Revista Experiência 2012

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exp Revista Experiência

Famecos l PUCRS l Julho 2012

Gay Talese

Foco nos detalhes Jornalista esteve em São Paulo e falou sobre sua vida e profissão



Carta ao leitor

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m novo projeto gráfico, apresentamos a primeira edição de 2012 da revista Exp, produzida pelos alunos de jornalismo dos turnos manhã e noite da disciplina de Redação e Produção de Revista. Em meio a contextos particulares, cada um dos futuros jornalistas que compuseram esta publicação se desdobrou em três profissionais: repórter, fotógrafo e designer. Com o desafio de pensar no layout da página, capturar as imagens de seus personagens e elaborar textos de qualidade, todos buscaram a excelência em campos em que não dominavam. Provocados pelos professores a contar boas histórias, os alunos saíram de suas zonas de conforto e foram às ruas para produzir jornalismo. Pois assim como a publicação que você tem em mãos sai da gráfica com conceito visual renovado, se renovam também as turmas

que produzem a revista. A cada semestre, novas (e antigas) angústias pautam as reportagens que ilustram a EXP. Do que tratar? Qual a pauta ideal? Como produzir um material diferenciado? Cada um encontrou a sua fórmula. Juliana Palma, por exemplo, foi a São Paulo em busca de um ícone do jornalismo. Atenta, ouviu as palavras de Gay Talese e traduziu os ensinamentos de um dos precursores do Novo Jornalismo. Felipe Dalla Valle e Mariana Fontoura, entusiasmados pela possibilidade de contar em imagens as histórias de crianças da periferia, produziram o ensaio fotográfico que ilustra as páginas desta edição. Henrique Diebold relata como se estruturam as chamadas igrejas gays e a fé que não discrimina seguidores. Os exemplos são inúmeros e as boas histórias se costuram nas páginas que se seguem.

Boas histórias que, assim como todas as boas histórias o fazem, exigiram esforço. Foram pautas pensadas, riscadas e reformuladas até que fosse encontrado o enfoque ideal; fotos feitas e refeitas até que se chegasse ao clique certeiro; fontes consultadas repetidas vezes até que todas as boas informações fossem descobertas; páginas estruturadas de diversas formas até que a diagramação mais apropriada colorisse a tela do computador. Assim, com dedicação, se construiu mais uma edição da EXP. Uma publicação sem os filtros impostos pela grande imprensa e pautada pelas inquietações que são próprias dos estudantes de jornalismo. A vocês, leitores, desejamos uma excelente viagem pelas histórias, personagens e lugares que, ao longo do semestre, descobrimos, retratamos, desenhamos e escrevemos. Boa leitura.

Expediente Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Faculdade de Comunicação Social (Famecos)

Coord. do curso de Jornalismo: Vitor Necchi Realização da disciplina de Redação e Produção de Revista

Reitor: Joaquim Clotet

Professores responsáveis Flávia de Quadros (fotografia)

Vice-reitor: Evilázio Teixera Diretora da Famecos: Mágda Cunha

Luiz Adolfo Lino de Souza (projeto gráfico) Vitor Necchi (texto)

Foto da capa: Felipe Dalla Valle Projeto gráfico: Renan Sampaio Avenida Ipiranga, 6681 – Prédio 7- Porto Alegre – RS – Brasil www.pucrs.br/famecos Julho de 2012 Alunos: Aline Mello, Ana Karina Giacomelli, Bárbara Pustai,

Bruna Griebeler, Caetanno Freitas, Carime Graziadei, Carolina Reck, Claiton Silva, Cristine Kist, Débora Backes, Débora Ely, Diogo Puhl, Eduardo Paganella, Felipe Dalla Valle, Fernanda Meneghetti, Gabriela Sitta, Giordano Tronco, Helena Gertz, Henrique Diebold, João Henrique Willrich, Júlia Lang, Júlia Merker, Juliana Baldi, Juliana Palma, Juliana Vencato, Kamyla Jardim, Laura

D’Angelo, Leonardo Fister, Leonardo Pietrowski, Liane Fraga, Lorenço Oliveira, Maria Augusta Cohen, Maria Eduarda Fotuna, Mariana Fontoura, Martina Jung, Natacha Gomes, Pedro Faustini, Ramiro Macedo, Raphael Gomes, Renan Sampaio, Silvano Antolini, Sofia Vontobel, Sophia Kath, Tiago Rech, Valessa Prado, Vinicius Luz, Yajna Moreira, Yasmine Santos

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Índice

Gay Talese De passagem pelo Brasil, o jornalista e escritor falou sobre seu trabalho e os bastidores de suas reportagens

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Religião Uso de elementos do cristianismo no Judiciário desperta debate

Má educação Políticas de ensino deficientes e mal pensadas resultam no aumento do número de crianças que deixam a escola

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Memória Vazio, hotel do interior gaúcho será demolido após mais de 80 anos de história

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O ritmo da idade No Baile da Vera, senhoras e senhores curtem os embalos da noite de sextafeira do Nonoai Tênis Clube

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Infância O olhar agudo de dois fotógrafos sobre a realidade de crianças da periferia que lutam para sobreviver na Capital

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eCultura OBSERVAR PARA

contar histórias Em palestra realizada em São Paulo, Gay Talese mostrou por que é reverenciado por jornalistas, sejam estudantes ou profissionais

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TEXTO: JULIANA PALMA FOTOS: FELIPE DALLA VALLE

U PALESTRA Gay Talese foi o principal convidado do 4º Congresso Internacional Cult de Jornalismo Cultural

m homem de terno verde musgo, camisa listrada e gravata amarelo claro descia os degraus do teatro. Um senhor, na verdade. Rugas, cabelos brancos. Fiapos brancos, sejamos francos, pois um homem dessa idade já não tem o que se pode chamar de uma vasta cabeleira. Quem descia os largos degraus do Teatro Tuca, em São Paulo, para participar do 4º Congresso Internacional Cult de Jornalismo Cultural, no final de maio de 2012, era Gay Talese. Conhecido por livros como Fama & Anonimato, Honra teu Pai e Reino e Poder, Gay Talese é um dos expoentes do movimento intitulado Novo Jornalismo – período mais notório do jornalismo literário, que surgiu na década de 1960, nos Estados Unidos, e cuja principal característica é o aprofundamento da apuração, associada ao uso de técnicas e elementos da literatura. Além dele, são também considerados representantes os jornalistas Tom Wolfe, de Radical Chique e o Novo Jornalismo, e Truman Capote, de A Sangue Frio. Quem não conhecia Gay Talese por qualquer imagem que fosse poderia facilmente deixar passar a presença de uma tão ilustre personalidade. O jornalista e escritor de 80 anos apareceu já no primeiro dia de palestras, para assistir ao painel de Art Spiegelman, ganhador do Pulitzer por Maus, livro em que relata, por meio de quadrinhos, o esforço de seu pai, judeu polonês, para sobreviver ao Holocausto – na história, Spiegelman se utiliza de uma forma diferenciada de narrativa ao retratar diferentes etnias como animais: na obra, os judeus são ratos, os alemães, gatos, os americanos, cachorros, e os poloneses, porcos. Talese sentou-se com sua esposa na segunda fila, enquanto as pessoas presentes na plateia,

Siga seu entrevistado aonde ele for. Se ele estiver ocupado com algum compromisso, disponibilize-se a acompanhá-lo. GAY TALESE, jornalista e escritor

em sua maioria estudantes de jornalismo, observavam-no encabulados. Ninguém se mexia. Apenas sussurravam uns nos ouvidos dos outros sobre a figura que ali se encontrava. A hipnose exercida por Talese foi tanta que ninguém notou o furto do computador de Spiegelman de cima de uma mesa sobre o palco. No segundo dia, Gay Talese também apareceu. Dessa vez, para prestigiar o historiador e ex-colega de New York Times Robert Darnton. Já acostumados com aquela presença, um por um os jovens jornalistas começaram a enfileirar-se em frente ao mestre para conseguir um autógrafo. Foi uma verdadeira peregrinação até a cadeira do meio na segunda fileira. Abre livro, fecha livro, escreve o nome na primeira página para facilitar a vida do homem. E ele bem tranquilo. Assinava, tirava fotos e inclusive puxava um assunto, perguntando aleatoriedades para quem entrasse em seu campo de visão. Quando chegou o seu dia, a primeira exigência de Gay Talese foi dispensar os copos de água de cima da bancada – que lá ficaram intocáveis – por latas de CocaCola bem gelada. Acomodou-se, esperou ser apresentado pelo jornalista Ivan Finotti, mediador do painel, e começou a falar. Contou a história de sua vida.

Mostrou para todos os presentes quais foram os fatos de seu cotidiano ordinário que o levaram a escolher o jornalismo para contar histórias. 1932. Nasceu em New Jersey, nos Estados Unidos, filho de pai imigrante italiano e de mãe ítalo-americana. Um alfaiate e uma vendedora em uma loja de vestidos. Não poderiam mesmo ser pais de um menino que desprezasse a aparência e as boas maneiras. Um menino que cresceu sob a sombra da Segunda Guerra e que fez com esse temor a última coisa que qualquer outra pessoa faria: observou. E leu. Leu romances, leu contos. Narrativas breves, narrativas longas. Interessou-se. Queria contar histórias. Não histórias como as dos livros de ficção, com protagonistas imaginários. Desejava contar histórias de personagens verdadeiros. Personagens que existem somente na vida real e que dificilmente conseguiriam ser criados sem uma boa dose de observação. Pois Gay Talese decidiu ser jornalista. Tudo começou sem querer, segundo ele próprio. Seu pai fazia os ternos do dono de um jornal local, e como o filho terminou os estudos no colégio sem ter uma nota boa sequer e sem conseguir aprovação nas melhores faculdades de jornalismo do país, decidiu conversar com seu cliente e incluir seu filho dentro de uma redação para testar seus dons. Obviamente que não poderia durar muito. Gay Talese queria escrever histórias, e não notícias. Outro conhecido de seu pai, um médico cheio de contatos vindo do Alabama, ofereceu para o rapaz uma oportunidade na faculdade de lá – na cabeça dele, um outro país do qual nunca ouvira falar, mas mesmo assim topou a aventura. Sua vida estava para mudar radicalmente e ele não sabia. Talvez até soubesse, ou não teria criado coragem para

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enfrentar situações diversas em busca de um desejo. Cumprida a tarefa de receber um diploma, Gay Talese rumou para Nova York a fim de bater um papo com o diretor do New York Times. Em uma conversa com um colega de curso, acabou descobrindo que o primo dele era o chefão no jornal, já o maior e mais importante dos Estados Unidos. Foi até a cidade grande e lá desembarcou sozinho aos 21 anos. Talese não desgrudou do balcão da recepção do New York Times enquanto não o colocassem frente a frente com o primo de seu colega. Persistente, esperou por horas até que alguém o chamasse à sala do diretor. Chegando lá, o homem estava bem sentado em uma cadeira, inclinado para trás e com as pernas apoiadas sobre a mesa. Perguntou quem Gay Talese era, na época um menino recémformado, e o que queria. – Me formei em jornalismo na Universidade do Alabama. Seu primo era meu colega e me incentivou a vir falar com o senhor. Gostaria de trabalhar aqui, no New York Times. – Primo? Que faz jornalismo? Qual o nome dele? – É fulano de tal. – Pois não conheço ninguém com esse nome. Constrangido, Gay Talese percebeu que fora enganado, mas não desistiu. - Bom, gostaria de trabalhar aqui no jornal. – Só contratamos pessoas com experiência. Geralmente os jornalistas trabalham em redações pequenas por um tempo e depois se candidatam para uma vaga aqui. – Mas vocês não têm nenhum cargo para iniciantes? – Até temos, mas as vagas estão todas preenchidas. Deixe-nos seu telefone que ligaremos, caso apareça alguma oportunidade. Talese voltou para sua terra natal e algumas semanas depois estava na loja de sua mãe quando recebeu uma ligação para comparecer ao New York Times. Dias mais tarde, seria contratado como uma espécie de auxiliar de redação, levando e buscando sanduíches e cafezinhos para os jornalistas. Além de trabalhar por anos no New York Times, Talese contribuiu com revistas, escrevendo para Esquire, The New Yorker, Newsweek e Harper’s Magazine. E foi o seu trabalho

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e os bastidores das grandes reportagens que ele abordou no encontro em São Paulo. O escritor, durante a palestra, enfatizou a importância de ter persistência e determinação. Sem elas, jornalista algum consegue oportunidades. Para ele, é preciso aparecer, mostrar seu trabalho, se não o estudante pode estar fadado ao desaparecimento do mercado. Talese observava tudo e todos. No jornal, timidamente, começou escrevendo matérias sobre fatos do cotidiano – não era o que queria, mas precisava iniciar por algum lugar. A redação ficou encantada com seu estilo de escrita, pois contava detalhes que ninguém perceberia, e se percebessem, não colocariam no jornal. Sem fazer qualquer uso de tecnologia digital – computador, celular ou tablet –, Gay Talese anda apenas com cartões, recortados por ele mesmo a partir de folhas de ofício, que guarda no bolso interno do paletó. São neles que constam suas anotações e observações minuciosas, que faz somente quando já esta voltando para casa após o encontro com a pessoa sobre a qual está escrevendo. Anota o nome, a data e o local. O resto fica em sua memória até o momento final do encontro. Encontro, sim. Pois como bom jornalista, e das antigas, Gay Talese não fica pendurado ao telefone esperando que seu entrevistado fale alguma frase interessante e de impacto. Ele vai ao encontro dele e o instiga. E garante que o diferencial da reportagem estará nos detalhes que o ajudarão a contar uma história, como na literatura. A diferença é que ao invés de inventar, ele conta uma história real. Para Talese, estar junto das pessoas é uma das partes mais importantes do jornalismo. “Siga seu entrevistado aonde ele for. Se ele estiver ocupado com algum compromisso, disponibilize-se a acompanhá-lo”, ensina.

Quando estava no jornal, Talese procurava fugir o máximo das notícias de cotidiano e de pessoas conhecidas. Ao editor, propunha reportagens sobre pessoas comuns e desconhecidas ao grande público. Queria escrever crônicas daqueles que formavam e que viviam Nova York em seu dia a dia. Pessoas que passavam despercebidas, mas que tinham muita história para contar. Como resposta, Talese recebia do editor um “quem se importa?”, e quando percebeu que seus textos não teriam espaço nas páginas do jornal, pediu demissão e rumou para novos desafios. Talese explica que um jornalista

deve ter perseverança, ego e até arrogância, para não se sentir diminuído diante de histórias de famosos ou de pessoas com lugar marcado na sociedade. É preciso sentir-se importante. Para todos os que estavam presentes no teatro, Gay Talese confirmou que é dos pequenos detalhes que saem as grandes histórias. Apesar das discussões sobre os novos formatos para se fazer jornalismo, Talese ensinou que as boas histórias não terão fim e continuarão a ser valorizadas, desde que a narrativa tenha qualidade e sensibilidade para perceber as particularidades de cada uma.


e Literatura O SANGUE BRASILEIRO DE

Thomas Mann

A influência da origem materna na obra de um dos maiores escritores do século 20 DÉBORA BACKES

ARQUIVO THOMAS MANN - ZURIQUE

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ua voz fraquejava no leito de morte. Os problemas de saúde obstruíam suas vias respiratórias, e entoar o alemão perfeito que falara desde os sete anos de idade era uma dificuldade. Ao redor da cama, seus filhos tinham dificuldade de entendê-la, devido à debilidade de sua voz e ao sotaque jamais antes escutado por eles. O “r” arrastado se assemelhava com aquele dito por espanhóis ou portugueses quando falavam o idioma. A peculiaridade na fala destoava com o alemão perfeito, misturado com o Plattdeutsch, dialeto falado na cidade de Lübeck, ao norte do país, que falara a vida inteira na frente de seus filhos. “Agora, ao morrer, reaparecia o timbre do lado de lá, da colorida terra ensolarada”, relata Viktor Mann, irmão mais novo de Thomas Mann, em seu livro Wir waren fünf (Éramos Cinco), evidenciando que provavelmente sua mãe teria se agarrado nas lembranças de sua terra natal antes de morrer. Seu pequeno paraíso, em Paraty, na Fazenda de Boa Vista. A origem brasileira da mãe de Thomas Mann (1875-1955), um dos escritores alemães mais renomados do século 20 e ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1929, se tornou conhecida na década de 90 por meio da pesquisa do historiador e Presidente da Casa de Cultura de Paraty, Diuner Mello. Em 1994, Frido Mann, neto do autor alemão, veio para o Brasil em busca de informações sobre seus antepassados. Sua visita mobilizou especialistas em história e literatura. O primeiro membro da família Mann a pisar em território brasileiro

ADAPTAÇÃO Depois de sair do Brasil, Julia foi obrigada a passar sua juventude em Lübeck

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Sempre estive consciente do sangue latino que pulsa em minhas veias e bem sinto o que lhe devo como artista THOMAS MANN

As origens de sua avó se tornaram mais tarde um problema para Thomas Mann. Alguns historiadores alegam que Maria Luiza poderia também ter sangue judeu devido às origens portuguesas. O professor de Língua e Literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Soethe explica o porquê da desconfiança: “Como muitos portugueses que vieram para o Brasil eram cristãos novos, haveria a probabilidade de que eles teriam saído de Portugal justamente por causa dessas perseguições contra os judeus na época”. Devido a este pensamento, Thomas Mann recebe acusações públicas já em 1912 de Adolf Bartels, um

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ideólogo do nazismo. Segundo Paulo Soethe, Thomas Mann teria se defendido através das palavras: “Toda a herança que tenho de minha mãe se traduz em mim como latinidade”. Sua reação revela bastante sobre a relação com a mãe. A preocupação com os dizeres de Bartels tornou a publicação das memórias de Julia algo tardio. O manuscrito Aus Dodo Kindheit (Da Infância de Dodô) recebeu esse título devido ao apelido da pequena Julia em seus primeiros anos de vida e foi publicado apenas em 1958, após a morte de Thomas, em 1955. O espelho inverso do ganhador do Nobel de Literatura era seu irmão e também escritor renomado Heinrich Mann (1871-1950). A briga motivada pelo posicionamento político de cada um influenciara na forma como se manifestaram sobre suas origens latinoamericanas. O irmão mais velho de Thomas Mann tinha uma mentalidade esquerdista e liberal, que contrastava com o conservadorismo de seu irmão, e se declarava sobre sua origem estrangeira de forma aberta e orgulhosa. “Ele aproveitava o fato de ter uma origem exótica pra aparecer na sociedade como alguém diferente”, conta Paulo Soethe. Seu romance Entre as raças é a prova disso. Heinirch se baseia na vida de sua mãe para construir a personagem Lola, uma menina brasileira que vivia na Alemanha separada dos pais. O professor da Universidade Federal Fluminense Johannes Kretschmer também envolvido com os estudos sobre Julia Mann, observa que o início do romance de Heinrich seria uma descrição quase literal da memória que Julia Mann deixou por escrito. Uma personagem tão semelhante à sua mãe, como a Lola de Heinrich, não é encontrada nas obras de Thomas. A influência da brasilidade vinda do lado materno não é explicitada ao longo de sua carreira. A descendência latina aparece no escritor em forma de sensibilidade artística, como Thomas mesmo descreve. “Ele tem essa consciência da origem, mas tem que entender que essa é também uma coisa literária, uma coisa intelectual dele. Ele entende que um lado dele, grosso modo, seria mais sensitivo, mais sensual, e o outro veio seria mais organizado, burguês, racional. Então ele brinca que o racional é da parte do pai, o outro é

CASA BUDDENBROCK / CENTRO HEINRICH E THOMAS MANN

recebeu, ao chegar, a certidão de nascimento de sua bisavó, o que provava, enfim, que Julia da Silva Bruhns havia nascido em Paraty. Em 14 de agosto de 1851, dentro da selva, entre macacos e papagaios, auxiliada por um grupo de negros que a transportavam de uma cidade litorânea a outra, Maria Luiza da Silva deu à luz seu quarto filho. Ela e o marido, Johann Ludwig Herman Bruhns, ou João Luiz German Bruhns, como ficara conhecido, se mudavam de Angra dos Reis para Paraty quando foram obrigados a parar para receber Julia. A descoberta de Diuner Mello comprova o exato local de nascimento da menina. Seu pai havia saído da Alemanha aos 16 anos e rumou para terras pouco conhecidas do outro lado do Atlântico, “com o objetivo de fazer fortuna com o comércio de produtos provenientes das grandes plantações”, conta Julia em suas memórias. No Brasil, conheceu a senhorinha Maria Luiza, uma jovem de 15 anos de ascendência africana e portuguesa.

INFLUÊNCIA Julia Mann passou a seus filhos o veio artístico da parte da mãe”, descreve a mestre em Estudos Literários pela UFPR, Sibele Paulino. Ela lembra o curto texto escrito por Thomas sobre sua mãe, Das Bild der Mutter (O retrato da mãe), no qual ele atribui à sua mãe a formação artística que recebeu ao lado de seus irmãos. “A mãe dele no fundo foi a que passou (o talento para as artes) para os filhos, que lia pra eles, que tocava piano, lia as obras as alemãs, lendas, obras do realismo, essa formação literária”, afirma. Os lábios exóticos que deixavam fluir com naturalidade o dialeto Platt em forma de romances e contos são lembrados por Thomas Mann neste texto. Ele atribui àquela voz suave de sua mãe a figuração do primeiro romance em sua memória, Stromtid, o qual teria inspirado seu livro Os Buddenbrocks. O gosto pela música também são se associam às lembranças sobre Julia Mann: “Mas com mais prazer ainda eu acompanhava minha mãe quando ela fazia música. Seu piano de cauda Bechstein ficava no salão, uma varanda bem iluminada na qual o bom gosto e o estilo burguês pomposo de 1880 haviam selado a paz, sem vencedores nem vencidos”, descreve Thomas em seu texto O retrato da mãe. Este cenário descrito por Thomas aparece com mais frequência após a morte de seu pai, o senador Thomas Johann Heinrich Mann. Julia se muda para Munique, uma cidade mais ensolarada,

símbolo da boemia alemã, onde se encontravam artistas, músicos e intelectuais do país. “Munique era mais ensolarada, era mais alegre. Quando ela se muda para lá com os filhos, ela tem uma vida mais badalada, em salões, ela abre as portas da casa dela pra músicos, pra artistas”, conta Sibele Paulino. O contato com diferentes personalidades do meio cultural aguçaram a sensibilidade artística de Heinrich, Thomas, Carla, Julia e Viktor Mann. “À minha mãe devo uma familiaridade com esse glorioso universo alemão do cultivo da arte, universo que de fato equivale a uma cultura por si, na qual um mestre atira ao outro a esfera dourada”, declara Thomas Mann em seu escrito sobre Julia. De acordo com Sibele Paulino, a vida agitada que Julia passou a levar depois da morte do marido, em 1891, era um sintoma da latinidade que houvera reprimido durante os anos que vivera em Lübeck. O cinza e o frio da cidade no norte da Alemanha contrastavam com as cores vivas que a pequena Dodô via nas praias de Paraty. Sua mãe não resistira ao parto de seu quinto filho, que também falecera. O historiador Diuner Mello não acredita completamente nesta hipótese como motivo da saída do pai de Julia do Brasil: “O que o levou a se mudar do Brasil com todos os seus filhos e permanecer na Alemanha por dois anos foi o surto de cólera que, naquele momento, grassava


ARQUIVO CENTRAL IPHAN -SEÇÃO RIO DE JANEIRO

em todo o país”. Johann Ludwig Herman Bruhns permanece tempo suficiente na Alemanha para colocar suas duas filhas em um pensionato, onde receberiam a educação necessária para se tornarem moças da sociedade. Julia sofre um desenraizamento, como observa Sibele, e é obrigada a se adaptar à cultura, aos costumes religiosos protestantes e, com mais dificuldade, ao idioma. Para isso, a menina e sua irmã contaram com a ajuda da dona da pensão. Uma mulher chamada Therese, que concede aulas isoladamente para as irmãs brasileiras. As palavras referentes à família e algumas canções que marcaram a sua infância não foram, todavia, esquecidas. Em seu livro de memórias escrito em alemão, Julia se refere a seus familiares como pai, mãe e mana. O professor da UFPR Paulo Soethe relata que Thomas e seus irmãos também usavam a palavra portuguesa “mãe” e aprenderam canções infantis em português, como a canção Molequinha de meu pai. O aprendizado da língua portuguesa não seguiu em frente e, portanto, não pode se firmar como uma herança de Julia a seus filhos. O que ficou foi sua veia artística, que se fez presente em quase todos irmãos. Os três meninos se tornam escritores, e Carla atriz. Julia pode não ter se tornado escritora, artista ou compositora, mas deixou sua sensibilidade para as artes influenciar seus filhos. A declaração de Thomas em carta escrita no ano de 1943 comprova isso. Nela ele diz: “Sempre estive consciente do sangue latinoamericano que pulsa em minhas veias e bem sinto o quanto lhe devo como artista”.

O contato com o Brasil

A consciência de sua origem latino-america despertou o interesse de Thomas Mann pelo Brasil. Em registro em seu diário pessoal, o autor escreve algumas observações dos poucos livros que leu sobre o país, como Brazilian Adventures (Aventuras Brasileiras), de Peter Fleming, e Brasilien, ein Land der Zukunft (Brasil, um país do futuro), de Stefan Zweig. “No fim é uma relação muito pontual e periférica dele com o Brasil. O que temos de entender é que a pouca atenção que ele deu a questões brasileiras se deve a origem brasileira dele, mas se formos imaginar o que ele poderia ter feito e não fez, o que se revela é um desinteresse”,

PARATY Julia Mann chamava de paraíso a Fazenda Boa Vista, onde passou a infância argumenta Soethe. O contato com intelectuais brasileiros também foi fruto

No fim é uma relação muito periférica dele com o Brasil. PAULO SOETHE, professor de Letras e Literatura (UFPR)

desse interesse, tímido de certa forma, em conhecer suas origens. Em 18 de dezembro de 1929, depois de receber o Prêmio Nobel de Literatura, os jornalistas aguardavam para entrevistar o autor de Os Buddenbroocks. Thomas Mann escolhe um dos jornalistas que veio representar a terra ensolarada, da qual sua mãe sempre falava. Sérgio Buarque de Holanda se encontrou com Thomas em Berlim, e o autor o recebeu com a declaração: “Acho impossível dispensar o prazer de conversar com um brasileiro”. Erico Verissimo foi outra personalidade brasileira que o escritor conheceu. Os dois se encontraram em Denver, em 1941. Mais tarde surge de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda a idéia de trazer Thomas Mann para o Brasil. Freyre se empenhou para convidá-lo, através da Academia Brasileira de Letras. Em carta escrita, em 1947, ao dramaturgo austríaco, Lustig-Prean, que

vivia como exilado em São Paulo, Thomas revela sua satisfação com relação ao possível convite: “Quase não consigo entender de que maneira a Academia Brasileira de Letras poderia atender à sua conclamação. Ela deveria nomear-me membrocorrespondente? Claro que seria uma honra e uma alegria”. O convite, entretanto, não veio. “Esse convite não foi para frente devido a pressão de alguns acadêmicos que consideram Thomas Mann um comunista”, lamenta Kretschmer.

Centro Cultural

À beira da praia em Paraty a casa dos senhores, donos da Fazenda Boa Vista, onde morou Julia Mann até os sete anos de idade. Frido Mann, neto de Thomas, em 1997 idealizou transformar o local em um centro cultural. O objetivo era promover atividades para afinar a relação entre os dois lares de Julia, tão distantes um do outro. Entretanto, as complicações legais, pelas quais o imóvel passa atualmente, fizeram com que os esforços de Frido, Paulo Soethe, Johannes Kretschmer e outros estudiosos no assunto fossem abandonados. O professor Paulo Soethe explica que em 2005 a casa pertencia à empresa Serrana Empreendimentos que, segundo ele, era somente de fachada. O desejo de construir o Centro Cultural Julia Mann parecia longe devido à situação da empresa, o que fez com que seus idealizadores se afastassem do projeto por um tempo. Neste meio tempo, o terreno e a casa passaram para as mãos de Oscar Müller, dono da empresa paulista Arbeit. Outro personagem na

história da Fazenda Boa Vista é o empresário Amyr Klink, arrendatário do terreno desde os anos 1990, que construiu a Marina do Engenho em frente ao prédio. Ali ele também planejava abrir uma escola de navegação para jovens carentes, o Projeto Escola Mar, que devido a impasses foi transferido para Santa Catarina. Segundo o professor da Universidade Federal Fluminense, Johannes Kretschmer, há ainda projetos de aumentar a marina. “O que pode significar a salvação da casa, quer dizer a restauração, a reforma da casa. E quem sabe um dia, teremos de fato uma Casa Julia Mann”, espera. Opinião que não é compartilhada por Soethe. Amyr Klink tenta se tornar dono absoluto do terreno por direito adquirido, o que a seu ver, se de fato acontecer, irá adiar a fundação do tão sonhado Centro Cultural. O que os deixa tranqüilos é saber que a casa é patrimônio histórico, portanto não pode ser destruída. A Associação Julia Mann, existente no Brasil e na Suíça, intermedia o diálogo entre América Latina e Europa pela fundação do centro em Paraty. “É uma associação, uma sociedade sem fins lucrativos, como qualquer associação de bairro, e tem como objetivo único preservar a memória da família Mann no Brasil e aproveitar a casa pra fins culturais”, explica Soethe, que já foi vice-presidente da associação no país. A rigor ela estaria, no momento, inativa. Para que volte a suas atividades, é preciso uma assembléia dos membros e uma regularização dos papéis para que começa a operar não só como pessoa jurídica. revista exp

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ePerfil RETRATOS DE UMA

fuga

A emocionante história de Irmgard Hobbhahn, sobrevivente da 2ª Guerra Mundial CAROLINA RECK

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A SALVO Irmgard depois da fuga, em Viena

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m... Dois... Correram no três. Abrindo caminho pelos campos, se esquivavam de balas americanas. Era a última vez. Ao correr, ultrapassavam os limites da sobrevivência, era um ato escancarado de liberdade. Os tiros cessaram, mas o medo continuava presente dentro de uma cápsula de cianureto: a possibilidade de morte pendurada no pescoço. Ainda poderiam ser pegos pelos soviéticos. Faltava pouco. Não desistiram, já haviam passado por coisas piores. Cansados, abatidos pela fome e apenas com a roupa do corpo, pisaram em solo alemão. Venceram a sua própria guerra, com a promessa de não olhar para trás. Com nove anos, a alemã Irmgard Waltraud Hobbhahn vivenciou o início do maior conflito travado pelos homens, a Segunda Guerra Mundial. Nasceu em 1932, em TeplitzSchönau, cidade dividida entre tchecos e alemães até 1938. Com a aliança dos tchecos com o governo russo, o território foi invadido pelos aliados, e a cidade deixou de ser tranquila para os germânicos. “Éramos obrigados a usar uma faixa branca. Assim que os membros da URSS nos identificavam. Temia por meu pai, que trabalhava fora. Se quisessem atirar nele, o fariam”, ressalta. Assim que seu tio morreu. “Como se fosse um passarinho”. A segurança começava a ser extinta. A única esperança era fugir, e foi isso que a família dela fez. O perigo e o medo assolavam cada alemão que vivia na Tchecoslováquia. Bombas, furtos, abusos sexuais e violência eram cotidianos. A menina Irmgard vivia um pesadelo real. No começo, a inocência se refletia em alguns episódios. Ela relembra, com um sorriso sem jeito, que certa noite olhou para o horizonte e o céu estava

iluminado. Com pesar, conta que “a noite iluminada” foi um ataque a Dresden, cidade situada a 60 quilômetros de Teplitz-Schönau. O saldo? Cerca de 30 mil mortos por bombas. Independentemente da idade, não havia como se esconder das verdades de guerra. “A gente amadurece cedo. A meninice fica de lado, em parte se perde”, recorda, distante. Soldados russos ou tchecos eram símbolo de perigo. “Muitas das chamadas crueldades creditadas aos soviéticos faziam parte da propaganda nazista. De fato brutalidades existiam de todos os lados, e o medo significava controle”, explana o cientista político, Gutenberg Teixeira, de León, na Espanha. “Os homens faziam qualquer coisa, matavam bebês recémnascidos e crianças que não paravam de chorar enquanto a mãe era estuprada. Há registros oficiais”, explica o historiador Fabricio Gustavo Dillenburg, membro do Núcleo de Estudos de História Militar de Gramado. Em 14 de maio de 1938, a situação se agravou quando os tchecos mataram ativistas pró-alemães. Uma semana depois, enviaram 200 mil soldados às fronteiras com a Alemanha, buscando amedrontar Hitler. Estavam no controle da Tchecoslováquia. “Desligávamos as luzes e nos escondíamos. Se os russos nos descobrissem nos atacavam”, retrata a sobrevivente. Com escassez de alimentos e remédios, a família de Irmgard tinha um objetivo: chegar salva à Alemanha e recomeçar sua vida. Saíram de casa com uma muda de roupas e pouca comida. “O que mais me marcou da guerra foram duas conversas. Primeiro, meus pais falavam de suicídio, que não havia futuro. Discutiam se tinham o direito de me matar. Depois, foi uma promessa. Eu e minha mãe juramos para meu pai que, caso nos separássemos, engoliríamos uma cápsula de cianureto”, admite, esfregando


Primeiro, meus pais falavam de suicídio, que não havia futuro. Discutiam se tinham o direito de me matar. IRMGARD WALTRAUD HOBBHAHN, aposentada

as mãos trêmulas. A partir deste momento, andava com a cápsula presa em um colar, e não tem lembranças de como o pai conseguiu o composto. “Ele era químico, mas não sei se foi ele quem produziu o cianureto.” Conforme Dillenburg, a prática considerada nazista foi muito comum entre qualquer alemão. Isso devido ao medo das mulheres de uma possibilidade de estupro. “Obter o cianureto é fácil, o elemento pode ser encontrado em plantas. No Brasil, por exemplo, é possível conseguí-lo através de um tipo de mandioca”, ilustra o historiador,

retratando que soviéticos não escolhiam idade para estuprar, dos oito aos 80 anos mulheres corriam esse risco. “Os soviéticos faziam por justificar o terrível medo. Houve casos de violação em que mais de vinte homens estupraram uma mulher”, denuncia. A destruição era física e psicológica. A ideia assombrava qualquer pai. A família de Irmgard fugia pelos campos, muitas vezes se alimentando de frutas silvestres e cogumelos. Encontravam muitas famílias pelo caminho, cada um por si. Quando alguém tinha comida, sempre dividia antes de

seguir seu rumo. Um pão devia durar dias. A frase comum para os que ficavam e partiam não era “bom dia”, mas sim “alemão morto”. A morte estava por todos os lados. Quando passavam a noite refugiados em fazendas, percebiam que o aconchego delas guardava um lado triste. Todos tinham um filho que morreu na guerra. A esperança estava longe de ser opção. “Eu só imagino o medo que ela tinha de tudo. Ainda mais sabendo que carregava uma cápsula mortífera o tempo todo”, conta a neta Sissy Hobbhahn, que cresceu ouvindo as histórias da avó. Dias e noites viraram um desafio, fosse o motivo fome ou medo. Sobreviver era um missão árdua quando viviam à espreita de paz. Escapando, finalmente pisaram em território alemão. Correram o máximo que as suas pernas permitiam, com o som de tiros em suas costas. Abrigaram-se em campos e bosques. Depois de dias, chegaram a um povoado. A guerra, enfim, havia terminado. Conforme Irmgard, muitos nem tinham ideia do que realmente

havia se passado naquele período. Os tempos continuaram difíceis, mas nas ruínas da Alemanha a roda começou a girar. O pai de Irmgard encontrou emprego em uma fábrica, que forneceu um pequeno apartamento com mobília simples e cobertores. A empresa também cedia um terreno para que cada um de seus empregados pudessem plantar. “Havia filas para pegar comida. Uma vez ficamos dois dias esperando por um quilo de farinha”, salienta. Nesta época a população recebia cupons, que trocava por mantimentos e roupas. A pequena cidade onde se estabilizaram era chamada de Geislingen. Prefeituras, hotéis e pousadas abrigavam refugiados alemães que vinham das mais diversas localizações. Tudo voltava ao normal. A mãe em casa, o pai trabalhando e Irmgard estudando. O colégio parecia uma realidade distante. “As garotas achavam tudo engraçado, cochichavam, riam... Eu não conseguia, achava todos bobos”, nota Irmgard. Os anos

LEMBRANÇAS DO PÓS-GUERRA Cidade de Munique em Reconstrução, fotos de viagem que Irmgard guarda com carinho até hoje revista exp

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difíceis foram cedendo lugar a momentos com um tom de felicidade triste. Para um baile do colégio, ela precisava de um vestido bonito. “A família da vó não tinha dinheiro para comprar o vestido, aí, a minha bisavó pegou duas camisolas e fez um”, conta Arielle, neta da refugiada. A matriarca ri e revela que na época se virava apenas com um vestido rasgado, e que inclusive se meteu em uma briga com um garoto que caçoou do traje. “Tirávamos os sapatos quando chovia, para que eles não desmanchassem. Perdemos tudo quando fugimos, mas nem cogitávamos falar sobre o passado”, lastima a sobrevivente. O cenário da vida de Irmgard era outro em 1949, quando o pai recebeu uma proposta de uma fábrica egípcia. A família viveu no Cairo por um ano. Lá Irmgard conheceu o alemão Roland Hobbhahn, o homem pela qual se apaixonou. Passado um ano, ela e seus pais foram para a Aústria, onde se tornou a Sra. Hobbhahn. Casada, voltou para o Egito, onde deu a luz ao seu primeiro filho. Com o fundamentalismo egípcio, tudo que não fosse muçulmano era proibido. Hobbhahn tinha uma fábrica de algodão e quando descobriram sua nacionalidade, deixaram de vender o produto para ele. “Conseguimos dinheiro e providenciamos vistos para Brasil, Canadá e Nova Zelândia. Antes dos vistos chegarem, voltamos para a Alemanha”, relata a senhora, mencionando que, após algum tempo trabalhando na fábrica da Volkswagen, o marido e ela tiveram o visto aprovado para o Brasil. “Moramos em Santa Catarina. Meu marido trabalhava com pesca. Depois nos mudamos para Gramado e abrimos uma franquia de roupas, que agora é do meu filho mais novo.” Irmgard continua morando na serra gaúcha, sozinha e desfrutando de sua aposentadoria. Escolheu a cidade por ser tranquila e possibilitar que ela fique próxima das duas netas. Com um sotaque que remete à Alemanha, a senhora, que agora tem 80 anos, venceu seus medos. “Por um longo tempo tive traumas. Não podia ouvir uma sirene. Durante 30 anos não falei nada sobre a guerra”. Agora mostra contente as fotos de suas viagens, fala cinco idiomas (português, inglês, francês, alemão e hebraico) e

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conhece quase toda a Europa, mas não salvou nenhum documento ou objeto da época de fuga. Viúva, lembra de histórias engraçadas de seu casamento, como a apendicite que impediu a lua de mel, e também de casos curiosos da guerra. Um dia espiou pela janela e viu um soldado soviético roubando um despertador. Ele começou a tocar, e o soldado, apavorado, o jogou no chão e fuzilou. Como se fosse uma grande ameaça. Depois de casada, teve a chance de rever a casa da Tchecoslováquia, onde cresceu, mas com pesar revela que não queria por perto aquelas lembranças obscuras. Os vasos de cristal que hoje expõe com orgulho nas prateleiras de sua casa pertenceram ao pai, Franz Muhls Tein. Ele conhecia o dono de uma fábrica de vidros, e foi lá que se abrigaram por cerca de três semanas. “Pegamos carona com um transportador de vidros americano”, narra Irmgard, feliz com a atitude do homem. A certa altura da viagem, foram parados por um controle americano, que os mandou descer do caminhão. “Os controles eram comuns, feitos para impedir que alemães saíssem do território tcheco”, conta. Alguns dias antes, passaram por um controle tcheco e ficaram surpresos com os olhares que pulavam sobre eles. O pai, curioso, perguntou o que estava acontecendo. Responderam admirados: “Vocês não imaginam a sorte que têm. Ontem os russos passaram aqui. Mataram todos alemães”. Irmgard nunca vai esquecer o dia em que entrou naquele caminhão e foi parada por americanos em um controle. Momento decisivo. A escolha era indiscutivelmente arriscada. Poderiam ter engolido a cápsula que por tanto tempo carregavam no pescoço. Poderiam ter voltado para Tchecoslováquia e revivido o horror. Mas optaram por um caminho diferente. Mais uma vez não tinham ideia do que seria o futuro. Tein perguntou para o americano, que possivelmente seria punido por estar transportando alemães: “Onde estamos?”. Era solo da Alemanha, o sonho que há tanto almejavam. Em questão de segundos, o pai de Irmgard escolheu o seu destino. A menina, com apenas um vestido remendado, um par de sapatos e um colar que representava tudo que temia, ouviu o seu pai. Escutou as palavras que mudariam sua vida: “Um... Dois...”. Correram no três.

Por um longo tempo tive traumas. Não podia ouvir uma sirene. Durante trinta anos não falei nada sobre a guerra. IRMGARD WALTRAUD HOBBHAHN, aposentada

MEMÓRIA Pai de Irmgard produzia vasos de cristal


eEleição COMBINAÇÃO POSSÍVEL:

saias e urnas

A conquista do voto feminino completará 80 anos. Apesar disso, ainda falta muito para inserção feminina na política MARIA EDUARDA FORTUNA

E

m outubro deste ano, as mulheres brasileiras, estimadas em 52% do eleitorado, exercerão o direito ao voto nas eleições municipais. Outras se candidatarão às prefeituras e às câmaras de vereadores. Em pleno século 21, é difícil imaginar que o simples ato de uma mulher comparecer a uma sessão eleitoral já foi considerado um absurdo. O sufrágio universal e a igualdade do voto só foram conquistados nas primeiras décadas do século 20. Apesar do longo tempo, a participação da mulher na política ainda é muito pequena e leis precisam ser criadas para incentivar a criação de espaços que as insiram neste meio. A instituição do voto feminino se deu a partir de uma reforma no Código Eleitoral, com a assinatura do Decreto-Lei 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, pelo então presidente Getúlio Vargas. Em comparação aos países da América do Sul, o Brasil foi pioneiro. A professora da UFRGS e doutoranda em História Mônica Karawejczyk explica que, até o final da Primeira Guerra Mundial, havia poucos países que concederam o direito de voto para suas cidadãs. Entre eles estava Nova Zelândia (1893), Austrália (1902), Finlândia (1907) e Noruega (1913). A exclusão das mulheres da vida política se deu praticamente em todos os países ocidentais até os primeiros decênios do século 20. Para a professora de Ciências Sociais da PUCRS Márcia Dias, esse direito, na época, era um descompasso, pois a conquista do voto não acompanhava a da mulher na sociedade. Segundo Márcia, esse foi um movimento criado de cima pra baixo, ou seja, do estado para a sociedade. Além

LEMBRANÇAS

Dercy recorda os tempos em que foi vereadora

COMODISMO

Vera critica falta de modelos que defendam os direitos das mulheres na política disso, ela afirma que a mulher estava inserida numa sociedade patriarcal onde não não podia se divorciar e muito menos viver sua vida de forma autônoma.“No primeiro momento o voto feminino era o do chefe da família, então ele representava apenas mais um voto da casa e não um voto independente”, explica. Segundo dados do governo federal, o Brasil conta, hoje, com apenas 8,9% de mulheres no Congresso Nacional, cerca de 12% nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. Isso coloca o Brasil na 141ª colocação sobre presença de mulheres na política, num ranking de 188 países. Em relação à América Latina, o Brasil fica apenas à frente da Colômbia nesse quesito. No Rio Grande do Sul, dos 55 deputados estaduais, apenas seis são representantes femininas. Na Câmara Municipal da Capital, são quatro vereadoras de um total de 36. O doutor em demografia e

professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, no Rio de Janeiro, José Eustáquio Alves, acredita que a maior participação feminina na política passa por uma mudança na cultura dos partidos. Alves destaca que as legendas precisam perceber que está na hora de investir nas mulheres. “O objetivo das cotas destinadas às mulheres na política é propiciar maior igualdade de oportunidade na disputa. O problema é que a redação da lei brasileira deixou muitas lacunas”, afirma o especialista. No Rio Grande do Sul, em 1972 a primeira vereadora mulher foi eleita, como uma das mais votadas. Dercy Furtado, hoje com 83 anos, lembra que na luta pelos direitos das mulheres, na época, foi muito atacada, recebendo até mesmo ameaças de morte. Ela fala dos momentos difíceis que passou durante seus mandatos. “Eu estava no meio de 50 homens e me lembro deles dizendo ‘parem

que a deputada vem aí, acabem com os palavrões’. Eles sabiam que eu estava lá para defender ideias”, conta a ex-vereadora. Situação parecida com a de Dercy passou a primeira-ministra mulher do Reino Unido, Margaret Thatcher, eleita em 1979, Em filme recente de Phyllida Lloyd, estrelado por Meryl Streep, é possível constatar as dificuldades encontradas pela política. Vinda de família humilde, na tentativa de defender suas ideias políticas. Na posse como primeira ministra Britânica, ela aparece na foto oficial no meio de dezenas de homens, como única mulher, representando o início da luta da inserção da mulher na política britânica. A política Vera Guasso, fundadora do PSTU no Estado alega que o grande problema das governantes mulheres eleitas é que defendem o mesmo programa político definido pelos homens, ao invés de lutar por seus objetivos próprios. Ainda segundo ela, a mulher estará sempre em desvantagem em relação ao homem, já que tem toda a carga de responsabilidade pela organização da casa, pela educação dos filhos e ainda de disputar espaços para além das casas, com o sexo masculino. “Para a mulher chegar à esfera pública e às estruturas de poder da sociedade, é muito difícil, é preciso ultrapassar barreiras enormes. Desde não ser vista como um mero objeto sexual, a ter que dar conta de duas ou três jornadas, o trabalho, o estudo, as tarefas domésticas”, disse a política. Apesar das resistências, as mulheres estão participando ativamente da construção da sociedade brasileira. A tendência das últimas décadas tem sido de valorização de seu trabalho, assim como de incentivo para que elas ocupem cada vez mais papéis de destaque e de comando no país, seja em empresas privadas, seja na área pública, o que demonstra um avanço na luta pela igualdade real entre os sexos, fundamental para uma sociedade justa e democrática.

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eEleições ELES ESTÃO DE OLHO

no seu voto

Milhões de brasileiros voltam às urnas em outubro para eleger prefeitos, vice-prefeitos e vereadores em mais de 5,5 mil municípios de Norte a Sul TIAGO RECH

“D

ei cimento, dei tijolo, dei areia e vergalhão. Subi morro, fui em favela, carreguei nenê chorão. Dei cachaça, tira-gosto e dinheiro de montão. E mesmo assim perdi a eleição. Traidor, traidor. Se tem coisa que não presta é um tal do eleitor.” A música do falecido Dicró retrata um folclore bem brasileiro, um tempo em que internet, rede social e urna eletrônica não faziam parte do dicionário eleitoral nacional. Cidadão sem candidato estampado na camiseta, boné, lápis, caixa de fósforos, lixa de unha, chaveiro e até camisinha não existia. Comício embalado por dupla sertaneja era um sucesso de público. Hoje, até o poste não é mais um paliteiro de propaganda. A campanha saiu das ruas para se tornar um fenômeno midiático. “Ficou menos viva, tem menos vivacidade, territorialidade, envolvimento um a um das pessoas. Elas tinham riqueza visual e presença muito maior. nas cidades Para a democracia, era mais legal quanto tu saías de casa para o comício, era um evento de participação cívica. A ideia era ter envolvimento o mais umbilical possível com a cidade”, relembra o publicitário Fábio Bernardi, que ajudou a eleger o ex-prefeito de Porto Alegre José Fogaça e o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Bernardi recebe o repórter na cafeteria de um prédio comercial localizado em área

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nobre da cidade. Sócio-diretor da Morya Comunicação, o gaúcho de 40 anos, visual jovem, corria contra o tempo de fechar contrato com um novo cliente. Sem a intenção de caçar votos no pleito de outubro, talvez alguma consultoria, ele analisou a controversa figura do marqueteiro. “Não é um cara que eleja alguém. O marketing pode ajudar a perder. Comunicação é que nem remédio na batalha política. A dose certa cura, a errada mata. Ganhar é quase como cair um avião, nunca é uma razão só”. O ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont, 67 anos, ganhou eleição sem marqueteiro e perdeu com profissional que era, nas suas palavras, o cobra, o bambambam, o rei da cocada preta. Deputado estadual no terceiro mandato, o petista destaca o poder econômico como elemento decisivo para o processo eleitoral. Ele apresenta dados revelados em um debate na Câmara Federal, indicando que mais de 70% da atual legislatura elegeu-se por ter as campanhas mais caras. “Antigamente se fazia campanha com um único panfleto, em que apareciam todos os candidatos a vereadores e ainda se deixava espaço ao prefeito e ao vice. Falam que o cara que defende isso é um pré-histórico, está fora da realidade, não se dá conta das transformações no mundo. E quando muda para pior? A gente tem de se preocupar”, comenta o sério deputado, dono de um sorriso exibido em quatro situações durante a entrevista no seu gabinete na Assembleia Legislativa.

CAMPANHA Luiz Armando Vaz fotografou Tarso Genro em 1992

DINHEIRO Raul Pont critica a influência do poder econômico


MARQUETEIRO O publicitário gaúcho Fábio Bernardi não acredita nos superpoderes da controversa figura política das eleições Voltando mais ainda no tempo, encontra-se as histórias do jornalista Carlos Bastos, 77 anos. Dono de uma memória impressionante e ainda ativo na profissão, ele recupera com entusiasmo um detalhe fundamental da campanha de Jânio Quadros ao Palácio do Planalto em 1960. “A chegada do candidato à presidência de trem em uma cidade tinha um efeito psicológico impressionante. Geralmente, o comício era feito na própria estação férrea”, revela Bastos, que cortou o Rio Grande dentro de um vagão naquela disputa. Anos mais tarde, em 1990, ele coordenou, no rádio e na TV, a corrida de Alceu Collares ao governo do Estado. Quando a internet ainda não existia e a lei eleitoral era menos rígida, um pedaço de papel tomava conta das cidades durante os meses da busca por votos: o santinho. Sobre esta tática publicitária, Bastos cita a receita de um importante senador. “Para uma pessoa conhecida, da mídia, famosa, ele dizia que não precisava fazer muito. No dia da eleição, bastava inundar os locais de votação de santinhos e estava eleito”, confessa.

Uma rápida leitura do álbum em preto e branco da campanha de Tarso Genro à prefeitura da Capital em 1992 basta para apreciar uma outra era: a dos caras pintadas, do bandeiraço, da caminhada, da passeata e das carreatas, uma legião de chevettes e fuscas percorrendo a cidade. Dos comícios lotados no Largo Glênio Peres aos “ptzinhos”, uma garotada infernal pintada de vermelho. O autor das imagens, o fotógrafo Luiz Armando Vaz, na ativa no jornal Diário Gaúcho, lembra com nostalgia desta época. “Em um comício com a presença do Lula, na frente da prefeitura, não tinha lugar para as pessoas respirarem. Era um troço arrebatador. E quando o ex-presidente falava, era um silêncio total. Nunca existiram caminhadas com tanta gente como as nossas. Uma loucura”, esclarece. Vaz conta que pagava ao partido pelos santinhos que distribuía, de tanto orgulho que tinha em se envolver com a militância. E na memória, espaço até para a culinária. “Nunca comi tanto arroz com galinha como naquela campanha”, confessa. Quem conta outra história curiosa é Fábio Bernardi. O ano

é 1996 e a disputa, pelo cargo de prefeito da Capital. Um dos responsáveis pela campanha de Yeda Crusius, ele revela que era muito comum mandar cinegrafistas acompanhar as ações dos adversários. Em uma dessas situações, a câmera captou a invasão de um caminhão por dezenas de populares. Todos em busca de uma camiseta e um boné do candidato, que desapareciam em questão de minutos. Tanto Bernardi, Pont e Bastos concordam com uma coisa: não existe uma lógica para se ganhar eleição. O contexto político pode detonar as candidaturas fortes e engrandecer as fracas. Um perfil talvez conquiste a população em um ano, em outro não.

Um mundo novo

A internet e as redes sociais entraram de vez no vocabulário político nas eleições de 2010. De uma hora para outra, candidato tinha de ter Twitter, Facebook e Orkut, mesmo sem nem saber que bichos eram esses. Para se ter uma ideia, o jornal Zero Hora chegou a publicar os dez mandamentos do bom uso do microblog de 140 caracteres. E o eleitor,

muito melhor preparado, usou o mundo virtual para amplificar deslizes, como o de José Serra, postulante a uma vaga no Palácio do Planalto, que ao falar de brasileiros “como ele, como a mãe dele, como a Vânia que é tua mulher”, saiu assim, comendo todo mundo em um vídeo que virou webhit e gerou o perfil @serra_comedor. Também foi por meio de sites e do Youtube que os prejudicados pelo pouco tempo de tevê puderam expandir a audiência com debates e transmissões online. O embate campanha nas ruas versus mundo virtual gerou, inclusive, um site na internet que se resumia a um slogan simples: “Você suja a minha cidade, eu sujo a sua cara”. A ação incentivava a pichação de cavaletes e santinhos para posterior divulgação em um endereço eletrônico. Ainda em 2010, o expresidente Lula classificou o Twitter como uma “escravização”. “Tem gente que acorda duas horas da manhã para ficar tuitando. Tem gente que levanta para falar: ai, acordei, perdi o sono. O que eu tenho a ver com isso? Vai dormir, pô!”, disse o barbudo. revista exp

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eReligião

CRUCIFIXO Símbolo em bronze agora é mantido no Museu do Tribunal de Justiça do Estado

O PODER

político da fé

A fé e a moral professadas pelos elementos religiosos ainda são motivos de discussão, mesmo após mais de 2 mil anos de história do cristianismo

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YASMINE SANTOS

O

movimento social da Liga Brasileira de Lésbicas, juntamente com as ONG Somos, Nuances, Themis, Marcha Mundial das Mulheres e Rede Feminista de Saúde, ingressou no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em março, com um pedido para retirada de crucifixos e objetos que façam referência às crenças, consideradas individuais, em locais públicos. Historicamente, no paganismo romano, o imperador era a autoridade maior, considerado Sumo Pontífice. Com o fim do Império Romano, houve um vazio de poder, e alguns monarcas buscavam na Igreja pessoas cultas e apoio ideológico. Alguns soberanos incorporavam os papas à política como forma de retribuição ao conhecimento que tinham. Nas sociedades antigas os poderes eram muito ligados uns aos outros. O faraó era o todo poderoso no Egito Antigo. A separação dos dois poderes, de um lado espiritual e religioso e de outro o do estado, tem a origem na própria Igreja Católica, pois foram os papas no final do mundo antigo, nos séculos 4 e 5, que estabeleceram a divisão dos poderes em temporal – ligado aos reis, ao poder da espada – e espiritual – aos religiosos católicos. Assim foi o caso de Gelásio I, um dos primeiros que ao assumir o papado, efetuou a distinção entre o poder temporal dos imperadores e o espiritual dos pontífices, por meio da epístola Duo Sunt, que versava sobre a competência das duas autoridades, de forma individual. Os bispos, de acordo com essa teoria, seriam superiores ao poder temporal. Estabeleceu ainda que a figura do Papa não poderia ser julgada por ninguém. Baseando-se na ideia presente na Constituição Federal do Brasil de 1988 de que o estado é laico, iniciou-se uma discussão sobre o uso de símbolos que representam o cristianismo, como a instalação de crucifixos, em locais públicos, que vai ao encontro desse conceito. Para garantir ao mesmo tempo a liberdade coletiva e a liberdade individual, a laicidade distingue

o domínio público e o privado. Naquele se exerce a cidadania e neste se exercem as liberdades individuais (de pensamento, de consciência, de convicção). Assim, o espaço público pertence a todos e é indivisível: nenhum cidadão ou grupo deve impor as suas convicções aos outros. Para que todos se sintam integrante do social, independentemente de crenças e escolhas, o Tribunal de Justiça do Estado considerou procedente o pedido de retirada de crucifixos de locais públicos e no espaço do TJ já não é mais possível ver a cruz que antes chamava atenção no décimo segundo andar do prédio de número 1565, localizado na Av. Borges de Medeiros, no centro da Capital. No alto, sobre a bancada central da sala de reuniões o prego que antes sustentava o Cristo em metal na cruz de madeira é o que restou na parede, sozinho. A integrante da Liga Brasileira das Lésbicas do Rio Grande do Sul, Roselaine Dias, refere-se à manifestação como uma medida de contenção à intransigência demonstrada através dos símbolos. “Porque, na verdade, é uma forma de dizer: nós professamos uma única fé aqui. A nossa contrariedade não é em relação a fé, mas o que esses símbolos subjetivamente trabalham sobre a construção de políticas públicas no estado e no Brasil”, alega.

O Brasil laico

O laicismo surge, como corrente filosófica, em meados do século 20, evidenciado pelo distanciamento do ordenamento jurídico dos dogmas religiosos. Tal distanciamento implica em dois pontos: o Estado não interfere em assuntos religiosos e a religião não interfere nas leis. A mistura e influência dos interesses religiosos no setor político é o que preocupa e põe em xeque a laicidade do governo, pois discute os limites entre a cultura brasileira e os objetos de cunho devoto. De acordo com a historiadora Eliane Silveira, a relação de política e religião esteve sempre presente nas conexões sociais da civilização. Para interpretar a simbologia representada nos elementos é necessário considerar a identidade e cultura histórica, reconhecer o patrimônio

O estado nunca é imparcial. Teoricamente e idealmente o Estado teria que ter essa imparcialidade. ELIANE SILVEIRA, historiadora

cultural que pode significar não apenas o cristianismo através da cruz, como também a justiça. “Um homem foi crucificado e morto injustamente, a cruz serve para lembrar que a justiça é um ideal a ser perseguido”, assegura.

Os objetos religiosos

O desembargador Claudio Baldino, vice-presidente do TJRS, foi o relator do processo de retirada dos crucifixos e símbolos das dependências do Tribunal. Para ele, a polêmica é de extrema importância, já que discute o regime da Constituição Federal e reflete a relação do Estado para com os cidadãos. Baldino ressalta o perigo da influência da Igreja sobre o Estado, retorna à Idade Média, exemplificando pelos abusos que daí advieram, como as Cruzadas e a Santa Inquisição, citadas como exemplo de causas que levaram, no âmbito do mundo ocidental, à laicidade estatal. No rol dos direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988 assegura aos cidadãos a liberdade religiosa, a liberdade de crença e de culto, além da igualdade, independentemente de suas convicções religiosas. Em proteção a essa liberdade e igualdade de condições o pedido de retirada dos objetos que fazem referência a quaisquer religiões foi aceito pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A influência das religiões no campo político pode ser percebida claramente nos acordos de assuntos vetados para serem discutidos na mais recente eleição presidencial pela petista Dilma Rousseff e pelo tucano José Serra, que assinaram documentos se limitando a não opinarem diante das polêmicas sobre o aborto e a união homoafetiva. Eles excluíram de suas propostas

a legalização do direito à interrupção da gravidez e optaram por falar “direito à vida” para agradar aos cristãos de todas as correntes.

O vínculo identitário

No livro Religião e Política no Brasil Contemporâneo o filósofo Renato Janine Ribeiro faz referência ao descrédito crescente que os brasileiros têm dos políticos tradicionais. Isso favorece o surgimento de novos atores oriundos de movimentos sociais e grupos religiosos que conseguem agregar politicamente as pessoas e trazer uma nova energia para a esfera política, segundo o filósofo. A identidade religiosa é muitas vezes usada para mobilizar eleitores através da empatia e do voto daqueles que estão cansados da corrupção e da imagem negativa dos políticos e anseiam por mudanças. Há uma necessidade de reconhecimento de identificação entre os atributos eleitorais selecionados pelos que disputam os cargos eletivos no país. A obra propõe que esse vínculo encontra-se estreitamente associado à ideia de “pertencimento”, de inclusão numa totalidade abrangente que guarda, ou deveria guardar, as características da vida comunitária. Os compromissos políticos provenientes da ligação de identidade subvertem os princípios teoricamente consagrados de representação política. A democracia garante que não há um controlador. O governo é decorrente das suas forças políticas de organização. É um pacto de acordos sociais, políticos e econômicos que determina o Estado. Há uma preocupação dos movimentos religiosos de salvaguardar os valores religiosos, por isso existe a presença de representantes que são pastores evangélicos em partidos como o Partido Republicano Brasileiro, esclarece a historiadora Eliane Silveira.

Irmãos e irmãs

O crescimento do número de parlamentares evangélicos nos últimos anos é vertiginoso e acompanha o número de pentecostais na população em geral. Segundo dados do IBGE, revista exp

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de 1991 a 2000, a porcentagem de pentecostais na população brasileira cresceu de 5,6% para 10,4%. Entre 2002 e 2006, o número de deputados pentecostais saltou de dois para 18. O sociólogo Marcius Vieria afirma que essa presença começou a se firmar às vésperas da Assembleia Constituinte, em 1986, quando circularam fortes boatos de que a nova Constituição Brasileira, sob influência da Igreja Católica, colocaria em risco a liberdade religiosa. Desde então, a bancada evangélica no parlamento passou a ser formada majoritariamente por neopentecostais – principalmente por integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus e da Assembleia de Deus. O cristianismo não tem mais a presença pública que tinha até meados do século passado. A modernidade trouxe consigo a possibilidade de um estilo de vida secular, com instituições sociais alternativas à Igreja ou à religião. O ser religioso não é mais necessário para a integração social dos indivíduos, uma vez que existem outras formas de encontrar sentido e direção na vida, o que aparece como uma alternativa à moral pregada pelos preceitos de religiões. As novas formas de sentido para a vida passam pelo campo da razão. A função da religião em uma sociedade pode ser alienante se não se considerar o discernimento embasado na racionalidade. É essencial separar as crendices para considerar algo como verdade. Roselaine Dias, da Liga Brasileira das Lésbicas, acredita que existe uma moral préestabelecida. “São preceitos de formação, sendo assim, qualquer pessoa que é contra a regra ética normativa é contra a forma pré-estabelecida de relações dos que não são heterossexuais.” E exemplifica: “Numa cidade do Interior, um jovem foi espancado porque é gay. Os adolescentes são criados para viver relações heterossexuais. Um adolescente que diz ‘eu sou gay’ esta comprando uma briga para si”. Ela chama a atenção para a tolerância religiosa, discutida através do conceito de laicidade, que também deve considerar a intolerância e a violência que os homossexuais sofrem. “Essas

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Não há uma discussão a respeito da intolerância e da violência que os homossexuais sofrem. ROSELAINE DIAS, integrante da Liga Brasileira de Lésbicas

a permissão do divórcio, a luta pelo direito da mulher, dos indígenas e das minorias sexuais, o direito ao aborto em casos de fetos anancefalos, etc.”, ressalta Roselaine. A Igreja Católica tem uma posição e não aceita o ponto de vista de algumas práticas modernas, mas não ocorrerá

como no passado. A historiadora pondera que a luta para conseguir isso não é eliminar as práticas religiosas e suas simbologias. “É preciso uma discussão que vá alem do campo jurídico, considerações em todos os aspectos para que se possa defender o que parecer cabível”, alerta Eliana.

ações interferem na vida das pessoas. Imagina o menino que sofreu isso, vão ter outros que se sentirão ameaçados e vão se reprimir. Acaba tendo uma repressão. É uma intolerância.” A historiadora Eliana Silveira observa que se organizar a partir da ideia da tolerância de quaisquer prática religiosas é preceito fundamental para uma sociedade igual e livre. Para ela, os grupos que solicitaram a retirada dos símbolos cristãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não estão praticando a tolerância religiosa. “Tira-se um bem do patrimônio artístico e cultural. É um excesso, e o excesso é um desrespeito a instituição. O crucifixo é um simbolismo cultural. Uma questão de formação de identidade através da história”, defende.

O perigo da influência

O fato de haver uma religião civil formada a partir dos valores morais é apontado como um temor. O Estado passa a ter poder totalitário neste caso, como foi com o Nazismo e o Fascismo. Neste caso, o medo consiste em a sociedade ser governada de forma controlada, baseada nas morais pregadas por uma determinada crença. O alarme é o que pode haver por trás da cultura, como uma série de preceitos morais que a coletividade não está disposta a romper e por isso age de forma a discriminar. A construção de uma sociedade justa e democrática implica a mudança nas tradições, pois essa é a dinâmica da vida social. “Há decisões políticas que devem ser tomadas que vão de encontro à tradição para se obter uma sociedade mais democrática e equitativa. Como foi o caso do voto feminino e dos analfabetos,

CENÁRIO Antes, a cruz de bronze ficava acima da porta do TJRS


e

Haiti

UM PAÍS SOB

escombros Chrislyn Bastien é um dos haitianos que não entrou para a trágica estatística de 316 mil mortos no histórico terremoto que devastou parte do país em janeiro 2010 VINICIUS DUARTE

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horas e 53 minutos: o chão começa a tremer. As paredes estão vibrando, assim como todos os móveis da casa. Do lado de fora, gritos, gemidos, choros, paredes que estouram sobre o chão e ferros que se envergam como folhas de papel. Nada que assuste mais que a vibração da terra sob os pés. A mãe de Joseph Chrislyn ajoelha-se na sala e começa a orar. A cristã acredita que o próximo sinal será o som das sete trombetas, descritas na Bíblia como o som que anunciaria o Apocalipse. A irmã de Chrislyn corre até a mãe e ajoelha-se, abraçando-a. Acredita que o ato pode levá-las juntas ao paraíso. O que a irmã não imagina é que o desastre não era o Apocalipse descrito na Bíblia Sagrada, mas uma prova de que a natureza poderia ferir profundamente uma nação sem acabar com tudo de uma vez só. Chrislyn não estava no Haiti naquela tarde do dia 12 de janeiro de 2010. A República Dominicana foi o destino escolhido para aproveitar alguns dias das férias da Universidade de Quisqueya, onde cursava Engenharia de Produção. No momento do primeiro tremor, o jovem acompanhava uma amiga em um restaurante no centro da capital dominiquense. O almoço foi interrompido. “Terminava de almoçar quando ouvi comentários sobre os tremores. Um homem dizia que o Haiti estava destruído. Resolvi voltar correndo para o hotel e tentar contato com família e amigos, mas nenhum telefone atendia. Ao abrir o site da CNN e ver o nome do meu país em

PROVAS Chrislyn conserva os certificados dos 18 meses de trabalho realizados em ONGs destaque entrei em desespero. Só pensava na minha família”, recorda. O quarto do hotel ficou desorganizado. Enquanto empurrava as roupas contra a abertura da mochila, Chrislyn sentia o suor correndo pelo rosto. O nervosismo e as incertezas eram os combustíveis para que o caminho até o aeroporto fosse realizado no menor tempo possível. O que não era garantia de entrada no país. A primeira tentativa de cruzar a fronteira parou nos militares que faziam a segurança do Aeroporto Nacional da República Dominicana.

A primeira dificuldade era a comunicação: os haitianos falam francês, enquanto o idioma espanhol é a língua oficial da Republica Dominicana. Um homem que acompanhava seu desespero passou a traduzir seus apelos aos soldados. Mais uma negativa. Segundo os soldados, a entrada no Haiti era impossível devido as condições precárias dos aeroportos e das ameaças de novos tremores. Chrislyn foi tomado pela mesma reação de algumas pessoas que estavam no saguão do aeroporto. O desespero transformou-se em choro e descontrole.

“A única certeza que eu tinha era que entraria no Haiti. Nem que fosse atravessando a nado o Lac Azuei, mas eu entraria no meu país”, confrontou o jovem, fazendo referência ao lago que divide o Haiti da Republica Dominicana. A persistência lhe rendeu oportunidades. Durante aquele dia, chegariam jornalistas de diversas partes do mundo, porém, a grande maioria falava apenas inglês e espanhol. A ajuda aos jornalistas possibilitou a entrada em seu país um dia depois de receber a negativa dos militares. revista exp

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Foto: AFP Foto: AFP

Os primeiros passos após entrar na capital Porto Príncipe deixaram Chrislyn ainda mais desesperado com a destruição. A entrada na rua do Palácio Presidencial e da Catedral de Notre-Dame (ambos completamente destruídos) fez com que o rapaz pensasse na impossibilidade de sua casa ainda estar de pé. No que sobrou do asfalto, os mortos eram arrastados e empilhados como lixo pelos tratores. A mistura de escombros, cadáveres e feridos assustava cada vez mais o haitiano que chegava em comboio com jornalistas, tropas de ajuda e ONGs de apoio. O encontro com família aconteceu em um alojamento criado para abrigar os sobreviventes. A família conseguiu escapar com ferimentos leves do terremoto. O longo abraço e a emoção em rever mãe e irmãos confortou, momentaneamente, Chrislyn. A próxima procura era pela namorada que, duas semanas antes, decidiu não viajar para a República Dominicana para aproveitar o carnaval haitiano. A chegada ao edifício de cinco andares onde a garota ficara hospedada foi mais um choque. O prédio resumia-se a uma sanfona de concreto e aço. Em um canto, ainda preservado, estava sentada uma amiga de sua namorada. A jovem, com pouca força para falar, teve as duas pernas amputadas no acidente, mas conseguiu dar a notícia que Chrislyn esperava não ouvir: a namorada estava ali no momento

SOBREVIVÊNCIA Mulheres disputam as doações entre uma multidão desesperada do desabamento. O corpo nunca foi localizado entre os 316 mil mortos na catástrofe. A morte da namorada foi recebida com profunda tristeza. Nas duas primeiras semanas precedentes a volta ao país, Chrislyn consumia apenas xícaras de café e pequenos pedaços de pão. Durante a noite, o frio e a ameaça de saqueadores impediam o privilégio de descansar. O trabalho de tradutor e intérprete, que possibilitaram a entrada de Chrislyn no Haiti, abriu portas para o trabalho em ONGs que foram ao país depois da tragédia. Em menos de um mês, assumiu o cargo de coordenador na Oxfam International, confederação formada por 13 organizações e mais de 3 mil parceiros, que atua em mais de cem países. Na Cruz Vermelha Americana, foi nomeado assistente coordenador de riscos e desastres, e na ONG

ESTATÍSTICA 316 mil mortes foram registradas no desastre

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Médicos Sem Fronteiras atuou como intérprete. O trabalho nas três organizações fez do cotidiano de Chrislyn um sucessivo encontro com os momentos de devastação do país. O objetivo de quem trabalha em um desastre normalmente é salvar as pessoas que têm mais chance de sobreviver. Os feridos com gravidade são abandonados, assim como nas guerras. “Encontramos pessoas sob os escombros, mas não há muito que fazer. Na maioria das vezes, as pessoas soterradas acabam morrendo sem que possamos fazer nada. Sentimos as dores por eles, mas não podemos fazer nada”, lamentou Chrislyn. No entanto, a morte não foi dolorosa para todos. A afirmativa é baseada em uma visita à CGE, universidade privada do país, em busca de sobreviventes. “Ao chegar na CGE encontramos muita destruição, mas algumas salas resistiram ao sismo. Em uma delas, em que uma viga de concreto trancava a porta por fora, encontramos cerca de 30 estudantes debruçados sobre suas mesas. Eles pareciam dormir, mas estavam todos mortos.” Aos poucos, os olhos se acostumaram com os rastros de morte. Apesar disso, o trabalho nas ONGs rendia uma quantia que mantinha Chrislyn e sua família em uma situação estável. A renda obtida do trabalho nas três entidades somava 2,1 mil dólares americanos (17 mil dólares haitianos). Em pouco mais de seis meses, a família já adquiria uma nova casa com seis cômodos e um carro. “Nunca ganhei tanto na minha vida. O salário era muito bom. Mas minha preocupação passou a ser a minha formação. Como

todas as universidades estavam destruídas no Haiti, procurei mais informações sobre as bolsas de estudo que diversos países passaram a oferecer”, conta. Entre opções como França, Senegal e Tailândia, Chrislyn optou pelo Brasil como destino. A resposta do processo seletivo para escolha dos bolsistas demorou três meses. A conquista da vaga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul era a garantia de conclusão do curso de Engenharia de Produção. “Foi bem difícil deixar minha família, mas precisava concluir o curso. Penso em retornar ao Haiti depois de terminar a graduação e um mestrado. Ainda há muito trabalho a ser feito, e o país precisa de seus filhos para a reconstrução”, conclui. Chrislyn reside na Casa do Estudante da UFRGS, onde divide o quarto com mais três pessoas. Não trouxe nenhuma lembrança que remetesse à vida antes do terremoto. Nem objetos, nem fotos. Nada. Comprou novas roupas e doou as usadas. Tudo para esquecer o que viu. Diariamente, conversa com a mãe e os irmãos através do Skype. A família é a veia que une Chrislyn com o país. Eles são a motivação para o retorno. No Brasil, ainda pretende ingressar em uma pós-graduação para voltar ainda mais qualificado para o país da América Central. Pretende também levar a namorada paulista para conhecer seu país. Assim como Toussaint Louverture, líder negro que comandou a revolução de independência haitiana em 1791, o estudante pretende colaborar na escrita de um novo capítulo na história do seu país. Mais algumas páginas de glória. Mais um capítulo de redenção.


GAÚCHOS NA

reconstrução

De férias em Porto Alegre, casal conta como substituiu a vida no Rio grande do Sul para contribuir na ajuda comunitária à população atinginda pelo terremoto VINICIUS DUARTE

M

artin Wartchow chegou a Porto Príncipe poucos dias depois dos tremores. Deixou na tranquila Porto Alegre a esposa, Elisabeth, e duas filhas, Carolina e Natália. O desembarque naquele pedaço da América Central, no início de fevereiro, foi um choque de sensações: nas ruas da capital haitiana, ainda era perceptível o ‘cheiro’ da morte sob os destroços. Seus olhos nunca tinham visto tanta miséria em 55 anos de vida. O hidrólogo formado pela UFRGS, no entanto, realizava seu sonho antigo de trabalhar com questões de ajuda humanitária. As condições de esgoto e saneamento de Porto Príncipe que, diga-se de passagem, nunca foram estruturadas, chegaram a uma situação crítica após o terremoto. Este cenário, somado à população que ainda vivia nas ruas, era ideal para a manifestação de doenças e até mesmo epidemias, como a cólera. A oportunidade de atuar no Haiti foi buscada por Martin junto a ONG Viva Rio, que atua no país desde 1996 no combate a violência, e, logo após o terremoto, lançou um plano de emergência para contribuir em outras necessidades naquele momento. “Tomei conhecimento do plano e entrei em contato com a ONG para saber mais sobre o processo de seleção. Menos de um mês depois já estava com tudo certo para embarcar”, afirmou. Os primeiros seis meses de trabalho foram como voluntário. Após, efetivou um contrato de

APOIO Martin e Elisabeth participam de ações no Haiti trabalho. Os primeiros 18 meses foram dormidos em uma barraca no pátio do Centro Operacional Kay-Nou (Nossa Casa), sede da Viva Rio no Haiti. Com mais de 90% do sistema de abastecimento de água prejudicado, a primeira ação do grupo coordenado por Martin foi a construção de reservatórios e cisternas, a aquisição de caminhões-pipa, além da distribuição em quiosques. Ao menos para alimentação, a água estava garantida. A construção de biodigestores também foi uma solução importante que contou com a participação do engenheiro brasileiro. Além de abrir espaço para uma obtenção de energia mais sustentável, a cidade ainda combateria o caos no saneamento que era claro em qualquer rua, obrigando a população a viver sobre um

esgoto a céu aberto. Em dois anos inserido em uma cultura rica de tradições, que vive uma realidade que seria degradante, Martin não vê outra solução para o Haiti se não a educação. “Há uma grande desagregação entre a população. O governo não investe e a única solução para melhorar a situação do Haiti é um plano forte de educação a médio ou longo prazo. Não adianta em nada a violência, quando o problema está enraizado na cultura das pessoas”, enfatizou o engenheiro. A esposa de Martin, Elisabeth Wartchow, sempre foi ligada às questões sociais na sua área de atuação: a medicina. Trabalhando há quatro anos no Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde brasileiro, Elisabeth sempre teve certeza de que poderia colaborar no país em que

seu marido atuava há dois anos. E a oportunidade veio. A assinatura do projeto de Cooperação Tripartite BrasilCuba-Haiti, que é uma união de esforços para melhorar o sistema de saúde haitiano, rendeu um convite para assumir a diretoria local do projeto. Desde o dia 9 de junho, Elisabeth tem novo endereço: o Espaço Zilda Arns, mesmo prédio da embaixada brasileira no país. Entre as ações do plano de cooperação, está a formação de 2 mil agentes comunitários de saúde, 800 técnicos de enfermagem e 400 oficiais sanitários. Além disso, a parceria entre os países irá monitorar as medidas de prevenção e controle de doenças, através de campanhas de vacinação e programas educacionais relacionados à saúde. O investimento brasileiro ainda será revertido na construção de um instituto de reabilitação para os feridos no terremoto e três hospitais. Elisabeth, que visitou o país em 2010 para passar o Natal com Martin, está entusiasmada com a mudança, mesmo tendo na sua lembrança a imagem de uma cidade devastada pela miséria e sufocada pelo lixo. O Plano de Cooperação contribuirá massivamente para uma mudança no cenário que presenciou há dois anos. “As população haitiana paga por um serviço de saúde que é muito precário. Não existe nenhum tratamento gratuito, custeado pelo governo. Um dos objetivos mais importantes do Tripartite é estruturar o acesso gratuito à saúde”, conclui a médica. revista exp

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ESCRITÓRIO A prateleira abarrotada confirma a paixão de Helios pelos livros e pelo ensino, herdada do pai

ePerfil

Os Puig

ANARQUISMO E EXÍLIO

A luta de uma família de ascendência espanhola que combateu o franquismo, os nazistas e a ditadura no Brasil tentando preservar a ideologia libertária RAMIRO MACEDO

O

escurecer gelado da tarde de 1° de maio se aproxima da pista de skate do bairro IAPI. A crueza e agressividade do punk rock, saudado por gente de preto, com argolas tanto nas roupas quanto no rosto, fazem parte de um protesto no Dia Internacional dos Trabalhadores. Cabelos tingidos, espetados. Garrafões de vinho circulando

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de mão em mão. Braços erguidos e cabeças sacolejando ao som de um vocal gritado, de garganta. Helios Puig, 65 anos, apenas observa a catarse. Vez que outra acena a amigos que chegam. Invariavelmente estão com camisas de “Vote nulo” ou “Viva La Revolución”. O evento, organizado por eles, se aproxima do fim. Um dos músicos da banda anterior pede a Puig uma contribuição para comprar mais bebida.

Numa noite do ainda mais rigoroso inverno europeu, em 1939, o professor Juan Puig Elias, ativista das lutas sindicais na Espanha, chegava à França juntamente a um grupo de exilados políticos opositores à ditadura de Francisco Franco. Levas de espanhóis entravam no país vizinho diariamente, buscando reconstruir suas vidas após a Guerra Civil Espanhola. Mas a Segunda Guerra Mundial havia estourado. Metade do

exército da França apoiava o regime nazista e, portanto, eram inimigos. A solução foi se reorganizar nesse novo e hostil território. Juan Elias e compatriotas formaram frentes de resistência à invasão alemã. Com a experiência recente dos conflitos em seu país, tinham táticas mais avançadas de guerra. Armavam-se com espingardas e coquetel molotov. O tanque levantava no relevo acidentado da região dos Pirineus e eles


lançavam a garrafa de gasolina com um pano queimando preso na ponta em sua direção. Depois rolavam para o lado tentando se proteger. Durante esse período, fundaram escolas para filhos de combatentes na cordilheira, localizada entre a França e a Espanha. Sobretudo, queriam

resgatar a cultura e os valores embrutecidos pela violência da guerra. Foi lá que Juan Elias conheceu Matilde. Espanhola e loira de traços suaves, por vezes confundida com nazista, foi à França em busca de emprego. Acabou deparando com os escombros dos vilarejos próximos às montanhas. O casal se escondeu na região, mas a Gestapo tinha o nome de Juan Puig Elias como opositor e membro da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Espanha. Havia vários campos de concentração em território francês, com a matriz teórica dos alemães. Juan Elias foi levado a um deles. Viveu a mesma ânsia e dúvidas dos judeus, em meio a execuções sumárias, banhos gelados e câmaras de gás. Com o fim da guerra, reencontrou Matilde. Em 1947, tiveram um filho na pequena cidade de Mouret. Foi batizado de Helios – filho de titãs e personificação do sol, na mitologia grega. “Minha primeira lembrança é de estarmos refugiados numa fazenda no interior da França, chamada Marestain. A guerra tinha recém acabado, mas o ambiente ainda era de violência. Morava com meu pai, minha mãe e um casal de veganos. Pois é, já existiam veganos naquela época”, brinca Helios Puig. “Queimávamos o assoalho para fazer fogo. Tínhamos uma vaca dentro de casa. Uma quadra à frente, havia um paiol onde ficava o feno e a comida dos animais. Frequentemente, soldados alemães se escondiam por ali”, lembra, definindo como de tolerância tácita a relação com os nazistas. “Eles viviam a uma quadra de nós e tínhamos lutado

Eles viviam a uma quadra de nós e nós tínhamos lutado contra eles. Qualquer conversa poderia gerar novos conflitos. HELIOS PUIG

contra eles. Evitávamos o diálogo. Qualquer conversa poderia gerar novos conflitos.” A dura realidade do pósguerra, as cidades em ruínas e o desemprego assolando ainda mais a Europa fizeram com que o casal, junto com Helios e Floreal Puig, filho do primeiro casamento de Juan Elias, decidisse partir para a América. A guerra fria imperava na época, e os Estados Unidos, tentando montar bases estrategicamente posicionadas na Europa, apoiava o regime fascista. Os quackers religião protestante americana de origem britânica, semelhante aos mórmons – ajudaram o governo espanhol a fretar navios trazendo opositores ao regime fascista de Franco, entre eles os Puig. O Castel Bianca tinha o compartimento dos passageiros e o de carga. Centenas de pessoas partiram na segunda ala, com beliches improvisados no dormitório feminino e no masculino. Eram todos opositores ao regime franquista e considerados exilados políticos.

REGISTRO Juan Puig entre os principais nomes da Sociedade Internacional dos Trabalhadores

“A parte dos homens era uma desgraça. Os caras fumavam adoidado, fediam e passavam o dia todo discutindo. Me lembro de entrar para procurar meu pai, assustado”, descreve Helios. Floreal, irmão de Helios, tinha embarcado no navio com sua esposa e um filho pequeno que,, nos últimos dias de viagem, ardia em febre. “Chegamos ao porto do Rio de Janeiro e por questões humanitárias, a família conseguiu uma conexão em um avião para Porto Alegre”, lembra Helios.

Chegada ao Brasil e ditadura militar

“Lembro que não havia absolutamente nada no entorno do Aeroporto Salgado Filho. Fomos direto para o antigo hotel Porto Alegre, na avenida Voluntários da Pátria, em frente a Praça do Coliseu. Poucos dias depois, acabou nosso dinheiro”, conta Helios. A partir dali, sua família mudou-se para o Morro da Glória e se sustentava vendendo verduras no mercado do bairro. Juan Elias não trouxe roupas, dinheiro ou ouro da Europa, mas guardou muitos livros de lá. Queria fazer uma biblioteca. Montou-a no mesmo lugar em que vendia legumes e frutas. Batizou-a de Minerva. “Ao mesmo tempo que ele vinha de uma cultura que valorizava a literatura, chega a um Brasil desinteressado. E com livros em espanhol. Virou um bazar de livros velhos, usados, qualquer coisa”, explica Helios. O casal se aproximou da Sociedade Espanhola dos Socorros Mútuos, tendo contatos de trabalhadores que compartilhavam dos ideais libertários de Juan Elias. “Parecia um ambiente de clube, mas as sociedades italiana e espanhola eram as Unimed de hoje. Amparavam as pessoas. E eram também centros de construção de ideias”, lembra Helios. Além de plano de saúde, funerais e quadro médico, Juan Elias ajudou a criar o chamado Centro Cultural e Artístico, aproveitando a sede, até hoje na rua Andrade Neves, 85. Lá havia palestras e encontros que, além de debater, promoviam acontecimentos de caráter artístico; atividade vista como perigosa em regimes autoritários. Em março de 1964, com o golpe militar no Brasil, o espaço cultural saiu do ar. Os Puig tinham recém aberto uma nova livraria, que também era mal vista. “Ficava no número 16 da Cristóvão Colombo. Volta e meia vinha um professor ou estutante cavocar livros e conversar com meu pai. Era um ponto revista exp

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estratégico. Três quadras para baixo, a estação férrea, onde ficava a rodoviária, ligava-se ao Brasil inteiro e à América Latina”, lembra Hélios. “Nesse período, meu pai estava marcado, até que um dia o prenderam. Ele era tido como maldito de origem. Estrangeiro e exilado.” No começo da ditadura militar brasileira, Helios Puig jogava tampinha nas calçadas, fazia rifas para a igreja, pulava em volta da fogueira nas festas de São João e fazia guerra de estalinhos com os amigos. No fim da adolescência, estudando no colégio Julio de Castilhos, entretanto, começou a viver a atmosfera de autoritarismo sufocante da época. “Nós éramos uma piazada. Não sabíamos muito bem o que acontecia, mas estávamos vendo nossos professores serem presos. O cara que veio ensinar moral e cívica disse no primeiro dia de aula que a turma toda estava automaticamente fichada”, conta. De repente, Hélios foi preso. Fazia uma chapa no grêmio estudantil que se reunia para estudar teorias econômicas e sociologia. Foi o suficiente. Mais tarde, já na faculdade de economia da PUCRS, acabou novamente detido e encaminhado ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops). ”Em 1969, eu apoiava um jornal de oposição que se chamava O Protesto, de vertente libertária. Eu era bancário e fazia a contabilidade. Tratava-se de um jornal regulamentado, com permissão para existir”, explica. Em 1970, foi preso de novo. No entanto, não sairia ileso dessa vez. Foi torturado dentro do Palácio da Polícia.

Futuro libertário

Em um pequeno prédio de rua arborizada no bairro São Geraldo, Hélios Puig se refugia à noite, depois do jantar. “Costuma ir para lá a partir das 21h. Às vezes volta de madrugada”, conta Luan Puig, um de seus quatro filhos. O espaço é destinado às discussões e decisões a respeito do Movimento Sindical Apartidário Anarquista. Cartazes, manifestos, fotos de arquivo pessoal, livros e um quadro negro com metas anotadas compõem o cenário de luz fria. “Meu pai tem uma gráfica lá. Fazem camisetas, cartazes”, explica Luan. No canto lateral esquerdo da porta, ficam empilhadas no escuro uma série de faixas e estampas, junto com baldes de tinta, produtos de limpeza e materiais de serigrafia. Na parede do outro lado, um quadro com rostos de presos políticos brasileiros em preto

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PROTESTO Show no IAPI , quadro lembrando a morte de professor libertário e fotos de arquivo

e branco, todos desaparecidos durante o regime militar. Sindicalismo sempre fez parte da vida de Hélios. “Ouvia muito esse papo na janta ou na saleta onde ficavam a TV e os vinis, mas sempre liguei à Espanha”, lembra. Formado em economia na PUCRS e com mestrado em Planejamento Urbano e Regional, Puig conta que gosta de dar aulas. “Meu interesse é o planejamento urbano. Dei aula muito tempo sobre isso. Quando fui à Espanha, lendo livros sobre minha família, descobri que os Puig são uma linhagem de professores”, revela. Agora, ele divide o tempo de celetista do serviço público em um órgão de pesquisas e estatísticas com a organização de ações do sindicato em sua sala. “Eu, o Hélios e nossos companheiros queremos defender o trabalhador. Nós não somos uma célula que faz reuniões sistemáticas. Nós articulamos eventos. Não temos líderes”, explica o motoboy Ernesto Lenine, que atua com Helios há anos. Foi assim que criaram o protesto do dia 1° de maio, na pista de skate do IAPI, juntando punks e libertários. “A anarquia não é uma linguagem que o

Eu, o Helios e nossos companheiros queremos defender o trabalhador. Nós não temos líderes HERNESTO LENINE, motoboy

trabalhador punk desempregado possui. Eles são indignados. Nosso objetivo é dar personalidade a eles para que se afirmem enquanto indivíduos”, explica Hélios. Depois, procura um hino anarquista na internet, para provar que a trilha do movimento não é necessariamente punk. Com sorriso discreto e fascínio quase infantil, mostra o vídeo de uma milonga argentina saudando o anarquismo, enquanto milhares de trabalhadores gritam palavras de ordem nas ruas de Buenos Aires, nos anos 1930. O hino lembra seu pai, Juan Elias. Hélios quer retomar as atividades do Centro Cultural e Artístico criado por Elias,

lembrando a luta do patriarca dos Puig junto à sociedade espanhola. “Eles tinham uma veia de proletariado indignado. Eram ligados à Sociedade Internacional dos Trabalhadores. Tentavam dar um significado mais avançado as coisas nesse espaço cultural. Não festejavam datas religiosas. A arte, sobretudo, era exaltada como forma de se questionar sobre o mundo”, argumenta Helios. Hoje, mais de 50 anos depois, as lideranças da instituição mudaram. “A diretoria da sociedade espanhola resolveu doar o cemitério do Campo Santo, dentro da sede, depois de deixá-lo abandonado durante anos, sem qualquer obra de conservação. Está cheio de caras com história enterrados, que vão ser substituídos por uma placa de metal com seus nomes. Houve uma assembleia entre os associados questionando a doação. Os diretores a ignoraram. Fui até o Ministério Público, na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, para tentar impedir, mas o processo foi arquivado. Meu pai, Juan Elias, está enterrado nesse cemitério. Ele e os seus companheiros que faziam o agito em outras épocas”, lamenta Helios.


eReligião SEM PRECONCEITO,

IGREJA DE TODOS

Bispo evangélico derruba preconceitos, supera dificuldades e cria primeira congregação de inclusão do sul do país, na zona norte de Porto Alegre

AMIZADE NA FÉ A dupla Anderson Zambom e Vanessa Pereira projeta expandir a congregação para outras cidades do estado HENRIQUE DIEBOLD

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o lado de fora, uma casa simples, com poucas cores, discreta na vizinhança humilde na zona norte de Porto Alegre, mas que protege uma legião de pessoas cansadas de viver nas sombras. A proposta está no nome da Igreja Inclusiva do Brasil: dar oportunidade àqueles que buscam orientação pela fé em Deus, independente de condição sexual.

Fundada em março, a congregação pentecostal evangélica atrai mais fieis diariamente. O criador, o bispo Anderson Zambom, 26 anos, comemora: “Começamos o primeiro culto com mais ou menos 30 pessoas. Hoje transmitimos os cultos pela internet para diferentes lugares e já temos propostas para inaugurar três novas congregações no estado”. A igreja é uma conquista do jovem evangélico, que é

homossexual e buscava unir a vontade de pregar com a liberdade e aceitação de sua condição sexual. “Tive várias namoradas, mas aos 19 anos conheci meu primeiro namorado e descobri o meu caminho”, relembra. Muito jovem e à frente da Igreja Assembleia de Deus, em Santa Maria, Zambom foi forçado a abandonar o exercício de pastor em 2003 por causa do preconceito. Mais maduro, veio a Porto Alegre no ano passado

e se uniu à pastora Vanessa Pereira, 27, para formar a nova congregação. Outras dez pessoas se juntaram como co-fundadoras. Os cultos tem quase três horas de duração e são animados. Música, interação entre os fiéis e reflexões sobre textos bíblicos fazem parte dos encontros. Louvores ecoam por mais de duas horas, enquanto a maioria não consegue segurar as lágrimas. Na sala principal da igreja, uma bandeira com as cores do arco-íris na parede. revista exp

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RECEIO Fiéis ainda evitam mostrar o rosto nos cultos, já que as famílias não sabem sobre a condição sexual dos frequentadores Flores coloridas e uma Bíblia sobre a mesa, cuidadosamente arrumada com taças, pães e frutas, além de vários corações azuis colados nas paredes. Em um cartaz, o contorno de um crucifixo colorido. Tudo arrumado pelo próprio bispo. “Adoro decorar e tornar o lugar o mais acolhedor possível”, revela. Entre os frequentadores estão homens, mulheres e idosos. Alguns vêm por curiosidade, outros buscam aceitação. “Nunca me senti à vontade em outras igrejas. Sempre precisei esconder uma parte importante de mim”, revela Marcos, 34 anos,, motorista de ônibus de Porto Alegre. Anilíria, 20 anos, veio de Eldorado do Sul para seu primeiro culto. Ela vem pelo mesmo motivo que a maioria dos frequentadores “Soube pela Internet. Frequentei outras igrejas que sabiam do meu homossexualismo, até respeitavam, mas era visível que aceitação não era plena”, lamenta. As redes sociais são aliadas dos pastores. Com transmissão ao vivo dos cultos pela internet,

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Parece óbvio, mas precisamos pregar que ser gay não é um pecado. ANDERSON ZAMBOM, bispo

pelo endereço twitcam. livestream.com/aekbv, a igreja consegue atingir fiéis de várias partes do Rio Grande do Sul, que não podem comparecer aos encontros. “Já tivemos mais de 50 pessoas online nos assistindo por streaming, isso é mais do que as 30 pessoas que cabem na igreja toda”, comenta os bispo Anderson. Uma página dedicada à congregação no Facebook já tem mais de cem membros. O medo ainda é constante, por isso muitos participantes evitam dar entrevistas e preferem não

ser identificados. Beatriz, 68 anos, justifica o anonimato: “Minha família não sabe de nada. Ainda não é hora de contar”. O culto também recebe jovens de 14 e 15 anos que procuram orientação. “Muitas vezes eles só precisam de alguém para conversar, só querem ser ouvidos” comenta o bispo. As pastoras e o bispo preparam uma união entre duas mulheres, que deve acontecer em dezembro. Há cinco anos juntas e com uma filha adotada, Roberta e Gabriela querem ser reconhecidas como um casal. “Os cultos são os momentos que tiramos durante a semana para lembrar que o amor não tem limites”, lembra Roberta, com um suspiro que beira a mais pura sensação de alívio. “Queremos mostrar a todos o nosso amor e provar que só queremos cuidar da nossa filinha”, apela Gabriela. Desde a inauguração em março, não houve incidentes nem ameaças aos fiéis. A pastora Roberta Santos, 32 anos, uma das fundadoras, celebra a boa recepção no bairro. “Os

vizinhos nos entendem. Um casal heterossexual que mora ao lado vem quase todos os dias”, revela. Mesmo assim, o plano é, até o final do ano, mudar-se para o centro de Porto Alegre. O objetivo é ficar mais próximos dos fiéis e também expandir o espaço físico da igreja. “Queremos seguir com nossos projetos em paz. Quanto mais pessoas quiserem se juntar a nós, melhor”, convida a bispa Vanessa. Sentimento que é compartilhado por todos os presentes. Um casal de homens que veio pela primeira vez saiu satisfeito. “O trabalho que eles fazem é maravilhoso. Choramos e nos alegramos. Saímos daqui mais leves e de alma renovada”, elogia Ricardo, que promete voltar mais vezes à igreja com o parceiro, sem receio.

Os cultos ocorrem quartas, sábados e domingos, 19h30min, na rua Álvaro Vieira Andrade, 134, Jardim Ingá, Porto Alegre


LIBERDADE Alexandra Kirinus destaca a improvisação da mulher como um diferencial do ritmo

eTendência RITMO AMERICANO,

swing brasileiro

O west coast swing é a nova moda da dança de salão no Brasil e tem conseguido cada vez mais adeptos SOPHIA KATH

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lasticidade, liberdade, musicalidade e conexão são as palavras que definem o west coast swing (WCS), o ritmo que está invadindo as escolas de dança de Porto Alegre e de todo o Brasil. A dança tem ganhado diversos adeptos no país, principalmente entre o público jovem. Na Capital, o ritmo começou a fazer sucesso este ano. Diversas academias passaram a oferecer aulas de west coast e as classes estão lotadas. Na escola Kirinus e Nunes Centro de Danças são oferecidas duas aulas de west,

uma para iniciantes e outra para uma turma que começou em agosto do ano passado. “Nos últimos anos, o west vem encantando o mercado brasileiro, e aqui no Rio Grande do Sul os dançarinos de salão viram a oportunidade de desenvolver sua dança com uma modalidade que exige uma técnica diferenciada. Outro fator que atrai muito é o fato de as músicas serem as que tocam na noite, nos clipes de sucesso, nos programas de TV musical”, avalia Alexandra Kirinus, professora e dançarina. O west coast é uma dança contemporânea que permite uma liberdade maior para

as mulheres e exige muita improvisação do casal. Além disso, a trilha inclui as músicas que tocam nas baladas atualmente, o que acaba atraindo mais o público jovem. A modalidade teve origem nos Estados Unidos e deriva do lindy hop. O responsável por trazer o WCS para o Brasil foi o catarinense Guilherme Abilhôa e sua parceira Aline Tombini, em 2007. O interesse dos dançarinos pelo novo ritmo surgiu quando circulou entre os professores de dança de Florianópolis um vídeo do casal Jordan Frisbee e Tatiana Mollmann, principais bailarinos do ritmo. Abilhôa conta que

quando recebeu o vídeo, ele e muitos colegas não sabiam que estilo de música era. “Cada um dizia uma coisa, uns diziam que era salsa, outros diziam que era lindy, outros, como eu, ficavam tentando identificar alguma coisa, mas não conseguiam. Foi então que comecei a pesquisar outros vídeos e descobri que era west coast swing”, conta. No início de 2007, Abilhôa passou um mês nos Estados Unidos fazendo aulas particulares de west. Depois trouxe o que aprendeu para o Brasil e aos poucos outras escolas também foram se interessando pela dança. Em 2011, Abilhôa conquistou a primeira colocação em duas categorias do Swing Diego, mais importante evento voltado ao ritmo nos EUA. Para muitos dançarinos, o west é considerado um dos ritmos mais difíceis da dança de salão, por ter quatro variações de passo básico apenas para começar a dançar. Além disso, permite uma improvisação tanto da dama quanto do cavalheiro, desde que ambos respeitem o tempo musical. “Um fator bem acentuado nessa dança é o fato do improviso ser um dos fundamentos mais importantes. O homem propõe o caminho e a mulher passa improvisando o passo”, explica. Alexandra afirma que para dançar west é necessário muita leveza nos passos e conexão com o par. Conforme a professora, deve-se imaginar que existe um elástico nos braços do casal que os faz se afastarem para fazer os movimentos e voltar ao ponto de origem. A fisioterapeuta Daiani Rodrigues começou a fazer aulas de west coast este ano e destaca a liberdade de criação e a abrangência das músicas como as características que mais a atraem. “O west coast era a dança que faltava para eu poder dançar qualquer música em festas normais, que não são de dança de salão”, comenta. O WCS é considerado a tendência da dança de salão atualmente. Muitos profissionais acreditam que ela terá um grande boom, assim como o zouk há alguns anos. “O crescimento do ritmo está na mão dos profissionais que ensinam. O WCS tem tudo pra ser o ritmo do momento. O zouk se popularizou quando começou a usar músicas pops para ser dançado, e com esse atrativo as pessoas foram conhecendo mais sobre ele. O west tem essa característica também”, considera Guilherme Abilhôa. revista exp

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e Educação Alta taxa de repetência, abandono escolar e piso salarial do magistério abaixo do determinado pela lei revelam deficiências do ensino básico

Equação mal-feita PROBLEMAS Combinação de recursos mal-empregados e políticas falhas prejudicam ensino

GIORDANO TRONCO

“E

u entrei no Ensino Médio sem saber Bhaskara.” A fórmula matemática de Bhaskara é usada para descobrir as raízes de uma equação polinomial de 2º grau. Ela leva o nome de um matemático indiano nascido no século 12, embora alguns creditem sua descoberta aos antigos babilônios. No Brasil, a fórmula de Bhaskara é ensinada no final do Ensino Fundamental, o que faz com que o caso de Vicente Crema, 16 anos, o aluno do 2º ano da Escola Estadual Presidente Costa e Silva que admitiu entrar no Ensino Médio sem saber Bhaskara, não pareça

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revista exp

tão grave: ele apenas demorou mais para aprender. O problema é que o caso de Vicente não é a exceção, e sim a regra: estudantes terminam o Ensino Fundamental sem saber como fazer cálculos básicos ou escrever uma redação. As séries são galgadas sem a certeza de que o aluno tenha aprendido o necessário para prosseguir os estudos. Desde 1996, com a assinatura da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), cada ente federativo (União, estados e municípios) é responsável por um grau de ensino específico. Os municípios, por exemplo, são encarregados de prover à população os ensinos Infantil e Fundamental, das creches

à nona série. A LDB de 1996 também possibilitou aos municípios escolher outros sistemas educacionais além da organização seriada do ensino, em que a trajetória de aprendizagem é dividida em séries. Porto Alegre optou por implementar o sistema de ciclos de educação continuada no Ensino Fundamental, sistema que não impede o aluno de avançar nos estudos caso não atinja os objetivos do ciclo anterior. A LDB estabelece que a educação continuada “contribui para viabilizar a universalização da educação básica, que é o impulso para as nações se projetarem e competirem mundialmente, e também é um meio de garantir o acesso e

principalmente a permanência do aluno na escola”. Vicente e duas de suas colegas, as primas Bruna e Cíntia Siqueira, ambas com 16 anos, passaram por uma educação fundamental continuada dentro do sistema de ciclos. Bruna resume a sua impressão em três palavras: “Era uma droga”. O sistema de aprendizado em ciclos foi desenvolvido por psicólogos e pedagogos para respeitar o ritmo de cada criança. Enquanto no ensino seriado o aluno deve sair da primeira série já alfabetizado, o sistema de ciclos aceita que algumas crianças possam demorar até os nove anos para aprender a ler. Após o Ensino Fundamental, não há mais necessidade dos ciclos pois, segundo os especialistas, os adolescentes têm capacidades cognitivas de aprendizado semelhantes. Na prática, os estudantes avançam os ciclos sem a obrigação de aprender conteúdo algum, até chegarem ao Ensino Médio, cuja responsabilidade é do estado e onde as escolas reprovam aqueles que não atingem a média. Despreparados, muitos desistem de estudar. A taxa de abandono escolar em Porto Alegre, que é de 2,2% nos anos finais do Ensino Fundamental, salta para 10,5% no Ensino Médio. Cíntia relata casos de colegas que chegaram ao 1º ano do Ensino Médio sem saber o necessário para prosseguir: “No Fundamental, os alunos vão passando sem aprender nada.


Nem por falta eles reprovam. Daí, quando eles chegam ao Médio, eles veem que têm que se puxar e desistem. Aqui (na Escola Costa e Silva) eu passei por um período de adaptação, senti muito o baque. No Fundamental, os professores ficavam o ano inteiro na mesma matéria”. Bruna conta que aqueles que se mantêm na escola não ficam necessariamente por causa das aulas: “Acho que continuam por causa da amizade, dos amigos. Pode ser que se os amigos abandonarem a escola, eles abandonem também”. De cada cinco alunos gaúchos do Ensino Médio que, apesar das dificuldades, decidem continuar estudando, um acaba sendo reprovado. Esse é um número alto mesmo em termos de Brasil: a porcentagem nacional de reprovação no Ensino Médio é de 13,1%; no Rio Grande do Sul, ela é de 20,7% e vem piorando a cada ano, com os índices das escolas públicas sempre piores que os dos estabelecimentos privados. Qualquer aluno de escola estadual conhece vários casos de abandono escolar. Vinícios Cavalheiros, 17, colega de Vicente e das primas Siqueira, conta que um de seus amigos abandonou os estudos por sentir-se burro demais. Ele ri, lembrando que o amigo dormia durante as aulas. Se por tédio, cansaço ou simplesmente por não compreender a explicação da professora, não se tem certeza. No pátio da Escola Costa e Silva, Vinícios, Vicente, Bruna e Cátia conversam. Um deles diz, sem citar fontes, que planejam implementar o sistema de ciclos no Ensino Médio. Todos acham a ideia horrível. Cíntia é a mais revoltada. “Vão acabar com a educação no Brasil”, lamenta.

média, sete anos, mesmo número que os adultos do Zimbábue. O tempo de permanência do aluno na escola pode ser parcialmente explicado pela baixa qualidade do ensino, que por sua vez é explicado pelo modelo de política educacional brasileiro. Durante os últimos governos, o Brasil teve duas opções de desenvolvimento para a Educação: políticas de qualificação do ensino e investimento em recursos humanos ou expansão da rede de ensino. Em outras palavras, o país podia qualificar o sistema primeiro e expandi-lo depois ou qualificar depois e universalizar primeiro. As políticas adotadas tenderam para a segunda opção. Hoje, diferentemente de 30 anos atrás, o ensino é aberto para todas as classes sociais. A própria Escola Costa e Silva é um bom exemplo. João Thadeu Almeida, diretor-geral adjunto de Educação do RS, foi aluno da instituição há mais de quatro décadas. Na época, o Costa e Silva era frequentado majoritariamente por filhos de famílias de classe média. A maior parte dos colegas de Almeida já estava na universidade um ano após a conclusão do Ensino Médio. “Mas aí eu pergunto: quantos de nós tínhamos pais analfabetos?” provoca o diretor. Nenhum. A população de baixa renda não tinha acesso nem mesmo à educação pública. “A escola era seletiva, no meu tempo. Agora é inclusiva. O problema é que o Ensino

Médio não se preparou para a universalização. Estamos incluindo uma diversidade grande de alunos e a escola não está preparada.” “Não estar preparada”, para a professora de Pedagogia da PUCRS Helena Sporleder Côrtes, significa falta de investimentos em recursos humanos. Não há incentivos para ser professor no Brasil, quanto mais no Rio Grande do Sul, onde o piso é abaixo do determinado por lei. Helena credita a má remuneração do magistério a um fator cultural. “Desde sempre”, explica a mestra, “professor é uma profissão feminina. Antigamente, antes da consolidação do Ensino Médio como ele é hoje, a mulher fazia uma espécie de segundo grau preparatório para a licenciatura. Na verdade ela ia casar, viver com o marido, mas tinha o curso só para o caso de algo dar errado, nunca se sabe.” As mulheres que se interessavam pela profissão trabalhavam apenas meio turno, “para pagar as agulhas”, como Helena diz, mas eram na verdade sustentadas pelos maridos. Desde então a pedagogia é tratada como um ofício secundário e sem necessidade de uma remuneração atraente. Essas características retroalimentamse: sem remuneração justa, a profissão não é levada a sério; sem ser levada a sério, ela não é valorizada no sentido salarial. Essa visão sobre a pedagogia contamina seus próprios estudantes. Helena recorda o concurso para o magistério

estadual de 2012, em que 90% dos candidatos não atingiram o ponto de corte, apesar de se tratar, segundo ela, de uma prova fácil. A professora ouviu queixas de duas alunas sobre a dificuldade das questões. Quando questionadas sobre se estudaram para o teste, ambas responderam que não. “Quem quer entrar na OAB, estuda. Para o magistério ninguém estuda porque é prova para inglês ver”, lamenta.

Reformas Outro fator que influencia a evasão escolar é a dificuldade dos jovens em conciliar trabalho e estudo. Os adolescentes das classes D e E não podem dedicarse exclusivamente à escola pois precisam colaborar na renda familiar. A perda do aluno para o mercado de trabalho é uma preocupação constante do corpo docente da Escola Costa e Silva. “Normalmente são estágios que exigem muito, o aluno chega em casa cansado e sem vontade de estudar. Ele não consegue se dedicar às aulas e acaba evadindo”, explica a professora de Química Fernanda Bringhenti. A diretora da escola, Maria Ignez Vasconcellos, convoca toda semana uma reunião com os professores para discutir melhorias na gestão do colégio. Essa prática é parte do compromisso adotado por ela há seis anos, quando foi escolhida diretora. À época, a escola quase não conseguiu renovar a licitação que a permitia operar no prédio atual, de propriedade municipal, e por pouco não foi

Professores

Se o problema fosse só a má execução de um plano de ensino por ciclos, ele seria restrito aos municípios que adotam tal sistema; entretanto, a educação básica é fraca no país como um todo. Segundo os dados que compõem o IDH, índice de desenvolvimento humano usado pelas Nações Unidas para medir a qualidade de vida nos países, o Brasil está em 93º lugar no quesito Educação, que leva em conta a média de anos de escolaridade da população adulta. O brasileiro estuda, em

ALUNOS Vicente (E), Bruna, Cíntia e Vinícios criticam sistema de ensino por ciclos revista exp

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Dados do ensino Reprovação no Ensino Médio (2012)

13% 14% Brasil

Região Sul*

21%

Rio Grande do Sul

*dado referente ao ano de 2010

Abandono escolar no E. Médio (2010)

10% Brasil

8%

Região Sul

10%

Rio Grande do Sul

Evasão no E. Fundamental - anos finais (2010)

14% 14% 19% Brasil

Região Sul

Rio Grande do Sul

Média de investimento direto por aluno em Ed. básica (2009)

R$2.948 R$2.369 Brasil

Rio Grande do Sul

Piso salarial dos professores da rede estadual (2011)

R$1.322 Brasil (média)

R$862

Rio Grande do Sul

Fontes: portais Todos pela Educação, Terra e Instututo Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep)

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revista exp

removida. Colaborou para esse risco os desentendimentos da direção anterior do Costa e Silva com a administração da Escola Municipal Prof. Emílio Meyer, proprietária do prédio e com quem o Costa e Silva divide espaço. Fora do plano político, havia problemas também na relação com os estudantes, pois o abandono escolar e o vandalismo eram práticas comuns. Junto com os professores, Maria Ignez implementou uma série de reformas. Primeiro, diagnosticou-se que a evasão ocorria principalmente no segundo semestre do ano. O aluno ia mal nas primeiras provas, chegava à reta final sem ter como recuperar a nota e desistia. A solução foi modificar o sistema de avaliação, colocando um peso menor nas notas dos dois primeiros trimestres. A modificação, implementada em 2011, teve a aprovação do aluno Vinícios: “O Ensino Médio é sério, roda mesmo. Salvou muito esse negócio de pontuação que começou ano passado.” Dentro das mudanças, cada professor passou a ter uma sala de aula fixa. Os alunos agora devem movimentar-se entre as várias salas durante o turno letivo. Dessa forma, a turma nunca é deixada sozinha, o que reprime o vandalismo, além de fazer com que os alunos se movimentem um pouco entre cada disciplina. Além de preservar o patrimônio da escola, a medida melhorou a relação aluno-professor. “Agora os professores são mais amigos, porque a depredação parou e eles passaram a confiar mais nos alunos”, conta Vinícios As sementes plantadas há seis anos começam a dar resultado: pela primeira vez em muito tempo, há alunos suficientes no 2º ano para a formação de três turmas, uma a mais que o usual. Para a diretora, o maior índice de aprovação e permanência é resultado das mudanças do início da sua gestão. “O trabalho com educação é um trabalho lento, não é de um ano para o outro”, explica. A essas mudanças somase, desde 2012, a reforma politécnica do Ensino Médio. Fruto do planejamento do atual governo estadual, a iniciativa visa aproximar as diferentes disciplinas da realidade vivida pelo aluno, com os mesmos conteúdos sendo trabalhados por

professores de áreas diversas. O modelo prevê 200 horas por ano de seminário integrado, em que os alunos desenvolvem uma pesquisa ligada a alguma atividade profissional a partir do que é visto em sala de aula. O projeto provoca elogios de um lado, provocações de outro e muitas dúvidas de ambos. Maria Ignez coloca-se a favor das mudanças, mas acha as novas regras confusas. O Costa e Silva fez uma primeira tentativa de adequação com o tema trânsito: o professor de matemática trabalha com os alunos as estatísticas dos acidentes, a professora de química explica o funcionamento do bafômetro e os efeitos do álcool e por aí vai. “Isso é a nossa interpretação da politecnia: o aluno pega aquela técnica e vê onde se aplica”, explica a diretora.

No Fundamental, os alunos vão passando sem aprender nada. Daí, quando chegam ao Médio, eles veem que têm que se puxar e desistem. CÍNTIA SIQUEIRA, estudante do Ensino Médio

João Thadeu de Almeida, o diretor-adjunto estadual da Educação, é o primeiro a admitir que o Ensino Médio politécnico é um projeto ainda muito aberto, com pontas soltas. O novo modelo vai se consolidar com o passar do tempo. Em 2013, a politecnia vai ser incorporada ao 2º ano do Ensino Médio. Em 2014, é a vez do terceiro ano. “A diretora do Costa e Silva tem razão [sobre estar confusa]. Vai ser assim esse ano e vai ser assim ano que vem também”, admite.

União

A menos de dez metros do portão da Escola Costa e Silva, no mesmo prédio, encontra-se a porta de entrada da Escola Municipal Prof. Emílio Meyer. Ambos os colégios dividem o local há quase meio século. A construção, de posse municipal, era ocupada pelo Emílio Meyer somente no turno da

noite. Através de parceria, a prefeitura concordou em ceder as dependências da escola para o governo estadual nos turnos matinal e vespertino. Por serem colégios muito antigos, não foram enquadrados nas normas da LDB de 1996, o que resultou numa contradição interessante: o Emílio Meyer, municipal, é uma das duas únicas escolas do município com aulas exclusivamente para o Ensino Médio, enquanto que o Costa e Silva, estadual, oferece os ensinos Fundamental e Médio. Uma faz o papel que deveria ser da outra e vice-versa. “Houve uma época em que os professores davam aulas em ambas as escolas, então não tinha rivalidade”, conta Magaly Silveira de Quadros, diretora do Emílio Meyer há cinco anos. “Mas aí os professores foram se aposentando e cada escola passou a ter um quadro separado.” A incomunicabilidade entre as escolas surgiu com o passar dos anos. Magaly explica que o convênio para o uso do prédio previa que o Estado pagasse dois terços do valor da manutenção porque usava dois turnos. Como o Estado raramente repassava a verba para o Costa e Silva, a prefeitura arcava com as contas. Em 2005, o Conselho Escolar do Emílio Meyer solicitou à Secretaria Estadual da Educação o rompimento da cessão de uso do terreno pelo estado. Por um momento, o Costa e Silva esteve prestes a ser expulso do local. Em 2007, Maria Ignez, recémempossada diretora do Costa e Silva, mobilizou políticos, sociedade civil e o sindicato dos professores estaduais (CPERS) para convencer a prefeitura e o stado a renovarem a concessão de uso do terreno. Deu certo. Logo depois, Maria Ignez sentouse para combinar a gestão da estrutura com Magaly, também recém-chegada ao cargo de diretora. Desde então, as duas foram bem-sucedidas em evitar situações de rivalidade como as do passado. Em ação conjunta, dividiram o custo da instalação de câmeras de monitoramento nos corredores, cujas imagens ambas têm acesso, algo impensável seis anos atrás. O compartilhamento de serviços vai até certo ponto. O Emílio Meyer tem, para uso exclusivo, uma oficina de


robótica, sala de ginástica, sala de música, atelier de cerâmica, sala de teatro, laboratório de Química e um refeitório com quase o triplo do tamanho do utilizado pelo Costa e Silva. O colégio estadual não tem acesso a nada disso. “Como pessoa, eu sou da teoria de que tem que emprestar, mas nem todo mundo cuida” explica Magaly. “Como gestora, eu acho melhor manter a separação. Investimos R$ 14 mil no laboratório, a gente tem que saber que os alunos cuidam.” Outros espaços de posse municipal, como os laboratórios de Informática, a sala de Educação Física e o auditório, são compartilhados. Há duas razões para o Emílio Meyer ter esses espaços e o Costa e Silva não: primeiro, porque o prédio é do município e o Emílio Meyer tem direito às melhores salas. Segundo, porque as escolas da prefeitura recebem maior aporte financeiro do que as estaduais. Isso pode ser constatado pela comparação entre salários dos professores das duas redes: numa rotina de 40 horas semanais, o salário-base de um professor estadual no Rio Grande do Sul é de R$ 862, enquanto que na rede municipal é de R$ 2 mil. A solução para a falta de verbas pode estar no terceiro ente da federação: a União. Com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundef), em 2006, o governo federal passou a aportar recursos próprios na educação básica por meio de programas como o Mais Educação, que promove turno integral com oficinas de reforço escolar e atividades esportivas e artísticas, e o Programa de Desenvolvimento Escolar (PDE), que transfere recursos para escolas com índice de desempenho baixo. Maria Ignez conta que, para participar do PDE, foi requisitado que a Escola Costa e Silva diagnosticasse seus problemas e apontasse o que necessitava para resolvêlos. Os professores elaboraram um orçamento para a compra de aparelhos multimídia, financiamento de passeios escolares, aquisição de materiais didáticos e livros e o enviaram ao governo, que mandou a verba exata para cada meta. No caso do Mais Educação, a escola indicou suas atividades de interesse para o contraturno, e o governo

enviou uma relação de kits necessários para desenvolvêlas, juntamente com os recursos para adquiri-los. Magaly conta a história de uma garota que foi beneficiada por outra política pública federal: a de cotas. “Nós tivemos uma aluna moradora da Vila Cruzeiro que passou na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) por cotas. Ela nos disse: ‘Vocês não têm noção do que isso significou lá na vila! Agora eles veem que podem!’. Isso teve um efeito multiplicador. Antes, o Ensino Médio era o fim, agora é apenas o meio”. O governo federal tem outras políticas que facilitam o acesso à universidade para egressos do ensino público: o Prouni oferece aos estudantes de escolas públicas bolsas de acesso a cursos superiores de instituições privadas. Além da bolsa total,

há abatimentos parciais de custo e possibilidade de financiamento das mensalidades. Tais oportunidades dão aos estudantes um objetivo para concluir o ensino básico. A pedagoga Helena Côrtes vê as políticas federais com um olhar desconfiado. Para ela, de nada adianta mandar recursos e tecnologia para as escolas sem trabalhar na qualificação dos recursos humanos que irão gerir esse novo material. Como professora do Ensino Superior, ela conta que a quantidade de alunos aumentou, mas não a qualidade. “A maior parte das minhas alunas vêm de famílias com falta de capital cultural, algo importantíssimo para um professor. Não dá para passar tudo o que elas precisam em quatro anos”, explica. Magaly tem uma visão mais

positiva das cotas. Motivada, ela conta que a missão do Emílio Meyer para 2012 é a de fazer o maior número possível de alunos passarem na UFRGS, garantindo o “efeito multiplicador”. Os quatro jovens entrevistados para esta reportagem pretendem fazer curso superior. Vicente quer estudar algo ligado à informática e conciliar os estudos com algum trabalho; Bruna e Cíntia almejam ser dançarinas: Cíntia quer fazer Dança na UFRGS e Bruna quer tanto Educação Física quanto Dança, se possível via Prouni na PUCRS. Vicente, lutador de Judô e fã de cinema, está indeciso entre cursar Educação Física e Publicidade e Propaganda. Na verdade, ainda não pensou muito no assunto: antes, precisa dar um jeito de escapar do serviço militar.

DIVISÃO Escola municipal e outra estadual compartilham prédio, mas têm bibliotecas próprias revista exp

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eEnsaio FELIPE DALLA VALLE

VILA DIQUE, 2012

MARIANA FONTOURA

PARTENON, 2010

OLHOS QUE

perseguem Captadas em momentos do cotidiano, crianças da periferia trazem nas expressões de seus rostos a ingenuidade típica da infância. Olhares que revelam curiosidade e sorrisos de surpresa. Enquanto adultos tentam resolver seus problemas, crianças se distraem à sua maneira, seja no colo dos pais, no pátio de casa ou nas ruas das comunidades. FOTOS: FELIPE DALLA VALLE E MARIANA FONTOURA

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revista exp


MARIANA FONTOURA

VILA DIQUE, 2011 FELIPE DALLA VALLE

VILA BECO X, 2011 revista exp

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FOTOS: MARIANA FONTOURA

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revista exp

ILHA DA PINTADA, 2011


PLENÁRIO OTÁVIO ROCHA, 2011

PARTENON, 2010

PARTENON, 2010


FOTOS: FELIPE DALLA VALLE

VILA SANTO ANDRÉ, 2012

LOTEAMENTO TRESMAIENSE, 2012

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revista exp


VILA DIQUE, 2012

VILA SANTO ANDRÉ, 2012

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eTrabalho SEM A CARTEIRA

assinada

INFORMALIDADE Mesmo que a estatística esteja em queda, milhões de brasileiros trabalham por conta própria EDUARDO PAGANELLA

S

ão três horas da tarde de uma terça-feira de maio. O outono tímido começa a dar as caras no Rio Grande do Sul, mas o casaco ainda é desnecessário. Na rua Umbu, zona norte da Capital, Café ouve o som de um carro e faz um rápido sinal com o braço. No mesmo instante, parte em disparada rumo ao veículo que está prestes a deixar a zona do tumultuado Hospital Nossa Senhora da Conceição. No pesado bolso do colete, titilam moedas, fruto de um exaustivo dia de trabalho que começou às sete horas da manhã. Logo em seguida o carro sai e Café volta sorridente ao posto embaixo de uma árvore, com uma nota de R$ 2 na mão. A curta passagem descrita acima é a rotina cansativa, porém compensadora, de José

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Adair Silva da Silveira, o Café. Dos 47 anos de idade, mais de 15, em frente ao Hospital Nossa Senhora da Conceição, ele só tem um arrependimento: não ter completado os estudos. “Para mim não deu, mas quem nunca quis ter uma vida de doutor, não é?”, comenta. Pai de família e já com uma neta, Café trabalha como guardador de carros na região. Ele, assim como muitos brasileiros, faz parte dos mais de 36 milhões de trabalhadores informais do país. Vivem com aquilo que ganham, sem carteira assinada, dependendo de lucros incertos, porém atraentes. Café garante que nunca pede dinheiro aos clientes e, quando perguntado sobre quanto precisam pagar, os motoristas ficam surpresos – só faça a contribuição se quiser, diz o guardador. Fatura por dia, em média, R$ 25 em frente à unidade hospitalar, e às vezes,

guarda carros de torcedores que se deslocam para ver jogos da dupla Gre-Nal. Lá, uma noite bem sucedida ou um dia de clássico rendem até R$ 90. “No final do mês, o salário fica na faixa dos R$ 800 a R$ 900. É mais do que um salário mínimo”, observa. O trabalho informal no Brasil diminuiu 3,5% nos oito anos. A melhor distribuição de renda e os esforços federais para minimizar a burocracia na hora de assinar carteira contribuem. Ainda assim, especialistas garantem que o número total de trabalhadores sem formalização deve subir. A formação de sindicatos e associações para serviços realizados apenas por autônomos no passado e a proliferalção de máquinas que aceitam cartões de débito e crédito são outros outros indicativos que fazem os trabalhadores acreditarem na força da informalidade. E que força! Em 2011, a economia

No final do mês, o salário fica na faixa dos R$ 800 à R$ 900, o que é bom. É mais que um salário mínimo. JOSÉ ADAIR DA SILVA SILVEIRA, guardador de carros


informal movimentou mais de R$ 653 bilhões, conforme dados da Fundação Getúlio Vargas. O número é superior a todo o PIB da Argentina. Mas para quem trabalha nas ruas, vantagens bem particulares são mais importantes do que propriamente os números absolutos. A mestre em psicologia Ângela Carina Palladiso fez uma pesquisa qualitativa para seu trabalho de mestrado sobre jovens que ingressavam em um programa social de inserção profissional. Ao conversar com os adolescentes, ela diagnosticou que muitos acabam tendo poucas oportunidade em função da falta de qualificação. Ângela ressalta que boa parte dos jovens acaba entrando em um ambiente que os especialistas chamam de “trabalho precário”. “Trabalho precário é aquela atividade em que o sujeito não necessita ter uma qualificação específica. Ele é diferente da informalidade, pois o trabalhador informal tem um profissão. Já quem vai para o trabalho precário não encontra uma possibilidade de crescimento ou aprimoramento”, explica. A especialista destaca que muitas pessoas sem qualificação profissional aprimorada acabam visando apenas um local que garanta um bom dinheiro. Foi o que fez Café deixar o trabalho de servente de pedreiro para se tornar guardador. Por duas vezes já teve a carteira de trabalho assinada, mas gosta de estar trabalhando nas ruas. “Aqui é tranquilo. Primeiro porque sendo sindicalizado como eu e muitos colegas, não temos problemas de trabalhar aqui na rua. Todo mundo respeita a gente e tem confiança no nosso trabalho. Além disso, a gente está sempre com um dinheiro no bolso. Não recebemos apenas uma vez por mês. Sempre temos um dinheiro”, exemplifica o guardador. E este dinheiro é essencial para a economia. Até porque grande parte dos trabalhadores informais vivem, recebem e repassam moeda em espécie, o que é incomum nos tempos do dinheiro de plástico. Na visão do economista da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Alfredo Meneguetti, há uma articulação entre a formalidade e a informalidade. Muitos setores específicos da economia

necessitam das duas linhas. Alguns produtos precisam de ambulantes sem carteira para fazer os produtos circularem com preços mais baixos. “O comércio de guardachuvas, por exemplo, é muito influenciado pela informalidade. Mais de 90% dos guardachuvas vendidos no Brasil são importados da China. Eles chegam aqui ao preço de R$ 0,60. E são vendidos a R$ 10 por ambulantes. Essa mão de obra barata tanto de quem produz quanto de quem revende praticamente inviabiliza qualquer tipo de produção nacional”, explica o especialista. Outros setores da economia formal também são subsidiados pela informalidade. Catadores de papel e alumínio, por exemplo, acabam vendendo os materiais para grandes conglomerados formais que processam estes sólidos para formar centenas de outros produtos, que muitas vezes são vendidos informalmente. Alfredo Meneghetti ressalta que existem dois fatores que atraem os trabalhadores para a labuta informal: a ausência de chefe e os salários mais altos. Em casos em que a mão de obra qualificada é necessária, os lucros são bastante altos para quem trabalha sem precisar pagar qualquer tipo de tributação aos cofres públicos. Além disso, cabe ressaltar que não ter um chefe determinando ações e horários é um atrativo para os trabalhadores – eles são chefes de si mesmos, salienta Meneguetti. “Eu sou meu próprio chefe”, comemora Café, que mesmo sabendo que ninguém liga para cobrá-lo, policia-se diariamente para não se atrasar e deixar o cliente desconfiado. Confiança, por sinal, é algo fundamental para quem deseja se dar bem no segmento informal. Não só Café como todos os outros guardadores do ponto garantem: é preciso conquistar o cliente, pois a gente não exige nada. São muitos os relatos de clientes incertos quanto à índole dos guardadores. O preconceito, no entanto, precisa ser vencido. E as batalhas são ganhas nas ruas, diariamente. Café destaca que já ouviu alguns desaforos, mas que com o tempo de serviço em frente ao Hospital Nossa Senhora da Conceição, conquistou muitos clientes e amigos. Ela lamenta, porém, que muitas vezes quem mais deveria respeitar os guardadores de

carro não o faz. “A Brigada Militar é quem nos orienta. Muitas vezes temos problemas com eles. Nem sempre a BM sabe diferenciar o guardador do flanelinha. Esse aí é o cara que vai lá, pede um dinheiro e vai embora, sem nem olhar teu carro. O guardador não! Ele é profissional. Trabalha em ponto fixo, com colete e identificação e fica cuidando do carro. A gente não cobra nada. É uma contribuição que recebemos pelo serviço que prestamos aos clientes”, destaca. A tristeza de Café ao falar no assunto esvai-se quando, no fundo da rua, quase na esquina, o cliente praticamente sussurra com a buzina. No mesmo instante, Café parte em disparada rumo a outro veículo que está prestes a deixar as redondezas do Conceição. Sorridente, volta com mais uma nota de R$ 2 na mão. Dinheiro este que vai fomentar muitos e muitos comércios informais por todo o Brasil.

36 milhões de brasileiros trabalham na informalidade. As rendas com as atividades que não necessitam de carteira assinada somaram aproximadamente

R$ 653 bi em 2011. De acordo com pesquisa

realizada pela Fundação Getúlio , o Vargas, o montante corresponde a

25% do PIB produzido pelo Brasil no último ano.

JOSÉ ADAIR SILVA DA SILVEIRA, também conhecido como Café faz parte do grande grupo de trabalhadores informais revista exp

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eImigração NOVOS RUMOS EM DIREÇÃO

ao Brasil

Se há mais de cem anos o país recebia estrangeiros para trabalhar no campo, no século 21, os viajantes são especializados e buscam experiência profissional HELENA GERTZ

E

les são jovens, vêm da África, da Ásia, da América Latina e da Europa e estão abrindo novas rotas migratórias. Alguns, num primeiro momento, sondam o terreno, vão para casa e depois voltam ao Brasil para ficar mais tempo. Outros, que já vivem por aqui, querem voltar para seu país de origem. Depois da imigração em massa de europeus à América Latina no século 19, o Brasil recebe uma nova onde de migrantes. Há dois séculos, o objetivo era melhorar de vida. Agora, a vontade é de se instalar na sexta maior economia mundial e aproveitar a expansão do maior país da América Latina, especialmente para melhorar o currículo. Com esse objetivo, muitos estrangeiros que vêm ao Brasil para conseguir um posto melhor no mercado de trabalho procuram, inicialmente, planos de intercâmbio. Dados do Núcleo de Mobilidade Acadêmica da PUCRS mostram que o número de alunos de universidades do exterior que estudaram na instituição brasileira aumentou de nove intercambistas em 2004 para 37 no primeiro semestre de 2012. A AIESEC, a maior associação de estudantes do mundo, que promove intercâmbios de trabalho voluntário e assalariado entre 110 países e conta com 39 escritórios no país, fecha, por semana, em torno de 94 contratos em todo o Brasil e tem uma média de 12 pessoas aterrissando a cada sete dias no território nacional para trabalhar em empresas ou ONGs. Dados do IBGE de 1935 mostram que, naquele ano, 45.012 estrangeiros entraram legalmente no Brasil. Em 2011,

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EMPREGO A italiana Francesca D’addante ensina línguas esse número chegou a 1.466.584 vistos emitidos, sem distinção entre trabalho e turismo. O balanço da Coordenação-Geral de Imigração (Cgig), do Ministério do Trabalho e Emprego, que mede apenas a concessão para trabalhadores, mostra que, em 2011, 70.524 profissionais estrangeiros foram autorizados

a trabalhar no país. O número representa um aumento de 25,9% em relação a 2010. O dono de um desses vistos é Lucas Santiago. O argentino de 27 anos se formou em Relações Internacionais na Universidad Nacional de La Plata e vive há dois anos e meio em Porto Alegre. Ele trabalha

na coordenadoria de projetos sociais de uma fundação privada. Inicialmente, Lucas veio para a capital gaúcha para participar de um projeto voluntário, mas acabou ficando depois do fim da atividade. “Talvez eu volte para a Argentina, talvez não”, comenta. Lucas ainda não decidiu quanto tempo ainda fica no Brasil: “Tudo depende do meu contrato e da minha vontade”. Pensando no que faz em cada dia da semana, o argentino conta o motivo da dúvida: “Tenho saudades de casa, especialmente aos domingos”. Para ele, até é um bom dia para descansar, “mas ficar olhando pro teto também cansa”. Em La Plata, os amigos de Lucas continuam jogando futebol sem ele nesses dias que o argentino passa olhando para o teto. “Tento não entrar no Facebook para não saber o que eles estão fazendo”, reconhece o argentino para desviar a saudade. Durante a semana, o sentimento não é tão grave, já que o trabalho ocupa seu tempo, explica. Francesca D’addante, 28 anos, também prefere se manter ocupada para não pensar na vida que deixou na Itália. Há um ano em Porto Alegre, ela estuda português e dá aulas particulares de italiano e francês. Formada há um ano em Relações Internacionais e com experiência de trabalho na França e na Tunísia, Francesca não encontrava emprego. “Não tenho confiança no meu país. Quero morar lá, mas acho que minha vida seria difícil. Quero morar em um país que me valorize”, sonha, em um português que ainda não consegue encobrir seu sotaque da Lombardia. Ainda indecisa, ela acredita que a situação econômica da Itália diminui as chances dos jovens e culpa a


falta de ligação da universidade com o mercado de trabalho. Ela sabe que, para encontrar um bom trabalho em sua área, deve falar bem no mínimo três línguas. “Meus pais dizem que sou irresponsável, que estou brincando, mas não podia ficar na Itália. Lá com certeza não ia encontrar emprego.” Ela diz que não sente tanta falta da vida em Varese, cidade de 1,5 mil habitantes no norte da Itália onde morava com a família, nem de Milão, onde estudou. No entanto, comer no Brasil faz com que Francesca suspire pela gastronomia natal: “Isto não é café, é uma merda”.

Quero levar exemplos para a África e ajudar a construir meu país. ESTHER NJERI, estudante do Quênia

O que Francesca busca no Brasil é exatamente o que o colombiano Diego Gómez, 26 anos, já encontrou: carteira assinada e salário. Há dois anos o engenheiro elétrico se sustenta na capital gaúcha trabalhando em uma empresa de tecnologia da informação. Ele é um dos 12 estrangeiros que desembarcam no Brasil semanalmente por meio da organização AIESEC para fazer um estágio corporativo. Ao final dos primeiros seis meses de trabalho, Diego recebeu uma proposta de contratação.

CONHECIMENTO Esther Njeri quer levar experiência para casa Inicialmente, o plano não era ficar: “Queria melhorar meu currículo, e ser contratado por uma empresa no exterior é um grande diferencial”, analisa. Dominando a língua portuguesa e começando suas frases com “bah”, o colombiano revela que ter assinado contrato com uma empresa brasileira é um motivo de orgulho. Ele conhece bem a burocracia: “Já fiquei horas na Polícia Federal em função de visto. Minha empresa também teve que se incomodar muito com papelada para me contratar. Acho que eles realmente queriam que eu trabalhasse para eles”. Atualmente, Diego faz novos planos. Não sabe quanto tempo mais deve ficar no Brasil, mas também não tem certeza se quer voltar para a Colômbia. Um movimento de migração pendular, sair de casa, voltar e ir embora de novo, é o que a queniana Esther Njeri, 25 anos, pretende fazer. A estudante de jornalismo deixou Nairóbi, sua cidade natal, rumo a Porto Alegre em março deste ano. Na capital gaúcha, participa de um projeto social com outros nove jovens de diferentes países. O grupo dá aulas sobre temas como sustentabilidade, responsabilidade social e

empreendedorismo em escolas públicas. Esther ainda prefere se expressar em inglês, que é, junto com swahili, sua língua materna. Em frente ao notebook, enquanto planeja sua próxima aula, ela conta que, no Quênia, o Brasil é visto como um exemplo de sustentabilidade e, por isso, quis conhecer o país de perto. “Quero levar exemplos para a África e ajudar a construir meu país.” Orgulhosa de sua nacionalidade, Esther afirma que a nação do leste do continente, com cerca de 38 milhões de habitantes e PIB de US$ 1,70 per capita, é uma das mais pacíficas da região, mas que “como o Brasil, ainda tem pontos a melhorar, como educação e distribuição de renda”. Com o fim do projeto que participa, em junho, ela pretende voltar à Nairóbi, terminar a faculdade e, com diploma em mãos, embarcar novamente rumo ao maior país da América do Sul, mas, desta vez, em busca de um trabalho com salário e carteira assinada. Lucas, Francesca, Diego e Esther vivem, agora, no Brasil. Ficar ou não é uma decisão para o futuro. Se na época da colonização europeia, no século 19, os imigrantes eram, em sua maioria, agricultores e comerciantes fugindo da crise no

velho continente, hoje em dia, são jovens especializados em busca não só de uma vida melhor, mas também de experiência. Eles querem uma nova realidade economicamente mais favorável, como Francesca, ou querem aproveitar o fato de ainda não terem se estabilizado, formando uma família, por exemplo, para internacionalizar o currículo, conhecer novas formas de ver e pensar o mundo e, talvez, voltar para o país de origem, como Esther. Se há dois séculos os europeus que vieram para o Brasil fugiam da fome e da falta de emprego e pretendiam se instalar definitivamente, agora, eles e africanos, latino-americanos e asiáticos descobriram uma nova rota para expandir suas possibilidades profissionais e se tornar um cidadão do mundo.

70.524 é o número de estrangeiros

que receberam permissão para trabalhar no Brasil em 2011

25,9% a mais do que o número de vistos emitidos em 2010

12 é a média semanal de

estrangeiros que a organização AIESEC traz para o Brasil revista exp

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eJuventude CONQUISTA DA

vida própria

Depois de morar em casas-lares, jovens buscam independência e maneiras de se sustentar sem a equipe das instituições, que é quase uma família JÚLIA MERKER

“M

eu pai morreu em briga, com um tiro. O pai do meu pai que acabou matando ele.” Foi assim que a vida de Juliano Schneider, de 19 anos, começou a dar a primeira grande virada, pois foi o que

o levou a viver em abrigos do tipo casa-lar. Em 2001, essa morte abalou a família. “Ele era o alicerce, quem trabalhava e ia atrás de tudo pra gente”, lembra o jovem. Com a perda, a mãe começou a vender drogas e depois se juntou com as amigas clientes para usar as substâncias ilícitas. “Ela passou a sair de noite e fazer tudo errado, até uma vez

que ficou três dias sem aparecer em casa e minha tia chamou o Conselho Tutelar”, relata. Sabendo da visita, a mãe voltou para casa, mas era tarde demais. “A casa não tinha comida e minha mãe não trabalhava, então não tinha condições de sustentar a gente”. Assim, em 2003, aos dez anos de idade, Juliano foi para uma

RESPONSABILIDADE Juliano cuida do apartamento que comprou e dos irmãos menores

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casa-lar. Esse tipo de abrigo recebe crianças e adolescentes em situação de destituição do pátrio poder ou rompimento de vínculos familiares. O programa começou a funcionar em 1995 em Porto Alegre, com três casas, e hoje a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) da prefeitura conta com 30 instituições conveniadas. Em cada uma delas, no máximo dez jovens são cuidados pelos paissociais, criando uma família. Vivendo na instituição, Juliano teve oportunidades que provavelmente não apareceriam em sua vida de outra forma. Em alguns finais de semana, os monitores do local levavam os jovens para uma chácara em Viamão. “A gente ajudava a cuidar dos animais e lidava com a horta”, comenta. Em outros, os jovens saíam para visitar a família. Juliano ia para a casa da avó materna, com quem sua irmã caçula morava. Outros dois irmãos mais novos, mas com idades próximas à dele , viviam em casas-lares. Também praticou o hipismo, pois uma escola de equitação permitia que ele e outros moradores fizessem aulas gratuitamente. “É um esporte muito caro. Nos anos que fui lá, vi muitas crianças começarem a treinar e logo largarem porque os pais não poderiam pagar, enquanto eu cheguei a competir”, destaca. Hoje, quem segue esse caminho é o irmão Leonardo, 16 anos, que participa de provas nacionais da modalidade. Em 2011, quando completou 18 anos, Juliano decidiu deixar o abrigo, pois havia juntado dinheiro “fazendo vários bicos” e queria ter sua independência e criar suas regras, já que na instituição “havia horário para tudo: comer, dormir, chegar em casa”. Essa decisão foi a segunda


grande mudança de sua vida. Gislaine Pinheiro, assistente social do Abrigo João Paulo II, ao qual as casas-lares pelas quais o jovem passou estão vinculadas, destaca que essa decisão veio acompanhada de um susto pela realidade que teria que enfrentar, algo que foi decisivo para uma mudança de atitude. “O Juliano sempre teve resistência a fazer cursos e às normas da casa, pois queria liberdade para fazer o que tivesse vontade. Quando ele se deu conta que não teria mais o aporte institucional, começou a se apavorar”, revela. Com ajuda do abrigo, construiu uma peça nos fundos da casa da irmã mais velha, mas, em março de 2012, foi contemplado com um apartamento do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. É no residencial Ana Paula, no bairro Restinga, que vive atualmente. No apartamento de dois quartos, conseguiu acomodar cinco camas. A irmã caçula, Paola, 12 anos, e o irmão Luciano, 17, moram com ele. Além disso, costuma receber a namorada, Karine, 17, e amigos. Hoje, ele ajuda os irmãos e tenta fazer o mesmo pela mãe. O jovem já a internou três vezes. “Ela até ficou um ano direto na igreja, mas depois saiu e recaiu de novo”, lamenta. Por isso, ele não acredita mais em recuperação. Para sustentar a casa, trabalha numa empreiteira, realizando serviços de finalização em obras, como colocação de piso e instalação de pequenas peças. “O trabalho é bem puxado em alguns dias, quando chegam caminhões com cimento. Eu sou magrinho, mas tenho que ajudar do jeito que conseguir”, divertese. O jovem pensa em crescer na empresa e se tornar encarregado, porém considera uma realidade muito competitiva. Diz que alguns colegas fazem cursos na área, contudo, ele reclama da falta de tempo. “Tenho minha irmã e meu irmão para cuidar. Mesmo já tendo 17 anos, se eu não estou de olho, ele fica dormindo em casa ou jogando videogame e não vai às aulas”, explica. Assim, adia algumas ideias que tem para o futuro. Além de querer terminar o Ensino Médio, que abandonou no segundo ano, Juliano deseja se profissionalizar no futebol. Sabendo da dificuldade disso se realizar, procura um emprego na área de vendas. “Acho que vou ser

RUA Indianara sente falta de liberdade quando está na casa-lar e precisa cumprir regras bom nisso, porque sei conversar com as pessoas, então olho os classificados toda quarta-feira e vejo algumas oportunidades”, comenta. Nos finais de semana, ele se dedica ao futebol. Joga como volante no Milan da Restinga, time de várzea. Ele fez testes no Internacional e no Grêmio, mas acredita que os jogadores com empresários têm vantagem para conseguir uma posição. Mesmo assim, continua treinando e confiando que é importante tentar. “No primeiro teste que fiz no Inter, disseram que a gente ia fazer mais 50 testes na vida, e que se não fôssemos persistentes não iríamos conseguir, então é assim que eu sou”, observa. Mais uma vez, ele considera o tempo um obstáculo, porque apesar de querer se dedicar mais ao esporte, quando faz um curso ou trabalha, tem que diminuir os treinamentos. “O time ajuda com o transporte e paga a gente nos jogos, mas quanto mais alguém conseguir treinar, mais retorno vai ter, porque eles veem o esforço”, acredita. “O que me incentiva mais atualmente é conseguir focar no futebol e na escola, porque assim poderia

O Juliano queria liberdade para fazer o que tivesse vontade. GILSAINE PINHEIRO, assistente social

fazer um estágio de manhã, treinar de tarde e estudar de noite”. O crescimento do jovem durante o processo de transição surpreendeu Gislaine. “Nesse período, ele desenvolveu mais humildade e paciência, pois viu que precisava de ajuda, e hoje, quando ele precisa de algo, liga para conversar e ver se podemos auxiliar, coisa que eu não imaginava que faria”, surpreendese.

Em processo

Indianara Trindade, 17 anos, está procurando um apartamento ou peça para alugar. Moradora de abrigos há 11 anos, ela se diz a “rejeitada da família”. Dos oito irmãos, é a única que mora em casa-lar. “Minha mãe não me quer e eu não quero ela”, explica. Ela quer deixar a vida nas instituições para trás antes mesmo de completar 18 anos. “Cansei! Agradeço muito a ajuda e proteção que me deram, mas chega uma hora que não dá mais, porque não gosto de viver presa, quero minha liberdade”, constata. Além das regras quanto aos horários, Indianara também se queixa da não poder ter celular ou piercings. “E eu até tenho piercing na língua, mas não uso dentro da casa”, revela. O abrigo começa a preparar a saída dos jovens desde os 16 anos. “Procuramos a inserção em cursos profissionalizantes e no mercado de trabalho, além de fazermos acompanhamento psicológico”, relata Gislaine. A fase é complicada, pois aparecem dúvidas que podem gerar crise, então existe muita conversa e aconselhamento, inclusive na escolha profissional. Indianara conta com a ajuda institucional

durante o processo. Assim, ao completar 18 anos, ela estará preparado para viver com independência. Se a maioridade chegar e a nova vida não estiver estruturada, as casas cuidam do jovem por mais alguns meses, desde que ele esteja participando do processo de qualificação e fazendo o que for preciso para conseguir um local para viver. “No momento em que eu sair da casa, eles vão continuar junto comigo. Vão visitar o local que eu alugar e eu vou continuar recebendo acompanhamento psicológico no abrigo”, esclarece. Atualmente Indianara está no 1º ano do Ensino Médio e trabalha no supermercado Zaffari, mas tem planos diferentes para o futuro. Ela quer fazer faculdade de Direito e ser promotora de Justiça da Vara de Infância e Juventude. Para economizar para o estudo, não pretende usar os quase R$ 3 mil que tem no banco para a mudança e espera conseguir um emprego nas áreas de administração e informática, para as quais fez cursos, a fim de se sustentar todos os meses. “Eu crio objetivos grandes e tenho que me aventurar para chegar até eles”, orgulha-se. Por um tempo a criança abrigada convive com regras de forma natural, mas o adolescente quer sua liberdade. “Quando a criança chega muito nova a uma casa-lar, a rebeldia vem mais cedo, pois passam muito tempo convivendo com as mesmas instruções”, ressalta a assistente social . Para uma transição bem sucedida, a maturidade para conquistar seu espaço precisa ser tão grande quanto a vontade que o adolescente tem de mudar de vida. revista exp

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ePerfil EM BUSCA DO VERDADEIRO E

raro amor

Forte e humanitária, Anne Marie deixou a França para ajudar pessoas pobres. A vida da francesa foi movida por sonhos, afetos e solidariedades KAMYLA JARDIM

U

m dia frio, mais frio que o natural para um mês de outono, Anne Marie escolhe um conjunto de lã, blusão vermelho e calça cinza. As roupas aparentemente aqueceram Anne em alguns invernos, mas ela não se importa, acredita que o básico para viver é o suficiente para as pessoas. Os cabelos brancos até os ombros sobrepõe o lenço de flores rosas amarrado ao pescoço. Os olhos azuis mantêm o brilho da jovialidade que contrastam com um olhar de sabedoria e experiência ao falar dos 60 anos vividos. Quando era ainda uma menina francesa, o sonho de entregar a vida ao trabalho voluntário evidenciava a sua singularidade como criança. Inspirava-se, aos cinco anos, nos missionários que se dedicavam a ajudar famílias pobres na África. O que poderia ser apenas uma brincadeira de criança tomou forma e, em meados da década de 70, Anne, com 23 anos, partiu da França para o México. Após oito anos de ajuda ao povo mexicano e de enriquecimento cultural, a jovem seguiu viagem para El Salvador, com intuito de oferecer ajuda à outras pessoas. Era tempo de guerra, o povo lutava contra uma ditadura militar. Anne auxiliava na alfabetização dos pobres, para que eles também tivessem acesso a informações e lutassem por democracia. O compromisso e o afeto da francesa por aquelas pessoas só aumentava. Com um olhar distante de saudade, Anne conta que lá teve a grande lição de sua vida, pois em meio a

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aquele povo pobre encontrou o verdadeiro amor gratuito. Ao fugir de El Salvador, em 1986, acusada de terrorismo, Anne retornou para França e, poucos meses depois, conheceu Luis Itamar. Ao relembrar do grande amor de sua vida, os olhos de Anne enchem-se de lágrimas, mas ela continua. Itamar era um jovem brasileiro, gaúcho, de família humilde, que lutou para conseguir estudar e ter uma vida digna. Cheio de ideias e com vontade de mudar o mundo, o garoto encantou a francesa e o amor entre os dois foi despertado à primeira vista. Itamar estava na França para dar uma palestra sobre a inclusão de deficientes na sociedade. Ele acreditava em um mundo de iguais, no qual o deficiente físico não fosse visto com pena ou inferior pelas pessoas. A luta do gaúcho foi ampliada quando começou a sentir na pele as restrições que a sociedade impõe aos deficientes. Ele tinha esclerose lateral amiotrófica, uma doença fatal que, aos poucos, paralisa os movimentos do corpo. Quando Anne conheceu Itamar, ele já estava tetraplégico. Com uma vida guiada pelo amor e admirada pela força e pelas ideias de Itamar, Anne revela que não conseguia mais ficar longe dele. Foram dois anos de namoro à distância. Ela na França, ele no Brasil. Os encontros estavam ficando difíceis, e a doença de Itamar complicava cada vez mais a sua independência. Anne sabia que ele podia ter poucos anos de vida, mas queria vivê-los intensamente, então, mesmo com a relutância dos pais, decidiu ir atrás do seu amor incomum,

atrás de Itamar. Pacata e com pouca infraestrutura, Cachoeirinha, nos anos 80, era um município precário. Mesmo localizada a 11 quilômetros da capital do Rio Grande do Sul, era uma cidade do interior e ainda hoje há quem a chame de “cidade dormitório” pela sua proximidade com Porto Alegre. Entretanto, foi nesta

“cidade dormitório” que Anne e Itamar puderam construir seus sonhos. Uma vida juntos, compartilhada pelo amor em ajudar pessoas carentes. Numa casa simples do bairro Anair, a francesa e o brasileiro iniciaram o projeto de auxílio às famílias da região, o que anos mais tarde viria a ser o Centro Infanto Juvenil Luis Itamar. Com

CUIDADO Além de oficinas, as crianças recebem afeto no centro


SONHOS A primeira coisa a ser vista da porta principal do centro é uma fotografia do casal apaixonado na parede a ajuda financeira de amigos da França, o casal iniciou uma pesquisa sobre as necessidades das famílias do bairro pobre e concluíram que deveriam criar um local para que crianças e jovens saíssem das ruas e se afastassem da violência e das drogas. Um local com oficinas e atividades saudáveis. Anne relata que em meio ao desenvolvimento do centro, a doença de Itamar avançava de forma rápida e limitava cada vez mais os seus movimentos. Ele não conseguia mais falar, nem mover a cabeça. Ao contar, uma lágrima escorre pelo rosto de Anne, antes de ser secada pela manga do blusão vermelho envelhecido. Quando as pregas vocais paralisaram, o casal se entendia apenas pelo olhar. Com uma voz falha, quase em forma de sussurro, Anne confessa que os olhos eram o que mais gostava em Itamar. Ele tinha um olhar expressivo, olhar de ternura e ao mesmo tempo de força. Um olhar que via além dos outros e assim Anne foi se deixando levar por essa história singular. Como em todos os momentos da sua vida, o amor falou mais alto em Anne. Menos de um ano depois do início do projeto, Itamar faleceu. Anne desabafa que foi uma época complicada. Longe da família,

sem o amparo e a força do seu amado e já com o compromisso de ajudar dez crianças da vila, a francesa se viu sem saída. O desejo de voltar para a França a afligia, mas Anne sabia que não podia abandonar um projeto tão sonhado por Itamar e nisto encontrou forças para seguir em frente com o centro. Aos poucos, a francesa integrou-se na comunidade. Queria conhecer mais pessoas da vila e não se sentir tão só no projeto. As mães que sabiam fazer algum trabalho, como pintar tecidos ou tricotar, começaram a ajudar Anne. E de pouco em pouco, ganharam destaque na região. Depois de alguns anos, um terreno, que antes era um clube de futebol, foi cedido para Anne instalar o centro, pois sua casa pequena já não dava conta de reunir tantas pessoas. Emocionada, a francesa revela que sem a ajuda das famílias pobres nada teria conseguido fazer. Descreve como uma união de forças. Cada um cedia o pouco que tinha para um bem maior, em busca de um futuro justo para as crianças da vila. Atualmente, o centro tem uma boa estrutura, o que contrasta com as construções ao redor. Na verdade, contrasta, principalmente, com a maioria

das escolas da cidade. Paredes bem pintadas com cenários infantis, obra de um pintor voluntário que queria alegrar as salas, é o que mais embeleza o centro. A organização e limpeza é outro destaque, isso sem citar os trabalhos, as plantinhas e a horta dos alunos que decoram todos os cantos do local. Mesmo sendo mantido por doações e ajudas voluntárias, o centro proporciona diversas oficinas para pessoas de todas as idades, como aulas de violão, pintura, costura, artesanato, até aulas de capoeira já foram dadas por um antigo aluno do centro. Além das oficinas, duas turmas de pré-escola já iniciaram os estudos no local. O sentimento de missão cumprida não cerca Anne, pois acredita que ainda há muito por fazer. Mas, no fundo, ela sabe que destinar a vida à buscar um amor raro não foi em vão. Já a população do bairro Anair afirma que a única raridade desta história é a própria francesa e sua vontade de mudar o mundo. Seguido de um suspiro, Anne descreve como Itamar ficaria feliz ao ver o resultado de um sonho almejado por tantos anos pelos dois. Mas logo se conforta, murmurando que ele sempre esteve presente. A presença de Itamar é

incontestável. Após passar pelo portão e pelo jardim de flores de papel feito pelas crianças, a primeira coisa a ser vista da porta principal do centro é uma fotografia do casal na parede. Uma foto de sorrisos e sonhos. Anne e Itamar estão lado a lado, quase abraçados, com risos saltando a boca. A fotografia é daquelas que dá vontade de sorrir junto, que transparece felicidade, sintonia, amor. Mesmo sem estarem se olhando, é como Anne diz, precisavam apenas estar juntos para se entenderem.

Os olhos eram o que mais gostava em Itamar. Ele tinha um olhar expressivo, olhar de ternura e ao mesmo tempo de força. Um olhar que via além dos outros. ANNE MARIE, fundadora do Centro revista exp

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e Vida

3º melhor?

SUS GAÚCHO RECEBE A NOTA 5,9 Governo gaúcho reconhece que os serviços e ações de saúde estão dentro dos resultados esperados, mesmo que a população ainda sofra nas filas

R

YAJNA MOREIRA

LEMBRANÇA Flávio com a única fotografia restante da mãe (E)

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osa Machado Borges ingressou em um hospital pela primeira vez há dois anos para tratar um sarcoma nas costas. Na ocasião, possuía um convênio de saúde e pôde fazer o tratamento no Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Há um ano, o convênio mudou de mãos e passou a não cobrir atendimentos ambulatoriais, então Rosa teve que apelar ao Sistema Único de Saúde (SUS), que, em nível estadual, recebeu a terceira colocação na avaliação do Ministério da Saúde (MS) que abrangeu todo o território nacional. O Índice de Desempenho do SUS avaliou tanto procedimentos simples, quanto complexos, como o de Rosa. No Hospital Conceição, ela realizou a terceira cirurgia para tratar o câncer. Após o procedimento, passou mal em casa e foi levada para a emergência do hospital. Lá, foi internada novamente na “área vermelha” para pacientes em estado grave, porém não conseguiu leito e teve que esperar durante três dias e três noites em uma cadeira de um corredor. Debilitada, Rosa não tinha assistência para ir ao banheiro, recebendo atenção apenas na hora das refeições e dos medicamentos. Cansada da situação, pediu para voltar para casa, onde acreditava que estaria melhor, pois teria o cuidado da família. No entanto, dois dias depois passou mal novamente e o filho, Flávio Borges, levou-a ao Pronto Atendimento 24 horas de Gravataí. A médica que a atendeu transferiu-a para o Conceição,

onde conseguiu um leito apenas com a ajuda de amigos influentes da família que intervieram. Mesmo assim, o suplício não acabou. Ela contraiu uma escara, ferida gerada pela falta de movimento do corpo, evitável através do auxílio de enfermeiros no trato do paciente. Rosa precisava ainda realizar uma ressonância magnética, porém a máquina disponível estava estragada, e se saísse do hospital para fazê-la em outro local, perderia o lugar. A alta voluntária foi a solução encontrada pela família para que o exame fosse feito. Logo, ela passou mal e foi diagnosticada com uma infecção generalizada adquirida durante a internação. Na madrugada de terça-feira, 21 de março, Rosa faleceu em consequência das complicações do câncer. “Houve negligência e falta de respeito. Se ela tivesse recebido o tratamento adequado, a morte poderia ter sido evitada naquele momento”, indigna-se Flávio. Quatro meses depois, a máquina de ressonância magnética do hospital segue inapta ao uso. Os exames de abdômen, pelve, ombro, pescoço e coluna cervical e dorsal ainda não estão disponíveis à população e sem previsão de concerto. A história de Rosa se encaixa como um procedimento ambulatorial de alta complexidade, que foi avaliado pelo governo federal em 8,4 no Estado. Um sucesso para os órgãos estaduais, que consideram esta uma ótima nota, mas sem um final feliz. O Rio Grande do Sul recebeu a nota 3,3 em relação à cobertura populacional estimada pelas


EXTRAÇÃO DENTÁRIA Leonor Machado aguarda atendimento bucal que só realiza procedimentos emergenciais

equipes básicas de saúde bucal. Além disso, ficou perto do zero, com a nota 0,35, no quesito média da ação coletiva de escovação dental supervisionada. Leonor Machado, 80 anos, quebrou dois dentes. Ela foi primeiramente ao Pronto Socorro, mas foi encaminhada para o posto de saúde cadastrado de acordo com o seu endereço, o Centro de Saúde Santa Marta. Para conseguir ficha e atendimento no local, é preciso chegar na fila às 5h, por isso muitas vezes a idosa não consulta. Desta vez, conseguiu consultar o dentista do posto que atende apenas casos de urgência, nunca para fazer manutenção ou orientar a comunidade. Leonor pretendia fazer um tratamento nos dentes quebrados, reconstituindo-os, mas após semanas de dor intensa preferiu extraí-los. Depois da operação, a idosa possuirá cinco dentes próprios. Leonor nunca teve nenhum tipo de orientação, já que, quando era jovem, nos idos anos 1940, não se dava tanta atenção à saúde bucal. O tempo passou, mas a falta de cuidado com a higiene dos dentes permanece. O secretário adjunto da Secretaria Estadual da Saúde(SES), Elemar Sand, explica que a pasta está ciente da deficiência no setor, mas acredita que se deve invetir os esforços na prevenção, através da conscientização em escolas

ou eventos públicos. No entanto, quem deve organizar esse tipo de ação e implementar o sistema no ensino fundamental é o governo municipal. Entre os usuários do SUS, o Ambulatório de Dermatologia Sanitária é conhecido pela sua fila de espera. As pessoas que buscam atendimento chegam a dormir esperando, levam cadeiras, chimarrão e coberta no inverno, preparados para esperar longas horas. No local são distribuídas cerca de 35 fichas diariamente. Singrid Duarte já passou por lá. Dessa vez, a garota de 17 anos entra na sala 1 do Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul, onde é feita a triagem dos pacientes, e sai após cinco minutos de consulta. A médica a encaminha para outro setor, o cirúrgico. Ela convive há um ano com um fungo entre os seios. A primeira tentativa de tratamento foi no ambulatório,

CAOS Há filas durante todo o dia na Vila Cruzeiro

O dez é o sonho de todos nós da Secretaria da Saúde, mas sabemos que é impossível. ELEMAR SAND, secretário adjunto da SES na Avenida João Pessoa, onde foi atendida e prescreveram determinados remédios. Porém, o resultado não foi o esperado. Os medicamentos não surtiram efeito e ela não conseguiu outro horário. Sand afirma que o grande desafio da SES é melhorar o acesso ao atendimento, porém acredita que os pacientes devem ter maior confiança nas unidades de saúde. Ele explica que exames e procedimentos até média complexidade poderiam ser realizados nesses locais, o que desafogaria hospitais e unidades voltadas a atendimentos de alta complexidade. Natália Ferreira foi consultar no Posto de Saúde Modelo a primeira vez há dez meses com falta de ar e tosse seca. Ao entrar, já recebeu o recado por um aviso colado na parede que milagres não eram feitos ali. Ela foi atendida pelo clínico geral que a encaminhou para um pneumologista, especialidade não disponível no mesmo lugar.

Assim, ela tentou conciliar a profissão, empregada doméstica, com a maratona para descobrir onde ser atendida. Natália foi no Posto de Saúde Santa Marta, no Hospital Fêmina e no Hospital de Clínicas de Porto Alegre sem sucesso, por isso voltou ao Posto Modelo a fim de receber mais orientações de como proceder. Ela reclama que não há um encaminhamento adequado, que os funcionários estão tão ocupados, com tanta sobrecarga de trabalho, que não conseguem despender a atenção devida a cada paciente. Sand explica que a Secretaria busca o melhor resultado possível, mas há diversas pessoas envolvidas no atendimento de um único paciente: “Não é somente o governo responsável pela má avaliação do SUS”. Ele reconhece, o repasse destinado à saúde no Estado está abaixo do determinado pelo MS. Hoje, a pasta recebe 7% do orçamento estadual, quando o ideal seria 12%, no entanto o subsecretário reconhece: “A perfeição é impossível”.

166% é o aumento percentual do valor

repassado ao setor em dois anos

5,47 é a média nacional de desempenho no SUS

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e Saúde

Estímulo

PARA UMA VIDA COMPLETA

A intervenção precoce auxilia no desenvolvimento e na inclusão social dos portadores de Síndrome de Down JULIANA VENCATO

N

a chegada já é possível perceber que aquele local é destinado a momentos de muito aprendizado e descontração. A sala de estimulação precoce da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Charqueadas (Apae) é repleta de brinquedos

e objetos que auxiliam no trabalho realizado pela equipe multidisciplinar da instituição com os portadores da Síndrome de Down (SD). “Aqui o importante é que eles sintam-se acolhidos e felizes. Vir para a estimulação nunca pode ser tratado como uma obrigação, mas sim com uma atividade prazerosa”, explica

a psicopedagoga da Apae Charqueadas, Terezinha Helena Jacuniak Mazon. E é neste clima de brincadeira que as técnicas de estimulação precoce são aplicadas nos portadores de SD. As técnica de estimulação podem ser aplicadas desde os primeiros dia de vida. Estas têm a capacidade de prevenir que defasagens no desenvolvimento

ESPECIAL As técnicas de estimulação que Gabriel realiza trabalham a motricidade e o raciocínio

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dos Downs sejam acentuadas e que se estabeleçam questões de risco à estruturação psíquica da criança. A pedagoga e educadora especial Gladis Maria Araújo realizou há 12 anos um trabalho de estimulação precoce em bebês que nasciam no Hospital São Lucas, em Porto Alegre, e relata a importância do trabalho: “a dinâmica da intervenção precoce deve ter uma abordagem interdisciplinar, em que profissionais da área da saúde, da educação e da ação social, com a participação indispensável da família, devem ter como objetivo central a constituição pessoal da criança, o seu desenvolvimento, a conquista de autonomia e sua socialização através do fortalecimento do vínculo filho/família”. As técnicas são aplicadas conforme o desenvolvimento da criança. A psicopedagoga Terezinha explica que para aqueles que iniciam a estimulação com dias de vida existem algumas técnicas específicas que são aplicadas para melhorar o desempenho: “a estimulação que o bebê recebe vai constituir a base do seu desenvolvimento futuro. Com estas técnicas ele consegue adquirir, com mais facilidade o controle cefálico, a postura sentada, aprende a engatinhar, caminhar, falar e desenvolver-se socialmente”. Com a evolução do tratamento, as crianças começam a fazer atividades que estimulem a motricidade e fala, pontos onde são apresentados maior índice de retardo nos portadores da Síndrome de Down. Alguns estudos comprovam que, o quanto antes os sindrômicos forem estimulados, melhor será o desenvolvimento durante a vida e menor serão as sequelas provocadas pelo retardo da síndrome. Estes resultados podem ser comprovados através da


convivência com portadores de SD que foram estimulados em períodos diferentes da vida. Luiz Odone Souza, 16 anos, iniciou a estimulação com cinco anos de idade. Os pais Cleusa Terezinha de Freitas e Racífico Freitas, não tinham conhecimento sobre os tratamentos que poderiam ser feitos no filho e acabaram por deixar o menino sem o acompanhamento profissional nos primeiros anos de vida. “A gente não sabia muito onde levar ele. Cada um que vinha conversar com a gente falava uma coisa diferente, e nos diziam que se ele fosse para a Apae e convivesse só com os outros Downs ele ficaria com mais retardo ainda”, revela o pai. Só depois de conhecer o trabalho desenvolvido pela equipe da Apae foi que o casal encorajou-se a levar Luiz para fazer o tratamento. Diferente dele, Gabriel Lopes, de cinco anos, foi submetido a técnicas de estimulação desde os primeiros dias de vida. A família, que já tinha um maior conhecimento sobre a síndrome, fez questão de proporcionar ao bebê todos os procedimentos possíveis para amenizar as suas limitações. A partir dos 40 dias de vida, Gabriel já era acompanhado por fisioterapeutas. Com o seu desenvolvimento, começou a ser acompanhado por outros profissionais da Apae. A diferença de tempo de estimulação entre Luiz e Gabriel é um dos fatores que fazem com que a realidade deles seja diferente. Luiz participa apenas das atividades oferecida na Apae e nunca frequentou escola regular. A fisionomia séria esconde um eterno menino, que com muitas dificuldades na fala encontra na mãe um porto-seguro para incluí-lo na sociedade. “Ele gosta muito de ir nas atividades da estimulação, mas ainda é muito dependente de mim. Como tem esta dificuldade na fala é preciso ter alguém sempre próximo quando ele quer interagir com os outros”, conta a mãe. Já Gabriel é mais independente. Como começou a estimulação precocemente, tem poucas limitações ao compará-lo com crianças da sua idade. A motricidade e a convivência social são trabalhadas durante as aulas da escola infantil que frequenta desde os dois anos

CUIDADOS O carinho e a atenção dos pais auxiliam Luiz na sua inserção social de idade. Ainda com um pouco de retardo na fala, convive muito bem com os pais e os dois irmãos mais velhos. “A chegada do Gabriel foi um presente para todos nós. Achávamos que por ele ter algumas limitações a convivência seria diferente, mas a cada dia ele nos ensina algo novo e nos prova que pode superar os obstáculos de forma inesperada”, releva a mãe Lisiane Lopes.

Participação familiar

Com o maior envolvimento da família no desenvolvimento dos Downs, as técnicas de estimulação precoce tornaramse mais conhecidas. A realidade da institucionalização dos sindromicos, que era vivida até a década de 1960, iniciou uma grande mudança quando a sociedade e principalmente os pais começaram a aceitar os Downs como pessoas com capacidades de serem cidadãos efetivos, respeitando, é claro, as suas limitações. O avanço da medicina foi fundamental para esta inserção social, pois proporcionou aos familiares um maior conhecimento sobre a síndrome e seus possíveis tratamentos, como explica a geneticista médica

Maria Tereza Sanseverino: “hoje com 15 semanas de gravidez já é possível identificar com certeza se o bebê é portador da Síndrome de Down. A partir destes exames, além da possibilidade de acompanharmos o desenvolvimento do feto com maior atenção, também facilitamos a adaptação da família para receber esta criança com limitações especiais. A síndrome não é mais uma surpresa para os pais, eles já começam a se moldar, desde a gestação”. O elo principal para a inclusão do Down na sociedade são os pais. Saber que o filho não será uma criança como as outras é um grande choque para qualquer família, e a partir daí estes vivem um período chamado de luto. A aceitação do sindrômico com suas limitações torna-se um objetivo a ser atingido primeiramente pelos pais, por isto a importância do diagnóstico precoce. Analisando por este foco, percebe-se que a institucionalização dos Downs há décadas atrás, não poderia ser julgada com um ato de egoísmo da família para com os portadores de SD, mas sim como um gesto de proteção para que

a sociedade não os excluísse de forma rude e preconceituosa. Ainda hoje as famílias passam por este período de luto, que pode variar de alguns meses até anos. A família de Gabriel encarou a aceitação da síndrome com um grande trabalho baseado na espiritualidade e nos aprendizados diários proporcionados pelo pequeno menino. “Ser mãe de um Down é uma superação diária. No início cria-se uma ferida, que com o tempo e a convivência vai sendo curada e modificada para um sentimento de luta por eles”, desabafa a mãe Lisiane. A psicopedagoga Terezinha reforça que o resgate da competência parental, que é abalado durante o período de luto da família, é muito importante para o bom desenvolvimento do Down. “A participação dos pais na estimulação precoce é fundamental, não só em função das orientações que receberão, mas também para que possam observar os padrões interativos entre eles e o bebê. O envolvimento pode ajudar no desenvolvimento cognitivo, habilidades sociais e maturidade emocional”, explica. revista exp

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e Família UMA NOVELA DA

VIDA REAL

A alienação parental é uma doença que tem cura e tratamento, mas que expõe crianças das mais variadas idades a uma disputa desleal e egoísta dos pais CAETANNO FREITAS

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izem que a dor de perder um filho é extremamente avassaladora e incalculável. Não se pode dimensionar o quanto significa para uma mãe ou para um pai

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uma perda como esta. E não importa em qual momento da vida, o sofrimento será o mesmo, de igual intensidade. Dizem também que a força para retomar o curso da vida é a parte mais complicada do processo. Mas e quando esta perda não está relacionada a nenhum

acidente ou fatalidade e sim a um afastamento provocado pelo próprio pai ou pela própria mãe da criança? E quando um dos genitores fica longos anos sem pode olhar para o filho, somente por causa de um desvio de conduta do outro? Parece uma situação improvável e um

pouco confusa, mas a Síndrome da Alienação Parental (SAP) é cada vez mais comum no cenário familiar. É uma doença que tem tratamento e solução. Porém, provoca consequências que podem destruir uma infância inteira.


“ “ A criança não tem condições de discernir o que é mentira e o que é verdade.

O alienador percebe que tem a faca e o queijo na mão e faz bom uso disso.

RODRIGO PAIXÃO, advogado

MARIA BERENICE DIAS, ex-desembargadora

A síndrome

A alienação parental é definida como um afastamento imposto por um dos pais, cujo único objetivo é tirar a criança do convívio do outro. Normalmente, esta atitude é originada por uma mágoa, um ressentimento somado ao sabor da vingança. Uma mistura de sentimentos ruins que resultam num processo judicial lento, cansativo e cercado de polêmicas. A única intenção de uma pessoa que tenta retirar a criança do convívio do outro é influenciar o próprio filho ou filha para que ela não queira mais ver o pai ou a mãe em questão. O advogado Rodrigo Paixão, especialista em Direito de Família, define: “O alienador nada mais é do que um sedutor profissional”. Para Paixão, ele consegue interferir nos pensamentos da criança para que ela passe a acreditar numa verdade construída. A maioria dos casos de alienação parental envolve denúncias de agressão e abuso sexual, explica o advogado. Paixão, que concluiu o curso de Especialização em Direito baseado no polêmico assunto, sinaliza para outro problema: as provas da suposta violência contra a criança podem ser facilmente adquiridas através de laudos periciais emitidos por psiquiatras e psicólogos “despreparados”. Para a desembargadora

DISPUTA A mãe puxa para o lado contrário do pai e a criança permanece ao centro, sem conseguir entender o que acontece ao seu redor

aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ/RS) Maria Berenice Dias a ignorância dos profissionais da saúde é um dos maiores problemas em casos de alienação parental. “O que existe é um extremo despreparo e desconhecimento de alguns especialistas que não sabem constituir um abuso sexual ou uma agressão a uma criança. Os laudos emitidos por psiquiatras e psicólogos não têm critério algum. São documentos inconclusivos. E para piorar, têm um valor fixo. Podem ser facilmente adquiridos por um determinado preço de mercado”, explica Berenice. As acusações de Paixão e Berenice contra os psicólogos têm fundamento. O coordenador da área técnica do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul, Lúcio Garcia, admite que realmente há um conflito, mas destaca o abismo existente entre um profissional da saúde e um juiz. “Este problema existe porque as duas áreas trabalham com objetivos distintos. Muitas vezes o que o paciente fala é uma verdade diferente da jurídica. A verdade vale naquela relação de atendimento, entre o psicólogo e o paciente. O que acontece, geralmente, é que não se consegue diagnosticar essa síndrome porque o psicólogo vai centrar a avaliação através da observação”, explica. Garcia segue em defesa da categoria. “O Ministério Público quer ouvir do psicólogo o que não é possível de ser respondido juridicamente. Não há condições de se responder uma situação dessas com a objetividade jurídica que ela necessita. Há

FALSA PROTEÇÃO Um sentimento provocado pela alienação parental

claramente um abismo na relação entre um juiz e um psicólogo, embora os profissionais da saúde sejam os mais indicados para cuidar de assuntos como esse”, sustenta. Este tipo de confusão, somada à morosidade do Poder Judiciário, traz mais complexidade ao assunto. Distante do martelo das sentenças judiciais, Berenice foi a pioneira a falar sobre alienação parental no Brasil, que começou a entrar em pauta na década de 1980. “Quando um juiz recebe uma denúncia de alienação parental, a primeira medida que ele toma é proteger a criança, pedindo o afastamento da guarda e suspendendo as visitas do genitor acusado. Isso é um grande problema porque, mesmo que as acusações sejam verdadeiras, acaba dando mais tempo para o alienador trabalhar. Ele percebe que tem a faca e o queijo na mão e faz bom uso disso”, afirma. O sentimento de Berenice é compartilhado por Paixão, que também critica a suspensão imediata da guarda. “O juiz fica muito vulnerável. Ele tem muitos processos para analisar e, quando recebe um caso de alienação parental, a primeira medida que ele toma é essa, para proteger a criança. Mas isso é o maior erro que pode existir nestes casos. Ele acaba impedindo a convivência e permitindo que o alienador fixe a sua estratégia na cabeça do filho, que acaba tomando aquilo como verdade absoluta”, explica. Há casos, no entanto, que são primeiramente tratados como alienação parental, mas depois descobre-se que a criança realmente foi vítima de uma agressão ou abuso sexual. Então, o Judiciário remete o processo à

esfera criminal. Todos os casos de alienação parental têm prioridade de tramitação na Justiça, regra que não é efetivamente aplicada, conforme esclarece o advogado Rodrigo Paixão. “Quando o juiz recebe uma denúncia, ele deve parar tudo que está analisando e se debruçar sobre o assunto. Não poderia ter nada interferindo, muito menos fatores externos. Como é um processo longo e demorado, essa questão da prioridade de tramitação acaba não acontecendo”, ressalta. Além disso, ainda há um rodízio de juízes entre as Varas. “Existem casos que são analisados por mais de cinco magistrados diferentes. Mas a mudança de Vara é um direito do juiz. Então não se pode culpá-lo de forma alguma”, afirma Berenice. “A parte mais prejudicada de um processo desses é a criança, sem dúvida. Ela não tem condições de discernir o que é mentira e o que é verdade. No futuro, quando descobrir que tudo não passou de uma mentira, ela precisará de acompanhamento psicológico para reconstituir e reparar seu lado emocional”, diz Berenice. Paixão defende, atualmente, cinco casos de alienação parental. Em um deles, “o mais complicado”, já se passaram cinco anos de distância e sofrimento envolvendo mãe e filha. Ele classifica esses casos como uma “novela da vida real”. “A criança acaba se tornando vítima de um jogo desleal. É como se as cenas de uma novela refletissem a realidade”, destaca o advogado, que classifica a vitimização como crueldade com a criança, alienada pelos próprios pais. revista exp

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A DONA Vera é a idealizadora do baile que existe há seis anos

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eLazer NA SEXTA-FEIRA O

baile é de

quem?

A festa organizada por Vera é a atração principal de todas as semanas no Nonoai Tênis Clube há seis anos MARIANA FONTOURA

U

Fiz o baile para aproveitar um pouco. Antes não dava, não tinha condições. Realizei um sonho. VERA MEDINA, aposentada

m pouco antes das quatro horas da tarde, o Nonoai Tênis Clube já se encontra aberto nas sextas-feiras. A música ainda não começou, a banda continua organizando o palco, mas algumas senhoras e senhores já ocupam parte das mesas, previamente reservadas ou não. A dona do baile chega e não há quem ela não conheça. Mal adentra o salão e já está negociando os convites e ingressos para o jantar-baile de aniversário do evento que leva seu nome há seis anos. Verinha, para os mais íntimos, ou Vera Lúcia Terra Medina, 59 anos, é quem promove o Baile da Vera no bairro Nonoai. O cartaz laranja na fachada do local esbanja democracia e convida pessoas de todas as idades a bailarem todas as semanas ao som de música ao vivo. A anfitriã recepciona a todos de frente para a porta de acesso à festa. Com R$ 8 a entrada é garantida. Dance o quanto puder. E se ficar com fome, a banda da noite anuncia: “pastéis, picadinho, sanduíche aberto e porção de fritas para você”. Aposentada da extinta Caixa Econômica Estadual desde 1994, é a única dama que não dança despreocupadamente. Depois que a música começa e os casais vão se formando, ela

PÚBLICO Pessoas de todas as idades arranjam um par circula pelo espaço garantindo a satisfação de todos. Verifica as mesas reservadas, vai à cozinha, volta, cumprimenta o pessoal da banda, senta em uma mesa para conversar, retorna para a recepção. Ela baila pela pista, sim, em um ritmo mais frenético do que as outras mulheres, de uma ponta a outra do salão. Com uma média de 180 a 210 frequentadores por semana,

Vera realizou um sonho antigo ao criar seu baile. Antes dele, não costumava sair e nunca tinha frequentado uma festa como a dela. Viúva desde 1999, o marido alcoólatra exigiu muito tempo de sua vida, e ela acabou abrindo mão da liberdade para evitar problemas e suportar as dificuldades. “Fiz o baile para aproveitar um pouco. Antes não dava, não tinha condições. revista exp

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CASAL FELIZ Valter e Maria têm lugar reservado no baile que é um dos três eventos que frequentam todas as semanas Realizei um sonho”, conta. Para Astúria Santos de Castro, o baile também é sinônimo de liberdade, conquistada há 17 anos. Quando casada, o marido não a deixava trabalhar. Vivia como dona da casa. “Dinheiro nunca faltou, mas eu sempre sentia que faltava alguma coisa”, confessa. Ela sentia falta de tudo o que vive hoje. Massagista há 16 anos, logo que perdeu o marido buscou iniciar a própria vida fazendo cursos, procurando um emprego e sempre se divertindo. No começo, foi difícil conseguir estabilidade e conquistar clientes. Em outubro deste ano, Astúria completa 72 anos. É possível encontrá-la às oito horas da manhã, esperando um ônibus para atender a mais um chamado. Ela já manteve um espaço para atender às sessões, mas prefere ir até casa de quem agenda. Em seis anos de festas, Vera coleciona histórias passadas a cada sexta no Nonoai. Casais que se formam, raras brigas e outros que aproveitam o evento para escapar da esposa ou do marido. “É jornalista? Sabe, eu não posso aparecer, né...” Mas o fato que não sai da memória é a morte de uma senhora durante o baile. O

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A pessoa da Vera me cativou. Gosto muito de trabalhar aqui e só sairia por algum problema de saúde muito grave. XÊNIA MACÁRIO, recepcionista

único dia que a música e alegria foram abaladas. Vera conta que o desejo da mulher era morrer dançando, e assim aconteceu. Mas dentre os causos felizes e os pares mais bem sucedidos do baile está Valter Silveira Gonçalves, 59, que namora Maria Maciel dos Santos, 70. Ele vive em Porto Alegre, ela em Viamão. Cada um tem sua casa, mas o que os faz passar três noites por semana juntos na casa dele são os bailes. A festa da Vera é um dos três eventos que o casal frequenta religiosamente todas as semanas. E os dois vivem assim há 12 anos. Ele garante que

na casa dele não entra nenhuma mulher que não seja ela. Sobre a possibilidade de mudar-se para a Capital, Maria responde convicta: “Não temos compromisso, mas nos vemos sempre”. O casal dança três, quatro músicas sem parar. Quando o cansaço se aproxima, retornam à mesa garantida todas as sextas pela Vera. Balas, água, refrigerante e uma pequena placa na mesa identificam o par: “Reservado para Casal Feliz” e fazem jus ao título. Maria não hesita em rir o tempo todo enquanto Walter faz graça. Nem sentado ele deixa de cantar e balançar as pernas ao som da música ao vivo. Viúva há 15 anos, Maria é discreta. Reserva a ousadia do vestuário para a dança. Valter aposta na camisa social e calça bem passada, blazer e cordão dourado no pescoço. Não faltam ao baile jamais. Todas as sextas tomam posse do lugar ao lado das caixas de som, reservado sob o título mais que merecido. Se depender de Valter, o casal feliz vai bailar mais algumas boas décadas: “Ainda vou até os 100 dançando!”. A discrição de Maria não se aplica à Vera. Vaidosa, a dona

da festa esbanja boa forma e capricha na produção a cada sexta. Maquiagem, salto alto, blusa com aberturas, amarrados, franjas, saia justa e mais curta. Dama de preto. Viúva mas não sozinha. O companheiro está sempre por perto. “Ele morre de ciúme”, confessa, e comparece a todas as edições do baile. Ele ajuda no trabalho da copa, lidando com as comidas e bebidas, mas está sempre de olho nela. Atenta o tempo inteiro em quem entra e sai do salão. A recepcionista Xênia Corvello Macário, 29 anos, conheceu Vera por meio de uma das garçonetes da festa e a considera uma mãe. Das 16h às 22h ela observa todo o movimento. Recebe cantadas, flores, beijos, abraços, lhe pagam doces, bebidas e leva tudo na esportiva. Xênia vê no público maduro do baile os mesmos anseios dos jovens e ouve as conversas até sobre os namoricos e sexo entre os velhinhos. Formada em pedagogia, Xênia não pensa em largar o trabalho das sextas-feiras. “A pessoa da Vera me cativou. Gosto muito de trabalhar aqui e só sairia por algum problema de saúde muito grave”, afirma.


eEnterro dos pobres O CAMPO

é Santo

A história do cemitério de Porto Alegre que sepulta gratuitamente, em média, três pessoas por dia

ANA KARINA GIACOMELLI

É

uma extensão triste de terra seca. É um silêncio doloroso de presença de morte. Era uma terça-feira ensolarada de inverno. Apenas duas pessoas esperando pela remoção do corpo de um familiar que foi enterrado no Campo Santo, cemitério gratuito da Santa Casa. Quando as condições financeiras melhoram, parentes de pessoas enterradas no local costumam transferir seus entes à parte “nobre” do cemitério, comenta o funcionário do local.

LOTADO 4,5 mil pessoas estão enterradas na área que a Santa Casa de Misericórdia reserva para famílias sem recursos revista exp

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Olímpio Teixeira da Silva, 57 anos, de Viamão, há 24 anos trabalha enterrando pessoas e removendo o que sobrou dos corpos. “É apenas mais um dia”, acrescenta Olímpio. Ele abre a cova e o simples caixão de pinus já não existe mais. Apenas os ossos do morto. Assim que retira tudo o que restou do cadáver, o coveiro coloca em um saco plástico e logo começa a preparar novamente a terra, para o próximo que vier. Deixa a cova rasa para facilitar a retirada do corpo três anos depois. Dois coveiros, duas pás, dois ganchos, uma placa numerada e muita terra já estão preparados. Chega mais um caixão de pinus que a Kombi branca, carro funerário doado pela prefeitura de Porto Alegre para a locomoção dos mortos, vem trazendo. No cemitério, há um local reservado para aquele corpo. Um buraco não muito fundo e, ao lado, um monte de terra. Os coveiros descem o caixão. O sepultamento traz novos sons: é o trabalhar da pá. Ela empurra a areia para dentro do buraco. Uma angústia de barulho contagia o ambiente: é o desmoronar do monte, uma cachoeira seca que vai guardando o caixão daquela pessoa embaixo dos pés de todos. Não há padres e ninguém reza em voz alta. Todos observam atentos, atônitos. O último momento: uma pequena placa com o número que irá representar aquela pessoa pelos próximos três anos. Olímpio enterra, diariamente, de quatro a seis pessoas, além de fazer pelo menos uma remoção. “A gente tenta fazer tudo da melhor maneira, com muita organização e respeito pela família que perdeu seu ente querido”, explica. Nem todos enterrados no local são reconhecidos por alguém. Quase 50% das pessoas levadas ao Campo Santo são indigentes. Algumas vezes, depois de certo tempo, aparecem familiares procurando reconhecer um corpo, atrás de um parente que sumiu. Christian Silveira, encarregado administrativo do cemitério da Santa Casa, conta que o Campo Santo tem espaço para 4,5 mil corpos e está sempre lotado. Lá, identificam os mortos por números gravados na cruz cravada onde são enterrados. “Cada corpo pode permanecer, gratuitamente, por três anos no local. Após isso, comunicamos à família que o mesmo será retirado

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para que dê espaço a outra pessoa”, salienta Silveira. Se o familiar quiser e tiver condições, pode remover o corpo para a parte do cemitério que é paga, podendo alugar ou comprar uma catacumba (gaveta) ou sepultura (chão).

Origem

No Campo Santo da Santa Casa de Misericórdia, há muito tempo, são enterrados pobres gratuitamente em Porto Alegre. Atualmente recebe mil corpos durante todo o ano. Já realizava serviço parecido com os escravos da região em meados do século 19. Tudo começou com o Hospital da Santa Casa de Misericórdia, fundado em 1803. Durante décadas, os mortos eram enterrados nos fundos da igreja do hospital, no centro da cidade. Devido ao acúmulo de corpos, os cadáveres ficavam a céu aberto. Para solucionar o problema, o cemitério foi transferido para o alto da região da Azenha, considerada “extra-muros” por ficar além dos limites de Porto Alegre. Em 23 de maio de 1850, o cemitério foi inaugurado, dando origem ao núcleo de cemitérios que depois ali surgiriam. Nas primeiras três décadas, cerca de 30 mil pessoas foram enterradas, sendo quase 7mil escravos. Os sepultamentos “de escravos” e “livres” eram feitos em locais distintos. 1934 é um ano marcante

A gente tenta fazer tudo da melhor maneira, com muita organização e respeito pela família. OLÍMPIO TEIXEIRA DA SILVA, coveiro

para se entender a evolução do enterro de pessoas carentes em Porto Alegre. Um grupo de senhoras que estavam na parte nobre do Cemitério da Santa Casa, em função da morte de um conhecido, presenciou um sepultamento no Campo Santo. Um carro oficial aproximouse de uma cova, abriu a porta traseira e dali foram despejados cadáveres de pessoas miseráveis. A brutalidade da cena chocou essas mulheres, que decidiram se reunir para prover aos pobres um enterro honrado. Fundava-se, assim, a União Pelotense São Francisco de Paula. O nome escolhido veio da coincidência de todas as fundadoras serem ligadas à cidade de Pelotas e radicadas em Porto Alegre. A entidade funcionava via doações de sócios, que contribuíam à maneira que lhes conviesse. Com o dinheiro arrecadado, as senhoras tratavam de garantir os serviços básicos

que dignificassem o enterro de pobres. Porém, a entidade vem perdendo força ao ver o número de contribuintes e, consequentemente, o número de enterros diminuir ano a ano. A concorrência entre funerárias do circuito tradicional crescia década após década. Um problema em especial começou a assolar todo o sistema de sepultamentos. Os “papadefuntos”, a serviço de funerárias particulares, abordavam, nas próprias casas de saúde, famílias de recém falecidos em busca de clientela. As próprias funerárias, por desgosto das atitudes das concorrentes ou mesmo por perda de clientela, decidiram regulamentar as suas atividades. Desse modo, através do Sindicato dos Estabelecimentos Funerários (SESF), criou-se, em 2001, a Central de Atendimento Funerário (CAF). Órgão ligado, primeiramente, à SESF e, secundariamente, à prefeitura. Ela é responsável pela organização e pela regulamentação dos sepultamentos. Todo enterro que acontece em Porto Alegre passa necessariamente pelos funcionários da CAF. Ela funciona como uma intermediária entre o público e as funerárias. As famílias, no difícil momento do falecimento de parentes, veem um processo regulamentado e esclarecido. A última mudança importante deu-se nos primeiros meses de

OSSOS Olímpio faz a remoção dos restos mortais para liberar a cova


2003. O cemitério da Santa Casa, que é privado e provém o espaço por caridade, não tinha condições de enterrar os corpos dos pobres nos feriados e finais de semana. Com isso, foi decidido que o Cemitério Municipal São João também participaria do Enterro do Pobre, abrindo seus espaços para sepultamentos aos sábados, domingos e feriados, com o objetivo de impedir o acúmulo de mortos na Santa Casa nos finais de semana. Agindo assim, o cemitério São João cumpre o

que está disposto no artigo 13 da Lei Municipal 373: “1º – Os cemitérios mantidos pelo Poder Público Municipal deverão destinar parte de seu quadro de sepultura para o sepultamento de pessoas comprovadamente carentes, conforme solicitação do órgão designado pelo Poder Executivo”. Os indigentes encontrados mortos que forem levados ao Departamento Médico Legal (DML) e não forem identificados, nem reclamados por ninguém

O Campo Santo tem espaço para 4,5 mil pessoas e está sempre lotado. CHRISTIAN SILVEIRA, encarregado administrativo

dentro de um prazo máximo de 48 horas, não entram no programa do Enterro do Pobre. O sepultamento deles fica a cargo, então, do próprio DML e da prefeitura de Porto Alegre. A Central de Atendimento Funerário é quem fiscaliza o cumprimento dessas normas. Ela, por sua vez, também é fiscalizada pela chamada Comissão de Serviço Funerário, órgão formado pelas secretarias municipais de Saúde (SMS) e de Meio Ambiente (SMAM). Há também leis que asseguram o sepultamento de pessoas pobres. Todo sepultado pelo Enterro de Pobre, por não ser perpetuante (dono de uma sepultura) tem o direito a permanecer três anos na cova temporária. Esse é o tempo mínimo permitido, necessário à decomposição do corpo. Após o prazo, a família do falecido tem duas opções: pagar por uma vaga nos ossários particulares (mediante uma taxa de R$ 50 a cada três anos) ou optar pelo Ossário-Geral, no qual os restos mortais são guardados sem identificação. As funerárias também são obrigadas por lei a oferecer preços acessíveis a famílias de baixa rende que optam pelo Enterro do Pobre.

Como funciona

CRUZ Flores de plástico adornnam placa que identifica sepultura

O atestado de óbito afirma, tecnicamente, que uma pessoa morreu. Costuma ser dado pelo médico, que aponta a causa da morte. Caso ele não saiba o motivo, o corpo é enviado ao DML para ser realizada a necropsia do corpo. Após o óbito, o assistente social do hospital ou do DML entra em contato com a família do morto. É necessário uma declaração, sem necessidade alguma de comprovação, de que não possuem recursos suficientes para custear os serviços funerários do defunto. O

assistente social faz a declaração por escrito de que necessitam do serviço gratuito. A família ainda tem que fazer o registro jurídico de falecimento. Para isso, encaminha-se até um cartório com os documentos do morto e mais o atestado de óbito, que transforma-se em uma certidão de óbito. De posse da certidão e da declaração da assistente social, a família deve se dirigir à CAF, que fica na avenida Santana, 966. É somente lá que são expedidas as Guias de Autorização para Liberação e Sepultamento de Corpos (GALSC), documento necessário para qualquer movimentação do corpo a partir de então. Nos dias úteis, a CAF encaminha os familiares do morto à sede da Entidade Beneficente União Pelotense, na rua Gal. Bento Martins, 306. Lá, com a GALSC em mãos, é a família que leva o caixão, doado pela própria organização, até o Kombi para buscar o morto. Chegando lá, os familiares trabalham de novo. É hora de vestir o cadáver. Vestir o corpo sem vida costuma ser missão complicada para a família, e é por isso que geralmente recebem ajuda voluntária de um funcionário do local. O corpo é colocado no caixão. Dentro da Kombi funerária, o caixão é levado ao Campo Santo. Os familiares descem do carro e baixam o caixão, que vai para cima de uma esteira, embaixo de um toldo. Ali, o caixão é destampado para que todos possam dar o último adeus. Nos fins de semana e feriados, o processo é diferente. Com o descanso dos integrantes da União Pelotense nesses dias, a CAF aciona uma das 28 funerárias de Porto Alegre, todas ligadas ao sindicato da categoria. Dentro de um sistema de rodízio, são obrigadas, quando chamadas, a providenciar os serviços funerários do Enterro do Pobre. A funerária da vez pega o corpo no hospital (ou DML) e o coloca em seu caixão mais simples, já destinado para o programa. Sem os serviços prestados normalmente ao embelezamento do morto, a funerária carrega o corpo até o Cemitério Municipal São João, zona norte de Porto Alegre. O caixão é retirado do carro e descansado sobre uma maca que já o aguarda ao lado da cova. No local, familiares e amigos podem chegar perto para o último adeus. revista exp

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eDisputa urbana

Briga de rua QUASE CENTENÁRIA

Borges de Medeiros e Ramiro Barcelos foram protagonistas de uma rivalidade política que durou décadas. Fossem vivos, talvez ainda estivessem competindo, dessa vez para saber quem ficou com o melhor conjunto de quadras

APROPRIADO Os trajes do homem remetem a um tempo em que a Borges ainda era a “mais bela” avenida de Porto Alegre CRISTINE KIST

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m 1915, começou a circular em Porto Alegre um livreto de título Antônio Chimango, assinado por Amaro Juvenal. Tratava-se de um poema cujo protagonista era uma caricatura do então presidente do Estado, Borges de Medeiros (1963 - 1961). Mais tarde ficou

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provado que Juvenal era, na verdade, Ramiro Barcelos (1851 - 1916), primo e inimigo político de Borges. O pseudônimo não foi escolhido por acaso: Juvenal era o nome de um crítico latino e Amaro é sinônimo de “amargo”. A rivalidade entre os dois começou ainda no século 19. Borges era delegado de polícia e filhote político de Júlio de Castilhos, então presidente

do Rio Grande do Sul e um dos fundadores do Partido Republicano Riograndense. Ramiro, médico e jornalista, também pertencia ao partido e era admirador de Júlio. Ele ocupava a posição de senador depois de uma carreira política muito bem-sucedida (já havia sido procurador do estado e secretário da Fazenda) e era o mais cotado para a

sucessão de Júlio. Era, porque surpreendentemente foi Borges o indicado pelo próprio presidente, que por algum motivo acreditava que poderia governar através dele. Um ano antes de falecer, Ramiro se candidatou a senador mais uma vez, mas as eleições foram fraudadas (provavelmente com a ajuda de Borges) e, aí sim, ele publicou Antônio Chimango como forma de vingança.


CRÉDITO FOTO

BORGES Parceria com Júlio continua quase 100 anos depois

RAMIRO Praça força o convívio com o líder que o preteriu

Quem veio primeiro: Borges 0 x 1 Ramiro

Ligação com Júlio de Castilhos: Borges 3 x 1 Ramiro

Desde 1889, logo depois da Proclamação da República, Ramiro já dava nome à rua que hoje se estende da Ipiranga até a Voluntários da Pátria (na época ela era menos extensa). Borges ganhou sua avenida mais de 30 anos depois. A Borges foi, no entanto, projetada para ser uma das mais belas ruas da cidade. A topografia não ajudava, e as obras para a abertura da avenida começaram apenas na década de 1920.

Arquitetura: Borges 1 x 1 Ramiro

Em 1892, muito provavelmente Ramiro volta e meia passeava pela “sua” rua e admirava os 108 “prédios térreos” já construídos por ali. Além deles, haviam mais cinco assobradados e três sobrados. Uma região até que bastante movimentada. Mas a Borges foi planejada com base no projeto de urbanização de Pereira Passos para o Rio de Janeiro, ou seja, desde o início ela havia sido projetada para ser uma das mais belas avenidas da cidade. Otávio Rocha (o prefeito, não o viaduto) deixou claro que o projeto foi executado principalmente por questões estéticas: “Julguei que era uma obra apenas de higiene e de embelezamento, e não uma obra de viação. Com a largura de 13 metros, sem ligação com o Porto, em nada viria a melhorar o tráfego de veículos e muito menos concorrer para descongestionar a circulação dos bondes”. No seu livro Histórias

de Porto Alegre, lançado pela L&PM em 2004, Moacyr Scliar, que era um orgulhoso morador do Bom Fim e portanto pode ser considerado isento nessa briga, descreveu a Borges assim: “A Borges é reta. Foi criada como fruto de uma certa visão urbanística - a visão que, nascida em Paris, consagrou os boulevards, com os quais o barão Haussman inaugurou um paradigma de modernidade”.

História: Borges 2 x 1 Ramiro

Ramiro provavelmente acharia no mínimo muito engraçado que um dos trechos da avenida que leva o nome do rival fosse apelidada justamente de “esquina democrática”. A Rua da Praia (ou dos Andradas, para os menos íntimos) já era palco de manifestações políticas muito antes da existência da Borges. Durante o governo do próprio Borges, em 1915, a Brigada Militar interveio com violência contra um grupo que protestava contra a candidatura do Marechal Hermes da Fonseca ao Senado Federal na eleição que motivou Ramiro a escrever Antônio Chimango (curiosamente, Hermes venceu a eleição, mas não assumiu o cargo por conta do assassinato do amigo Pinheiro Machado no dia em que seria diplomado). Nos anos 1970 e 1980, a esquina foi o ponto de encontro dos manifestantes que pediam eleições diretas e recebeu o apelido que, nas palavras de Scliar, a transformou na esquina “mais famosa da cidade e do estado”. A Ramiro não tem tanta história assim.

Tanto Borges quanto Ramiro pertenciam ao partido fundado por Júlio de Castilhos e eram muito ligados ao expresidente do Rio Grande do Sul. Curiosamente, as duas ruas também possuem alguma ligação com ele. A Borges encontra a Avenida Júlio de Castilhos na frente do Mercado Público – e, curiosamente, o próprio Borges esteve presente na inauguração da avenida que leva o nome do seu pai na política. Já a Ramiro tem parte de sua extensão ocupada pela praça Júlio de Castilhos, que fica entre as esquinas da 24 de Outubro e da Independência. Mas nem uma praça bem-cuidada é páreo para o fato de Borges ter inaugurado a rua do chefe. Ponto pra ele.

Segurança: Borges 3 x 1 Ramiro

A Borges tem pelo menos três guaritas em que policiais militares fiscalizam o movimento e um número considerável de viaturas também circula com frequência. Isso durante o dia. À noite, as guaritas ficam vazias e as ruas transversais, cheias. Não que isso seja bom. “Esses inferninhos das ruas aqui perto transformaram tudo em uma desordem total, é tiro, bala perdida, um horror. Antigamente a gente saía para caminhar de noite sem problemas, mas agora é impossível”, reclama a aposentada Cleci Costa, de 74 anos e moradora da região há mais de 20. Na Ramiro, os

inferninhos não existem (ou, se existem, estão bem escondidos), o que não significa que a rua seja absolutamente tranquila. O comerciante Elvis Falcão Trindade, que trabalha há 14 anos numa loja de molduras entre a Osvaldo Aranha e a Cabral, conta que teve sorte: “Já assaltaram a loja do lado e a da frente também, mas aqui nunca”. Ninguém pontua.

Hoje: Borges 3 x 2 Ramiro

Na Borges estão alguns dos cartões postais mais conhecidos da cidade, como o viaduto Otávio Rocha e próprio Mercado Público, mas a avenida paga agora o preço por ter sido um dia a mais moderna de Porto Alegre: a modernidade dos anos 1920 hoje só deixa mais evidente que a região parou no tempo. Bom exemplo disso são as inúmeras lojas de revelação fotográfica (e os seus funcionários que usam coletes chamativos e gritam incansavelmente que entregam a “foto na hora”) e a maneira com que carros e pessoas dividem os mesmos espaços sem muita ordem. A Ramiro, que não foi projetada com antecedência e nem nasceu em área nobre, hoje se converteu em um dos endereços mais valorizados da Capital e fica no meio termo entre a tranquilidade do Moinhos de Vento e a boemia da Cidade Baixa. Mesmo Trindade, aquele que credita à sorte o fato de ainda não ter sido assaltado, admite que, se pudesse, se mudaria pra lá: “O clima é ótimo, é uma rua bem residencial, tudo muito tranquilo”. Ramiro perdeu mais uma vez. revista exp

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eCultura

Bibliotecas

EM TEMPOS MODERNOS

O avanço tecnológico e a má utilização dos meios de informação podem estar contribuindo para a diminuição do número de leitores brasileiros

AMANTE DOS LIVROS João Batista é estudante e declara-se um apaixonado pela leitura

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revista exp


VALESSA VIEGA PRADO

G

raças à Bíblia de Gutenberg, os livros deixaram de ser propriedade de milionários e passaram a se popularizar, com as limitações da época, é claro. Hoje é possível ler a Bíblia em computadores, notebooks, tablets ou celulares com tecnologia apropriada. A modernização dos meios de leitura mantém o debate que vem acontecendo desde o início dos anos 2000: o fim do livro em papel. Em Não contem com o fim do livro, o escritor Umberto Eco e o cineasta Jean ClaudeCarrière discutem a situação do livro no mundo contemporâneo e seu futuro com o surgimento de novas mídias, principalmente a veiculação digital. Os autores afirmam que o livro não terá fim. Apesar dessa preocupação pode-se perceber que essa possível diminuição da cultura da leitura não se deve ao avanço tecnológico, não diretamente. O segundo empreendimento online que mais obteve sucesso depois do Google foi o site Amazon, uma livraria na web. Para os amantes da leitura nada substitui o prazer de virar uma página ao término da última palavra, de sentir a textura do papel e o material da capa. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, revela que o brasileiro lê em média quatro livros por ano e apenas metade da população pode ser considerada leitora. O estudo realizado entre junho e julho de 2011 mostrou também que três em cada quatro pessoas não frequentam bibliotecas, apesar de a maioria dos brasileiros afirmar que elas existem em seu bairro ou cidade. Um terço dessas pessoas afirmou ainda que nada as faria visitar mais o local. Em Porto Alegre, desde 2007 a Biblioteca Pública do Estado (BPE) encontra-se fechada para reformas e restaurações. Com isso está funcionando provisoriamente na Casa de Cultura Mário Quintana. A diretora da instituição, Morgana Malcon, afirma que a procura do público caiu consideravelmente neste período. “Muitos reclamam da distância, aqui é mais longe, principalmente para os idosos, em compensação, ganhamos outro tipo de público, pessoas que frequentavam a CCMQ, os

cafés e também aqueles que gostam de ler os periódicos”, salienta Morgana. No mês de março, foram registratos 2758 frequantadores no espaço reservado à Biblioteca Pública na Casa de Cultura. Na sede original o número chegava a quase mil usuários circulando por dia. A bibliotecária não considera a queda na procura do público pela biblioteca um dado preocupante. “Tenho certeza que quando voltarmos ao prédio antigo tudo voltará ao normal”, projeta. Morgana tem por certeza que o fim do livro é apenas um mito. “O principal motivo das pessoas não frequentarem bibliotecas é que elas estão deixando de ser espaços atraentes. Não oferecem programação cultural, não têm acervo atualizado e não recebem incentivo suficiente das administrações públicas”, comenta a bibliotecária. Para tentar resgatar o público leitor, a área para empréstimo de livros da BPE será transferida para outro prédio, na esquina da General Câmara com a Andrade Neves. Conforme as previsões da diretora da BPE, este local será liberado até o final do ano. “Além disso haverá ampliação do acesso à internet gratuita, do espaço destinado ao sistema braile e novos setores serão criados, como o infantil, a gibiteca e o setor de periódicos”, acrescenta Morgana.

Acredito que existam bibliotecas públicas próximas da minha casa, mas não as conheço. Aqui pelo menos sei que sempre vou ter algum exemplar que ainda não li. JOÃO BATISTA, estudante

importa de ir até o centro para retirar livros. “Acredito que tenha bibliotecas públicas próximas da minha casa, mas não as conheço. Aqui pelo menos sei que sempre vou ter algum exemplar que ainda não li. Me considero um

amante dos livros, e dos livros de papel e com capa”, encerra o estudante. Em um passeio rápido pela provisória sede na BPE na Casa de Cultura Mário Quintana é possível conhecer outros personagens que vão contra as estatísticas. É o caso do vendedor Ari Bentz, de 63 anos. Ele admiti não conseguir ler um livro inteiro, mas assume o gosto pela leitura. “Gosto muito de ler, mas tenho dificuldade, porque nessa idade cansa as vistas. Eu até que queria ler um livro desses, mas acabo ficando somente nos jornais”, lamenta-se. Diferente de Ari, Paulo dos Santos, autônomo de 61 anos costuma ler um livro a cada dois meses. Resgata na memória que já leu cerca de duzentos exemplares. Além dos livros, Paulo vai freqüentemente a biblioteca para ler também jornais e revistas. “Eu comecei lendo as revistas Capricho das irmãs. Desde aquela época peguei gosto pela leitura”, finaliza.

O lado B

Apesar das estatísticas mostrarem que cada vez menos pessoas possuem o hábito da leitura, João Batista de Freitas Junior, de 19 anos, demonstra exatamente o contrário. O estudante prepara-se para o vestibular, mas apesar disso, a leitura que faz no momento não tem nada a ver com aquelas obrigatórias presentes no edital das universidades federais. Na mochila, carrega Madame Bovary, romance escrito por Gustave Flaubert. “É um clássico que ainda não tinha lido e muitos já me recomendaram”, explica. O jovem lê em média dois livros por mês. Na Biblioteca Pública, possui cadastro para a retirada dos livros. Descobriu a BPE em visitas à Casa de Cultura. “Fico ansioso para saber como ficara a reforma. João mora na zona norte de Porto Alegre, longe da Casa de Cultura. Mesmo assim não se

REFORMA A Biblioteca Pública segue fechada desde 2007

HÁBITO Paulo diariamente lê jornais revista exp

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eCultura

LAVORO PELA

arte

Museu do Trabalho completa três décadas de trajetória e, graças ao empenho de artistas e apoiadores, mantém as atividades

SOFIA VONTOBEL

A

o entrar nas salas de exposições, o espaço é pequeno, intimista, mais parecendo salas de uma casa. O visual de galpão visto da rua é sentido apenas na parte da oficina, onde são feitos os cursos e muitos artistas aproveitam para se reunir e produzir algumas peças. Do nome do museu, o que lembra mais a palavra trabalho certamente não é o acervo de máquinas, pequeno e sem muito destaque, armazenados sem prestígio em uma sala que mais parece um corredor entre o ambiente de exposições e o espaço das oficinas. O trabalho é visto mais na interação entre alunos e professores da produção de esculturas e gravuras dentro do museu e, mais do que isso, no empenho desses artistas para manter o espaço aberto e em movimento constante, suportando-o com o dinheiro arrecadado pelo consórcio de gravuras. O Museu do Trabalho completa 30 anos em 2012. O espaço fundado em dezembro de 1982, fazia parte de um amplo projeto de preservação e restauração da antiga Usina do Gasômetro, então abandonada pela Eletrobrás. Com o objetivo de evitar a demolição do prédio, um grupo de estudantes e professores da PUCRS, liderados pelo sociólogo Marcos Flávio Soares, iniciou um debate público sobre o destino da Usina. Graças a esta ação, em 1983 o prédio foi tombado como Patrimônio Histórico do Estado.

GRAVURA Produções feitas no atelier por artistas como Paulo Chimendes são a fonte de renda do espaço

XX revista exp


O projeto inicial de ocupação da Usina do Gasômetro não pôde ser implantado e o Museu do Trabalho ficou instalado na sua sede provisória, nos galpões situados no início da Rua da Praia, de propriedade da Marinha do Brasil, onde está até hoje. Além da parte de exposições, acervo e atelier, o museu também tem um teatro, que foi instalado em um dos galpões anexos ao museu. Em 1987 fechou-se uma parceria com a Cia. Teatro Novo, de Ronald Radde, o grupo ensaiou e se apresentou por dez anos no local. Hoje o espaço continua sendo utilizado por grupos de teatro, apesar das condições não serem as mais favoráveis ao desempenho da arte. O galpão do teatro tem pouca ventilação, são poucos e antigos os ventiladores de teto que tentam amenizar o calor abrasador que se instala ao serem ligadas as luzes do palco, luzes estas que já não se encontram nas melhores condições assim como o restante do ambiente. Também em 1987 que o museu abriu sua primeira sala de exposição permitindo a montagem de exposições de arte no local. Até hoje foram promovidas cerca de 200 mostras entre exposições individuais e coletivas de artistas locais, brasileiros e internacionais. Sem incentivo público ou

HISTÓRIA Marinha cede o prédio para museu funcionar privado, o Museu do Trabalho se mantém com o dinheiro arrecadado pelo consórcio de gravuras e oficinas de artes plásticas. São nessas oficinas, realizadas desde 1988, que

artistas plásticos de longa data como Paulo Chimendes, responsável pelas aulas de litografia, entram em contato com outros artesãos e ensinam técnicas de escultura e gravura

ESQUECIDAS As máquinas que dão nome à instituição não têm lugar de destaque

para iniciantes ou interessados em aperfeiçoar os processos. A interação entre os participantes ao produzirem novas obras, o ambiente rústico dos galpões dá um clima ainda mais criativo e Cult para o local que agrada a muitos que passam pelo museu. Maria Tomaselli é uma dessas amantes do Museu do Trabalho. Ela utiliza o espaço para criar muitas de suas obras e sempre que pode leva pessoas para conhecerem o ambiente e tentarem desenvolver o lado artístico. Até sua mãe já participou das oficinas, onde aprendeu a fazer gravuras. O crescimento das obras feitas por ela foi tanto que uma das peças, que representa a fachada do museu, foi escolhida para ser capa da publicação comemorativa de 30 anos do Museu do Trabalho. Maria Tomaselli não é só responsável por carreiras de novos artistas plásticos, mas também esteve envolvida desde o inicio com o consórcio de gravuras, a principal fonte de renda do museu. O consórcio foi criado primeiro como Amigos do MAM (sigla formada pela letra inicial dos criadores: Maria, Anico e Marta), na década de 1980, inspirado por ações similares que ocorriam na América Latina. Maria Tomaselli participava deste núcleo junto com os artistas Anico Herkovits e Marta Loguércio, com o desmembramento deste grupo, Maria formou um novo coletivo, o Oficina 11, que manteve a distribuição de gravuras para associados. Logo este mudou de nome para Consórcio de gravuras do Museu do Trabalho. Desde 1996 este projeto é administrado pela direção do museu. Hoje o espaço é coordenado por Hugo Rodrigues que além de cuidar da parte administrativa, também se posiciona na curadoria do espaço de exibição e se propõe a manter viva a história do museu. Hugo foi o principal organizador da publicação comemorativa de 30 anos tendo grande participação também no texto nele publicado. Colaboração, empenho e dedicação são vistos em todos os momentos neste espaço cultural tão marcante da capital gaúcha e ao conhecer a história por trás dele cada vez mais a palavra trabalho faz todo sentido para nomear este museu. revista exp

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DIANE EARL/E2BN

eGenes digitais

UM DOS PAIS DA

PEDRO FAUSTINI

O

ano era 1936. Naquela época não havia computadores, mas um matemático britânico já dava os primeiros sinais do que essas máquinas poderiam ou não fazer. Poucos anos depois Alan Turing trabalhava para seu país na decodificação de mensagens trocadas entre os nazistas na Segunda Guerra Mundial (19391945). Além de seu tempo, ainda escreveu artigos que abordavam a inteligência artificial. Em retorno, foi preso por ser homossexual, o que contribuiu para seu suicídio em 1954. O pedido formal de desculpas do governo viria apenas no século seguinte. Para um computador realizar uma tarefa, é preciso que um programador especifique passo a passo o que deve ser feito. Essa sequência é chamada de algoritmo. Atualmente, com o desenvolvimento da tecnologia, os computadores são dotados de uma aura quase mística no imaginário popular de resolverem problemas que ninguém seria capaz. No entanto, os cientistas conheciam as limitações dessas máquinas antes da fabricação dos primeiros modelos. Isso se deve em grande parte ao trabalho de Turing, autor de um artigo que descreve um modelo matemático que formaliza o que pode ser computado.

computação O britânico Alan Turing, nascido há cem anos, projetou o potencial dos computadores, decodificou mensagens nazistas e foi vítima de homofobia DESENVOLVIMENTO Após a morte de Turing, a computação invadiu residências, e as máquinas se tornaram sonhos de consumo, como os Macintosh da Apple nos anos 1980

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revista exp

PIONEIRISMO Um dos primeiros computadores produzidos por uma empresa do Brrasil foi o CP 500, da Prológica, no início dos anos 80, de apenas 48 kb de memória

PORTÁTIL Toshiba T3100 foi um dos primeiros laptops a serem colocados no mercado, embora fosse dependente de uma fonte externa de energia


Conhecida como máquina de Turing, ela é constituída basicamente por uma fita (memória) de extensão infinita dividida em células, um cabeçote sobre esta fita e uma unidade de controle. O cabeçote pode ler um símbolo sobre a célula, escrever um novo símbolo ou mover-se pela fita a fim de acessar outro endereço da memória. Já a unidade de controle interpreta as instruções da máquina (como que símbolo deve ser escrito, ou para qual direção o cabeçote deve se mover), funcionando como um processador. O coordenador de Ciência da Computação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Alfio Martini, destaca que todos os computadores atuais são baseados na ideia da máquina de Turing. Ainda de acordo com o professor, isso vale também para quaisquer dispositivos modernos que possam ser programados. Martini observa que algo é computável se, e somente se, pode ser formalizado em uma máquina de Turing. Ele afirma que “este modelo matemático (a máquina de Turing) é fundamental porque antes do primeiro computador ser construído, já sabíamos quais eram os seus limites, isto é, o que ele podia ou não computar”. O professor de Ciência da Computação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Dante Barone, um dos organizadores das celebrações do centenário de nascimento do matemático ao redor do mundo, assinala que “a máquina de Turing é um modelo teórico, mas pode ser implementada”. Na mesma linha, o coordenador do curso na mesma instituição, Raul Weber, afirma que “muita gente, inclusive alunos de Ciência da Computação, fica confundido coisas, quer ver uma máquina

factível. Ela pode ser feita, mas não foi esse o pensamento”. Barone cita Turing como um de três pais da computação. Os outros são George Boole e John von Newmann. Boole, matemático britânico do século 19, contribuiu com estudos a respeito da lógica binária (os computadores realizam operações usando apenas dois dígitos, 0 e 1), enquanto que von Newmann, também matemático, mas da primeira metade do século 20, instituiu que instruções fossem armazenadas na memória do computador, em vez de cartões perfurados.

Inteligência artificial

O professor ressalta que o legado de Turing para o mundo contemporâneo abrange outras áreas. “Ele também teve importância para a inteligência artificial, com um artigo de 1950, chamado Computing Machinery and Intelligence (1950), no qual a proposta é fundamental é se as máquinas podem pensar”. Barone conta que o matemático fez uma previsão que no futuro elas poderiam passar no que ficou conhecido como teste de Turing. Isso significa que a computação se desenvolveria de tal maneira que uma máquina seria capaz de interagir com um ser humano e este não seria capaz de diferenciar por uma simples conversa, por exemplo, se o agente do outro lado se trata de uma pessoa ou computador. Apesar do nome parecido, este conceito corresponde a algo completamente diferente da máquina de Turing. Segundo Martini, até o momento nenhuma máquina passou pelo teste de Turing, mas espera-se que até 2030 haja computadores que consigam ser aprovados nele.

Guerra Mundial

Weber lembra que Turing contribuiu para a vitoria dos

ERRO DE PREVISÃO Populares gabinetes ao lado de monitores CRT não passavam no teste de Turing em 2000, apesar das previsões do matemático

Antes do primeiro computador ser construído, já sabíamos quais eram os seus limites. ALFIO MARTINI, professor de computação

Aliados contra os nazistas. Sua aptidão com números o fez ser convocado junto a outros profissionais pelo serviço secreto britânico para quebrar códigos alemães encriptados por máquinas, principalmente relativos à marinha adversária: “os alemães acreditavam que o Enigma (nome dessas máquinas) era inquebrável, que seu sistema de funcionamento não tinha como ser descoberto”, destaca. O coordenador assinala que os alemães mudavam seu sistema diariamente, e assim o método empregado poderia não funcionar 24 horas depois. Sobre seu funcionamento, o professor observa que “basicamente, ela substituía letras por outras. Mas nunca uma letra simbolizaria ela mesma, o que já era uma pista. O desafio era achar a combinação do dia. Tentar todas as combinações não era possível com a tecnologia da época, embora um computador de hoje conseguisse fazer o trabalho em menos de 10

minutos”. Turing desenvolveu um método que quebrava os códigos em questão de horas. Contudo, Weber salienta que a decodificação não se resumia a modelos matemáticos puros. Se uma mensagem fosse interceptada de uma estação meteorológica, por exemplo, era presumível haver palavras como “tempo” ou “previsão”, o que ajudava a busca de letras que se repetissem. Ainda, era hábito incluir saudações a Hitler ao final das mensagens, o que aumentava as possibilidades de novas deduções.

Preconceito e morte

Turing foi preso em março de 1952, após a polícia descobrir seu relacionamento com um homem em Manchester (naquela época homossexualismo era ilegal na Inglaterra), e assim ele não pode mais atuar com o governo no ramo da criptografia. Em vez de ir para prisão, aceitou se submeter a uma série de injeções de estrógenos para neutralizar seu desejo. Turing se matou em 7 de junho de 1954 (16 dias antes de seu aniversário) em casa. A empregada achou o corpo sobre a cama perto de uma maçã com cianeto O governo britânico fez um pedido de desculpas, mas só em 2009. O primeiro-ministro, Gordon Brown, afirmou que a história da Segunda Guerra poderia ter sido diferente sem a presença matemático e que ele mereceu muito mais. “Ficamos pensando o que mais ele teria feito, mas é pura especulação”, reflete Weber.

Alan Turing em Porto Alegre

tA UFRGS promove de setembro a janeiro uma exposição sobre Turing em seu museu, Avenida Oswaldo Aranha, 277, centro de Porto Alegre. O evento é o único do Hemisfério Sul incluído no calendário oficial do Ano Turing. O local será divido em áreas destinadas à biografia, criptografia, máquina de Turing, robótica, ética e inteligência artificial. Informações em www.ufrgs.br/alanturingbrasil2012/

TOUCHSCREEN Trabalho de Turing vale quaisquer dispositivos que possam ser programados, até smartphones como o Nokia N8

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eComportamento SEMPRE

conectados

A tecnologia móvel trouxe praticidade ao dia a dia, mas o uso excessivo de celulares, smartphones e tablets pode causar dependência LAURA D’ANGELO

A

cena é comum. A cabeça baixa, os olhos vidrados, os movimentos dos dedos que alternam sutileza e agilidade. Bares, ônibus, faculdades. São amigos em volta de uma mesa que ignoram a presença um do outro. São casais que mal se olham mesmo sentados frente a frente. É o motorista que esquece o trânsito por alguns instantes. O que deixa tantas pessoas alheias a conversas e acontecimentos ao redor é apenas um aparelho eletrônico de não mais do que alguns centímetros. Os celulares, smartphones e tablets tornaramse itens básicos do modo de vida do século 21. No Brasil, em 2012, são mais de 250 milhões de contas ativas de telefonia móvel, para uma população que, segundo o Censo 2010 do IBGE, beira os 191 milhões de habitantes. Ou seja, há mais celulares que pessoas no país. Mas toda essa conectividade cobra um preço. Uma pesquisa do instituto britânico YouGoy concluiu que 53% dos usuários de celular no Reino Unido sofrem de nomofobia (no mobile phobia). O termo designa o desconforto causado pela falta de acesso ao celular e às demais tecnologias móveis. Um problema que não aflige somente os britânicos: no próximo semestre, o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo deve lançar o primeiro serviço de atendimento voltado para dependentes de celular. Foi exatamente o termo “fobia” que o empresário Ramses Gobbi usou para descrever a sensação que tem ao ficar sem seu tablet

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MANIA O apego ao celular é considerado por profissionais como um novo tipo de ansiedade


Galaxy. “Parece que falta uma coisa, é uma sensação muito ruim”, descreve. Volta e meia ele para a conversa para atender o telefone. Gobbi pega um fone do bolso, coloca no ouvido e começa a falar. Mesmo sem se considerar um dependente da tecnologia, admite: “Se eu vou no banheiro e deixo o telefone aqui, fico com a sensação de que alguém vai me ligar”. O apego às tecnologias móveis não chegou oficialmente aos consultórios. A nomofobia, por exemplo, não consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), documento que reúne as patologias consideradas comprovadas pela Associação Americana de Psiquiatria e usado por profissionais de todo o mundo. Não é, portanto, uma doença. Tampouco está prevista na quinta edição do Manual que será lançado em 2013. “No futuro pode ser que isso seja considerado uma psicopatologia, mas só se for comprovado que ela cause um prejuízo significativo na vida da pessoa”, explica o psicólogo Wilson Vieira Melo, do Instituto de Terapia Cognitiva do Rio Grande do Sul. O trajeto é longo para que a nomofobia seja considerada um transtorno oficial. É preciso um número alto de ocorrências e extenso período de anos para que apareça no Manual, publicado, em média, de 20 em 20 anos. Além disso, precisa mostrar que possui peculiaridades que a distinga de outras psicopatologias, como aconteceu com a síndrome do pânico. Nos anos 1960, casos de ataques de ansiedade começaram a ser diagnosticados e diferenciados dos demais tipos de transtornos. Mas somente em 1987 ela foi incluída no DSM. No momento, a nomofobia encontra-se na fase de descoberta. Apesar de acreditar que possa vir a ser oficializada com o passar dos anos, a psicóloga Maria Augusta Mansur crê que a nomofobia é uma nova apresentação da ansiedade: “A pessoa com este problema deve ter uma psicopatologia primária que está sendo encoberta pela nomofobia”. Por enquanto, o uso excessivo de celulares, tablets e smartphones é considerado apenas um hábito da vida moderna. Os aparelhos unem o útil ao agradável. A estudante Andressa Aguiar, 22 anos, passa o dia fora de casa. O celular é necessário pela facilidade de contato que proporciona e também para passar o tempo, principalmente nos trajetos que

COMPANHIA Gobbi (E) não desgruda do tablet, mesmo durante as conversas com amigos

É quase uma fobia. Se estou sem celular, parece que falta uma coisa, é uma sensação muito ruim. RAMSES GOBBI, empresário faz diariamente de ônibus entre a casa, o trabalho e a faculdade. “O celular me distrai. Ainda mais quando estou em aula, com um professor chato. Mando mensagem pra alguém ou acesso a internet e fico em off por alguns instantes”, resume. O “ficar off” de Andressa é estar conectada. Ela mesma admite que passa 16 horas por dia na internet. Muito por conta da escolha profissional – ela cursa Sistemas de Informação –, mas também para não se sentir desinformada. Se o acesso não for pelo celular, é pelo computador. O mesmo acontece com Ramses Gobbi que, ao chegar em casa, a primeira coisa que faz é ligar o notebook. “Estou 24 horas conectado”, exagera. Não é à toa que nenhum dos dois consegue se imaginar sem celular. Tanto Andressa como Gobbi

levam o celular a todo canto. O empresário costuma ficar à beira da piscina com seu eterno companheiro ao lado, enquanto a estudante não desgruda do telefone nem na praia. “Vai que eu precise dele, né?”, brinca. Mas eles não consideram que o uso do aparelho os afaste das relações pessoais. Para Gobbi é exatamente o contrário. Quando jovem, ele ficava horas em frente ao computador. Hoje, aos 28 anos, anda para todos os lugares com o tablet. A tecnologia móvel o libertou: “Me sinto livre. O computador sim me tirava do convívio com os amigos e a família”, compara. Mas a mania constante de ficar com os olhos grudados no celular a conferir e-mails e navegar na internet não os poupam das reclamações de amigos e familiares. “Larga essa porcaria”, é o que diz o pai de Gobbi. Aos amigos, Andressa garante: “Consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo, falar com eles e ficar no celular”. Para os dois, o hábito não causa nenhum grande incômodo, a não ser ouvir algumas reclamações de amigos e parentes. Não há sofrimento nem dependência. O desejo de estar sempre bem informado e o medo de perder alguma ligação, descritos por Andressa e Gobbi, são sensações que viraram corriqueiras com o desenvolvimento dos aparelhos de telefonia móvel. Quem não se

sentiu desorientado ao passar um dia ou mesmo algumas horas sem o celular ao lado? Ou quem já não presenciou uma busca frenética e angustiante de um dono atrás do aparelho? Mas isso não quer dizer que, mesmo inerente ao estilo de vida atual, o apego às tecnologias não tenha significado. Para a psicóloga Maria Augusta Mansur, as pessoas estão sem paciência, e o celular auxilia na pressa pelos acontecimentos. “Há uma quantidade imensa de possibilidades e informações. Isso gera ansiedade, pois é impossível termos acesso constantemente a todas as coisas novas que acontecem ao nosso redor”. O jeito para não perder nada é estar conectado, mesmo que isso represente perder o que acontece à própria volta.

250 milhões é o número de contas ativas de telefonia móvel no Brasil

1,3

é a média de contas de celular que cada brasileiro tem

53%

dos britânicos sofrem de nomofobia revista exp

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eComunicação

Gre-Nal

DAS RÁDIOS

Aproximar, descontrair e torcer sem perder o profissionalismo são peculiaridades das web rádios de Grêmio e Internacional

TORCERDORES Cristiano Oliveski, locutor da Grêmio Rádio, torce pelo seu time, mas não perde o profissionalimo LEONARDO FISTER

N

o lugar do antigo rádio de mesa, um computador. Em vez do aparelho de pilha, um notebook ou um smartphone. O conteúdo Gre-Nal não é mais uma exclusividade das mídias tradicionais. Os dois clubes mais populares do Rio Grande do Sul têm apostado nas web rádios para divulgar suas novidades e chamar atenção da torcida. A Grêmio Rádio e a Rádio Inter são serviços de transmissões

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de áudio via internet com a tecnologia streaming, que geram som em tempo real e possibilitam a difusão de programação ao vivo ou gravada. Apesar de web, as características não fogem às de uma emissora tradicional. A Rádio Inter, por exemplo, nasceu em janeiro de 2010, por iniciativa do jornalista Rogério Stinieski. O estúdio da rádio funcionava um andar abaixo das cabines de imprensa do estádio Beira-Rio. Os materiais para montá-lo eram semelhantes ao de um veículo

comum e foram todos trazidos pelo profissional. “Para montar um estúdio, eu comecei a catar material. Abri o baú e trouxe um computador, uma mesa de som, cabos, fones e microfones. O isolamento acústico foi improvisado com bandejas de ovos. Assim montei o estúdio e a rádio foi ao ar”, recorda Stinieski. Em fevereiro de 2011, em virtude das reformas no BeiraRio, o estúdio foi transferido para o Ginásio Gigantinho. A Rádio Inter transmite os jogos do Internacional. As partidas

em casa são difundidas nas cabines de imprensa do estádio com a ajuda de uma empresa parceira, a Fade Video, que fornece equipamento. Quando os duelos são realizados fora, a equipe de comunicação conduz os confrontos do estúdio no Gigantinho, pelo chamado sistema off tube, com os seus próprios materiais. Uma particularidade da rádio é o investimento em uma programação musical 24 horas. “Isso surgiu da necessidade de cobrir o espaço vazio, mas o


principal motivo foi aproximação do público jovem. Assim, praticamente viramos uma FM. É muito bacana, pois o pessoal interage, pede música e cria um vínculo maior com o clube”, relata Stinieski. A estrutura da Grêmio Rádio não é muito diferente. O veículo entrou em ação no final de 2007 e, desde então, é voltado para as jornadas esportivas. O estúdio fica localizado nas dependências do estádio Olímpico. No início, as transmissões ao vivo aconteciam somente nas partidas disputadas em casa. No campeonato gaúcho de 2008, os jornalistas Haroldo Santos e Rafael Pfeiffer começaram a ir até outros estádios para cobrir os jogos do Grêmio fora de casa. “Nós já fazíamos a cobertura de algumas partidas da base, então decidimos encarar o desafio de transmitir os jogos do profissional. O jogo Juventude e Grêmio, pelas quartas de final do Gauchão de 2008, foi o primeiro que transmitimos in loco fora de casa”, afirma Rafael Pfeiffer, ex-repórter e locutor da Grêmio Rádio. Ao contrário do rival, os gremistas não investem em programação musical. Fora a cobertura de jogos, há um programa de debates, chamado Conexão Tricolor, que vai ao ar todas as segundas-feiras, das 19h às 20h. Porém, a Grêmio Rádio costuma sair mais para transmitir os embates do clube fora de casa. Para

Se você trabalhar em uma marca de refrigerantes, vai defendê-la e não gostar da concorrência. Grêmio e Inter são concorrentes, portanto o princípio é o mesmo BRUNO PANTALEONI, narrador e comentarista da Grêmio Rádio

isso, a emissora conta com os aparelhos fornecidos por uma firma parceira, a PGM. “Na minha concepção, essa é a função de um veículo do clube. É preciso acompanhar o time e exibir de perto o que está acontecendo”, destaca Cristiano Oliveski, narrador da Grêmio Rádio. Quando não é possível viajar, a equipe da rádio comunica os jogos de seu estúdio. As transmissões dos jogos da dupla Gre-Nal são as principais atrações das duas rádios. Por ser um veículo oficial do clube, as narrações não são imparciais e é comum ouvir locutores, repórteres e comentaristas

torcendo. Apesar do apoio declarado a uma das equipes, os comunicadores destacam que é possível torcer sem perder o profissionalismo. “Desde o início, nós sempre deixamos claro que, apesar de gremistas, somos profissionais. A torcida tem de ser na medida certa. Nós jamais escondemos a verdade. Se o time esta ganhando nós exaltamos, mas se está jogando mal, nós apontamos os erros e criticamos”, garante Pfeiffer. Entretanto, Stinieski ressalta que é preciso cuidar a maneira de fazer a crítica. “A gente não engana o torcedor. Nós falamos quando a equipe não faz uma boa partida ou perde feio. Entretanto, por ser uma mídia oficial, a gente cuida a maneira de fazer essa crítica. Não deve ser um julgamento acintoso, tem de ser algo mais suave”, argumenta. Uma prova de que é possível equilibrar o torcedor e o jornalista pode ser encontrada em Bruno Pantaleoni. De fevereiro de 2009 a agosto de 2011, ele trabalhou na assessoria de imprensa do Internacional e, consequentemente, na rádio do clube. Em dezembro de 2011, Bruno recebeu uma proposta para trabalhar no rival e aceitou o desafio. O início não foi fácil. Logo em sua primeira transmissão, alguns torcedores descobriram de sua passagem pelo Inter e enviaram mensagens bem desagradáveis. Porém, Pantaleoni afirma que, com o passar das

DESCONTRAÇÃO Do estúdio no Gigantinho Rogério Stinieski comanda a programação da Rádio Inter

transmissões, conseguiu fazer os ouvintes superarem as desconfianças. “Com o tempo, eu consegui mostrar ao torcedor que o meu trabalho era a favor do Grêmio, isto é, estava defendendo a mesma causa dele. Dessa forma, os receios e hostilidades cessaram”, revela. A despeito da experiência de trabalhar na dupla Gre-Nal, Pantaleoni não se considera um arquétipo de que é possível ser torcedor e profissional. Ele ainda declara que trabalhar para um clube de futebol é o mesmo que trabalhar em uma firma qualquer. “As equipes não passam de uma empresa. Se você trabalhar em uma marca de refrigerantes, por exemplo, você vai defendê-la e não gostar da concorrência. Grêmio e Inter são concorrentes, portanto, o princípio é o mesmo”, expõe. O objetivo dos veículos nunca foi o de concorrer com as emissoras tradicionais do mercado, mas proporcionar mais uma opção aos torcedores. O público das rádios, na sua maioria, não é composto por moradores da capital gaúcha, mas sim por pessoas que vivem em outras regiões do Rio Grande do Sul, do Brasil e, até mesmo, de outros países. Um exemplo é a colorada Rayane Moreira, 18 anos. A ouvinte de Pouso Alegre, Minas Gerais, descobriu a Rádio Inter pelo twitter do clube e desde que ouviu pela primeira vez não parou mais. Ela afirma que a rádio serve como meio de aproximação do time com o torcedor. “Mesmo estando muito longe, eu me sinto como se estivesse dentro de campo. A energia que a rádio transmite é indescritível”, confessa. Outra característica presente nas transmissões é a descontração. A ideia não é transformar a jornada esportiva em um programa de humor, apenas criar um ambiente mais leve. “A proposta é fazer com que o ouvinte se sinta em uma mesa de bar conversando com os amigos. Isso atrai audiência e estimula a participação dos torcedores”, explica Oliveski. Ele ainda lembra que a audiência oscila de acordo com a importância do jogo. “O expectador quer se sentir próximo, a gente nota isso. Nossa audiência varia bastante. Cerca de 4 a 7 mil ouvintes no Gauchão, 20 mil na Copa do Brasil e, em alguns Gre-Nais, já chegamos a 40 mil”, assegura. revista exp

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eCultura digital ENTRE PIRATARIA E

convergência CLAITON SILVA

S

ão 23h15min de segunda-feira quando Alex Tanski reconfortase em sua cama para ver mais um episódio do seriado House M.D.. No entanto, o televisor não está sintonizado em nenhum canal e o receptor da tevê por assinatura está desligado, assim como o aparelho de DVD. Da mesma forma que milhares de outros espectadores no Brasil, Alex assiste seus episódios toda semana, em alta definição de imagem e som, pelo computador. Sem pagar nada por eles. Em seu quarto, um verdadeiro sistema de entretenimento: tevê LED de 50 polegadas e home teather de ponta, plugados a um computador munido de interface própria para exibição de áudio e vídeo. “Aqui, posso relaxar e curtir os meus hobbies preferidos, com qualidade”, garante. O que diferencia essa estrutura privilegiada de uma convencional é o fato de ela estar conectada 24 horas na rede. “Com a banda larga de alta velocidade posso assistir aos programas pouco tempo após eles terem ido ao ar”, argumenta o optometrista de 32 anos. Na era das redes sociais, não se pode forçar o espectador a esperar por aquilo que boa parte do mundo já assistiu. A geração Y é ansiosa, hiperativa. Não há como pará-los nessa corrida desenfreada pelo novo. Eles conhecem todos os atalhos do ciberespaço, participam ativamente de fóruns de discussão e vivem de forma intensa a cultura da convergência.

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REPRODUÇÃO

Como as emissoras de tevê estão, cada vez mais, perdendo espaço para o conteúdo audiovisual disponibilizado na rede – legalmente ou não

INTERFACE Catálogo audiovisual, software XMBC permite uso do PC pelo controle remoto Para que um episódio chegue até a casa de um fã, um longo caminho pela rede é percorrido (veja o box). Do TiVo (sistema de gravação da programação de tevê) de um adolescente nos EUA até a casa de Alex, em Camaquã, no interior do Rio Grande do Sul, o episódio de House M.D. foi baixado e compartilhado por usuários de todas as partes do mundo, ávidos pelo mais recente capítulo da atração da FOX Caso fosse necessário aguardar pela legenda em português, o trajeto seria ainda mais longo, passando pelas mãos do grupo responsável pela construção do arquivo. Os legenders, como são chamadas as equipes que produzem esse material, muitas vezes mantém contato unicamente pela rede, podendo estar a milhares de quilômetros de distância. Oriundos em sua

grande maioria das comunidades do Orkut dedicadas aos seriados estrangeiros, os grupos muitas vezes são compostos por membros de diferentes estados brasileiros. O barateamento da mensalidade e o investimento nos canais em alta definição por parte das operadoras não são suficientes para frear a crescente busca por programas no ciberespaço. Os motivos são os mais variados, mas a principal queixa é relativa aos atrasos com relação à exibição no exterior. Alex é taxativo quanto a investir em um pacote completo. “Simplesmente, não vale a pena”, diz. Mesmo com o fechamento de sites de compartilhamento de dados e a proposta de criação de fortes medidas protecionistas – como os projetos de lei

O streaming e o download estão no DNA desta nova fase da internet. TIAGO RAZERA, analista de mercado

antipirataria norte-americanos SOPA (Stop Online Piracy Act), PIPA (Protect IP Act) e a Lei Hadopi na França – a cada dia surgem novas opções, legais ou não, para obtenção de conteúdo audiovisual. Nesse contexto, quem perde são os


ENTRETENIMENTO Do surround system ao controle remoto, o ambiente montado por Alex prima por equipamentos de ponta conglomerados de mídia, que buscam uma maneira de reverter as perdas. Um levantamento do Instituto IPSOS no ano de 2010 aponta que a pirataria no setor audiovisual causa prejuízos na ordem de R$ 3.5 bilhões ano no Brasil, o que gera redução na arrecadação de impostos aproximadamente R$ 976 milhões e a não geração de 96 mil empregos. Iniciativas como o Netflix, serviço por assinatura de transmissão de filmes e seriados via streaming (transferência de dados em fluxo contínuo), ainda não chamam atenção do grande público, que baixa seus programas favoritos em blogs, fóruns ou via torrent – método

onde o usuário compartilha o que já foi descarregado, maximizando o desempenho e possibilitando altas taxas de transferência, mesmo com um grande número de usuários realizando downloads de um mesmo arquivo simultaneamente. Entretanto, o sucesso do streaming está diretamente ligado à qualidade da internet. O analista de mercado da GVT Tiago Razera destaca que “o streaming e o download estão no DNA dessa nova fase da rede”. Isso gera uma preocupação maior em relação à rapidez e a estabilidade da banda. “Penso o streaming no futuro como ainda mais importante para o

O caminho percorrido

Da veiculação nos EUA até o computador do fã no Brasil, passo a passo o caminho percorrido por um episódio no ciberespaço. House - Episódio 18 da 8ª temporada t 23/04/2012 – 23h1: Episódio vai ao ar em rede nacional nos EUA pela FOX . t 24/04/2012 – 0h5min: Primeiro release (arquivo de vídeo produzido por um dos diferentes grupos de pirataria existentes) é disponibilizado no site www.piratebay.org t 24/04/2012 – 17h42min: Legenda em português é disponibilizada no site www.legendas.tv 1

Horário de Brasília

consumidor doméstico do que o download convencional. Uma conexão boa e estável será, então, tão ou mais importante que um hardware confiável e de alto desempenho. Quem não se adequar às exigências do mercado perderá”, finaliza. Toda a agitação no ciberespaço com o grande volume de downloads de filmes e seriados faz com que a mídia se volte para o fenômeno que, por sua vez, passa a pautá-la. Sites e blogs especializados optam por noticiar diretamente o que ocorre no exterior, deixando de lado a cronologia dos programas na tevê brasileira. Como boa parte dos portais pertence aos grandes grupos de comunicação, essa estratégia se consolidou a partir do lado mais segmentado da internet no país, que possibilita uma maior autonomia. Nesse processo surgiram verdadeiros especialistas, oriundos das comunidades virtuais, que estabeleceram seu público e hoje fazem sucesso em bem sucedidos sites e blogs. Uma dessas personalidades da rede é o estudante de engenharia mineiro Lucas Emídio Roque, mais conhecido como Nerdloser. Dono de uma crítica ácida carregada de sarcasmo, conquistou o respeito da crítica especializada através de comentários em fóruns, no Twitter e em seu blog, o TVShowRoom.

Para o blogueiro, o tratamento das emissoras abertas com relação ao telespectador é, no mínimo, desrespeitoso. “Seriados que no exterior são líderes de audiência acabam, no Brasil, alocadas em horários impossíveis (madrugadas) que variam de semana a semana sem aviso prévio. Temporadas são interrompidas no meio e não há divulgação das séries pelo próprio canal exibidor. Outra mancada das emissoras é transmitirem os programas anos após irem ao ar no país de origem”, afirma. Com relação à tevê por assinatura, Lucas salienta que um dos principais problemas está relacionado à qualidade do produto: “Varia de canal pra canal e de série para série, mas no geral, as opções em HD são poucas e as legendas de má qualidade, apresentando erros ortográficos e gramaticais”. Mesmo na tevê paga, os espectadores sofrem com o atraso da transmissão em relação aos países de origem. Nerdloser observa que, novamente, cada caso possui uma realidade isolada. “Pode variar de uma semana a vários meses, embora tenha havido uma grande melhora nesse fator ao longo dos últimos anos, em virtude da reclamação dos telespectadores nas redes sociais e da consciência crescente dos canais em relação ao download”, finaliza. revista exp

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eSaúde COMPULSIVOS PELO

exercício

Praticar atividade física sem controle pode causar lesões físicas e psicológicas FERNANDA MENEGHETTI

O

s benefícios dos exercícios físicos são, constantemente, exaltados pelos médicos e profissionais da educação física. Porém, a prática também pode ser maléfica e trazer danos à vida pessoal e física dos praticantes. O que era para ser um momento de prazer e saudável pode se tornar prejudicial aos praticantes de atividades físicas. Não é raro encontrar atletas profissionais e amadores que são viciados em exercícios físicos. A dependência se torna cada vez maior se não tratada e os resultados se transformam em trágicos às pessoas que sofrem desse distúrbio. Assim como em outros vícios, os danos causados podem ser irreversíveis. A conscientização de que todo o excesso é prejudicial deve ser disseminada nos ambientes esportivos. A prática de musculação e outros esportes é recomenda por médicos e educadores físicos, mas quando se torna uma obsessão, a qualidade de vida fica ameaçada. Os dependentes sofrem de ansiedade, depressão, crises de abstinência e com inúmeras lesões físicas e psicológicas. Mesmo com isso, não conseguem parar. A necessidade pelos prazeres da atividade e a ansiedade ultrapassam os limites físicos. Fábio Roncatto, 36 anos, conhece bem os transtornos causados pela ânsia de estar sempre em forma. O vendedor começou a correr como um meio de lazer, mas viu sua rotina mudar aos poucos. “Coloquei na cabeça que seria o melhor e o meu tempo na corrida não seria pior do que qualquer mulher profissional”, explica Fábio.

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revista exp

Se eu não mantenho meu corpo sempre ativo, não sinto fome FÁBIO RONCATTO, comerciante Porém, o prazer provocado pelas metas alcançadas se tornou obsessão. Se privado desta prática, ele apresenta crises de abstinências, perda de apetite e culpa. “Eu faço academia seis vezes por semana, corro uma vez e e no domingo caminho. Se não mantenho meu corpo sempre ativo, não sinto nem fome”, detalha sua rotina. A estética é o principal fator que motiva esses alunos a acelerar e ultrapassar etapas do processo de treinamento, acabando dependentes da prática física. A obsessão por um corpo perfeito e a rapidez para obtêlo são uns dos estimuladores dos malefícios decorrentes do treinamento sem orientação. Nos centros esportivos, existem dois tipos de grupos de alunos. O primeiro segue passo a passo as orientações elaboradas pelo professor, respeitando a periodização do treinamento e assim, consequentemente, atingindo os seus objetivos. Em contrapartida, o segundo grupo executa o treinamento sob a orientação do professor, porém, com o passar do tempo, acaba por abandonar o roteiro. Tal grupo tem como característica a auto prescrição de treinamento, introduzindo alta intensidade sem o preparo devido para suportar a carga.

Atletas profissionais também podem sofrer do transtorno e ultrapassar os limites do corpo. Muitos pensam que estão apenas se esforçando para alcançar objetivos, mas perdem o controle e não conseguem mais estabelecer limites. Os professores responsáveis ou os treinadores têm o dever de abordar essas pessoas e instruí-las, mostrando os malefícios decorrentes desse treinamento sem orientação e excessivo. Esses malefícios podem variar de vícios posturais, problemas relacionados com a coluna vertebral a lesões ligamentares, musculares e articulares. “Como podemos observar, qualquer exercício físico (desde uma caminhada a até mesmo exercícios com pesos) deve ter orientação de um profissional capacitado para que, futuramente, essa prática não acabe se tornando maléfica. O instrutor é o responsável por estabelecer a carga horária certa. Ele precisa acompanhar o aluno para poder perceber quando ele passa do limite”, alerta o

professor de educação física Rafael Passos. É o caso de Lucas Fontoura Moreno, 25 anos, que teve uma pubalgia há dois anos causada pelo excesso de exercício físico. A pubalgia provoca dor e inflamação na região da virilha, que piora com o esforço físico e exige repouso e fisioterapia. Ao consultar um especialista em medicina esportiva, Lucas ficou sabendo que era preciso ficar oito meses afastado da musculação, do atletismo e do rugby. O tratamento através de fisioterapia foi cessado de forma gradual ao longo dos primeiros meses. No quinto mês, o estudante de educação física voltou a praticar exercícios e diminuiu a fisioterapia de forma significativa. “Eu engordei oito quilos nesse período, não sabia o que fazer, era uma muito malhumorado e a ansiedade me fez voltar aos exercícios. Eu sabia que era arriscado e que não tinha autorização médica”, confessa o atleta. Sem terminar o tratamento, Lucas viu sua lesão se tornar crônica. Hoje, ele realiza cinco

ORIENTAÇÃO A ajuda de profissionais é fundamental para treinar


CONCENTRAÇÃO O comerciante Fábio Roncatto evita eventos sociais para manter a sua rotina de treinos e atingir objetivos sessões de musculação e três treinos de rugby por semana, mas já chegou a praticar 13 treinos por semana: rugby, atletismo e musculação. Nos tempos livres, o atleta também gosta de jogar futebol com os amigos. Tudo isso para estar sempre em ação. Fábio Roncatto também sofre com as consequências provocadas pelo excesso de exercício. Para Fábio, as lesões não são piores que a falta de atividade física. “Quando não fazia nada no domingo, me sentia incompleto, com um vazio, e sabia que algo estava estranho. Ficava irritado e não sabia o motivo. Então resolvi caminhar no domingo também. Meu humor é outro agora que estou fazendo exercício todos os dias da semana”, relata sua angústia. Além dos problemas físicos e psicológicos, o vício traz lesões à vida social. É comum deixar de frequentar eventos familiares, que antes era prazeroso para o indivíduo, para se dedicar aos exercícios. O que deveria ser um acréscimo na rotina se tornar

um fator negativo, se executado de forma exagerada e sem um acompanhamento de um profissional. “Um dos principais motivos de ter terminado o meu namoro foi porque ela achava que eu deixava de sair para treinar. No aniversário dela, não consegui chegar no horário marcado porque queria treinar. Não posso deixar de treinar”, responde Lucas. O comerciante Fábio Roncatto também relata que sofre para manter o convívio com amigos. “Não posso ir aos eventos sociais, pois são sempre nos horários que eu estou malhando ou correndo. Por que vou deixar de me exercitar para comer e beber? Acho que isso não está certo”, questiona Fábio. O interesse pela prática de atividades se torna tão grande que o tempo gasto para o físico é muito maior ao dedicado a outras obrigações. Exercitar-se é mais urgente e quase tudo vira segundo plano. Não existe apenas uma causa para desse transtorno. As duas principais são a busca pela forma física perfeita

LESÕES Lucas sofre com as dores causadas pelo excesso de treinos e problemas fisiológicos. “Tenho uma rotina rígida não só porque quero participar do Campeonato Gaúcho de Rugby, mas também porque acho que meu cronograma é razoável. Posso abrir mão de atividades sociais, mas o esporte me dá prazer. Isso é uma opção minha”, pensa Lucas. É notório que existem alunos que praticam exercícios físicos em excesso por não seguir as

orientações e os treinamentos prescritos pelos professores de Educação Física. A conscientização dos profissionais é essencial para tentar diminuir o número de casos de pessoas que acabam viciadas em atividades físicas. “Essa situação varia, porém, os profissionais que prezam pelo seu nome e qualidade de atendimento, jamais deverem permitir que isso ocorra”, analisa Rafael Passos. revista exp

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eAmbiente O RIO GRANDE DO SUL EM

50 hectares um local local Mais que um parque arborizado, o Jardim Botânico é um grande de conservação da flora do estado dentro da cidade grande

ALINE MELLO

N

ão fazia muito tempo desde que fora canalizado o Arroio Dilúvio. As enchentes ao longo da Avenida Ipiranga, e em torno do então Rio Guaíba, haviam cessado. Porto Alegre vivia um momento de expansão naquela década: prédios modernos e imponentes eram construídos e novos bairros surgiam. No início da década de 1950, a capital gaúcha, com mais de 350 mil habitantes, tornavase, aos poucos, uma metrópole. Também nesta época, o morro então conhecido por Várzea de Petrópolis foi explorado. Em 1953, a prefeitura alienou a área de 80 hectares para a criação de um parque ou jardim botânico. Em dez de setembro de 1958, O Jardim Botânico de Porto Alegre era inaugurado. No princípio, o morro era coberto somente por grama e um grande número de butiazeiros, árvore que viraria o símbolo do Jardim Botânico. Dos 80 hectares de área verde, 50 ficaram destinados à criação do parque. Foi criada, então, uma comissão de pessoas ligadas à área da botânica para planejar a área. No final dos anos 1950, quando o público pôde visitar pela primeira vez o local, o Jardim Botânico já contava com três coleções: de palmeiras, de coníferas e de plantas suculentas ou cactáceas, dispostas em um jardim rochoso que ainda se encontra lá. Naquela época, jardins botânicos tinham uma função diferente das que lhes são atribuídas hoje. Assim como os outros jardins do país, o parque começou com um caráter de exposição e visitação apenas. O engenheiro ambiental

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revista exp

Fernando Vargas trabalha há dez anos no Jardim Botânico de Porto Alegre e pondera que as diferentes funções já atribuídas a este tipo de espaço têm ligação com a evolução da relação do homem com a natureza. Vargas, que hoje coordena a parte de educação ambiental do Jardim da Capital, explica que o primeiro papel dado a esse tipo de jardim foi medicinal. Na Idade Média, estas coleções botânicas eram cultivadas junto a faculdades de medicina e serviam para cultivo de plantas que seriam utilizadas como remédio. Com o começo das grandes navegações, o papel dos jardins passou a ser o de aclimatar plantas que vinham de lugares distantes. Jardins europeus, em países como Alemanha e Inglaterra, se destacam por suas grandes coleções de plantas estrangeiras até hoje. Foi nesse interesse por plantas exóticas que se fortaleceu o papel dos jardins botânicos como uma grande exposição de plantas, sem nenhuma preocupação ambiental maior, e é nesse contexto que se encontra o jardim de Porto Alegre em seu nascimento. Nos anos 1970, entretanto, Vargas conta que passou a ser mais importante cuidar da preservação da flora regional, e, desde então, essa é a finalidade principal do Jardim Botânico da Capital. O resultado desse trabalho de meio século é motivo de orgulho para quem viveu esse processo de perto. Hoje, a área é formada por um arboreto com 653 espécies diferentes em um total de 3 mil exemplares de árvores. Além disso, há grupos especiais de plantas envasadas, como bromélias e cactos. O jardim categoriza seus exemplares em coleções botânicas, cuja divisão

APRENDIZADO Crianças conhecem o pau-brasil em visita guiada é por formações florestais do Rio Grande do Sul, por classificação botânica e por outras características especiais. O termo “coleção” não é por acaso. Basta conversar com quem vive o dia a dia dos cuidados com o jardim para perceber que é mesmo um trabalho de colecionador. Vargas explica animado: “Tu sempre queres aperfeiçoar tua coleção e conseguir um item que ainda não tens. Como é uma coleção de seres vivos, tem uns que morrem, que precisam de reposição. Por isso, o trabalho é dinâmico, não para nunca”. Não para mesmo. E Ari sabe bem disso. Ari Nilson já faz parte da história do Jardim Botânico de Porto Alegre há 30 anos.

Ele é um dos seis funcionários responsáveis por cuidar do acervo das coleções botânicas do parque. O veterano atribui ao próprio Jardim Botânico todo o seu conhecimento na área. Quando o local ainda não era nem metade do que é hoje, Nilson era jardineiro do parque. Na época, tentou aperfeiçoar seus conhecimentos ainda limitados de botânica na universidade. Primeiro, começou o curso de biologia na PUCRS, mas não o concluiu. Mais tarde, foi a vez de tentar a engenharia agrícola na Ulbra, curso que também não completou. Para Nilson, o Jardim Botânico foi uma escola. Ele conta, agradecido, que, através de seu trabalho, teve contato com


PASSEIO Visitantes de domingo procuram o Jardim para relaxar, mas poucos conhecem seu papel na recuperação da flora gaúcha profissionais de cidades e países diferentes que o ensinaram muito. O Jardim também tem muito o que agradecer a Nilson. Enquanto caminha pelas passagens de pedra do parque, por entre as árvores, vai citando sem pestanejar os nomes científicos de seus “filhos”. As mãos queimadas de sol do botânico já mexeram em muita terra naqueles 49 hectares. “Muita coisa mudou nesses 30 anos”, revela Nilson. “O jardim cresceu tanto no acervo, quanto no cadastro das coleções científicas.” Quando Nilson começou, entre os anos 1970 e 1980, havia muitas plantas sem identidade ou registro correto. O trabalho de pesquisa feito pelos botânicos na época também era diferente. “Fazíamos muito intercâmbio de sementes com outros jardins botânicos”, conta ele, enquanto aponta para uma araucária que veio da Austrália. “Hoje, trabalhamos mais em função da flora do estado.” Atualmente, os novos exemplares são encontrados por meio de expedições botânicas em zonas de risco no Rio Grande do Sul. Lá, são buscadas espécies para replantio em Porto Alegre, em especial as raras e endêmicas, como a Chagas Miúda ou o Pau Brasil. Vargas explica: “Nossa estratégia é agir mais rápido

que o processo de extinção. Se a planta for extinta na natureza, ainda temos uma população viável da espécie dentro do Jardim Botânico, para que ela possa ser multiplicada de novo e reproduzida”. Infelizmente, o jardim ainda não dispõe de estrutura para realizar em grande escala o processo de reintrodução das plantas na natureza, visto que isso exige um acompanhamento periódico, e o quadro de funcionários habilitados não é suficiente para tal tarefa. Nilson concorda e sente falta de mais pessoas com conhecimento técnico para cuidar do manejo e trato com as plantas. Hoje, ele e somente mais cinco funcionários fazem todo o trabalho de conservação e manejo das coleções. “Temos tarefas suficientes para ainda mais gente vir trabalhar”, comenta Nilson. Por isso, ele acredita que o enriquecimento da coleção do parque depende de um maior número de funcionários. Nilson explica que apenas metade do espaço que o Jardim Botânico poderia ocupar está jardinada. Além disso, ainda existem formações florestais do Rio Grande do Sul que não são representadas no acervo do local. Mesmo assim, tanto ele, quanto Fernando, afirmam que,

com a quantidade de espécies e a organização e catalogação feitas atualmente, o espaço é, sim, o melhor representante da flora rio-grandense. A importância do Jardim Botânico vem também de outro viés. “Eu diria que o Jardim possui três pilares”, enumera Vargas: “Pesquisa, conservação, e educação”. Ele, que coordena a área de educação ambiental, afirma que esse trabalho é feito desde o surgimento do jardim, mas atualmente vem adquirindo mais importância. Investir nesta área é uma exigência para uma instituição ser reconhecida como jardim botânico. A estudante de biologia Daiana Correa trabalha diretamente com quem busca o serviço educacional do parque – na maioria das vezes, escolas. Desde janeiro, ela divide com uma colega a monitoria das visitas guiadas ao Jardim Botânico. Em um dia de semana, a equipe chega a atender até seis grupos de colégios. O trabalho exige fôlego e muita paciência. O corre-corre dos alunos do primeiro ano da Escola Nossa Senhora do Carmo não são novidade para Daiana. Apesar das crianças parecerem incansáveis, a estudante consegue entretê-las com as histórias que já sabe de cor. Enquanto caminham pela trilha

e conhecem a araucária, o butiá e as tartarugas do lago – a atração preferida das crianças, a equipe do Jardim sai com a esperança de ter educado mais uma turma para a consciência ambiental. Mesmo com todo o esforço diário dos funcionários capacitados do local, Fernando Vargas observa que grande parte das pessoas que vem voluntariamente ao Jardim Botânico, o vê apenas como um parque. Os visitantes de final de semana, período em que as visitas educacionais não ocorrem, não costumam mostrar interesse por explorar as coleções, e sim, por usar o espaço para lazer. “Pretendemos mudar com uma sinalização mais explicativa”, explica o engenheiro ambiental, esperançoso. Segundo ele, o Jardim já está tomando providências para a melhoria dessa situação. Vargas admite que as placas existentes na área não contêm muitas informações ou não se encontram muito visíveis atualmente. Talvez, mudanças como essa são o que falta para que o trabalho destes que constroem a história do Jardim Botânico seja expandido e melhor reconhecido. Afinal, as mãos de Nilson e de seus colegas ainda têm muita terra para remexer e mudas para replantar. revista exp

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eParceria OLHOS QUE

guiam

A cão guia Misty trabalha usando seus olhos para auxiliar a deficiente visual Olga Solange Herval

LIANE FRAGA

O

lga Solange Herval Souza acorda pela manhã, se arruma para trabalhar, toma café e somente quando abre a porta é que Misty decide sair da cama. Neste meio tempo em que sua dona se prepara, a labradora de nove anos se levanta para comer algo e depois volta ao seu canto para descansar. Ela se espreguiça apenas quando está fora de casa. Ela tem um longo dia de trabalho, pois é cão guia. Olga é professora. Ela dá aulas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dolores Alcaraz Caldas, no bairro Restinda Nova, em Porto Alegre e no Centro Universitário Lasalle, no curso de Psicopedagogia, em Canoas. Em todos os lugares, Misty a acompanha. Só há exceção quando vai a uma teatro ou show. “Lugar onde tem muito barulho não é bom para ela”, complementa.

Desde que a tenho, nunca me bati ou me machuquei. OLGA SOLANGE HERVAL, professora

GUIA Misty trabalha o dia todo cuidando de Olga

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revista exp

Misty é americana. Nasceu em Smithtown, cidade que fica perto de Nova York, na escola Guide Dog Fundation for the Blind. Foi a única de seus nove irmãos a ser escolhida para o trabalho. Seus pais eram reprodutores oficiais. Olga pegou a Misty com um ano e três meses. Para se cadastrar, a gaúcha teve que mandar um e-mail com respostas de um questionário e fazer um vídeo com 30 minutos para retratar a realidade vivida no país. Olga não pagou nada pelo cão guia. A Misty foi emprestada por comodato, ou seja, sua dona assinou um termo em que se compromete a ficar com o cachorro, mas se a escola americana vier a saber que sua cria está sendo maltratada, poderá aparecer sem avisar e resgatá-la. No país, há quatro instituições que treinam cães guias: Cão Guia Brasil (Rio de Janeiro), Escola de Cão Guia Helen


Keller (Florianópolis), Instituto IRIS (São Paulo) e o Projeto Integra (Brasília). O custo de um treinamento é de R$ 30 mil, mais caro que um carro popular. Como os cachorros são doados para os deficientes visuais, a lista de espera chega a 12 mil pessoas no Brasil, o equivalente ao Gigantinho lotado para assistir um jogo. Ao todo, no país, cerca de 35 milhões de pessoas têm deficiência visual, isto engloba até quem tem algum tipo de dificuldade para enxergar. Já por volta de 528 mil responderam ao censo do IBGE de 2010 dizendo que não conseguem ver absolutamente nada. Misty é uma cachorra normal, mas quando está com a coleira, sabe que não pode brincar. Em seu pescoço passa uma tira que prende-se a uma haste de plástico que serve para a Olga segurar. Nesta arco há um pano preto com os dizeres: cão guia, não distraia, está trabalhando. Ela foi ensinada com comandos em inglês: not play, not take it, not, stop, sit, up. O treinamento dela começou quando tinha meses. No Brasil, a formação começa quando o cachorro completa três meses. “É preciso cuidar com o temperamento do cão, pois ele não pode ser muito tímido, nem apresentar características de liderança. Ele deve ser tranquilo e seguro”, explica o treinador de cães guias George Thomaz Harrison, da escola do Rio de Janeiro. Por isso que as raças de cães que mais servem para este trabalho são labrador e golden retriviers. Para começar o treinamento

FOLGA O final de semana é os dias de descanso da Misty

de um cão guia se escolhe primeiro o animal, depois começa a adaptação com uma família adotiva (às vezes é a do próprio treinador, para se ter certeza da eficácia do projeto), que acostuma o filhote com os ambientes sociais, além de começar a passar as orientações de obediências básicas. Isso dura aproximadamente um ano. Logo após começa a fase de treinamento específico, em que o cão aprende a reparar nas situações de periculosidade para o deficiente visual. Na última etapa se junta cachorro e dono em potencial para a adaptação. Misty é os olhos de Olga. “Desde que a tenho, nunca me bati ou me machuquei”, acalenta Olga, que completa oito anos de parceria com o animal, em outubro, nasceu com deficiência visual. Sua companheira trabalha bastante. Quando tem um carro estacionado na calçada, Misty não passa perto dele quando tiver alguém dentro. Nas sinaleiras, ela controla os barulhos dos carros e não atravessa a rua se ainda escuta a aceleração do automóvel. Assim, ela não se baseia nas cores da sinaleira, dando mais segurança a sua dona, além disso, ela não enxerga colorido. Às vezes Olga escuta os outros falarem: “Nossa, tu viu o que a cachorra fez? Desviou aquela mulher de um andaime”. “Eu, normalmente, não fico sabendo do que ela me salva”, comenta. A cachorra desvia Olga de andaimes, placas ou qualquar objeto que atrapalhe sua dona de se locomover. Às vezes ela para e mostra o que está no chão antes de seguir o caminho. Sua dona entende o comportamento da cãe e confia nele. Foi o caso de passar perto de uma cotrução que continha muitas cordas no chão. “As vezes que fui contra o que ela me disse vi que tinha obstáculos”, comenta Olga. Outra coisa que atrapalha é o orelhão. Misty não foi ensinada a identificá-lo, pois nos Estados Unidos os telefones públicos são em cabines. Em Porto Alegre, o cão passa tranquilamente por baixo do orelhão fazendo com que a Olga quase encoste no objeto. Famosa no bairro Cavalhada, Misty também tem seu dia de descanso: sábado e domingo. Ela adora brincar de pega-pega com o Niki, um cachorro vira-lata que fica no pátio. Niki é cinza malhado e está sempre bem cuidado com um lenço no pescoço. Os dois se

BRINQUEDO A almofada é o brinquedo preferido da Misty divertem subindo e descendo os três sofás da sala em sequência. A labrador não gosta quando chove, pois como tem pelos claros, não pode brincar no pátio. “Ela adora jogar todas as almofadas no chão e me traz uma para mostrar o que está fazendo”, comenta Olga. No Brasil, juntando os números de cães doados por todas as instituições, não chega a 10 por ano. Já a realidade dos Estados Unidos, com cerca de 21,2 milhões de deficientes visuais (número total, sem distinção de deficiência como o Brasil) é diferente. As principais escolas de treinamento entregam cerca de 160 animais por ano cada uma, totalizando 1,6 mil. Quem mantém essas iniciativas são doações de cidadãos e empresas comprometidas com ações sociais. Olga já foi casada com um deficiente visual. Ele também tinha um cão guia. Hoje, viúva, cuida de Misty com amor e dedicação. A cachorra come a ração Eukanuba desde que nasceu. No início era doada por uma multinacional. Hoje, Olga ganha de outra empresa. Ela gasta apenas com transporte e entrega em casa. Misty vai no

pet,uma vez por mês, para tomar banho. Além disso, a cachorra toma uma pílula contra pulgas, carrapatos e outras doenças. No dia a dia, sua dona tem a tarefa de cuidá-los quanto à alimentação e higiene, escovação de dentes e pelos, limpeza das patas e orelhas, etc. “Muitos cegos não querem ter um cão, pois ele precisa de bastante cuidado e atenção”, revela Olga. Esses animais de porte grandes vivem em média dez anos. Olga participou de reuniões com outras pessoas que iriam pegar cães guias na escola americana de Smithtown. Algumas dessas pessoas já tinham adodato e perdido seus companheiros e estavam lá pela segunda, terceira, sétima vez. Nestes encontros se trocavam experiências, vivência, tristezas e alegrias. “No momento em que peguei a Misty, me prepararam para perdê-la”, revela. Misty chama atenção por onde passa. “Depois que tive ela, as pessoas se aproximam com mais frequência “, revela Olga. O cão, além de ser um guia para os deficientes visuais, quebra a barreira do preconceito, além de ser uma perfeita companhia. revista exp

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eMundo animal DEDICAÇÃO PELA

CURA Raika enfrentou três sessões de quimioterapia para tratar o câncer de mama

vida inteira

Se há algumas décadas o sacrifício de cães era uma prática usual, hoje os donos não medem esforços para salvá-los JÚLIA LANG

K

ita, Linda, Juraci, Pitty, Bernardo e Raika. Nomes de cachorros sofridos, porém sortudos. Todos passaram por sérios problemas de saúde e estariam fadados à morte, mas encontraram pessoas a fim de salvá-los a qualquer custo. Em outros tempos suas chances seriam bem reduzidas. Em 2009, a Lei Estadual 13.193, de autoria do deputado estadual Carlos Gomes, foi sancionada, proibindo o sacrifício de animais em estabelecimentos oficiais no Rio Grande do Sul, como os centros de zoonose e canis públicos. O projeto atendeu ao apelo de uma a sociedade

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revista exp

que já não tolera denúncias de sacrifício de animais sadios em órgãos responsáveis por cuidar dos cães. Ficou estabelecido que apenas em situações que não exista cura para a doença, a eutanásia é cogitada. Antes, eram vários os casos que levavam a esta decisão, mas com a evolução da medicina veterinária, apenas em poucos casos como os de cinomose (vírus que degenera os órgãos) e mielomalácia (lesão na espinha irreversível) se opta por um procedimento tão radical. O professor da Veterinária da UFRGS Marcelo Alievi lamenta que não haja números do Hospital Veterinário da universidade que mostrem a redução do sacrifício animal, mas garante que é uma

realidade e que o aumento na expectativa de vida dos cães se dá por uma reunião de fatores: desenvolvimento de técnicas como quimioterapia e fisioterapia, cirurgias modernas, ração de qualidade, vacinação completa e o aumento do poder aquisitivo da população. “A questão econômica reflete diretamente no tempo de vida do animal. Hoje em algumas famílias sobra dinheiro para ir no cinema, sair e também para cuidar melhor do cachorro”. O mesmo cenário de redução do sacrifício se repete em uma clínica de alto padrão do bairro Moinhos de Vento, onde a proprietária e jornalista Marione Pinheiro acrescenta a ética vigente atual como um fator decisivo. “Todas

as possibilidades de tratamento são esgotadas para que isso [a eutanásia] ocorra, claro desde que o animal tenha condições de responder positivamente as tentativas”, explica Marione.

Comportamento

Em uma sociedade onde o cachorro é chamado de filho, dorme na cama com o dono e faz sessão de ofurô, não é exagero afirmar que os tempos mudaram. A cientista social e doutoranda em Antropologia da UFRGS Érica Pastori explica que hoje estamos inseridos em famílias multiespécies, onde animais de companhia exercem o papel de filho tanto quanto um humano. São muitos os motivos que contribuíram para a aproximação dos animais no âmbito familiar, como por exemplo a disposição arquitetônica urbana. Famílias que vivem em apartamentos pequenos e sem pátio, acabam convivendo com o cão de perto, e isso estreita ainda mais a relação. Questões psicológicas também ajudariam nessa inserção canina na vida dos donos: “Há mais do que humanização, mas uma super-humanização. Uma coisa que vai além do humano, e que toca alguma coisa do sagrado. Esse animal está imerso em um


imaginário de que ele é puro, dá amor sem querer nada em troca” analisa Érica, que admite não estar acostumada com tais comportamentos “É comum os donos de cachorro dizerem ‘Só falta falar’.Essa sensação de que tem uma proximidade do animal que só falta ele chegar nesse domínio propriamente do homem”, completa. As alterações comportamentais também aconteceram com os veterinários, como lembra Rosemary Oliveira, especialista na área de oncologia “Antes eram mais valorizados grandes animais, que tem a função de produzir alimento. Se esse animal está doente, economicamente não vale a pena investir, então é mais vantajoso mandar pro abate. Essa era a mentalidade geral dos veterinários”, mas ao longo dos mais de 30 anos de carreira, viu o quanto esse cenário mudou “Atualmente o número de profissionais que só fazem eutanásia indicada [quando não há mais cura] está aumentando. Muitas clínicas veterinárias se recusam a fazer eutanásia em um animal sadio ou com chance de se recuperar”.

Medicina veterinária

Tomografia, quimioterapia, acupuntura são alguns exemplos de técnicas veterinárias recentes, com menos de uma década no Rio Grande do Sul e que em muitos casos são vitais, literalmente. Em outros, no mínimo ajuda a alongar a vida dos cães. “Os tratamentos e métodos de cura evoluíram para tendências já consolidadas na medicina humana. Técnicas cirúrgicas menos invasivas e traumáticas como a criocirurgia e as realizadas através de endoscopia e colonoscopia são avanços recentes”, cita Marione Pinheiro. Com as quatro mesas da sala de quimioterapia ocupadas, a responsável pelo setor de Oncologia da UFRGS Luciana Oliveira se orgulha de ver tantos cães em processo de cura. Há pouco mais de cinco anos somente os casos mais simples de câncer eram tratados, como o linfoma, e ainda assim eram medicamentos mais básicos. Hoje vários outros tipos de câncer são tratados e as drogas usadas têm quase a mesma composição da aplicada em humanos. Para o tratamento de câncer ser concluído, é preciso que o dono se disponha a levar

periodicamente o cachorro para que ele seja submetido às sessões de quimioterapia. João Carmo já está na última das três sessões com a sua Raika. Ela há menos de três meses retirou tumores nas mamas, e agora recebe os medicamentos como forma preventiva, para evitar que voltem os tumores.

Economia

Com o avanço da veterinária, cresceram também os preços. Alimentação, banho, tratamento médico... tudo custa cada vez mais. O aumento do poder aquisitivo dos brasileiros, garante o veterinário Marcelo Alievi, tem contribuído indiretamente para o aumento na expectativa de vida animal. “Não só para pagar os tratamentos médicos, mas sobra dinheiro para uma ração de melhor qualidade, vacinação completa”. No mercado existem centenas de marcas de rações caninas e o preço entre elas pode variar em mais de 1.000%. Um pacote de 15 kg de uma ração econômica pode custar R$ 28, porém se o cachorro sofre de diabetes, obesidade, problemas renais, gástricos ou hepáticos, o pacote de 3,8 kg de uma ração importada enquadrada com super premium sairá por exatos R$ 118. “Medicações importadas , exames e especialistas de preço diferenciado já fazem parte da rotina dos animais”, constata Marione Pinheiro, acostumada a atender um público disposto a investir nos seus animais. A esteticista Roseli Mattos sabe

Medicações importadas, exames e especialistas de preço diferenciado já fazem parte da rotina dos animais MARIONE PINHEIRO, proprietária de clínica veterinária

bem o custo que é, mas não pensa duas vezes. No ano passado teve que eutanasiar dois de seus cachorros, vítimas de cinomose, mas garante que fez tudo que esteve ao seu alcance para tentar salvá-los. Agora é Bernardo, o seu salsichinha de sete anos, que a levou mais uma vez a buscar tratamento veterinário. Ele sofreu uma lesão na coluna e está sem os movimentos das patas traseiras. Se depender dos veterinários Ricardo Ellensohn e da especialista em acupuntura Luciana Yumi Tanaka, é por pouco tempo. Após passar por uma cirurgia Bernardo enfrenta duas sessões semanais de acupuntura e faz exercícios diários de fisioterapia em casa para reduzir os custos, que já ultrapassaram os R$ 2 mil. Somente a tomografia, exame necessário no caso de lesões na coluna, custa R$ 870. Ainda há uma grande parte da população que, mesmo com tratamentos disponíveis, não se dispõe a cuidar de seus cães como eles merecem. A grande prova disso é o número expressivo de animais

abandonados ao apresentar problemas de saúde. Foi o que aconteceu com Linda e Kira, deixadas pelos donos no Hospital Veterinário da UFRGS. A primeira sofreu um atropelamento que a deixou sem movimento nas patas traseiras. Mesmo abandonada, o hospital deu todo o auxílio necessário, até que a vira-lata que então tinha cerca de três anos foi descoberta por Alice. “Eu tinha duas cadelinhas que tinham problemas de saúde. Uma delas fez sete cirurgias e se salvou. Eu frequentando o hospital via a Linda tomando sol no pátio, aí eu pensei ‘Deus me ajudou, ela se curou de mais essa, eu vou fazer alguma coisa por outro’ e foi assim que eu adotei a Linda”. Hoje, há três anos vivendo na casa de Alice, a cadelinha usa a cadeira de rodas comprada pela dona. Não é barato nem fácil, mas muito gratificante, garante Alice, que recentemente pagou R$ 580 em uma cadeirinha nova, “importada” de São Paulo. Kita por enquanto não teve a mesma sorte. Foi diagnosticada com uma doença que paralisou as quatro patas, mas felizmente é reversível. O tratamento pode levar até seis meses até que ela volte a andar, mas logo nos primeiros dias de internação seu dono a abandonou. A cadela já está no segundo mês de tratamento intensivo – duas sessões de fisioterapia diárias com bola, escovação e estímulos. No dia que a reportagem registrava seus exercícios, a veterinária Paula comemorava: pela primeira vez, Kita tinha coçado a orelha com a pata.

CUIDADO Depois de quebrar a pata, Pitty passou por uma cirurgia corretora revistaexp 81


eEm duas rodas PERIGO, LIBERDADE E

motocicletas

Relação entre homens e máquinas encara os perigos e atropela as adversidades

PAIXÃO Trânsito hostil não é suficiente para intimidar motociclistas, que não abrem mão deste estilo de vida

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Sei dos riscos que corro, sei que é perigoso, mas a moto é um ótimo meio de transporte, basta tomar cuidado. LIDIANE RIBEIRO, vendedora


DIOGO PUHL

O

s poucos fios de cabelo castanho que ainda restavam na cabeça daquela senhora branquearam de vez quando a filha resolveu comprar uma moto. Foi logo depois da jovem completar 18 anos. Com tamanha desaprovação, a moça ficou aliviada com o fato de a mãe estar sentada na cadeira na hora que comunicou a decisão. Lidiane Ribeiro já imaginava que a ideia causaria pânico em seus pais, mas não pensou que gastaria tantas horas até conseguir convencer a família de que não havia motivo para se preocupar. Talvez seja porque realmente existam motivos. De acordo com dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), no primeiro trimestre de 2012, cerca de 1.150 acidentes envolvendo motociclistas foram registrados somente em Porto Alegre. Nove pessoas morreram neles. Dos 146 óbitos no trânsito da Capital no ano passado, 60 envolveram motocicletas, o que corresponde a mais de 40% das vítimas. Lidiane não desconsidera o alerta das estatísticas. Costuma pensar nisso enquanto pilota a Titan preta pelas ruas de Gravataí, cidade onde mora e trabalha. “Sei dos riscos que corro, sei que é perigoso, mas a moto é um ótimo meio de transporte, basta tomar cuidado. Tenho a minha há mais de um ano e nunca me acidentei”, afirma a garota com um misto de orgulho e confiança no semblante. Não são poucos os que concordam com Lidiane. Mateus Ferreira dos Santos é um deles: “É só se cuidar, velho. É só se cuidar”. Ele se considera um cara de sorte. Acredita nisso desde os 12 anos, quando ganhou uma bicicleta em uma rifa. Hoje, depois de sobreviver a três acidentes, não poderia pensar de outra forma. Ainda mais quando leva em consideração o fato de que a maioria das vítimas de motos estão entre os 18 e 24 anos. Mateus tem 23. Até agora, um afortunado. Pesquisas da Organização Mundial de Saúde (OMS) revelam que motociclistas se acidentam em média oito vezes mais do que condutores

“ “ Moto é tão perigosa quanto andar de carro ou a pé.

Hoje eu aprendi a tomar mais cuidado. Não vou cair mais.

JOEL ROSA RODRIGUES, serralheiro

MATEUS DOS SANTOS, motoboy

de outros veículos. E, diferentemente dos carros, grande parte das ocorrências não ficam apenas nos danos materiais. Mateus sabe dos riscos. Trabalha como motoboy para uma farmácia em Cachoeirinha. Montado na Titan vermelha, faz até 30 entregas por dia. Costurar entre os carros enfileirados da engarrafada Flores da Cunha, principal avenida do município, é parte da rotina. “A gente ganha por banda, tem de ser ligeiro. Mas hoje eu aprendi a tomar mais cuidado. Não vou cair mais”, acredita Mateus, que nunca se acidentou no trabalho, mas conta que já levou três bonitos tombos. “O mais grave foi quando eu vinha de uma festa em Gravataí. Uma mulher se atravessou de carro na minha frente e não deu tempo de eu parar. Estava meio rápido e acabei pegando ela em cheio. Voei por cima do Corsa. Me quebrei todo, mas sobrevivi, graças a Deus”.

Infestação e imaginário

Motos custam menos do que os carros – existem modelos 0 km oferecidos por aproximadamente R$ 4 mil. A manutenção é proporcionalmente barata, e o consumo de combustíveis é muito menor. Uma motocicleta com 150 cilindradas percorre em média 40 quilômetros com apenas um litro de gasolina, por exemplo. Elas também são alternativas rápidas nas grandes cidades, com o trânsito cada vez mais lento e o transporte público não satisfatório. Muitas são as vantagens que podem explicar o aumento tão significativo das motos nas ruas. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em 2011 aponta que em menos de 10 anos estes

veículos serão maioria na frota brasileira. Tal infestação causa ódio em muitos motoristas. Eles temem pelos retrovisores dos carros que conduzem. Mas pilotar motocicletas não se limita apenas ao status ou à necessidade de locomoção. Elas remetem à liberdade, à aventura e ao perigo. Vento no rosto e corpo exposto. Autoridades lembram a todo momento que o para-choque do motociclista é o próprio crânio. Há quem não consiga negar o lado romântico disso tudo. Desde o ano de 1869, quando a ideia de colocar motor em uma bicicleta foi posta em prática pelo francês Michaux-Perreaux, as motos têm causado reações de amor e ódio na sociedade. Os jovens rebeldes e as lambretas que viveram o auge entre as décadas de 1950 e 1960. Os lendários Hells Angels, desmistificados tão bem por Hunter Thompson na obra Hell´s Angels: Medo e Delírio Sobre Duas Rodas. Os criminosos que se beneficiam dess veículo para fugas em alta velocidade. Os motoboys e rachadores que desafiam a morte e riscam o asfalto. Admirados e odiados, todos. Dose de estereótipos e tanto de preconceito. A generalização irrita Joel Rosa Rodrigues. Montado na Honda CB 300r vermelha, ele vai todos os dias de casa, em Canoas, até o trabalho, em Porto Alegre. Garante respeitar o trânsito e os pedestres. Não gosta de correr nem de andar pelo meio dos carros. Defende as motocicletas sempre que surge a oportunidade: “Tenho 46 anos. Já tive sete motos desde os 18 e nunca sofri um acidente sequer. A moto é tão perigosa quanto andar de carro ou a pé”. Leandro Dalegrave também gosta de motos. Pediu

permissão à mulher e aos filhos para comprar uma há dois anos. A Honda Shadow de 750 cilindradas fica a maior parte do tempo coberta por um lençol branco na garagem de casa. Ainda não chegou aos 7 mil quilômetros rodados. O pneu está praticamente zerado. O dia precisa estar bom para sair de casa com ela. Nada de chuva, pois precisa fugir do barro. A relação com o veículo não causa ciúme na esposa. Um pouco de preocupação, talvez. É nos finais de semana que, no auge dos 55 anos de idade, ele busca a sensação de liberdade nos ossos. Veste as luvas e a calça justa – cada vez mais apertada por causa da cerveja. A jaqueta é preta, para combinar com a Shadow. O capacete e os óculos escuros finalizam o figurino. Dalegrave evita o movimento. Quanto menos gente na estrada, melhor. Gosta de longas retas e paisagens verdes. Sair de casa sem destino definido faz parte da brincadeira. Surpreender os parentes do Interior virou rotina. “Sempre gostei de motos. Já tive algumas na minha juventude. Mas essa aqui é especial. Pouca coisa no mundo é tão prazerosa quanto andar de moto”, diz, com olhar apaixonado. Podem ser utilitárias, esportivas, estradeiras ou de passeio. Não importa o porte nem as cilindradas. Não importa o modelo e nem a cor. Lidiane, Mateus, Rodrigues e Dalegrave concordam que moto é moto. Nenhum deles pretende abrir mão das duas rodas.

Pouca coisa no mundo é tão prazerosa quanto andar de moto. LEANDRO DALEGRAVE, aposentado revista exp

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eEsporte ELAS NÃO SÃO

nada frágeis

O tempo em que luta era considerada uma atividade masculina já ficou no passado. Mulheres estão conquistando seu espaço dentro dos ringues

EXCEÇÃO Fernanda se dedica dia a dia ao boxe e se destaca como uma das únicas gaúchas que participa de competições DÉBORA ELY

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ra dia 27 de agosto de 2011. A HSBC Arena, na zona oeste do Rio de Janeiro, estava lotada. Mais de 20 mil pessoas acompanharam, atentas, a cada movimentação que acontecia dentro do octógono. Foi a primeira vez que o Ultimate Fighting Championship aterrissou no Brasil desde que se tornou um fenômeno de sucesso mundial. Foram necessários apenas 74 minutos de venda na internet para que os mais de 16 mil ingressos se esgotassem. O preço variava entre R$ 275 e R$ 1,6

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mil – valores mais altos do que os cobrados para apresentações de grandes nomes da música em território brasileiro, como do exBeatle Paul McCartney ou da diva do pop Madonna. Não se tratava de um show, mas sim de um espetáculo de MMA, a sigla em inglês para artes marciais mistas. Segundo a organização do evento, um em cada quatro bilhetes foi vendido para uma mulher. Este é o retrato de um esporte que virou febre mundial – e, agora, também brasileira. O tempo em que assistir lutas era programa de homem ficou para trás. Hoje, as mulheres também são fãs do esporte – mas, mais do que isso, elas também são

lutadoras. Tiraram o salto e a maquiagem, vestiram o quimono, colocaram as luvas e subiram no ringue. No Rio de Janeiro, a Team Nogueira Academia, empreendimento dos irmãos campeões de MMA Rodrigo e Rogério Minotauro, o número de alunas aumentou 22% somente neste ano. O local já oferece, inclusive, a opção de turmas exclusivamente femininas. O sociólogo Antônio Engelke, autor da tese Esporte e Violência no Jiu-jítsu: O Caso dos Pitboys, vê o aumento do interesse de mulheres pelas lutas com naturalidade e aponta algumas razões. “Não podemos

esquecer de alguns fatores, como a busca por um corpo sadio, a necessidade de fazer um exercício físico que atenda ao mesmo tempo a preocupações terapêuticas ou pedagógicas Artes marciais são ótimas para modelar o corpo, e para aumentar a auto-confiança e a disciplina”. É nesse universo dominado por homens fortes e musculosos que as mulheres têm buscado o seu espaço. E engana-se quem pensa que elas se tornam masculinizadas e deixam a vaidade de lado ao praticar esportes considerados, pelo senso comum, violentos. O cuidado com o cabelo, o horário


CAMPEÃ Com menos de três anos de jiu-jítsu, Monique (de quimono azul) já é um dos principais nomes do esporte no Brasil

Já imaginou estar com um roxo na perna e ter que participar de um desfile? Não tem como! EDINÉIA BACH, ex-modelo

marcado semanalmente na manicure e a sobrancelha bem feita são apenas alguns aspectos que fazem parte da rotina de qualquer mulher que preze pela boa aparência – até mesmo por aquelas que têm como objetivo, todo o dia, finalizar ou nocautear o adversário. O que não faltam atualmente são exemplos para comprovar essa tese. A porto-alegrense Monique Elias é um deles. A ex-modelo de 22 anos largou a carreira na passarela e em

frente às câmeras para se dedicar única e exclusivamente ao jiujítsu. “Quando eu era modelo, tinha sempre que estar muito magra, com o cabelo e as unhas impecáveis. Tive que mudar isso, o jiu-jítsu não deixa suas unhas pintadas por muito tempo e ter unhas compridas, nem pensar!”, conta. A impossibilidade de desfilar unhas longas e coloridas não fez a jovem abandonar a vaidade. Muito pelo contrário. Todos os dias, ela cuida religiosamente das madeixas castanhas que chegam até a cintura. A longa trança impecável que utiliza em todos os treinos e campeonatos já virou sua marca registrada. A faixa-azul abandonou o corpo magro por um físico mais forte e definido e garante que sua vida mudou completamente desde que começou a praticar. Monique é aluna – e também noiva – do faixa-preta e sete vezes campeão mundial Mário Reis. Foi ele que a apresentou ao esporte em 2009 e, desde então, não se separaram mais. O casal está com casamento marcado para outubro. Acostumada a

vestir o quimono e amarrar a faixa na cintura, o desafio agora é encontrar um vestido de noiva que vista bem no corpo torneado. Seja sob os olhos do noivo ou não, Monique lida bem com a maciça presença masculina no ambiente de treino. Principalmente porque é com eles que pratica diariamente a luta. E se engana quem pensa que os homens pegam leve ao treinarem com uma mulher. Ela é quem impõe dificuldades para a maioria dos praticantes, faz com que acompanhem seu ritmo, suem e façam cara feia. “Acho que alguns homens têm preconceito de treinar com mulher mais por não gostarem de ‘bater mão’ (sinal que indica a desistência do oponente)”, revela. Mesmo conquistando cada vez mais espaço e respeito no mundo das artes marciais, Monique sabe que ainda é minoria. Ela é uma das dez alunas da academia do noivo – onde treinam cerca de 200 homens. Mas as mulheres que praticam lutas parecem já estar acostumadas em conviver em um ambiente masculino e lidam muito bem com isso. Pelo

menos é o que conta Edinéia Bach, outra jovem praticante de artes marciais. A adolescente de 16 anos é adepta ao taekwondo desde os cinco. Por isso, nunca teve problemas com a maciça presença de homens no meio. Foi no tatame que largou o bico e a mamadeira e era para a academia que ia todos os dias depois da creche. O envolvimento desde cedo com o esporte foi influência do irmão, que começou a praticar a arte marcial ainda pequeno, após descobri-la em um projeto social da escola. Em 2011, já colecionando um arsenal de 63 medalhas de campeonatos, Edinéia teve que abandonar a luta. O sonho da adolescente era ser modelo, e ela percebeu que seria impossível conciliar as duas atividades – pelo menos por enquanto. “Tive que decidir entre um dos dois, mas eu gosto muito do taekwondo, que pratiquei desde pequena”, desabafa. A escolha da jovem natural da cidade de Rolante, município de 22 mil habitantes localizado no Vale do Paranhana, trouxe resultados. O peito acostumado revista exp

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a exibir medalhas carrega hoje com orgulho a faixa de 1ª princesa do Garota Verão de 2012. Ela ficou em segundo lugar, vencendo mais de 7 mil candidatas e abrindo as portas para a sonhada carreira de modelo no Exterior. A decisão de abandonar o taekwondo ocorreu quando Edinéia começou a trabalhar para uma agência de modelos, ainda antes de subir no pódio do Garota Verão. “Já imaginou estar com um roxo na perna e ter que participar de um desfile? Não tem como!”, explica. Mas a filosofia do esporte acompanha a adolescente onde quer que ela vá. “A disciplina do meu taekwondo refletiu na disciplina que eu tive nos dias de preparação para o concurso. Aprendi até a controlar

Não vou deixar de ser feminina e de me arrumar por causa da luta. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. FERNANDA CANTORI, lutadora

a adrenalina da passarela”, revela. Essa mudança comportamental que a prática de luta agrega à vida das pessoas que a praticam é defendida pelos mestres em artes marciais. “Em geral, atletas de luta se tornam pessoas mais calmas, controladas e concentradas fora dos tapetes e aprendem a encarar os problemas de forma estratégica e sem desespero, uma das características da modalidade”, explica o presidente da Confederação Brasileira de Lutas Associadas, Pedro Gama Filho. “A luta desenvolve o raciocínio rápido, o controle em momentos de pressão, e te ensina a levantar a cabeça, e tentar de novo em caso de falhas”, completa. No taekwondo, o objetivo de Edinéia é atingir o oponente com golpes utilizando as pernas, como o chute gancho ou lateral. Mas o esporte de lutas mais conhecido mundialmente, o boxe, tem outro princípio – utilizar a força dos braços para desferir socos e ganchos contra

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o adversário. A prática atrai um grande número de mulheres, mas a maioria fica apenas no trabalho de pular corda e esmurrar sacos de areia. “Elas buscam a parte física. O que acontece é que o boxe desgasta muito fisicamente, tem um gasto calórico muito alto”, conta o proprietário da G-10 Boxe Clube, André Gardini, academia localizada no bairro Mont Serrat, em Porto Alegre. No estabelecimento, 40% do público é feminino. Entre as praticantes está Fernanda Cantori, que é uma exceção entre as mulheres da academia. Ela é a única que, de fato, vai à luta. A jovem de 26 anos pratica há quatro e é uma das poucas mulheres do Estado que participa de campeonatos. Fernanda começou a treinar por incentivo do irmão e, desde então, não conseguiu mais largar. A falta de meninas para competir na mesma categoria (até 54 kg) fez com que a atleta ficasse dois anos treinando sem encontrar adversárias. Em 2012, decidiu participar do Campeonato Catarinense, que possui 12 etapas e, até agora, venceu todas as que participou. A jovem pratica cinco vezes por semana e ainda corre aos sábados, mas garante que compete por hobby e que jamais pensou em se dedicar exclusivamente ao boxe. Formada em nutrição, atualmente ela divide o tempo entre os treinamentos com os estudos para concurso público. E, como qualquer outra mulher, não abre mão dos cuidados com a beleza. Por baixo das luvas cor de rosa, estão mãos com unhas pintadas de vermelho. Os brincos e o colar não são abandonados nem no momento de subir no ringue. A vaidade sempre fez parte da sua personalidade e a prática da luta não a fez, em nenhum momento, perder os cuidados. “Não vou deixar de ser feminina e de me arrumar por causa da luta. Uma coisa não tem nada a ver com a outra”, diz. Quando ainda era uma iniciante, a jovem conta que sofreu discriminação por ser uma mulher em meio predominantemente masculino. “Muitas pessoas não acreditavam no meu potencial ou que eu realmente fosse levar a sério. É, de certa forma, um preconceito”, declara Fernanda. A entrada maciça das mulheres no mundo das lutas está aí para mostrar o lado mais forte do sexo frágil.

22% é o percentual de aumento

de alunas na Team Nogueira Academia

20 mil é o número médio de pessoas que

assistiram ao UFC no octógono da HSBC arena

GAROTA VERÃO Edinéia largou o taekwondo para competir


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Pintar as unhas virou febre entre as mulheres de todas as classes sociais e as unhas Pintar Pintar vi a um mercado lucrativo em expansão para empresas no Brasil e no mundo um mercado umlucra merc

INOVAÇÃO Aninha Zanella viajou para São Paulo, Rio e Paris para pesquisar o mercado dos esmaltes antes de abrir o negócio INOVAÇÃO Aninha Zanella vA INOVAÇÃO

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JULIANA BALDI

O

hábito de pintar as unhas é milenar. Desde a época do egito antigo as mulheres tingiam as unhas. Nos tempos modernos, a prática foi se aperfeiçoando, e agora existem salões de beleza especializados em unhas e mulheres dispostas a gastar com este mimo. Em Porto Alegre, o primeiro salão especializado é o Esmalte Clube, que oferece desde outubro de 2011 mais de 400 esmaltes de marcas nacionais e importadas. Para abrir o novo negócio, a sócia proprietária malte oferecidos Clube no Esmalte Aninha Zanella Clube fez pesquisa de mercado em Paris, São Paulo de Janeiro. oma blog a levoue aRio criar o blog “É um nicho novo no Brasil, em Paris existem ww. uerido Esmalte (www. já ueridoesmalte.com.br), br), onde vários salões especializados, onde em São Paulo e Rio de Janeiro osta as suas semanalmente as suas existem poucos, mas vários em dências. colhas, dicas e tendências. processo denão expansão”, explica. Hoje te não em dia o esmalte O início dessa apenas co, se um cosmético, se febre por esmaltes começou em 2009 rnou Vocêum acessório. Você com o lançamento do esmalte om ode sempre estar com Jade, da Chanel. “O esmalte, um ma udar roupa preta e mudar verdinho nada básico, virou penas muda o esmalte, já muda mania entre da as fashionistas e se ompletamente ma da o clima transformou em um objeto de ou, upa. vale E se não gostou, vale das brasileiras, que até na mbrar é a quedesejo a acetona éa então estavam acostumadas aos lher”, elhor amiga da mulher”, tons clarinhos ou aos vermelhos onta. A partir disso, a moda não A Internetclássicos. ajudou não das unhas coloridas pegou e as ómalte a popularizar o esmalte tiverama que se adaptar” omo resasajudou a marcas as empresas ntenderem o público. lembra melhorAninha. o público. prática de pintar as unhas Ouma esmalte se A tornou uma tão tradicional, que tem cratização rramenta já deédemocratização opçôes para todos os bolsos. É asas moda, e as empresas comprar um esmalte assaram tenção a possível prestar atenção na farmácia e pintar aaslevar mídias emsociais e a levar em as unhas em de casa, gastando por mês em onta ogueiras opiniões blogueiras torno R$20. Ou desembolsar sunto,” pecializadas no de assunto,” o equivalente a R$350 por mês mbra Juliana. em unhas. Como é o caso da estudante e apaixonada por esmaltes Janaina Barbosa, que frequenta o Esmalte Clube toda a semana. “Eu sempre acabo escolhendo o esmalte importado Deborah Lippman, que custa R$30 a mão e R$40 o pé”, lembra Janaina. A apaixonada por esmaltes explica a preferência pelo importado: “A cartela de cores dos importados é imbatível, uso muito mais os de fora, mas quando escolho um nacional sempre tenho a sensação de que o mercado daqui está se aprimorando, inovando e começa a acompanhar as cores dos produtos de outros países”. Maria de Fátima Silva trabalha há 16 anos como manicure e é em ntes depor 10dia á 12 clientes dia Clube funcionaria dopor Esmalte

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VARIEDADE Chanel, Dior, Givenchy e Essie são alguns dos produtos oferecidos no Esmalte Clube

As mulheres que frequentam o salão vêm pra gastar, fazem questão de passar o esmalte importado. MARIA DE FÁTIMA SILVA, manicure

desde o início do salão. Ela explica que o público quer pagar por um serviço diferenciado e por esmaltes caros. “As mulheres que frequentam o salão vêm pra gastar, fazem questão de passar o esmalte importado, que serve como um meio mais acessível de se ter um item de luxo, conta a manicure. A mesma opinião é compartilhada pela sócia do Esmalte Clube Aninha Zanella: “O esmalte é um produto mais barato que uma bolsa ou um sapato, por exemplo, mas também tem o valor da marca incorporado. As mulheres adoram dizer que estão usando um Chanel nas unhas”. Ter um lugar na cidade especializado em unhas com as opções de esmaltes importados conquistou tantas clientes em um curto prazo que a equipe não está mais dando conta de atender sem hora marcada. A boa notícia é que a marca vai crescer e as sócias já estão pensando no sistema de franquias. “O Esmate

Clube é um spa da beleza, as clientes muitas vezes acabam passando o dia no salão, que também oferece massagem e maquiagem” diz Anina. Não é só o Esmalte Clube que está crescendo. Os números desse mercado surpreendem. De acordo com uma pesquisa do Instituto TNS, encomendada pela Mundial Impala e realizada com 600 entrevistados, 86% das brasileiras aplicam esmaltes nas unhas uma vez por semana e 14% já o fazem duas vezes no mesmo período. Segundo dados da Colorama Maybelline, em comparação com o ano de 2009, o segmento cresceu 15,6% em volume e 29,6% em 2011. Esse mesmo ano contabilizou 4,7 milhões de consumidoras a mais. Um pouco de todo esse sucesso pode ser encontrado nos mais de 300 blogs ligados ao assunto esmaltes no Brasil. A paixão por esmaltes da publicitária Juliana de Barros

Lima a levou a criar o blog Querido Esmalte (www. queridoesmalte.com.br), onde posta semanalmente as suas escolhas, dicas e tendências. “Hoje em dia o esmalte não é apenas um cosmético, se tornou um acessório. Você pode sempre estar com uma roupa preta e mudar apenas o esmalte, já muda completamente o clima da roupa. E se não gostou, vale lembrar que a acetona é a melhor amiga da mulher”, conta. A Internet ajudou não só a popularizar o esmalte como ajudou as empresas a entenderem melhor o público. “O esmalte se tornou uma ferramenta de democratização da moda, e as empresas passaram a prestar atenção nas mídias sociais e a levar em conta opiniões de blogueiras especializadas no assunto,” lembra Juliana.

DELICADEZA As Manicures atendem de 10 á 12 clientes por dia revista exp

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BRIGADA MILITAR, DIVULGAÇÃO

LIBERDADE Assalto com reféns a banco na Azenha exigiu quatro horas de negociação do major Vieira

eSegurança O MAIS PERIGOSO

jogo de xadrez

Negociação entre policiais e criminosos exige muita paciência e estratégia. Quem ganha leva o mais precioso bem para o adversário: a vida ou a liberdade NATACHA GOMES

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o lado de dentro, a arma está engatilhada e apontada para a cabeça da moça. A mão de quem segura o revólver treme e a boca, desesperada, cospe a frase: “tu quer ver eu matar ela? Tu quer ver? Eu mato, só pra te provar”. Do lado de fora, a mão firme segura o celular encostado ao rosto e a voz serena, porém

obstinada, pede calma. Dentro, aquele que é chamado de perpetrador. Fora, um negociador da polícia. Responsáveis pelas vidas de uma ou várias pessoas que são mantidas reféns por bandidos ou pessoas emocionalmente perturbadas, os negociadores são chamados somente nas piores circunstâncias: assaltos com reféns, sequestros, rebeliões em presídios, cárcere privado com

ameaça de morte e iminência de suicídio. Esses momentos são denominados pela polícia como situações de crise e pedem um planejamento especial e profissionais preparados. A ideia de que essas situações deveriam ser tratadas de um modo diferente, com pessoal especializado e ações táticas programadas começou a se desenvolver nos Estados Unidos, na década de 1980. A partir

dessa necessidade, o FBI (agência governamental americana que investiga crimes de âmbito federal) criou a doutrina de gerenciamento de crises, que orienta todo o trabalho da polícia nessas situações. No Brasil, as primeiras manifestações sobre o assunto aconteceram aproximadamente 10 anos depois, quando um delegado da Polícia Federal trouxe a doutrina ao país, a revista exp 89


traduziu e entregou uma cópia para a Polícia Militar de São Paulo, que passou a difundir os ensinamentos. As forças de operações especiais da Polícia Militar, como o Batalhão de Operações Especiais (BOE, que atua no Rio Grande do Sul), são os responsáveis por atender estes tipos de ocorrência. A existência de um grupo para gerenciamento de crise é fundamental para o sucesso do trabalho. A equipe é formada pelo comandante do batalhão, pelo Gate (Grupo Tático de Ações Especiais, que entra em ação apenas quando o causador da crise precisa ser neutralizado) e três negociadores. Essas pessoas tomam as decisões que vão resultar no sucesso, ou não, da ação. Além disso, ao redor do local da ocorrência também se forma uma estrutura de apoio, com ambulâncias, bombeiros e policiais civis, caso necessário. A negociação Para o major Francisco Lannes Veira, chefe dos negociadores e o mais antigo e experiente do Estado na função, “a negociação é a cereja do bolo, pois é quando se tenta resolver tudo na conversa”. Ele a compara a um jogo de xadrez, em que é preciso estratégia e paciência – muita paciência - para suportar ações que podem durar horas. Isso porque há quatro alternativas táticas em ocorrências de crise, e pode se passar para a próxima somente quando a anterior já se esgotou. A primeira delas é a negociação, que, quando não dá certo, é substituída pelo uso de armas não-letais, como gás e tiro de borracha. Em seguida vem o tiro de sniper (atirador de elite), um profissional treinado para efetuar disparos com uma arma precisa. Quando nenhuma das precedentes dá certo, chega a vez da invasão do grupo tático. A principal função do Gate não é matar o criminoso, mas neutralizá-lo. “Embora essa equipe seja treinada especificamente para isso, nunca se sabe qual será a reação do perpetrador”, explica o major Vieira. Como é uma saída mais amigável para resolver o problema, a negociação vem em primeiro lugar. Se a conversa estiver fluindo bem e o perpetrador não tomar atitudes violentas nem demonstrar falta de vontade de dialogar, a ação

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pode se prolongar. Uma das metas do negociador é ganhar tempo, para que se possa levantar o máximo de dados sobre quem está causando a crise e para o Gate estudar o local e ensaiar uma possível invasão. “As pessoas ficam apreensivas. Elas pensam: por que a polícia não entra e dá um tiro na cabeça desse cara de uma vez? O principal objetivo do negociador é preservar vidas, não importa a de quem seja”, explica o major Vieira. Cumprir a lei é outro propósito do negociador, que deve tentar prender o infrator, proteger o patrimônio público e privado e garantir o estado de direito. “Às vezes cansa, a gente pensa que o cara não vai desistir, mas o que conta é o lado técnico, e não a minha opinião pessoal. Se há sinais que a egociação vai bem, devemos prosseguir com ela”, explica. Ganhar tempo também é importante para que a negociação possa mudar de fase. Na primeira delas, a afetiva, o perpetrador pensa apenas na sobrevivência e age por instintos. Depois de duas ou três horas, o transgressor começa a pensar melhor sobre a situação e o diálogo é mais tranquilo e flui melhor, na etapa chamada cognitiva. BRIGADA MILITAR, DIVULGAÇÃO

As últimas horas fazem parte da fase caótica, quando o sequestrador percebe que, se não se entregar, pode morrer. As mortes de reféns geralmente acontecem na primeira fase – quando o infrator está mais nervoso – ou na última, pois o criminoso pode desistir de se entregar, mesmo depois de decidir que o faria. A criação de laços entre os envolvidos na negociação é essencial para o sucesso da ocorrência e também leva tempo para que se desenvolva.

As pessoas pensam: porque a polícia não entra e dá um tiro na cabeça desse cara de uma vez? MAJOR FRANCISCO VIEIRA, negociador

Fases da negociação

tAfetiva: primeiras duas ou três horas da ocorrência. O perpetrador pensa apenas na sobrevivência, age por instintos. Se ele está drogado ou alcoolizado, ao final da fase os efeitos já terão passado. tCognitiva: o criminoso começa a pensar melhor na situação. O diálogo é mais tranquilo. tCaótica: perpetrador percebe que, se não se entregar, pode morrer. Os momentos decisivos acontecem nessa fase. t A maioria das mortes acontecem na fase afetiva (quando o criminoso ainda está muito inseguro) ou na caótica (perpretador pode desistir de se entregar, mesmo já tendo acordado que faria isso).

REUNIÃO Decisões são tomadas por grupo preparado para trabalhar em ocorrências de crise


A relação de confiança que se estabelece entre perpetrador e policial chama-se rapport e é tão importante que pode causar uma troca de negociador, caso ela não seja estabelecida. A Síndrome de Estocolmo, estado em que as vítimas de cárcere privado se identificam emocionalmente com o sequestrador, pode aproximar as duas partes e causar empatia entre elas. Vieira conta que, após o sequestro de uma lotação, que durou 27 horas, em 2002, os reféns ficaram todos a favor do infrator. “Disseram que a polícia chegou só para atrapalhar, que o homem poderia ter ido embora e levado o dinheiro para alimentar os filhos, motivo que ele usou para justificar o sequestro”, relembra .

Como ser um negociador Há uma série de requisitos para ocupar a função que atrai todos os olhares durante a ocorrência de crise. A primeira delas é ser policial. Em seguida, vem a experiência profissional em casos de situações de risco, mínimo de 15 anos de serviço e ser voluntário. A próxima etapa é o curso de negociador oferecido pela Brigada Militar. A primeira – é única – edição foi em 2006 e formou 30 pessoas que estão aptas a exercer a função no Estado. Antes do início das aulas, é feito um teste psicológico e aqueles que não passarem ficam de fora do treinamento, em que se aprende técnicas de negociação, psicologia, programação neurolinguística, Direito e gerenciamento de crises. São 200 horas de mergulho em conteúdos que preparam homens e mulheres para saber como agir e lidar com a pressão e o stress causados pela situação de risco – não para suas próprias vidas, mas de estranhos que estão dispostos a defender. 17 anos na corda bamba Chefe dos negociadores, o major Francisco Lannes Vieira, 42 anos, trabalha desde 1995 com situações de crise, quando começou a atuar no Gate, “Quando entrei no grupo, não sabia muito bem o que estava fazendo”, brinca. “Mas acabei gostando, é a minha formação. Acho que tenho um dom para isso.” Em 2006, participou do primeiro curso de negociação da Brigada Militar (e foi o

Quando se perde uma vida, é uma sensação terrível. Tu te sentes um nada. MAJOR FRANCISCO VIEIRA, negociador

primeiro da turma) o que o torna o negociador mais antigo do Rio Grande do Sul ainda na ativa. Participou de mais de 15 negociações, entre elas o cárcere privado mais longo do Estado, em 2010, quando um marido manteve a mulher refém por 69 horas, em Canoas. O pedido mais estranho que já recebeu de um criminoso foi durante o sequestro da lotação 350, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. “Ele pediu um helicóptero e R$ 300 mil, depois um carro forte e R$ 100 mil e foi diminuindo as exigências, até que viu que não tinha saída e se entregou”, relata. O último caso de grande repercussão que ele conduziu foi o sequestro de clientes e funcionários de um banco na Avenida Azenha, na Capital. Era dia 9 de fevereiro e ele se deslocava até o Beira-Rio, onde faria o policiamento de um jogo, e foi chamado às pressas para a ocorrência. Os colegas do BOE tiveram que levar até ele o kit negociação, uma maleta com equipamentos para escuta, dois celulares e roupas de civil, que não intimidam tanto. A vestimenta que estava dentro da mala é a mesma usada há anos e o major brinca que é a roupa da sorte dele – porque a única vez em que não pode usá-la, não teve sucesso total. Foi em um cárcere privado em Guaíba, quando um homem mantinha a companheira refém e a matou e depois se suicidou após decidir se entregar. “Quando se perde uma vida, a sensação é terrível. Tu te sentes um nada”, desabafa. Além do desgaste emocional, Vieira conta que o negociador sente um cansaço físico muito grande depois da ocorrência. “Todo o corpo dói, mas depois que passa tudo, quando tu vai pra casa e relaxa. Aí é que se sente

EXPERIÊNCIA Vieira trabalha há 17 anos com ocorrências de risco, primeiro atuando no Gate e depois como negociador

PREPARADO O kit negociação, usado nas ocorrências, tem roupas de civil, dois celulares e material para escuta a tensão que ficou acumulada”, conta. Apesar do consumo de energia física e psicológica, o agradecimento de familiares e vítimas depois de uma situação resolvida com sucesso compensa tudo. “As pessoas nos abraçam,

choram, agradecem muito. Eu não me considero um herói, quem fala mais é a imprensa. Mas isso é positivo, é bom para a instituição e pode ajudar em outras ocorrências no futuro”. opina.

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eSexualidade

A diferença

QUE ELES FAZEM

Profissionais que se identificam com o reconhecimento da diversidade no Rio Grande do Sul falam de seus caminhos na luta a favor do público LGBT BRUNA GRIEBELER

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ão pessoas diferentes, com profissões diferentes, empregos diferentes e que buscam e querem a aceitação da diferença. A repetição da palavra fixa a idealização de três profissionais gaúchos que dedicam grande parte do seu tempo para as causas LGBT, sigla que remete a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. Um assessora a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul e fundou uma ONG, outro deles é artista plástico e coordenador de mais uma organização de Porto Alegre. E a terceira é uma exdesembargadora, atual advogada, atuante no direito homoafetivo. Em 1991, Célio Golin fundou o Nuances – Grupo pela Livre Expressão Sexual com o intuito de buscar alternativas que colocassem em pauta assuntos relativos à população LGBT. O objetivo central era que houvesse uma discussão no âmbito dos direitos humanos e da educação. Compartilhando dos mesmos ideais, em 2001 Sandro Ka juntou-se a um grupo de amigos e pessoas que, assim como ele, lutavam para o tratamento de questões como a aids/HIV e sexualidade. Em 2001, o Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade nasceu para reforçar essa a questão da saúde e dos direitos humanos. Sempre ligada nas causas relacionadas à homoafetividade, a advogada Maria Berenice Dias abriu, em 2009, o primeiro escritório do Brasil especializado nos direitos de casais homossexuais. Pioneira no tratamento específico do

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assunto no Rio Grande do Sul e no Brasil, a ex-desembargadora e ex-juíza fez frente ao movimento que levou à abertura de advocacias que hoje atendem esse público. O desafio dos profissionais ligados às causas LGBT está na garantia do auxílio financeiro vinda das organizações públicas ou privadas. Desde o ano passado esses recursos vêm sendo restringidos e, em grande parte, totalmente cortados por falta de interesse em manter os projetos voltados a esse público. Por outro lado, assuntos ligados aos homossexuais, bissexuais, travestis e outros grupos estão cada vez mais colocados em pauta no Judiciário, visto o exemplo das conquistas de 2011 relativas à união estável e casos emblemáticos das concessões de adoção por casais do mesmo sexo. Outra situação em que os LGBT ganham destaque, como principais ativistas, é a retirada de crucifixos em prédios da Justiça em Porto Alegre.

PERSISTÊNCIA Sandro continua na luta dos direitos LGBT

A realidade

Há quatro anos, o Nuances ainda mantinha sede oficial do grupo, com desenvolvimento de projetos e atendimento ao público. “Estamos dando continuidade às questões políticas, como a participação em fóruns, discussões, organização da Parada Gay de Porto Alegre, apoio a ações em conjunto com outras ONGs. Não temos mais possibilidade de manter um local próprio no mesmo formato que antes”, lamenta Célio. Existe um pequeno espaço na Rua Vigário José Inácio, que funciona temporariamente como depósito de itens desenvolvidos

NOVA SEDE Nuances alugou sala para depósito de materiais


FECHADA Biblioteca do Somos tem acervo de 2 mil volumes ou conquistados através da organização, como cartõespostais, jornais, livros, prêmios, mas é ainda insalubre para atuar de portas abertas à sociedade. Não há uma linha telefônica própria, internet funcionando e os materiais, a maioria encaixotados, estão em meio a tijolos e poeira. Hoje, com a interrupção de diversas atividades no início deste ano, a equipe do Somos mantém apenas os projetos que já vinham sendo desenvolvimentos. O advogado e diretor-assistente do grupo, Bernardo de Amorim dá andamento às causas judiciais que ainda estão em processo de decisão, evitando pegar novos casos, em função da falta de recursos financeiros. O grande abalo da organização foi a perda do convênio com uma fundação holandesa, que financiava projeto de prevenção ao HIV para jovens gays e bissexuais desde 2007. “Com a saída dela, ficou claro que só era possível gerir os projetos financiados pelo governo por causa da ajuda estrangeira, que contribuía para pagamento de gastos como luz, aluguel e internet”, relata Sandro. Sendo um dos pilares da ONG, a comunicação continua em vigor, como o abastecimento de sites, redes sociais, divulgação de notícias e participação em eventos que interessam à população LGBT. Em outro patamar social e financeiro, o escritório Maria Berenice Dias Advogados tem suas atividades mantidas por meio de clientes, já que não atende de forma gratuita. O trabalho com os homossexuais

desenvolvido pela profissional que dá nome à advocacia está relacionado à busca da garantia de direitos quanto à união homoafetiva. Ela também recebe causas que envolvem o registro de crianças no nome de duas pessoas do mesmo sexo e a união de casais homossexuais de diferentes países, viabilizando visto de permanência do estrangeiro no Brasil. “É doloroso, mas se consegue,” alivia-se Maria Berenice.

Conquistas

Célio acredita que o Nuances deixou marcas na cena gaúcha gay, com trabalhos que fazem parte da história dessa população e do desenvolvimento do país nesse sentido, como a produção e edição de 44 edições de jornais que levavam o nome do Nuances em seu título. E o lançamento de livros e manuais, além da criação de cartões-postais, cartazes e calendários que visavam a aceitação da diversidade sexual. “Nosso lema sempre foi mostrar quem realmente somos, sem a

Não temos mais a possibilidade de manter o mesmo tipo de local e serviços de antes. CÉLIO GOLIN, fundador do Nuances

preocupação em agradar os mais conservadores. Não somos uma ONG de classe média que fala com linguagem de classe média”, afirma o fundador do Nuances. Entre as conquistas do Somos está o acervo de livros sobre a temática LGBT em uma biblioteca, com acesso interrompido, que conta com o acervo de 2 mil volumes. Sem a possibilidade de manter uma pessoa para atender o público, ela está fechada por tempo indeterminado. A organização já foi sede de reunião de grupos de apoio e de prevenção para jovens e idosos. A ONG mantém ainda projetos ligados ao Ministério da Cultura, embora Sandro afirme que não é possível saber quando irão receber os recursos, mesmo que estejam cumprindo a sua parte do contrato, a exemplo do Mapeamento Cultural LGBT. Este projeto tem site próprio e busca a visibilidade de artistas que sofrem preconceito e marginalização devido a suas condições sexuais, gerando, muitas vezes, a impossibilidade de divulgação dos seus trabalhos. A ideia era abranger todas as capitais do Brasil, e já foi feito o trabalho em 17 delas. A outra metade, que ficou para a segunda etapa, não teve continuidade e nem há estimativa de quando ocorrerá. “Ficaram de fora as regiões Norte e Nordeste, justamente a parcela que mais precisa de atenção, pois não é vista. Interromper um projeto como esse gera um problema sério com o movimento social. Como explicar que o governo suspende um edital que foi feito com seleção pública? Essas pessoas ficam mais invisíveis do que já são”, indaga e revolta-se Sandro. Maria Berenice, além de advogar para clientes homossexuais, busca avanços na área dos direitos dessa população. Entre outros projetos, ela faz parte do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do governo Tarso Genro, o Conselhão, onde conseguiu inserir a temática LGBT, estabelecendo a criação de uma carteira de identidade com o nome social dos travestis, que será fornecida pela Secretaria da Justiça, e garantindo uma ala no Presídio Central de Porto Alegre para essa mesma população não ficar misturada com o restante. Essa ação de separar os travestis presidiários foi apoiada

Como explicar que suspendaram um edital? Essas pessoas ficam mais invisíveis do que antes. SANDRO KA, coordenador do Somos

também pelo Nuances e pelo Somos, sendo uma ação que teve alcance na militância dos três entrevistados. Para o futuro, o pensamento de Célio, Sandro e Maria Berenice são parecidos. Célio acredita que, apesar de hoje o Nuances encontrar-se em crise, é possível dar continuidade aos trabalhos de ONGs no Brasil, porém sem muitas certezas. Para ele, a capacidade técnica e política das pessoas, a força de vontade e o dinheiro são fundamentais para alcançar os objetivos necessários. Sandro acredita no auxílio financeiro do Estado para os movimentos sociais. Ele diz que está sendo feito um avanço pelos governos estaduais e municipais, como a criação do Rio Grande Sem Homofobia, programa do governo do Rio Grande do Sul que nasceu com a proposta de apoiar as causas LGBT. A passos lentos ele vem garantindo algumas concessões, como a criação de conferências para discutir o assunto. Maria Berenice compartilha da mesma ideia do diretor do Somos e afirma que já existem mais de 1,5 mil decisões referentes ao tema no Brasil. No país também já foram criadas, ou estão em vias de instalação, mais de 50 comissões da Diversidade Sexual das seccionais e subseções da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB. Pessoas que acreditam nas causas LGBT, como Célio, Sandro e Maria Berenice, criaram uma identidade que os vinculam à diversidade sexual. Eles veem a possibilidade de uma sociedade mais justa e dinâmica. Suas lutas, muitas reconhecidas, algumas perdidas e outras em processo de construção, demonstram a vontade de ter um Rio Grande do Sul e, mais ainda, um Brasil livre do preconceito. revista exp

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eSolitude A ILHA DE UM

homem só

Benjamin Trevisan vive há 30 anos isolado em uma porção de terra na Lagoa dos Quadros e até hoje esta história não foi bem contada

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LORENÇO OLIVEIRA

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INTERESSES Os sete hectares quase viraram uma área de nudismo nos anos 1980

ara John Donne, escritor inglês do século 16, “nenhum homem é uma ilha, completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme”. Para os moradores de Prainha, distrito de Maquiné banhado pela Lagoa dos Quadros, Benjamin Trevisan é uma pessoa comum. Longe de ser um ermitão ou um Robson Crusoé moderno, ele plantou, criou animais, instalou luz elétrica e construiu uma casa, onde vive sossegado com seus 80 anos. Para alguns, ele é apenas um posseiro teimoso. Para chegar à ilha do Pontal, Trevisan tinha que atravessar o chamado Boqueirão, uma distância de cerca de 200 metros da beira. Antigamente, em época de estiagem, a lagoa baixava e emergia uma passagem entre a ilha e o pontal. Por causa desta metamorfose sazonal, os povos da região a chamavam de ilha Mística. Com a navegação fluvial, o estreito virou canal e a ilha se “desgrudou” do Pontal. Por motivos desconhecidos, o dono da ponta começou a impedir a passagem de Trevisan à lagoa. Foi então que um vizinho resolveu ajudá-lo. “O meu pai deixava-o passar de carro, aqui por cima do nosso terreno, para chegar até a água”, recorda-se Eva Mittmann, apontando para um gramado trilhado ao lado de sua casa. Eva nasceu em 24 de outubro de 1953, mas, por descuido da família, foi registrada como nascida em 3 de novembro. Sua irmã Angelina, 11 anos mais nova, apesar de ser filha de pescador, nunca aprendeu a nadar. “Fui só uma vez lá na ilha porque tenho medo de barco”, envergonha-se. As duas irmãs nasceram e moram até hoje à beira da lagoa. Relatam que Trevisan era um estranho na região quando veio morar na ilha, mas nunca causou problemas a elas. “É uma pessoa de pouca conversa, que de vez em quando pedia algum favor para nós”, remonta Eva. “Hoje, ele está doente e, às vezes, meu filho busca alguns remédios para o caseiro dele vir pegar.” Claudio Ferreira, que mora há oito meses com Trevisan, busca mantimentos em Maquiné. Uma vez por mês, ele o leva para cortar o cabelo e receber a aposentadoria. Quem

paga o salário de Claudio e os medicamentos é a ex-esposa de Trevisan, que não o visita muito, mas conversa pelo menos uma vez por mês com Eva por telefone. A mulher, que mora no município de Rainha do Mar, teve uma filha com ele, que também o vê pouco. A ex-esposa não quis conceder entrevista, por acreditar que a reportagem pudesse interferir no processo judicial pela posse da ilha. Os primeiros moradores Assim como Trevisan chegou a formar uma família, a ilha do Pontal também “teve” uma. O mais antigo morador do local que se teve notícia foi Otacílio Justino da Rosa. Por mais de 40 anos, o pescador viveu e criou sete filhos na lagoa. A terceira filha, Edite Rosalina Eloy, é a única que voltou a morar nas redondezas. “Não havia luz elétrica, as casas eram de pau a pique e dormíamos em camas de tarimba, um tipo de estrado feito de pau e costurado com palha de milho”, explica Edite entrelaçando os dedos das

mãos. “E os travesseiros eram de macela.” Plantavam diversos alimentos, entre eles melancia, melão, moranga, batata e aipim. Os homens da família pescavam traíra, bagre, viola, roncador e outros peixes. Tudo que produziam não era apenas para o sustento, mas principalmente para vender em Capão da Canoa. Apesar do isolamento que a ilha aparenta, os sete filhos de Otacílio frequentavam a escola e se relacionavam normalmente com a vizinhança. Aos 12 anos, Edite se mudou da terra natal para o Passo do Feijó, em Alvorada, onde morou com a irmã até completar os estudos. Virou empregada doméstica na Capital e se casou com um torneiro mecânico da antiga empresa Royal. Há dez anos, quando se aposentaram, vieram para a região. “Otacílio vendeu para um sujeito de Esteio, dono de um moinho de trigo, que pagou 10 mil réis pela ilha”, esbraveja o marido dentro de casa. O gigante Bira surge na porta com olhos apertados e barba branca de

SOZINHO Aos 80 anos, Trevisan mora na ilha apenas com cães revista exp

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Otacílio vendeu para um sujeito de Esteio, dono de um moinho de trigo, que pagou 10 mil reis pela ilha. UBIRAJARA FRAGOSO, aposentado

papai Noel. Ubirajara Fragoso se recorda que o sogro pagava um tipo de imposto à prefeitura de Osório pela posse do terreno. Além do mais, Otacílio já não tinha os filhos por perto e estava começando a adoecer. Com 7 mil réis comprou alguns hectares ali por perto e o restante usou para construir uma nova moradia.

Os Nunes “Meu avô dizia que esta ponta pertencia aos Nunes, nossos antepassados”, esclarece o funcionário público e morador de Prainha Paulo Rech da Silveira. A história da família Nunes com o Pontal remonta ao início do século 19. Em 15 de fevereiro de 1819, por meio de uma Carta de Título de Terras, o Governador e capitão general da capitania de São Pedro, Don José CastelBranco, concedeu a Pedro de Borba uma ilha com “cinquenta braças de frente e cem de fundos” na borda da Lagoa dos Quadros, denominada Casa de Telha. Pedro teve uma filha chamada Florisbela Maria da Rosa, que se casou com José Nunes da Silveira; avós de Fermiano Nunes da Silveira, avô de Paulo. “Benjamin apareceu na casa de meu avô pedindo para habitar a ilha em 1980, quando eu tinha uns 15 anos”, recordase Paulo. Fermiano permitiu, mas com a condição de que seu filho Manoel, pai de Paulo, fosse junto com ele. Manuel, ou Memelo, como era conhecido, passou a viver em tempo integral na ilha e visitava a família apenas duas vezes por semana. Ajudou Trevisan a construir e criar animais durante 14 anos. “Quando ele saiu de lá, passaramse uns dois meses e teve um infarto, aos 68 anos”, lamenta Paulo. Trevisan restou.

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O nudismo Egon Birlem era o típico prefeito polêmico. Havia recém entrado na prefeitura e fazia uma campanha exaustiva de promoção do novo município: Capão da Canoa. Foi quando, nos idos de 1984, um vereador do município comentou com ele que um veranista de Xangri-Lá, praia vizinha, havia comprado uma ilha na lagoa. Birlem se perguntou: “Uma ilha nos Quadros?” O comprador era o mesmo produtor de trigo de Esteio relatado por Ubirajara. “Mas nunca chegou a visitá-la direito, parece que uma cobra quase o atacou uma vez e, então, não quis mais saber”, lembra o ex-prefeito. O esteense fez um acordo com a Câmara de Vereadores de Capão, por meio de documento que cedia a ilha para o município. Para um sujeito ambicioso como Birlem, descobrir um terreno lacustre de sete hectares era um achado; porém, mal sabia que a ilha tinha dono. Nessa época, Capão estava sob

os holofotes da imprensa gaúcha, e nem sempre por fatos positivos. Era a primeira temporada em que um surfista morria afogado em uma rede de pesca no mar. A prefeitura teve de baixar um decreto às pressas para dividir a praia em áreas separadas para pesca, banho e surfe. Um dia, o colunista social de um jornal diário fez uma visita ao gabinete do prefeito, com duas veranistas que queriam “trocar uma ideia” com ele. “Prefeito, já que agora você está demarcando áreas para atividades específicas na praia, nos gostaríamos de saber se não teria como fazer uma área para a prática de topless?”, questionaram as duas garotas. Birlem chegou a pensar, mas respondeu na hora que “a sociedade ainda não estava pronta para isso”. Porém, deixou escapar: “Existe uma ilha que estamos estudando, que talvez um dia possa ser uma área para isso aí... Como é mesmo, naturismo, nudismo?”. Daquele encontro, surgiram os

PASSADO Bira e Edite recordam os primeiros moradores da ilha

Benjamin apareceu na casa de meu avô pedindo para habitar a ilha em 1980. PAULO RECH DA SILVEIRA, funcionário público

boatos e as manchetes: “Prefeito de Capão quer fazer ilha de nudismo na lagoa dos Quadros”. Egon não se arrepende do que fez. O projeto nunca existiu, mas a boataria foi nacional. Naturistas de todo o Brasil queriam saber que ilha era aquela que um político gaúcho queria promover. Os moradores da Prainha acreditam que essa polêmica tenha tirado o sossego de Trevisan. Uma vez que o prefeito tentou levar a imprensa diversas vezes à ilha, Trevisan tinha motivos para temer ser expulso de lá, então, decidiu entrar com processo de usucapião do terreno. O procurador geral do município da época, Humberto Lauro Ramos, é convicto de que a ilha não pode pertencer a Trevisan. A partir da Constituição de 1967, as ilhas não pertencentes à União passaram a integrar o patrimônio dos Estados-membros, fato que inviabiliza a aquisição da propriedade por usucapião. Após 12 anos de trâmites, sai um veredito. Em 8 de agosto de 1996, o jornal Zero Hora publicava: “Ilha do Pontal pertence ao Estado”. No entanto, no relatório de apelação a reexame do caso, em 2005, fica claro no voto do relator e Desembargador Guinther Spode que a ilha do Pontal não sofre os efeitos da carta de 67, por ser propriedade privada desde os idos de 1819, e não passou a pertencer ao Estado. O processo está arquivado e aguarda novo reexame. Os mandados de reintegração de posse chegaram a ser retirados, e Benjamin Trevisan segue vivendo até hoje na ilha. Tende a sair cada vez menos por seu estado de saúde. Trevisan só quer descansar em paz os dias que lhe restam. Nenhum homem é uma ilha, mas talvez Trevisan seja.


eRádio MUDANÇA DE

perfil

Se no passado os radialistas tinham rostos comuns e desconhecidos, recentemente eles estão virando celebridade entre o grande público

ROSTO FAMOSO O radialista Luciano Périco é assediado pela torcida nos arredores dos estádios de futebol periodicamente RAPHAEL GOMES

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reto, sentado à mesa com um terno bem passado, gravata com um nó impecável, cabelo curto penteado para o lado direito e barba feita, sem um fio perdido no rosto. Esta poderia ser a descrição perfeita de um apaixonado esperando a sua amada no primeiro encontro. Ou ainda de um candidato a uma vaga de emprego, enquanto aguarda na sala de espera pela sua avaliação. Porém, esse é um jornalista nos primórdios da transmissão radiofônica. A imagem do locutor estava longe do domínio público. Entretanto, tal qual se antevisse o reconhecimento dos dias de hoje,

a preocupação com a aparência era, de fato, comum. “Impossível saber de quem era aquela voz bonita que nós escutávamos no rádio. É claro que se imaginava um galã à frente do microfone lendo as notícias. Entretanto, tudo vinha da nossa cabeça”, avalia Adelina Catarina Zoppas Pizzato, 87 anos. Ouvinte assídua do Repórter Esso desde os primeiros programas na longínqua e pequena cidade de Garibaldi, Adelina iguala o jornalista da época ao galã da novela dos dias de hoje. O admirado em questão era Lauro Hagemann, 82 anos. No início da década de 1950, com apenas 20 anos, o apresentador do Esso que possuía um timbre mais encorpado e uma entonação

perfeita, apesar da pouca idade, chamava a atenção do público com a sua voz. Apenas a voz. Entretanto, quando desligava o microfone e saía do estúdio, Hagemann era uma pessoa normal, como ele mesmo se define. “Ninguém sabia que eu era o Repórter Esso. O programa tinha fama, sim. Mas eu não. Eu era um qualquer”, recorda. O reconhecimento nas ruas praticamente inexistia para o radialista. Às vezes, acontecia. No entanto, o questionamento “Tu não és o Repórter Esso?” só vinha à tona após Hagemann abrir a boca e pronunciar algumas palavras. Mudo, não era famoso. Professor da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS e autor do livro O Repórter Esso,

Luciano Klöckner reafirma o relato de Hagemann. “As vozes dos locutores do Esso eram conhecidíssimas. O ouvinte não precisava escutar a vinheta por completo para saber qual era o programa que estava começando. A voz do Esso era conhecidíssima. Entretanto, o jornalista não era”, conclui. O rosto do jornalista de rádio é alvo de curiosidade há muitos anos. Entre os anos de 1950 e 1960, com o enorme sucesso do veículo, foram lançados álbuns de figurinhas com os “artistas” (como o próprio define). O encarte Balas do Rádio mostrava, pela primeira vez, a fisionomia das vozes das rádios Difusora, Gaúcha e Farroupilha – as mais ouvidas na época. revista exp

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Internet

Nos anos 2000, a figura do jornalista que trabalha em rádio mudou. Ou melhor, tornouse visível para os ouvintes. A internet foi a responsável por trazer à tona a imagem mágica da voz por trás de um microfone. Com apenas alguns cliques, é possível visualizar fotos e vídeos dos mais diversos profissionais. O Twitter, rede social que é uma espécie de microblog, aproxima o comunicador de seus ouvintes. Nela, o espectador segue, individualmente, o jornalista em si, e não a empresa ou veículo para o qual ele trabalha. O próprio dono do perfil posta fotos suas e cria, assim, uma identificação maior com o público, tornando-se também uma celebridade cybernética. Os radialistas, atualmente, são figuras constante neste meio. Contam com milhares de followers que os acompanham diariamente. Praticamente paparazzis atrás de atores hollywodianos. Esta fama pode causar um certo desconforto. Radialista há quase 25 anos, com destaque na FM, Alexandre Fetter (Atlântida) não se considera um artista. Atende os fãs, dá autógrafos e posa para diversas fotos, no entanto, revela com um pouco de vergonha. “Não me considero uma pessa famosa. Eu sou apenas um profissional, como qualquer outro, que acaba reconhecido pelo seu trabalho. Eu atendo a todos que me pedem, às vezes um pouco tímido, mas sempre atendo (risos)”.

Luciano Périco, da Rádio Gaúcha, também trata os holofotes com uma certa irreverência. “Meu trabalho é comum. Eu acho estranha toda esta fama. Para mim, é tão incomum quanto eu chegar num engenheiro e dizer: ‘Demais esse teu prédio. Acho que eu vou morar nele. Tira uma foto comigo?’”, ironiza. Lucianinho, como é chamado pelos colegas e ouvintes, é um dos nomes das rádios noticiosas que têm a fisionomia mais conhecida. Nas jornadas esportivas da Gaúcha, ele é o repórter da arquibancada. Ou seja, responsável por dar a visão da torcida do jogo de futebol. O jornalista em contato direto, semanalmente, com o ouvinte. Outro fator determinante é a figura dele. “Se em um jogo com 40 mil pessoas metade delas verem um cara com um microfone, 2,05m e um colete de imprensa laranja é claro que eu

Ninguém sabia que eu era o Repórter Esso. O programa tinha fama, sim. Mas eu não. Eu era um qualquer. LAURO HAGEMANN, ex-apresentador do Repórter Esso

vou ser reconhecido”, explica. Aos 66 anos, José Aldair, ex-locutor do Correspondente GBOEX, não concorda com a mudança de perfil ocorrida. Para ele, o jornalista e o veículo perdem credibilidade com a popularização da figura da voz que repassa as notícias. Afinal, o radialista não é o centro das atenções e sim a notícia em si. “Toda esta preocupação com a pessoa que transmite a notícia é desnecessária. Essa não é a função do comunicador. Estão transformando o jornalista em um apresentador, em algo figurativo. E isso está errado”, avalia. Aldair acha que o jornalismo da sua época passava uma credibilidade muito maior do que atualmente. Seja nas frequências AM ou FM, Hagemann concorda: “Hoje é tudo muito misturado. Piada, brincadeira, música, notícia etc. A própria entonação da voz, que deve variar de acordo com a notícia, acaba se perdendo. Está tudo virando entretenimento”.

Perda do imaginário?

Maria Auxiliadora Weber, 84 anos, acha que um hobbie está desaparecendo com o passar do tempo. Quando era jovem e sentava na sala com os pais para escutar o aparelho de rádio, ela viajava através das ondas radiofônicas para imaginar o dono da voz que entrava por seus ouvidos. Seria ele loiro ou moreno? Alto ou baixo? Gordo ou magro? Ela imaginava, em segredo, e divertia-se com as amigas ao comparar as figuras. “É

uma pena a magia do imaginário estar se perdendo. Eu me reunia com as minhas amigas e nós contávamos umas para as outras o que tínhamos imaginado. Era divertidíssimo”, recorda. Ao ser provocada pela reportagem e ver fotos de Hagemann na época em que escutava os programas noticiosos dos supostos locutores galãs, a aposentada não se decepciona. “É claro que nunca é como a gente imagina, porém, não foge muito do modelo que criávamos. Afinal, eles trabalhavam muitíssimo bem arrumados, de terno, gravata e paletó. Eles eram até mais elegantes e bonitos que os de hoje em dia”, brinca. Klöckner não acha que a “mágica” do rádio esteja se esvaindo aos poucos, como afirma Maria Auxiliadora. “A fisionomia é apenas uma pequena parte do imaginário. A magia não está no personagem radialista, e sim no rádio em si. Eu brinco dizendo que esse veículo é tão bom que não precisa de imagem. Quer mais magia que isso?”, questiona. Os rostos daqueles famosos pelo seu timbre de voz estão cada vez mais reconhecíveis ao público geral. A entonação da palavra que era marcada e relembrada por Adelina e Maria Auxiliadora, há 60 anos, hoje já pode ser associada a uma fisionomia nítida na cabeça do grande público. É melhor aprumar o terno, pentear o cabelo e ajustar a gravata, afinal, a imagem de alguns radialistas agora virou domínio popular.

ROSTO COMUM Lauro Hagemann era a voz do Repórter Esso, entretanto, ser locutor do programa nunca foi sinônimo de fama

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eAção social QUANTO VALE

uma refeição No Restaurante Popular de Porto Alegre, pessoas conseguem quase metade da alimentação necessária para um dia com apenas R$ 1

JOÃO HENRIQUE WILLRICH

S

CONTRARIADA Daniela prefere comer na estrada para a Capital

ão precisamente 9h. Emma Feier está encostada na porta de ferro da rua Conceição, 165. Ela viajou cerca de uma hora, de ônibus, desde a Base Aérea de Canoas até o centro de Porto Alegre. Usa uma camiseta de renda, com estampas de flor. Seus fartos cabelos brancos estão presos por um tic-tac preto no topo da cabeça. Os olhos azuis claros são enquadrados por um óculos de modelo simples, que contêm, no final das hastes, um cordão conectando as duas pontas. Uma saia preta além da altura dos joelhos, e uma alpargata surrada ao final das finas canelas, completam o visual Após alguns minutos parada, observando o movimento, Emma sai da frente da porta sussurrando: “Que calor”. A temperatura chega à casa dos 30 graus no final do verão. Ela se refugia do mormaço na sombra da passarela que conecta a rodoviária ao outro ponto da avenida. Lá, encontra um amigo, que assim como ela, está esperando o Restaurante Popular abrir. Ambos dividem um café com aspecto amarronzado. Ao conversarem, Emma dá largos sorrisos que denunciam suas rugas, principalmente na altura dos olhos, assim como a idade de 86 anos. Depois de quase 50 minutos de espera, ela enfrenta novamente o sol para bater na grande porta de ferro. Como não houve resposta, presume que não tem ninguém. Na realidade, neste exato momento, os cozinheiros do

Restaurante Popular estão dando os toques finais ao que será o prato do dia: arroz, feijão, carne com batata, polenta e salada. A preparação do almoço servido às 11h começa muito antes do momento que Emma chega à frente da porta de ferro. A preparação começa às 7h, com a chegada dos cozinheiros. Meia hora depois todos começam a esquentar as panelas e por volta de 8h todos já sabem suas funções. Nestas três horas de preparação, são utilizados três grandes caldeirões com capacidade para 500 litros cada. No momento estão sendo usados apenas dois, enquanto o terceiro serve apenas para esquentar a água. O primeiro é usado para fazer 70 quilos de arroz e o outro para preparar 50 quilos de feijão, alimentos que são presença fixa nos cardápios do restaurante. No centro da cozinha existem sete panelões usados no preparo do complemento do dia, que varia. Quando a comida está pronta, às 10h30min , os idosos, por terem prioridade, já estão esperando nas mesas. Para o público regular as portas são abertas às 11h, mas uma hora depois, encontramos pessoas esperando do lado de fora. É o caso de Leoni Borges, 67 anos, que apenas consegue entrar antes por ter uma amizade com o porteiro: “Ele já me conhece”, fala. Sua rotina é sempre a mesma: sai da sua casa no bairro da Restinga, almoça no restaurante e depois parte para o ateliê de sua irmã, localizado na Tristeza. Mesmo sendo uma costureira revista exp

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FARTURA A recomendação é servir um prato bem completo para os frequentadores

80% dos usuários são pessoas de baixa renda

800 pessoas são servidas

diariamente no restaurante

1000 kcal é a quantidade aproximada que a refeiçao no restaurante tem

aposentada, ela sempre quer dar uma ajuda no “negócio da família”. Ao falar sobre a comida servida, acha que R$ 1 é praticamente de graça. “Não compro nem um pedaço de carne com isso”, comenta. Além da economia, almoça lá para manter a forma, graças ao tempero “light” da comida. Leoni confessa que o restaurante não serve apenas para comer: “Quero arranjar um namorado aqui”. No final do ano passado ela tinha dois “casos”, mas resolveu deixálos para passar a virada de ano solteira. Porém seus olhos brilham quando fala de seu amor mais recente. Seu nome é Ênio. Leoni revela que era apaixonada pelos olhos verdes do galã de “60 e poucos”. Ele era um homem direito, tinha cursado engenharia e agora trabalhava como corretor de imóveis. O tom de pesar na voz é revelado pelo o que aconteceu nos primeiros meses de 2012. “Roubaram ele de

REFEIÇÃO DO DIA Essa é a único alimentação diária de muitas pessoas

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mim, uma pilantra que sentava ali” – ela aponta para a mesa da frente, na cadeira mais do canto – “Eu queria matar ela, pois alem de roubar, ela espantou ele. Nunca mais apareceu”.. Após contar a história de seus romances, Leoni parte diretamente à fila, para ser servida, afinal, já são 11h. O número de pessoas começa a acumular. Para entrar, precisam pagar R$1 e receber um ticket que dá acesso ao salão do restaurante através de uma catraca vermelha. Ao fazerem a primeira curva na fila, eles deparam com um cartaz, onde se lê LAVE SUAS MÃOS em letras garrafais. A higienização é feita por dois refis de sabonetes líquidos, dois tanques e nenhum papel para secar. Antes de serem servidos, precisam pegar uma bandeja azul e o prato branco. Seis funcionários servem os clientes. Elas trabalham freneticamente com as mãos, para tentar diminuir a fila

que se acumula cada vez mais na entrada do restaurante. A orientação é servir um prato bem fornido, 200 gramas de arroz e feijão, mais 150 de carne, complemento além de uma porção de salada definida pelo pegador. O cálculo das calorias leva em consideração de que essa refeição deve suprir cerca de 42% do que a pessoa precisa em um dia, ou seja, uma quantidade aproximada de mil calorias. “Essa é a única refeição diária de muitas pessoas”, explica a nutricionista Cristiane Souto, gerente do estabelecimento há cerca de um ano. O restaurante abre de segunda a sexta e serve almoços para cerca de 800 pessoas por dia. O salão principal do restaurante tem capacidade para 200 clientes. Quem subsidia o serviço é o governo do Estado em conjunto com a ONG Betel, de Pelotas, e a administradora que se chama Excelência Administração. No total, são gastos cerca de R$ 3.800 por mês para manter o restaurante. Segundo uma pesquisa realizada, cerca de 80% dos usuários do restaurante são pessoas de baixa renda. Para o chefe dos cozinheiros, Carlos Alberto Gonçalves de Barros, essa é uma estatística que o enche de orgulho. Segundo ele, cozinhar para quem realmente precisa é o principal motivo de trabalhar no restaurante há mais de dois anos. Ao longo desse tempo ele confessa que já viu muita gente de terno e gravata almoçando no local. “ Acho que o restaurante deveria ser pra quem realmente precisa. Não entendo o que essas pessoas fazem aqui”,

reclama. Apesar de nenhum homem de terno e gravata estar sentado nas mesas cor de rosa do restaurante, outra pessoa se destaca, mas desta vez não é pela roupa que usa, e sim pela sua idade. Daniela Cardoso Homem, 12 anos, a pessoa mais jovem a almoçar no restaurante. Ela veio acompanhada de seu pai, Pedro Bittencourt, 46. Ambos vieram a Porto Alegre para trazer Delza Maria Bittencourt, 81 anos, avó da garota, para uma consulta médica. Todos são de Mostardas, no interior do Rio Grande do Sul, onde Pedro é agricultor e também comerciante. A primeira vez que almoçou no local foi há cerca de sete anos, quando veio para a capital de ônibus e encontrou o lugar logo que saiu da estação rodoviária. Para ele, a comida é “a melhor coisa” , principalmente pelo preço. Depois de ouvir essa afirmação, Daniela, que está sentada na diagonal do pai, faz uma cara feia. A mínima porção de arroz diluído em outra pequena quantidade de feijão evidencia o que ela acha do restaurante. “A gente sempre acaba aqui quando vem pra Porto Alegre, mas eu não gosto, prefiro comer na estrada mesmo”, comenta. Os três foram um dos últimos a deixarem o restaurante, que após fechar as portas, às 14h, ainda conta com movimentação por três horas a mais. É quando o pessoal da cozinha limpa tudo e apronta todos os alimentos para às 7h do próximo dia estar tudo certo para a produção de mais um dia no Restaurante Popular.


HOTEL DE

lembranças

Em uma cidade do interior gaúcho, uma hospedaria que entrou para a história do município será demolida para dar lugar a um posto de combustível GABRIELA SITTA

U

ma placa de ferro está coberta com tinta branca. O que há gravado na chapa ninguém sabe ao certo. Pedro de Quadros acredita que as letras escondidas formam duas palavras. Por sua vez, o dono do posto de gasolina que fica ao lado do prédio onde a placa está fixada acha que há também uma data na lâmina. Já para o senhor sentado perto das bombas de combustível, a existência de um retângulo de metal coberto de tinta branca na fachada do edifício é uma novidade. As duas palavras que Quadros acredita estarem inscritas na

placa são Hotel Aurora. O dono do posto de gasolina não tem ideia da data marcada no ferro. E o outro senhor não parece muito curioso com a descoberta que acaba de fazer. Há pouco mais de um ano, o proprietário do posto, Wilson Casamali, comprou o edifício onde está a placa e, por conseguinte, a própria placa. Ele pretende demolir o prédio para ampliar seu estabelecimento. Mas, antes de as paredes do antigo Hotel Aurora ruírem, a placa de metal será cuidadosamente descolada da parede em que está grudada e entregue a Pedro de Quadros. Isso porque ele, hoje com 72 anos, é neto de Taudelino

Antunes de Quadros, que construiu a hospedagem e decidiu que ela se chamaria Aurora.

O primeiro hotel

A data não é precisa e não há nenhum documento que possa esclarecê-la, mas foi por volta de 1920 que Taudelino e a esposa, Matilde, decidiram se mudar. O casal já tinha três filhos quando construiu um prédio de madeira bem no centro de uma cidade do norte do Rio Grande do Sul. Vila Teixeira, como então se chamava o município conhecido hoje como Tapejara, se desenvolvia a passos lentos. A construção feita por Taudelino ficaria na história da cidade como o primeiro hotel daquelas paragens. E

logo passou a atrair clientes, especialmente caixeiros viajantes que, de passagem pelos poucos estabelecimentos comerciais das redondezas, descansavam por lá. Pedro de Quadros, o neto de Taudelino, não está acostumado a ser inquirido. Nervoso, atropela palavras e fornece explicações imprecisas. Como auxílio para as lembranças, ele traz nas mãos uma folha de papel em que rascunhou a história dos avós e dos pais. Sobre a mesa de sua casa estão duas das poucas fotografias que herdou da família. Em uma delas, aparece Taudelino e a mulher posando entre os seis filhos. Em outra, o Hotel Aurora aparece ao fundo de algumas dezenas de pessoas.

revista exp 101


Ao lado de Pedro, a esposa Marilena se esforça para reformular perguntas e deixar o marido à vontade. Ele conta que cresceu entre os rostos sempre novos dos hóspedes do Aurora. Apesar de nunca ter vivido na hospedagem, Pedro se emociona ao rememorar a infância passada lá. Devagar, despeja as memórias que possui. “A primeira linha telefônica da cidade ligava o hotel ao hospital, porque o médico, doutor Miguel Tabbal, morou por mais de dez anos no Aurora”, lembra. E não há quem duvide. Conhecido como o precursor da medicina na cidade, Tabbal ainda é lembrado pelos habitantes mais antigos. Junto com ele, outra figura memorável. Todas as tardes, o padre Calógero Torturici sentava-se em frente à hospedagem e lá permanecia por horas a fio. “Havia uma roda de chimarrão. O padre caminhava os dois quarteirões que separam a igreja e o hotel e descansava a tarde inteira, vendo o movimento, sentado em uma cadeirinha”, narra. E é na igreja da cidade que padre Calógero ainda está. Os ossos do religioso foram enterrados ao lado da porta principal da casa de Deus e, reza a lenda, protegem a cidade da fúria da natureza. Isso porque antes de morrer, em 1950, o sacerdote abençoou Tapejara e pressagiou: enquanto seus ossos estivessem na igreja, nenhum temporal atingiria o município. Até agora os moradores não têm do que se queixar. Por mais força que o vento e a chuva tenham, a cidade nunca passou por grandes estragos. Na década de 1940, cerca de dez anos depois de a foto que seu Pedro guarda do hotel ter sido capturada, os dois prédios de madeira que abrigavam o Aurora foram destruídos pelo fogo. As causas do incêndio são desconhecidas. O café e a casa que ficavam ao lado da pousada também pegaram fogo, mas a área ficou vazia por pouco tempo. Outro prédio, dessa vez de alvenaria, foi construído. O novo Hotel Aurora era imponente. Com 11 quartos, contava ainda com uma habitação de madeira, ligada à principal por uma espécie de ponte, que disponibilizava mais

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cômodos aos hóspedes. Os 30 primeiros anos da hospedagem a deixaram marcada como centro de confabulação dos políticos locais. Ali foi discutida a emancipação do município, que aconteceu em 1955. Sendo um dos poucos estabelecimentos comerciais, o hotel era também restaurante e ponto de encontro. Na metade dos anos 1950, o prédio trocou de mãos. E de nome. Comprado por um morador da cidade, Ernesto Ritter, o Hotel Aurora passou a ser Hotel Cristal. Com essa denominação, passou da família Ritter para a de Antoninho Sebben aproximadamente em 1965. E, modificado devagar pela passagem dos anos, foi tendo a tinta das paredes descascada. De centro político e única hospedagem da cidade se tornou o hotel mais decadente do município e ponto de reunião de aposentados.

Fim de uma era

Em 1999, Leda Pasa, o marido e os dois filhos decidiram parar de plantar soja e milho. Preocupada com a educação das crianças, a então agricultora

Havia uma roda de chimarrão. O padre caminhava os dois quarteirões que separam a igreja e o hotel e descansava a tarde inteira, vendo o movimento, sentado em uma cadeirinha. PEDRO DE QUADROS, neto do construtor do hotel deixou para trás a vida na lavoura, no interior do município, e decidiu investir em uma rotina mais urbana. Tapejara, que nessa época contava com os quase 20 mil habitantes que tem hoje, oferecia escolas e fácil locomoção para os meninos. Leda e o marido alugaram, então, o prédio construído no fim dos anos 1940

ÍNDÍCIOS Velhos móveis ocupam antigo bar pelo avô do seu Pedro e fizeram dele sua fonte de renda. Quando a família assumiu o hotel, que passou a se chamar Nostra Casa, ele já não tinha os mesmos ares dos seus tempos áureos. Quase na virada do milênio, a hospedagem, gerenciada, antes de Leda alugá-la, pela família Sebben, dava abrigo principalmente a representantes comerciais que viajavam de uma cidade à outra oferecendo produtos aos lojistas. No andar de baixo, uma lanchonete acolhia uma clientela composta quase exclusivamente de aposentados. Ociosos, eles passavam as tardes jogando cartas e bebendo as poucas variedades oferecidas pela casa. “Nós tínhamos cerveja e cachaça. Até havia outros destilados, mas ninguém pedia”, recorda Leda. Apesar de longas tardes inebriantes, os velhos que jogavam conversa fora por ali apenas esporadicamente arranjavam problemas. “Mas claro que havia os clientes que vinham de segunda a sexta, sem falta”, admite Leda. E havia um, em especial, que permanecia no sábado e no domingo também.


PORTAS FECHADAS Os quartos estão vazios

REGISTRADORA As contas são do tempo

Nós tínhamos cerveja e cachaça. Havia outros destilados, mas ninguém pedia. E havia os clientes que vinham de segunda a sexta, sem falta. LEDA PASA, locatária da hospedaria

HÓSPEDE Darci Miotto viveu no hotel por mais de dez anos Ele é Darci Miotto, 74 anos. “Ao assumirmos o hotel, pegamos o pacote junto.” A frase é de Leda, que cuidou do hotel até 2010, quando o marido adoeceu, eles mudaram de negócio e o prédio da hospedagem foi vendido pela família Sebben, que não tinha mais interesse em gerenciar o lugar. O pacote é Miotto.

Hóspede não paga

Sábado, dia de sol e vento frio, março de 2012: Miotto não vai mais ao hotel. Mora, pagando aluguel, no porão de uma casa de madeira. O lugar fica a seis quarteirões do antigo quarto que ele ocupou por mais de dez anos. Quando se mudou para o então Hotel Cristal, o aposentado sabia

que passaria algum tempo por lá: “Eu fui pensando em morar lá, não queria voltar para casa”. Hoje ele prepara feijão, arroz e peixe. Do lado de fora da residência, onde recebe as visitas de pé, já que não possui cadeiras, Miotto exibe uma camiseta azul clara, em cujo bolso se lê “Cultura Racional”. Ele baseia sua vida na seita Racional desde 1984 e tem muito a falar sobre ela, que se tornou mais conhecida no Brasil depois do lançamento dos álbuns Tim Maia Racional, na década de 1970. Mas sobre o hotel que foi sua casa ele pouco tem a contar. Afirma que não gostava do lugar e que sua relação com Leda e a família era complicada. Parte dos problemas de relacionamento provavelmente se deve ao fato de que Miotto não pagou aluguel por vários dos anos em que esteve hospedado. “Além disso, ele não deixava que ninguém limpasse seu quarto”, ressalta Leda. O cômodo que serviu de lar a Miotto hoje está praticamente vazio. O teto e as paredes mofadas são indícios das garrafas pet que o aposentado mantinha suspensas no entorno do aposento e que utilizava para

armazenar o vinho que fabricava na casa de um amigo. Uma cadeira, um armário pequeno e alguns papéis espalhados pelo chão foram as lembranças que ele deixou. Nos outros dez quartos, todos no segundo andar do prédio, há colchões, armários, cadeiras e uma infinidade de pequenos vestígios que indicam que há pouco tempo havia vida e movimento constantes ali. Miotto não é envergonhado nem nostálgico. Convidado a voltar ao hotel para algumas fotos, ele reage tranquilamente. Nada parece deixá-lo com saudade. Mesmo que o pó se acumule nos degraus da escada e que toalhas e lençóis estejam jogados em cima dos parcos móveis que restaram no bar. No restaurante, pneus se misturam às mesas. Uniformes dos funcionários do posto de gasolina se confundem com toalhas de mesa, cortinas e utensílios de cozinha. Dentro das paredes sólidas do antigo Hotel Aurora há um refúgio para velhos pertences e móveis que já tiveram utilidade, abrigaram vidas e histórias, mas que hoje ocupam um espaço que, para o dono do posto de gasolina, vai se transformar em fonte de renda. Mas antes de esse espaço ser tomado, outro vai aparecer. Assim que a placa de metal colada na fachada do hotel for retirada, um retângulo de tinta azul, que estava escondida, vai ocupar o lugar dela. Embaixo do azul, há mais camadas de pintura. Essa tinta toda já concedeu ares de novo ao hotel. Depois foi descascada, envelheceu, foi recoberta. Se todas as camadas pudessem ser retiradas uma a uma, diferentes fases do Hotel Aurora, do Cristal e do Nostra Casa ficariam à mostra. Deixando-as escondidas, vira tarefa da memória e da imaginação abarcá-las. revista exp

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PRATO VERDE Mesmo fã de chocolate e sobremesas, Marina não deixa de fazer refeições saudáveis

DO QUE AS CRIANÇAS

gostam?

Pais e escola fazem um esforço conjunto para transformar os hábitos alimentares dos estudantes, incentivando-os a comer de maneira mais saudável e nutritiva

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BÁRBARA PUSTAI

T

odos os dias, a mesma cena se repetia: Marina não queria comer, e não havia malabarismo que funcionasse. Levaram-na em endocrinologistas e nutricionistas, e chegaram a recorrer à maltodextrina, um polímero da glicose que ajuda no desenvolvimento do corpo. Além disso, ela teve sérios problemas de refluxo, o que ocasionou o baixo peso. Mas isso é passado. Hoje com sete anos, Marina Scherer superou os problemas da primeira infância, que são compensados com uma alimentação balanceada e saudável. “Sempre a estimulamos a comer um prato bem colorido, mas ela não gosta muito de verduras. Em função disso, inventamos algumas estratégias,


como fazer trouxinhas de alface com comida dentro”, conta José Ricardo, pai da Marina. “Eu gosto muito de chocolate, mas também gosto de frutas e de comidas saudáveis. Só não como cogumelo e não tomo refrigerante, não gosto das bolhinhas”, explica a menina. Outra maneira que a família encontrou de incluir refeições saudáveis no cardápio foi almoçar aos sábados em um restaurante ecológico, que trabalha com produtos locais e sem agrotóxicos. A questão da alimentação naturalista está chamando cada vez mais a atenção e, consequentemente, as escolas que oferecem refeições saudáveis e têm uma visão voltada para a ecologia tornaram-se referência no mercado – e entraram na lista de desejos de alguns pais. A Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Amigos do Verde é um modelo a ser seguido no quesito alimentação consciente. Nas refeições de rotina, os alunos encontram uma variada gama de produtos naturais, que se baseiam em alimentos integrais, cereais, frutas, verduras, legumes, carne de frango e peixe. Além disso, realizam quinzenalmente aulas de culinária, quando participam da preparação de lanches. Crianças agarradas em um pedaço de mamão não é cena inusitada na escola, como comprova Bruno Franzen, que se delicia com a fruta. Os amigos inseparáveis Giovanni Schardong e Gabriel Kenji, ambos com oito anos, costumam gostar das comidas oferecidas. Desde um ano de idade na Amigos do Verde, já estão acostumados com os pratos diferentes. Os alunos que frequentam a escola há menos tempo, entretanto, podem passar por algumas dificuldades de adaptação. Ninguém é obrigado a comer, mas todos são incentivados a experimentar. “Às vezes nós fazemos experiências, como lasanha de tofu com legumes, algo que é até visualmente diferente. Aí sim muitos dizem que não gostam e que nem vão provar”, lamenta a coordenadora pedagógica Cristiane Schardong. Ela destaca como é importante que as opções saudáveis sejam oferecidas também em casa e, principalmente, que os outros integrantes da família as incorporem à rotina. Se a criança aprende a importância de ingerir alimentos saudáveis e nutritivos, é essencial que eles façam parte

das refeições do dia a dia. Mas a realidade é outra. “Os pais já não costumam ter uma alimentação muito balanceada, então os seus filhos também não têm. Muitos nos procuram justamente porque temos esse viés naturalista, e seguem o raciocínio de que, pelo menos aqui, as crianças vão comer bem”, revela Cristiane. Para a especialista em psicologia do comportamento alimentar Mônica Broilo, a tarefa de educar quando se trata de alimentação é fundamentalmente da família, mas pode ser realizada em conjunto com o colégio. “Como as crianças iniciam cada vez mais cedo a vida escolar, este ambiente pode influenciar na formação dos hábitos alimentares”, afirma. Quando as instituições de ensino não têm programas que incentivam o consumo de alimentos saudáveis, porém, é importante que os pais fiquem ainda mais atentos. No caso dos estudantes dos ensinos Básico e Fundamental do Colégio Leonardo da Vinci Beta, é a família quem decide o que entra na lancheira. Na sala de aula do segundo ano, apenas duas crianças exibiam frutas em cima das classes. João Pedro Teixeira, sete anos, comia uma maçã verde e não parecia estar satisfeito. “Se pudesse escolher, traria bolacha recheada todos os dias”, admite. O lanche preferido é quase unanimidade: pizza de chocolate, comprada na cantina da qual Amanda Weck é fã incondicional. Mas esse tipo de merenda não é consumido todos os dias. Kátia Lopes, a atendente do bar, conta que sexta-feira é o “dia da porcaria”, quando as crianças são liberadas para comprar o que quiserem na hora do recreio. Tem pais, entretanto, que decidem até mesmo o que os filhos podem comprar, mantendo um controle à distância. “Aqui no Alfabeta Bistrô, nós temos uma lista com os nomes de todos os alunos pequenos e a relação de alimentos permitidos. Algumas crianças não podem pegar nem bala, enquanto outras têm escolha livre”, revela. Mesmo com tantas opções de guloseimas nas gôndolas dos supermercados e na vitrine do bar, alguns alunos criam uma consciência alimentar diferenciada. “Um dia, um menino esqueceu o lanche em casa, então veio no bar. Ele nem

Muitos pais seguem o raciocínio de que, pelo menos na escola, as crianças vão comer de forma saudável. CRISTIANE SCHARDONG, coordenadora pedagógica

precisou pensar muito, logo decidiu que levaria uma água de coco e uma maçã. Fiquei espantada!”, admite Kátia. A chefe do serviço de nutrologia do Hospital de Clínicas e médica

gastropediatra Elza de Mello afirma que, em um panorama geral, a situação da alimentação infantil no Brasil está passando por um momento delicado. “Tem estudos mostrando que o consumo de arroz, feijão, legumes e frutas está decaindo, enquanto a ingestão de carboidratos simples e embutidos está aumentando. Eu já atendi crianças que, no primeiro ano de vida, ingeriam sucos artificiais, macarrão instantâneo e até leite de vaca”, lastima. Segundo a nutróloga, o cuidado na hora de comer é fundamental para o crescimento linear, para o desenvolvimento intelectual e para prevenção de doenças na fase adulta. Alimentação, afinal, não é brincadeira de criança.

FRUTA Bruno Franzen adora os lanches oferecidos na escola

PIZZA Amanda Weck costuma optar pelos lanches da cantina revista exp105


eSaúde RAZÃO E DELÍRIO DE UMA

mente brilhante

A boa notícia é que com o tratamento adequado quem sofre de esquizofrenia pode conviver com o transtorno crônico e estar junto aos seus familiares

MISSÃO Para M.C, a Bíblia tornou-se instrumento inseparável de estudo e de trabalho para manter o equilibrio diário CARIME GRAZIADEI

M.C

é filha única do casal Pedro Henrique e Flávia. Hoje, com 25 anos, os pais gostam de lembrar como ela era antes do surgimento da doença. “Nunca foi uma menina interessada em matemática e sim nos sites da internet”, como lembra a mãe. Henrique conta que na adolescência a filha não tinha problemas de integração. “Queria ser uma grande Relações

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revista exp

Públicas”, lembra Pedro. M.C foi perdendo o interesse por quase tudo e apenas sentia prazer em ler os ensinamentos da biblía. Trancou a faculdade e acabou pedindo demissão do emprego. “Ela passou a ficar irritada com facilidade. Não queria mais conversar conosco, ficava brava quando chamávamos sua atenção”, recorda Flávia. Passava o dia escrevendo mensagens que acreditava ser de Deus. Sua obra divina não mostrava nem aos seus pais. Certa noite enquanto

preparava o jantar, sem perceber que M.C. havia saído, Cláudia, corre para atender o telefone. Do outro lado da linha uma voz aflita dizia: “Não aconteceu nada com sua filha, mas a senhora precisa vir urgente”, relatava o funcionário do bar. M.C parecia ser outra pessoa, e seus pais perplexos não sabiam o que fazer. Durante o surto gritava que todos ali presentes precisavam ouvi-la.”Existem forças malignas que os trazem até aqui. Vocês precisam largar essa vida imunda, mundana e ouvir o

chamado de Deus”, relembra os pais. Tudo é muito novo, inacreditável. Como muitos, os familiares não conseguiram enxergar os sinais até o surto. Em um primeiro momento, a familia se questiona o motivo de a doença ter surgido e uma possível culpa, como e o porquê acontecera tal situação. Desespero, confusão, tristeza e a falta de conhecimento sobre a doença são os principais sintomas que aumentam a angustia e o sofrimento dos


familiares. Com o diagnóstico em mãos e as devidas providências tomadas, M.C não foi internada. A esquizofrenia faz parte da historia humana. Ao mesmo tempo apavorante e atraente, ao longo dos séculos tem inspirado poetas, músicos e pintores – e posto em xeque o verdadeiro entendimento sobre os limites entre a razão e a “desrazão”, o normal e o patológico. É fundamental lembrar, porém, que por trás de suas demonstrações está o sofrimento de uma pessoa e de todos os que a sua voltam estão. O número é chocante: 150 milhões. Esse é a quantia aproximada de pessoas que, segundo estimativas da Organização Mundial da saúde (OMS), sofrem de uma doença devastadora: a esquizofrenia. Na opinião da psicóloga, Cláudia Michele Baségio, esquizofrenia é uma das doenças mentais mais sérias que existe. É classificada como psicose ou transtorno psicótico – “sua principal característica é o seu rompimento com a realidade”. A descoberta de algumas doenças, como a Síndrome de Down, é diagnosticada ainda durante a gestação, mas o mesmo não acontece com a esquizofrenia. Simplesmente porque ninguém nasce com o transtorno. A psicóloga Michele conta que os sintomas da esquizofrenia, normalmente aparecem entre 19 e 27 anos e afetam cerca de 1% da população. Alucinações, delírios e distúrbios é com certeza algo extremamente complexo e de difícil entendimento tanto para o paciente quanto para os seus amigos e familiares. A convivência direta entre o doente e seu familiar muitas vezes é uma tarefa aflitiva, mas de extrema importância no tratamento, explica a técnica em enfermagem Cecília Tones. É essencial encontrar um caminho mediano: entender a aparecimento da doença e compreender que sua principal característica é ser uma cronica e exigir cuidados por uma vida inteira. A técnica em enfermagem conta que é neste primeiro contato entre a família e o médico que se decide o futuro do paciente. Na instituição pública em que trabalha, Cecília cuida sozinha de

TRATAMENTO Com o uso contínuo da medicação o paciente pode voltar a sua rotina normal 28 mulheres que moram em uma das muitas alas existentes Durante as 12 horas de plantão, a técnica é a única família que as suas “amadinhas” têm. Enquanto folheia arquivos para se lembrar das tantas histórias que já vivenciou nestes 15 anos de casa. Busca em sua memória a realidade de “Maria Amélia”, já falecida, que é muito diferente da de M.C . Com a realidade muito diferente da de M.C., Maria teria ficado sem registro até o reconhecimento de uma tia que a identificou como Dilma Alves. A paciente que teria nascido muito provavelmente no ano de 1948, deu entrada em surto por volta dos 30 anos. “A tia visitou-a por duas ou três vezes até o ano 1996. Em 2003 recebeu a visita dos tios que se recusaram

Alucinações, delírios e disturbios é com certeza algo extremamente complexo e de difícil entendimento tanto para o paciente quanto seus amigos e familiares. CLÁUDIA BASÉGIO pisicóloga

a fornecer um endereço, retornando para visita apenas em 2008”. Lembra que em 2009 teria ligado para a família que prometeram visitá-la. “Ficaram de comparecer e nunca mais deram retorno” , conta Cecília. A técnica de enfermagem, lembra que muitas das pacientes que ali moram têm total condição de continuar o tratamento em casa e ser incluída na sociedade novamente. Desde o surgimento da doença, M.C. já passou por várias crises, internações e trocas de medicações, mas a família acredita que sem terapia não conseguiriam suportar a barra. Para Maria, a vida lhe negara amor, conforto e aconchego. Cecília Tones, técnica em enfermagem, conta que os que andam solitários com a doença, apóiam sua loucura na espera de um familiar. “A vida delas, é angustiante espera por quem jamais virá”, ressalta a técnica em enfermagem. A família de M.C é o bom exemplo de como estando amparados em seus verdadeiros lares é possivel ser inserido nos ambientes sociais. Os pacientes necessitam da medicação e do apoio familiar para obter um resultado positivo. As sensações são diferentes para cada membro. Não significa que o doente seja culpado pelo sofrimento causado aos seus familiares. Alguns terão melhor adaptação, uma convivência mais harmoniosa, por serem indivíduos com a natureza mais

equilibrada, mais compreensiva e tolerante, enquanto outros reagirão mais bruscamente como de forma passional, hostil e negativa. Segundo a psicóloga Cláudia Baségio, estudos comprovam que a terapia de família e a redução dos níveis emocionais tendem a diminuir as taxas de recaídas e internações. Portanto, é preciso ficar claro que atitudes positivas por parte da família podem ser cruciais na recuperação do paciente. Assim como o abandono e o estresse podem prejudicar muito a estabilidade do doente. A doença que não tem cura depende do envolvimento do próprio paciente, de seus familiares e de seus amigos. Mas, é fundamental a ajuda de especialistas, dentro das possibilidades de cada paciente, para obter uma melhora. Vencer as adversidades e as limitações que irão surgir é o ínicio para um recomeço.

1% da população mundial é vitima dos trasntornos causados pela esquizofrenia

150 milhões é a quantia aproximada

de pessoas que, segundo a OMS, sofrem de uma doença devastadora revista exp

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eEducação

Estrangeiros EM SEU PAÍS

A Escola de Ensino Médio para Surdos Professora Lília Mazeron luta por uma forma de educação qualificada para alunos com deficiência auditiva MARIA AUGUSTA COHEN

A

sala da coordenadoria está calma. Nela, se encontram apenas três pessoas. O silêncio predomina no lugar. Os únicos sons vêm do encontro dos dedos com o teclado dos antigos computadores e das folhas sendo remexidas em cima da mesa principal. De repente, uma lâmpada começa a ligar e desligar em cima da porta de entrada. Ela pisca três vezes e para. É o sinal: está na hora da troca de períodos. Localizada no bairro Santa Maria Moretti, de Porto Alegre, a Escola de Ensino Médio para Surdos Professora Lília Mazeron foi fundada em 1998. Ela é a única estadual das cinco escolas especializadas em deficientes auditivos da cidade. A professora Elaine Pinheiro conta que, no passado, esses lugares eram considerados clínicas. Ela explica que os surdos, obrigados a aprender a falar, observavam o movimento da boca de seus professores. Eles eram forçados a colocar fones de ouvidos, com sons muito altos, para “estimular sua audição”. Lília Mazeron foi uma professora do “centro médico” para surdos antes de ele se tornar um colégio. Ela lutou para acabar com a maneira como os surdos eram ensinados a “viver em sociedade”. Lília batalhava pelos direitos dos surdos, pois tinha um filho com essa deficiência, o que a motivava mais do que tudo. Hoje, a escola tem cerca de 100 alunos e 20 professores especializados em ensino para deficientes auditivos. Celina Xavier Neta, 35 anos, é

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a coordenadora da escola de ensino médio. Ela explica que todos os educadores, 95% de rede estadual, são formados em seu campo e fazem o curso de capacitação na área da surdez, além de especialização em libras. É grande a dificuldade de encontrar esses profissionais capacitados, ainda mais que, diferente do que muitos pensam, a língua de sinais não é universal, Celina conta que ela é regional. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, 5,7% da população do Rio Grande do Sul tem algum tipo de dificuldade auditiva. Na sala de aula, são no máximo 15 alunos. O que, para Celina, é uma vantagem. “Ter poucos alunos por classe é bom, pois para dar aula para surdos necessita-se de muita demanda visual”, esclarece. Muitas famílias já tentaram aderir à proposta de inclusão, conhecida também como Atendimento Educacional Especializado (AEE), mas normalmente os alunos voltam à escola. A ideia é colocar pessoas com deficiência junto aos alunos regulares. A coordenadora não acredita que um professor possa ensinar dois tipos de estudantes ao mesmo tempo, a instrução deve ser individualizada. Tânia Brittes, que trabalha no LEPNEE (Laboratório de Ensino Atendimento a Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas), diz que é possível dar um ensino de qualidade em escolas que recebem tanto alunos regulares quanto aqueles com alguma deficiência. “Desde que a escola disponibilize dos recursos humanos e materiais indispensáveis para isso, conforme previsto na legislação,

SILÊNCIO Na quadra só se ouve os tênis passando no chão

DÚVIDAS Guilherme faz perguntas para a professora


CARACTERÍSTICA A professora chama a atenção dos alunos com grandes gesticulações, uma das várias peculiaridades da escola é possível sim proporcionar ensino de qualidade nas escolas regulares”, explica. Entre as necessidades citadas por Brittes para uma boa instrução estão sinais luminosos, preparo dos funcionários para a comunicação efetiva com os alunos surdos e que a sala de aula possua, no máximo, 23 estudantes. No Brasil, ainda não existe registro de nenhum colégio dentro desse padrão. No momento, a administração da escola Lília Mazeron está em estado de transição da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas Portadoras de Deficiência e Pessoas Portadoras de Altas Habilidades no Rio Grande do Sul (FADERS) para a Secretaria Estadual de Educação, o que dá esperança de conseguir um ensino ainda melhor. “Facilita na aquisição de professores, de materiais e ainda ajuda nos recursos financeiros”, diz a coordenadora Celina. Essa mudança também ajudará na transformação da escola para bilíngüe. Tânia ilustra: “O modelo ideal de educação para surdos é o bilíngüe, que é onde a criança surda estará exposta, desde a mais tenra idade, à língua de sinais, para só depois iniciar a aprendizagem da língua nacional

Os deficientes auditivos eram obrigados a aprender a falar, para poder viver em sociedade. ELAINE PINHEIRO, professora

na sua forma escrita”. O sinal de lâmpada é apenas uma das peculiaridades encontradas no lugar. Lá, cada expressão pode ser interpretada de forma errônea. Enquanto anda pelos corredores do colégio, a coordenadora Celina fala com todos, mas existe uma particularidade no modo como ela conversa: mesmo quando falando com ouvintes, ela movimenta as mãos. “Quase sempre os surdos estão em volta. É em respeito a eles que me expresso em libras ao mesmo tempo em que uso a voz para comunicação”, explica. A aula de educação física do colégio também é característica do lugar. No último andar do

prédio se encontra a quadra de esportes. No meio do campo, pode-se ver um menino de camiseta listrada com preto e branco. No verso, se lê o nome do jogador fenômeno do momento: Neymar. O corte de cabelo inspirado no ídolo comprova que se trata de um fã. A turma está se aquecendo. O santista se prepara para chutar a gol. Vai para trás lentamente, pega impulso e corre em direção à bola. Ele a chuta com toda a força direto entre as traves. O som é estrondoso, mas isso não incomoda seus colegas, que seguem seus passos e também começam a chutar. Quando começa o jogo de verdade, os únicos sons da quadra são os dos tênis deslizando pelo chão escorregadio. Uma vez que outra alguém até dá um grito, mas ele é sempre acompanhado pelas mãos no ar, o que realmente vai chamar a atenção dos companheiros. Depois de dar muitas voltas na quadra, a dispersão está mais do que presente na aula de sinais. É assim que se entende o porquê do máximo de alunos por sala. Enquanto a professora Simone Fontoura tenta explicar o feriado que terá na próxima semana, Karolay, de 15 anos, treina o alfabeto em libras, Os alunos

não parecem muito interessados até que Luís (13), o fã do Neymar, começa a perguntar como sinalizar os nomes de jogadores internacionais como Messi e Cristiano Ronaldo. A comunicação começa a fluir, mas Tainá (12) não está gostando do assunto. Ela deita na mesa e fecha os olhos. A professora Simone nota e, quando o tópico acaba, se ajoelha diante da mesa da aluna que descansa. O carinho entre elas é evidente. As duas conversam um pouco e parece que Tainá se anima a prestar atenção novamente. Só nessa sala, as idades variam de 10 a 15 anos. A coordenadora Celina diz que um dos motivos para tal diferença é que muitos rodam, por falta de interesse no colégio. Acompanhar a rotina de uma escola especial faz os papéis se inverterem. Os deslocados lá são os ouvintes. Porém, a situação de minoria só dura algumas horas, enquanto os surdos precisam onviver com essa diferença diariamente. Não importa se eles vão à padaria, ao cinema ou ao supermercado: a chance de encontrar um falante de libras é remota. Às vezes nem a família do aluno sabe se comunicar por sinais. O colégio se transforma no seu único porto seguro. Eles são estrangeiros em seu próprio país.

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e Cosplay A VIDA NO

faz-de-conta

Praticantes podem ter seu comportamento modificado pela influência dos desenhos

PREPARAÇÃO O investimento em roupas, perucas e acessórios é alto, tudo para ficar mais parecido com os personagens LEONARDO PIETROWSKI

Q

uando que a fantasia se torna realidade? Ou vice-versa? Para quem pratica cosplay (uma forma de se caracterizar igual a personagens de animes e mangás japoneses), às vezes torna-se difícil distinguir até que ponto a diversão é “faz de conta” ou parte do cotidiano. Tudo isso motivado pelo amor, e, às vezes, uma perigosa obsessão pelos elementos encontrados nos animes e mangás. Os desenhos nas “revistinhas” começarem de forma semelhante às comics norte-americanas. Entretanto, foi somente após a

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ocupação do Japão por soldados dos Estados Unidos, depois da Segunda Guerra Mundial, que surgiram os primeiros esboços dos mangás. Os animes chegaram mais tarde, entre os anos 1950 e 1960. Apesar da popularização do genêro no Brasil nos últimos anos, a influência da cultura oriental hoje é mais presente do que nunca, contribuindo para a popularidade do cosplay no país.

Brincadeira séria

Para a estudante de Administração Renata Nunes, 23 anos, a brincadeira começou junto com a paixão pelos desenhos. “Quando descobri a existência de eventos nos quais as pessoas

podiam se tornar os personagens nem que apenas por um dia, foi algo mágico e eu nunca mais consegui parar depois do primeiro cosplay. É viciante”, conta. A estudante, quando começou a se fantasiar, até cortava e pintava o cabelo para fazer suas representações. Hoje em dia, a facilidade de encomendar as roupas pela internet poupou-a um pouco do esforço, porém não diminuiu o gasto com os itens, principalmente as perucas e os acessórios, que são considerados bem caros. O passo a passo da montagem é bem simples. A estudante planeja um horário no dia anterior para cada etapa: desde banho até os toques finais da maquiagem. “Eu

acordo geralmente às 7h. Tomo um banho, coloco as lentes caso o personagem necessite, e depois me maquio. A roupa e peruca são vestidas por último, para não amassarem enquanto estou me ajeitando”, relata. Apesar de não ser totalmente imersa no personagem, Renata adota o nome de Lucy em redes sociais, além de ser conhecida por seus amigos por este apelido. O motivo da escolha é por ser o mesmo nome da personagem do seu anime preferido, Elfen Lied. Entretanto, a personalidade também foi importante para a decisão: “Temos traços de jeito e pensamentos muito parecidos e, assim como eu, em alguns


momentos da vida, ela foi um pouco solitária, magoada, maltratada e traída, e acabou se fechando para todas as outras pessoas”. Renata completa: “Quando assisti Elfen Lied pela primeira vez me identifiquei muito com ela, não por eu ter passado pelas mesmas coisas, mas porque eu consiguia sentir e entender o sofrimento dela. Ela era muito discriminada pois era diferente das outras pessoas (na história a personagem Lucy é uma humana com chifres). Apesar de serem circunstâncias diferentes, sofrimento é sempre sofrimento. Independentemente de motivos”, finaliza.

Cuidados

Para a doutoranda em psicologia Fernanda Cesa, essa identificação surge, geralmente, do “fato de seus personagens seguirem, em suas histórias, uma sequência temporal comum às das pessoas reais, pois os desenhos mostram os personagens nascendo, tendo infância, adolescência e vida adulta, com suas diversas crises em cada parte da vida”. Essa fórmula das histórias adotadas pelos orientais é parecida com as dos quadrinhos ocidentais. A diferença é a variedade. Enquanto as comics são voltadas para o público jovem, os mangás e animes vão desde histórias infantis até contos assustadores, com tom adulto. Para a doutoranda, essa quantidade enorme de emoções mostradas são fáceis de se relacionar, pois são comuns aos seres humanos. No caso de Lucy, as semelhanças entre sua história e seu jeito com os da personagem criaram um vínculo entre as duas, real e fantasioso. Todavia, muitas vezes esse relacionamento pode ser negativo. “O perigo nasce quando as pessoas se identificam com aspectos não físicos, mas sim emocionais dos personagens considerados destrutivos e agressivos, que fazem o mal nos desenhos, sem buscar uma reparação no final dos seus atos”, explica Fernanda. Em casos mais extremos, a pessoa pode ficar totalmente perdida entre o mundo real e o ilusório e, para ela, “necessita, então, da ajuda de profissionais, pois caracteriza um transtorno de personalidade ou, em maior grau, um transtorno psicótico”. Mesmo assim, ela diz que, em nível menor, a identificação pode ser saudável e até mesmo positiva. Lucy, por exemplo, aprendeu muito com os animes: “Algumas regras de caráter, companheirismo, muitas coisas

HOBBY Bianca mostra cosplay novo em evento de anime que as pessoas deveriam saber e não sabem eu aprendi assistindo desenhos. Acaba te influenciando sem tu perceberes. Sem falar que dá para aprender sobre a cultura e às vezes até a falar algumas palavras em japonês”, fala. O cosplay não afeta Renata apenas em sua personalidade. Ela também aproveita o investimento nas roupas para, de vez em quando, mudar o visual. “Às vezes para ir em uma festa eu me inspiro em alguma personagem”, conta. Entretanto, não gosta de

exagerar: “Não dá para viver sempre nesse mundo. Quem faz cosplay normalmente banca tudo e precisa trabalhar para isso. Infelizmente, não é qualquer lugar que vai te aceitar sendo meio excêntrica”. Bianca Sundrani também é cosplayer, além de adotar a alcunha de Ryuushiro na internet. Contudo, é enfática em afirmar: cosplay, para ela, é hobby e não deve se misturar com a realidade. “É como uma peça de teatro”, fala. A aluna

de Jogos Digitais, de 17 anos, nunca se apropriou de traços da personalidade dos personagens encenados. Também acredita que a apropriação desses trejeitos estragaria a brincadeira. “Os meus cosplays e o eu no meu cotidiano são coisas bem separadas: eu nunca saí de casa com uma peruca e roupa qualquer. Até porque eu prezo me manter fiel à personalidade de um personagem quando faço cosplay dele, por isso nunca misturaria as duas coisas”, explica. A influência da prática na vida de Bianca não foi em seu jeito de agir, mas no gosto pelo making of das roupas e trajes: “Algumas mulheres são apaixonadas por sapatos, eu sou apaixonada por perucas”, admite. Ambas as cosplayers participam sempre que podem de eventos de anime, mangá e, claro, cosplay. “É o mundo em que mais vivo. Em que mais sou feliz”, diz Ryuushiro. No caso de Lucy, é um sentimento gratificante: “As pessoas te tratam como se tu fosses mesmo o personagem. Essa é a melhor parte”. Para o cosplay ser uma prática saudável e sem problemas, Fernanda dá a dica: “Ele deve ter caráter de entretenimento. A fim de não ser problemática, a família deve estar sempre atenta para o uso desses desenhos na vida de seus familiares”.

OTAKU É a definição dada para as pessoas que são apaixonadas por mangás e animes revista exp

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eHostel

Conforto barato DE UMA VIAGEM

Bacanas, descolados e baratos, os albergues estão sendo cada vez mais procurados pelos mochileiros em razão do preço acessível e do lazer garantido

CONVIVÊNCIA A área de lazer de um hostel, em sua grande maioria, é arejada ee conta conta com com internet internet wi-fi wi-fipara paraoouso usodos doshóspedes hóspedes SILVANO ANTOLINI

T

ipificado por seus quartos coletivos com beliches ou camas e pela socialização entre os hóspedes, os albergues vêm se destacando no mercado por ser uma forma econômica de hospedagem e devido à sua evolução quanto ao conforto. Apresentados em diferentes

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propostas, há bastante tempo já são encontrados nas principais cidades turísticas do Brasil e do mundo. Com o preço bem mais baixo que os hotéis comuns, os hostels, em sua grande maioria, possuem quartos privados ou coletivos, sala de convivência, cozinha comunitária e recepção 24 horas. Além de ser um ambiente descontraído e aconchegante, é um ótimo lugar

para conhecer novas pessoas. A infra-estrutura de um hostel pode ser semelhante à de um hotel, pousada ou até mesmo de uma casa. Os albergues têm sido o preferido entre os mochileiros, principalmente os jovens, na hora da boa escolha para descansar sem gastar muito dinheiro e em um lugar cômodo. Originais, estilosos, acessíveis e práticos, com a carteirinha de alberguista,

a diária fica ainda mais barata na hora de se hospedar em um hostel. Os descontos variam entre R$ 10 e R$ 15, dependendo do quarto em que o hóspede se encontra e do modelo da carteira, disponível na categoria família ou individual. Os melhores albergues estão ligados à Hostelling International, gigantesca rede internacional com mais de 4 mil


HOSPEDAGEM O Gramado Hostel, situado na serra gaúcha, é aconchegante em seu estilo estilo rústico, lembrando uma casa hostels espalhados pelo planeta. O primeiro hostel surgiu na Alemanha em 1909, no Castelo de Altena, após um professor alemão ter se refugiado em um, devido ao mau tempo.

Fico lisonjeada com a originalidade dos hostels. Foi maravilhosa minha experiência no Oztel. MICHELLE CRISTINA, enfermeira

A novidade está na modernidade e no conforto que os novos hostels proporcionam. Antigamente, os albergues eram vistos como lugares de baixa estrutura, procurados por indigentes. Agora os novos albergues estão mais sofisticados que os hotéis e com um preço bem em conta. As diárias de um hostel, variam de R$ 55 para os quartos coletivos que comportam seis, oito ou 14 pessoas a R$ 180 os privativos direcionados para casais.

No Brasil já existem diversos hostels sofisticados que ultrapassam a qualidade dos hotéis. No Rio de Janeiro, um grupo de designers se reuniu e resolveu construir o Oztel, localizado na zona sul, no bairro Botafogo. O Oztel hospeda mochileiros desde fevereiro deste ano e destacouse por sua inovação no design despojado, proporcionando um ambiente diferenciado dos outros, desde os seus quartos coletivos com ótimos beliches e ar-condicionado em todos os dormitórios, até a sua área de convivência com luminárias feitas de garrafa de plástico. Ele oferece vista para o Cristo Redentor aliando criatividade com ambientes modernos e confortáveis, o que faz com que o hóspede sinta-se em casa. A paulista Michelle Cristina, 20 anos, costuma se hospedar nos quartos coletivos quando viaja. Em sua última viagem, resolveu se hospedar no Oztel da capital carioca. “Foi uma experiência incrível! O Oztel é realmente diferenciado dos demais. Tudo é extremamente arrumado, limpo e diferente. O café da manhã é ótimo, melhor do que muito café de hotel. Na primeira vez que estive no Rio de Janeiro, fiquei em outro hostel, ainda não

ALBERGUISTA Michelle Cristina é fã de albergues sofisticados tinha tido a oportunidade de me hospedar neste novo do bairro Botafogo. É de alto luxo e com uma diária super barata”, exalta a enfermeira paulista, que gosta de viajar como hobby nas suas folgas. Na serra do Rio Grande do Sul, em Gramado, uma das principais cidades do turismo gaúcho, no ano de 2002 foi criado um albergue. Marcado por seu estilo rústico, o Gramado Hostel fica localizado na Avenida das Hortênsias, uma das principais ruas da cidade. O recepcionista João Maria Ferreira é funcionário do estabelecimento desde 2003 e conta que adora trabalhar lá.

“Gosto do pessoal que se hospeda em hostel, geralmente são pessoas humildes e comunicativas, que já viajaram com a intenção de socializar. No Gramado Hostel, ninguém faz cara feia, as pessoas tomam o café da manhã na cozinha coletiva, conversam sobre os lugares turísticos da cidade”, conta João Maria. Visto não apenas como um lugar de descanso, os hostels estão se destacando cada vez mais no mundo. Já é possível conhecer várias cidades turísticas, com conforto garantido e sem pesar no bolso na hora de pagar a diária.

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eCrônica SANGUE NA TELINHA A explosão do sucesso UFC no Brasil levanta o debate sobre a apologia à violência na televisão

DÉBORA ELY

“G

ladiadores do terceiro milênio.” Foi assim que o mais famoso narrador da Rede Globo, Galvão Bueno, apresentou ao público os lutadores de MMA em rede nacional no dia 12 de novembro de 2011. Esta foi a data da primeira transmissão do UFC pela maior emissora do país. Desde então, os atletas brasileiros da modalidade passaram a estampar capas de revistas e a participar de programas de auditório. Este foi o início do sucesso do esporte que mais cresce no planeta em território brasileiro. Não há divergências quanto ao êxito do MMA no Brasil. No entanto, o debate quanto aos métodos e técnicas do esporte causam desconforto e espanto em uma enorme parcela da população. As disputas se assemelham a uma briga de rua (e das bem violentas), mas há 31 restrições que ajudam a reduzir o número de lesões sérias causadas pelos embates. Em 17 anos e 1,7 mil lutas, a lesão mais grave em um evento oficial foi um braço quebrado. Apesar do dado revelador, não se pode tapar o sol com a peneira e afirmar que o esporte não é bruto. Sim, é bruto. Sim, é violento. E sim, envolve

BIG BROTHER BRASÍLIA Câmeras por trás de espelhos acompanharão a rotina de nossos parlamentares num emocionante reality show

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NATACHA GOMES

É

claro que o povo não se interessa por política. Política é uma coisa chata, não tem flashes, não tem glamour. Intrigas há (e muitas), mas elas ficam muito bem escondidas embaixo dos tapetes do Congresso. Política envolve dinheiro público e a administração dele, mas isso definitivamente não é importante, diante do barraco entre duas subcelebridades siliconadas. Para solucionar o problema da falta de popularidade dessa prática, sugiro a criação de um reality show com nossos bravos representantes. Isso mesmo: um Big Brother Brasília. Como nos programas que já existem, os “nossos heróis” ganharão todos os tipos de benefícios, prêmios “por fora” e até um cachê de acordo com o tempo em que permanecerem na disputa (quaisquer semelhanças com a realidade são mera coincidência). Câmeras por trás de espelhos nos gabinetes e nos plenários acompanharão as sessões de votação e o cotidiano dos parlamentares. O flagrante de alguma possível irregularidade não seria problema para eles, afinal, muitos já aconteceram e a resposta está na ponta da língua. “Não, aquela imagem foi tirada de contexto”, “Essas denúncias não passam de ataques covardes da mídia a minha pessoa”, “Isso foi gravado por pessoas com absoluto interesse político”. O apresentador, um cara com pinta moderna e vocabulário rebuscado,

socos, chutes e, normalmente, muito sangue. Mas a modalidade vai muito além de tudo isso. Envolve dedicação, amor, esforço e sofrimento. E em meio aos lutadores, encontram-se histórias que são uma verdadeira lição de vida. Como Minotauro, o baiano que foi atropelado por um caminhão. Ou Wanderlei Silva, que trabalhava ajudando o pai. Ou mesmo Anderson Silva, que cuida da educação dos cinco filhos com a mesma dedicação dos exaustivos treinos que antecedem as lutas. Apontar o MMA como uma demonstração explícita de pura violência é como assistir a um jogo de futebol e ver apenas duas dezenas de homens correndo atrás de uma bola. Ou ver um esquiador saltando de uma rampa e dizer que se trata de um louco saltando de um abismo. Todo o esporte envolve um pouco de loucura, e isso é normal. Ao menos para os praticantes ou admiradores. Neste jogo, o palco é um octógono cercado por uma plateia sedenta por socos e chutes, e os atores são lutadores que tentam, segundo a segundo, se manter vivos no combate e liquidar o oponente. E não há nada de errado com isso; pelo menos para quem é capaz de entender o lado humano do esporte.

fará joguinhos para provocar os ânimos, e essas edições do programa terminariam com a frase “Vossa excelência é um merda!”. Os temas das festas seriam a inauguração ou liberação de obras conseguidas através de emendas parlamentares, com um clima de extrema harmonia e camaradagem e muito tapinha nas costas. Lobistas e empresários entrariam disfarçados de ursinho (afinal, ninguém pode saber quem são os convidados de fora) e confraternizariam com os astros do programa. O líder do Congresso mudaria a cada semana e seria escolhido por meio de uma prova de sorte ou conhecimentos gerais. Os analfabetos também poderiam participar. O veto à participação dos fichasuja seria cogitado, mas a direção estudaria a possibilidade somente para a segunda ou terceira edição do Big Brother Brasília. A escolha dos candidatos ao paredão – também conhecido como processo de cassação – será baseada nas atitudes dos nossos brothers. Quem se deixar ser pego recebendo propina, transportar dinheiro na cueca ou denunciar “os amigos” quando perceber que a coisa está ficando preta para o seu lado, está automaticamente emparedado. A diferença nas votações é que o sufrágio seria secreto – o telespectador saberia somente se o parlamentar foi eliminado ou não. E você pode perguntar: mas e a participação popular, um dos pontos fortes dos reality? Essa, somente aconteceria de quatro em quatro anos.




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