criar apressadamente uma cantina escolar que “não se baseou em espontâneas preocupações de assistência”, mas unicamente teve como objectivo da parte do Reitor do Liceu o “alargar o seu espaço vital”. A mesma “ambição sem freio” o levou até a

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apoderar-se das chaves do ginásio da Casa Pia logo que esta saiu, “como se este fosse terra de ninguém!”, chaves que acabou por ser obrigado a entregar pela “autoridade”, “não sem que antes sua Ex.ª, num gesto “enragé” de quem perdeu literalmente a cabeça, tenha tentado danificar o palco da casa que via escapar-lhe, descendo a arrancar-lhe as inofensivas e irresponsáveis tábuas!...” Os eclesiásticos de A Defesa, já para isso chamámos a atenção anteriormente, é neste seu artigo de resposta à entrevista de António Bartolomeu Gromicho ao Diário Ilustrado que melhor denunciam a natureza das suas motivações fundamentais na defesa da restauração da Universidade de Évora e da construção de um novo Liceu em Évora. Mas também é aqui que, porventura, melhor se compreende que da parte do Reitor do Liceu há uma guerra (“um propósito iníquo que atraiçoa e confunde de caso pensado” – dizem aqueles) contra o Seminário à qual não seria alheia, talvez, a sua condição de ex‑aluno18. Se as motivações do deputado-reitor poderão ser as de um ex-seminarista anticlerical, as motivações d’Os Mesmos essas por seu lado também são igualmente matizadas pelo ressabiamento próprio de clérigos de uma Igreja espoliada: “(…) O problema que consta da proposta unanimemente aprovada pela Câmara Municipal19, na sua sessão plenária de 27 de Fevereiro do corrente ano, visa a entrega do edifício à autoridade eclesiástica, que saberá, nesse momento, sem pedir o parecer de sua Ex.ª, o que há-de fazer. É bastante velha a Igreja, e já ensinou a ler a Europa; será agora capaz de reinstalar no velho edifício da Universidade, que foi seu, estudos que A honrem e A dignifiquem, tanto mais que não há dificuldades legais, porquanto a própria Concordata prevê e autoriza a sua instalação.20 Condição indispensável, porém, é que o Liceu novo se faça, e que o velho edifício fique devoluto. A ideia da restauração

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está ligada e encontra a sua justificação nas paredes que mandou erguer o Arcebispo de Évora D. Henrique, com o seu dinheiro e com o dinheiro do Cabido eborense. Tudo o mais é palinódia e poeira atirada aos olhos.”

De alguma forma, de facto, parece que nada justifica a persistência de António Bartolomeu Gromicho em lutar pela manutenção do Liceu naquele edifício, a não ser algo que, porventura, só os eclesiásticos entendem, como dizem mesmo entender: “Se, por boa e inteligente política do Governo, o caso do Liceu novo está resolvido, porque anda sua Ex.ª a disparar pólvora seca, tentando soluções que contrariam os mais legítimos interesses da cidade de Évora, e até as intenções do Governo?! Não entendemos… ou melhor: entendemos muito bem! Não há problemas de professores nem há problemas de dinheiro que se ponham a quem pensa e pode reintegrar Évora no seu antigo prestígio de cidade universitária. E se os houver, não será sua Ex.ª, o Sr. Dr. A. B. Gromicho quem terá de os resolver…”

Finalmente, para evitar voltar a ter aborrecimentos21, e atendendo ao facto de o momento político se poder “prestar a confusões” na altura em que é grande a agitação política por se prepararem as eleições presidenciais, Os Mesmos têm, por isso, o cuidado de “limpar a testada”, “garantindo que, se alguém entrou com o pé em falso, foi suas Ex.ª o Sr. Dr. A. B. Gromicho, que, tendo responsabilidades políticas, não mediu o mau passo que dava, provocando a sua cidade adoptiva com as afirmações que aí ficam, e que são de pasmar! Fique, porém, bem assente que o nosso propósito é de esclarecer e não de confundir. E podemos deixar aqui bem garantido e afiançado

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que, por formação de inteligência e inteireza de carácter, não cederemos os nossos votos de cidadãos eleitores aos candidatos da chamada oposição, não vá algum “conselheiral” nacionalista de circunstância pensar que fomos mais uma vez… inoportunos!”22

comemorando a bula do Papa Paulo IV Cum a Nobis que autorizou a criação da Universidade, o debate sobre a necessidade e a oportunidade de restauração do ensino universitário em Évora prosseguirá na imprensa eborense. E continuaria não só até ao Congresso de Outubro de 1959, mas por muitos mais anos ainda…

Não teve sequência imediata a discussão. Nenhuma reacção da parte de António Bartolomeu Gromicho, e nenhum comentário da restante imprensa às considerações feitas por Os Mesmos em A Defesa, como se tudo não passasse de briga privativa de clérigos. Nova tempestade rebentará apenas por causa da intervenção do deputado‑Reitor feita em 24 de Outubro seguinte na Assembleia Nacional, intervenção na qual classificará de “esbanjamento” a construção de um novo Liceu em Évora. Nessa altura a polémica será fortíssima e envolverá não apenas A Defesa e o Jornal de Évora, mas obrigará as próprias Comissões Distrital e Concelhia de Évora da União Nacional a intervir. De certa forma, compreende-se perfeitamente o escândalo da intervenção do deputado na Assembleia Nacional, atendendo a que após a última acesa discussão tida em Maio, todas as notícias que chegaram a Évora no Verão de 1958 vinham confirmando que era já um dado adquirido a construção de um novo Liceu. Até ao início das Comemorações do IV Centenário, abertas em 15 de Abril de 1959 com uma conferência do Padre Paulo Durão, Professor da Faculdade Pontifícia de Filosofia de Braga,

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1 Em Março de 1958, na Página dos Novos, Agostinho Maldonado, aluno do 7º ano do Liceu, dá como resposta à pergunta “No que pensa a gente moça de Portugal?”: “Cinema, televisão, futebol, desportos em geral, foguetões, satélites, velocidades vertiginosas, facilidades, vida regalada, comer bem, divertir-se muito e trabalhar muito menos”. A Defesa, 8/371958. 2 Que entretanto seriam compilados numa brochura. 3 A determinação da autoria exacta de cada um destes textos não sei se é possível. Parece que se trata de uma tríade eventualmente composta pelos padres Sebastião Martins dos Reis e José Augusto Alegria, além d’O Terceiro Homem que seria o Padre José Filipe Mendeiros (o primeiro dos textos surge encimado com o título da série que ele vinha publicando “Problemas eborenses”). É claro que se trata de uma tomada de posição concertada de membros do clero eborense em defesa dos interesses institucionais da Igreja, designadamente no campo patrimonial. Com uma violência que decorre também do facto de o Dr. António Bartolomeu Gromicho ser ex-seminarista do Seminário de Évora. 4 A Defesa, 15 de Junho de 1957.

10 Em algum momento que não conseguimos precisar fora já assente que a “Igreja da Casa Pia”, como era conhecida a Igreja do Espírito Santo, passava para a jurisdição do Seminário. 11 Mais tarde o Presidente da Câmara dirá que o seu nome foi indicado pelo Dr. Francisco José da Gama Caeiro. (Cfr. A Defesa, 31/10/64) 12 O próprio dirá mais tarde que logo em Junho começou o seu trabalho, e que em Roma se demoraria dois meses, principalmente no Archivum Romanum Societatis Jesu. (Cfr. A Defesa, 27/6/59) 13 O Presidente da Câmara Municipal fará o historial do processo numa “reunião de imprensa” realizada em Junho de 1959 para dar conhecimento do Programa definitivo das Comemorações do IV Centenário, que nessa altura já se aproximavam. É com base na síntese dos elementos colhidos e publicados por A Defesa (na edição de 20/6/59) e pelo Jornal de Évora (na de 21/6/59) que traçamos este quadro do desenrolar dos trabalhos preparatórios conducentes à realização do Congresso de 1959. 14 A Defesa, compreensivelmente, reforça com um sublinhado, a parte “e Universidade, para o fim de nelas ser restaurado o ensino universitário”. O mesmo não aparece no Jornal de Évora que dá a notícia pela mão do repórter Valentim Alferes na sua edição de 2 de Março de 1958.

5 A Defesa, 6 de Julho de 1957 15 Cfr. Jornal de Évora, 9/3/58. 6 Por gralha tipográfica, o artigo aparece assinado por A. Marção em lugar de A. Garção. 7 O TERCEIRO HOMEM, “O destino do Liceu de Évora. A restauração da Universidade de Évora em Évora. Pela valorização cultural do Alentejo”, A Defesa, 1 de Junho de 1957, p. 2 8 OS MESMOS, “Resumindo e concluindo”, A Defesa, 24 de Maio de 1958, p. 8 9 UM DOS TRÊS, “Évora quer um Liceu Novo – Nota da Redacção”, A Defesa, 1 de Junho de 1957, pp. 1 e 2.

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16 A Defesa, 19/4/58, e Jornal de Évora, 20/4/58 17 Os Mesmos de A Defesa levantam a suspeição sobre o carácter artificial da entrevista que “deu ou provocou”: “Esta entrevista ao «Diário Ilustrado» é um modelo de subterfúgios e de equilibrismos calculados. Com muita dificuldade a gente se furta à impressão de que o entrevistado e o entrevistador… são uma e a mesma pessoa, de tal modo é artificiosa e intencionalmente “ad hoc” a articulação das suas perguntas e respostas: Tudo está disposto como panaceia para beócios, e como justificação da actuação do entrevistado no caso do

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Liceu de Évora… Dá-se porém, a circunstância de nós e o público não sermos beócios”. A Defesa, 24/5/58. 18 Obviamente que será necessário aprofundar e investigar mais esta hipótese, designadamente procurando conhecer a trajectória religiosa de António Bartolomeu Gromicho. 19 É uma imprecisão. Foi uma sessão do Conselho Municipal. 20 Jogam com o equívoco, pois a Concordata previa e autorizava a criação de uma Universidade Católica e não exactamente a sua (re) instalação no velho edifício de Évora… 21 Há aqui uma referência ao facto de este assunto já anteriormente ter custado “alguns aborrecimentos”. De facto, tinha sido apreendido nas livrarias pelas autoridades o opúsculo que reunia os textos publicados em A Defesa no ano anterior pel’O Terceiro Homem / Padre Dr. José Filipe Mendeiros / Reitor do Seminário. 22 Note-se que este artigo, publicado em 24 de Maio, vem assinado com a data de 12 de Maio, ou seja, dois dias apenas após a publicação da entrevista de A. B. Gromicho ao Diário Ilustrado que lhe dá origem. A razão por que decorreu tanto tempo até à sua publicação em A Defesa e a mesma não foi feita mais cedo, não a sabemos ao certo. Tudo indica, no entanto, que o atraso se deveu a dificuldades com a censura. Lembremo-nos sempre que todos os textos tinham de ser visados pela Comissão de Censura previamente à sua publicação, e que já tinha havido problemas com a publicação dos artigos de Maio e Junho de 1957 d’Os Mesmos sobre esta matéria. Além disso, vivia-se um momento de grande agitação política no país (estava-se em plena campanha eleitoral, a menos de um mês das eleições presidenciais a que se apresentou Humberto Delgado). Nem isso evita a acutilância final na menção que é feita a algum “«conselheiral» nacionalista de circunstância”.

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‘Levantada do Chão’ A Refundação da Universidade de Évora (1973-1979)

Em 1973, duzentos e catorze anos depois do seu violento encerramento (1759), a Universidade de Évora voltaria a nascer, e a justificação do seu encerramento seria a mesma da sua reabertura. Ironicamente, emergia como sucumbira: fruto de uma reforma político-educativa cuja finalidade era, então como agora, aproximar Portugal da Europa dita culta e desenvolvida - a denominada Reforma Veiga Simão

Grandes esperanças Texto: Sara Marques Pereira Universidade de Évora

Se a nostalgia do retorno dos estudos superiores a Évora promovera o Congresso do IV Centenário (1959), a vontade de um grupo de personalidades eborenses haveria de levar à criação do Instituto Superior Económico e Social (ISESE1) em 1967. O Instituto foi patrocinado por Vasco Maria Eugénio de Almeida (1913-1975), Conde de Vil’Alva, que apoiou a iniciativa e lhe cederia o espaço - o antigo Palácio da Inquisição - edifício especialmente recuperado para o efeito. Foi concedido à Companhia de Jesus o alvará deste estabelecimento de ensino superior particular que, em regime de coeducção, estava preparado para receber quase quatro centenas de alunos a frequentar cursos de administração e gestão de empresas2. As expectativas da população eborense confirmavam-se, pois os estudos superiores voltavam finalmente à sua cidade. E voltavam, algo ironicamente pensariam alguns, pela mão dos Jesuítas.

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O Instituto Superior Económico e Social de Évora ISESE (1964-1974) Em 1962, Vasco Maria Eugénio de Almeida contactou em Lisboa o Provincial da Companhia de Jesus, Padre Doutor Lúcio Craveiro da Silva - antigo Reitor da Faculdade Pontifícia de Filosofia de Braga - para propor a abertura de uma instituição de ensino superior em Évora, que seria patrocinada pela recém formada Fundação Eugénio de Almeida (1963). Em consonância com este compromisso, Vasco Maria Eugénio de Almeida deu inicio às obras de adaptação do Palácio da Inquisição que comprara havia pouco tempo, preparandoo para receber o Instituto de Estudos Superiores, pouco depois denominado ISESE - Instituto Superior Económico e Social de Évora. No dia 13 de Abril de 1964, a Junta Nacional de Educação deu o tão almejado parecer favorável, posteriormente homologado pelo Ministério da Educação, em Despacho com data de 27

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de Abril do mesmo ano. Decorridos três anos de funcionamento provisório foi concedido o alvará de funcionamento a 18 de Maio de 1967 pelo Ministério da Educação Nacional, através da Inspecção do Ensino Particular. O Instituto iniciou-se com duas licenciaturas: Economia e Sociologia - cursos inovadores, em particular a Sociologia, até aí inexistente em Portugal. Dez anos volvidos, o Instituto contava com 191 alunos nos cinco anos de Economia e 139 nos mesmos anos de Sociologia, consequência do seu prestígio como estabelecimento de ensino superior privado de referência na formação integral e qualificação de quadros. (Texto baseado em PEREIRA, Sara Marques (2003), Deus, Labor et Constantia, Fundação Eugénio de Almeida, Évora, 2003, pp. 63 a 71) Não só para Évora, mas para Portugal também se aproximavam tempos de grandes mudanças. No início da década de setenta, com a chamada “Primavera Marcelista”, o regime dava sinais de abertura e, justamente, uma das marcas de renovação seria um vasto programa de reforma educativa que começou a ser pensado e delineado no início dos anos setenta. A famosa Reforma de Veiga Simão (1973) - nome do Ministro que a História acabou fixando ao de todo o movimento - buscou de facto uma maior democratização educativa, envolvendo todos os níveis de ensino. Esta representou, nas palavras de Rui Grácio, um amplo projecto de renovação educativa, fruto de anos de reflexão e trabalho de uma “trama complexíssima de iniciativas, estudos, acções e vicissitudes de um processo que mobilizou tantas e diversificadas pessoas e instituições”3. José da Veiga Simão4, Professor Catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra, assumiu a Pasta da Educação a 15 de Janeiro de 1970 exercendo-a até à Revolução de 25 de Abril de 1974 e, de entre as medidas

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legislativas mais relevantes que produziu enquanto Ministro, salientou-se a famosa Lei nº 5/73 que aprovou as bases a que devia obedecer a reforma do sistema educativo. Nos Princípios Fundamentais, Base II, da Lei nº 5/73 de 25 de Julho destacavam-se exactamente esses princípios democráticos: a) Assegurar a todos os Portugueses o direito à educação, mediante o acesso aos vários graus de ensino e aos bens da cultura, sem outra distinção que não seja a resultante da capacidade e dos méritos de cada um, para o que deverá organizar e manter os necessários estabelecimentos de ensino, investigação e cultura e estimular a criação e o desenvolvimento de instituições particulares que prossigam os mesmos fins; b) Tornar efectiva a obrigatoriedade de uma educação básica generalizada como pressuposto indispensável da observância do princípio fundamental da igualdade de oportunidade para todos; c) Facilitar às famílias, mediante adequadas formas de cooperação, o cumprimento do dever de instruir e educar os filhos; d) Garantir a liberdade de ensino em todas as suas modalidades; e) Fomentar e coordenar as actividades respeitantes à educação nacional.5 Na realidade, todo este movimento representava muito mais do que um projecto de renovação educativa, as consequências iriam ultrapassar, em muito, as fronteiras do sistema de ensino, e para muitos quadrantes da sociedade portuguesa as discussões em torno destas propostas representavam uma real abertura democrática do regime, tal como refere Stephen Stoer: “A excepcional importância desta reforma tornou-se ainda mais clara quando da comunicação ao País, a 6 de Janeiro de 1971, pelo Ministro da Educação do Governo de Caetano, Prof. Veiga Simão. No decurso da sua alocução, Veiga Simão apresentou as linhas gerais

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Docentes e alunos do ISESE

da sua reforma de ensino para Portugal, na forma de dois textos destinados a serem publicados, de molde a proporcionar uma ampla e aberta discussão: o Projecto do Sistema Escolar e as Linhas Gerais da Reforma do Ensino Superior […] estes dois documentos atraíram a atenção de todos os portugueses ‘tornando-se, sob alguns aspectos, o ponto crucial da vida sociopolítica’, o que não era de estranhar, dado que vinham ‘corporizar um conjunto de aspirações, necessidades há longo tempo sentidas pelo povo português e pelas suas instituições de ensino.”6 De maneira a permitir o completo conhecimento e a ampla discussão do Projecto do Sistema Escolar e das Linhas Gerais de Reforma do Ensino Superior haveriam de se distribuir mais de cinquenta mil cópias a todas as escolas e graus de ensino. Pedagogos, professores, alunos, pais e associações de estudantes a elas tiveram acesso. Assim, além da difusão efectuada pelos meios de comunicação social, poder-se-ia dizer que estas propostas foram do conhecimento do “Pais inteiro”, como salientaria Rita Pinto Leite7 Na Lei nº 5/73 perseguiam-se dois objectivos muito claros: por uma lado a democratização/ generalização do ensino; por outro a modernização da própria estrutura económico-social, de modo a tornar o país competitivo frente aos parceiros europeus e mundiais. Necessariamente este último objectivo teria de incidir, particularmente, no ensino superior, na medida que se tratava de formar as novas elites capazes de cumprir o desiderato desenvolvimentista do regime. Até porque, a falta de potencial científico-tecnológico era já vista na altura como uma séria ameaça à independência cultural, económica e até política8. Por todas estas razões a Universidade, que naturalmente representava o “topo da pirâmide” do ensino, teria de se modernizar de molde a funcionar como o verdadeiro motor do desenvolvimento nacional, papel que lhe estava destinado no espírito e forma da legislação reformista.

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Tema tão antigo quão caro à tradição políticoeducativa portuguesa - desde os projectos ilustrados do séc. XVIII aos ideários liberais e republicanos dos séculos seguintes - a educação era de novo considerada veículo fundamental do modelo de desenvolvimento. Mas, se para estes a escolarização, a obrigatoriedade e gratuitidade do ensino foram a base das propostas, na reforma Veiga Simão, a democraticidade de acesso assumia correlata importância com o desenvolvimento do ensino superior. Primeiro, porque a democraticidade levaria, previsivelmente, ao aumento da escolarização e, consequentemente, a uma maior procura do ensino superior. Segundo, porque o papel das instituições de ensino superior deveria ser alterado de acordo com as expectativas de desenvolvimento criadas. A Universidade constituiria, assim, a peça chave - o motor deste veículo. Por esta razão, poucos dias depois da publicação da Lei 5/73, seria promulgada e publicada a Reforma do Ensino Superior (Decreto-Lei nº 402/73), que renovava, expandia e diversificava as instituições nacionais de ensino superior. Mas o projecto, verdadeiro ponto axial da reforma Veiga Simão, acabaria também levantando algumas resistências, desde logo no Conselho de Ministros. Quando aí apresentado, foi rejeitado pela maioria, valendo então a persistência do Presidente do Conselho, Marcelo Caetano: “Não deixa de ser curioso que o Decreto-Lei, criador de novas Universidades e Institutos Politécnicos, de entre 15 Ministros, só dois lhe concederam o apoio total, três, um apoio com emendas que o desfiguravam e dez pronunciaram-se contra… Uma conversa, no dia seguinte ao Conselho de Ministros, entre o Ministro da Educação e o Presidente do Conselho, reverteu a situação, não se concretizando a demissão solicitada pelo primeiro. Vale a pena referir este facto como justa homenagem a Marcelo Caetano.”9 No debate realizado na Assembleia da República, também se levantariam vozes críticas: entre aqueles que receavam a “banalização”

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e “empobrecimento” do ensino superior consequente à democratização; aqueloutros que a apelidavam de “vaga” e “abstracta”; e ainda os que a consideravam “antidemocrática”, por nada falar da despolitização do ensino ou da participação dos estudantes na gestão das escolas e universidades. Ainda assim, apesar das críticas e desconfianças levantadas por alguns deputados, as intervenções na Assembleia foram maioritariamente favoráveis, e a Proposta de Decreto-Lei foi aprovada.10 O Decreto-Lei nº 402/73, trazia, como principais consequências: a abertura de novas Universidades, Institutos Universitários, Institutos Politécnicos e Escolas Normais Superiores, bem como uma nova reorganização das instituições existentes, prevendo-se ainda uma maior especialização, ligando o ensino e a investigação aí praticados, com os problemas nacionais e regionais; buscando uma interligação das instituições, nomeadamente entre Universidades e Institutos Politécnicos, fomentando-se a continuidade dos estudos dos alunos dos Institutos Politécnicos nas Universidades; a revisão do estatuto da carreira docente, a atribuição dos graus, e uma maior e melhor interligação entre a docência e a investigação: “O Plano de expansão e diversificação do ensino superior foi definido pelo Governo para corresponder à necessidade de assegurar o desenvolvimento social e económico do País, que exige um número cada vez mais elevado de cientistas, técnicos e administradores de formação superior, dotados de capacidade crítica e inovadora. A criação de novas Universidades, Institutos Politécnicos e Escolas Normais Superiores insere-se, desta forma, no contexto natural da expansão do ensino e do desenvolvimento da sociedade portuguesa.”11 Mas se para o País o Plano de Reforma do Ensino Superior era fundamental, para Évora, o Capítulo II, Artº 8, do Decreto-Lei seria determinante, pois ali se estabelecia a criação de um novo estabelecimento de ensino superior a

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instalar na cidade, bem como a sua integração no tecido educativo local: “Art.º 8 São criadas as Universidades Nova de Lisboa, de Aveiro e do Minho e o Instituto Universitário de Évora. […] 3. Os actuais estabelecimentos de ensino médio especial de Aveiro e Évora serão transformados e integrados nos estabelecimentos universitários destas cidades. 4. O Instituto Económico e Social de Évora será associado ao respectivo Instituto Universitário.” Estava assim criado o Instituto Universitário de Évora. Mais, previa-se a integração neste, dos chamados estabelecimentos de ensino médio, caso da Escola de Regentes Agrícolas de Évora (Herdade da Mitra), e do já referido ISESE12. Seria necessário, entre outras coisas, criar regimes de transição para os alunos destas escolas, permitindo a conclusão dos cursos e/ ou sua integração nas novas ofertas formativas do Instituto Universitário de Évora. O mesmo se passaria com docentes e funcionários, dos seus quadros de pessoal que transitariam para a nova instituição.

A Escola de Regentes Agrícolas de Évora (1860) A história da Escola de Regentes Agrícola de Évora (ERAE) inicia-se em meados do século XIX, quando foi criada em 1860 a Quinta Regional de Agricultura na Quinta do Convento da Cartuxa, situado a um quilómetro à saída de Évora. Tal como a muitos dos bens das extintas ordens religiosas (1834), também à quinta do antigo mosteiro se pensou dar utilidade. Estando então em voga os cursos práticos de agricultura, que a nova filosofia do ensino politécnico

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e agrarista vinha trazer, se argumentou que nesta localização beneficiariam ainda os alunos da Casa Pia, para quem a escola estaria particularmente vocacionada. Contudo, não ganhou corpo a ideia, e só passados quase setenta anos, em Abril de 1918, com o decreto do recémcriado Ministério da Agricultura se estabelecia que: “…o número e sede das escolas secundárias de agricultura será fixado posteriormente, porém, desde que uma delas fosse instalada em Évora”. No seguimento da medida a tutela atribuía no orçamento do biénio (1918-1919) a verba de dez contos de reis para a realização das obras necessárias à adaptação do Convento de São Bento de Cástris, futura localização da escola secundária de agricultura. Porém, tendo o engenheiro nomeado para o efeito considerado a verba insuficiente para a obra, não chegaram estas a ser realizadas. Apesar de nesse mesmo ano de 1919 aparecer nomeada em decreto a Escola Nacional de Agricultura de Évora, só em 1920, já como Escola Elementar de Agricultura, é finalmente fixado o lugar do seu funcionamento - A Herdade da Mitra a 12 quilómetros de Évora - extinguindo-se o Posto Agrário ali existente. (In PEREIRA, Sara Marques (2006), “ERA uma vez na Mitra…”, REVUE – Revista da Universidade de Évora, nº 5, Junho de 2006, pp. 151 a 152.)

Évora em festa. A tomada de posse da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora A 4 de Janeiro de 1974, quatro meses depois da publicação do Decreto-Lei que criara o Instituto Universitário de Évora, tomava posse a Comissão Instaladora13 pela própria mão do Ministro da Educação. Foi num ambiente de compreensível euforia e festividade que Veiga Simão foi acolhido em Évora. À sessão de boasvindas nos Paços do Concelho, onde lhe foi atribuída a Medalha de Ouro da cidade, numa

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cerimónia a que assistiram ‘muitas individualidades’ e alguns ‘milhares de pessoas’, conforme descrevia o Notícias de Évora14, se seguiu a ida da comitiva para a Sala dos Actos do Colégio do Espírito Santo, onde seria dada posse ao Reitor e aos membros da Comissão Instaladora. O jornal O Século descrevia assim o acontecimento em grande manchete: “Évora: A Universidade dois Séculos Depois Construir uma instituição renovada. A nova Universidade de Évora deve ser casulo de obreiros do futuro. Évora – Volvidos mais de dois séculos, a cidade voltou a viver horas gloriosas. Reacendeu-se o facho que durante séculos a iluminou e projectou. E o povo não ficou indiferente: embora sem folguedos e descantes, sem danças acompanhadas a trombetas, charamelas e doçaínhas, como em 1559, os eborenses, e com eles todos os alentejanos, sentiram e manifestaram a sua satisfação e o seu júbilo, e orgulho, por a cidade voltar a enriquecer-se com os estudos universitários.15” O Diário de Notícias colocava a fotografia do Ministro Veiga Simão a descer as escadarias fronteiras à Sala dos Actos, depois da cerimónia de posse, e em parangonas escrevia: “Mais de dois séculos depois a Universidade de Évora Recomeça”. Para passar a transcrever em caixa palavras de Veiga Simão: “Temos uma meta instante no caminho dum progresso libertador que é preciso alcançar sem desvios nem recuos”16. Ao longo do seu discurso salientaria as razões históricas, presentes e futuras da razão da instalação universitária na cidade de Évora: “ […] Évora foi agora escolhida para sede de estudos universitá­rios. E porquê? No conjunto dos centros urbanos de razoável dimensão exis­tentes no território metropolitano, esta cidade apresenta-se como importante pólo de apoio do desenvolvimento da região sul.

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4 de Janeiro de 1974, Tomada de posse da Comissão instaladora do Instituto Universitário de Évora

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Esta circunstância oferece no conjunto da expansão univer­s itária uma relevância que importa sublinhar. Na verdade, os outros três novos centros universitários - Minho, Aveiro e Lisboa - que, segundo criteriosa escala de prioridades, se apresentam como de irrecusável premência, situam-se a Norte da península de Setúbal e em regiões de grande densidade humana e industrial. O complexo industrial de Sines, cujo impacto na estrutura urbana e no ordenamento agrário e industrial de todo o Alentejo se considera determinante e o aproveitamento do Plano de Rega do Alentejo, penhor de uma recriação de paisagem humana e económica das terras a irrigar e das suas zonas de influência, são empreendimentos fundamentais para o desenvolvimento har­mónico do País. A cidade de Évora é a que se oferece como capaz de tirar mais rápido e intenso partido desses projectos os quais serão, sem dúvida, alavancas poderosas para a vida de uma cidade universitária moderna. Os estudos efectuados apontam Évora como um ponto de confluência na rede de acessos e um dos centros de maior potencial de população da região sul, decorrente da sua posição geo­g ráfica; como detentora de um nível de equipamentos e activi­dades urbanas que garante um razoável esteio à instituição uni­versitária; e, finalmente, o que não é menos importante, a Cidade Museu respira um valioso património cultural, suporte inestimável para um estabelecimento de ensino superior. […] E cabe ainda a esta instituição conciliar os imperativos da sua dimensão nacional com as exigências con­cretas de uma região e das suas gentes que naturalmente dela esperam contributos irrecusáveis.”17 A nova missão da Academia seria fomentar a investigação e o ensino, procurando sempre uma

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“convergência com os objectivos nacionais”, nos quadros de “uma missão de serviço à comunidade”, eliminando-se a tentação, e a tradição, do refúgio universitário em “torres de marfim”. Da Comissão Instaladora faziam parte, além do Reitor, o Professor Engenheiro Ário Lobo de Azevedo18, nomeado a 19 de Setembro de 1973, os seguintes nomes: Professor Engenheiro Manuel Gomes Guerreiro - Professor Catedrático; Professor Doutor Raul Miguel Rosado Fernandes - Prof. Extraordinário; Professor Doutor Carlos Alberto Martins Portas - Prof. Extraordinário; Professor Padre António Silva - Director do ISESE; o Dr. Armando Perdigão - Presidente da Comissão de Planeamento da Região Sul e ainda o Engenheiro Celestino David - Delegado do Ministério do Equipamento Social e Ambiente. Logo na tomada de posse o Reitor definiria os rumos que pretendia dar à nova instituição, uma Universidade antiga por tradição, mas adaptada aos tempos modernos, aos novos métodos e novas disciplinas, com autonomia científica e financeira, capaz de dar respostas aos desafios respeitantes ao ambiente e recursos naturais: “Então não foi um aluno da Universidade de Évora que escreveu o “Verdadeiro Método de Estudar para ser útil à República”? Mal ficaria à nova instituição universitária não retomar tal caminho, o do verdadeiro método de estudar, actividade que aglutinará todos os seus componentes e será partilhada em toda a população, tendo sempre em mente ser útil ao País. Procuraremos reunir em Évora o conhecimento, as vontades e as aptidões capazes de erigirem uma instituição simultaneamente universalista pela metodologia, estrutura e saber, e regional pelas prioridades que farão parte dos seus objectivos e preocupações. Propomo-nos em primeiro lugar organizar estudos que conduzam a formações que permitam explorar racionalmente, e não espoliar, os recursos naturais, re-

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nováveis ou não […] vamos explorar principalmente os caminhos que os outros ainda não exploram. Estudar o aproveitamento dos recursos naturais: a rocha, a água, o ar, o solo, as plantas e os animais. Buscar novas formas de combinação dos conhecimentos que permitam tirar partido dos planos de clivagem que o sistema educativo e o sistema profissional vigentes apresentam.

instalações provisórias, atendendo à urgência do início das actividades do ensino, sem prejuízo da melhor utilização das áreas pedagógicas, de investigação, sociais e circum-escolares;

[…]

f) Proceder à aquisição de equipamento e mobiliário;

Mas o nosso objectivo primordial é o “homem”. Isto é, todos aqueles estudos só têm razão de ser em função do homem. Para já, a história, a geografia, a ecologia humana e a antropologia social para situarmos o homem no tempo e no espaço. Todos os estudos visam o desenvolvimento, conceito que implica também mudanças sociais que destruam a distorção das estruturas, mudanças sociais essas sucessivas e constantes de forma que o homem possa aproveitar as consequências das transforma­ções do meio que as tecnologias vão proporcionando. Procuraremos ser aquela Universidade do Desenvolvimento que foi pedida para o Sul de Portugal.”19

Instalações, estrutura e ensinos De acordo com o previsto no Art.º 16 do Decreto-Lei n.º 402/73, competiam às Comissões Instaladoras as seguintes atribuições: a) Elaborar e propor os programas globais, o plano geral e os correspondentes planos parciais relativos ao desenvolvimento da instituição; b) Promover a aquisição de terrenos e outros imóveis necessários à instalação e funcionamento dos serviços, propondo a respectiva expropriação, quando necessária; c)Arrendar os edifícios indispensáveis; d)Estabelecer os planos das instalações definitivas, bem como da sua articulação com as

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e) Promover a elaboração dos projectos e a construção das instalações;

g) Propor planos para a formação de pessoal técnico e administrativo; h) Realizar os estudos e tomar as medidas necessárias para a adopção de sistemas racionais de gestão. De facto, nos meses que se seguiram, as principais preocupações da Comissão Instaladora incidiram sobre a procura de instalações adequadas, visto que, mesmo o antigo Colégio do Espírito Santo se encontrava ainda ocupado pelo Liceu e por outras instituições estranhas à sua primitiva função. No Relatório respeitante às actividades do primeiro semestre da Comissão Instaladora, documento aliás interessantíssimo, pudemos ver a par e passo as démarches desenvolvidas pela Comissão para resolver as diversas questões colocadas à reabertura do Instituto: os planos de estudos, docentes, integração do ISESE, receitas e verbas de funcionamento, projecto para ocupação dos espaços, etc., etc. Em relação a este último, várias alternativas foram estudadas, e a proposta que é enviada ao Ministro, com o nome de ‘Plano de Instalações’, prevê um conjunto de espaços a serem atribuídos e/ou comprados para o funcionamento do Instituto: a) O Colégio do Espírito Santo, sede da antiga Universidade de Évora e onde se encontravam instalados o Liceu Nacional, o Arquivo Distrital, a Direcção dos Edifícios do Sul, a Direcção das Construções Escolares do Sul e a Circunscrição

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de Urbanização do Sul do Ministério das Obras Públicas; b) O Seminário de Évora, incluindo o Conventinho; c) O Convento de Santa Clara, onde se encontrava instalada uma Escola do Ciclo Preparatório; d) O Convento de S. Bento de Cástris (e o prédio rústico que lhe está anexo) à época ocupado por uma Secção da Casa Pia de Évora; e) O conjunto constituído pelos prédios pertencentes a Herdeiros de Archimínio Caeiro e Archimínio Caeiro, Lda. f) O conjunto constituído pelos prédios de Artur da Silva Barreiros e de Francisco Monginho, junto das muralhas da cidade entre a Rua do Raimundo e o Tribunal da Relação, com uma área de cerca de 25 000 m² (actual espaço do Hotel da Cartuxa?) g) O prédio rústico com a área de cerca de 70 000 m², pertencente a João Carlos Gouveia de Carvalho. Para além destas propostas, a Comissão alertava o Ministério que havia ainda de contar com a antiga Herdade da Mitra: “há ainda a considerar o prédio rústico e as construções da Escola de Regentes Agrícolas que nele foi integrado”20. Sabemos hoje que de todas estas propostas apenas algumas ganharam efectividade: o Colégio do Espírito Santo e o Conventinho, os mais representativos. A questão referente aos edifícios ainda demoraria o seu tempo a encontrar uma solução cabal. Mas, fosse como fosse, a política do primeiro Reitor da Universidade era explícita: a Universidade “dever-se-ia inserir na urbe”. Para este desiderato, além da recuperação daquele que representava o ex-libris da antiga Universidade - o Colégio do Espírito Santo procuravam-se edifícios e espaços dentro da

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cidade que pudessem albergar os estudos universitários, “menos dependentes de obsolescência arquitectónica”, bem como de terrenos, de preferência intramuros, onde se pudessem construir as instalações relacionadas com as tecnologias21. Mas a tarefa mostrava-se difícil: “São raras as construções que em Évora oferecem condições que permitam o funcionamento satisfatório de serviços como aqueles que se torna urgente instalar. Depois de uma busca que se prolongou por cerca de dois meses, verificou-se não haver de momento qualquer prédio que satisfaça os requisitos necessários, a não ser um e através de venda […].”22 Apesar da preocupação ingente com o Plano de Instalações - a ponto de a própria Comissão Instaladora ter dificuldade em arranjar um espaço para se instalar, tendo sido vários os espaços que sucessivamente ocupou23 - esta deveria, a curto prazo, estabelecer a estrutura escolar e o plano de estudos da novel instituição. Pois, em ofício para o Ministro, o Reitor estimava que as aulas se iniciassem ainda nesse ano (Outubro de 1974 24), desiderato que, infelizmente, se viu obrigado a desistir, como reconhece na Introdução do Relatório que envia ao Ministério25, em Julho desse ano. Seja como for, ao longo desses seis meses de labor, a Comissão tinha desenhado a estrutura e o perfil dos ensinos a serem ministrados na instituição: “O Instituto Universitário de Évora organizar-se-á logo de início em unidades departamentais e em serviços de gestão administrativa e outros de apoio às suas actividades nomeadamente de ensino/investigação. Os Departamentos constituirão, nesta estrutura, unidades modulares funcionais simultaneamente dedicados ao ensino e à investigação, agrupando disciplinas afins mais ou menos diversificadas de um mesmo domínio de conhecimento […]”26 Os domínios e sub-domínios de saber, e respectivas Licenciaturas e Bacharelatos deveriam ser organizados da seguinte forma:

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ENSINOS PREVISTOS Domínios do saber

CIÊNCIA DOS RECURSOS RENOVÁVEIS

Sub-domínios

Coberto vegetal e animal terrestre

Agropecuária

Vida aquática

Hidrobionomia e Pesca

Produtos florestais Produtos Agrícolas e alimentares

CIÊNCIA DOS RECURSOS NÃO RENOVÁVEIS

Bacharelatos ou Licenciaturas

Transformação tecnológica de produtos

Mármores e outras rochas Petróleos

Tecnologia de materiais

Argilas

CIÊNCIAS DE BASE

Biologia Química Física Matemática Geologia

Bioquímica, Biofísica, Física da computação, Biomatéria e Ecologia Hidrogeologia e Prospecção geomineira

Geografia

CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

História e suas Ciências auxiliares Antropologia Sociologia Economia

História e Arqueologia Sociologia Economia da empresa

Línguas

Interpretariado

Psicologia

Psicologia social

Biologia humana

Biologia humana

Pedagogia

CIÊNCIAS DE RELAÇÕES HOMEM-AMBIENTE

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Ecologia

Gestão de sistemas ecológicos

Planeamento

Planeamento biofísico

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Por causa de todas estas dificuldades, no “Projecto de Ensinos para o ano de 1974/1975”, datado de 11 de Julho de 1974, o Reitor deixava à consideração do Ministro uma proposta mais limitada, mais de acordo com os “problemas e condicionalismos”, entre eles a falta de pessoal docente.

b) Recrutamento de professores baseado somente no seu mérito e na sua competência científico-pedagógica;

Segundo esta, só seria razoável iniciar bacharelatos/licenciaturas em Pecuária, Hidrobionomia e Pesca, Planeamento Ecológico e Biofísico, Tecnologia de Materiais de Transformação Tecnológica de Produtos; e as pós-graduações de Ecologia Humana, Extensão Rural e de Ecologia e Reconversão Agrária.

d) Garantia do direito de livre associação na vida universitária […]27”

O Instituto Universitário de Évora na transição do regime (1973-1974) Um dos ofícios dirigidos pelo Reitor da Universidade ao Ministro Veiga Simão é, curiosamente, datado do dia 23 de Abril de 1974. A Comissão Instaladora, os funcionários e docentes do Instituto Universitário de Évora estavam em pleno trabalho quando se tomou conhecimento do Movimento das Forças Armadas. A par dos acontecimentos, a Comissão Instaladora enviou ao novo Ministério da Educação e Cultura (MEC) uma “Declaração” onde demonstrava a adesão aos “princípios políticos contidos na proclamação feita ao País pela Junta de Salvação Nacional”, salientado os eixos em que a nova instituição se iria basear para cumprir os valores democráticos do novo regime: “a) Manutenção de ensinos dentro do princípio de ampla pluralidade ideológica visando preparar os homens, que a transformação do País exige, não só para o impulso necessário a maior desenvolvimento mas também para o exercício das mais importantes funções directivas;

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c) Admissão de jovens tendo em conta a sua aptidão intelectual e não a sua origem económico-social;

Na realidade, estas eram as mesmas bases da Reforma do, então deposto, Ministro da Educação Nacional, José Veiga Simão. Apesar do seu afastamento, e substituição por Eduardo Henrique da Silva Correia28, a revolução acabaria mesmo por dar novo fôlego à reforma, dirigindo-a também para áreas não previstas, como a gestão democrática das escolas. Apesar de criado no esteio de uma reforma que era agora reabsorvida e recuperada pelo novo regime, a agitação política acabaria causando transtornos ao início dos cursos previstos no Plano da Comissão Instaladora. Referimo-nos, por exemplo, à falta de pessoal docente, dos espaços, ou dos problemas surgido entre os alunos e a Direcção do ISESE, e as dificuldades que estes factos acarretaram à integração daquele Instituto na Universidade. Não sendo aqui, evidentemente, o espaço para fazer a história deste processo29, convirá, contudo, explicar que, tal como previa o DecretoLei 402/73 de 11 de Agosto, quer da parte Direcção do ISESE, quer da Comissão Instaladora do Instituto Universitário, corriam negociações avançadas para se proceder a essa integração, contando mesmo na Comissão Instaladora com um elemento daquela escola, o Padre António Silva. A revolução, e principalmente o rumo dos acontecimentos naquela instituição de ensino (ocupação do edifício e exigência de demissão da Direcção) acabaram por atrasar quase um ano a integração dos docentes do ISESE no Instituto Universitário de Évora, bem como a dos alunos que queriam continuar os

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estudos de especialização, ou simplesmente terminar o seu curso30. Mas os tempos agitados do PREC causariam ainda outros sobressaltos ao jovem Instituto Universitário de Évora. Acusado por alguns sectores eborenses mais radicais de estar ao serviço do anterior regime, pairou sobre a futura Universidade o fantasma do seu encerramento. Ário Lobo de Azevedo, primeiro Reitor da academia, recordou estes acontecimentos na Cerimónia do 30º Aniversário da tomada de posse da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora (4 de Janeiro de 2004): “E a Universidade arrancou... E os primeiros anos não foram fáceis. A sociedade eborense desconfiava daqueles elementos estranhos que queriam uma Universidade que não era a sua Universidade tradicional, clássica... E mais uma vez Armando Perdigão e Celestino David ajudaram. Um ponto positivo: o bom andamento dos trabalhos de colaboração com o Instituto Superior de Economia e Sociologia de Évora e com o Eng. Vasco Maria Eugénio de Almeida. E depois veio o 25 de Abril. Surgiram outros problemas. Tomou-se muito difícil dar execução ao programa anteriormente estabelecido nomeadamente no que diz respeito às relações com o ISESE.

discutira os projectos para o IUE e a quem pedira que fosse membro da Comissão Instaladora estava precisamente Vitorino Magalhães Godinho que, apesar de considerar curiosos os nossos projectos, tal não podia aceitar por estar já comprometido com a Universidade Nova de Lisboa. A sessão de trabalho com o Ministro Vitorino Magalhães Godinho foi longa, decorreu com normalidade. O Ministro examinou pormenorizadamente a documentação que lhe foi apresentada, fez reparos e pôs objecções a certas questões, mas de um modo geral aprovou as propostas dos primeiros ensinos a serem professados no IUE. E não referiu nunca a proposta de extinção.”31 Apesar dos problemas descritos, muitos deles naturais na criação de uma instituição, o primeiro dia de aulas realizou-se a 10 de Novembro de 1975. Três anos mais tarde, justificado pelo crescimento e diversidade da sua oferta formativa, o Instituto Universitário de Évora extinguiu-se, sendo criado no seu lugar a Universidade de Évora 32. Estávamos no dia 14 de Dezembro de 1979. Consumatum est

E agora eram outras as forças que se opunham ao IUE. E acontece que quando Vitorino Magalhães Godinho é Ministro da Educação é-lhe feita a proposta de extinção do IUE por ser uma instituição ao serviço das elites, ao serviço da reacção. Sou chamado ao Ministério para apresentar os projectos de funcionamento do IUE e pessoa amiga na Direcção Geral do Ensino Superior diz-me, antes de eu ser recebido pelo Ministro: defenda-se, tome cautela, em cima da mesa do Ministro está a proposta de extinção do IUE. E há agora aqui uma situação curiosa. Entre os professores universitários com quem eu

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1 Despacho Ministerial de 28 de Março de 1967 2 SILVA, António da (1978), Livro Branco - IUE/ESESE, Évora, 1978, p. 3. 3 GRÁCIO, Rui (1973), Os Professores e a Reforma do Ensino, Livros Horizonte, Lisboa, 1973, p. 20 4 Professor e político português, José da Veiga Simão nasceu a 13 de Fevereiro de 1929, na Guarda. Licenciou-se em Ciências Físico-Químicas na Universidade de Coimbra e em 1957 obteve o Doutoramento em Física Nuclear (PhD) pela Universidade de Cambridge. Adquiriu o grau de Professor Catedrático, em 1961. Dois anos depois foi nomeado reitor da Universidade de Lourenço de Marques, em Moçambique, cargo que desempenhou até 1970. Para uma biografia mais detalhada, bem como para a identificação da sua obra à frente do Ministério da Educação consultar: http://www.sg.min-edu. pt/expo03/min_03_veiga_simao/ expo0.htm 5 Presidência da República, Lei nº 5/73 de 25 de Julho, in Diário do Governo, I Série, nº 173, Quarta-feira 25 de Julho de 1973, pp. 1315 e 1316. 6 STOER, Stephen R. (1981), ‘A reforma Veiga Simão no ensino: projecto de desenvolvimento social ou “disfarce humanista”?’, in Análise Social, Vol. XIX (77-78-79), Lisboa, 1983, p. 793.

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7 LEITE, Rita Pinto (1973), A Reforma do Sistema Educativo, Ministério da Educação Nacional, Lisboa, 1973, p. 10. 8 STOER, Stephen R. (1981), ‘A reforma Veiga […] op. cit, p. 800.

Artº 15º - 1. Cada uma das comissões instaladoras será presidida pelo reitor e dela farão parte o administrador e cinco vogais nomeados por despacho do Ministro da Educação Nacional.” , idem, p. 1403.

9 SIMÃO, Veiga (2004), “Comemorações do 30º aniversário da tomada de posse da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora”, Évora, 2004, p. 4.

14 Notícias de Évora, nº 22113, Sábado, 5 de Janeiro de 1974, p. 1.

10 STOER, Stephen R. (1981), ‘A reforma Veiga…, op. cit. pp. 803 e ss.

16 In Diário de Notícias, nº 38729, Sábado, 5 de Janeiro de 1974, p. 1

11 Ministério da Educação Nacional, Decreto-Lei nº 402/73 de 11 de Agosto, Diário do Governo, I Série, nº 188, Sábado, 11 de Agosto de 1973, p. 1401.

17 SIMÃO, José da Veiga (1974), “Discurso proferido na posse do Reitor e Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora”, in Separata da Revista Economia e Sociologia, nº 17, Instituto Universitário de Évora, 1974, pp. 4 e 5.

12 Contudo, se a integração da Escola de Regentes Agrícolas de Évora (ERAE) foi relativamente pacífica, a integração do ISESE seria muito mais polémica. De facto, aquela acabaria por ficar transtornada na voragem de acontecimentos que se seguiram ao 25 de Abril. O próprio Instituto Universitário de Évora seria também confrontado com dificuldades inesperadas, decorrentes do período de agitação política e indefinição que se seguiu à Revolução de Abril. 13 “ Artº 14º São instituídas comissões instaladoras para as novas Universidades, que exercerão o seu mandato durante o período referido no artigo anterior [três anos].

15 In O Século, Sábado, 5 de Janeiro de 1974, p. 2.

18 O Primeiro Reitor do Instituto, posteriormente, Universidade de Évora, Ário Lobo de Azevedo nasceu em Lourenço Marques (Maputo) em 1921, tendo feito aí os seus estudos liceais. Em 1939 matriculou-se no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, onde concluiu a formação com elevadas classificações (1946). Engenheiro Agrónomo e Engenheiro Silvicultor, frequentou várias universidades estrangeiras e cursos em fábricas de material agrícola. Assistente do Instituto Superior de Agronomia foi, mais tarde nomeado Professor Catedrático daquela escola. Desenvolveu a sua carreira

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Re v u e Entrada da Sala dos Actos, Colégio do Espírito Santo ~ Pormenor Foto: David Prazeres

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académica em Angola e Moçambique, chefiando e orientado várias missões dependentes da Junta de Investigação do Ultramar. É lá, em Moçambique, que trava conhecimento com Veiga Simão, em 1963. 19 AZEVEDO, Ário Lobo de (1974), “Discurso proferido na tomada de Posse da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora”, in Separata da Revista Economia e Sociologia, nº 17, Instituto Universitário de Évora, 1974, pp. 4 e 5 20 “Programa referente ao Plano de Instalações”, in Instituto Universitário de Évora, primeiro semestre de actividades da Comissão Instaladora, Instituto Universitário de Évora, Julho de 1974, p. 2. 21 Idem, p. 1. 22 “Aquisição de um Imóvel e Terreno para o Instituto Universitário de Évora”, in Instituto Universitário de Évora, primeiro semestre de actividades da Comissão Instaladora, op. cit. p. 1 23 De Janeiro a Dezembro de 1974 funcionou na sede da Comissão de Planeamento da Região Sul, na Rua da Misericórdia); de Janeiro a Março de 1975, no edifício nº 43 da Rua Miguel Bombarda; de Abril de 1975 a Dezembro de 1976 no edifício da Administração da Universidade, Av. Barahona nº 1, e a partir de Janeiro de 1977, finalmente, passou a fun-

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cionar no Colégio do Espírito Santo. 24 “Projecto de Ensinos para o ano de 1974/75”, idem, op. cit., p. 7, no ofício do Reitor, Prof. Ário Lobo de Azevedo, ao Ministro da Educação e Cultura, datado de 11 de Julho de 1974. 25 “Introdução”, in Instituto Universitário de Évora, primeiro semestre de actividades da Comissão Instaladora, op. cit. p. 4. 26 “Ensinos e Estrutura Escolar do Instituto Universitário de Évora”, in Instituto Universitário de Évora […], op. cit. p. 2 27 “Declaração acerca do Movimento de 25 de Abril”, in Instituto Universitário de Évora, primeiro semestre de actividades da Comissão Instaladora, op. cit. pp. 1 e 2. 28 Lista dos Ministros da Educação e Cultura entre Maio de 1974 a Setembro de 1975: Eduardo Henrique da Silva Correia (16 de Maio a 18 de Julho de 1974) Vitorino Magalhães Godinho (18 de Julho a 30 de Setembro de 1974) Vitorino Magalhães Godinho (30 de Setembro a 29 de Novembro de 1974) Vasco dos Santos Gonçalves - interino (29 de Novembro a 4 de Dezembro de 1974) Rui dos Santos Grácio - delegação de competências - (29 de Novembro a 4 de Dezembro de 1974)

Manuel Rodrigues de Carvalho (4 de Dezembro de 1974 a 26 de Março de 1975) José Emílio da Silva (26 de Março a 10 de Setembro de 1975) 29 Ver sobre este assunto a documentação fundamental inserta no Livro Branco IUE / ISESE, publicado em 1978 30 Foi, assim, aos docentes oriundos daquela intuição que deveu a Universidade a formação dos quadros para ministrar os cursos de Sociologia, Economia e Gestão de Empresas, e ainda à Fundação Eugénio de Almeida a transferência do comodato do Palácio da Inquisição para a Universidade. 31 AZEVEDO, Ário Lobo de (2004), “Sessão comemorativa do trigésimo aniversário da tomada de posse da Comissão Instaladora do Instituto Universitário de Évora, 5 de Janeiro de 2004, Professor Engenheiro Ário Lobo de Azevedo, Presidente da Comissão Instaladora do IUE, Primeiro Reitor do Instituto Universitário de Évora / Universidade de Évora”, texto dactilografado, pp. 3 e 4. 32 Decreto-Lei nº 482/79 de 14 de Dezembro de 1979, in Diário da República, I Série, nº 287, p. 3229.

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Texto de Apresentação: Memórias da Universidade ~ Volume I PEREIRA, Sara Marques

78 The Irish clerical community in the University of Évora O’ CONNOR, Thomas

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Editorial: Resistência e resiliência ARAÚJO, Jorge

90 A Missão dos Jesuítas Eborenses no Ultramar MANSO, Maria de Deus

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Bula de Paulo IV sobre a Fundação da Universidade de Évora (tradução) TEIXEIRA, Cláudia MARTINS, Armando

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Colóquio internacional: Universidade de Évora 450 Anos: Um Passado com Futuro A Universidade Jesuíta (1559–1759)

18 Évora e Luís António de Vernei PEREIRA, José Esteves 26 Pedro da Fonseca e a Universidade de Évora PATRÍCIO, Manuel Ferreira 40 Luís de Molina e a Universidade de Évora LAVAJO, Joaquim Chorão 60 Características Educativas Inacianas Algumas reflexões MONTEIRO, Miguel Corrêa

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100 Fundar no ermo - Descrição histórico-arquitectónica e artística do Colégio e Complexo do Espírito Santo (sécs. XVI-XVIII) PATROCÍNIO, Manuel Francisco Soares do 115 Antijesuitismo, Educação e Universidade de Évora FRANCO, José Eduardo 128 A Língua Portuguesa no Mundo A Universidade de Évora e a actividade missionária MARÇALO, Maria João FONSECA, Maria Céu 136 Apontamentos andarilhos Memórias da Companhia de Jesus no Centro Académico de Évora JANEIRA, Ana Luísa

144 O Ensino no Colégio do Espírito Santo: Desde a expulsão dos Jesuítas à Fundação do Liceu (1759-1841) VAZ, Francisco António Lourenço 159 A Casa Pia de Évora (1836–1957) e o Liceu Nacional (1843–1959) 160 A Casa Pia de Évora GAMEIRO, Isabel 174 O Liceu (1841-1959) GAMEIRO, Fernando Luís 188 A restauração do Ensino Superior em Évora - O debate na imprensa eborense (1957-1958) AMADO, Casimiro 211 Do Instituto Universitário à reabertura da Universidade de Évora (1973-1979) 212 Da Reforma Veiga Simão à criação da Universidade de Évora PEREIRA, Sara Marques 238 Ficha Técnica, Patrocínios e Agradecimentos

143 Professores Régios e a Ordem Terceira (1762–1816)

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Ficha Técnica do nº 10~11 Propriedade Universidade de Évora Director Jorge Araújo Directora Adjunta Sara Marques Pereira Chefe de Redacção Susana Rodrigues Redacção Sofia Ascenso Fotografia Daniel Mira, David Prazeres e Susana Rodrigues Projecto e Direcção Artística Pós-produção fotográfica e Paginação David Vieira da Silva Prazeres Gestão Comercial Daniel Mira Maria Antónia Charrua Secretariado da Redacção Maria Antónia Charrua Apoio Editorial Ana Louro Andreia Tanganho Pré-Impressão, Impressão e Acabamento Multiponto - Rafael, Valente e Mota, S.A. Periodicidade Semestral Tiragem 2000 exemplares ISSN 1646-0839 Depósito Legal 91117/95

ISSN 1646083-9

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Coordenação científica Casimiro Amado Cláudia Teixeira Francisco Lourenço Vaz Sara Marques Pereira Colaboraram nesta edição Ana Luísa Janeira Casimiro Amado Fernando Gameiro Isabel Gameiro Joaquim Chorão Lavajo José Eduardo Franco José Esteves Pereira Manuel Ferreira Patrício Manuel Patrocínio Maria de Deus Manso Maria do Céu Fonseca Maria João Marçalo Miguel Corrêa Monteiro Thomas O’Connor O custo da REVUE n.º 10~11 foi integralmente coberto pelos seguintes patrocinadores: Beep Informática - Évoralógica, Lda. Câmara Municipal de Évora Câmara Municipal de Montemor-o-Novo Câmara Municipal de Mora Câmara Municipal de Portel Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz Câmara Municipal de Vendas Novas CCDR Alentejo

Agradecimentos A Equipa da REVUE – Revista da Universidade de Évora agradece a todos aqueles que, mais uma vez tornaram possível a edição deste número especial. Sem a sua inestimável ajuda e apoio tal não teria sido possível. Ao Archivum Romanum Societatis Iesu, na pessoa do Dr. Mauro Brunello, aos Serviços de Filatelia dos CTT, na pessoa do Dr. Raul Moreira e das Senhoras D. Gracinda Courela e Helena Almeida, à Biblioteca Pública de Évora, na pessoa do Sr. Luís Reis e da Sra. Antonieta Galão, à Câmara Municipal de Évora, através dos seus Departamentos de Comunicação e Relações externas e de Ordenamento e Gestão de Território, nas pessoas do Dr. José Guerreiro, do Arq.º José Pereira e do Téc. Carlos Borralho, ao Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora, à Biblioteca da Escola Secundária André de Gouveia, na pessoa do Dr. Marcial Rodrigues, à Associação dos Antigos Alunos da Casa Pia e ao Sr. António Mateus dos Santos. Ao Sr. Administrador da Universidade de Évora, Dr. Rui Pingo, aos secretariados dos Departamentos, Centros e Institutos, na pessoa dos seus Directores; aos Serviços de Informática, na pessoa do Eng.º Joaquim Godinho e da D. Maria Manuel Fadista, à D. Fernandina Fernandes, da Biblioteca Geral, à Dra. Cecília Fialho, enfim, a todo um vasto conjunto de docentes, funcionários e técnicos que ajudaram de várias formas a conseguir este objectivo, mostrando que a universidade é muito mais do que um conjunto de pessoas dentro de vários edifícios. De novo, a todos, o nosso muito obrigado!

Delta Cafés Lda. Fundação Calouste Gulbenkian FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia Fundação Eugénio de Almeida Governo Civil do Distrito de Évora Multiponto - Rafael, Valente e Mota, S.A.

A equipa da REVUE – Revista da Universidade de Évora

Assinatura anual | Dois números Nacional Professores: 12€ Alunos, antigos alunos e funcionários: 10€ Outros assinantes: 14€ Internacional Europa: 33€ Outros países: 43€ Valores incluem portes de correio e IVA à taxa em vigor PVP | um número: 7€ | número duplo: 14€

Contactos REVUE - Revista da Universidade de Évora Rua Cardeal-Rei, n.º 19 7000-849 Évora Tel: 266 740 897 Fax: 266 740 811 revue@uevora.pt

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