Quero ser o que passa

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LUIZA NÓBREGA

Quero ser o que passa A poesia de Lêdo Ivo

2011


Capa e editoração eletrônica: Marcelo Duque Estrada


A FĂĄtima, minha irmĂŁ.


SUMÁRIO

Preâmbulo: Uma Leitura Prodigiosa.................................. 8 I. A Poesia Completa: “vou por um caminho branco”..... 25 O Poeta Caminhante.............................................. 29 A Ode ao Crepúsculo.............................................. 45 Cintilações do Caminho, Signos do Sentido........... 61 Poeta e Poesia............................................. 61 A Noite....................................................... 86 A Morte...................................................... 98 O Mar...................................................... 108 Os Bichos................................................. 117 Outros Temas Recorrentes........................ 135 Deus......................................................... 153 O Gavião.................................................. 164 O Vento.................................................... 173 Combinatória dos Signos.......................... 180 O Sentido dos Sentidos.........................................189 Lêdo Ivo e a Crítica ................................. 189 O Nada.................................................... 198 O Caminhante Sibilino......................................... 215 A Caminhada........................................... 215 Uma Tradição de Caminhantes................. 251 O Caminhante Lêdo Ivo........................... 260 O Caminho Branco.............................................. 273 O Sentido do Caminho Branco................ 273 O Poema “O Caminho Branco”................ 277


II. Mormaço: “um caminho que não me leve a parte alguma”.......................................................................... 285 Levado pelo Eterno Movimento................ 287 III. “À Espera do Silêncio”: o não lugar de um Réquiem entre dois nadas.............................................................. 307 O Poema.................................................. 310 Desdobramento do Discurso.................... 312 Procedimento Metafórico......................... 333 Poesia e Essência....................................... 339 IV. Poemas Escolhidos.................................................... 349



Não quero a eternidade ..................................... Quero ser o que passa ....................................... Prefiro um voo de pássaro a tudo o que é eterno. ....................................... Recuso-me a durar e a permanecer. Nasci para não ser e ser o que não é ...................................... (“O Desejo”)



Pre창mbulo Uma Leitura Prodigiosa



Ao iniciar este ensaio sobre a poesia de Lêdo Ivo, tenho em mente duas noções conceituais relevantes no estudo do fenômeno poético: a noção de poesia como tradição e a de poesia como diálogo. Categorias que não se excluem, mas, pelo contrário, se entrelaçam, numa convergente compreensão da poesia como um movimento sucessivo de renovados diálogos intertextuais que se travam em torno de certos temas e semas, numa espécie de combinatória exercitada ad infinitum, na qual se evidenciam tanto as afinidades entre poetas e vertentes poéticas, no que concerne ao tratamento por eles dado à matéria poetizada, quanto a vinculação da poesia a outras esferas cognitivas – filosofia, mitologia, psicologia, sociologia, matemática, música – numa trama complexa cujo cerne é a própria poesia. A poesia, então, seria uma voz que se propaga, se renova e se perpetua em diálogos que configuram e consolidam uma tradição, a qual, por sua vez, consiste num veio central, composto de inúmeros fios de tradições específicas, formadas pelos diversos tons da voz poética, nos quais se expressam as diferentes afinidades espirituais. E as duas noções aqui me ocorrem, não apenas por lembrar que a poesia de Lêdo Ivo, em sua singularidade, dialoga, tácita ou expressamente, com diferentes poetas, nacionais e estrangeiros; mas também por não esquecer que este meu texto se origina de um diálogo empreendido na leitura que fiz da Poesia Completa de Lêdo Ivo. Diálogo que – parodiando a expressão usada por Wilson Martins, quando define “a crítica como um diálogo, ou antes como um triálogo”1 – deve mais precisamente dizer-se tetrálogo, por envolver não apenas as três relações explicitadas pelo crítico – do autor com a obra, da leitora com a leitura e da ensaísta com a análise da obra – mas ainda a inter-relação de um poeta autor de um livro com uma poeta leitora deste livro. 1  MARTINS, Wilson. “Figura de Poeta”. In: O Globo, 24.07.2004.

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Sinal evidente desta inter-relação dialógica são o título e subtítulo dados, respectivamente, ao estudo (Quero ser o que passa), e a este primeiro capítulo (“Vou por um caminho branco”). Intitular um texto que escrevo sobre uma obra com uma expressão retirada da própria obra tem sido uma constante no meu já longo diálogo com autores e obras, poetas e poemas, e sucedeu também aqui, quando versos de poemas de Lêdo Ivo intitularam o todo e uma parte deste texto em que me proponho transmitir o sentido e propósito por mim apreendidos na linha tenaz do seu longo percurso. E foi mesmo providencial que eu nunca tivesse antes lido com atenção os seus livros (com certa ligeireza passara os olhos, ainda nos anos 80 e 90, por Um Brasileiro em Paris e O Soldado Raso, e lera depois alguns poemas esparsos) e que, quando me acercasse de sua poesia, fosse por inteiro, através de um livro que em mais de mil páginas reúne quase toda sua obra poética2; pois estou convencida de que o sentido, o propósito, a razão-de-ser de sua poesia – ainda que captados no início ou a meio do percurso, pela intuição de críticos brilhantes, como Sérgio Buarque de Hollanda – só podem ser melhor compreendidos na visão do todo, em estudos que, como os de Ivan Junqueira e Wilson Martins, tiveram que esperar pelos 80 anos deste excepcionalmente vigoroso poeta. E afirmo que só se pode compreender bem esta poesia em sua totalidade porque o intuito que a motiva não é, afinal, o de produzir algumas joias poéticas, expostas em páginas de livros como em catálogos, mas sim o de registrar os passos de um percurso numa experiência de poesia. Trata-se, neste sentido, de uma poesia da experiência. Usando uma sua recorrente metáfora, o propósito deste labor poético não é reunir algumas estrelas fulgurantes, mas compor uma galáxia na 2  Só depois de escrita a primeira parte deste meu estudo foram-me oferecidos pelo poeta os seus dois livros Mormaço e Réquiem, posteriores à Poesia Completa.

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qual estrelas cintilem. Em outras palavras: o cerne desta poesia não se acha em nenhum dos poemas que a compõem, mas no fio que une os poemas, tal como uma caminhada une, com seu sentido, os lugares e momentos por onde passa o caminhante. Que fio será este, no meu entender, é o tema deste estudo. Mas, se o fio é discernido através da leitura, e se esta leitura se faz, ela também, numa teia de diálogos múltiplos, justifica-se, ou até se recomenda, que ao dizer do livro lido também se diga de como foi ele lido, e que associações suscitou com outras leituras. Pois se, como disse Borges, os livros são espíritos aprisionados em bibliotecas, à espera de que os libertemos, cada leitura é um caso específico, e cada poeta, com sua poesia, tem seu modo próprio e único de se revelar, mas em infinitas virtualidades, tantas quantos forem os leitores e as condições circunstanciais e essenciais das leituras. Com certos poetas, a sedução é imediata e fulgurante. Lembro, por exemplo, a primeira vez em que li os poemas “Correspondances”, “L’Albatros”, “Bénédiction” e “Le Voyage” de Baudelaire; ou, depois, “Contrariedades”, de Cesário Verde, e “Males de Anto”, de António Nobre; poemas que me cativaram, todos, à primeira leitura, prendendo-me instantaneamente à gravitação de seus autores. Mas o curioso é que nem sempre ser cativado por um poema nos leva necessariamente à leitura exaustiva da obra toda de seu autor. Drummond, por exemplo, nunca foi para mim objeto de um estudo (o que me pesa, entre outras inevitáveis lacunas), e no entanto li e continuo a ler, incansavelmente, o seu magistral “A Máquina do Mundo”, obra-prima que por si só assegura a grandeza maior do poeta das Minas, assim como Mensagem por si só já assegurava ao Pessoa seu lugar entre os poetas de primeira grandeza. Também lembro que, não me tendo dedicado ao estudo 15


sistemático da obra de Eça de Queiroz, sucedeu-me conhecê-lo intimamente através do seu duplo, Fradique Mendes, na análise exaustiva que fiz da introdução à Correspondência daquele arquiteto de espumas, que desde então acrescentou-se ao meu repertório, ganhando um lugar específico na minha galeria de figuras literárias inesquecíveis. Autores há que estudamos por inteiro, sistematicamente, como fiz, ainda mestranda, com toda a obra de Cruz e Sousa e Jorge de Lima, nunca mais regressando à primeira, mesmo se lhe reconhecendo o alto valor, e nunca mais abandonando a segunda, nem esquecendo a singular estranheza do Invenção de Orpheu e a perfeição irretocável do Livro de Sonetos, do poeta alagoano. Outros autores nos chegam inesperadamente, apanhando-nos desprevenidos, e se instalam para sempre em nossas vidas, num compromisso de papel passado, como foi o caso de Camões com Os Lusíadas, que me valeu uma tese de doutorado, defendida e depois publicada, além de outros vários estudos, que se vêm sucedendo. E ainda há o caso de obras que nos vincam categoricamente, em tangentes imprevistas, que tanto podem permanecer para sempre numa área adjacente aos nossos estudos, como pesos fixos de uma balança pela qual outras obras vão sendo pesadas; quanto podem partir numa linha de fuga, talvez sem retorno, infelizmente. No primeiro caso, lembro os livros todos de Kafka e quase todos os contos de Poe, que li quando mal saía da adolescência; e dois outros, afortunadamente lidos em plena maturidade: o Memorial de Maria Moura, que me levou a conhecer a inesquecível Rachel; e o insuperável Metamorfoses, de Ovídio, que não me poderia ter levado ao seu autor, quando vivo, mas me transportou imaginariamente ao século de Augusto, onde me 16


apresentaria ao imperador moralista e vaidoso, pedindo-lhe que me consentisse acompanhar o poeta em seu expurgo político, contente em servir-lhe chávenas, enquanto compusesse ele o excepcional poema narrativo. No segundo, ocorrem-me: Guerra e Paz, de Tolstoi, também lido na idade madura; Aurelia, de Nerval, um pouco antes; e os sete volumes de Proust, lidos pouco depois de Kafka, quando me iniciava no Direito, e o mestre Edgard Barbosa me incentivava a prática (ativa e passiva) da Literatura. Ocorre-me ainda a leitura d’A Montanha Mágica, de Thomas Mann, da qual sobressaiu um capítulo (em que Hans Castorp se perde no topo da montanha em meio à tempestade de neve) que a meu ver valeu por todo o acidentado romance; assim como valeu por todo o romance o capítulo final de O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse, que me trouxe nos anos maduros de volta ao autor de Demian e O Lobo da Estepe, lidos ainda em verdes anos. Não poderia esquecer, nesta evocação de leituras, algumas que se destacam por certo toque de estranheza. Entre estas, lembro, por exemplo, o tão pouco citado A Menina que Pisou no Pão, que quanto a mim é a obra-prima de Andersen; as novelas de Dostoiévski, que comecei a ler ainda adolescente, mas me maceraram perigosamente os nervos, provocando-me estados febris de tristeza profunda, levando-me a abandoná-las depois de ler Humilhados e Ofendidos; e o Quixote de Cervantes, que – ao contrário das Novelas Exemplares, lidas com algum interesse – por duas vezes larguei nas tentativas que fiz, em épocas distanciadas, e não por me cansarem – como de fato me cansavam – as repetições excessivas, mas por não suportar os vexames a que expunha o cavaleiro sua distorcida visão da realidade (o que é estranho, tendo eu lido e relido com grande interesse o Diário de um Louco, de Gogol, e O Castelo, de Kafka). 17


Finalmente, é preciso também lembrar que há leituras cuja estranheza excede, levando-nos a entrever, pelas fissuras de nosso conhecimento, uma profundidade ainda desconhecida. Com três delas exemplifico, encerrando estas evocações. A primeira – A Voz do Silêncio, de Helena Blavatsky – foi talvez a mais estranha de todas as leituras que fiz, pois não se tratou simplesmente da leitura de um livro, e sim, mais propriamente, da audição do que alguém me dizia naquele momento, como se o livro tivesse sido escrito exclusivamente para mim, naquele instante em que o lia, como se fosse eu a sua legítima destinatária, e a autora, quando o escreveu, soubesse que o livro me cairia à mão naquele momento específico em que, sob o choque de uma grande perda, alterava-se em mim a percepção de categorias como tempo, espaço, sujeito, objeto. Não era um livro sendo lido, mas uma mensagem transmitida em tempo real. Em certos trechos, as frases lidas respondiam a perguntas que eu me formulava naquele mesmo instante, de forma inegavelmente sincrônica. A segunda sucedeu-me em Lisboa. Atravessando o hall de um dos prédios da Universidade Nova, ia em direção ao café, mas me detive instantaneamente ao distinguir, entre diversos livros expostos numa banca, um livro com uma foto e um título que eu nunca antes vira. O título: A Metáfora do Coração; a foto de uma autora para mim até então absolutamente desconhecida: Maria Zambrano. Sem sequer avaliar do que tratava o livro, comprei-o, como que hipnotizada, talvez em parte pelo layout da capa, muito bem executada pela Assírio e Alvim. E o mais curioso é que iniciei no mesmo instante a leitura, que me prendeu ao longo de alguns dias, num estado de espírito cuja intensidade só poderia causar estranheza àqueles que ainda desconhecem o poder conferido à linguagem nesta extraordinária autora. A terceira leitura, com a qual encerro esta digressão, tem também qualquer coisa de mistério, pois se deu a partir 18


dum episódio que – talvez em parte por estar eu em Lisboa, na primavera, e voar pelo ar uma expectante disponibilidade para o imprevisto – bem podia figurar n’ O Mistério da Estrada de Sintra, ou no relato do nevoeiro em que se perdeu Aleister Crowley quando desembarcava em Santa Apolônia para ir ao encontro marcado com Fernando Pessoa. Findava a primavera de 2008 e eu, prestes a regressar de meu terceiro estágio de estudos em Portugal, flanava por Lisboa em busca das Lusíadas Comentadas, de Faria e Sousa (que só encontraria – por grande sorte, à véspera do embarque, e ao cabo duma odisseia – no último alfarrábio visitado depois de descer toda a Calçada do Combro, que depois tive de escalar, trazendo, além dos dois pesados volumes, os outros dois, igualmente pesados, em que o polígrafo comentara as Rimas camonianas). Subidas as escadas da saída do metro que dá para o Chiado, passava eu pela Brasileira, matutando sobre o dilema da confusão linguística em que me lançavam diferentes léxicos e pronúncias da língua portuguesa, quando tive meu caminho interceptado por uma jovem que, abraçada a uma pilha de papéis A4, abordava os transeuntes. Percebi que ela vinha em minha direção, e justamente no instante em que eu ponderava as diversas formas linguísticas de meu conhecimento. Era uma época em que me fazia confusão a presença, na memória, das diversas performances linguísticas aprendidas em minha errância, desde a salivação silabal dos cearenses e a dureza consonantal dos natalenses na primeira infância, ao alongamento sensualmente sinuoso das vogais, que é prerrogativa dos cariocas; depois, à neutralidade amorfa-polimorfa praticada em Brasília; e, finalmente, a inconfundível pronúncia portuguesa, que me restituíra, em estado puro, o português adulterado dos potiguares, e, todavia, fora logo posto em xeque pela sua forma arcaica, não tão distinta do galaico, do castelhano, do gaulês. Indecisa entre dualidades 19


terríveis – planear ou planejar, equipe ou equipa, lavanderia ou lavandaria – eu vivia então, de fato, uma crise linguística. Como ao Almada de A Invenção do Dia Claro incomodava a profusão de livros, e ele desejava descobrir um livro que sendo único fosse suficiente, a mim incomodava, àquela altura, a pluralidade de línguas, cismando eu que tamanha diversidade significava uma confusão problemática e um excessivo barulho. Ao ver então, irrompida de seu anonimato, avançar a jovem poeta em minha direção, confesso que meu primeiro impulso foi desviar os passos e os olhos, para escapar ao que julgava seria mais uma daquelas abordagens equivocadas que nos roubam tempo e interrompem as ideias. Mas era primavera, as roupas estavam mais leves, os movimentos mais livres, e eu prestes a voltar à pátria. Parei, olhei-a e sorri, consentindo a aproximação. Não me arrependi, pois logo lhe vi nos olhos, na fala e nos gestos uma serena convicção e uma inteligência superior. Chamava-se Leonor e vivia em Sintra. Explicou-me que vendia poemas para sobreviver, mas a frase não soou banal nem importuna, nem constrangedora. Ela era convincente, falando de dentro duma simplicidade elegante. Perguntou-me se eu lhe compraria um poema, ao preço de cinco euros. Consenti, já um tanto curiosa. Fez menção de entregar-me a pilha para que eu escolhesse, mas eram muitos, eu não teria tempo de os ler todos antes de optar por um. Disse-lhe então que ela mesma o escolhesse, dispondo-me ao jogo de um acaso aleatório. Desci depois a Almeida Garrett rumo ao Rossio, lendo o poema, e logo constatando que surpreendentemente ele dialogava com minhas ruminações. Ainda o tenho comigo, aqui ao lado. Esteve perdido por dois anos – dentro de um livrinho que comprei em Veneza, mas nunca lera – e ressurgiu justo agora, quando, numa pausa dada à escritura deste texto, li algumas páginas do The Grand Canal. Palaces and Families. Intitula-se “Descreve-me o Silêncio”. Transcrevo-o aqui, para ilustrar o que disse acima 20


sobre a estranheza de certas leituras, e também numa homenagem àquela que o compôs: Descreve-me o silêncio... Não questiones o mar Despe-o ao invés... Deixa tudo, mas mesmo tudo. Mergulha de vez na eloquência Da mudez, rasga a palavra. Recorta-a Até que dela só reste picadinho... E só aí talvez de ti digam que Finalmente és uma pessoa banal... Ou então nem assim, porque todos Já sabem que dormes e Acordas cada dia com a tua loucura E tens por amante a poesia... Aqui fique, então, este poema avulso, de uma Leonor que me cruzou o caminho por um instante, mais efêmera que a passante de Baudelaire; e, se for preciso achar uma justificativa para tudo o que se faz, fiquem duas justificativas para a inclusão, nesta introdução digressiva ao meu estudo, de um poema avulso duma poeta anônima: o ter o poema ressurgido, como que por acaso (se o acaso de fato existisse), numa diagonal interposta à pausa na escrita deste texto; e ser ele – obra de uma jovem poeta – aqui ofertado a um poeta maduro, cuja poesia, acusada de excessiva e abundante, tudo acolhe e abraça, do relâmpago fulgente à folha arrancada pelo vento do outono. Justifica-se ainda esta prévia digressão porque – repito – se é bom dizermos dos textos que lemos, também faz parte do ofício escrevermos sobre como lemos os textos, e como eles nos vêm ao encontro, pois nem os livros nem as leituras existem isolados; 21


e assim cada leitura, distinguindo-se das demais, define-se mais claramente quando observada no âmbito maior da trama de vertentes em que se insere – o que inclui não só o autor, com seu texto e intertexto (e também o contexto!), mas o leitor com suas leituras. Ora, tratando-se da minha leitura da Poesia Completa de Lêdo Ivo, creio que posso desde já incluí-la entre as inesperadas, e com um componente prodigioso. Enfrentei certa resistência, quando fiz a primeira tentativa de leitura deste livro. Conhecendo já o poeta, estava decidida a estudá-lo sistematicamente, desde o momento em que minha irmã me oferecera o robusto volume. Por alguma razão, contudo, ao passar os olhos por alguns poemas, tive naquele instante inicial uma percepção enganosa, em que alguns versos pareciam-me contradizer a força categórica de poemas seus que eu já conhecia, como “A Passagem” e “A Queimada”, cuja leitura me havia assegurado estar diante de um poeta autêntico e de grandeza superior. Ante esse choque inicial, eu me perguntava por qual razão os poemas, em sua maioria, me repeliam, e eu não conseguia distinguir o sumo que os animava e unia. Entretanto, ainda nesta primeira etapa, sucedeu-me algo curioso, em que se evidenciava, não a minha ação sobre o livro, mas a ação do livro sobre mim. É que, depois de um mestrado em Literatura Brasileira, quando eu pretendia dedicar um doutorado à análise do Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, desviara-me o destino, desde 1988, para uma vertente de poetas portugueses (Camões em primeiro plano, e em segundo António Nobre, Cesário Verde e a tríade da Orpheu: Pessoa, Almada, SáCarneiro), o que me valera uma longa permanência em Portugal, em três estágios de investigação. Distanciara-se assim o meu estudo das questões e dos autores brasileiros, com exceção de um ensaio que escrevera, em 1995, sobre o Memorial de Maria Moura. A partir de 2002, começara a vir-me à mente a consciência 22


de que seria necessário voltar à Literatura Brasileira, e fiquei à espera do momento em que isto acontecesse. Então, enquanto ia lendo os poemas iniciais de Lêdo Ivo, percebendo que adentrava um momento da história literária brasileira classificado como geração de 45, dei-me conta de que regressava enfim à poesia brasileira, e que o retorno era, na verdade, uma primeira iniciação autêntica à poesia produzida no Brasil. Traçou-se então um arco imaginário, que tinha por extremidades dois momentos cronológicos: o período, já bem distante, em que cursava o mestrado; e o atual, em que lia a Poesia Completa de Lêdo Ivo. Algo mais forte, porém, sucedeu em seguida, quando acabava de ler a Ode ao Crepúsculo: dei-me conta de que a leitura desta Poesia Completa dialogava comigo, compelindo-me a registrar em poemas as emoções e reflexões suscitadas pela leitura, percebendo que a poesia, o sentimento poético, me retornava, e que este retorno se fazia em forma de um diálogo, em resposta ao apelo imperioso lançado pelas imagens que na leitura se sucediam. E mais que isto: quase que automaticamente, voltei à caixa onde guardara minha própria poesia, quase inteiramente inédita. Sem me dar tempo a questionamentos, dediquei então duas semanas à sua reorganização, com a sensação de que ela ressuscitava após hibernar por vários anos. Tive então a impressão de que sucedera o seguinte: ao me aproximar da poesia em causa como se fosse um objeto de análise, ela se evadira, retornando depois como sujeito, e dotada de força prodigiosa. Subitamente, tudo se animou nas páginas do livro, como uma folha vista ao microscópio, ou, sob a epiderme, a corrente sanguínea: uma cintilação de rumores, presenças sensíveis. O espírito desprendia-se da letra. A imagem se revelava em sua potência, como água que canta no interior dum rochedo. Foi este o momento propriamente inicial da leitura. Seguiu-se então outro momento, em que comecei a ouvir 23


melhor o que estes versos dizem, e fui selecionando alguns poemas como os meus favoritos, e deles sobressaíam, ora frases lapidares, que se ofereciam por título ou epígrafe, ora temas recorrentes que denunciavam o propósito e sentido do jorro poético. Tudo o que a princípio se me recusava – as constantes e os índices, agentes e estratégias desta poética – foi-me então franqueado. O livro, enfim, me abria sua primeira grande porta, que dava para outra porta imensa, por onde uma claridade me era lançada à cara, mantendo-me num suspense dinâmico, no qual eu me repartia entre as notas iniciais e a percepção do imperativo que já se me impunha: o de que este meu texto teria que ser escrito numa espécie de tetrálogo, em que a leitora ensaísta e poeta, ao dizer do livro, não ocultasse a circunstância da leitura, que também informava sobre o livro, nem se excluísse a si mesma, enquanto parte desta circunstância. Proceder de outro modo seria amputar, o que não condiz com a poesia de Lêdo Ivo. Eis porque o texto, que de início se pretendia ensaio, ampliou-se, tomando a dimensão de um livro.

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I. A Poesia Completa: “vou por um caminho branco”


Ajustei-me às constelações. Sou um homem que está caminhando rodeado por todas as estações da terra. (“Privilégio” Inventarei a porta e o caminho e passarei sozinho. (“A Passagem”) Forma vazia do vazio, sem povoação de palavras, eu me seguia, como um rio segue o rio, oculto nas águas. (“Um Brasileiro em Paris”) Vou sempre além de mim mesmo em teu dorso, ó verso. (“O Ofício de Viver”) Vou por um caminho branco que parece a Via Láctea. Só sei que vou tão sozinho que nem sequer me acompanho, como se eu fosse um caminho pisado por vulto estranho. 28


............................................. Vou por um caminho branco e nada levo nem tenho ............................................. Só vou levando o meu nada. (“O Caminho Branco”) Um deserto branco onde nada exista nem mesmo o vazio ................................ Entre tudo ou nada nem nada nem tudo no caminho branco. (“Areia Branca”) E mesmo a eternidade é um caminho. (“Soneto do Sol”) E assim a vida vai e assim a vida vem: aragem, maresia, suspiro de ninguém. (“Canção de Embalo”) E se eu, em meus livros, nada dissesse? Penso na eficácia de uma linguagem que fosse a majestosa e límpida celebração do nada. (“Confissões de Um Poeta”) 29



O Poeta Caminhante A primeira coisa que me sobressaiu nesta poesia foi a presença recorrente de um mar muito específico, um mar que é mais do que paisagem e imagem: um mar que é substância marítima, maresia impregnante das formas e dos entes enunciados nos versos. Mar de mangues, cais, caranguejos, trapiches, canhões enferrujados, navios derruídos. Um mar que remonta ao cenário de infância do poeta em Maceió, reminiscência a que se associam a doçura luxuriosa do açúcar e a decrepitude obrada nas coisas pela ação corrosiva do tempo, numa imagem de decadência que no ferro se traduz em ferrugem. Como veremos adiante, esta eminência do mar – recorrente ao longo de toda a extensa poesia, em incidências explícitas ou indiretas – indicia o sentido do percurso, que passa pela morte (decomposição das formas) e vai além dela, pois aqui também a morte é agente, e não fim. Em seguida, percebi o ritmo – que soava ao mesmo tempo clássico (na cadência compassada) e moderno (nos descompassos irruptivos) – e a rima – que se movia livre, parecendo desaparecer, mas estranhamente soando, de modo desviado, em incidências internas. Rima e ritmo relacionavam-se numa estrutura cujas dissonâncias intermitentes não consentiam o repouso distraído com que deslizamos sobre versos encaixados em moldes já conhecidos, e interessante seria depois constatar que o poeta afirmaria ser proposital este procedimento: Aos pássaros que gorjeiam prefiro os que grasnam como os corvos ou os que piam na escuridão como as vigilantes corujas brancas que infestam os meus bosques. 31


O canto melodioso amolece os corpos e anestesia as almas que renunciam à reflexão e ao [tormento e temem o rumor do dia predatório. Sempre desejei que o meu reino fosse o da dissonância: do gavião que, pousado na estaca, rumina a sua [impiedade, dos pássaros grasnantes que incomodam os [partidários de uma regência musical do mundo como se estivéssemos num teatro, ouvindo uma [sinfonia. Ao gorjeio que conduz ao deleite e embala o sono oponho o grasnido que semeia a insônia e o desconforto. (“Uma Referência”, grifo nosso) Logo também evidenciou-se a importância, na poetização

do texto, do procedimento metafórico. Espaçadamente, pontuavam o fio dos versos aparições de imagens esplêndidas e metáforas singulares, insólitas, através das quais se transfigurava a concretude do quotidiano e se distorcia o sentido literal do enunciado, produzindo-se o prodígio poético que Paul Ricoeur demonstrou num exaustivo estudo3. Na forquilha do tempo me apoiei para ouvir o antecanto destas horas. (“O Rio”) 3

RICOEUR, Paul. La Métaphore Vive. Paris: Éditions du Seuil, 1975.

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E a aurora rói meus punhos iracundos. E os ratos roem os pulsos de minha alma. ................................................................ Os gigantes jiboiam nos iates ancorados nas ilhas. A cólera da vida treme nas calçadas (“Finisterra”) São metáforas fortes, têm a mesma força imagística [que as inconfundíveis de Maiakóvski: Cai a tarde das grandes cidades, dura como um soco [no olho, E desce sobre nós como um colapso cardíaco. (“A Tarde Caída”) A menor das lágrimas de teu doce pranto cava na manhã crateras imensas. (“O Dever”)

A importância deste expediente é fundamental na constituição da poética de Lêdo Ivo, o que se pode observar em poemas como este: A mim mesmo reclamei a graça imerecida de poder continuar andando pelo bosque e insisti em lavar com a água mais pura 33


a ferida da vida aberta como uma porta. Rodeado por uma nuvem caída, tornei a ouvir a intimação da noite, oculta entre as árvores. (“O Primeiro Dia do Ano”, grifos nossos) Poder continuar andando pelo bosque é a graça que o poeta requisita (mas a si mesmo!). Numa metáfora que é tão bela quanto eficiente, ele caminha lavando com a água mais pura a ferida da vida, que é também abertura, como uma porta. Mas não se detém aí o trabalho da ferramenta-mor. Ela produz outras torções no enunciado: o poeta, rodeado por uma nuvem caída, ouve a intimação da noite, que intima oculta entre as árvores. Todo este procedimento produz uma transfiguração do enunciado, nele instaurando o que Julia Kristeva designou como “révolution du langage poétique” 4. E toda a Poesia Completa de Lêdo Ivo é alicerçada no poder deste expediente máximo. São metáforas que ora se revestem de humor, em versos que também lembram o jovem Maiakóvski:

Virado em canoa pela indolência, vou atrás do sol [que corre como um ladrão. ................................................................................ E minha vida vai e vem, pajeada pela brisa. (“A Canícula”)

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KRISTEVA, Júlia. La Révolution du Langage Poétique. Paris: Seuil, 1974.

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Maravilha dos mares e das ilhas! Quem parte permanece na enseada sob a vaia dos pássaros marinhos. (“O Grasnido da Gaivota”) e ora mostravam tons surreais, portadores de percepções avançadas: O espelho plagia a paisagem que entra pela janela aberta. (“O Plagiário”) operando, no transporte semântico, a restituição dos campos separados à sua unidade essencial:

Nossas almas rolarão pelas gargantas celestes.

(“O Sono Demorado”)

ou adquirindo condensação conotativa, com uma densidade poética que exemplificava a noção eliotiana do correlativo objetivo5, segundo a qual um ente, uma paisagem, uma cena, uma sucessão de eventos, de caráter objetivo, servem de correlativo ao sentimento do sujeito lírico, de modo a provocar no seu leitor uma emoção análoga àquela que o poeta deseja transmitir: 5  “The only way of expressing emotion in the form of art is by finding an objective correlative; in other words, a set of objects, a situation, a chain of events which shall be the formula of that particular emotion; such that when the external facts, which must terminate in sensory experience, are given, the emotion is immediately evoked.” “Hamlet”. In: Selected Essays, p. 141-46.

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Era um cavalo negro junto ao portão postado. A ninguém pertencia e a ninguém esperava. De que pasto viera ou que vento o trouxera por montes e planícies ninguém ninguém sabia. Os cascos impacientes feriam o chão frio de onde a noite subia para o céu estrelado que finge recolher em seus buracos negros os gritos e suspiros da vida amortalhada. Era um cavalo negro como a noite mais negra: a noite dos cupins e dos ventos amargos; a dos portões fechados que protegem no escuro como se fossem muros as minhas terras belas e o dia das corujas; a dos sonhos quebrados como as telhas das casas. Seu relincho se alçava no silêncio mais negro que sagra a madrugada de lacraia e morcego e, açoite, vergastava a paz que sempre grassa 36


nas ervas e nas cercas. Na noite campesina de pão e formigueiro e de arames farpados era um cavalo negro. Mais negro do que a morte quando ela se entremostra com suas crinas negras de cavalo irritado e seu cheiro de bosta. Mas se a ninguém queria e a ninguém esperava e de campo sabido não era originário por que estava ali, negro cavalo negro, junto ao portão postado? (“O Cavalo Negro”) Reiterando-se nos diversos poemas, destacavam-se alguns sintagmas, que ao nível do referente indicavam entes e formas observados pelo poeta, e, ao nível da linguagem, traduziam-se em temas-semas recorrentes. Ponderando estas reiterações, tentava definir qual teria a primazia semântica nesta produção poética: pássaros, mares, ondas, céus, nuvens, navios, sombras, portas, fontes; a noite e o crepúsculo, em contraponto ao dia; a escuridão alternando-se à claridade; a morte, sempre de par com a vida; tempo e eternidade; Deus; e o vento, o vento sempre reiterado – qual seria, afinal, o tema-sema dominante? Qual deles me daria a chave-mestra desta poesia?

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Foi quando agarrei a ponta do fio condutor de minha leitura, ao perceber que não estava lendo poemas estanques, e sim neles seguindo as pegadas e os registros de uma caminhada, empreendida por um incansável caminhante. Antes mesmo, bem antes, de ler o poema “O Caminho Branco”, delineou-se para mim, nas entrelinhas dos versos, o vulto de um caminhante. Distinguia seu vulto e ouvia seus passos ressoando pelas linhas do percurso, como uma presença caminhando num bosque. Um caminhante sempre em movimento, numa incessante caminhada, que sucedia tanto no espaço e tempo exteriores quanto no espaço interior de uma busca obstinada, empreendida por uma consciência que se transmutava em mil formas, enquanto se concentrava, reafirmando-se. Depois, antes de empreender a leitura linear de todo o livro, não tendo ainda chegado ao meio, tive a ideia de saltar para o fim, antecipando a leitura dos poemas de Plenilúnio, porque desejava saber onde teria chegado o caminhante e qual seria o nexo entre os poemas já lidos e estes últimos. E foi aí que me surpreenderam os versos de “Uma Busca Incessante” e “O Desejo”, nos quais comparece declaradamente o caminhante que é a constante maior de toda esta poesia. E recuando um pouco, aos poemas de O Rumor da Noite, deparei com “O Caminho Branco”, que me expôs de chofre, pelo acréscimo do adjetivo, o sumo e o cerne da longa caminhada poética de Lêdo Ivo. Se em “A Passagem” o poeta (em versos que evocam os de Antonio Machado) se diz um caminhante que no caminhar abre seu próprio caminho, em “O Caminho Branco” ele nos dá a chave para a compreensão em nível mais profundo (onde sua poesia é filosófica) do sentido que motivou e onde aportou sua caminhada. E a chave está no adjetivo: branco. Por que o caminho por onde vai o poeta é adjetivado com a cor em que todas as cores se reúnem e, ao reunir-se, desaparecem? Responder a esta indagação 38


é o propósito deste meu ensaio. Mas, se estamos ainda no tópico da poesia como diálogo, cabe aqui uma comparação: na leitura d’ Os Lusíadas, meu primeiro fio condutor foi a cadência rítmica, à qual juntou-se depois a trama semântica. Já na poesia de Lêdo Ivo, o primeiro fio foi uma presença por trás dos versos: a do caminhante. Um poeta caminhante que, nunca em repouso, sempre a passar, percorrendo paisagens, nos oferta as aparições, visões e reflexões sucedidas na caminhada. Um caminhante que, na marcha sempre reiniciada, afirmando-se poeta, um poeta filósofo, contemplativamente observa os entes e formas do caminho, sobre eles refletindo, e ao mesmo tempo deixando-nos, como rastros de sua caminhada, as reflexões contemplativas suscitadas pelo que encontra, encontros e achados itinerantes em que cintilam, indissoluvelmente unidas, essência e circunstância, num inventário cuja epígrafe bem poderia ser esta frase de Murilo Mendes: “pertenço à categoria não muito numerosa dos que se interessam igualmente pelo finito e pelo infinito.”6 Exercício existencial, esta caminhada parecia ao mesmo tempo o diário de um viajante que, sensível aos apelos diferenciados de cada ser particular, incansavelmente registra, em testemunho poético-filosófico, a presença, aparição e desaparição das inumeráveis formas e vozes que compõem a existência, do astro incandescente ao réptil rastejante. Uma poesia que, como se tem notado, é opulenta e abundante, porque visita numerosos momentos e lugares, diurnos e noturnos, urbanos e campestres, expansivos e taciturnos; mas também concentrada, porque tudo visita e contempla de seu próprio centro, que no entanto é móvel e mutante. E, enquanto caminha, ora reflete sobre algo que presencia:

6  “Murilo Mendes por Murilo Mendes”. In: MENDES, Murilo. Poesia Completa e Prosa. Volume Único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 46.

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Para que os cajueiros possam florir caiu esta chuva que apagou as estrelas e encharcou os caminhos. ............................................................................. Este é o regimento do mundo: relâmpagos e raios antes da flor e do fruto. (“A Tempestade”) ora nos diz duma reflexão que se processa em sua mente: O amor não é um arquiteto. Igual às térmites, destrói a mais sólida construção das paredes até o teto. (“O Demolidor”) ora enuncia estados de espírito com que responde aos desafios lançados pelo mundo humano: Quem tapa minha boca não perde por esperar. .................................. Quem tapa meus olhos nada esconde de mim. .................................... Quem tapa meus ouvidos me faz escutar mais. (“Precauções Inúteis”)

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ora se expressa em enunciados metafóricos de efeito poéticofilosófico: Só os instantes perduram no dia puro e perdido. São ninhos que guardam sonhos. (“Saindo da Escuridão”) ou, ao refletir, emite conselhos a um outro que inclui o seu eu, pronunciando uma divisa enquanto cruza pontes, em lugares que cita expressamente, no mesmo passo em que, moldando fortes imagens e metáforas, vai desfiando os temas-semas recorrentes de sua poesia, e fazendo a defesa da imaginação poética: Abra sua porta à imaginação. Nenhum sonho fique do lado de fora. Caído o crepúsculo sonhe e seja tudo, rosa de mil pétalas aberta na sombra. Quem se multiplica não sofre o vexame de só ser um só. Eis que o sol se esconde. Múltiplo atravesso as pontes de Londres. (“Carta da Inglaterra”) 41


Quando atravesso as pontes de Roma o outono me segue como um cão sem dono. As folhas caem como pecados no chão preclaro. As fontes abrem lábios de pedra e confiam ao vento o que o vento já sabe. Tudo passa, passante que atravessa no outono as pontes de Roma. (“As Pontes de Roma”) É interessante notar, nesses dois últimos poemas citados, um procedimento que se reitera em outros vários poemas. Nestes, a circunstância em que os versos surgiram menciona-se, não apenas no título, como também no corpo do poema. Há outros, porém, em que só no título se acha a referência; e, em ambos os casos, produz-se um curioso resultado, em que dois planos se conjugam na construção do sentido. Há o enunciado, emitido pelo poeta em sua reflexão; e, ao mesmo tempo, oculta-se nas entrelinhas deste enunciado explícito outra informação, que é como outro poema, cujo resultado final é o da expansão do sentido.

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Surpreende-nos, ainda, com enunciados como este, em que desponta, atualizada, a tese-mestra de Schopenhauer, colada ao circunstancial quotidiano: Visto pelos olhos sonolentos do trocador de ônibus [que passa pela avenida o mundo é uma representação. (“A Escavadeira”) Perseguindo o inefável, o poeta avança, e a caminhada – que se reparte por lugares diversos dos continentes, aprofundando-se no bosque – oferta-lhe encontros, encontros com entidades, entidades que são aparições, aparições impregnadas de misteriosa gravidade, poeticamente traduzidas em imagens cuja recorrência condensa-se em metáforas, coagulando-se em símbolos. Entes concretos que na verdade são abstratos, abstrações que se particularizam em formas concretas, no enlace inconsútil de aparência e essência. A morte surge no pássaro morto; a vida, na formiga carregando a folha; o dia, em visível agitação urbana; a treva, palpável no pio da coruja, no abraço dos amantes. Bichos, céus, mares, ondas, corpos nus, navios, nuvens, aves, sombras, portas, fontes, estrelas, estes os principais sintagmas concretos que se reiteram como temas-semas componentes e agentes da trama poética, recorrências que de modo intermitente configuram incidências metafóricas, envoltas em abstrações também recorrentes: azul, infância, noite, tempo, eternidade, morte, vida, inefável, transitório, inexistente, corrosão, silêncio, solidão, etc. E certas constantes verbais, como nas incidências numerosas em que as coisas (nuvem, tarde, crepúsculo, noite, poesia) caem; ou algo (pássaro, mão) sobre algo (ombro), numa 43


imagem do conúbio que une transcendente e imanente, essência e circunstância. E também Deus, que mostra múltiplas faces – da sublime à terrível, da cósmica à farsesca – a depender do ânimo ou do nível de consciência com que é abordado, desde o humor crítico à metafísica indagação. Um Deus que se nega enquanto afirmação, e só se pode afirmar como não-Deus, ou antiDeus. Pontualmente, como que marcando um compasso, espaçadamente surge a imagem silente e poderosa do Gavião, que, do ponto de vista desta minha leitura, ocupa um lugar inconfundível na poesia de Lêdo Ivo. Pousado na estaca, em aparições tão irregulares quanto a dos números primos (porém em lógica progressiva inversa, porque aqui, à medida que a poesia avança, sua presença se faz mais forte), ele, o gavião – apesar de ser uma forma plástica, sensível, com cor e mood, e de também se prestar magnificamente à noção poética do correlativo objetivo –alçando o seu voo, desprende-se do sensível, e, denunciando um apurado labor poético, sem dúvida alcança o nível abstrato de uma nota numa pauta musical, ou de uma categoria num sistema filosófico. Permeando tudo, o vento, sempre o vento, tema-sema primacial, com trânsito assegurado entre todos os demais, enquanto elemento de interligação, signo coesivo e ao mesmo tempo destrutivo, porque portador do poder corrosivo do oceano, ou emissário do tempo invencível, ou daquilo que, sendo absolutamente livre e inapreensível, não se pode definir, nem denominar, nem prever nem reter, mas apenas testemunhar, quando inesperadamente irrompe.

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A Ode ao Crepúsculo E estes temas-semas já estão todos – ou quase todos – presentes na Ode ao Crepúsculo, de 1946. Parece-me não ter sido por simples atração pelos seus versos caudalosos que este poema foi o primeiro a destacar-se na leitura que fiz desta Poesia Completa. Ele me cativou, sim, instantaneamente, por sua linguagem torrencial, num extravasamento marcado pela imagem surreal, fremente de sentimento esteticamente bem lavrado; e mais tarde, lendo um ensaio de Sérgio Buarque de Hollanda, concordei com o crítico, quando considera a Ode “sua obra mais bela, senão a mais importante” 7, pois, de fato, no momento em que o crítico escrevia o seu comentário, ela era o principal e mais belo dos poemas de Lêdo Ivo, e até o presente continua a significar um momento decisivo e um marco neste percurso poético. Mas depois percebi que, além disto, a Ode ao Crepúsculo é também o momento em que o poeta lança à mesa as peças do jogo, os dados de sua partida rumo à aventura de busca da poesia, de obstinada caminhada poética, num manifesto pelo surreal, pelo inefável, pela imaginação, pela poesia. Ao dizer da vocação poética, vai enunciando, trazendo à pauta os temas-semas recorrentes com que se construirá o seu longo percurso. É verdade que em “Justificação do Poeta”, um dos últimos poemas de As Imaginações, que antecede em seis anos a Ode, já se dava um primeiro momento de arrancada para a aventura da poesia, com a irrupção da consciência, no poeta, do seu destino de poeta. Mas, por sua menor extensão, e sobretudo por nele ainda não se enunciarem os temas-semas constitutivos da poética, o primeiro poema, se comparado a esta Ode, soa como apenas um aviso, um bater à porta que na Ode se abrirá amplamente. 7  HOLLANDA, Sérgio Buarque de. “Amor em Terra de Razam”. In: O Espírito e a Letra. Estudos de Crítica Literária. II. 1948-1959. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, p. 172

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A hora do crepúsculo, hora fronteiriça da indefinição, em que ainda não é noite mas já não é dia, essa hora intervalar é a hora da consciência e da poesia, a hora da consciência poética, da consciência do caminho que o poeta deverá trilhar para cumprir-se. Por isto, a Ode que canta esta hora firma-se como primeira escala de um sentido que se achará na própria suspensão do sentido. Começa o poema por situar a missão do poeta, definindo este como um caminhante, guardião do inefável, estrangeiro descobridor: O tempo imita as ondas. Aqui estamos para descer ao abismo de nossa condição terrestre e mesmo certos de que só em fonte imaginária nos [saciaríamos vamos avançando, combatentes do efêmero, e nossos passos ressoam nos bulevares do sono. ........................................................................... Estamos aqui para explorar o que os outros jamais [explorariam ........................................................................... e na estalagem em que estamos ninguém nos [conhece.

Vem depois a consciência de sua pertença a um tempo histórico, e de uma perda sucedida nesse tempo: Vivemos evocando diariamente um reino [desaparecido que não chegamos a conhecer. ......................................................................... E nossos jogos de roda, suprema hierarquia noturna, 48


quem os proibiu, entre a lua e o sol, a solfa e a [partitura? Enquanto dormíamos, uma nova ordem se impôs contra o fantástico. Estávamos nos preparando para despertar no [momento propício, trazendo nos bolsos os objetos feéricos do sono, quando tudo nos foi arrebatado e acordamos saqueados e nus. ........................................................................ Somos as árvores que sustentam o teto indiscernível do céu. E torna a afirmação da condição do poeta, seu destino sacrificial de oferta e entrega: Consumir-se no próprio canto – eis o essencial ao poeta. Dar-se inteiramente como um cadáver que se desintegra. ........................................................................ Dar-se inteiramente, para não morrer, como folha voante se oferece ao outono. Dar-se inteiramente.

Também comparece a consciência da inanidade, que será conclusiva do percurso poético, e aqui se refere à identidade, num enunciado em que um ente nulo se oferta a uma existência que é inexistência, operação de um nada dentro de outro nada: E porque nos oferecemos ao inexistente, aqui [estamos 49


procurando uma razão para justificar essa [oferta que nada vale, porque nada somos. ......................................................................... E a consciência de que a hora de começar a aventura poética é a hora de caminhar, de partir em direção a lugares que são tão concretos quanto simbólicos: As horas! Hora em que os pés são os depositários [da aventura e caminham em direção ao navio, à casa de flores e [ao cinema. Então, no extravasar do seu ímpeto de ir além, começa ao mesmo tempo a enunciar os temas que se tornarão, por recorrência, os núcleos semânticos de sua trama poética. Pássaro, noite, morte: ....................................................................... Mas de que me serve estar hospedado aqui se desejo singrar as baías da volúpia, se desejo sentir-me pássaro ferido, se desejo ser uma caravana quebrando o amanhecer, se desejo ir além, muito além dos vales noturnos, perder-me como a música que só existe quando [existe, perder-me como os mortos que à tardinha passeiam [sob a terra saltando entre as raízes das árvores? ....................................................................... 50


Deus, e, outra vez, o pássaro: Ó meu Deus, neste momento de amor dai-me a [alegria voadora dos pássaros. Dai-me a precisão dos cronômetros, a imobilidade [das estátuas receosas da noite. ................................................................................ O anjo: Dai-me o que não tenho, o que não posso ter pois em meu combate com o anjo não busco senão [o inefável. ................................................................................ A caminhada: Era preciso dizer de súbito: devo partir agora, fugir desta casa, deste emprego, desta injunção. Um corpo me espera em algum lugar do mundo. .............................................................................. Céu, infância e poesia: Céu, vigilância da atmosfera, desce gravemente. Amortalha-me em ti a esta pobre criança que sonhou a Poesia, indeciso entre inventá-la ou descobri-la. ...............................................................................

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Invisibilidade: Quisera ser estritamente desconhecido e ter a delicadeza dos fantasmas que pedem desculpas [quando assustam. ............................................................................... O canto, expressão da poesia: Que em mim mesmo se crie o canto, para que eu [me cumpra verdadeiramente como as nossas faces na face dos espelhos. ............................................................................... E também já o tema que se repetirá espaçadamente, ao longo de todos os livros que compõem esta Poesia Completa – o de uma descida da altura inefável sobre o chão circunstancial – que aqui vem como poesia que cai sobre o mundo e o poeta, assim como sobre a Terra cai o crepúsculo, trazendo ao poeta o sentimento da presença da poesia no quotidiano: A Poesia aí está, caindo sobre os homens que ao entardecer suspendem o trabalho e se [submetem aos sinais de trânsito. É a Poesia, subindo pelas escadas de incêndio dos [edifícios, jogando-se aos trilhos dos bondes como um suicida, levantando a toalha das mesas dos restaurantes, [imobilizando as taxi-girls, é a arbitrária poesia das vitrinas com os seus objetos [mecânicos e sua magia moderna, 52


é a Poesia, indo embora nos comboios emigrantes, ............................................................................... ó poesia torrencial e indomável que cabe todavia [na frisa matinal de uma trova, do nada te levantas, e vais subindo, e eu vou contigo, atento à tua fúria. ............................................................................... A caminhada do poeta se inicia no momento em que a poesia o interpela e parte, levando-o. É ela quem o motiva a seguir o caminho, ou melhor, a empreender a caminhada em que se fará o caminho: O poeta, desconcertante inventor, cria a poesia [num momento de alarma. Para os outros, lá vai ele pelos campos, saudando as [borboletas, as águas que cantam e as sebes diurnas. ................................................................................ E nesta arrancada já comparece a consciência de uma caminhada que no desprendimento achará a poesia, sendo, aliás, a este nível que se deverá entender a presença recorrente da nudez, dos corpos nus, cujo sentido será preciso conduzir à transcendência de um erotismo cuja imanência porta o metafísico: E porque foi, ela virá, não montada nos cavalos [selvagens da aurora, mas voltando a pé, trazendo nas mãos o púcaro [vazio de quem vai à fonte buscar a água verdadeira. 53


Cumpre-nos recebê-la com a porta aberta e levá-la pelos caminhos de sempre, usufruindo o [existente. ................................................................................ Volta o tema-sema do pássaro, numa identificação do poeta com os que voam: Corvos, andorinhas, pássaros sem nome, quem não vos invejaria, sabendo-vos nas nuvens, mais perto do que ansiamos, destinados ao [ignorado? Que fazeis nas nuvens, se os alimentos estão na Terra, sejais aves do bem ou pássaros do mal? Em vosso voo sem resposta confirmais a necessidade de uma tarefa diária. Os alimentos estão na Terra, e no entanto voais nos pródromos das vagas celestes, entre sublimes [janelas. E outra vez, agora interligadas, a imagem da queda e a consciência do tempo histórico: Uma ordem foi destruída. Uma hierarquia em que o humano era a tradução visível do [angélico desabou como os céus. No fim, eu também desabarei. ................................................................................

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E o tema – que será também frequente em toda a poesia – da descoberta do eu na instância do outro inconsciente, com o estranhamento ontológico: Serei desconhecido de mim mesmo, e me [perguntarei: quem é este homem que escreve versos à minha [mesa, consulta o dicionário de rimas e lê contos de fadas? ............................................................................... Quem é este homem que copiou meus traços, imitou meus retratos e adquiriu minha tendência para evocar o verão? ............................................................................... A hora do crepúsculo é a hora da poesia, cuja metonímia é aqui o surrealista do “Bateau Ivre”: é a hora de cair o crepúsculo, é a hora dos [saltimbancos, é a hora das ligações perigosas, é a hora do regresso [inopinado de Rimbaud. ................................................................................ Outra vez, associadas, a noite e a queda: Que grito vem do chão da música, anunciando a [noite que vai cair sobre nós? ...............................................................................

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E expressamente se enuncia um tema que depois se ocultará, aderindo à própria substância do mundo – a loucura, que aqui se localiza no poeta, como já sucedera em “Justificação do Poeta”: Sou um saltimbanco e danço entre as cordas retesas de minha inacreditável [loucura. Em minha atitude de homem sarcástico, que saúda a [praia com um sorriso, esconde-se uma loucura temerosa de sua exatidão e que repele o voo baixo da imaginação poética, [mas aceita os concentrados jogos de palavras. Quero rir amplamente dos que oferecem sua lucidez como homenagem a si mesmos.(...) ................................................................................ Depois, no tema das estrelas, a remissão ao espaço sidéreo e à consciência cósmica como signo da loucura que é companhia do poeta: quero rir e oferecer às estrelas o silêncio que [sobrevier à minha gargalhada e perguntar, com os braços abertos: onde está a vida? dizei-me onde está a vida, que de há muito a procuro e encontro apenas a fábula dos versos. ................................................................................ Quase se concluindo o poema, o destino de toda esta Poesia Completa – o Nada, consciência da inanidade da existência, que aqui ainda se apresenta como divisa, princípio condutor do 56


voo da poesia, que para atingir seu propósito essencial deve antes despir-se, desprender-se das formas particulares: Nada ter. Ter somente o nada ter como o aviador nada tem senão a altura. ................................................................. Nada ter para ter tudo: o voo do pássaro e o monumento da onda, o canto do seio nu e a noite terrestre. ......................................................................

Consciência, outra vez, da missão do poeta, na qual se inclui a tradição da poesia: Nossa missão é continuar a tarefa dos que vieram [antes para que Ela, a Poesia, não desapareça e transmita o intraduzível. Um dia morreremos entre vaias e fanfarras, e ela permanecerá afirmando que existimos, e tentamos cumprir o mandato inefável. ................................................................................

Invocando ainda os temas-semas, num misto de pé no chão e cabeça nas estrelas, assim buscando a conjunção de acidente e essência, a aventura que se promete já leva a pensar nos ideogramas que compõem a palavra chinesa Tao, cujo significado é precisamente o de um caminhar com a cabeça no céu e o pé no chão: 57


Ao crepúsculo, canto esta vida mesquinha. Canto [os bondes no mistério dos trilhos, canto os automóveis nas ruidosas pistas da morte, canto os ônibus ............................................................................. Canto e procuro nesta impureza o que brilha no [centro do diamante sem consumi-lo ou desfigurá-lo. Algo se oculta [entre estes gritos e músicas e existe sem gesto, movimento ou palavra, e ergue [-se para o espaço sem que possamos captá-lo. Algo existe para ser [atingido e superado quando sentes que estás vivendo um sonho de [antigamente e por mais que apertes a campainha tua porta não se [abrirá. Canto este crepúsculo. Canto-o com uma alegria [desmesurada que fomenta vertigens, e ampara raios, e atinge o [céu com as mãos. Mais alto que a Morte, canto este crepúsculo que [desce. E a noite que vem, antes de ser noite, é minha. Bem ao fim, a consciência de ser a poesia o inventário da essência na circunstância, e o canto sacrificial, de entrega dionisíaca:

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Eu morto, ninguém exaltará essas coisas que [iluminam repentinamente o celeiro do cotidiano. As coisas que vejo e sinto, cantadas por outrem, [jamais serão o que são agora: a rua em novembro, a chuva ausente, a mulher [inclinada no ônibus, o homem que passa [espetacularmente levando uma braçada de flores para a prosaica [mulher que o desposou há sete anos. ............................................................................... Este é o meu canto, o de minha paixão e morte.(...)

À partida, portanto, o canto se diz sacrificial. Mas este é um canto no qual a essência inclui sempre a circunstância, a dança de mil formas, que os filósofos chamam fenômenos, e filósofos mais antigos chamaram upâdhi, termo com que o Vedânta designa as mil formas de Brahman, o universo manifesto, por oposição a Vishnu, o princípio em potência. Dualidade concernente também à arte e à poesia, que Joseph Campbell resumiu nestes termos: Gerhart Hauptmann disse em algum lugar que a poesia é a arte de fazer a Palavra ressoar por trás das palavras (Dichten heisst, hinter Worten das Wort erklingen lassen). No mesmo sentido, a mitologia é uma apresentação de formas através das quais a Forma amorfa das formas pode ser conhecida. Um objeto inferior é apresentado como a representação, ou habitação, de um superior. O amor ou apego ao inferior é realmente uma função do acesso ao 59


superior; ainda que deva ser sacrificado (daí o sofrimento!) se a mente pretende chegar ao seu próprio fim.8 Na poesia de Lêdo Ivo, as formas visíveis e particulares do mundo manifesto são contempladas em sua existência fenomênica. Elas jamais são ignoradas: pelo contrário, são bem observadas, enquanto aparições que cintilam no caminho, mas pelo olhar sensível de um poeta, que delas faz desprender-se, pelo condão da metáfora, o que nelas há de perceptível, porém indefinível e inapreensível: sua essência – formless Form of forms – que se tornará mais e mais visível ao longo do percurso. Para bem compreender o sentido desta poesia, é preciso deter-se um pouco nestas formas, observando de que modo são transfiguradas, quando miradas à luz de outros temas, estes abstratos. Assim veremos formigas marcharem levando folhas que são signos de uma labuta obstinada, talvez cega, e sempre compulsória; pássaros cujo voo ousa a eternidade, e cuja queda denuncia o destino final; amantes cujo abraço contém o tempo, em sua fatalidade; ruas onde se esgueira a Morte, ladra disfarçada. É preciso meditar nestas formas e nestes movimentos, neste entremear de planos, neste conúbio de continentes abstratos e conteúdos concretos, percebendo que ao nível da linguagem se traduzem em signos de um sentido poético. Concretas ou abstratas, estas constantes são temas-semas recorrentes, signos que, com sua reiteração ao longo dos poemas, vão imprimindo o que se entende por marcas do discurso e índices do sentido, unidades constitutivas do sentido. 8  CAMPBELL, Joseph. The Masks of God. Vol. I. Primitive Mythology. New York: Arkana, 1991, p. 55. Do original, traduzido pela autora: “Gerhart Hauptmann has somewhere said that poetry is the art of causing the Word to resound behind words (Dichten heisst, hinter Worten das Wort erklingen lassen). In the same sense, mythology is a rendition of forms through which the formless Form of forms can be known. An inferior object is presented as the representation, or habitation, of a superior. The love or attachment felt for the inferior is a function actually of one’s potential establishment in the superior; yet it must be sacrificed (therein the suffering!) if the mind is to pass to its proper end.”

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Cintilações do Caminho, Signos do Sentido

Observemos então uma amostra exemplificativa destes temas-semas. Sendo inevitável, quando estudamos um texto, recorrermos à organização e classificação, classifiquei em três espécies os temas-semas desta Poesia Completa, que são também seus elementos componentes, suas recorrentes unidades semânticas. Na primeira categoria, enquadra-se o tema-sema do poeta que caminha, observa, contempla e reflete sobre os passos, as visões e os encontros da caminhada, assim como sobre o seu ofício e destino, sua condição de poeta, seguidor e criador da poesia; na segunda, os entes e formas que ele contempla e observa; e na terceira, os moldes apriorísticos (lembrando as categorias kantianas) que condicionam estas observações, contemplações e reflexões. Como não poderia deixar de ser, tais categorias se apresentam misturadas: a coisa ou ente observado vem sempre de par com a emoção sentida ou a reflexão ponderada, e o centro móvel de tal experiência é sempre o poeta, na poesia que é fruto de tal meditativo percurso. Comecemos pelo primeiro.

Poeta e Poesia Um tema recorrente central nesta poesia é o que instaura a presença do poeta, centro de consciência contemplativa que observa e reflete, não apenas sobre a forma e o sentido dos entes existentes, mas também sobre o sentido da própria existência, na condição de poeta, e sobre a poesia que porta esta reflexão. A consciência de ser poeta manifesta-se já no primeiro livro, As Imaginações, que reúne poemas de 1940 a 1943, nos quais é nítida, em linguagem de matiz surrealista, a visão da poesia como vidência, caminho para o lado oculto, o inefável, que faz do poeta um solitário estrangeiro: 63


Oh, não perguntes meu nome. Eu sou o rosto de alguém num baile que não prossegue. Sou a morte, sou a porta de todas as imaginações. Um céu espera por mim em um áspero continente que nenhum mapa registra. (“O Laboratório da Noite”, grifos nossos) Eu sou esse visitante enfurecido demônio da restauração do céu. (“A Linha de Tiro”) Um poeta que, na trilha de Rimbaud, cumpre o imperativo do enivrez-vous deixado pelo mago das Fleurs du Mal, experimentando (no poema “A Garrafa”) a embriaguez, irmã dionisíaca da loucura: Entornando essa garrafa sobre a minha vida triste fico eternamente bêbedo canto nos cais, nos desertos, aspiro hálitos do céu e vou pela vida ao léu quase lúcido de bêbedo. 64


Embriaguez que se mistura, dum só lance, a dois outros temas recorrentes – a morte e a mulher: Outros viriam lúcidos e enlutados, porém eu venho bêbado, Hermengarda, eu venho bêbado. (“Valsa Fúnebre de Hermengarda”, grifos nossos) Esta mesma consciência, em que poesia e loucura visitam o poeta, concedendo-lhe a vidência, expressa-se no já citado poema “Justificação do Poeta”, em que a profissão de fé poética, permeada por alusões à loucura, a Deus, à caminhada e à poesia como forma metaforicamente feminina, faz-se num discurso dirigido à figura paterna, que certamente desejava para o filho outro destino:

Pai, meus pensamentos não cabem na tua [sala com piano tranquilo a um lado e escuras [cadeiras vazias perto da janela meus inquietos pensamentos não cabem na saleta [com flores morrendo nos jarros e paisagens [sorrindo nas molduras deixa que eles atinjam além das cortinas azuis e [caminhem para muito além das janelas [abertas deixa que eles se misturem com o calmo luar não te importes se os outros se espantam com o teu [filho de olhos vivos e cabelos sempre desalinhados não te importes se recito poemas quando a noite [cai o tempo não existe na alma do poeta 65


tudo é universal e abrange todos os tempos os poetas, meu pai, são os corações do mundo são as mãos de Deus escrevendo os poemas do [mundo inseguro não importa, pai, que digam que sou louco que choro debruçado nas pontes e me comovo nos [teatros que pergunto pela obscura Adriana quando a [madrugada desce em silêncio em silêncio os poetas são os pianos do mundo só eles permanecerão inalteráveis diante das musas e [de Deus só eles terão a noção da agonia do mundo ontem um menino espanhol foi despedaçado por [uma bomba amanhã se encontrarão poemas no bolso do suicida [sonhador enquanto isso os guindastes trabalham incansavelmente dia e noite e os operários fatigam os braços e as pernas nenhuma oscilação haverá na Poesia ela ficará em equilíbrio porque os ritmos a amparam e Adriana não se prostitui. Sou um comício. Sou uma revolução. Assumindo o verso longo, que escorre em fluxo contínuo, o poeta já ao início do percurso toma consciência de si como poeta e como caminhante, seguidor do caminho da poesia. E o poema que a ele se segue (“Descoberta de Adriana”) confirma 66


este encontro inicial, reiterando-se a poesia no feminino, numa incidência que nos faz lembrar a Mira-Celi de Jorge de Lima: Adriana é a pátria da Poesia, o magnésio dos [fotógrafos, a voz que atende aos S.O.S. eis o motivo por que a quero brandamente junto a [mim com sua mão surpreendendo a obstinação de minha [cabeça e não a quero aprisionada pela métrica pois assim a [libertarei. Em Ode e Elegia (1944-1945), prossegue, no jorro de

versos expansivos, a consciência da condição e do destino de poeta, recorrência que inclui outra, a do tema da solidão, aqui misturado ao do azul, pátria metafórica do poeta:

Fábula ou melodia? O destino do poeta, como um grito que a infância retivesse, sobre para o grato silêncio da vertigem do céu. ................................................................ Irremediavelmente sozinho está o poeta. ................................................................ Sozinho como os velhos rodeados pelos risos das crianças, sozinho como um fruto maduro numa árvore morta; sozinho como as pedras e o azul está o poeta. .......................................................... O poeta está sozinho, raro objeto ao alcance de todos. (“Elegia”) 67


A consciência de ser poeta irrompe em tom surreal, pontuado por metáforas siderais insólitas: Certa noite, bebendo nas estrelas uma excelente água [que modula o minueto dos sonhos, eu me cansei de ser balão cativo e me precipitei ao encontro do sol que não raiava. ............................................................................. E sofria a grande dor de saber a Poesia inútil inútil como a rosa diante do olhar de um faminto inútil como um admirável corpo nu na maior solidão ............................................................................... Certa noite, enquanto varriam as ruas da cidade [recolhendo os poemas fugidos de meu quarto ................................................................................ surpreendi uma bebendo água num brinde às estrelas e analisei o verão concentrado nas asas de um [passarinho. (“Elegia Fantástica”) Associa-se esta consciência aos temas-semas do inefável,

do feminino, da infância e da imaginação:

Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável, como pode louvar, não traindo a si mesmo, a plena e estranha juventude da moça a quem [ama? (“Descoberta do Inefável”)

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e me procurem nos versos exatamente como sou: misturado aos outros, rebelado, inconsequente, [confuso e lírico. Não me perguntem nunca pela casa da infância nem [pelo amor da juventude. Oh! Não me perguntem nada, escutem-me se [quiserem, e olhem a imaginária janela aberta. Ela não existe. Olhai o que não existe. Criai-o, e [sereis poetas! (“Canto da Imaginária Janela Aberta”) A mesma disposição anímica persiste em Acontecimento do Soneto (1946): Por um campo fantástico eu me vou brutalmente pisando sobre flores e nos meus ombros vai perdendo as cores o paletó de Jean-Arthur Rimbaud. Sinto em mim turbilhões. Qual vaga sou mais que marinha e escuto meus amores como vozes gritando às minhas dores que a loucura me viu e me tomou em suas mãos de sangue. Vou-me embora para viver a vida que me aguarda quando eu cuspir a minha adolescência. Repudiando o que me prende agora serei feliz, feliz! E o Anjo da Guarda verá provada a sua incompetência. (“Soneto da Rebelião”) 69


E a persistência, depois de Ode e Elegia, prossegue em Cântico (1947-1949), gerando poemas de rara força e beleza, como este, em que ao sema da poesia combinam-se outros – mar, infância, navios: Tenho um ritmo longo demais para louvar-te, Poesia. Maior, porém, era a beira da praia de minha cidade onde, menino, inventei navios antes de tê-los visto. Maior ainda era o mar diante do qual todas as tardes eu recitava poemas, festejando-o com os olhos rasos d’água e às vezes [sorrindo de paixão, porque grande coisa é descobrir-se o mar, vê-lo existir [no mundo. Ó mar de minha infância, maior que o mar de [Homero. (“A Infância Redimida”, grifos nossos) E vamos ainda encontrá-la em Linguagem (1950-1951), Um Brasileiro em Paris (1953-1954), O Soldado Raso (1980-1988), em versos que, declarando sempre a condição do poeta, ora trazem ao seu quarto estrelas e nuvens, em metáforas siderais magníficas: Minha vida é como uma janela aberta sobre a Ásia. Professo o imaginário, e, neste rito, renasço a contemplar o inexistente ............................................................................... Imóvel ou caminhando, vejo sempre os polos (“Os Andaimes do Mundo”) 70


No quarto em que durmo, ouço o rumor de antípodas [acordados ................................................................................ Durmo no centro do universo, e minha inocência é [enorme. ................................................................................ assisto ao movimento das estrelas e à correria das [nuvens e meu espírito festeja este mundo infinito, que jamais [se iniciou e jamais terminará, este mundo de que o universo à noite contemplado [é uma poeira como um dia que chorasse nos ombros dos séculos. (“As Janelas sem Traves”, grifos nossos) e eu mesmo sou ogiva aberta aos grandes astros. (“O Alvo”, grifos nossos) Como a primeira estrela, estou sozinho e a vida é um jogo, sob a luz do mundo. (“Soneto do Jogador”, grifos nossos) Para viver, de pouco necessitas. Basta beber o mudo firmamento (A” Carta”)

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ora reafirmam sua diferença, marcada pela pertença ao inefável: Vomito a vida sobre o mar que esconde este país que toda noite cruza meu sono como a carruagem dos alucinados. ............................................................... Sinto-me estranho a todos os nativos. Venho de um lugar onde nunca estive. Quero retornar ao que não vi. Devolvam-me a paisagem inédita. Em meu rosto, a chama do desprezo te festeja ó mundo podre e belo, sob um arco-íris. Posso rir, açulando minha cosmogonia, porque não tens sentido nem te explicas nunca jogado no infinito que é a luz do nada. ........................................................................... A que país pertenço? De que céu, de que inferno me vem a nostalgia de ter visto em plena infância essas paisagens que não se encontram nas [paisagens? (“A Forma do Tempo”, grifos nossos) A tomada de consciência da condição existencial do poeta, sendo a de alguém que vai na contracorrente, vem também acompanhada de sua predileção pela noite, de sua escolha da noite como lugar de possibilidades, hora em que o espaço se abre, oferecendo hipóteses de encontros; embora seja, ao mesmo tempo, a consciência de que estas hipóteses são ilusórias, e só é real sua solidão de vidente: 72


Estás parado no mundo. És como um sol suspeito. O amor depende de um gesto ou da leitura de um [olhar. A maior glória é não saber para onde ir embora, à noite, os caminhos cresçam como [hipóteses. Não tens uma flor, uma ideia, nem sequer um [murmúrio. Estás pobre como as fontes que secaram para sempre e diante de ti eis a noite, o engano ledo e cego de um pensamento mais alto que o mais alto desejo. Paz na terra aos homens que param numa esquina como se não quisessem regressar para casa. Bem-aventurados aqueles que em pleno crepúsculo sofrem a taciturna febre dos desencontros. Que alma irmã procuras nesse cruzamento de almas? Não há almas irmãs, podes voltar para casa e dizer, redimido: nada encontrei na terra que pudesse explicar o vértice das esquinas. (“O Regresso”)

Embora consumido pelo fogo de todas as estrelas, meu coração sempre bateu no silêncio da noite dizendo que eu estava aqui, real como um sonho, pisando o esplendor das terras de ninguém.

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Sempre estive sozinho, entoando, sem paisagem, uma canção de exílio. ................................................................................ (“Horizonte Perpétuo”) Vidência que, varando a superfície do mundo, avista o

nada em anulação desta aparência e possibilidade de aparição do não mundo: Quando o barco vier, eu nele partirei liberto de existir num mundo tão sinistro. E a brisa, que é inocência, há de levar-me à treva de uma capitania onde nada existe. (“O Viajante” )

Versos cujas linhas e entrelinhas se inserem numa tradição, acusando o diálogo com o “Le Voyage”, onde o poeta das Fleurs du Mal, entediado com a circunstância, entrega o desejo de evasão ao navio que singra o mar, pilotado pelo “vieux capitaine”, e parte rumo ao desconhecido: Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons [l’ancre! Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons! …………………………………………… Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau, Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, [qu’importe? Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!

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Mas seguir a tradição não é repeti-la. Não se trata, aqui, de um simbolista decadentista, que não estamos nos fins do século XIX, e sim já a meio do século XX. Por isto, o desejo de fuga para o não mundo (já de antes instruído pelo “Vieux Capitaine”), é logo temperado com o seu oposto – a consciência de sua condição humana; embora mesmo esta condição se faça de modo específico, insubmisso ao rés do chão, já que se trata de um poeta, um poeta que caminha triturando o transitório com os pés: Sou humano. Vi o mundo à noite, as árvores que se levantavam para saudar-me, vi as correntes inquebrantáveis dos rios, os sobrados, as igrejas, os bordéis, as colinas e prossegui humano entre a terra e a água, no istmo de todas as coisas, onde o futuro não existe e o tempo esplende como uma gaivota roçando o corredor azul onde os peixes transitam. Triturando o transitório com os pés passo os dias em minha terra. (“Meditação Fluvial”)

A consciência de estar sempre entre dois polos obriga-o a trazer à pauta o oposto da solidão, em versos como estes, cintilantes de emotiva consciência e nostalgia da essência, mas nos quais se dá conta de que sua solidão é aparente, e ele pertence a toda a humanidade: 75


Sou um homem que perdeu tudo mas criou a realidade. ................................................... Meu coração está batendo sua canção de amor maior. Bate por toda a humanidade, em verdade não estou só. (“Canto Grande”) Assim sendo, a missão do poeta está encaixada – embora

de modo anômalo – no mundo humano: Operário da linguagem trabalho noite e dia e não ganho nada.

(“O Operário”) Poeta obscuro que vive em caverna ilumino o leitor com a minha lanterna. (“A Obscuridade”) Sou a testemunha incômoda que vê as coisas ocultas atrás de qualquer muralha.

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Canto pelos que não sabem que a mais simples das canções é um campo de batalha. (“Canção Inconveniente”) sou a sentinela das coisas encobertas (“A Coruja”) A flutuação pronominal, que indica os deslocamentos do sujeito, leva-o a dialogar com a própria poesia, oferecendo-se por casa onde ela se deverá instalar, porto fixo de sua errância pelo mundo:

Se a chuva mora no céu e o arrependimento na alma terás que habitar em mim como a chama na fogueira. Mora o orvalho no capim e o sangue mora nas veias. Terás que habitar em mim como o dia na paisagem. Se a valsa mora na música e o amor em toda a parte se os galos moram na aurora terás que habitar em mim.

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Mora a viagem nos navios que vão por águas sem fim. Reside o tempo nas horas e as ilhas moram nos mapas. Tu que és clara como as águas ao passarem sob as pontes e voas como os instantes nos encontros amorosos tu que passas como os autos pelos asfaltos molhados e deslizas como as folhas fulminadas pelo outono e atravessas o meu peito como o punhal da Beleza e te hospedas no vazio como os anestesiados terás que habitar em mim na moradia sem portas onde eu me consumo e gasto dando calor, vida e forma a estas palavras mortas que são as telhas e os caibros – terás que habitar em mim – de tua casa, Poesia! (“A Moradia”)

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Mas ser poeta é também tomar consciência de que poesia é linguagem, e a isto se deve o título dado a este livro, no qual a maioria dos poemas trata deste tema: E a vida, este galpão de sortilégios, deixa que eu a invente com palavras que são dragões vencidos pela mágica. (“A Vã Feitiçaria”) Neste mister, o poeta invoca imagens poderosas e metáforas ímpares, exercitando este que é um dos agentes constitutivos principais m sua poética. Metáforas sidéreas:

Abro as portas do céu e vejo Andrômeda iluminando os meus estratagemas. Respiro-me na glória de estar só enquanto a aurora nasce em meus poemas. (“Soneto Noturno”)

Nos astros leio o texto deste mundo. (“A Visão”)

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Metáforas metalinguísticas: Na beira de tudo, acima da zona onde a linguagem, isenta da visão dos objetos, só se lembra a si mesma, escondo-me, puxando as cortinas dos símbolos, para fitar um mundo sem intérpretes. (“A Invocação”) Paciência e impaciência são as duas irmãs gêmeas que passeiam de mãos dadas na praça do meu poema. (“As Duas Irmãs”) Palavra, pássaro numa relva branca! (“A Criação Poética”) Meu cão fiel, o mundo, gravitando, obedece-me, e as letras do alfabeto são minhas servas, cantam reunidas na praça de uma página branca. ...................................... Ó trabalho nascido das puras fontes do ócio, 80


rosa da inteligência no chão excrementício, Poesia é o teu nome! Respiro analogias e cavo o inexaurível tesouro da linguagem. (“Alfabeto”) Na praia de papel respiro o ar do mundo. Letras. Na ortografia vive todo o meu mistério. Tinta. O mar azul vomita algas e medusas. Signos. A sujeira do mar é meu patrimônio. Canto. (“Maré”) Ponderando o ofício de poeta, numa inversão pronominal, dialoga com a poesia, declarando, pela voz dela, sua atitude estética, na qual se inclui irônica crítica a certos equivocados extravasamentos poéticos:

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– Que queres de mim, página branca, pousada em minha mesa no dia atômico? – Só quero o teu silêncio e a tua ausência. Que não me manches com o teu amor de esperma e saliva nem tisnes a minha alvura com as lágrimas sujas de tua dor. De mim afasta as tuas secreções, o catarro glorioso e os vômitos na treva, as palavras astutas que viraram putas ou o alarido do verso que, como um besouro, sempre perturba a placidez do dia. Não quero as carnes do teu matadouro. Neste mundo imundo, sou o espaço puro, o portal da mais alta claridade. Deixa-me intocável como um lírio ou uma açucena na manhã serena. (“Reivindicação de uma Página em Branco”) E também lança respostas ao crítico que o perscruta, sem acertar o alvo, porque é alvo móvel: Sou o espelho onde os outros em mim se contemplam. Pensas que não passo de um pássaro canoro embora eu seja uma esfinge. E porque não me decifras eu te devoro. (“A um Crítico”) 82


Em 45 éramos uma legião. Hoje sou, sozinho, uma geração e ao que antes fui – se é que fui quando era a minha quimera – digo sempre não. (“A Geração de 45”) Meu excesso é rigor. Sou único e plural como o pão e a flor. (“Justificação de Tiragem”) Acusam-me de longo e torrencial quando sou tão breve e rigoroso e me cinjo sempre ao fundamental. Mas um dia um crítico (certo ou errado) vindo ao meu quintal dirá a verdade: que sou mais exato do que João Cabral. (“A Verdade Crítica”)

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Crítica extensiva aos catedráticos linguistas e filólogos: “Como sou ignorante!” – diz o poeta aos seus botões No Congresso de Linguística. “Não sei o que é significado nem o que é significante.” (“A Ignorância dos Poetas”) E que se faz coroar com uma homenagem a Camões, no quarto centenário de publicação d’ Os Lusíadas: Fui amor, fui paixão e celebrei o mundo, o vento e as ilhas infinitas. Mas hoje, neste quarto centenário, me assombra o meu destino. Linguistas e filólogos fizeram de mim uma apostila. (“Lamentação de Camões”) Em todos estes poemas, metafóricos, irônicos, metalinguísticos, sobressai a convicção, firme e íntima, que tem o poeta de ser a voz de todos os seres, e de ser esta voz – aberta, expansiva, generosa, sensível ao sagrado que há na loucura – que define sua própria identidade. E o diz, em versos categóricos: E troco o bolor do dia pelo silêncio guardado na boca aberta dos doidos. 84


.......................................... Só a minha alma é inegociável. Não a dou por dinheiro nenhum. (“Barganha”) e em outras, ternamente líricos: Dorme, oceano. Minha canção te embala na treva lacerada pelas constelações. Dorme, doce terra impura. Minha canção te cinge, leve gesto de amor na escuridão. Dorme, vento que suspende as árvores no ar. Durmam até as pedras repousadas e felizes em seu sono de pedra. (“Soneto de Ninar”, grifos nossos) Por isto é assim mesmo que ele se intitula – o porta-voz de todas as coisas que são mudas. E, ao enumerar estas coisas, no mesmo passo enumera os temas-semas recorrentes que obram o poético: 85


Falo em nome da noite que traz a sombra e a morte e o silêncio final. Em nome do oceano advirto os navios que passam no horizonte. À folhagem fremente falo em nome do vento e de suas rajadas. Converso com as pedras. As montanhas caminham imitando os ciganos. Falo em nome da água: da água branca das fontes e da água negra dos mangues. Falo em nome de tudo: da terra maternal e dos céus transfigurados. A estrelas se curvam para ouvir o que digo na noite iluminada. Mesmo quando estou mudo ouço em mim a torrente da voz inestancável.

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Em nome dos amantes falo de amor na treva guiando a mão errante. Guiando a mão que encontra a água de um mar escuro na concha entreaberta. Sou apenas dois lábios que se abrem na noite ferida pelo vento. (“O Porta-Voz”, grifos nossos) Num arranjo coesivo, faz convergir, num único poema, em torno ao tema do poeta e da poesia, diversos temas-semas (morte, navio, bicho, noite, estrelas), sintaticamente ordenados para enunciação de uma convicção poética, na qual transparece nitidamente o caráter e função filosóficos da poesia de Lêdo Ivo – a convicção de que a poesia está além dos estratagemas artificiosos de certos poetas rasos, porque ela, a poesia, provém de uma profundidade sobre a qual não têm poder as deliberações de dicionários. Um poema em que se subentende o diálogo com aqueles que não entendem a recusa deste poeta em deixar-se prender aos espartilhos de sejam quais forem os programas que definem as escolas literárias: Os poetas são coveiros que enterram palavras e se contentam com algumas migalhas do dicionário. Criaturas frugais, não admitem que as palavras [brilhem como luzes de navios vistas da praia branca da página, da praia banal da [vida. 87


Exigem que elas tenham a submissão dos bichos [domados de um circo ou andem trajadas com o burel dos franciscanos. Mas na noite frígida varrida pelas constelações as palavras banidas se levantam de suas tumbas e, no espaço reservado às fulgurações perpétuas, compõem o grande poema do universo. (“As Palavras Banidas”, grifos nossos) Assim reflete Lêdo Ivo sobre o ser e o destino do poeta, e sobre a natureza e função da poesia. E o poeta que reflete é um caminhante, um caminhante sibilino oculto por trás do poeta explicitado, como tema-sema, na reflexão.

A Noite Quando estudei Os Lusíadas, fiz um levantamento quantitativo dos núcleos semânticos que se destacavam na sua trama poética, sendo este um dos elementos que permitiriam determinar quais os temas predominantes na construção do seu sentido. Com a Poesia Completa de Lêdo Ivo, ainda não fiz o cômputo numérico das incidências de seus temas recorrentes principais, e por isto, quanto a este tópico, não posso fazer uma afirmação definitiva. Entretanto, até onde observei, pareceme que, se há um tema-sema predominante, não só em termos valorativos e intensivos, mas também quantitativos e extensivos, este será o da noite. Incluindo não apenas o sintagma em que se explicita, mas também os seus correlatos – luz e treva, crepúsculo, 88


sono e sonho – e o dia, como seu oposto – a noite intitula três dos livros – Ode à Noite, A Noite Misteriosa e O Rumor da Noite; dois subtítulos – “A Visita da Noite” (em A Noite Misteriosa) e “Noturno Romano” (em O Rumor da Noite); além de vários poemas desta Poesia Completa. Já antes de Ode ao Crepúsculo, em Ode e Elegia, o poeta declara sua predileção pela noite: cobre-me, ó noite, como se cobrem os pés silenciosos [de um morto prestes à grande viagem ................................................................................ Quero a noite Como os grandes poetas de antigamente queriam a [fúria das epopeias. (“Balada à Bruma”) E é mesmo uma ode dedicada à noite que intitula um livro – Ode à Noite (1946) – contendo um único poema longo, de mesmo título, em cujo arremate se acham dois versos com ressonâncias de Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos: Os fundamentos do meu ser, ao vento, são nuvens procurando um sul incerto onde eu repousaria em pensamento no sono de mim mesmo, e em mim desperto. .................................................................... Eu te saúdo, Noite – concha aberta ao murmúrio do sono... .................................................................... Louvo-te, Noite, sósia da aventura que às estrelas se entrega .................................................................... 89


Louvo-te, Noite, que manténs despertos os sentidos do poeta entregue ao sono do esplendor sufocado pelos rastros da emigrada canção que, no abandono, inventa as perspectivas dos desertos e cria as mutações dos grandes astros.

A noite aqui toma diversos feitios e dimensões, desde as alturas sidéreas à rastejante baixeza demasiado humana, como neste poema de Magias, que aliás se intitula “Pacto ao Cair da Noite”: A noite escorre nas sarjetas seu rio de prece e de escarro. Os sinais de trânsito são, no ar sem pássaros, espantalhos. As taciturnas potestades já traçaram nossos destinos: morreremos ambos à noite. Amanhã seremos divinos. E é em A Noite Misteriosa (1973-1982) que o poeta, numa apresentação introdutória aos poemas, declara expressamente que “o mistério da Noite, convertida em linguagem, cercou o seu universo de homem e de artista”. Nesta introdução, que é também um poema, diversos temas-semas se reúnem para compor o universo de entresueño, outro lado da existência, reino de mistério ao qual o poeta pertence: A noite é misteriosa. No horizonte dos corpos estendidos, os sonhos se levantam como 90


pássaros. Os jatos alteram o desenho rigoroso das constelações. Bichos saídos das profundezas da terra e das florestas perturbam o silêncio planetário. Luzes esparsas selam a insônia de criaturas perseguidas pelos terrores e obsessões. O desejo dos amantes se une ao rumor das chuvas inesperadas. Emissário da ferrugem e das avarias que antecipam a destruição e a morte, o vento agride as casas e os jardins – e, na escuridão dos quartos, os móveis e objetos sorvem a memória do mundo. Embora inserida na ordem do universo, e sendo o princípio e o fim, a Noite não se rende à rotina da vida. Nesse território propício aos litígios e sortilégios, e que fala um idioma estrangeiro, o poeta se sente dividido e inumerável. Sonhando e vendose sonhar, ao mesmo tempo desperto e dormindo, ele vagueia na fronteira onde sono e vigília se aliam para saquear o espólio deixado pelo dia, que é a grande morada dos homens. Eu e outro, voz de si mesmo e dos que não têm voz, o poeta se interroga e se responde, e, visitante da Noite, é visitado por algo ou alguém habituado a atravessar portas fechadas. Esta coleção de poemas pretende exprimir o mistério da Noite que, convertida em linguagem, cercou o meu universo de homem e de artista. (“A Visita da Noite”, grifos nossos) Em outro poema do mesmo livro, reincide a imagem da noite como lugar dos sonhos e mistérios:

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O portão fica aberto o dia inteiro mas à noite eu mesmo vou fechá-lo. Não espero nenhum visitante noturno a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos. A noite é tão silenciosa que me faz escutar o nascimento dos mananciais nas florestas. Minha cama branca como a via láctea é breve para mim na noite negra. ....................................................................... No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo. ..................................................................... Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha a [porta da noite. Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir [sozinho protegido pelo arame farpado que cerca as minhas [terras e pelos meus cães que sonham de olhos abertos. À noite, uma simples aragem destrói os muros dos [homens. Embora o meu portão vá amanhecer fechado sei que alguém o abriu, no silêncio da noite, e assistiu no escuro ao meu sono inquieto. (“O Portão”, grifos nossos)

A associação da noite ao dia cria jogos de oposições que se diriam incoerentes, não houvesse nelas um sentido mais fundo, só achado no poético. Vê-se, por exemplo, esta declaração de noctívago:

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Quem dorme perde a noite. Foge da eternidade, candelabro cativo na escuridão do céu. ...................................... Quem dorme perde tudo que o acaso deposita na mesa do universo. (“Perdas e Danos”) Nada esperes da morte: é uma mão sobre o trinco de qualquer porta. (“Embalo”) que se contradiz com esta outra, de amor à luz apolínea: O dia me devolve o horizonte que a noite apaga. Eis porque amo o sol que, toda manhã, faz pousar em meus olhos os meus pertences: árvores, água e montanha. (“Devolução”, grifos nossos) Mas logo um soneto, de Crepúsculo Civil (1988-1990), onde a própria claridade se nega, afirmando-se um sol negro – que nos remete ao “Soleil noir de la Mélancolie” do Prince D’ Aquitaine, poeta da noite, Gérard de Nerval – e o dia, repleto de claridade, se faz treva, luz que ofusca: 93


A minha claridade é noite escura, sol negro desviado por um muro branco de cal, clarão que apaga o sol, luz que me ofusca, sendo treva e luz. Às estrelas reclamo que iluminem o papel branco do meu longo dia, a grafite que suja o alvo muro do sol que, sendo noite, me alumia. Quanto mais luz procuro, mais obscuro me torno em pleno dia, e mais me assombram as sombras que se juntam no arrebol. Recorro à noite se quero mostrar as fraturas expostas do meu ser. E se quero esconder-me, busco o sol. (“Claridade”, grifos nossos) No mesmo livro, o tema da noite como lugar de refúgio do poeta mistura-se ao da noite como reino da morte e das coisas deterioradas: Pertenço à sombra e ao sonho, ao lado escuro, e nas ranhuras da pedra escondo o meu desejo. Nas folhas apodrecidas, na água esverdeada já comprometida com a morte, nos miasmas escondo o que sonhei. E o dia se levanta acima destas pequenas coisas condenadas, do lodo amarelo e do musgo deteriorado, e cobre com a sua luz a água estagnada 94


e os seres rastejantes que habitam as cavernas, e me obriga a sair do meu covil e a abandonar a noite e a desolação que me nutrem e protegem da razão ilusória sustentada pelo sol. Saio e transformo a claridade em sombra. (“O Animal Enxotado”)

Ainda em Crepúsculo Civil, um poema longo, de versos

curtos, intitulado “Noturno”, faz o inventário e elogio das criaturas que na Cinelândia compõem a paisagem noturna urbana: Bendito é o crepúsculo! Permite que andem no Passeio Público anões e corcundas, os seres bizarros que o início da noite vomita no mundo. Quando a noite cai não se sentirá um estranho no ninho quem fala sozinho e abre sua boca para o sonho rouco dos mansos e loucos.

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Que sejam benditos todos os que passam pela Cinelândia: escroques e putas, bêbados, lunáticos, e os que, de repente, somem entre as árvores. .................................. Que sejas bendita, noite das cadelas que não se saciam, covil do assassino, pátria do mendigo que busca o banquete das latas de lixo. Noite das insônias, dos sonhos nefastos e dos pederastas que rondam as estátuas desnudas das praças, branca e enluarada noite das desgraças. Ó noite balsâmica que embriaga os dementes e irrita os fanchonos, foz das solidões, feira do abandono, noite dos fedores e alucinações. ...............................

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Noite putrefata das valas e esgotos e coitos perversos, das pias que pingam nas escuridões, noite dos ladrões e das maresias. Noite dos suicidas e dos derrotados, noite de quem perde no jogo da vida. Que a escuridão para sempre esconda todos os vencidos. Tenha Deus piedade dos velhos sozinhos que sonham sentados nos bancos das praças. Seus sonhos são moscas que pousam alegres na merda da vida. Noite de amoníaco, dos brancos ladrilhos dos mictórios públicos. Numa lanchonete uma velha puta cercada de espelhos mastiga uma pizza.

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Noite dos drogados, da viagem negra por entre relâmpagos ............................... Misericordioso escuro que apaga as manchas do mundo. Na igreja fechada Deus está sozinho Como um vagabundo Num banco de praça. (“Noturno”) E neste outro, de Curral de Peixe (1991-1995), dedicado também a um instante vivido ao cair da noite, no mesmo bairro do Rio de Janeiro, a noite se contamina da impureza humana de tal modo que o poeta, ao caminhar, rasteja, respirando a maresia, num cenário que nos faz lembrar o Cesário de “O Sentimento de um Ocidental”: A noite cai do céu na Cinelândia. Meu cansaço rasteja na calçada entre escarros e pontas de cigarro e secretárias que saem do trabalho. Na grande procissão crepuscular o céu roxo me cobre como um pálio e meu espanto mudo de espantalho se casa ao plúmbeo espanto das estátuas.

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Entre putas, pivetes e pilantras, fanchonos, vagabundos e viados respiro estupefato a maresia. A noite triunfante enxota o dia. Troca a luz pela sombra, e só nos deixa uma pomba arrulhando na sarjeta. (“O Anoitecer na Cinelândia”, grifos nossos) Ainda no mesmo livro, a noite combina-se ao tema-sema do navio, iluminados todos pela espera da eternidade: A noite vai cair nos tombadilhos úmidos dos navios ancorados. Este dia vai voar. Vamos esperar que venha a eternidade. (“O Voo”, grifos nossos) No penúltimo livro, O Rumor da Noite, a noite vem como emissária do mistério, A noite prematura arrebatada ao sol volta mais uma vez a espalhar o dissídio entre o rumor da terra e o sigilo do céu na sombra que restaura o mistério do mundo. (“Noturno”) 99


E no último, Plenilúnio, à noite se associa o tema da vida como sonho dentro dum sonho: As montanhas caminham na paisagem e me rodeiam quando estou dormindo. E quando estou dormindo sonho com as montanhas. Tento alcançá-las, mas as minhas mãos também sonham. Tudo em mim sonha quando estou dormindo o meu sono de pedra. Sonho que as montanhas também estão sonhando. Sonho que as montanhas sonham comigo quando estão sonhando. Sou o sonho das montanhas. E quando acordo volto a sonhar e me transformo em montanha. (“As Montanhas”) Observe-se, desde aqui, de que modo os temas-semas recorrentes se alternam em torno deste predominante. Inversamente, observe-se que em torno de outros temas-semas a noite se instala, fornecendo-se assim uma trama semântica, na qual os núcleos funcionam em mútua relação. A

Morte

Outro tema recorrente que funciona como núcleo semântico é a morte, que se instaura no texto através do próprio substantivo, mas também de outros sintagmas que lhe são correlatos. Difícil dizer qual dos dois temas-semas tem maior 100


importância – a noite ou a morte. Dei primazia à noite tendo em vista os três livros que ela intitula (Ode à Noite, A Noite Misteriosa, O Rumor da Noite), aos quais se acrescentam diversos poemas. Entretanto, a morte, embora não seja título de livro, intitula vários poemas, e, além disto, intromete-se em inúmeros poemas dedicados a outros temas, associando-se estreitamente à noite, ao mar corrosivo, aos bichos roedores. E é abordada sob diferentes níveis e funções, desde a empírica à metafórica. Faz-se presente desde As Imaginações, em poemas que, evocando reminiscências, usam metáforas cujo humor negro faz lembrar o de António Nobre: Em cada cidade um cemitério um túmulo para cada residência .................................................. Hoje é o dia dos desacordados, dos sonâmbulos e [dos fantásticos. ................................................. São os hóspedes de um branco hotel que perturba os floristas. (“O Branco Hotel”, grifos nossos)

Quando eu estiver morrendo, podem ter certeza, uma capa azul, de um azul profundo, envolverá meu corpo da cabeça aos pés. (“A Capa”, grifos nossos)

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Em Linguagem, um belo soneto exemplifica a incidência da morte, que, nas desusadas metáforas destacadas, funciona como agente de instauração da eternidade, na qual o aquém fica além, e o além aquém / e o tempo todo cabe num só dia: A mão da morte pousa no meu ombro onde uma cicatriz de luz transborda. E eu, que sou transitório, vivo o assombro da rotina do eterno que me aborda. A esse peso na espádua, minha vida sente-se enfim total e completada; uma parafernália redimida se dissipa, a fronteira atravessada. Velha espiã da vida, a morte vem Para levar-me à doce travessia onde o aquém fica além, e o além aquém, e o tempo todo cabe num só dia. Ó Ator invisível, vem depressa para encenar o ato final da peça! (“Soneto da Comparsaria”, grifos nossos) Ainda em Linguagem, a morte intitula um soneto e produz outra metáfora insólita: Levado para longe pelo impulso da vida, vi-me frente à rosa breve da morte que cantava no meu pulso qual se, morto, me fosse a terra leve. 102


Magias nos dá, num poema intitulado “Notícia do Sábado Magro”, uma imagem de brevidade da noite, numa espécie de canto dionisíaco, em que o baile, como no “Fantômes”, de Victor Hugo, é a véspera da morte. Outra incidência, portanto, dos dois temas-semas associados: Bailemos todos, que a noite dura apenas um suspiro, e só temos um minuto para gastar nossas vidas. Uma nova fantasia à luz purpúrea se talha. No escuro já se costura nossa futura mortalha. Em “Achamento e Duração dos Mortos”, poema de Estação Central, diversos sintagmas se alternam para dizer da sobrevivência do indivíduo morto naqueles que o sepultam: Os defuntos vivem fora de seus ossos, ocultos nas lágrimas dos vivos que choram ou mesmo no orvalho do ramo de flor. ................................. Fechado o ataúde, seguras as alças, o morto se evade.

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Em verdade um morto nunca é enterrado. Volta com os vivos de seu próprio enterro, deixando na cova o pó de novembro. Símile deste poema é este outro, de Plenilúnio: Os poetas são coveiros que enterram palavras e se contentam com algumas migalhas do dicionário. Criaturas frugais, não admitem que as palavras [brilhem como luzes de navios vistas da praia branca da página, da praia banal da [vida. Exigem que elas tenham a submissão dos bichos [domados de um circo ou andem trajadas com o burel dos franciscanos. Mas na noite frígida varrida pelas constelações as palavras banidas se levantam de suas tumbas e, no espaço reservado às fulgurações perpétuas, compõem o grande poema do universo. (“As Palavras Banidas”) Em A Noite Misteriosa, o poeta, contemplando um morto, inquire a Morte, que escrita com maiúscula ganha eminência, mas ele sobre ela triunfa, na indagação que lhe lança, provocação na qual se afirma a crença numa ressurreição:

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Na igreja, abre-se de novo o ataúde e os acompanhantes tornam a contemplar o rosto do [defunto. Ó Morte, onde está a tua vitória? Toda sepultura é um berço no chão do universo. Como a aragem que faz tremer a relva foste apenas um instante. Ninguém te encontrará quando voltar a renascer entre as estrelas. (“Pela Última Vez”) Em outro do mesmo livro, vê-se uma imagem de morte na decrepitude duma moeda carcomida por diversos agentes associados em metáforas que unem o tema dos astros (marcha das constelações) ao do vento e ao da ferrugem, todos indicativos do tempo, agente-mor da morte, da transformação: Esta moeda não vale mais nada. Não adiantou tê-la guardado durante tantos anos, [escondendo-a da marcha das constelações e do [avanço da hera que cobriu o muro de pedra. .......................................................................... O vento da noite entrou pelas frinchas das portas, [janelas e telhas quebradas e ofendeu a efígie de [César. A ferrugem enegreceu as armas do Estado. (“A Moeda Enferrujada”)

Observemos também, em Crepúsculo Civil, esta sugestiva imagem, composta de sintagmas (cavalo, cascos, relincho, rabo, moscas), cuja articulação se destina à identificação do cavalo 105


impaciente, à espera do cavaleiro para seguir seu galope, com a morte que nos aguarda para levar-nos à viagem sem volta: Como o cavalo que relincha impaciente e bate os cascos diante da estalagem e com o rabo fustiga as moscas que o importunam assim a morte está sempre à nossa espera. (“Recomeço”)

Em Curral de Peixe, uma imagem da morte como transcendência, na Serpente como símbolo: Eu estava além da morte onde a própria morte é vida a sinuosa serpente que imóvel ao sol cintila (“Uma Chuva de Alegria”, grifos nossos) E outra habilidosa composição, em que vida, vento e treva se sucedem, até concluírem-se na morte, que é afirmada nas três estrofes (pela brevidade que anula a vida, pela treva que é seu destino, pelo amargor do fruto), e conclui a última mordendo “com seu único dente”, excelente metáfora para o caráter decisivo da morte:

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Toda vida é breve por mais que ela dure entre a areia e o vento. ................................... Toda vida é treva por mais que ilumine a luz de cem velas. Todo fruto é amargo: morde-o a morte com seu único dente. (“Duração”, grifos nossos)

Em outro poema, também de Curral de Peixe, o vento comparece como agente emissário da morte, companhia do poeta, que o segue “como um cão”. Na tarde de verão a morte me segue como um cão. ..................... a minha própria vida de mim extenuada me deixará um dia sem se despedir e se irá, levada pelo vento leve. E em minha companhia só ficará a morte, sombra mudada em luz 107


na tarde de verão, sol esquecido no chão. (“Na Tarde de Verão”, grifos nossos) E o tema da vida como sonho, que vimos associado à noite, aqui se associa também à morte: Quem vive sonha que vive. Quem morre sonha que morre. (“Maré Seca”, grifos nossos) Ainda em Curral de Peixe, podemos observar a incidência de vários núcleos – morte, vida, nuvem, céu, vento, pássaro, navio – num límpido soneto, que se intitula “O Soneto da Morte”: A morte é a nuvem negra no horizonte, a lúrida promessa no céu claro que guarda a escuridão, como um preclaro segredo armazenado pelo instante. A morte vem e voa, como um pássaro estonteado pelo meio-dia, flecha partida de onde nada havia senão a luz que amortalhava o mar. A morte vai na frente, como a proa do navio que vence o nevoeiro rumo ao porto final. A morte voa 108


e, vento exposto ao vento e ao sol poente, quer ser vida e é morte novamente, e silêncio do porto derradeiro. Como já vimos, no poema “As Palavras Banidas”, a presença da morte se reafirma até Plenilúnio, o último dos livros que compõem esta Poesia Completa. E em Plenilúnio ela surge numa reflexão do poeta ao cruzar com uma formiga, desenvolvida no penúltimo poema do livro: Deixo de pisar a formiga negra que avança numa saliência da estrada em declive e me envolve a percepção de que consegui evitar a morte de Deus, em um de seus disfarces. (“Uma Busca Incessante”, grifos nossos) Encerremos, porém, este item com um poema de Curral de Peixe, no qual o poeta se depara com a morte numa taverna em Londres, e tem com ela um diálogo irônico: O melhor lugar para se pensar sobre a vida eterna é uma taverna. Uma noite em Londres estava eu sozinho tomando cerveja no balcão de um pub entre putas e bêbados e me perguntei: 109


serei imortal ou tudo não passa de um sonho carnal? Subirei ao céu suntuosamente mudado em essência ou hei de morrer como um pobre verme sem deixar semente? Foi quando senti a Morte a mirar-me. E ouvi sua voz dizer-me num tom cheio de piedade: a tua pergunta é a mesma de Deus que também não sabe se é eterno ou efêmero. E não tem resposta. Esquece a promessa do nada e do céu. Cala-te. Contenta-te com o teu fardão e o teu mausoléu. (“A Resposta da Morte”)

O Mar O tema do mar, em sua recorrência, foi, como já disse, o primeiro que sobressaiu em minha leitura, parecendo de início ser predominante, embora depois perdendo relevo em relação a 110


outros, como a noite, a morte, o vento, a busca do inefável. Um estudo teria que ser feito, repito, de contagem dos temas-semas, em sua evolução ao longo dos vinte e três livros que compõem esta Poesia Completa. Não posso afirmar com certeza, mas tive, por exemplo, a impressão de que a caminhada do poeta deslocou-se do mar para o bosque, o que, no entanto, não significa um desaparecimento da presença marinha, que, pelo contrário, é sempre relevante em toda a obra. Diversos títulos são dedicados ao mar, seja intitulando livros (Mar Oceano, Curral de Peixe); ou partes de livros (“Os Terraços do Mar”); ou poemas (“Maré”, “O Mar Escarlate”), para dar alguns exemplos. Já em As Imaginações vamos encontrar imagens marítimas associadas ao tema do feminino, aqui mitificado, numa fusão de mulher e mar através das ondinas:

Sempre aparecia a moça morta no veleiro inglês a dizer I love you a mim, aos mortos, aos peixes. Do meu mundo desabado no mar por demais fantástico eu era amado sem medo. Jamais podia explicar a louca paixão marítima que era mistério, tufão. Sete navios afundados à espera do fim do mundo eram nossas residências. Éramos peixes, enfim! Tínhamos noivas ondinas. .......................................... (“Os Hóspedes”) 111


Em Ode e Elegia, encontramos esta outra associação de mulher e mar: A perdição maior de minha face se inclina ante teu sexo que sugere uma rica e exemplar concha marinha, coral em linhas ásperas e largas. (“Ode”, grifos nossos)

Em Cântico, ao tema-sema do mar associam-se os da infância e da poesia: Tenho um ritmo longo demais para louvar-te, Poesia. Maior, porém, era a beira da praia de minha cidade onde, menino, inventei navios antes de tê-los visto. Maior ainda era o mar diante do qual todas as tardes eu recitava poemas, festejando-o com os olhos rasos d’água e às vezes [sorrindo de paixão, porque grande coisa é descobrir-se o mar, vê-lo [existir no mundo. Ó mar de minha infância, maior que o mar de [Homero. (“A Infância Redimida”, grifos nossos)

No mesmo livro, o mar se presta, com a rosa, à enunciação do inefável incognoscível: 112


Jamais veremos o mar que o mar oculta. Seremos sempre cegos à rosa que está na rosa. (“A Linha n’Água”) E ainda está neste mesmo livro um soneto que, do meu ponto de vista, além de ser um dos mais poéticos, e mais bem resolvidos, é o mais enigmático de todos os seus poemas. E nele vemos associarem-se mar, morte, amor, navio, todos sugerindo o mistério do existente inexistente: Se alguém me espera no galpão do mar, que me ame antes que eu parta e o cumprimente. Ter a morte ao meu lado, ou frente a frente, fora melhor que ter de o esperar. Partiria de mim, sem me voltar, ao descobrir-me nesse amor ardente que alguém que não me aguarda, suavemente haveria de dar-me, ao me encontrar. Sem que nos conhecêssemos, tivemos esse encontro marcado junto ao mar, no convés de um navio que partisse. Mesmo que em tempo algum nos encontremos, tenho os olhos eternos de fitar seu perfil tão distante, se existisse. (“Soneto do Cais Pharoux”, grifos nossos)

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De Linguagem, citemos o “Soneto a uma Fotografia do Mar”, em cujo primeiro terceto ressoam versos da Mensagem pessoana: E eu que nada te dei, ó mar, a quilha de minha alma encaminho aos teus países para que tuas águas banhem a ilha dos meus sonhos maiores e felizes. Palácio n’água, como o eterno agora, ela me espelhará nas ondas mundas e o século será menos que a hora em teu cenário de horas tão profundas. Ó mar enfeitiçado, dá à minha alma o que só tens nas verdes ilhas: calma. ................................................................ De Um Brasileiro em Paris, este, em que o mar é declarado patrimônio poético do poeta: O mar azul vomita algas e medusas. Signos. A sujeira do mar é meu patrimônio. Canto. (“Maré”)

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Em Magias, uma associação de mar, vento e navios: Em paisagem de cálcio o sol seco ilumina o mar lacônico. O vento rói na praia vértebras de navios sem casco ou nome. (“A Lacraia”, grifos nossos) Em Estação Central, um mar eterno e interno na “Confidência do Sonhador a seu Filho no Berço”: Sou um homem que sonha, cheio de mitologias e de hieróglifos. E um mar eterno lava, todas as noites, as docas da minha alma.

Mas a principal função do mar é de agente da corrosão e destruição das formas que compõem o mundo humano. Em Finisterra, por exemplo, diversos semas se associam na sugestão duma atmosfera marítima evocativa de um tempo histórico desaparecido, mas presente em seus vestígios, enquanto a maresia se impõe ao mundo patrimonial instalado no cartório: Nos velhos livros do cartório que o vento do mar e as traças roem o tempo lambe Porto Calvo. .........................................................

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Neste cartório virado para o mar ontem e hoje são letras de uma mesma escritura de compra e venda e berço e túmulo têm igual forma no mormaço que faz bocejarem as figuras desta guerra interminável. Os canhões enferrujados voltarão a atirar num silêncio de espera, armado como um arco-íris entre as nuvens do céu e as baratas da terra. Na trégua que não guarda o nome dos mortos os bois mugem para as naus flamengas que levam pau-brasil e caixas de açúcar. (“A Guerra Interminável”, grifos nossos) O mesmo tema se repete num poema dedicado a Maceió, sua terra natal. Neste, a ação corrosiva do mar, que o associa à destruição e morte, é exposta na imagem que define a maresia como mortalha: O vento do mar rói as casas e os homens. Do nascimento à morte, os que moram aqui andam sempre cobertos por leve mortalha de mormaço e salsugem. Os dentes do mar mordem, dia e noite, os que não procuraram esconder-se no ventre dos navios e se deixam sugar por um sol de areia. ...................................................................... Foi aqui que nasci, onde a luz do farol cega a noite dos homens e desbota as corujas. ......................................................................... 116


Mesmo os que se amam nesta terra de ódios são sempre separados pela brisa que semeia a insônia nas lacraias e adultera a fretagem dos navios. Este é o meu lugar, entranhado em meu sangue como a lama no fundo da noite lacustre. E por mais que me afaste, estarei sempre aqui e serei este vento e a luz do farol, e minha morte vive na cioba encurralada. (“Planta de Maceió”, grifos nossos)

O mar ressurge, associado a Maceió, e acompanhado de vários temas-semas, em Mar Oceano: Quando saí de Maceió, fechei a porta do mar e enxotei os navios que insistiam em seguir-me. Tive de aninhar o vento nos corredores das casas brancas que guardam lacraias. Mas o mar me acompanhou até nos sonhos, igual ao sol azul que sustenta o mormaço. O vento veio voando e era um bando de pássaros. A chuva de minha infância continua caindo com o seu séquito de tanajuras e caranguejos. Até as dunas caminham ao meu encontro e me rodeiam, exigindo que eu devolva a chave de areia e o oceano roubado. (“O Ladrão”, grifos nossos)

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Veja-se, ainda em Mar Oceano, de que modo curioso alguns temas-semas (caminho, vida, tarde, eternidade) se combinam ao mar. A vida, que caminha ao lado do poeta, cheira a mar, numa tarde tépida que sugere ao poeta, em seu caminho, a eternidade: Caminha a vida ao meu lado com o seu odor marinho, ardiloso sol da tarde que me aquece como se fosse a própria eternidade surgindo no meu caminho. (“Pássaro Predatório”, grifos nossos)

Em Curral de Peixe, o mar surge associado à perda, ao naufrágio, mas também à eternidade: Qualquer vida é naufrágio e perdimento. Quando chegamos ao fim da restinga encontramos apenas mar e vento. Onde estão nossos sonhos? Um errante raio de sol sumiu entre a folhagem, dentro de nós o dia fez-se pálido. Cercado pela luz da madrugada e de mim rodeado, estou sozinho entre as grutas da terra e a ira do mar. 118


Última luz da derradeira festa, crepita na manhã a eternidade. E a eternidade é tudo o que me resta.

(“A Crepitação”, grifos nossos)

E em Plenilúnio, este outro exemplo da ação corrosiva do mar sobre o mundo humano: O mundo é desordem num curral de estrelas. Porta arrebentada pela maresia. (“A Hora do Recreio”, grifos nossos)

Os Bichos Uma rica fauna assinala o caminho do poeta através das paisagens, sejam elas exteriores ou interiores, diurnas ou noturnas. Em termos de análise poética, dizer destes variados encontros que a caminhada lhe oferece é o mesmo que dizer da frequência numerosa com que o tema-sema dos bichos se reitera no texto. Vertebrados e invertebrados, domésticos e ferozes, solitários e gregários, alados ou rastejantes, os bichos vão surgindo e ressurgindo, e a todos o caminhante lança o seu olhar, por vezes fraterno, solidariamente compassivo, e sempre meditativo, interrogativo, neles discernindo o destino universal de todas as criaturas. 119


Enumerar todo o cortejo reclamaria um mais exaustivo trabalho, e decerto alguns terão sido esquecidos, mas contei, por enquanto, 34 espécies de bichos mencionados, e muitas vezes reiterados, em incidências que para algumas espécies são mais frequentes, e para outras, mais escassas. Neste Éden, encontramse a serpente, a raposa, a coruja, a formiga, o pássaro, o morcego, o lobo, o gavião, o cavalo, o jumento, a lagartixa, o corvo, a borboleta, o gavião, o cão, o esquilo, a tartaruga, o sapo, o rato, o ganso, o caranguejo, a caranguejeira, a lacraia, o peixe, o besouro, o caracol, o cupim, a larva, o verme; e variantes, como a tanajura (da formiga) e o goiamum (do caranguejo); além de um bicho sem nome, que espreita o poeta em alguma curva do caminho: Era o uivo de um bicho que sempre me espreitou. E aquele dia era insensato como qualquer outro, dividido entre o vento e as folhas amarelas. (“O Primeiro Dia do Ano”, grifos nossos)

E isto sem levarmos em conta as designações genéricas e imensuráveis que são sugeridas em expressões como “roedores” ou “feros bichos amazônicos que não viajaram na arca de Noé”. E se lembramos que esta poesia traduz o mundo em linguagem, veremos despontarem as intermitências como signos de um percurso. Alguns sobressaem pela maior frequência; outros, pela força imagística que deles emana. E quase todos desempenham variadas funções, ora de ente observado, ora de signo metafórico, ora de correlativo objetivo de um conteúdo subjetivo do poeta. A formiga, em sua tenacidade humilde e operosa:

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Ficamos sozinhos como duas formigas entre dois caminhos – cada uma conduzindo, como um estandarte, O esplendor de uma folha, uma obscura farinha. (“O Intervalo”) A forma tem a forma de uma formiga, que vai pelo mundo carregando o estandarte verde de sua poupança. (“O Estandarte da Forma”) Formigas caminham na grama orvalhada. (“A Luz do Dia”) Entre o terror e o telestar e a formiga que sobe a escadaria do Ministério da [Fazenda sinais luminosos se formam. (“Finisterra”, grifos nossos) Deixo de pisar a formiga negra que avança numa saliência da estrada em declive e me envolve a percepção de que consegui evitar a morte de Deus, em um de seus disfarces. (“Uma Busca Incessante”, grifos nossos) 121


Lá vai a formiga perdida no campo no imenso universo de bosques e grama no verde oceano de folhas e troncos. Ela vai sozinha sem ninguém que a guie nos sulcos e ramos. Pobre formiguinha obrigada a andar num mundo tão grande! Rica formiguinha errante e segura. Por montes e vales troncos e barrancos cercas e muros ela já aprendeu que tudo é caminho. Indo no chão duro ela também sabe que hoje é o futuro. Formiga perdida e achada no campo. (“A Formiga”, grifos nossos) O pássaro, que se destaca entre todos, pela amplitude de suas funções: Um pássaro abre as asas, estendendo a sombra do universo em minha vida. 122


E as páginas do céu, quando se abrem, deixam ver este pássaro fugido da primeira paisagem desenhada em minha infância anterior aos pássaros. (“Domínio de Pássaro”, grifos nossos) Desabo em ti como um bando de pássaros. (“As Iluminações”) O dia voa como um pássaro e os pássaros voam como os dias num movimento perpétuo. Os dias voam e são pássaros. As belas imagens do mundo emigram levadas pelas águas. Onde estou, a horrível plumagem da morte não se atreve a cobrir-me. No dia inumerável os sonhos voam como pássaros. (“Privilégio”) Pela primeira vez vejo este pássaro preto e branco que só come formigas. Ele não armará seu ninho no meu bosque. Pertence à linhagem dos seres migratórios. E quem procura viver em lugar estrangeiro termina achando a morte. (“O Pássaro Novo”, grifos nossos) 123


Eis enfim o verão: um pássaro pousado na minha mão. .................................... E torna a primavera. Devolve-me a quimera de ser o que eu era antes do verão, do outono e do inverno e do pássaro eterno pousado em minha mão. (“As Estações”, grifos nossos) Agora aprendi: toda a eternidade cabe num só voo de um único pássaro. (“Mormaço”, grifos nossos) O cavalo, sempre imerso em mistério: Junto ao riacho congelado um cavalo imóvel espera a noite esplêndida. Procuro um lugar. E caminho na neve como um estrangeiro. (“Os Passos na Neve”, grifos nossos) 124


E piso na bosta que os cavalos legam à glória da Noite. (“A Noite no Jardim”, grifos nossos) Como o cavalo que relincha impaciente e bate os cascos diante da estalagem e com o rabo fustiga as moscas que o importunam assim a morte está sempre à nossa espera. (“Recomeço”) Era um cavalo negro junto ao portão postado. A ninguém pertencia e a ninguém esperava. De que pasto viera ou que vento o trouxera por montes e planícies ninguém ninguém sabia. Os cascos impacientes feriam o chão frio de onde a noite subia para o céu estrelado .................................. Era um cavalo negro como a noite mais negra: ..................................... Seu relincho se alçava no silêncio mais negro que sagra a madrugada ................................... 125


Na noite campesina de pão e formigueiro e de arames farpados era um cavalo negro. Mais negro do que a morte quando ela se entremostra com suas crinas negras de cavalo irritado e seu cheiro de bosta. Mas se a ninguém queria e a ninguém esperava e de campo sabido não era originário por que estava ali, negro cavalo negro, junto ao portão postado? (“O Cavalo Negro”)

O cão, que ora é um ente observado, ora exerce função metafórica: Menino, eu caminhava ao lado de minha eternidade e de sua ferida gotejava a morte. Na minha cidade natal, entre homens vestidos de branco e cães cegos e leprosos que acompanhavam docemente os mendigos, o mar me interrogava. E eu soletrava o dia que rangia como um cata-vento. (“O Cata-Vento”, grifos nossos)

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Sob as buganvílias os cachorros sonham. (“A Luz do Dia”, grifo nosso) Levo na maresia o meu amor de homem e ninguém sabe que amo a não ser os cães que farejam meus passos pelas alamedas. (“Finisterra”, grifos nossos) Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir [sozinho protegido pelo arame farpado que cerca minhas [terras e pelos meus cães que sonham de olhos abertos. (“O Portão”, grifos nossos) Relâmpagos fulgiram. Trovões despedaçados estrondeavam entre as montanhas. Abrimos a porta [aos cães espantados. (“A Tempestade”, grifo nosso) Quando a noite cai, entre lêndeas, o dia é um cão que se deita para morrer. (“Ferro-Velho”)

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Na tarde de verão a morte me segue como um cão. (“Na Tarde de Verão”) Quando atravesso as pontes de Roma o outono me segue como um cão sem dono. (“As Pontes de Roma”) Sob um sol que me segue como um cão presencio a disputa interminável entre o céu congestionado de almas sujas e a meiga terra tolerante. (“A Entrega”) O jumento, besta de carga entre homens cegos, mas aqui visto pelo olhar de um poeta: No alto da crestada ribanceira pasta o jumento. Seus grandes dentes amarelos trituram o capim seco que restou de tanta primavera. ................................................................... 128


O jumento contempla o dia trêmulo e emite um relincho, seu tributo de tanta claridade à beleza do universo. (“O Jumento”) A raposa, que acompanha o caminhante em sua caminhada: uma raposa me espreita com seus olhos de bronze. (“A Raposa”, grifo nosso) E a raposa amaldiçoada em todos os quintais me acompanha entre as moitas. (“O Caçador”, grifo nosso) A coruja, solitária meditativa, sempre associada à noite: Um pio atravessa a folhagem murmurante. A coruja branca, minha irmã sedentária, vigia na escuridão o mundo abandonado por tantas pálpebras fechadas. (“A Coruja Branca”, grifos nossos)

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O olhar das corujas nos ramos dos cedros bebe a minha dor que interroga o mundo e o caos luminoso dos céus sucessivos que os jatos esfolam. (“A Noite no Jardim”, grifo nosso) a noite dos cupins e dos ventos amargos; a dos portões fechados que protegem no escuro como se fossem muros as minhas terras belas e o dia das corujas; a dos sonhos quebrados como as telhas das casas. (“O Cavalo Negro”, grifo nosso)

O caranguejo, habitante das praias e mangues onde o poeta encontra sua origem: Ainda agora sob minha cama dormem caranguejos. (“Jaraguá”, grifo nosso)

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Nos coretos das praças brancas passeiam caranguejos. (“Asilo Santa Leopoldina”, grifo nosso) A chuva de minha infância continua caindo com o seu séquito de tanajuras e caranguejos. (“O Ladrão”, grifos nossos) Como um caranguejo caminha nos mangues assim atravesso o dia dos homens. Avanço na lama da noite e dos sonhos, carregando a pátria negra dos meus pântanos. ......................................... (“O Caranguejo”, grifos nossos) A serpente: Não desperte a serpente na relva, sob o sol. (“Conselho”, grifo nosso)

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A borboleta: (Borboletas em seus ombros pousavam). (“O Montepio”, grifo nosso) O corvo: Vejo para sempre o corvo que grasna nos pinheiros e as brancas montanhas de Deus. (“Os Passos na Neve”, grifo nosso) E outros diversos bichos, das mais variadas espécies, nos quais o poeta repara, interrogando: Para que eu tivesse o direito de morrer foi preciso seguir o caracol. (“O Muro”, grifo nosso) A lacraia procura na óssea paisagem sem sinal de enxúndia carne de vida ou tempo que a livre do tédio e do seu veneno. (“A Lacraia”, grifo nosso) 132


.................................. Aos sapos que moram no úmido crepúsculo e aos céus que devoram os nossos resíduos, a tudo o que é coisa ou forma vivente oculta em couraça ou véu transparente pergunto e respondo. (“A Rainha da Tarde”, grifo nosso) A santidade do mundo me aparece sob a forma assustada de um esquilo que me contempla entre arbustos. Devo esta aparição ao deus que me criou e me faz notar o miúdo e o insólito. A poeira na asa da borboleta é a chuva radiosa. Abaixo-me e agarro o passarinho morto que nem a neve soube guardar. ..................................................................... Como uma formiga, espero que o comboio passe para atravessar os trilhos sangrados pela ferrugem. (“O Passarinho Morto”, grifos nossos) Até mesmo – ou talvez principalmente – os bichos ligados à decomposição, que Ivan Junqueira chama “arautos da ruína” 9 9  JUNQUEIRA, Ivan. “Quem tem Medo de Lêdo Ivo?”. In: IVO, Lêdo. Poesia Completa. 1940-2004. Rio de Janeiro: Topbooks/Braskem, 2004, pp. 25-43.

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entre os quais se destaca o verme, destruidor-mor, que o poeta chama respeitosa e ironicamente “engenheiro da podridão”: Saúdo nesta manhã o gorgulho que deteriora o mais claro cereal. ..................................... Cupim e formiga-branca, a vós, vassalos de um reino obscuro, minhas congratulações. ..................................... E felicito os esquilos que roem as nozes da poesia no úmido chão de Washington ............................................... E apresento os meus respeitos ao engenheiro da podridão, o verme que come o homem. ............................................ Roei o vento e o palácio, desfazei as podres estruturas, mudai a face do mundo. (“Aos Roedores”, grifos nossos)

E, nos monturos, homens e urubus, na lei da livre concorrência, ganham o pão que Deus amassa. (“Minha Terra”, grifo nosso) 134


No depósito escuro onde repousam escorpiões está até a chave que não abre nenhuma porta. (“Os Utensílios”, grifo nosso)

E as aranhas tecem o tempo infindável. (“A Luz do Dia”, grifo nosso)

No sonho sou um peixe que apodrece na praia. (“O Sonho”, grifo nosso)

O Deus cruel que envenena os fungos e outorga à beladona o poder de matar me envia esta noite os seus embaixadores. São formigas, corujas, ratos e morcegos Que me interrogam com a maior arrogância. Eu lhes confesso a minha culpa imemorial. Peço-lhes perdão por existir e perturbá-los com o meu silêncio e incômoda respiração. Reconheço ser um intruso, um invasor de terras. Estou aqui de passagem e à espera do dia. (“O Invasor de Terras”, grifos nossos) 135


O dia abre a sua porta luminosa. E as formigas [passam. E os homens passam. E as aranhas tecem [constelações. No alto da duna o goiamum espreita o horizonte. O rato no monte de lenha conhece o caminho que o conduz ao trapiche abarrotado. Na cidade peninsular azul e branca o dia é uma cobra coral sob o sol imóvel. (“Cobra Coral”, grifos nossos) Terei com certeza esquecido algum, mas me ocorre ainda lembrar que o poeta não esqueceu sequer de incluir, em sua fauna, os bichos que não estiveram na arca do dilúvio, mas vivem na Amazônia: e principalmente os feros bichos amazônicos que não viajaram na arca de Noé. (“Ode Equatorial”, grifos nossos)

E ainda – entre os diversos bichos que lhe servem de metáfora para dizer do seu canto, cuja aspereza incita o movimento e combate a inércia ociosa – o gavião, que não citei neste item dedicado aos bichos porque mereceu figurar num item só a ele dedicado:

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Aos pássaros que gorjeiam prefiro os que grasnam como os corvos ou os que piam na escuridão como as vigilantes corujas brancas que infestam os [meus bosques. O canto melodioso amolece os corpos e anestesia as almas que renunciam à reflexão e ao [tormento e temem o rumor do dia predatório. Sempre desejei que o meu reino fosse o da dissonância: do gavião que, pousado na estaca, rumina a sua [impiedade, dos pássaros grasnantes que incomoda os partidários [de uma regência musical do mundo como se estivéssemos num teatro, ouvindo uma [sinfonia. Ao gorjeio que conduz ao deleite e embala o sono oponho o grasnido que semeia a insônia e o desconforto. (“Uma Referência”, grifos nossos)

Outros Temas Recorrentes Outros diversos temas-semas se reiteram ao longo desta Poesia Completa. O céu, que se associa ao metafórico azul: Queremos o azul! ...............................................

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Vem, céu providencial. Desaba sobre os corpos nus que vão acordar violentamente para o [amor (“Elegia”) Os astros: No coração das trevas palpitamos, ossos dos nossos ossos, na aliança que se faz entender até dos astros. Dançarinos incógnitos, dançamos. Dançamos o universo que nos dança: as estrelas, na altura – e nós de rastros. (“Soneto dos Dançarinos”) Nos astros leio o texto deste mundo. (“A Visão”) Como a primeira estrela, estou sozinho e a vida é um jogo, sob a luz do mundo. (“Soneto do Jogador”) e eu mesmo sou ogiva aberta aos grandes astros. (“O Alvo”) 138


O amor: Todos os amantes terminam separados. .............................................................. Amor é escuridão. E quando a luz se acende somos dois estranhos que evitam olhar-se. (“Os Dois Estranhos”) Pergunto ao vento, à mesa, à luz do dia e ao lençol estendido sobre a cama: que Deus impiedoso criou o amor? Ao sono endereçada, a noite não merece ser guardiã de tantos vãos suspiros. Fanfarra de água e sol, a fonte canta para ninguém, e assim é sempre o amor quando os corpos e as almas, fatigados, se convertem nos restos de um naufrágio que o mar caliginoso lança à praia. Sua ferida esplende: concha e espada, silêncio do que é tudo, voz de nada, selo e sombra, mordida de lacraia. (“A Mordida da Lacraia”) O feminino, associado ao amor:

A perdição maior de minha face se inclina ante teu sexo que sugere uma rica e exemplar concha marinha, coral em linhas ásperas e largas. (“Ode”, grifos nossos) 139


Por curiosidade levantei tua saia para ver-te inteira. E em lugar da concha fugida do mar estava uma estrela: uma estrela negra. (“O Amante Aplicado”) O dia me espera no campo como um espantalho. E seu fulgor já me cansa. Aspiro à escuridão, ao grande silêncio maternal que antecedeu a todos os estrondos. Não suporto mais as coisas claras. Como na infância, quero esconder-me de todos e de mim mesmo. Mulher, último refúgio da noite, é em ti que me escondo no dia incomparável. (“O Espantalho”) A infância, tema a que se associam o mar e a arraia lançada ao vento:

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Ó mar de minha infância, maior que o mar de [Homero. (“A Infância Redimida”) A que país pertenço? De que céu, de que inferno me vem a nostalgia de ter visto em plena infância essas paisagens que não se encontram nas paisagens? (“A Forma do Tempo”) ó noite dos morcegos que em minha infância [sustentavam os estandartes do sonho as hélices de teus navios carregados de estrelas [cruzam os anfiteatros do mar. (“Finisterra”, grifos nossos) só os loucos de minha infância continuam vivos e à [minha espera. Todos me reconhecem e me saúdam com grunhidos [e gestos obscenos ou espalhafatosos. Perto, no quartel, a corneta que chia separa o pôr do sol da noite estrelada. Os loucos langorosos dançam e cantam entre as grades. Aleluia! Aleluia! Além da piedade a ordem do mundo fulge como uma espada. E o vento do mar oceano enche os meus olhos de [lágrimas. (“Asilo Santa Leopoldina”, grifos nossos) 141


Eu sou esse viajante. Desde a infância aprendi a reter e a guardar, e trago sempre comigo uma multidão de paisagens e lembranças, o rumor do mar longe, o cheiro de hortaliças no mercado sitiado pela tarde, o grito de êxtase que varou a escuridão como um pássaro. Até mesmo um calhau esbranquiçado que um dia achei na praia costuma acompanhar-me: por motivos inexplicáveis, não o dispenso. (“O Desembarque”) A chuva de minha infância continua caindo com o seu séquito de tanajuras e caranguejos. (“O Ladrão”, grifos nossos) Nem sequer levo na boca o gosto de água salgada que relembra a minha infância feita de mar e de mangue. Nem sequer levo nos olhos – nos meus olhos de menino – a mancha rubra de sangue deixada pelo assassino que vi certa madrugada. (“O Caminho Branco”) E a morte guarde em cova os injuriados despojos do homem feito; que o menino empina o papagaio, vive ao vento. (“Soneto do Empinador de Papagaio”) 142


O que foi infância sempre é monumento íntimo, fincado na praça do vento. E um menino, velho, quase arqueológico, vem com sua arraia e suas gaiolas e no céu de agora solta passarinhos e diz seu segredo a outro menino. ............................. Segura, menino, a linha encerada da arraia empinada no céu de domingo. (“O Dever”, grifo nosso)

E a monótona criança (teu tenaz sobrevivente) empina seu papagaio na eternidade do vento. (“O Homem e a Chuva”)

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adeus, ó papagaio que empinei, adeus, joelhos amados, brisa pura da praia, a tudo adeus. (“Ofício da Mortalha”) O anjo, que assume diferentes conotações: A suspirante divindade não tem em mim seu porta-voz. De nenhum rio celestial eu me proclamaria a foz. ................................................ Neste universo de evidências seria uma coisa sobrante um anjo, que mora tão longe e sempre tem um ar distante. (“Nenhum Anjo”) Os anjos são feios. Seus braços roliços estendem-se para o vazio que finge ser o Paraíso. Anjos de madeira: os seus pés inchados têm elefantíase? Suas asas tortas são de passarinhos mortos a pedradas? 144


O forro da igreja é a maior altura que o olhar humano em busca de Deus consegue alcançar. ............................ E uma luz vermelha no sacrário escuro guarda o coração do Deus invisível que suspende os anjos e deforma os homens. (“Os Anjos da Igreja do Rosário”)

Míssil, estrela dos homens! ............................................. Um tambor belicoso está sempre rufando e a guerra é interminável. Assediado por vozes estrepitosas e gestos homicidas atravesso a manhã ensanguentada. Uma mão pousa no meu ombro. É um anjo. É simplesmente um anjo no mundo que se desfaz em medo e horror. (“A Manhã Ensanguentada”)

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A imagem do pouso no ombro: Quando durmo um pássaro pousa no meu ombro. (“A Noite Misteriosa”) Um pássaro que tenta pousar em qualquer ombro rompendo o nevoeiro de uma manhã de assombros. (“Depois do Sol”)

A sombra, que por vezes sinaliza a solidão: Estou acima de todas as mitologias na terra onde os viajantes procuram inutilmente sua [sombra no chão .............................................................................. E no torpor que vem do chão os caminhos se abrem e eu depois te saúdo, inexistir, atracadouro [solenemente aberto desenhando na espessura sua hierarquia fluvial. Minha sombra no chão: a homenagem do sol à minha solidão. (“A Homenagem”)

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Porém, mais complexamente, está ligada ao tema do outro, do desconhecido e do inconsciente, como neste poema em que uma metáfora insólita (“jocosa espiã que se contunde a rastejar nos paralelepípedos”) nos faz pensar outra vez em Maiakóvski: Como todos os homens sou estranho a mim mesmo e me estranho quando vejo no meu espelho alguém que não conheço e contudo jamais sai do meu pelo. ................................................................. Valho o que vale a minha própria sombra – a jocosa espiã que se contunde a rastejar nos paralelepípedos. E a ela digo: sombra, és como eu, tão alheia de mim e não me largas, e tão colada a mim que não me assombras. (“A Sombra”) fardo:

E também a um eu que, sendo um outro, pesa como um Ando no nevoeiro carregando o meu fardo. Como pesa esse eu que nada tem de meu! Essa carga pesada que sempre vai comigo é o meu inimigo numa longa batalha.

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Uma sombra funesta que me segue e vigia. A voz que me proíbe de ir a qualquer festa. ..................................

(“O Fardo”)

A fonte, tema já mais próximo à abstração simbólica, vinculado ao tempo, enquanto imagem do que se escoa sem pausa: Para ser como as fontes, que não mudam, mudo de pele e cor a todo instante. E o dia passa como um peixe na água. (“Trapiche da Barra”)

Por ser tempo, é que o tempo não me basta e se escoa, cantante, pelas margens da vida feita de água que o arrasta para o mal-entendido das viagens. E leva tudo em seu roldão, deixando perdido o tempo achado, como a fonte se perde no existir, e vai cantando entre as pedras e os bosques do horizonte. (“Soneto ao Tempo”)

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Ainda mais simbólica e abstrata, a imagem da porta, que se abre à aventura de passagem dum a outro nível de percepção: Uma porta se abre para que eu passe rumo a um novo chão. Uma porta se escancara para que eu possa abandonar a longa calçada povoada pelos homens. ................................................................... E eu atravesso a porta, e a porta prometida para se abrir dispensa mão ou chave. (“A Porta Escancarada”)

Não encontrei a casa nem encontrei a porta. E fiquei ao relento sob a luz das estrelas entre o silêncio e o vento. Nenhuma porta havia na escuridão da noite. Por mais que procurasse não encontrei jamais a porta prometida. Mesmo quando eu vagava nos páramos celestes entre as constelações que me aprisionavam não vi nenhuma porta.

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Quanta procura inútil! Não encontrei a vida nem encontrei a morte. Estavam escondidas atrás da mesma porta. (“A Porta Prometida”) Os males urbanos:

Lixo: Além dos mangues e refinarias de petróleo que circundam o fundo da baía a fumaça de uma fogueira de pneus imprestáveis sobe em espiral no firmamento. O dia dos homens começa com um sacrifício. Todas as manhãs eles incineram o cadastro da noite e oferecem ao céu o vômito negro da terra. (“A Fumaça Matinal”) Lixo que alcança até o espaço interestelar: O Céu é o terreno baldio da Terra. Entre as estrelas vagueiam os satélites avariados. (“O Lixo Doméstico”) 150


Solidão e desolação: As grande cidades não entendem o coração humano. (“Aboli o Impossível”) Que esperas à esquina, ó alma sedenta, agora que os transportes sumiram, levando teus [caminhos, e o acaso te paralisa no acaso da cidade entre as multidões, a noite e os edifícios altos? (“O Regresso”) Solidão que inspira uma paródia:

Cada pessoa que passa, escombro da multidão, nesta rua tem um nome que se chama solidão. (“O Rei da Europa”)

Dissolução da identidade no anonimato: Ando sempre seguido por vozes e cartazes ..................................... Ninguém sabe o meu nome. 151


Vem de um alto-falante uma voz sem garganta que me mantém anônimo. Entro na fila até para tomar banho de mar ou morrer no hospital. Dissolução cuja conclusão, no entanto, é ativa, e impõe o movimento: E, na fila do mundo, um número entre números, avanço, logo existo. (“Meu Nome é Multidão”)

E alguns temas abstratos também são recorrentes, como a eternidade, que aparece muitas vezes associada ao tempo, à efemeridade ou à morte, aos quais se opõe, seja como bem desejado, ou indesejado: Guardemos apenas o eterno Que tudo o mais é escória efêmera. Aspiremos ao absoluto. Quanto ao resto, não vale a pena. (“A Meta”) 152


O que sobra de mim chama-se Eternidade. (“O Galho”) A nada aceito, exceto a eternidade, nesta viagem ambígua que me leva ao altar absoluto que, na treva, espera pela minha inanidade. (“Soneto do Empinador de Papagaio”) Deus, por que fizeste a eternidade? Por que nos obrigas a subir tantas escadas? (“A Eternidade Premeditada”) Um momento significativo surge quando o poeta, renunciando à eternidade, assume sua opção existencial – “quero ser o que passa” – identificando-se ao ser efêmero das formas etéreas (nuvem, fumaça), cuja existência se resume a um instante breve num céu vazio: Não quero a eternidade, a trama interminável de uma roca que fia um dia após um dia na duração perpétua. Quero ser o que passa: a leve nuvem branca que se desfaz no espaço, a fumaça de um jato no céu vazio e claro. 153


Ou, ainda, o ser breve, imaterial, inapreensível e inesperado do relâmpago, a queda súbita e breve de uma “chuva momentânea”, a visão efêmera de uma folha perecível que se encontra em viagem: Não me agrada ou seduz viver após viver. Antes quero o relâmpago que rasga o céu sombrio, uma folha de álamo no chão de uma viagem e a chuva momentânea que cai sobre as cidades. E aqui o pássaro, muitas vezes sinalizando eternidade, em seu voo passa a significar brevidade. É que só aparentemente simboliza a eternidade. Na verdade, é liberdade o que ele representa, liberdade que só se alcança no movimento, pelo movimento, em movimento:

Prefiro um voo de pássaro a tudo o que é eterno. A tudo o que é durável prefiro o perecível: a sombra fugidia no dia luminoso dos narcisos e rosas; os instantes que regem, na noite indecorosa, o amor dos amantes, 154


seus gritos e gemidos; a pétala fugaz ferida pelo outono. Contenta-me o trajeto entre uma porta aberta e uma porta fechada em plena madrugada ou na manhã mais cândida. Nem em Deus o poeta deseja algo duradouro: seu destino, ao cabo de tanta jornada, é o não ser, estado que implica, não repouso, e sim movimento, negação que nem na negação se detém: O meu Deus é relâmpago, o breve resplendor antes do grande sono. Recuso-me a durar e a permanecer. Nasci para não ser e ser o que não é após tanto sonhar e após tanto viver. (“O Desejo”)

Deus Deus tem lugar relevante no conjunto de temas-semas. Presença constante na caminhada, ora é entrevisto num ente concreto que o poeta encontra; ora é objeto de crítica 155


perpassada de humor; ora, tema de reflexão ou especulação (e mesmo perseguição) metafísica, na qual aparece como ponto de convergência da essência com a circunstância. Em sua transcendência, ele é detectado e inquirido na imanência dos entes concretos, que lhe servem de esconderijo. Longe do sublime e etéreo, está na lama com os goiamuns, nos espinhos do porco-espinho, no pântano dos borrachudos, entre tábuas, com os ratos, tal como o pressentíamos, quando víamos o mundo com os olhos infantis: Como é Deus? Paciente como as formigas. Zumbe como os besouros. Anda na lama como um goiamum. E arranha como um porco-espinho. (“Maneira de Ser”)

Onde está Deus? Oculto no pântano entre os borrachudos. (“O Lugar”)

Entre as tábuas que guincham os ratos se ocultam. Imitam Deus, que está sempre escondido. (“O Esconderijo”)

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Saibam quantos vivem neste mundo imenso: Deus não cheira a incenso. É no estrume fresco e na alga viscosa que devemos ver os sinais divinos com os olhos de quando éramos meninos. (“Os Sinais”) Ou é surpreendido e denunciado em sua pertença à condição humana: Deus caminha entre os homens como um [sonâmbulo, e não podemos acordá-lo. (“A Solidão Divina”) Em outro poema (“Um Lençol de Linho”), Deus é panteisticamente observado em diversos entes e situações, e, no verso conclusivo, identificado ao caminho, ou seja, à via de passagem entre os entes e situações: Deus é o pão e o vinho, a rosa e o espinho, o mar e o golfinho, e a carta de amor no seu escaninho. 157


Deus é o passarinho e a sombra que esconde os ovos no ninho. Deus nasce entre as pedras como o rosmaninho. Na noite fechada ou no burburinho do povo nas ruas Deus é o caminho. Com uma graça entre irônica e singela, o poeta brinca a sério ao inquirir um caracol, cuja presença surpreende na grama. Ao caracol, único ser que “conhece a causa primeira”, e cujo mistério só Deus decifra, ele indaga qual o sentido da existência, e da ausência de Deus, suplicando: “explicai-nos o mistério desta caminhada e deste silêncio que tanto nos incomoda!” Mas o douto caracol, firme na indiferença, não responde: Só para Deus se abrem os caracóis que encontramos imóveis sobre a grama. Curvamo-nos diante deles e suplicamos: Falai! Confiai-nos agora o grande segredo. Explicai-nos o mistério desta caminhada e deste silêncio que tanto nos incomoda! Só os caracóis conhecem a causa primeira e sabem a origem de tudo, desde a grande explosão que criou o universo e ainda nos aturde. Por mais que perguntemos eles nada nos dizem. Passam o dia inteiro parados na grama e nem sequer nos contemplam. (“Os Caracóis”) 158


Outro trecho que também se tinge de humor intima Deus, o grande ausente. Num procedimento que faz lembrar o distanciamento kafkiano, quando aborda situações de angústia com fingida indiferença e leveza – o que gera o estranhamento, correspondente do absurdo – estas redondilhas, com ritmo e expressões de cantigas de folclore, ou em diálogo com o romântico Castro Alves, põem em xeque a figura de Deus como criador de um mundo absurdo: O que, diante da injustiça, tirou seu chapéu ao forte e, vendo o pobre a sofrer, deu-lhe o empurrão para a morte, tudo isto é gente do elenco do grande teatro do mundo que um empresário invisível dirige, no céu profundo. .............................................. Assim cai a noite em Paris, Rio, Nova Iorque, Moscou, Londres. Deus, em que mundo é que estás? Em que estrela tu te escondes? (“O Rei da Europa”) Neste outro poema, Deus se associa a morcegos, num cenário de “altares roídos” pelo vento e saqueados por turistas e comerciantes. É um poema terrivelmente iconoclasta, e mais terrível porque sua arma é o humor, um humor cáustico que, lembrando um poema célebre do Alberto Caeiro, ilumina a 159


solidão que se evola da ausência de Deus entre velas fedorentas, ratos e morcegos: Só Deus e os morcegos habitam a Igreja de Nossa Senhora da Corrente. O espírito invisível paira entre os altares roídos e o vento de Penedo cega lentamente os olhos dos santos que os turistas e antiquários não conseguiram roubar. Deus é barroco. Deus é como os morcegos: voando à noite entre os espaços estrelados procura chupar o sangue dos homens que enegrecem o dia com os seus pecados. .................................................................... E Nossa Senhora da Corrente, padroeira dos ratos e [morcegos, entre flores de papel e velas fedorentas compartilha da solidão divina. (“Nossa Senhora da Corrente”) E este outro, cuja clareza dispensa comentários: Nunca vi seu rosto. Só conheço a voz que transmite as ordens pelo alto-falante. É a voz de Deus que está no céu ou a do gerente que é Senhor da Terra? (“Ordem de Cima”) 160


E mais este, que com fina e finória ironia lança mão do recurso ao humor, como necessário antídoto, ao mesmo tempo em que constrói uma metáfora singular para definir sua palustre terra natal: Deus está atrasado. Ele ainda não veio separar a água e a terra de minha pátria fermentada. (“Natal no Brejo”) Como tema de especulação e perseguição metafísica, Deus é a presa que o poeta, num cerco empreendido em várias frentes e vários ritmos, tenta capturar. Em certos momentos, o cerco se tenta inquirindo seu silêncio, que é outra forma de ausência e evasão: Jamais entendi o silêncio de Deus. Por que Deus não fala? Por que Deus se cala quando interrogado? Por que um Deus mudo responde por tudo? (“Perguntar Não Ofende”, grifos nossos) Ausência que se impõe como pergunta que vem depois das impossíveis respostas:

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Quem é Deus? Deus é quem. Deus é a pergunta que responde a todas as respostas. (“Carteira de Identidade”, grifos nossos) Ou como forma fantasmática, aparecida em sonho: Deus é o animal que avança sobre nós [no pesadelo. (“As Aparições”, grifo nosso) Neste outro, a sentença assinalada, afirmando a evasão de Deus, insinua o motivo pelo qual o cerne das coisas é inapreensível, o que, por sua vez, obriga a poesia a buscar a essência em movimento: Deus às vezes se sente incomodado com a sua própria existência. Sendo tudo, estando em tudo e a tudo envolvendo como um esplêndido lençol branco, o seu excesso de ser lhe causa certo desconforto. A sua ubiquidade o força a reconhecer a necessidade de limites nítidos, indispensáveis a qualquer criador, desde o humilde sonetista até aquele que, como é o seu caso, se criou a si mesmo. A amplidão do seu reino presumivelmente infinito e sempre ao alcance dos mais desmedidos louvores e imprecações o induz a evadir-se. Aproveitando-se de uma distração minha, Deus se refugia dentro de mim – precisamente no lugar onde 162


jamais conseguirei alcançá-lo. (“A Astúcia de Deus”, grifos nossos) Uma essência que está no intervalo entre o ser e o não ser; e um movimento que se enuncia na imagem de nuvens e sonhos nômades. Porque, como dizem os dois últimos versos, “Deus é o que passa, o peixe ardiloso / que surge e some na água escura do rio”. Eis por que a especulação deságua no paradoxo de um Deus que não apenas é incognoscível mas também ao mesmo tempo existente e não existente: Se Deus não existe, é porque Deus existe, escondido em si mesmo, como a chuva torrencial que ameaça desabar sobre a selva onde os homens e os bichos têm o mesmo destino da madeira arrastada pela correnteza. E Deus existe e não existe. No céu de Manaus as nuvens são nômades como os sonhos. Tribos de água, rebanhos de ar! Os barcos festivos ancoram musicais na Praia dos Cachorros. E Deus é o que passa, o peixe ardiloso que surge e some na água escura do rio. (“Na Praia dos Cachorros”, grifos nossos) Outra variante em que o cerco se ensaia, desta vez reunindo diversos temas, que se reiteram inutilmente, pois se deparam todos, ao final, com o mesmo silêncio, adjetivado como sideral e divino:

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No escuro desamparo da noite de lamentos e gritos abafados quem na verdade é Deus? Sombra da luz que é sombra, nominação do vento, constelação virada pelo sonho que gira entre estrelas sonâmbulas, ou frescor de água casta guardada na cascata da loquaz alvorada? Mas Deus só se diz Deus na sílaba perene da única palavra que sustenta o silêncio de todas as galáxias, o silêncio divino. (“Nominação”, grifos nossos) E outro, em que o poeta apela ao sequestro, cujo resgate custará ao prisioneiro aquilo que mais falta faz ao seu sequestrador: Deus é o meu refém. Para libertá-lo Exijo o resgate Da imortalidade (“O Refém”)

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Há um outro poema que merece atenta observação analítica. Nele diversos temas, configurados em sintagmas nominais explícitos, ou indiretamente, através de derivados (duna, onda, areia, no lugar de mar; voo substituindo pássaros; vazio significando o nada), de que modo tais temas se unem para a corrosão e transformação, obrada pelo vento, que é emissário do tempo e aliado das ondas marinhas: Quem é Deus não é Quem, nem Que, nem Quando. Vive oculto no bosque, como o esquilo. Deus não é Isto ou Aquilo. Deus é a lei da maré que se eleva na restinga. Entre água e terra avanço, e na laguna procuro Deus, a sombra persistente de uma luz apagada de repente na casa construída sobre a duna. O vento leva o tempo e o deposita no rochedo insultado pelas ondas como se fora um pássaro ferido. E Deus é Deus: mormaço e areia e voo. E no mundo vazio o mar ressoa, volta festiva de um tambor tardio. (“O Tambor”, grifos nossos) Mas o destino desta caminhada não é Deus. Ela conhecerá o além Deus. E por isto será preciso continuar – numa abstração progressiva – a busca de um sentido que na circunstância encontra a essência.

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O Gavião Já me referi, no início deste estudo, à impressão que me causou a aparição recorrente do Gavião, marcando espaçadamente um compasso semântico ao longo dos versos, nesta Poesia Completa. Não o incluí no item dedicado aos bichos porque ele não é simplesmente um bicho; ou, entre todos os bichos, é o que mais se desprende do plano referencial, onde é ave predadora, ascendendo ao plano simbólico. Sua presença, transmitindo uma força imagística singular, levou-me a dedicar-lhe um item, que em ordem crescente de importância apenas perde para os dois que a ele se seguem: o vento e o nada. Naquele trecho inicial, afirmei que ele, pousado na estaca, funcionava como forma plástica, sensível, instauradora duma atmosfera e por isto se prestando magnificamente à noção poética do correlativo objetivo; mas também, alçando o seu voo, desprendia-se do sensível e alcançava o nível abstrato de uma nota numa pauta musical ou de uma categoria num sistema filosófico. Em termos da teoria do poético, isto significa que a recorrência intermitente do gavião ao longo da Poesia Completa funciona como um índice, um sinal da caminhada que o filósofo poeta empreende em busca do sentido da existência. Uma procura que, no penúltimo poema do conjunto de livros, definindo-se como procura de Deus, chamar-se-á “Uma Busca Incessante”. Sinal e índice também – a aparição recorrente do gavião – de uma poetização do texto, operada na inter-relação complexa do mood subjetivo com o mundo. Cada uma de suas aparições é um coágulo visível no fluxo invisível da constituição do poético neste longo texto. No primeiro encontro com o gavião, o poeta nele vê a ave de rapina, que designa com o termo “embaixador do não”, ainda que (como o Francisco de Assis ou o Baudelaire das Fleurs 166


du Mal) também o chame de “meu irmão”. Trata-se, como diz o título do poema, de uma advertência contra aquele que traz por sina a morte e faz do céu uma “sepultura de pássaros”: Meu irmão gavião, eu não aceito a morte. Na partilha do mundo não estarei ao teu lado. Gavião! Gavião! embaixador do não, o céu não pode ser sepultura de pássaros. (“Advertência a um Gavião”) Na segunda aparição, a ave, ainda chamada “meu irmão gavião”, encerra com uma sentença implacável, porém ambígua, um poema perpassado por metafóricos estremecimentos, em atmosfera sideral noturna, que reúne diversos temas-semas (noite, sonho, vento, estrela):

Eis a noite: ainda estou acordado e na minha vigília ainda estou sonhando. Eis a estrela que interrompe a sua passagem pelo grande céu varrido de meteoros e pousa como um inseto sobre a minha mesa. O vento sopra, o vento que é uma recompensa! As palavras me rodeiam como a cerca fiel que marca os meus domínios e me separa dos outros [homens 167


– a cerca necessária sobre a amplidão da Terra. Eis a noite com os seus fogos que vão durar até a [aurora e a água dos brejos que escorre entre os caniços. Os que estão dormindo esqueceram a dor e agora [sonham. No meu quarto eu me sinto tranquilo e protegido. Pousado na estaca apodrecida, meu irmão gavião finca na escuridão toda a justiça do mundo. (“A Cerca”)

No terceiro encontro, reduz-se a distância entre o poeta e o gavião, que, embora não se mencione como “meu irmão”, e sim apenas como “um gavião”, em sua presença ambígua (que porta o devaneio e a ferocidade) agora é contemplado como cúmplice do poeta. São “dois cúmplices”, com “corações predatórios, cada um em seu território”. A distância que há entre ambos não é de ordem moral, mas sim apenas a de pertencerem a diferentes territórios – ao gavião cabe o céu, com suas nuvens, ao poeta, a terra, com seu bosque de pedras e árvores; mas, enquanto o poeta caminha no chão, o gavião na altura o “acompanha”. São “cúmplices”, perversidades que mutuamente se acompanham, com destinos semelhantes: Quando vou por estes campos um gavião me acompanha, estridente companhia, sombra de sonho e de sanha.

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Uma fronteira de sol nos mantém distanciados: ao gavião céu e nuvens, a mim as pedras e as árvores. Cada um no seu território, e o mesmo intento calado no coração predatório. A quem ferir ou matar? Por meus campos vão dois cúmplices, Ambos mal acompanhados. (“Os Cúmplices”, grifos nossos)

No quarto encontro, o gavião apenas tangencia metaforicamente o poema, indiciando a crueza de um momento, mas instaurando o correlativo objetivo, ao funcionar como signo que evoca a destruição. Pousado na estaca, ele sinaliza a crueza da morte, que acompanha o poeta em sua caminhada, ligado que está ao “dia que passa” e a “tudo o que se esvai”, signo mortal ao qual se contrapõe o diáfano pouso transcendente, que neste caso se dá através do encontro amoroso (“tua mão pousa na minha mão”): Somos tudo o que se esvai: a sombra, o grito, o amor, a fumaça. O dia passa como um gavião. E a tua mão 169


pousa afinal, palha dourada, na minha mão. (“Palha Dourada”, grifo nosso) No quinto encontro (não por acaso num poema intitulado “Um Dia Perdido”), a referência ao gavião sugere que o poeta andava à procura do ninho da ave, onde ela tem sua origem, e sua busca é de ordem, mais que biológica, metafísica, o que se acusa na constatação – “há coisas que jamais saberemos”: Andei por estes campos e não descobri o ninho do gavião. – Há coisas que jamais saberemos. Foi um dia perdido. Nada encontrei na espessura do bosque. – Todos os dias são perdidos. Depois vem um momento claro, em que o poeta, declarando sua pertença estética, usa a imagem do gavião, do corvo, da coruja, das aves noturnas e dos “pássaros grasnantes” como correlativos objetivos da sua predileção pela dissonância que desperta, em oposição à melodia fácil, que “anestesia as almas” e “amolece os corpos”. O gavião, sempre “pousado na estaca”, embora seja o predador que “rumina sua impiedade”, é aqui um signo, não mais de crueza injusta, e sim de necessária vigilância desafiadora:

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Aos pássaros que gorjeiam prefiro os que grasnam como os corvos ou os que piam na escuridão como as vigilantes corujas brancas que infestam os [meus bosques. O canto melodioso amolece os corpos e anestesia as almas que renunciam à reflexão e ao [tormento e temem o rumor do dia predatório. Sempre desejei que o meu reino fosse o da dissonância: do gavião que, pousado na estaca, rumina a sua [impiedade, dos pássaros grasnantes que incomodam os [partidários de uma regência musical do mundo como se estivéssemos num teatro, ouvindo uma [sinfonia. Ao gorjeio que conduz ao deleite e embala o sono oponho o grasnido que semeia a insônia e o desconforto. (“Uma Referência”, grifos nossos)

A sétima aparição do gavião se dá no poema “O Caminho Branco”, já em O Rumor da Noite. Aqui o poeta, de mãos vazias e certezas abdicadas, caminha só e em silêncio, percebendo em si mesmo um desconhecido, e contemplando o mundo a partir do estranhamento. Nesta disposição espiritual, o gavião lhe surge, não como uma presença visível que lhe cruza o caminho, mas como um vulto que espreita, “oculto no nevoeiro”, sinalizador simbólico de sua própria mortalidade:

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Vou por um caminho branco Viajo sem levar nada. Minhas mãos estão vazias. Minha boca está calada. Vou só com o meu silêncio e a minha madrugada. .......................................... Vou por um caminho branco que parece a Via Láctea. Só sei que vou tão sozinho que nem sequer me acompanho, como se eu fosse um caminho pisado por vulto estranho. ................................................. Não sei se é dia ou se é noite o que surge à minha frente, se é fantasma do passado ou vivente do presente. Não sei se é a torrente clara da água que corre entre pedras ou se um gavião me espreita oculto no nevoeiro, espantalho prometido ao meu dia derradeiro.

A oitava aparição será como uma variação mais branda – porém igualmente grave, em sua solidão contemplativa – da anterior. No caminho do poeta, o gavião surge como uma presença já instalada, que neste momento divide a cena com um raio que se impõe ao instaurar a inesperada força do instante:

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O raio que caiu dividiu o verão, a cisterna de luz escorrida na terra sob a nuvem purpúrea e o voo do gavião, e me alcançou em cheio, no meio de mim, como o aroma da flor que se ergue no jardim para impor a quem passa o domínio do instante. O sol desmoronado escondeu os seus raios na doçura da palha espalhada no estábulo. A serpente agoniza, mudada em coral. A relva abre caminho ao silêncio dos homens que escalam as montanhas douradas do outono. Entre os que vão e vêm eu também venho e vou. Nos tormentos do mundo fui multiplicado e de tanto existir já não sei mais quem sou.

A décima e última aparição se dá no penúltimo poema de Plenilúnio e da Poesia Completa, que designa a caminhada como “uma busca incessante”. Neste momento, conclusivo do livro, mas não certamente do percurso de Lêdo Ivo (que continua vivo e ativo), a procura incansável se revela como busca de Deus (origem e fim das múltiplas formas contempladas pelo poeta caminhante). Ainda não o encontrou, mas desconfia, numa percepção panteísta; ele desconfia que Deus se oculta em todos os entes do percurso. Está na “formiga negra que avança” e na noite que cai, “negra como uma formiga”, escondendo Deus, “incólume entre as constelações”. E o gavião também esconde Deus, entre suas asas, e no seu grito, que “dilacera o espaço estival”: 173


Ainda não desisti de encontrar Deus. Desconfio que o gavião o esconde em suas asas e os sonhos o abrigam nas dobras de sua oculta [sabedoria. Às vezes, um grito dilacera o espaço estival da várzea que divide as minhas florestas. Então sou inclinado a acreditar que ouvi o grito de Deus, após o longo silêncio. Deixo de pisar a formiga negra que avança numa saliência da estrada em declive e me envolve a percepção de que consegui evitar a morte de Deus, em um de seus disfarces. Dedico o dia inteiro à procura incansável e de repente a noite cai: a noite negra como uma [formiga. Deus passeia incólume entre as constelações. (“Uma Busca Incessante”, grifo nosso) Mas é a nona e penúltima aparição que nos esclarece sobre o sentido que o gavião desempenha no percurso poético de Lêdo Ivo. A ave rapineira, que o poeta chama “meu irmão”, também é lembrada no inventário de coisas e seres em que se constitui “O Caminho Branco”; poema que – já se sabe e mais se saberá – foi escolhido para o primeiro plano deste meu estudo por ser, entre todos, aquele que se poderia considerar o testamento filosófico do caminhante. Afirmando o desprendimento que surge de sua assumida incerteza existencial, o poeta, neste poema, vai enumerando os signos de sua irresolução aporética entre as polaridades opostas, dizendo, a certa altura:

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Não sei se é dia ou se é noite o que surge à minha frente, se é fantasma do passado ou vivente do presente. E continua: Não sei se é a torrente clara da água que corre entre pedras ou se um gavião me espreita oculto no nevoeiro, espantalho prometido ao meu dia derradeiro. Vê-se que o gavião, por oposição à “torrente clara da água” – que significa a vida – aqui significa a morte, que de tocaia no nevoeiro espreita o caminhante, ser vivo destinado a morrer. Eis porque o tema-sema do gavião teria que vir depois de Deus. Signo da morte, ele porta um mistério que Deus – crença e certeza – não pode resolver.

O Vento Mas haverá um tema-sema que a todos supera: o nada; e seu emissário-mor é o vento. Agente do tempo e da morte, signo da impermanência, o vento disputa com a noite a maior frequência quantitativa ao longo de todos os livros da Poesia 175


Completa de Lêdo Ivo. São quase inumeráveis suas incidências, que por serem versáteis não deixam de indiciar um mesmo sentido: o da efemeridade, inconstância, inconsistência e impermanência das coisas. Subintitulando a terceira parte de O Rumor da Noite, e associado ao tempo, ao mar, à morte, à eternidade, ele é o vento vagabundo que passa através de tudo e tudo remove, altera, desarruma, destrói, e até nos jardins da casa de Ruy Barbosa impõe sua invencível presença. E é preciso notar que ele, emissário-mor do nada, é também um correlativo objetivo do sentimento com o qual o próprio poeta se autodefine. Observemos algumas destas inúmeras e variadas incidências. Numa, o vento, aliado ao tempo, é o visitante do mundo manifesto, impondo às coisas concretas a irrealidade de permanência que lhes suporta a existência: O tempo tem olhos. A eternidade tem ouvidos e escuta as injúrias do mundo. A pia goteja? o carro enguiçou? a louça quebrou? ................................................................................ O tempo, com suas pálpebras de ferrugem, deixa no escuro um emblema.(...) .............................................................................. As folhas cobrem a marca das rodas da carroça no [saibro e o outono se evapora, e as bolachas endurecem na despensa cheia de mofo. Quando a noite cai, entre lêndeas, o dia é um cão que se deita para morrer. E, entulhado na treva, tudo o que o homem amou recebe a visita do vento. (“Ferro-Velho”, grifo nosso) 176


Em outras, o vento sopra, lançando à correnteza do Sena tanto as folhas dos plátanos quanto as “mágoas e alegrias das horas sucessivas”, momentos que passam, levando um poeta que morre, e trazem outros, nos quais o poeta ressuscita: Nas águas deste rio vão boiando à deriva as mágoas e alegrias das horas sucessivas. Pelas margens do Sena os plátanos desnudos ensinam a viver. O vento sopra e leva nossas folhas e vidas e sempre renascemos. (“Os Plátanos”, grifo nosso) Mas, mesmo quando a ressurreição triunfa sobre a morte que o vento trouxe, é também o vento quem traz a ressurreição: Acredite na ressurreição da cinza triunfante. O que o vento dispersa agora devolverá amanhã. (“A Fogueira”) Em outras, num simples detalhe o poeta surpreende, na ação do vento, a fundura da existência: 177


Vi o vento importunar a janela avariada. (“Tremor da Folhagem”, grifos nossos) Mas a meditação sobre o vento lhe inspira, além da destruição, a efemeridade: Quando o vento sopra a tua mão pousa na aldraba da porta. E assim é o mundo: folhas que crepitam, vento vagabundo. Todo este rumor que ora te rodeia cessará um dia. E será a noite. E ninguém virá para abrir a porta. O vento abolido não será o amor nem a eternidade. (“Depois do Vento”) Signo de brevidade e impermanência, o vento (brisa, hálito, aragem) é veículo que leva a vida e também a morte: 178


Nada permanece. Hálito e aragem, tudo vem e passa. Como a vida e a morte, que vão desunidas na brisa que sopra. (“A Passagem”, grifo nosso) Admiravelmente poéticos são estes versos (meditação sobre um mundo que é efêmero, e também incognoscível), em que “temporário” rima com o seu oposto, o “armário” que tenta guardar a imortalidade, passageira como as nuvens, como os próprios “mistérios do mundo”, levados, em rima feliz, pelo “vento vagabundo”: Tantas folhas no chão! O vento vagabundo leva para bem longe os mistérios do mundo. E tantas nuvens passam! Tudo é temporário, até a imortalidade guardada no armário. .................................. Estamos impedidos de ver a realidade. (“O Mar Escarlate”)

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No entanto, algo mais é preciso que se diga sobre o vento. É verdade que, aliando-se ao mar, ao tempo e aos bichos roedores, ele agencia a morte. No entanto, não é esta sua única função na poética de Lêdo Ivo. Aqui, ele sinaliza também a presença de algo soberanamente indefinível, absolutamente livre, algo que, por isto, está além de Deus, ou, se não além, ao lado, numa diagonal de surpresa imprevisível. O poeta cerca e inquire Deus, ironizando-o e desmistificando-o, mas o vento ele não inquire nem questiona. Daí a relevância do vento, enquanto tema-sema recorrente desta poesia: ele instaura no texto o sentido da busca empreendida, um mais além que é divisa do poeta em sua caminhada. A presença deste vento livre se traduz no poema “As Mangas de Ruy Barbosa”, que mistura ironicamente meditação filosófica e evocação histórica. E a meditação nos diz que o vento, embora seja emissário da morte, aliado do tempo, agente da destruição, é também signo de liberdade, e duma liberdade que consiste precisamente em ser uma presença tão imperiosa quanto invisível e inapreensível, perceptível apenas em seus efeitos, mas impossível de localizar-se, de prender-se a alguma das formas que permeia. Ele é quase um nada, está muito próximo ao nada, e em sua liberdade serve de correlativo objetivo máximo ao poeta. Travesso, vagabundo, ele ousa invadir espaços patrimoniais e planos referenciais, impondo seu triunfo sobre a soberba humana e permitindo ao poeta, num jogo de palavras, uma reflexão: No jardim da mansão cor-de-rosa onde morava Ruy Barbosa as mangas maduras são derrubadas pelo vento do verão e caem no chão coberto de folhagem. No jardim cheio de plantas e pássaros da Casa de Ruy Barbosa em Botafogo 180


o vento agita as mangueiras frondosas. E as mangas caem. E o dia passa. Toda a história do homem acaba no chão. E as mangas saborosas (espada, rosa) que pertenceram ao conselheiro Ruy Barbosa são hoje bens tombados pela União. E por isto há momentos em se dá uma declarada identificação do poeta com o vento, e então a ação desarrumadora lhe parece natural, e o que lhe parece estranho é precisamente a permanência. Num soneto de raro virtuosismo verbal, um vento à solta, que não permite à rima senão alguns jogos internos (“vento”, “turbulento”), reforçados pelas reiterações assonantes de “vento” em formas substantivas, adjetivas e verbais (“vento”, “vendaval”, “vertigem”, “vário”, “volátil”, “ventava”), ganha a adesão do poeta, que, seduzido pelo seu mistério, vira-se em vento e não se espanta com os seus efeitos, mas sim com o que lhe resiste: Tanto o vento soprava que me vi mudado na vertigem sibilina do vento que ventava, comprazido em tornar tudo vário e turbulento. No seu soprar ele arrastava as folhas, areia, ramo seco, e até meus sonhos que se desvaneciam no ar medonho, em matéria volátil transformados. Rodeado de tanto desamparo, o que me espanta não é o turbilhão das coisas arrastadas na tormenta 181


mas o que fica em nós, o que não passa nem jamais se desfaz no vendaval, e ousa resistir ao próprio vento. (“O Vento”) Identificação que se confirma na afirmação de que o inapreensível constitui o seu próprio ser: Sou como o vento que sopra e a chuva que cai. (“Respiração”)

Combinatória dos Signos Ao longo desta amostragem, pudemos observar que os temas-semas recorrentes aparecerem quase sempre associados em combinatórias reiteradas que exercitam a busca do sentido numa alquimia poética. Em alguns poemas, estas associações se tornam mais complexas, pela incidência de mais numerosos temas. Tais exercícios podem ser bem observados nos seguintes exemplos, em que os variados sintagmas, por mim assinalados, remetem o texto aos diversos temas e seus respectivos campos semânticos: Absurdo como a vida, onde se aninha a pátina da morte, voa o pássaro. (“O Visitante”, grifos nossos) 182


Futuro, o vivo jaz dentro do morto ....................................................... O antigo transeunte que há nos mortos o convida a tomar café-em-pé ao pôr do sol que cheira a sanduíche e a gasolina – adeus, ó vida imensa que se nutre de riso, pó e prece, adeus, ó papagaio que empinei, adeus, joelhos amados, brisa pura da praia, a tudo adeus. Não só de moscas vive, crucificado e mudo, o morto. Guerreiro do absoluto, mata a morte. Ser de promessa, horizontal e póstumo, O homem vive da espera. E nem defunto Ele abre mão de sua eternidade. (“Ofício da Mortalha”, grifos nossos) E a monótona criança (teu tenaz sobrevivente) empina seu papagaio na eternidade do vento. (“O Homem e a Chuva”, grifos nossos) Estou além da morte, como os mortos. Nesta absurda aventura sem sentido que é a vida, e o seu vento desvivido, sou antes dos navios, como os portos. (“Soneto dos Trinta e Cinco Anos”, grifos nossos) 183


O que foi infância sempre é monumento íntimo, fincado na praça do vento. E um menino, velho, quase arqueológico, vem com sua arraia e suas gaiolas e no céu de agora solta passarinhos e diz seu segredo a outro menino. ............................. Segura, menino, a linha encerada da arraia empinada no céu de domingo. (“O Dever”, grifos nossos) Minha pátria é onde os goiamuns pressentindo o cair da noite buscam as locas entre os mangues. ............................................................ Eu soletrava a ferrugem de navios sem nome que a lama das lagoas mastigava. ......................................................... Minha terra é o novo caminho que o homem abriu sem querer no capim à beira do arrozal. ................................................... 184


E, nos monturos, homens e urubus, na lei da livre concorrência, ganham o pão que Deus amassa. (“Minha Terra”, grifos nossos) Toda vez que anoitece, as tanajuras me rodeiam e cobrem a terra inteira. Oferendas de um céu cheio de ganidos, elas pousam no dorso dos cachorros e se aquietam nos ninhos, junto aos ovos dos [pássaros. .......................................................................... Do chão amolecido pelas chuvas as formigas vieram, como flores e pássaros dispersos pelo vento. Na terra há lugar para todos. Nenhuma estaca impede a aparição de novos formigueiros. (“As Formigas”, grifos nossos) O vento do mar rói as casas e os homens. Do nascimento à morte, os que moram aqui andam sempre cobertos por leve mortalha de mormaço e salsugem. Os dentes do mar mordem, dia e noite, os que não procuraram esconder-se no ventre dos navios e se deixam sugar por um sol de areia. ...................................................................... Foi aqui que nasci, onde a luz do farol cega a noite dos homens e desbota as corujas. ......................................................................... 185


Mesmo os que se amam nesta terra de ódios são sempre separados pela brisa que semeia a insônia nas lacraias e adultera a fretagem dos navios. Este é o meu lugar, entranhado em meu sangue como a lama no fundo da noite lacustre. E por mais que me afaste, estarei sempre aqui e serei este vento e a luz do farol, e minha morte vive na cioba encurralada. (“Planta de Maceió”, grifos nossos) Aqui os navios se escondem para morrer. Nos porões vazios, só ficaram os ratos à espera da impossível ressurreição. (“O Cemitério dos Navios”, grifos nossos) Passageiro do navio que não para em nenhum porto finjo não ver que a morte me quer vivo, e não morto. (“No Navio da Vida”, grifos nossos) Nos coretos das praças brancas passeiam [caranguejos. Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar fluindo docemente dos sacos armazenados nos [trapiches 186


e clareiam o sangue velho dos assassinados. Assim que desembarco tomo o caminho do [hospício. Na cidade em que meus ancestrais repousam em [cemitérios marinhos só os loucos de minha infância continuam vivos e à [minha espera. Todos me reconhecem e me saúdam com grunhidos [e gestos obscenos ou espalhafatosos. Perto, no quartel, a corneta que chia separa o pôr do sol da noite estrelada. Os loucos langorosos dançam e cantam entre as [grades. Aleluia! Aleluia! Além da piedade a ordem do mundo fulge como uma espada. E o vento do mar oceano enche os meus olhos de [lágrimas. (“Asilo Santa Leopoldina”, grifos nossos) Onde havia alegria agora sopra o vento: o aflitivo lamento de um pássaro que morre. (“A Dúvida Final”, grifos nossos) Sou o que sonhei ser. E agora a noite desce e é o meu amanhecer. ....................................

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e para sempre estou esperando o navio que virá me buscar. Sou o que nunca fui. E agora a noite nasce e toda sombra é luz. O que fui e sonhei está na plataforma pronto para o embarque. (“Porto de Jaraguá”, grifos nossos) À brisa perguntei o que é a eternidade. Ela me respondeu: – uma simples aragem. .................................. No horizonte medroso os navios passavam junto aos currais de peixe. E os pássaros, na aragem, voavam, voavam, rumo à eternidade. (“Os Pássaros”, grifos nossos) Após tanto sono no escuro da terra as rosas se elevam para as nuvens altas ............................... 188


Pássaros que pousam e folhas que caem. Sob as buganvílias os cachorros sonham. E as aranhas tecem o tempo infindável. E o vento, o vento, eterno lamento do tempo que passa. .............................. Formigas caminham na grama orvalhada. (“A Luz do Dia”, grifos nossos)

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O Sentido dos Sentidos

Lêdo Ivo e a Crítica Com esta amostragem exemplificativa dos temas-semas, cuja recorrência constrói o sentido na Poesia de Lêdo Ivo, creio ter demonstrado que alguns sintagmas, atuando como núcleos semânticos, associam-se em variadas composições, tendendo, em sua múltipla diversidade, à construção de um sentido. Mas, se é difícil afirmar qual dentre estes temas-semas tem primazia; e se, por outro lado, os poemas não são uníssonos, por vezes parecendo mesmo contradizer-se mutuamente; então, que sentido se poderá extrair dos múltiplos sentidos? Haveria, e qual seria, entre os temas-semas citados, aquele que mereceria o lugar primacial, dominante sobre todos os outros? Esta questão foi proposta, em termos categóricos, pelo próprio Lêdo Ivo, no poema “O Poeta e os Críticos”. Enumerando os diversos temas que, segundo esse ou aquele crítico, seria predominante na determinação do sentido de sua poesia, o poeta os alinha num eixo – constituído por uma sucessão de temas-semas recorrentes: Deus, noite, sonho, sol, claridade, amor, mulher, escuridão, navios, infância, mar, azul, bichos, mangue, morte, tempo, estrelas, dia, nuvem, vento, caminhante – para ao fim tudo demolir, numa soma em que o resultado é o noves fora nada de um não sentido para além de quaisquer sentidos. Num primeiro momento, enumera todas as hipóteses de sentido postuladas pelos críticos:

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Poeta da noite e do sonho que ousa interrogar Deus sem nem mesmo conhecê-lo direito por linhas tortas, assim foi estampilhado por um crítico sagaz. Mas um outro proclamou: és poeta da claridade e o sol que trazes perturba os meus olhos fatigados. Um terceiro o definiu como o poeta do amor e do corpo feminino que freme na escuridão como rosa atravessada. Um resenhista apressado o limitou aos navios que ele viu quando menino no azulverde mar azul da península natal. À luz do estruturalismo um professor garantiu: sei ler a tua linguagem. Teus peixes e caranguejos são metáforas falazes. Não me engana o teu império de maceiós e alagoas nem a luz do teu farol. Não me ilude o goiamum que sorrateiro atravessa a água negra dos teus mangues. Digo, mesmo que te zangues, que a morte é tua matéria. 192


Um poema de tua lavra é chave de cemitério. E aquele crítico atento às suas portas fechadas e às suas folhas caídas chamou-lhe poeta do tempo e das ilusões perdidas e invocava como prova a fria cinza nascida de uma fogueira no bosque. Um crítico o festejava pelos seus versos lacônicos enquanto outro o censurava pelo seu ritmo oceânico. Num segundo momento, o poeta, ironicamente dizendose aturdido com tantas “doutas versões” (e já vimos outras manifestações de sua reticência crítica ante as teorizações críticas e acadêmicas), vira-se em outras direções, para si mesmo (“seus botões”) e para instâncias superiores (“estrelas”), lançando-lhes uma indagação: Pela noite rodeado ou sob o sol caminhando o ledo poeta aturdido por tantas doutas versões perguntava aos seus botões ou indagava às estrelas que brilham mesmo ao céu claro só para quem sabe vê-las: o que digo quando digo? Por quem falo quando falo? Já que os críticos divergem 193


no tamanho do meu metro sou parco ou sou excessivo quando entoo minha canção? Onde começo e termino? Quem sou? Quem fui? Quem serei?

A pergunta ontológica, instalada nos três tempos verbais, instaura a incerteza, que a seguir se demonstra na percepção da própria pluralidade e contraditoriedade: Porque sou um e sou vários, ora vivo dividido, ora morto esquartejado? eu sou eu ou sou o outro, esse guerreiro ardiloso que, oculto em mim, me combate na batalha desigual?

Num breve terceiro momento, interpõe-se, significativamente, a percepção da impermanência no próprio mundo, cuja substância é a efemeridade, comparável à de uma nuvem passageira (e o verbo passar desempenha uma função relevante nesta Poesia Completa). A poesia recalcitrante, que se evade a explicações conclusivas, assim o é porque dá conta da descoberta de um mundo igualmente evasivo: Tantas perguntas, e o dia Como uma nuvem passava!

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Mas, só num quarto e conclusivo momento, a resposta (categórica) lhe vem do vento: Só o vento lhe respondia no silêncio do céu mudo: – és como eu sou. Nada sei. Sopro noite e dia. E é tudo. (“O Poeta e os Críticos”, grifos nossos) De modo algum seria fortuita esta atribuição da resposta ao vento. Só ele, em sua existência para além das definições, poderia dar aos críticos, através do poeta, a resposta sobre o buscado sentido de sua poesia, levando-o a um ponto que observaremos adiante. É preciso, porém, antes dizer que a questão da múltipla diversidade e suas implicações, na poesia de Lêdo Ivo – já percebida por Drummond, quando o definiu como um “poeta múltiplo” – foi notada e abordada, em geral, pelos seus críticos, em comentários que sugerem o sentido e propósito apontados nesta multiplicação. Ivan Junqueira, por exemplo, no já citado estudo introdutório à sua Poesia Completa, referindo-se ao “homem vário, complexo e inquieto que se move sem cessar por detrás de cada um de seus versos”, afirma ser “quase infinita a constelação temática que inerva a poesia polifônica de Lêdo Ivo” (citando por temas recorrentes: mar, infância, corrosão, fugacidade, perecimento, memória, sordidez, lixo humano); e acrescenta: Autor opulento e às vezes desmedido(...) deve ser visto, também, à luz do excesso e da magia retórica. Sua poesia, embora severa do ponto de vista do uso da língua, 195


é polifônica (...) a um tempo lírica, elegíaca, reflexiva, sarcástica e às vezes escarninha.10 Polifônica e polimórfica, é também uma poesia polissêmica. Como fio de sentido nesta polifonia abundante, Junqueira sugere: “em boa parte desses poemas ecoa (...) a temática daquilo que se busca e não se alcança ao longo da existência”. Neste algo “que se busca e não se alcança”, e no motivo pelo qual não se alcança, está, a meu ver, o cerne do sentido possível da Poesia Completa de Lêdo Ivo. Mais precisamente, é nesta procura que se acha o sentidos dos sentidos desta poesia; pois o sentido aqui não se encontra naquilo de que fala a poesia, nas formas que a poesia observa, mas sim no modo como o observador as observa: caminhando, indo, atravessando, passando. O sentido dos múltiplos sentidos – como um centro ao qual convergem os múltiplos raios – é o movimento, a passagem. Um sentido, portanto, ligado, não ao ser, mas ao devir. Esta hipótese parece confirmar-se no episódio relatado pelo poeta ao jornalista Geneton Moraes Neto, numa entrevista: Quando publiquei Confissões de um Poeta, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta, Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura. Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda.11

10

Ob. cit.

11

MORAES NETO, Geneton. Rio de Janeiro: globo.com, 2004.

196


Que a descoberta esteja precisamente na procura e que a procura, por isto mesmo, persista até os anos avançados do poeta, nisto se encerra um segredo filosófico profundo, ontológico e epistemológico, e, sobretudo, existencial, que é o tema deste estudo. Continuemos com os críticos leitores de Lêdo Ivo. Izacyl Guimarães Ferreira observa que “nada escapa à ânsia de dizer (...) numa compulsão insaciável de registrar o visto, o sentido, o pensado (...) como se o poeta estivesse desde sempre destinado a cumprir a missão de revelar, de narrar, de testemunhar”. E, ao notar esta avidez, fareja o seu sentido, quando nela avista um propósito além: “Lêdo está sempre a redirecionar nossos sentidos, a dizer-nos que há mais, há muito mais, adiante.” Também Sérgio Buarque de Hollanda, no já citado estudo, percebendo o que considera “fortes indecisões continuamente presentes”12 na poesia de Lêdo Ivo, e comentando que o poeta, “mais exuberantemente lírico, talvez, do que qualquer dos seus companheiros de geração (...) não pode jurar fidelidade a uma técnica exigente e única”13, desenvolve uma pertinente reflexão, que vale a pena trazer aqui à pauta: Se na Ode ao Crepúsculo (...) já o próprio título, assim como a “Declaração dos Direitos do Sonho” (...) sugerem uma inspiração sombria e até abismal, será lícito procurar aqui o sentido verdadeiro desta poesia? (...) É muito possível que um leitor arguto e mais intimamente familiarizado com os escritos do Sr. Lêdo Ivo chegasse, por alguma sutil criptografia, a discernir nestas manchas de sombra e mistério justamente o oposto de um sentimento de frustração e insatisfação diante da vida cotidiana. 12

Ob. cit., p. 172.

13  Id., p. 171.

197


Assim, elas não passariam, paradoxalmente, de caprichosa tela verbal, destinada, em verdade, a encobrir o que exista aqui de transparente, de aquiescente, por isso de pouco hesitante para os que, segundo o gosto da época, vão buscar na poesia a emoção indefinida ou a surpresa. E esse leitor não deixaria de insistir em que nesta poesia a parte de mistério é bem menor do que o fazem crer as aparências, predominando, de fato, uma luminosidade solar e estival. Poesia de ar livre, onde a exaltada aceitação da vida presente parece manifesta através das palavras que nela mais assiduamente se repetem: mar, sol, horizonte, céu, vento, navios, pássaros, rosas... Aceitar todavia esta interpretação é querer eliminar (...) o que há de complexo ou hesitante nos motivos e até nos temas da poesia do Sr. Lêdo Ivo. Bastaria observar, aliás, como aquelas mesmas palavras, em sua singeleza aparente, nunca deixam de encerrar um conteúdo ambíguo (...): “Jamais veremos o mar que o mar oculta / Seremos sempre cegos à rosa que está na rosa.”14 Identificada esta hesitação, complexidade e ambiguidade nos poemas de Lêdo Ivo, o crítico, já àquela altura em que se publicava o Cântico, perquiria e sondava mais a fundo os motivos das aparentes contradições manifestas nos seus versos; e, discernindo no poeta um vidente, um mago alquimista, observava: quem aspira a penetrar o mistério de olhos abertos, não pode contentar-se com a atitude do romântico, do realista ou do surrealista. O poeta há de tirar de si, com 14

Id., pp. 172-73, grifos nossos.

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suas forças, a matéria inefável a que dará voz e sentido.15 Significava isto reconhecer que Lêdo Ivo, enquanto poeta autêntico, abria com seus próprios passos o seu próprio caminho, através de suas aparentes contradições. E conclui a reflexão: Todavia, a indecisão (...) pode ser ilusória, e dependerá unicamente dos termos falsos em que uma divisão tradicional teria colocado o problema da “inspiração” e da “reflexão”. Será interessante, a esse propósito, lembrar como foi posta a questão por um dos mais admiráveis analistas atuais da criação literária. A diferença entre aqueles dois termos, segundo acentua Maurice Blanchot, não se deve medir, com efeito, pela maior ou menor dose de atividade consciente que neles se exprime. A “inspiração” significaria apenas a anterioridade do poema com relação ao seu autor.16 A contradição, quando não concerne à lógica interna do

texto, não nos deve espantar. Num mundo natural em que a águia amorosa que alimenta seus filhotes é a mesma águia cruel que despedaça as crias de outras mães; e num mundo humano onde alguns indivíduos, rodeados por uma cápsula protetora, desenvolvem suas faculdades criativas e contemplativas, enquanto outros (aliás, a maioria) são despojados de bens, ou, prematuramente, da própria vida; como se poderia cobrar ausência de sombras na poesia que não fecha os olhos à realidade? Mas é da lógica interna que aqui se trata. Também eu, de início, detive-me um instante ante a hipótese de que um dos semas, 15  Id., p. 173. 16  Id., p. 174.

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sendo predominante, fosse determinante de um conclusivo sentido para esta aventura. Uma poesia noturna? Ou uma poesia do vento, como presença impalpável, agente de algo que tudo perpassa e tudo corrói, tudo desfaz, tendo por sócios os bichos roedores? Poesia, então, da morte inexorável? Mas logo percebi que seria preciso ir além, pois havia algo mais. E foi estimulante ler o poema “O Poeta e os Críticos”, que nos obriga a ultrapassar as desconstruídas particulares soluções.

O Nada Qual, então – se há –, o sentido convergente e subjacente destes múltiplos possíveis sentidos? Responder a esta questão implica discernir a que ponto levaria a consciência que chega àquela resposta, ouvida do vento, na qual a identificação do poeta com o vento se inverte, sendo o vento a declarar a relação especular:

És como eu sou. Nada sei. Sopro noite e dia. E é tudo.

A intransitividade desta resposta nos leva a um último tema-sema do complexo semântico desta Poesia Completa: o Nada, que obviamente teria que vir depois de todos, pois, se um equacionamento de termos é possível, talvez se devesse formular a inter-relação dos múltiplos sentidos na seguinte expressão: noite + silêncio + morte + vento = nada. Mas a expressão assim formulada ainda não está resolvida, porque lhe falta um termo, que se achará no tema-sema principal, que é o do caminho. Deste tratarei no 200


próximo capítulo. Agora, observando a incidência recorrente do “nada” no texto, tratarei de outro tema, que, sendo também principal, compõe, numa associação com o tema do caminho, um tema único. Refiro-me ao “branco”, que, adjetivando o “caminho”, confere-lhe o sentido de um “caminho branco,” no qual tudo se funde em silêncio, ausência, vazio – nada. Um nada que – é preciso esclarecer à partida – não significa a ausência de formas, entes e coisas, mas o vazio essencial que as permeia, a elas subjaz e ontologicamente as engendra e suporta. Essência das formas fenomênicas que se descobre buscando a totalidade:

Guardemos apenas o eterno que tudo o mais é escória efêmera. Aspiremos ao absoluto. Quanto ao resto, não vale a pena.

(“A Meta”)

As incidências do sintagma são, no texto, as mais laconicamente terminativas. Como esta, em que se acha um parentesco com a ode do Ricardo Reis (“Somos contos contando contos. Nada”): por ser a vida o que todos sabem: berço e cova, eternamente nada.

(“Soberba”, grifos nossos)

Um nada que é o antiachado na travessia do filósofo caminhante: 201


Desde o início dos tempos, antes de a vida ser dividida em horas, estou batendo às portas da Realidade, e ninguém me responde, porque não há ninguém do outro lado, mas o vazio onde um Deus outrora habitou, fracionando as eternidades possíveis. (“O Abutre da Realidade”, grifos nossos) Sou um homem que perdeu tudo mas criou a realidade. (“Canto Grande”) Nada que é patrimônio do poeta, prometido ao filho que contempla no berço: Não lego o burgo lacustre com escravaria e gado. Teus ancestrais só deixaram a sesmaria do nada. (“A Saudação dos Ancestrais”) Nada que é constatação, experiência, renúncia e oferta: Tenho aprendido pouco em minha vida e o que sei mal dá para viver. Meu glossário é incompleto e nele falta 202


a palavra magnética que abre as portas fechadas. Sei apenas o nome de uma estrela e o seu lugar cativo no céu de verão. Embora já seja noite, ainda não aprendi a descer em uma cidade estrangeira e atravessar as [pontes que se sucedem além do aeroporto. O nevoeiro avança e apaga os vestígios dos homens e as suas moradas precárias que não os protegem das avarias e destruições. À morte ofertarei a minha ignorância como quem guardou um presente a vida inteira para dar a ninguém.

(“Desembarcando em Londres”, grifos nossos)

Nada que é tudo: Tudo está em tudo como a voz nos lábios de um deus mudo. Nada está em nada, agulha perdida perto da esplanada. Sou tudo e sou nada, dois passos iguais no chão da avenida. Sou nada e sou tudo andando sozinho no dia sujo. (“Esplanada”) 203


Nada que é o ponto de anulação, num poema em cuja primeira estrofe ressoam imagens metafóricas (“sonho que se esgarça na fronha amarfanhada, na enfadonha cadeira em que se senta a vida esparsa”) que bem poderiam ter saído de um poema do Sá-Carneiro; e em cujos dois últimos versos reincide – com diferentes sintagmas, alinhados no mesmo paradigma – “o ponto intermédio” perpetuado naqueles versos célebres do Dúbio Mascarado: “Eu não sou eu nem sou o outro / sou qualquer coisa de intermédio”: Quem quer não quer, quem sonha nada sonha exceto o próprio sonho que se esgarça na fronha amarfanhada, na enfadonha cadeira em que se senta a vida esparsa. ............................................................. E na sala de espera da estação eu não fico nem parto: permaneço entre a regra que sou e a transgressão. (“Na Estação da Leopoldina”) Aberta a porta a esta consciência, até a sombra se desfaz: Mas quem morre, que vida deixa à morte? E quem vive, que vida deixa à vida? Aberta a porta, a sombra se dissipa. (“A Morte Súbita”)

204


O nada está associado à perda. A incerteza é perda, uma certeza que se perdeu. Longe, porém, de ser o produto duma deficiência ontológica, a incerteza impõe, até na perda pronominal, a consciência da inanidade do ego sum. E quem, num sopro, leva até as letras do seu nome, é o vento, agente do não ser, colaborador do Grande Nada: Nada sei sobre mim, quem sou ou de onde vim. Não sei para onde vou quando me for para onde. Não sei se esse ir me expõe ou se esse ir me esconde.

Onde está sua identidade: no ser ou no não ser? Desaparece o ego sum: E já que nada sou, nada tenho de meu, e nem mesmo de mim, como ser um pronome, essa ínfima partícula que de si e dos outros tem tanta sede e fome e em lenta combustão se queima e se consome?

Desaparecem a vida e, levadas pelo vento, as letras que compõem o nome do poeta:

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Nem mesmo a vida resta quando a gente regressa do passeio à floresta. Tudo na vida some. E o vento sopra e leva as letras do meu nome. (“A Partícula”, grifos nossos) O poeta-filósofo, contemplando o espetáculo de ruínas que a História lhe oferece, alcança um mais profundo nível de consciência, que o faz avistar em Roma, não o espetáculo turístico de uma grande civilização, na ilusão de um Coliseu apinhado de apressados visitantes, mas o alçar duma folha ao vento, uma folha amarelada pelo outono, forma já próxima ao nada: Um arco do Triunfo. Mas que triunfo, se tudo é derrota e naufrágio? Os passados perdidos escorrem pela boca dos leões ultrajados e fossas de granito. Rodeados de pombos os turistas arrulham os idiomas da morte. E uma folha amarela alçada pelo vento no ar lavado de outono é tudo quanto resta da grandeza de Roma. (“Triunfo”) 206


A já referida identificação do poeta com o vento é próxima à identificação com o nada, que se exprime na confissão de sua própria inanidade, quando assim se designa – “Eu me chamo ninguém”: Sou o vento que vem dos subúrbios de urina e querosene e cega lentamente os olhos das estátuas. Os gigantes do mundo me perguntam: “Qual é o teu [nome?” E respondo: “Eu me chamo Ninguém.” Os gigantes jiboiam nos iates ancorados nas ilhas. A cólera da vida treme nas calçadas ......................................................... e os peixes se acumulam nas cestas fétidas nos supermercados diluídos no puro pasmo das fornicações. (“Finisterra”, grifos nossos) O nada vai achando sinônimos, nesta operação subtrativa. Assim, a rosa se oferta à “vida vã”: Caluniado espinho na haste da rosa, a ninguém ferirás nesta manhã em que a rosa vermelha, a rosa airosa oferta sua vida à vida vã.

(“O Espinho”)

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A folha se oferta, no vento, à inexistência do não ser, ao nada ontológico: Dar-se inteiramente, para não morrer, como folha voante se oferece ao outono. Dar-se inteiramente. E porque nos oferecemos ao inexistente, aqui estamos procurando uma razão para justificar essa oferta que nada vale, porque nada somos. (“Ode ao Crepúsculo”) Um nada que, no entanto, é tudo, inclusive versos em cujas sílabas ressoa a universal indagação: E assim a vida flui, respiração de seres e matérias solidários. (“O Vaso de Flores”) O que se traduz no silêncio eloquente, ambiguidade que distingue o poeta: O poeta sempre diz tudo quando se cala em seu nada. É um contrabandista mudo na alfândega da vida. (“O Contrabandista”)

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Nada que é também advertência aos que creem nas promessas de um paraíso post-mortem: O outro mundo é este mundo. Nenhum lugar fora daqui à nossa espera. (“Aqui”) E a força do Nada é tal que, superando a todos os demais temas-semas – o vento inclusive – fez com que este admirável soneto – de ressonância camoniana – intitulado “O Endereço da Noite”, não tenha sido por mim incluído no item dedicado à noite. Isto porque, embora o sintagma “noite” nele se reitere em três incidências, às quais se associam duas de morte, e uma de navio (indicativas da partida e despedida); e embora o fecho do soneto seja o sintagma “vento”; o Nada – vazio que o vento encena, e a que reverte o próprio pó, em que tudo se converteu – é absolutamente definitivo: Agora que anoitece é que amanheço como se o meu depois fosse o meu antes e os anos sucumbissem nos instantes em que vou perecendo e não pereço. Embora a noite caia, não conheço o endereço da noite, e os habitantes de sua casa, nem os navegantes da nave que foi sempre cova e berço. 209


Só os mortos estão livres da morte, sem mala aberta e sem o portaló do navio que é partida e perdimento. Quando a sorte é lançada, não há sorte. O que era vida e amor se muda em pó e o próprio pó se muda em nada e em vento.

Outro soneto esplêndido apresenta, no primeiro terceto, o cômputo final de toda a existência – Nada. A ponte que o poeta aqui atravessa é aquela preconizada por Schopenhauer como única saída possível para fora do sono da vontade cega, da qual o mundo, diz o filósofo, não passa de representação: Sou sempre o que está além de mim como a ponte de Brooklyn ao pôr do sol. Sou o peixe buscado pelo anzol e o caracol imóvel no jardim. De mim mesmo me parto, qual navio, e sou tudo o que vive além de mim: o barulho da noite e o cheiro de jasmim que corre entre as estrelas como um rio. Quem atravessa a ponte logo aprende que a vida é simplesmente a travessia entre um aquém e um além que são dois nadas. Na madrugada escura a luz se acende. Que luz? De que vigília ou de que dia? De que barco ancorado na enseada? (“Soneto da Enseada”, grifos nossos) 210


No primeiro terceto, formula-se claramente, em síntese admirável, o sentido da Poesia Completa de Lêdo Ivo. “Atravessar” e “travessia” são os sintagmas-chave deste sentido, porque só em movimento se percebe o movimento da vida, que se faz entre dois polos contrários, cuja inter-relação se resolve em anulação, e resulta em nada. Associando-se ao nada a perda, o poeta está cônscio de que a perda aparente é na verdade um avançado achado: Quem já vai perdido deve ter cuidado: não perder a perda que é o seu achado. Já que perdeu tudo, não perder mais nada. Ir de mãos vazias pela madrugada .............................. Toda perda é rampa que faz do arremesso um novo tropeço. (“O Perdedor”) São versos de reminiscência seiscentista, onde ressoam, atualizados, os dilemas rimados e ritmados de San Juan de la Cruz. Leia-se agora, sem qualquer desnecessário comentário, esta magnífica canção de embalo: Quem vive perde a vida levada pela brisa. 211


Quem morre perde a morte trancada em carro-forte. Quem ama perde o amor preso no elevador. Quem sonha perde o sono como um rei perde o trono. E assim a vida vai e assim a vida vem: aragem, maresia, suspiro de ninguém. (“Canção de Embalo”) Encerre-se este item com um sugestivo poema, que no próprio título (“Sombra Perdida”) traz o tema da perda. O poeta, caminhando entre árvores, perde a própria sombra, e a pretexto de recuperá-la vai interrogando – em versos aparentemente ingênuos (porque líricos, bucólicos, e enraizados em tradições poéticas ancestrais, que bem justificam a alusão a Bernardim Ribeiro, feita por Sérgio Buarque de Hollanda no ensaio já citado), versos permeados por belas metáforas (a fonte com “lábios de prata”, o rio com “lábios de carvão”, ambos mudos às perguntas do poeta) – os entes (a fonte, o rio, o sol) que encontra em sua caminhada, que desta vez se faz no interior de um bosque: Perdi a minha sombra no caminho entre as árvores. Pergunto à fonte fria se por acaso a viu. 212


E a fonte, embora cante, a mim nada responde com a sua voz de água. A fonte fria cala quando falar devia. Os seus lábios de prata se cerram para mim entre bosques e pássaros e ramos de alecrim. Pergunto ao rio claro onde está minha sombra que perdi entre as árvores. E suas águas brancas águas negras se tornam. Seus lábios de carvão se fecham para mim no dia impenetrável de pedra e gergelim. Ninguém lhe responde, mas o mutismo do sol equivale a uma resposta: Ao sol que me ilumina reclamo a minha sombra. Seus raios silenciam e no silêncio dizem: – jamais recobrarás o que perdeste um dia no caminho entre as árvores. Quem sob o sol caminha na longa travessia entre a dor e a alegria 213


perde a sombra e a vida. Além da fonte clara cercada de jasmins que canta e silencia há sempre à tua espera um grande rio escuro – um rio de águas frias. Outra vez a travessia entre os opostos (vida e morte, luz e treva, dor e alegria), resultando na perda de tudo, inclusive da vida! A resposta, no trecho sublinhado, contém o segredo da perda sofrida pelo caminhante: aquele que caminha “entre a dor e a alegria” jamais recupera aquilo que perdeu. E o que foi que perdeu? Até mesmo a sombra – último vestígio da ilusória crença de ser alguém que a si mesmo se possui, com certezas firmes e duráveis. A caminhada se faz com perdas, levando mesmo à perda da ilusão do eu, que não mais projeta sua sombra. Até a sombra se perde, e (como no estranho conto “A Viagem”, de Sophia de Mello Breyner Andresen), surge a percepção do irreversível grande Nada em que se apoia e de que irrompe a existência. Então: se a noite é o lugar do refúgio e do silêncio, onde o poeta-filósofo, livrado da agitação diurna, pode contemplar mais de perto o mistério; se a morte é o destino de todos os entes e formas contemplados; se os bichos são agentes da decomposição, ou pacientes da lei que tudo reduz ao pó; se todos os entes e formas, em sua múltipla diversidade, são apenas florações fenomênicas de um princípio invisível e impalpável, de que o vento é o signo mais próximo; e se o cômputo final de tudo é um Grande Nada que submete o próprio pó – o que será a caminhada que percorre o caminho, ou faz o caminho? 214


Esta pergunta é necessária e implicativa, porque na junção da vacuidade com a mobilidade foi que identifiquei o sentido da Poesia Completa de Lêdo Ivo.

215



O Caminhante Sibilino

A Caminhada Não por acaso Ivan Junqueira, intitulando o seu estudo introdutório à Poesia Completa “Quem tem Medo de Lêdo Ivo?”17, e nesta poesia identificando uma “funda preocupação metafísica”, concluiu a mesma introdução afirmando que “quem tem medo de Lêdo Ivo somente o tem por temer a poesia, uma poesia que desceu às raízes do ser e ao horror da existência.” Vê-se, com efeito, que é um filósofo avançado este poeta. Porém é mais que isto: o poeta contemplativo, conhecedor de um enigmático, profundo mistério, é um caminhante. Como se acha no título de um de seus poemas: um “Caminhante Sibilino”. Como ainda observa Ivan Junqueira, no mesmo estudo, referindose à conjunção de firmeza e flexibilidade que se acha em Lêdo Ivo, “há nele a lição daquele carvalho heideggeriano que, em sua aparente imobilidade, ainda assim se move e se transmuda sem cessar.” Sim, trata-se sem dúvida dum poeta inquieto e múltiplo, um poeta polimorfo, autor duma poesia polifônica, o que alguns já notaram. Para dizer mais precisamente, trata-se de um poeta que, como referi no início deste estudo, passa a impressão de estar sempre em movimento. E aqui tocamos o ponto essencial, pois o fato de estar ele em movimento é fundamental para a constituição de sua poesia, cuja compreensão, no meu entender, deverá passar pela observação deste fato. Isto porque o movimento é um fator determinante, que não apenas responde pela unidade subjacente aos versos, como também confere um sentido mais profundo ao obstinado percurso de seis décadas. 17

Ob. cit.

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Quero com isto dizer que, se perguntarmos o que move, o que busca, a que se destina, e como se manifesta o impulso criador, em Lêdo Ivo, teremos que, necessariamente, passar por este ponto crucial: que o movimento é essencial à sua poesia. Creio ter sido já evidenciado, no percurso que fizemos através de seus temas recorrentes, que o poeta anda à procura de algo, reiteradamente, numa disponibilidade atenta às múltiplas formas que o interpelam, e segue sempre em frente, continuando o caminho. Em certos momentos, lembra-se de nos lembrar que está caminhando, referindo-se ao tema expressamente, em títulos ou no próprio corpo de poemas. Esta consciência que ele próprio tem de ser um caminhante também se expressa no seu livro Confissões de Um Poeta18. No capítulo intitulado “O Vento Vagabundo”, por exemplo, ele sugere indiretamente o vento como um seu correlativo, a partir do relato de um sonho recorrente que desde a infância o perseguia, e que ele contava a um psicanalista. Descreve assim o sonho, e a interpretação que lhe deu o especialista: Menino, mais uma vez me encontro perdido na festa ruidosa, entre rostos permutáveis que me fixam ou passam sem me dar atenção. Estou num jato, sobrevoando Nova Iorque, mas Nova Iorque não existe. Vagueio entre ruas barrocas; contemplo palácios de vidro que protegem os gestos infalíveis de burocratas diáfanos; acerco-me dos navios apodrecidos nas alagoas natais, sob a imprecação das gaivotas perturbadas pela minha curiosidade; subo escadas em espiral que me conduzem à torre troncônica do farol que iluminou minha infância. Mas quando estou prestes a atingir o que busco – um lugar, uma mulher, uma concha, a metáfora que consagra a abolição da morte 18

IVO, Lêdo. Confissões de um Poeta. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

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– minha mão levantada é a de alguém que acorda, no gesto desconsolado de afastar a treva prematura. O doutor em almas humanas acolheu o meu sonho e me surpreendeu com o seu diagnóstico. Ao contrário de eventuais passantes, sempre inclinados a interpretá-lo como um parto reiterado da incerteza e da insegurança, viu nele a obsessiva nota íntima de uma busca. O meu sonho significava a luta de um homem à procura de sua própria personalidade.19 Vemos, portanto, o próprio poeta se revelando como um indivíduo em movimento obstinado, num sonho recorrente, em busca de sua própria identidade. Este, aliás, é um tema também recorrente em sua poesia. Cito, por exemplo, o poema “A Busca Insensata”, que está em O Soldado Raso: Saindo à minha procura fui por caminhos travessios e vales e rios. Pisei areias inumeráveis, bebi em muitos mananciais e em sonhos escalei penedos que eram ninhos de relâmpagos. mas a minha sede – a de ser eu mesmo – não se saciou jamais. Que o sonho signifique a procura da própria personalidade será verdadeiro, sim, mas desde que se tenha em mente ser necessário aqui expandir a extensão, amplitude e profundidade do 19  Id. pp. 12-13.

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âmbito a ser delimitado quando se diz “a própria personalidade”. Assim como será também possível admitir a interpretação do sonho recorrente como “parto reiterado da incerteza e da insegurança”, desde que se projetem estes termos no plano de uma compreensão filosófica mais avançada, como aquela exposta por Alan Watts no seu The Wisdom of Insecurity. Pois, tratando-se embora duma busca da própria origem, é, contudo, uma procura de ordem metafísica, ontológica, uma busca do próprio sentido da existência, que por isto inclui inumeráveis seres, extravasando o âmbito do eu, até porque, como ele mesmo diz em outro capítulo de Confissões de Um Poeta, intitulado “Intervalo”, para os poetas, “eu é o mais impessoal dos pronomes”, e de tal modo que outro capítulo se intitula “Meu Nome é Ninguém” (o reiterativo “I’m Nobody” de Emily Dickinson). O tema reincide nas Confissões. No capítulo “Sempre Sonho que Sou Outro”, descreve ele um sonho de inequívoca claridade imagística: Sonho que, sendo outra pessoa, ando por um corredor infinito (ou um labirinto) à procura de alguém – e sou eu mesmo esse alguém procurado. Cada porta aberta mostra-me a mim mesmo sentado diante de uma mesa, e à espera da visita desse outro que é o único, ao passo que sou dezenas.20 Esta consciência da própria multiplicidade, e do impulso imperativo para nela achar a unidade, é constante nas Confissões como nos poemas. Em “O Vento Vagabundo” ele afirma: (...) eu era todo incerteza e turbilhão, abundância e desperdício, sequestrado por um turbilhonante mim mesmo desprovido de setas e contornos. 20

Id. p. 155.

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Minha ambição, na manhã dos primeiros versos tortos e da prosa gaguejante, era criar um recipiente formal que me contivesse por inteiro, em uma melodia durável.21 Reafirma, em “Intervalo”: Penso num livro agenérico que seja ao mesmo tempo um poema, uma biografia, uma crônica, um romance, um diário, um ensaio – um texto onde os meus eus fragmentados se reúnam, como numa praça, e imponham ao transeunte eventual a verdade momentânea de sua coesão.22 Mas este poeta, não esqueçamos, é um “caminhante sibilino”. Ele porta um arcano maior, que não permite a resolução aparentemente fácil do dilema, pela adoção de um remédio universal, receitado por outrem que não lhe conhece o caminho. Por isto, no capítulo que tem por título “Tudo São Caminhos”, fazendo a defesa da inteligência espontânea instintiva, e referindo-se aos jovens poetas que o procuram para pedir conselhos, diz ele: (...) não perguntem nada a ninguém. Sejam como o turista que, perdido numa grande cidade, acerta por acaso, depois de incontáveis perambulações, o caminho do hotel.23 21  Id. p. 13. 22  Id. pp. 175-76. 23  Id. p. 338.

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E acrescenta: No meu caso pessoal, tive a fortuna de ser reconhecido imediatamente, quando de minha aparição. Entretanto (...) muitas das vozes de aplausos não vinham desprovidas do empenho em evitar que eu trilhasse determinado caminho — e este era, precisamente, o caminho de minha singularidade, a estrada em que os meus passos certos haveriam de encontrar a confirmação de minha diversidade.24 (...) na antologia de jovens poetas, onde todos são desoladoramente iguais, até no plágio da imagem descabelada, procuro aquele que é desigual. Na fileira dos que tudo aceitam e compreendem, busco a mão pronta a levantar o estandarte da incompreensão ou de uma nova e radiosa insolência. No rebanho dos ortodoxos, meu olhar porfia em localizar o heterodoxo indesejável.25 Está

claro que o poeta tem plena consciência de trilhar um caminho próprio, singular, no qual se vinca a sua diversidade. Em entrevista a Izacyl Guimarães Ferreira, lembrando o início de sua carreira e referindo-se ao comentário de Sérgio Buarque de Hollanda sobre o fato de ele ser um poeta de nome curto e versos longos numa geração de poetas com nomes compridos e versos curtos, ele diz que aquela observação jocosa “documenta e proclama a minha diferença, o que eu poderia pomposamente dizer que é a minha singularidade, a minha marca pessoal e intransferível”; e relembra: 24

Id. p. 339.

25

Id. p. 340.

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Eu era, entre os meus jovens pares, a ovelha negra, o chamado “enfant terrible”. Várias vezes o Péricles Eugênio me expulsou da geração de 45, alegando indisciplina e mau comportamento de minha parte. Conforta-me que esse sentimento de transgressão me tenha acompanhado até agora.26 Nisto são raros Lêdo Ivo e Almada Negreiros, um no Brasil,

outro em Portugal: ambos lograram ser jovens assumidamente rebeldes e assim permanecer até a idade avançada, provando que a rebeldia tinha razão e consistência. E certamente deve-se a esta firmeza em preservar a autenticidade aquilo que Ivan Junqueira sustenta quando, celebrando os 80 anos do seu confrade, diz que ele chega a esta idade “inteiro”, e que “inteira chega também a sua poesia”; acrescentando terem sido “poucos os poetas que o conseguiram”. Quem ler com atenção toda sua Poesia Completa compreenderá e concordará que Junqueira sinta nesta poesia o “sabor dessecado de uma passa que ainda soubesse ao frescor da uva”, de “um fruto cristalizado”; e que nela veja “quase um diamante”. Obviamente, não se deve confundir esta determinação em permanecer num caminho singular com a arrogância presunçosa dos principiantes. Aliás, o que assinala sua singularidade é precisamente a consciência da própria inanidade que o substancia – ente mortal que sabe ser – e da qual surge a poesia, que, como diz Ivan Junqueira, “desceu às raízes do ser e ao horror da existência.”27 Sobejamente provamos esta consciência nos versos já aqui observados, mas o poeta ainda nos lembra: “revejo-me nessas vozes ansiosas que acreditam em minha experiência, e torno a respirar os dias do caminho que na verdade só a mim 26

Entrevista ao Jornal da UBE, 2003.

27

Ob. cit.

223


sozinho competia descobrir, longe de quaisquer importunações, e que me conduziu até a esta fanfarra antes da poeira.” 28 Que caminho, então, será este seguido por Lêdo Ivo? Quais serão o motor e o propósito do movimento que produz sua poesia, e qual o sentido que a ela confere este movimento? Comecemos por observar que a caminhada se explicita na recorrência dos substantivos “caminhada”, “caminhante”, “caminho”; e dos verbos “caminhar”, “andar”, “marchar”, “avançar”, “atravessar”, “ir”, “passar”, “viajar”: Caminhei entre as luzes de uma alameda branca. A aurora me encontrou num chão de palha. (“O Amor Exclusivo”, grifo nosso) Caminha a vida ao meu lado com o seu odor marinho, ardiloso sol da tarde que me aquece como se fosse a própria eternidade surgindo no meu caminho. (“Pássaro Predatório”, grifos nossos) Minto quando, atravessando a ponte, proclamo que sou vários. ........................................................ 28

IVO, Lêdo. Confissões de um Poeta, p. 337.

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No espelho estilhaçado, vivo inteiro. E atrás de minha sombra deformada que ao sol se multiplica passo a passo eu caminho sozinho e verdadeiro. (“O Mentiroso na Ponte”, grifos nossos) Que forma luminosa me acompanha quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz do meu tempo perdido, e um rio banha tudo o que caminhei da fonte à foz? (“Soneto Presunçoso”, grifos nossos) Esta noite começa um novo caminho. E por ele eu me vou novamente sozinho. O vento da noite arrasta as folhas que pisaste. (“A Passagem”, grifos nossos) Reiterando-se em diversos tempos e modos, os termos que designam a caminhada atribuem-se aos movimentos do próprio poeta ou de alguma das formas que ele observa, mas são sempre imputáveis ao sujeito da enunciação. Algumas vezes, caminha acompanhado pelo sol, pela sombra: 225


Tão alto vai o sol que não o alcanço com a minha mão que sempre alcança tudo, desde a nuvem pendente do céu mudo à sombra que me segue quando avanço. Entre o mar fugitivo e o céu manso o sol avança no espaço desnudo. Remanso de uma luz que é nada e tudo, vai alto o sol, sem pressa e sem descanso. (“Soneto do Sol”, grifos nossos) Ou neste, em que “cão” metaforiza “sol”, e o substantivo “trilha” reforça o indício de uma caminhada: Entre lumes dispersos resplandeço. Resplandeço entre lumes. Rodeado de luz vou entre os homens na tarde que atrai moscas e formigas. Este esplendor desperdiçado é a véspera do frio e da escuridão. Sob um sol que me segue como um cão presencio a disputa interminável entre o céu congestionado de almas sujas e a meiga terra tolerante. Dívida ou dádiva, o que sobrar de mim nesta trilha de tanta luz terrestre 226


será entregue a quem o reclamar após a batalha perdida. (“A Entrega”, grifos nossos) Ou é o dia quem o acompanha: Marcha o dia a meu lado como um homem ao vento, e eu sou o dia com seus juncos ............................................................... (“Homenagem a Lorca”, grifos nossos) Ou, ainda, uma raposa: Volto a atravessar os campos onde as andorinhas escondem seus ninhos azuis. E a raposa amaldiçoada em todos os quintais me acompanha entre as moitas. (“O Caçador”, grifo nosso) E todo o poema “Finisterra”, construído com formas verbais (“ando”, “vou”, “levo”, “caminhando”, “passe”, “caminham”, “rastejando”) e substantivas (“meus passos”, “caminho”, “partida”, “chegada”) que indicam deslocamento, é a descrição de uma caminhada em busca de uma terra imaginária não encontrada:

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Ando na multidão e meu nome é Ninguém. Na cidade que cheira a peixe podre e gasolina e demagogia pisado pela tarde vou roçando as escamas das paredes que cosem a minha dor. ................................................................. Levo na maresia o meu amor de homem e ninguém sabe que amo a não ser os cães que farejam meus passos pelas alamedas. .................................................................. No caminho entre o viaduto e o motel vou quando venho... Partida e chegada são quimeras do horizonte e grasnar de gaivotas que irritam os burocratas na alfândega. E caminhando pelo Rio vivo de todos os assombros ............................................................................... homem que atrás do sol e da alegria se defronta com os terraços cinzentos da amargura. A hora faz uma curva de luz para que eu passe entre os milionários os padres os lixeiros os palhaços [e as prostitutas que são os meus semelhantes. ............................................................................... Comungamos nos guichês. E quando a Bolsa cai nossas almas monetárias tremem. Entre o terror e o telestar e a formiga que sobe a escadaria do Ministério da [Fazenda sinais luminosos se formam. (...) ............................................................................... vou na multidão de boca lacrada. Sou um homem isolado dos outros homens que caminham como se já estivessem mortos. ......................................................... 228


E junto aos tapumes escarlates da tarde que bloqueia o cansaço dos homens vou rastejando na terra quebrada onde o ódio passa a galope, espalhando a morte. Ó noite dos semáforos e espantalhos e das [caranguejeiras ocultas nos trapiches ó noite dos morcegos que em minha infância [sustentavam os estandartes do sonho as hélices de teus navios carregados de estrelas [cruzam os anfiteatros do mar. Mas onde está a finisterra que me prometeste, além [das ilhas idiotas e dos mitos corroídos pela [maresia? Como um lustre no teatro quando as luzes se [acendem minha vida inteira estremece ao cair da noite e ouço na escuridão o cântico de tudo o que parte. (“Finisterra”, grifos nossos) Mas há incidências em que, por referências indiretas, se subentende que o poeta está em movimento, caminhando: Não me sinto um intruso nesse império escuro onde o crepitar dos fogos ocultos alcança os lençóis brancos das galáxias. O olhar das corujas nos ramos dos cedros 229


bebe a minha dor que interroga o mundo e o caos luminoso dos céus sucessivos que os jatos esfolam. E piso na bosta que os cavalos legam à glória da Noite. (“A Noite no Jardim”, grifo nosso) E outras em que, além da referência indireta, há outra explícita, no título do poema: Naquele anoitecer me assaltou a ambição de saber com certeza o que era a morte. Por acaso encontrei um pássaro na neve e suas penas frígidas me responderam. A morte é apenas isto, esse frio final enquanto a chuva cai entre os pinheiros e a noite se aproxima rodeada de sonhos. (“Atravessando um Parque”, grifos nossos) O poeta caminha numa busca de si mesmo, incessante e incansável: Saindo à minha procura fui por caminhos travessios 230


e vales e rios. Pisei areias inumeráveis, bebi em muitos mananciais e em sonhos escalei penedos que eram ninhos de relâmpagos. Mas a minha sede – a de ser eu mesmo – não se saciou jamais. (“A Busca Insensata”, grifos nossos) Espelho, espelho meu, haverá alguém no mundo mais viajado do que eu? As aeromoças ignoram que a minha aventura é secreta, não começa em aeroporto. Quanto mais lançado longe Mais de mim fico mais perto. .............................................. As paisagens que me esperam estão muito além das viagens. (“No Aeroporto”, grifos nossos) Ou serenamente resignada, em meio à bruma, que, como a névoa e o nevoeiro, instauram a incerteza:

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Que grande nevoeiro esta manhã! ..................................................... Dentro de mim também há nevoeiro e eu ando tateante, às palpadelas, à procura de mim, e não me enxergo na hora cor de chumbo, nem percebo que vagueio na bruma que há lá fora.

(“Manhã de Nevoeiro”, grifos nossos)

E este frio final não me incomoda mais. (“A Cobrança”) Caminha com metáforas, e metaforizando-se em outras existências, de entes outros, fazendo-se voz do caranguejo, e este, o seu correlativo objetivo, e até encontrando Deus numa água putrefata: Como um caranguejo caminha nos mangues assim atravesso o dia dos homens. Avanço na lama da noite e dos sonhos, carregando a pátria negra dos meus pântanos.

Estou onde estão a larva e a borbulha, o bulbo e o miasma.

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Na água putrefata onde Deus se oculta eu também me escondo. (“O Caranguejo”, grifos nossos) Ou indaga do caminho a um ser que encontra, que pode ser uma fonte: Não choro a minha sorte e volto a ser ninguém pelas ruas cinzentas e pergunto o caminho à fonte que lamenta seu próprio pranto claro e ao surdo que ouve tudo e divide a verdade entre os punks e as estátuas mudas de Copenhague. (“Balada de Copenhague”, grifo nosso) Ou algum ente lhe serve de correlativo objetivo para a saga de caminhante: Lá vai a formiga perdida no campo no imenso universo de bosques e grama no verde oceano de folhas e troncos. 233


Ela vai sozinha sem ninguém que a guie nos sulcos e ramos. Pobre formiguinha obrigada a andar num mundo tão grande! Rica formiguinha errante e segura. Por montes e vales troncos e barrancos cercas e muros ela já aprendeu que tudo é caminho. Indo no chão duro ela também sabe que hoje é o futuro. Formiga perdida e achada no campo. (“A Formiga”, grifos nossos)

Ando no mormaço. Um sol escondido rasteja entre as nuvens. As árvores cantam nas folhas e ninhos. Agora aprendi: toda a eternidade cabe num só voo de um único pássaro. (“Mormaço”, grifos nossos) 234


O verbo “caminhar”, indicando movimento, incide mesmo quando o poeta reflete sobre a distância que o separa de um amigo (“aberta pela sombra”, que aqui significa o outro do eu, negação da afirmação: Embora seja teu amigo não nos encontraremos nunca. Jamais verás a minha sombra quando eu caminhar ao teu lado. (“O Amigo”, grifo nosso) E mesmo quando o propósito do poema não é se referir propriamente ao caminhar e ao caminho, só o dizer de si mesmo e da própria vida, reunindo temas-semas como vida, mar, tarde, eternidade, já traz implícitos a caminhada e o caminhante, através de expressões (aqui assinaladas) que os denunciam, como decurso de uma marcha na linha do tempo, que define a vida como viagem: Eu sou esse viajante. Desde a infância aprendi a reter e a guardar, e trago sempre comigo uma multidão de paisagens e lembranças, o rumor do mar longe, o cheiro de hortaliças no mercado sitiado pela tarde, o grito de êxtase que varou a escuridão como um pássaro. Até mesmo um calhau esbranquiçado que um dia achei na praia costuma acompanhar-me: por motivos inexplicáveis, não o dispenso. Tenho malas demasiadas nesta viagem, baús cheios de palavras e frases, imagens e metáforas, símbolos e alegorias. Meu reino é o excesso, esse rival incomparável do rigor e da medida. (“O Desembarque”, grifos nossos) 235


A reincidência da procura que sempre se perpetua, porque nunca se acha aquilo que se busca, inclui encontros ou desencontros com mistérios, em poemas como este, que nos faz visualizar uma misteriosa clareira, aberta em bosque inatingível, morada de um “Demônio” que se diz à espera do caminhante, mas não é encontrado. Num “caminho sinuoso”, de forma serpentina, povoado por “pássaros negros”, o poeta nos transmite a impressão de um Mefistófeles expectante num “bosque inatingível”, cujo sentido fica suspenso, sempre adiado: Quem vai aos bosques se encontra com o Demônio que mora numa clareira. A manhã nascia quando abri o portão e comecei a [andar no caminho sinuoso como uma serpente. Embora não fosse outono, as folhas das árvores caíam [sobre os meus ombros. Eram negros os pássaros pousados nos arbustos e que se recusavam a voar à minha passagem. Caminhei o dia inteiro. A vida inteira atravessei o portão e andei entre as [árvores. Não encontrei a clareira. Não encontrei o Demônio que continua à minha espera no bosque inatingível. (“O Demônio”, grifos nossos) E é curioso que o caminho tenha a forma da serpente. É verdade que o poeta caminha no bosque, e os caminhos do bosque 236


costumam ser sinuosos. Velho refúgio de outros caminhantes sibilinos (Rousseau, Beethoven, Garrett, Hesse, Schopenhauer, Heidegger, entre outros), o bosque inicia o seu explorador e amante no mistério do silêncio e lhe lança surpresas, que podem surgir a cada curva. Entretanto, por mais empírico que seja este bosque percorrido pelo poeta em sua poesia, nada nos impede – sendo ele um elemento da poesia – de considerá-lo também como metáfora, o que terá suas implicações. O ninho do gavião, também não sendo encontrado, inspira estas negativas: Andei por estes campos e não descobri o ninho do gavião. – Há coisas que jamais saberemos. Foi um dia perdido. Nada encontrei na espessura do bosque. – Todos os dias são perdidos. Nas folhas pisadas havia sinais de alguém que passara antes de mim. – Teu coração suspeitoso. Só voltei para casa quando o pôr do sol começou a esconder as montanhas. – A noite é o caminho. Todavia guardei no escuro coração um pouco de rumor e claridade. (“Um Dia Perdido”, grifos nossos)

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Caminha o poeta na cidade, ao crepúsculo e na névoa: Como o dia que passa, vou sempre adiante ao encontro do mundo. Invento a realidade. E enquanto caminho um crepúsculo imundo cai sobre a cidade. Acordado ou sonhando, sigo em frente. Só reconheço Deus e mais ninguém. Abrindo cada dia um portão diferente sou sempre Quando e meu nome é Quem. Por entre as ondas vou, como as catraias, e cada passo meu destrói as raias que se alongam além das amuradas. Rodeio o mar impuro como a terra. Há um navio horrendo à minha espera apitando na névoa. (“Revisitando a Praça Quinze”, grifos nossos)

Caminha no campo, na montanha, no bosque: Uma folha amarela. E era um novo dia que surgia relutante nas montanhas. A mim mesmo reclamei a graça imerecida de poder continuar andando pelo bosque (“O Primeiro Dia do Ano”, grifos nossos)

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Caminha na neve e no gelo, lembrando a pátria tropical: Nesta noite em Toronto, junto ao lago gelado que o grasnido dos gansos não ousa estremecer minha pátria ofendida surge na escuridão e vem ao meu encontro com seu sol e andrajos. Ao seu redor estão os goiamuns que moram no chão mudo dos mangues, o sinal semafórico que ao lado da guardamoria freme na maresia e os mendigos que esperam a morte sob os viadutos. Caminhando na neve nesta noite estrangeira, entre as sílabas negras dos frígidos pinheiros, murmuro ao vento o teu nome desmantelado. Ó pátria desamada, ó rameira insultada, quanto mais longe estás, teu espinho distante mais dói na minha mão inútil e gelada. (“Soneto à Pátria”, grifos nossos) No bosque, no campo e na neve, caminha estrangeiro em busca de si mesmo: Procuro um lugar para me esconder e encontro a claridade. O dia passa ao alcance da minha mão como um pássaro. 239


Sob a tutela de um diamante o feno está empilhado no celeiro. A luz habita a perfeição do gelo. Vejo para sempre o corvo que grasna nos pinheiros e as brancas montanhas de Deus. Junto ao riacho congelado um cavalo imóvel espera a noite esplêndida. Procuro um lugar. E caminho na neve como um estrangeiro. (“Os Passos na Neve”, grifos nossos) Definitivamente estrangeiro, perdido e em busca de si mesmo: Passageiro de bonde ou andando de metrô, não sei de onde vim e nem para onde vou. Quem és, quem sou, quem sou? (“O Passageiro”, grifos nossos) E a busca de si não se conclui em achamento, mas em perda: A serpente agoniza, mudada em coral. A relva abre caminho ao silêncio dos homens que escalam as montanhas douradas do outono. 240


Entre os que vão e vêm eu também venho e vou. Nos tormentos do mundo fui multiplicado e de tanto existir já não sei mais quem sou. (“O Raio”, grifos nossos) Perdi a minha sombra no caminho entre as árvores. Pergunto à fonte fria se por acaso a viu. ........................................ Pergunto ao rio claro onde está minha sombra que perdi entre as árvores. ......................................... Ao sol que me ilumina reclamo a minha sombra. Seus raios silenciam e no silêncio dizem: – jamais recobrarás o que perdeste um dia no caminho entre as árvores. Quem sob o sol caminha na longa travessia entre a dor e a alegria perde a sombra e a vida. (“Sombra Perdida”, grifos nossos) Num primoroso soneto – cujos versos espelham movimentos por dédalos metafísicos, similares aos do Cancioneiro pessoano – reitera-se a caminhada em busca do eu nunca 241


encontrado, em metáforas geniais do paradoxal absurdo, que tem algo de kafkiano (“enquanto espero a vinda da luz perdida de uma estrela morta”), ou do existente-inexistente (“sou aquele que está além de mim; na quimera do horizonte; sinto saudades do que nunca fui”) obsessivamente sofrido pelo “Emigrado Astral”, aquele fulgurante decadente que se disse perdido dentro de si mesmo como num labirinto: Quem bate à minha porta não me busca. Procura sempre aquele que não sou e, vulto imóvel atrás de qualquer muro, é meu sósia ou meu clone, em mim oculto. Que saiba quem me busca e não me encontra: sou aquele que está além de mim, sombra que bebe o sol, angra e laguna unidas na quimera do horizonte. Sempre andei me buscando e não me achei. E ao pôr do sol, enquanto espero a vinda da luz perdida de uma estrela morta, sinto saudades do que nunca fui, do que deixei de ser, do que sonhei e se escondeu de mim atrás da porta. (“Soneto da Porta”, grifos nossos) A perda no labirinto é notada por Ivan Junqueira na poesia de Lêdo Ivo, quando o crítico diz que “em boa parte desses poemas ecoa, como um pedale sostenuto, a temática daquilo que se busca e não se alcança ao longo da existência”. Com efeito, o 242


tema se prolonga sobre outros, sendo, entretanto, preciso observar que o encontro de Lêdo Ivo com as categorias do absurdo e do inexistente-existente dá-se em nível complexo. Nele, o nunca se encontrar é na verdade um achado, no caminho de ganho pela perda, de afirmação pela negação, única forma humanamente possível de acessar a incognoscível e inapreensível essência das múltiplas formas fenomênicas: Sempre me procurei dentro de mim perdido em meus próprios domínios. E no nunca me achar é que me encontro e sou. Só parto ao regressar. Só venho quando vou. (“Passeio no Jardim”, grifos nossos) Por isto, pode brincar com o tema, como neste poema: Quem já vai perdido deve ter cuidado: não perder a perda que é o seu achado. Já que perdeu tudo, não perder mais nada. Ir de mãos vazias pela madrugada. (“O Perdedor”)

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Ou advertir, muito a sério: Quem busca o amor nada encontrará. O amor não é busca. Não é bolsa esquecida num banco de praça nem traça no armário. Para encontrar tudo o que o amor encerra numa cobertura ou numa favela jamais busque nada. Caminhe na bruma que envolve a cidade. Contemple o crepúsculo de uma balaustrada. Quem busca só acha a própria procura: molusco engastado na concha preclara ou cheiro de mijo deixado no muro. Aprenda a viver. Não procure nada nem mesmo a agulha caída no chão. Nem mesmo uma rima para uma canção. Seja em dia claro ou no lusco-fusco não gaste o seu tempo procurando o amor 244


que ele não é coisa que seja buscada. De repentemente junta dois parceiros que andavam perdidos no denso nevoeiro. (“Andando no Nevoeiro”, grifos nossos) Compare-se este poema àquele outro – “Uma Busca Incessante” – no qual o poeta afirma: “Dedico o dia inteiro à procura incansável”. Seria incongruente dizer-se um buscador, envolvido numa busca incessante, e depois ordenar: “não procure nada, jamais busque nada”? Seria contraditório aconselhar que não se procure o amor, que não se procure nada, e depois dizer que dedica “o dia inteiro à procura incansável”? Só aparentemente, porque se trata, aqui, de duas instâncias diversas. Aquele que busca incansavelmente nada tem a ver com a mente que se determina a encontrar o amor. São duas atitudes diferentes, concernentes a dois planos distintos de consciência: uma, de cega e primária intencionalidade; outra, de rendida e atenta disponibilidade – a espontaneidade tão postulada por Almada Negreiros e designada com o termo “wu wei” por filósofos chineses antigos. E o caminho e o caminhar assumem a dimensão metafísica: Desde a eternidade estás condenado a ser o que és. As estrelas regem tua vida inteira. Jamais fugirás ao que foi traçado 245


para teu caminho. Cumpre teu destino andando sozinho de noite e de dia e louva o carrasco oculto nas trevas que segue teus passos. (“A Condenação”, grifos nossos) Caminhada em que se fundem caminho e caminhante: Eu atravesso a ponte e sou o rio. A canoa que passa. Sou os remos. Jamais deixei de ser a travessia. (“Cascata”, grifos nossos) Quando estou sonhando sou viagem e viajante que avançam, unidos no mesmo horizonte. Não há outros em mim quando em outras paragens me encontro e caminho sozinho na sombra e respiro o aroma de flor que do chão sobe à constelação que invento quando sonho. (“O Lugar do Sonhador”, grifos nossos) 246


E também, com o verbo subir, a indicação de uma caminhada ascensional: Subir é preciso. Quem sobe a montanha ganha o paraíso. (“A Escalada”, grifos nossos) Caminho ascensional desencantado, sem identificação com a crença em Deus como ponto final: Foi na infância que comecei a subir esta escada sinuosa – este labirinto rendilhado que ostenta, em cada um de seus lances, a pomposa dignidade do ferro. Ainda hoje, alvejado pela fadiga e rodeado pela monótona sucessão das estações, ignoro o que me espera lá em cima. Uma biblioteca? A torre sincrônica de um farol? Um terraço de onde eu possa assistir à chegada interminável dos navios? O voo de uma gaivota que atravessa o mormaço? Desde o início aboli a possibilidade de estar sendo conduzido para o Inferno ou o Paraíso, essas fictícias paragens finais que, não pertencendo à geografia terrestre, não se incluem entre os sítios prometidos aos meus passos futuros. Antigamente, cada degrau galgado correspondia a um minuto. Depois, os degraus se foram tornando as referências das horas, dos dias, das semanas, dos meses e, finalmente, dos anos. Agora, acabo de pisar um novo degrau, na longa escadaria que se enrodilha no espaço. É um novo ano que se abre, como uma flor, 247


no jardim incorruptível das estrelas. Haverei de pisar outros degraus, até cair extenuado no patamar decerto existente no mais alto desta bizarra construção reservada unicamente à minha ascensão pessoal – para que a minha solidão seja ao mesmo tempo uma verdade e um trabalho. Evidentemente, nada me espera lá em cima. Eu sou o próprio esperado, o conviva de nenhum banquete, o visitante de si mesmo. E, imóvel no degrau recém-conquistado, sinto-me invadido por uma estranha alegria e, contemplando o longo corrimão que se encurva entre o dia e a noite, a mim mesmo me digo, numa celebração íntima: Feliz ano novo! (“A Escada”, grifos nossos) Observe-se, ainda sobre este poema – no qual a descrição é de paisagens oníricas, que não pertencem à “geografia terrestre” – que nele o sintagma “sinuoso” ressurge, agora não mais qualificando o caminho no bosque, mas a escada ascensional. Alinhando-se ambos (caminho e escada) num eixo semântico, a serpente (metáfora de um caminho sinuoso) será o paradigma. O imperativo de caminhar – de que o poeta é plenamente consciente – expressa-se com humor neste poema, que sugere reminiscências romanas: “Quem não anda com as próprias pernas jamais alcançará a vida eterna”, foi o que o anjo me disse ao me ver sentado num dos degraus da igreja de Santa Maria degli [Angeli. Então me levantei e comecei a caminhar. 248


Avancei na nave escurecida e pedi a Deus (era o Deus dos turistas) água e fogo. (“O Pedido”, grifos nossos) No caminho de busca ontológica, a caminhada rumo à origem, antes da rendição ao nada, evidencia a correspondência entre luz e sombra, de um lado, e, do outro, eu e outro, consciente e inconsciente: Jamais soube quem sou nem saberei. Só sei que o vento sopra e a chuva cai, o mar selvagem brame entre os rochedos e o sol clareia os ledos arvoredos. ........................................................ Também não sei dizer se sou o outro, a sombra que me segue sob o sol e me desfolha como a um girassol e em mim se esconde quando me descubro na falta e na ausência e me procuro no grafite que tisna a cal do muro. Tudo em mim é pergunta e incerteza. E perplexo caminho rumo à praia antes que tudo em mim se esvaia.

(“Rumo à Praia”, grifos nossos)

Mas – repito! – o poeta, declarando sua perplexidade, não faz confissão do que poderia parecer – no domínio dos valores humanos mais convencionais e superficiais – uma deficiência pessoal de ordem moral ou psíquica. Não. Não se trata disto. A 249


falha ontológica nele apercebida é percepção de uma fenda que dá pista ao próprio cerne do ser – e do não ser. O poeta sabe, experimenta a brevidade do existir, a breve fração de tempo que lhe é dada para caminhar, “perplexo, rumo à praia”, “antes que tudo” nele “se esvaia”. Nenhuma incoerência (pelo menos no sentido convencional do termo) também se acha quando o poeta, caminhando sozinho numa floresta, caminha na verdade – “fluido como a água e duro como as rochas” – entre os homens. Ele (que avista os “longínquos horizontes”, para além do mundo humano) está próximo igualmente da humanidade, e o que dela o aproxima é a consciência de algo que mesmo antes de Schopenhauer outros filósofos caminhantes conheciam, e ele, o poeta, aqui menciona – “a dor do mundo”: Armei uma fogueira na floresta para aquecer os que, longe de mim, estão sentindo frio. Da farinha mais pura fiz o pão para nutrir os que, perto de mim, estão sentindo fome. Cavei um poço e encontrei a água prometida aos que morrem de sede. Sou água, fogo e pão. E não separo as sombras dos longínquos horizontes das vozes que estão perto. Sou longe e perto na clareira aberta na floresta cerrada, no silêncio da flor que desabrocha. 250


E fluido como a água, e duro como as rochas estou sempre onde está a dor do mundo. Mesmo quando sozinho, caminho entre os homens. (“Mesmo Quando Sozinho”, grifos nossos) E ele tem a sua marca, sua divisa pessoal, o traço exclusivo que o distingue entre outros vários poetas e filósofos caminhantes. Algo há que o distingue, entre todos, respondendo pelas mais altas cintilações de sua poesia, como neste poema, em que seu estro atinge o cume: Que me deixem passar – eis o que peço diante da porta ou diante do caminho. e que ninguém me siga na passagem. Não tenho companheiros de viagem nem quero que ninguém fique ao meu lado. Para passar, exijo estar sozinho, somente de mim mesmo acompanhado. Mas caso me proíbam de passar por ser eu diferente ou indesejado mesmo assim passarei. Inventarei a porta e o caminho e passarei sozinho. (“A Passagem”, grifos nossos) Tudo o que Lêdo Ivo pretende e deseja é passar, seguir, abrir caminho. Repare-se bem: ele não diz “serei”, nem “chegarei”, nem “alcançarei”, mas sim “passarei”. E aqui, neste exato momento, a palavra “passarei” subitamente abriu-se, como 251


uma grande novidade, a mim, que li toda a Poesia Completa de Lêdo Ivo desatenta ao parentesco etimológico existente entre ela e suas correlatas, de um lado, e, de outro, o substantivo que aqui irrompeu por obra da proximidade fonética: “pássaro”. “Passar”, “passagem”, “passarei”, “pássaro”. Palavras relevantes frequentes no texto desta Poesia Viva. Eureka! Pássaro, do latim “passaru”, não vem precisamente de “passar”? O pássaro, cuja primazia na poética de Lêdo Ivo tem sido notada por alguns de seus críticos, em seu voo simbolizando a eternidade, a altura. Comenta-se a excelência impactante daquele verso: “Desabo em ti como um bando de pássaros”. Sim, ele é um tema recorrente primacial, e em muitos poemas metaforiza a eternidade. Em outros, simboliza a altura. Em outros, porém, não significa precisamente a brevidade, a velocidade, a liberdade de passar, a instantaneidade fugaz que é o suporte do ser inapreensível? “Passar”, com toda a determinação que o termo no texto implica, tem aqui duplo sentido: significa ultrapassar os obstáculos que se interpõem ao seu caminho único, exclusivo, intransferível; e também significa não se deter, não se imobilizar, mas ir adiante, continuar, seguir, sem se prender nem se deixar prender. E aqui tocamos o ponto crítico, o cerne do sentido de sua poesia, que consiste numa “busca incessante”. Porque ao buscar, na multiplicidade das variadas formas sensíveis, a essência que lhes subjaz e as suporta ontologicamente, descobre o coração ambíguo do ser, inseparável do não ser; e esta inseparabilidade dos opostos, nele operando uma mudança de atitude perceptiva, lança-o num dilema ante o qual ele, necessariamente, terá que imprimir à busca o movimento. Em outros termos, talvez se possa dizer, comparativamente, que sua procura poético-filosófica descobre a dinâmica dialética no âmago da estática metafísica. O sentido das coisas, então – entes existentes, Eu cognoscente, 252


e até a própria existência – suspende-se num ponto indefinível, tão indefinível quanto aquele momento respiratório em que o ar, tendo sido já inspirado, não foi expirado ainda. Então Lêdo Ivo, o poeta que faz esta descoberta e continua vivo (stricto e lato sensu) pode com pleno direito afirmar-se portador de um “privilégio”, e sem nenhum risco de tola presunção declarar à sociedade humana sua identidade cosmológica e ontológica: Ajustei-me às constelações. Sou um homem que está caminhando rodeado por todas as estações da terra. (“Privilégio”)

Uma Tradição de Caminhantes Mas este estudo, que já vai longo, iniciou-se tendo eu em mente as noções de tradição e diálogo em sua vinculação ao conceito de poesia, e agora as duas noções-chave outra vez me vêm à mente; pois me ocorre sustentar que o jogo antitético, no qual os opostos se confrontam, na poesia de Lêdo Ivo, tem provavelmente menos a ver com o barroco do que com outro veio estético-filosófico bem mais antigo. Por isto, ocorre-me também – antes de esclarecer o porquê de este estudo ressaltar o poema “O Caminho Branco” – sugerir algumas comparativas e dialógicas aproximações entre textos diacrônicos que se podem alinhar numa mesma vertente ou tradição: a dos poetas-filósofos, ou filósofos-poetas, que se distinguiram como caminhantes insubmissos ou defensores de um caminho heterodoxo 253


recalcitrante. Fosse meditando solitariamente em bosques, fosse transpondo fronteiras geográficas ou postulando convergências epistemológicas, já muito antes de Rousseau, Schopenhauer, Kierkegaard, Heidegger, Nietzsche, Höelderlin, Baudelaire, Pessoa, Valéry, houve quem se definisse na tradição do caminho. Comecemos, porém, com um texto hermético pessoano, intitulado “O Caminho da Serpente”, retirado postumamente da famosa arca e publicado por Yvette Centeno.29 Neste texto iniciático, escrito em inglês e depois traduzido pelo próprio autor, Pessoa (poeta que pensa a poesia) postula, através de metáforas elípticas enigmáticas, um caminho espiritual que exprime uma sabedoria mais avançada, percorrido por um caminhante simbolizado na Serpente, cujo serpear reproduz o movimento que passa, corcoveando, pelo meio dos contrários (bem e mal, alto e baixo, esquerda e direita, treva e luz), sem negar nem afirmar um ou outro: A Serpente está acima das ordens e dos sistemas, e, ainda que ascenda como sentido deles, dispensa as linhas e os caminhos. O seu movimento, para a direita na ordem inferior das coisas e dos seres, é-o apenas para que possa ser para a esquerda na ordem superior deles. O que os homens não podem conseguir senão dominando-se ou conjugando-se ou impondo-se, consegue a Serpente sozinha na sua liberdade. Ela liga os contrários verdadeiros, porque, ao passo que os caminhos do mundo são, ou da direita, ou da esquerda, ou do meio, ela segue um caminho que passa por todos e não é nenhum.

29  CENTENO, Yvette Kace. Fernando Pessoa e a Filosofia Hermética. Lisboa: Presença, 1985, pp. 27-35.

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A Serpente pessoana, simbolizando um sábio iniciado em mistérios mais avançados, é também conhecedora de um antigo filosófico arcano – o da vacuidade ontológica: A Serpente é o entendimento de todas as coisas e a compreensão intelectual da vacuidade delas. Seguindo um caminho que não é o de nenhuma ordem nem destino, ela ergue-se à Altura que é sua origem e evita os lugares por onde os homens passam. Seu caminho, levando além das categorias convencionais de bem e mal, ultrapassa a própria noção de Deus com outra, bastante frequente nos textos esotéricos pessoanos – a do além-Deus: Ela não conhece os mistérios mas envolve-os, desvia-se dos caminhos e das iniciações; deixa a ciência por onde passa; nega a magia, que atravessa; e quando chega a Deus não para. Este curiosíssimo texto reclama um estudo mais minucioso da intertextualidade do espantoso poeta. Num ensaio que escrevi há vários anos30, estabeleci uma correspondência entre a Serpente pessoana e o sábio taoísta, o que – antes mesmo de todas as convergências evidenciadas entre “O Caminho da Serpente” e o Tao Te Ching – parecia verossímil no próprio fato de o termo Nâga, em sânscrito, designar tanto serpente quanto 30  NÓBREGA, Luiza.“O Caminho da Serpente: Um Texto Taoísta”. Comunicação apresentada no colóquio “Portugal e a Ideia da Descoberta”. IADE, Lisboa, 1989.

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o sábio iniciado nos mistérios mais profundos. Aqui, neste outro texto, que dedico à Poesia Completa de Lêdo Ivo, ocorre-me ser oportuno sugerir um diálogo entre este caminho percorrido pelo poeta e aquele percorrido por alguns velhos sábios do antigo extremo Oriente, que falavam e escreviam num tempo em que ainda não se estabelecera a separação entre filosofia e poesia. Por exemplo, o filósofo-poeta hindu Nâgârjuna, décimo quarto patriarca do budismo e fundador do Mahâyâna, vertente budista que se traduz como “grande veículo”, por oposição ao “pequeno veículo” (Hînayâna), que era a linha ortodoxa tradicional. Nâgârjuna – caminhante inveterado, não apenas, com o pé incansável, pelas estradas do velho Oriente, entre os séculos II e III D. C., mas, com a mente implacável, pelo caminho óctuplo do Budha, que ele atualiza em oito negações – é autor de vários extensos tratados filosóficos escritos em forma de poemas, nos quais enuncia postulados antitéticos que desenvolvem até o paradoxo as teses basilares do budismo e os fundamentos filosóficos do caminho do meio, demonstrando metodicamente a vacuidade essencial e universal de tudo o que existe no mundo manifesto. O seu caminho não avança pela afirmação e construção, e sim pela negação e demolição. Num resumido, mas bem elaborado verbete de um dicionário de Filosofia Oriental31, do qual tenho uma edição francesa, assim se expõe a sua filosofia da vacuidade universal: Nâgârjuna tenta demonstrar a vacuidade do universo pela relatividade dos contrários. Ele desenvolveu uma dialética particular, que consiste em levar os raciocínios antitéticos até o absurdo. 31  SCHREIBER, Ingrid Fischer. Dictionnaire de la Sagesse Orientale. Paris: Robert Laffont, 1989.

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Partindo do princípio de que toda coisa só existe em relação ao seu oposto, ele demonstra que tudo é relativo e sem verdadeira realidade, quer dizer: vazio (shûnyatâ). Vazio reenvia, na linguagem filosófica de Nâgârjuna, à ausência de realidade das coisas, mas não à sua inexistência fenomênica. É falso que as coisas existam ou que não existam. A verdade se encontra no meio destas duas hipóteses, no vazio.32 O que o filósofo pretende, em seus exercícios de lógica, é demonstrar a insubstancialidade como atributo das coisas, dos entes, das formas todas, uma vez que elas só existem e só se definem em inter-relação. Se umas remetem sempre a outras, onde está a substância do ser, aquilo que é? Abre-se então um espaço intermédio, intervalar, o lugar do não ser, que não é nada, mas acaba por ser a única realidade possível. O vazio é, portanto, nesta perspectiva filosófica, um estado perceptivo em que se suspende o sentido e em que se alteram as categorias fundamentais da filosofia budista, incluindo-se a noção tradicional do Nîrvana, que é o objetivo final da filosofia e da prática budistas. Para ele, o Nîrvana é um estado de consciência em que desaparece toda separação entre o transcendente e o imanente, convergindo os dois planos numa unidade: O Nîrvana não é para Nâgârjuna qualquer coisa que se deva alcançar, e sim a tomada de consciência do 32  No original, traduzido pela autora: “Nâgârjuna tente de démontrer la vacuité de l’univers par relativité des contraires(...) Il développa une dialectique particulière, consistant à pousser les raisonnements antithétiques jusqu’à l’absurde. Partant du principe que toute chose n’existe que par son contraire, il démontre aussi que tout est relatif et sans réalité véritable, c’est à dire: vide (shûnyatâ)(...) Vide renvoie, dans le langage philosophique de Nâgârjuna, à l’absence de réalité des choses, mais non pas à leur inexistence en tant que phénomènes. Il est faux que les choses existent ou n’existent pas. La vérité se trouve au milieu de ces deux hypothèses, dans le vide”.

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que é a verdadeira natureza dos fenômenos, na qual se extingue toda multiplicidade.33 Guardemos esta afirmação – “a verdadeira natureza dos fenômenos, na qual se extingue toda multiplicidade” – atentos a que ela, apontando (pela junção de transcendência e imanência) a abolição da multiplicidade, implica a preexistência desta multiplicidade, ou seja: há uma pluralidade de fenômenos, que cessa quando se dá a “tomada de consciência”. Tenhamos em mente estas considerações, enquanto continuamos, porque teremos ainda de prosseguir, ir mais adiante, seguindo os passos da tradição dos caminhantes. Depois de Nâgârjuna, Bodhidharma, o vigésimo oitavo patriarca, levando à China esta compreensão filosófica – doutrina do caminho do meio, que se convencionou depois incluir num todo designado pelo termo “budismo”, e, mais especificamente, budismo mahâyânico – lá encontrou outra filosofia bastante avançada, e diz-se até que ainda mais antiga, cujo iniciador fora o lendário Lao-Tzu, autor do Tao-Te-Ching, um texto poético-iniciático (eram mesmo tempos em que não se haviam apartado poesia e filosofia) que se traduz como Livro do Caminho Perfeito e trata precisamente de um caminho, um caminho que, passando por tudo e a nada se fixando, nada afirma e nada recusa, suspendendo o sentido na célebre sentença: “o Tao que se pode definir já não é o Tao”. A palavra “Tao” significava caminho, via, mas com Lao-Tzu ela passa a significar também filosofia ou doutrina do caminho; e, ganhando conotação metafísica, designa o princípio invisível do qual emanam todas as coisas. A fonte imaterial, a origem onipresente, mas inapreensível. O verbete do mesmo 33  “Le Nîrvana n’est pas pour Nâgârjuna quelque chose qu’il convient d’atteindre, mais la prise de conscience de ce qu’est la vraie nature des phénomènes, dans laquelle s’abolit toute multiplicité”.

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dicionário dedicado ao “Tao”, lembrando sua definição como invisível, inaudível, insondável e inacessível, diz que ele é o abraço do ser e do não-ser, citando depois alguns trechos do TaoTe-Ching: Há qualquer coisa de indeterminado Antes da aparição do universo. Esta coisa é muda e vazia. Ela é independente e inalterável Ela circula por toda parte sem se cansar jamais Deve ser ela a Mãe do Universo. Desconhecendo seu nome, eu a denomino Tao. ……………………………………….. Ela é a forma sem forma e a imagem sem imagem. Ela é fugidia e inapreensível.34 “Forma sem forma” e “imagem sem imagem” é bem outra maneira de dizer: “the formless Form of forms”. Continuemos. A filosofia da vacuidade de Nâgârjuna, convergindo com a do vazio de Lao-Tzu, gera a vertente Chan do budismo e assim é levada por outros caminhantes ao Japão, onde, adaptada à estética nipônica, floresce no Zen, que por sua vez será transportado ao Ocidente. E não será por acaso que em todas estas vertentes – malgrado o célebre exercício Zen de imobilidade ante a parede – se releve a prática da meditação caminhante. E a importância do caminhar corresponde precisamente à natureza interdependente das coisas, que obriga ao incessante movimento 34  “Il y avait quelque chose d’indéterminé / avant la naissance de l’univers. / Ce quelque chose est muet et vide. / Il est indépendant et inaltérable. / Il circule partout sans se lasser jamais. / Il doit être la Mère de l’univers. / Ne connaissant pas son nom, / Je le dénomme Tao. / (…) Il est la forme sans forme et l’image sans image. / Il est fuyant et insaisissable”.

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entre elas. Se é dia, acompanhar o dia, nele vendo a noite; se é noite, acompanhar a noite, nela vendo o dia; e assim por diante. O essencial, nestas vertentes filosóficas (budismo mahâyânico, Tao, budismo Chan, Zen budismo), é o acesso da consciência à contemplação do vazio, do ponto intervalar onde se percebe a vacuidade das formas fenomênicas, espaço intermédio que também se pode designar com a palavra que encerra o lapidar tratado de Schopenhauer (O Mundo como Vontade e como Representação) – NADA: (...) com a livre negação e supressão da Vontade também são suprimidos todos os fenômenos (...) Nenhuma Vontade: nenhuma representação, nenhum mundo. Diante de nós queda-se apenas o nada. Mas aquilo que se insurge contra este desaparecimento no nada, a saber, nossa natureza, é em verdade apenas a Vontade de vida, que nós mesmos somos, como ela é o mundo diante de nós. Para todos aqueles que ainda estão cheios de Vontade, o que resta após a completa supressão da Vontade é, de fato, o nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a Vontade virou e se negou, este nosso mundo tão real com todos os seus sóis e vias lácteas é – NADA.35

Mas é significativo que, já na conclusão de sua obra-mestra, este filósofo, que também se insere na tradição dos caminhantes, fizesse a seguinte advertência: 35  SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e como Representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005, pp. 518-19.

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Pois, se a Vontade de vida existe como o exclusivo metafísico ou a coisa-em-si, violência alguma pode quebrá-la, mas tão somente destruir seu fenômeno, neste lugar, neste tempo. A Vontade não pode ser suprimida por nada senão o CONHECIMENTO. Por isso o único caminho de salvação é este: que a Vontade apareça livremente, a fim de, neste fenômeno, CONHECER a sua essência. Só em consequência deste conhecimento pode suprimir a si mesma e, assim, também pôr fim ao sofrimento inseparável de seu fenômeno. Isso, entretanto, não é possível por violência, como a destruição do embrião, a morte do recém-nascido, o suicídio. A natureza conduz a Vontade à luz, porque só na luz a Vontade pode encontrar a sua redenção. Eis por que se deve fomentar de todas as formas os fins da natureza, desde que a Vontade de vida, o seu íntimo, tenha decidido.36 Trata-se de uma afirmação implicativa, pois, se exclui a hipótese de libertação da “Vontade de vida” – categoria análoga à do desejo, na doutrina budista – através de qualquer ação violenta, preconizando que se permita à “Vontade” manifestar- -se livremente; traz à pauta uma compreensão do caminho que não avança pela negação e repressão do desejo, ao contrário do que frequentemente se pensa, e sim pela sua livre manifestação. Mata-se a sede bebendo, aplaca-se o desejo satisfazendo-o quantas vezes lhe sejam necessárias até que ele mesmo se aperceba de sua própria essência e canse de mover a roda sem fim (em sânscrito, Sâmsara), assim se extinguindo o seu movimento compulsivo. Este, aliás, é o sentido das palavras “Budha” (aquele que despertou) e “Nîrvana” (extinção). Naquele em quem a “Vontade” se manifestou, se 36  Id. p. 506.

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conheceu e se negou, diz Schopenhauer, surge uma “completa calmaria do espírito”. Mas, enquanto a “Vontade” necessitar, deve ser-lhe permitido mover-se, experimentando as múltiplas formas da existência. Neste ponto, o filósofo alemão acerca-se ao budismo mahâyânico, mas não chega ao Tao de Lao-Tzu e Chuang-Tzu, para quem o desejo nunca se extingue, porque inexiste. Dele está mais próxima a Serpente pessoana, cujo movimento é em si mesmo sua própria justificativa. Movendo-se entre os polos da universal dualidade, sem recusar nenhuma e a nenhuma aderindo, ela encontra, em movimento, a unidade do transcendenteimanente, mas não num ponto fixo terminativo, resolutivo, e sim num movimento perpétuo, incessante. Seu caminho não é apenas um caminho do meio, mas também das extremidades.

O Caminhante Lêdo Ivo E Lêdo Ivo? Como se insere o seu caminho nesta tradição? Obviamente, o propósito destas associações comparativas não é o de afixar-lhe um rótulo orientalizante. Se o Tao que se define já não é o Tao, um Lêdo Ivo rotulado nunca seria Lêdo Ivo. As aproximações aqui sugeridas visam apenas lançar luz para uma melhor compreensão do sentido estético-filosófico indicado pelo procedimento linguístico de sua poesia, e do lugar específico desta poesia na Literatura Brasileira. Lêdo Ivo, como pudemos observar ao longo deste estudo, assume-se plenamente em sua disponibilidade ante a pluralidade do mundo. Consciente desta multiplicidade, que constitui a autenticidade da sua poesia, declara sem rodeios sua perplexidade assumida: 262


A perplexidade é estar no mundo – com todas essas perguntas que se acumulam; o fato de ser transitório; a existência e não existência de Deus; o problema da condição humana. Vivo num mundo em que quase não há resposta. Não sei onde começo e onde termino. Sequer sei se existo, no sentido de ter uma existência nítida, com fronteiras definidas. Quando publiquei Confissões de um Poeta, Hélio Pellegrino me telefonou para dizer que ficou impressionado com o clima de procura que há em todo o livro. Como era psicanalista e poeta, Hélio Pellegrino disse que minha descoberta estava exatamente nessa procura. Vivo nessa perpétua indecisão. O que me impressiona é que essa procura tenha durado tanto; não tenha acabado ainda. 37 Perplexidade que provém da dúvida radical quanto à certeza ontológica fundada numa percepção – que ele sabe ser ilusória – das formas múltiplas do mundo manifesto (as aparências fenomênicas). Ele surpreende, na imanência, o mistério da transcendência, e no capítulo “Sempre Sonho que sou Outro”, das suas Confissões de um Poeta, dá conta desta percepção:

Todos os seres que me rodeiam, dotados de voz ou silêncio, imobilidade ou movimento, convertem-se em sinais de uma realidade mais profunda. Estamos aqui na Terra para viver, mas onde está a verdadeira vida? Somos todos máscaras, atores de uma peça interminável. 37

Entrevista citada.

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(...) vivemos e nos comunicamos graças às nossas máscaras. Muitas vezes, o que digo está oculto no que digo. É um corpo que, escondido pela roupa da linguagem, só se entrega a quem o alcança. 38 A participation mystique do poeta, em todos os destinos de todas as criaturas, leva-o a oscilar quanto a sua própria identidade, no capítulo “Meu Nome é Ninguém” das Confissões: Meu nome é ninguém. Caminhando sozinho neste anoitecer na grande cidade, sou a formiga rumo ao formigueiro ou a rês impelida para o abatedouro?39 A dúvida funda-se também na efemeridade das coisas, no caráter perecível, transitório, de todas as formas, verdade que, no capítulo “Volta a Anoitecer”, ele contempla de dentro da própria solidão: Sou um sobrevivente na passagem entre o dia e a noite. Onde estão as figuras de antigamente – em que estrelas, em que túmulos se esconderam? Gari implacável, a vida varre os sonhos dos homens e, na praça vazia, vagam os fantasmas dos fracassos dissimulados e dos gordos perjúrios.40 38  IVO, Lêdo. Confissões de um Poeta. pp. 155-57. 39

Id. p. 295..

40  Id. p. 335

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Mas este, cujo nome é “Ninguém”, é um solitário solidário, que se vê no outro, destituído de ilusões: Sozinho na grande cidade que engole as promessas dos homens, vejo-me passar de repente no jovem poeta desconhecido que atravessa o meu caminho. Deixo de ser eu mesmo para ser, por um instante, o jovem poeta sem nome. Que ele seja fiel à sua promessa de agora, eis o que peço. Que ele seja uma dessas criaturas para as quais nada é perdido, segundo a lição de Henry James. Mas a quem dirigir esse pedido? Os deuses inexistentes não me ouvem. À vida cega e surda? Ao mar longínquo e mudo? O jovem poeta Lêdo Ivo dilui-se na sombra da tarde. E anoitece. 41

Um solitário solidário firme, que não se deixa abater pela perda das ilusões, que aceita o nada e avança para o nada. Ainda em “Meu Nome é Ninguém”, sentencia: De qualquer forma, o sentimento de partilhar o anonimato de minha espécie me segue sem me desapontar. Continuarei caminhando, rumo à grande noite que me dissolverá.42 Ao nada, mas passando por tudo. Buscando o todo, que leva ao nada. Do múltiplo fenomênico ao nada essencial. Como em William Blake, o “caminho do excesso” aqui conduz ao “palácio da sabedoria”:

41  Id. pp. 335-36. 42  Id. p. 291.

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Meu reino é o excesso, esse rival incomparável do rigor e da medida. (“O Desembarque”) Caminho de extremos, revisitado pelo Pessoa de Mensagem (“o inteiro mar ou a orla vã desfeita”) e o Álvaro de Campos de “Tabacaria” (“Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada”). No mesmo trecho da citada entrevista que o poeta concedeu a Izacyl Guimarães Ferreira, onde relembra sua presença transgressiva na chamada geração de 45 (o enfant terrible várias vezes ameaçado de expulsão por Péricles Eugênio), ele também, investindo criticamente sobre as faculdades de Letras, diz que elas são “gaiolas onde se empoleiram os papagaios pedagógicos”, os professores que “ignoram que literatura e poesia são diferença, variedade, pluralidade e colisão”. E em outra entrevista, dada a Cláudio Aguiar, do jornal cearense O Pão43, afirma que “a importância de uma geração não está na unidade mas na diversidade”; que “cada aventura poética deve ser algo singular”; e que, no momento atual, “torna-se imperioso que os poetas mais jovens tenham voz pessoal, singular, marcando suas diferenças”. A diversidade, a originalidade da marca pessoal, a diferença, muitas vezes conflitante, que distingue os poetas uns dos outros, é um traço fundamental na concepção estética do poeta Lêdo Ivo. Entretanto, ao mesmo tempo, e sem nenhuma incongruência, ele também considera fundamental, na formação e consolidação de um poeta, o seu conhecimento da tradição da grande poesia. Em outra entrevista que deu a Izacyl Ferreira44, afirma: 43  “Lêdo Ivo – A Poesia Tronou-se uma Aventura Secreta”. Fortaleza: “O Pão”, nº. 28, março de 1996. 44

Izacyl Guimarães Ferreira entrevista o poeta Lêdo Ivo para o jornal da UBE, julho, 2003.

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Um poeta é uma soma da vocação, do talento genuíno, com o aprimoramento intelectual, a cultura e uma desejável curiosidade intelectual, sempre alerta e constante. Tenho horror aos poetas caipiras ou semianalfabetos. E, dentro de minha convicção, presumo que um bom poeta não poderá dispensar a lição de Homero, de Dante, de Shakespeare, de Quevedo ou de Camões – isto é, da grande e indispensável herança cultural e poética do Ocidente. Em poesia, temos que nos render à lição de T. S. Eliot. Um poeta é a união ou fusão do talento individual com a tradição. Nesta conjunção de tradição com diferença, que é sua marca inconfundível, situa-se precisamente o ponto que talvez seja esclarecedor iluminar, para a melhor compreensão de sua poesia. Pois, se é verdade que o poeta, quando se refere à “indispensável herança cultural e poética”, a qualifica com o complemento “do Ocidente”; também é verdade – e aqui passe esta minha contribuição pessoal à leitura de Lêdo Ivo – que a tradição poética ocidental, seja em qual for o período em que a enfoquemos, não está impermeável às emanações provindas do Leste. E isto é ainda mais verdadeiro em se tratando de certos períodos e movimentos específicos, como o romantismo, o simbolismo e o modernismo, pelo menos em alguns países. Lembremos, por exemplo, a poesia de Baudelaire, cujo esquema rímico-rítmico parece muitas vezes, usando diferentes sintagmas, copiado à risca do paradigma em que se encaixa a do poeta das Orientales, mais popularizado pelos seus romances, e no entanto tão grande poeta quanto romancista. E, seja como for, enquanto meditação de um poeta-filósofo caminhante, a poesia de Lêdo Ivo, que obsessivamente reitera a reconciliação dos opostos, deita raízes num solo mais antigo que o da estética barroca. Ele não é um Juan de la Cruz, 267


suas meditações ritmadas não se levantam de uma cela monástica seiscentista. Lêdo Ivo, homem do século XX (ainda vivo no atual século XXI), é um caminhante do bosque, e sua poesia é uma poesia do ar livre, ainda que por vezes contaminado pelos dejetos da era pós-industrial. Além disto, é importante frisar, sua poesia não se resolve ao nível das adesões religiosas, como foi o caso de alguns poetas do século XX, incluindo-se o Jorge de Lima de A Túnica Inconsútil e Tempo e Eternidade (que escreve em parceria com Murilo Mendes). A dissolução cósmica, em Lêdo Ivo, com tudo o que ela tenha de místico, no sentido amplo do termo, difere da fusão desmesuradamente mística do poeta de Mira-Celi, que depois parece dar uma guinada, esta rumo a um cume supremo, livre de aderências, em Invenção de Orfeu e, magistralmente, no Livro de Sonetos. É por isto que se devem ler com atenção versos como estes: Horizontes, colinas, azulverde e mar visto dos altos, de penedos! Tudo aquilo era meu, mesmo os rochedos onde a vaga imitava o florescer de primícias marinhas, e o crescer de ciclone em falésias de degredos. Tudo aquilo era meu, mesmo os segredos do mar não visto, mais azul que verde. E por ter tanto foi que me perdi, rolando pelo abismo sem que o ar em mim pregasse as asas do milagre.

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E depois disso nunca mais me vi. Sou um fantasma. Busco-me no mar, Trilha à procura da água que a consagre. (“Soneto de Azuis”) É que o perder-se, aqui, sem esperanças de alado milagre que o salve, em seu desejo de fusão oceânica é um achado autêntico, ante o qual as certezas primárias não passam de fogo-fátuo. E uma descoberta de tal ordem só se faz possível para lá de crenças e doutrinas, católicas, budistas ou quaisquer que sejam. Elas exigem que se caminhe, que se vá adiante, sempre adiante, além tudo, além Deus. Tal como o fizeram os supracitados filósofos-poetas caminhantes. Voltando àqueles caminhantes mais remotos, ocorre-me ainda lembrar que o nome “Nâgârjuna”, num tempo em que às pessoas e aos lugares atribuíam-se nomes com significado, compõe-se de duas palavras: “nâga”, que significa serpente, e “ârjuna”, que significa branco. O que parece dever-se ao fato de ser ele um sábio iniciado, não apenas no mistério do caminho do meio, mas também no arcano da vacuidade universal. Quanto a Lao-Tzu, um trecho do citado dicionário, a ele dedicado, reproduz uma lendária tradição, segundo a qual Confúcio, voltando de uma visita ao filósofo indomável, assim relatou o encontro aos seus discípulos: Do pássaro, sei que ele pode voar; do peixe, sei que ele pode nadar; dos quadrúpedes, sei que eles podem correr. Os bichos que correm podem ser capturados com a malha; os que nadam podem ser capturados com a rede; os que voam podem ser atingidos pela flecha; mas o 269


dragão, eu não o posso conhecer: ele se eleva ao céu sobre a nuvem e sobre o vento. Eu hoje vi Lao-Tzu, ele é como o dragão.45 Elevado sobre a nuvem e o vento, o dragão, porque não é terrestre, nem marítimo, nem celeste, não pode ser apreendido, aprisionado, capturado, definido, compreendido. Lao-Tzu, para o moralista pragmático que era Confúcio, assemelhava-se a este ser fantástico. E se refletirmos sobre este relato lembrando-nos dos movimentos inumeráveis de Lêdo Ivo através das formas existentes (bichos, nuvens, ondas, árvores, sombra, luz, silêncio, raio e assim por diante, ad infinitum), poderemos compreender melhor o que motiva e a que se destina o movimento incessante do poeta. Itinerante entre todas as solicitações das formas fenomênicas, disponível a todas sem se fixar a nenhuma, ele não incorre na ilusão de fechar-se ao real, nem de, a ele abrindo-se, capturar ou ser capturado; e assim nenhum epígono de Confúcio logrará encaixá-lo nos limites de uma pragmática moralidade. Até porque ele mesmo adverte: “Deus é um esteta e não um moralista”.46 É este o sentido de sua caminhada. Estar em movimento é sua forma de acessar o vazio que se abre entre os entes e formas, signos e sentidos do mundo observado e contemplado. Porque só entre as formas, no entrelugar onde se suspende o sentido, onde já não se inspira e ainda não se expirou o ar – que é o segredo da vida – pode-se perceber “the formless Form” de onde as formas e os entes todos emanam. Este ponto intermédio, Lêdo Ivo 45  Do original, traduzido pela autora: “De l’oiseau, je sais qu’il peut voler; du poisson, je sais qu’il peut nager; des quadrúpedes, je sais qu’il peuvent courir. Les bêtes qui courent peuvent être prises au filet; celles qui nagent, peuvent être prises à la nasse; celles qui volent peuvent être atteintes par la flèche; mais le dragon, je ne puis le connaître: il s’élève au ciel sur la nuée et sur le vent. J’ai vu aujourd’hui Lao-Tzu, il est comme le dragon”. 46  IVO, Lêdo. Confissões de um Poeta, p. 117.

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comprova, só se pode acessar pelo movimento, numa renúncia que é achado, “golpe de asa” que o “Rei-Lua Postiço” não logrou, “Esfinge Gorda” que era, com a alma amortalhada em Lisboa, a vida sentada e o corpo “espapaçado” nos cafés de Paris. Se me perguntarem, então, o que move, a que se destina, o que busca e onde vai dar a caminhada poética de Lêdo Ivo, direi que ela conduz o caminhante a um abismo semelhante àquele com que se deparou Pascal, num encontro ante o qual, suspendido o sentido, só condiz a muda perplexidade com que ele, Lêdo Ivo, diz caminhar, com a “boca lacrada”. Direi também que, desde a arrancada, o que o poeta chamava loucura era uma perplexidade antecipada. Perplexidade que, contudo, não é erro ou falha, e sim resultado inevitável de uma abertura ao existente, em seu mistério profundo, de insubstancialidade. Mas também direi que toda aquela inquietação, multiplicidade e excesso destinam-se a neutralizar, em movimento incessante, a ameaça da profunda perplexidade. Lêdo Ivo, como Pascal e Spinoza, contemplou um abismo, o abismo da existência, ante o qual só o silêncio condiz, pois, se descer ao fundo oceânico mais profundo é vedado ao corpo humano, descer à profundidade ontológica máxima é interditado à sua mente, por aquela razão que o poeta sublime, dizendo da ascese que sucede a catábase, magnificamente expôs nos três tercetos iniciais do seu “Paradiso”: La gloria di colui che tutto move per l’universo penetra e risplende in uma parte più e meno altrove. Nel ciel che più de la sua luce prende fu’io, e vidi cose che ridire ne sa ne può chi di là su discende; 271


perchè appressando sè al suo disire nostro intelletto si profonda tanto, che dietro la memória non può ire. Será legítimo, porém, perguntar: se só o silêncio condiz, por que então este livro, com mais de mil páginas repletas de palavras? A resposta é fácil: Lêdo Ivo pertence – e sabe que pertence – ao corpo coletivo e tem plena consciência da sua missão de poeta: caminhante que vai na frente, ofertando a outros caminhantes que o sucedam o relato de sua longa caminhada.

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O Caminho Branco

O Sentido do Caminho Branco Esteja assim esclarecido o sentido funcional do sintagma caminho na Poesia Completa de Lêdo Ivo. Em movimento incessante através das formas, das coisas, dos lugares (temporais e espaciais), na aparência fenomênica o poeta distingue a essência, que só pode ser percebida num intervalo, no espaço entre as formas, onde se faz visível o caráter relativo e insubstancial de suas existências particulares, que só se definem umas em relação às outras, evidenciando-se assim o vazio intervalar como sua essência, vazio que as gera e suporta. Este é o ponto onde se fundem ser e não ser. A palavra “caminho” (com os derivados “caminhar”, “caminhada”, “caminhante”) designa o movimento por onde vai o poeta, solidário a todas as formas e desprendido também de todas. Este o sentido de caminho. Mas por que branco? O que significa a qualificação do caminho por este adjetivo? Seria interessante, para a realização de um estudo exaustivo, fazer-se o cômputo das incidências do termo ao longo de toda a Poesia Completa. O que observei, nesta minha leitura, foi uma certa frequência de incidências em que o termo significa o infinito. “O branco hotel que perturba os floristas”, metáfora para cemitério no poema de mesmo título; “os lençóis brancos das galáxias”, em “A Noite no Jardim”; “a névoa que cai do céu branco” em A Noite Misteriosa; são todos imagens metafóricas de um espaço ilimitado, sem fronteiras, onde as formas e as cores se dissolvem, convergindo numa cor que é ausência de cor, uma não cor. E mesmo Deus (em “A Astúcia de Deus”), que o poeta diz ser tudo e estar em tudo, a tudo envolve como um “esplêndido 275


lençol branco”, metáfora de um espaço sideral que é também, ao mesmo tempo, claramente uma imagem da morte. Esta imagem de morte associada a infinito reverbera no branco recorrente de nevadas e nevoeiros que recobrem progressivamente as paisagens exteriores de suas caminhadas, mas assume caráter e função metafóricos de um mood anímico. Então, mesmo sem que ainda levemos em conta os dois poemas nos quais a incidência do termo “branco” se faz mais nítida (e que observaremos ao fim deste capítulo), já seria possível dizer que “branco”, adjetivando “caminho”, significa um caminho no qual tudo (entes, coisas, formas, cores) converge, fundindo-se na totalidade difusa duma não cor. É, portanto, um caminho gnóstico, o que aqui se percorre, porque de iniciação ao conhecimento. Mas se trata de uma gnose específica, de afirmação pela negação, de anulação de todas as formas contempladas, numa suspensão do sentido similar à do Zen, e, mais precisamente, que Pessoa, tradutor de A Voz do Silêncio, tão bem resumiu em The Way of the Serpent. E se temos ainda em mente a noção de poesia como diálogo com uma tradição – tópico aliás sempre repisado por Lêdo Ivo, nas suas Confissões, e em várias entrevistas – é oportuno lembrar que a tradição dos vetustos caminhantes heterodoxos transgressivos teve no Ocidente uma legítima e ainda recente ressonância, quando, nos primeiros anos do século XX, os dadaístas, confessadamente taoístas, atualizaram o Wu Wei no seu incensado Deus-Espontaneidade, e Tristan Tzara, em sua “Conferência sobre o Dada”, afirmou: o “Dada não é moderno. Assemelha-se mais a um retorno a uma religião quase budista de indiferença”. E, como que não satisfeito com a meiapalavra sugerida pelo advérbio “quase” (que ao conhecedor já seria suficiente para denunciar a filiação taoísta do movimento, acrescentou: “Chuang-Tzu era tão dada quanto nós”.47 47

TZARA, Tristan. In: Teorias da Arte Moderna, CHIPP. H. B. São Paulo: Martins Fontes,

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Almada Negreiros, o enfant terrible do Orpheu (era o mais moço, e a todos sobreviveu), que foi um dadaísta neopitagórico, incensador desta divindade dada (por ele batizada como “invencível ingenuidade”), no seu programa crítico para uma nova humanidade, postulava, em sentenças lapidares, suas diretrizes de um caminho a contrapelo, na contramão do progresso civilizacional, que entendia ser equivocado, sustentando que “a humanidade tem progredido somente em ir desfazendo-se dos erros, embora ela cuide que o faz por ir assentando verdades”.48; e em sua proposta anti (ante) pedagógica (bem desenvolvida nos tópicos do Ver – o livro póstumo que reúne seus cadernos especulativos, escritos ao longo de muitos anos) revela-se o matiz dadaísta de sua iniciação, na defesa que faz da “desaprendizagem”, comparando o saber a um andaime para o conhecimento: O saber é apenas sistema para o conhecimento. Se se é tão curioso de aprender, porque não se é também de desaprender? Quando se acaba um edifício tira-se-lhe o andaime. 49 Cânone de conduta e autoexpressão, a proverbial ingenuidade almadiana, expressão da espontaneidade, é ao mesmo tempo meta, método e condição da “desaprendizagem”. É conhecimento verdadeiro a Ingenuidade.50 1988, pp. 389 93. 48

NEGREIROS, J. A. “O Caçador”. In: Obras Completas, Vol. I.

49  39.

NEGREIROS, J. A. “Prefácio ao Livro de Qualquer Poeta”. In: Obras Completas, Vol. I, p.

50  Id. Ibid.

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A Natureza consente tudo, menos que a sua espontaneidade seja alienável.51 O único caminho que Deus traçou a cada um foi precisamente esse por onde cada um gostar mais de ir. Todos os outros são falsos e mentirosos.52 A complexa inter-relação contida no termo “caminho branco” ilumina-se quando me vem à mente a Via Láctea, algumas vezes mencionada nesta Poesia Completa. Há um caminho, uma estrada cósmica, uma via por onde se movem, em elipses, os corpos siderais. São inumeráveis as esferas, e infinitamente variadas suas aparências. No entanto, ao fundirem-se na Via Láctea, transfiguram-se, convergindo na unidade indefinível do branco, não cor que absorve em si todas as cores: O branco, que é muitas vezes considerado uma não cor (...) é como símbolo de um mundo onde todas as cores, enquanto propriedades de substâncias materiais, se dissiparam. Esse mundo paira tão acima de nós que nenhum som nos chega dele. Dele cai um silêncio que se alastra para o infinito (...) O branco age em nossa alma como o silêncio absoluto (...) Esse silêncio não é morto, ele transborda de possibilidades vivas (...) é um nada repleto de alegria juvenil, ou, melhor dizendo, um nada antes de todo nascimento, antes de todo começo. Talvez assim tenha ressoado a Terra, branca e fria, nos dias da época glacial.53

51

NEGREIROS, J. A. Ver. Lisboa: Arcádia, 1982, p. 41.

52

NEGREIROS, J. A. Obras Completas, Vol. III. Lisboa: IN/CM , p. 105.

53

KANDINSKY, Wassily. Do Espiritual na Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 89.

278


O sentido da inter-relação acha-se numa sintaxe reversível, que responde ao propósito deste poeta, em cuja poesia a força inquebrantável dum espírito diamantino conjuga-se a uma espantosa maleabilidade, numa unidade bem resolvida, cujo propósito, até onde alcanço, é o de, abrangendo a multiplicidade do mundo, na variedade das formas existentes, captar o que, subjacente a essas formas particulares, visíveis, está presente em todas, a nenhuma se restringindo: o seu sumo imaterial. O cerne abstrato, invisível, inefável, que nos fita de dentro de todas as formas: “formless Form of forms”, que Baudelaire magistralmente resumiu em “Correspondances”: “ténébreuse et profonde unité, vaste comme la nuit et comme la clarté”, na qual os “longs échos de loin se confondent”. Este o sentido do título O Rumor da Noite: voz do Grande Silêncio. E é precisamente este o sentido de ser branco o caminho: fusão convergente de todas as formas numa infinitude impalpável, num cerne único, inapreensível – branco. Sua inefabilidade devendo-se ao fato de que este sentido não se fixa às formas, atravessa-as, só pode ser percebida, experimentada, em movimento, ela já é, em si, movimento. Daí ser a poesia de Lêdo Ivo uma poesia dinâmica. Nela, o sentido, a essência só se acha no movimento, ou melhor, em movimento, num movimento intervalar, que não consente mais que curtas pausas para breve repouso, como aquele do poeta nos degraus da igreja em Roma, antes que o anjo do movimento o viesse instigar.

O Poema “O Caminho Branco” O poema “O Caminho Branco” pertence ao livro O Rumor da Noite, escrito na plena maturidade do poeta. Neste 279


poema, Lêdo Ivo reúne os signos que irrompem em alguns poemas de sua última fase, dos quais emana uma madura profundidade, num misto de ternura secreta e serena ironia, mescladas a um vigor resistente, que é o traço distintivo dos espíritos fortes. Sente-se neste poema a força discreta de uma fonte. Quando o li pela primeira vez, lembrei-me de que na Ode ao Crepúsculo o poeta invocara uma divindade, suplicando-lhe a delicadeza; e me ocorreu que a desejada delicadeza afinal cumpriu-se, plenamente: Vou por um caminho branco Viajo sem levar nada. Minhas mãos estão vazias. Minha boca está calada. Vou só com o meu silêncio e a minha madrugada. Não escuto, entre os barrancos, a voz do galo estridente que, na treva do terreiro, anuncia as alvoradas. Nem mesmo escuto a minha alma: não sei se ela vai dormindo ou me acompanha acordada, se ela é vento ou se ela é cinza ou nuvem rubra raiante no dia que se levanta como vela desdobrada em nave que corta as vagas. Não sei nem mesmo se é alma ou apenas sal de lágrimas. Vou por um caminho branco que parece a Via Láctea. Só sei que vou tão sozinho que nem sequer me acompanho, 280


como se eu fosse um caminho pisado por vulto estranho. Não sei se é dia ou se é noite o que surge à minha frente, se é fantasma do passado ou vivente do presente. Não sei se é a torrente clara da água que corre entre pedras ou se um gavião me espreita oculto no nevoeiro, espantalho prometido ao meu dia derradeiro. Atravessando barrancos e plantações de tomate e ouvindo o canto escarlate de airosos galos polacos, vou por um caminho branco: brancura de bruma e prata. Entre tufos de carqueja há constelações de orvalho e um clarão de meio-dia cega a minha madrugada. Vou como vim, sem saber a razão da travessia. Nem sequer levo na boca o gosto de água salgada que relembra a minha infância feita de mar e de mangue. Nem sequer levo nos olhos – nos meus olhos de menino – a mancha rubra de sangue deixada pelo assassino que vi certa madrugada. 281


Vou por um caminho branco e nada levo nem tenho: nem ninho de passarinho nem fogo santo de lenho. Só vou levando o meu nada. Foi tudo quanto juntei para oferecer a Deus nesta branca madrugada. (“O Caminho Branco”, grifos nossos) Não por acaso, neste poema, “nada”, que determina o encadear das rimas, rima com “madrugada”, este termo também predileto do poeta: como o crepúsculo, ela é a hora intermédia, indefinida, em que já não é noite e ainda não é dia. Ambas (“nada” e “madrugada”) rimam com “calada”, que se refere à boca, denunciando o silêncio. Mas o termo “caminho branco” reincide no último livro (Plenilúnio), num enunciado tão exato e transparente, em termos de esclarecimento do sentido dado pelo poeta ao termo que escolhi para intitular este capítulo – um nada que nem sequer seja nada – que sua simples leitura será suficiente para encerrá-lo, sem mais comentários: Um deserto branco onde nada exista nem mesmo o vazio Uma areia branca que a nada sepulte nem vida nem vento

282


Entre tudo ou nada nem nada nem tudo no caminho branco a voz que no mudo se guarda de nada grão imaculado de areia branca. (“Areia Branca”, grifos nossos) Este o sentido de uma poesia que, embora irretocável no desempenho formal, não centra nele sua motivação, seu suporte, sua razão de ser; pois – ao contrário do que poderia parecer num poeta que se classifica na geração de 45, definida pelos estudos literários como formalista – seu virtuosismo formal não é o objetivo visado, e sim o instrumento eficaz de que o poeta é dotado – pelo talento e vocação, somados ao conhecimento que tem da grande tradição poética – e com o qual pode traduzir em linguagem a percepção de uma essência que é vacuidade universal, e que se percebe no movimento, que a surpreende num sempre móvel intervalo. A propósito: será por acaso que o último poema de toda a Poesia Completa, intitulando-se “O Desejo” (termo-chave na filosofia do caminho do meio), expresse o desejo de passar, de ser passageiro? Não quero a eternidade, a trama interminável de uma roca que fia um dia após um dia na duração perpétua. 283


Quero ser o que passa: a leve nuvem branca que se desfaz no espaço, a fumaça de um jato no céu vazio e claro. ............................ Prefiro um voo de pássaro a tudo o que é eterno. A tudo o que é durável prefiro o perecível: a sombra fugidia no dia luminoso dos narcisos e rosas; os instantes que regem, na noite indecorosa, o amor dos amantes, seus gritos e gemidos; a pétala fugaz ferida pelo outono. .................................. O meu Deus é relâmpago, o breve resplendor antes do grande sono. Recuso-me a durar e a permanecer. Nasci para não ser e ser o que não é após tanto sonhar e após tanto viver.

284




II.

Mormaço: “um caminho que não me leve a parte alguma” 287


Ao ver a minha sombra na sombra de um muro sempre desejei ser aquele que não é para ser sempre o puro desejo de não ser. (“O Atracadouro”) Um caminho que não me leve a parte alguma e seja só caminho, sem começo ou fim, é o que peço ao dia, e o dia me concede o dom da travessia, (“O Dom da Travessia”) Este é o fim do caminho. Nada resta. E o próprio nada se dissolve como a folha que apodrece na floresta. (“Fim do Passeio”)

Levado pelo eterno movimento que pulsa no silêncio das galáxias hei de tornar a ser o que já fui e viverei a vida que perdi. (“O Eterno Retorno”)

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Levado pelo Eterno Movimento Em Mormaço confirma-se a Poesia Completa, nele podendo-se observar a incidência dos principais temas-semas recorrentes, a começar pelo vento e o nada, que aqui têm primazia como núcleos semânticos, explícitos nos dois sintagmas, ou instaurados através de outros sintagmas que os viabilizam. Já em “O Dia Inacabado”, primeiro poema do livro, o vento, associado ao tema do ser pelo não ser, comparece como agente através do qual se corrige o erro que consiste em acrescentar-se:

Perco o que ganho no sonho e no desejo quando a mim mesmo me acrescento. Toda vez que me somo, subtraio-me, uma porção levada pelo vento.

Acrescentar-se é perder-se, a essência se acha na subtração, e por isto o vento, que, como vimos, é sócio do nada. No segundo poema (“O Silêncio do Mundo”), é o temasema do nada quem se explicita, enquanto o poeta continua a interrogar o mundo: ........................... fala, ó grande mudo ........................................................... o mundo é só silêncio e só segredo neste longo degredo que começa com o pranto no berço e só termina no mistério do nada, no silêncio do pó. Mais adiante, no “Soneto do Arrastão”, o vento, associando-se à noite, não apenas se reitera enquanto sintagma-sema. Aqui, tal como já sucedera na Poesia Completa, o vento 289


não se limita a ser correlativo objetivo do sentimento do poeta frente ao mundo. O poeta denuncia sua identificação, definindose como vento, mais que vento, “o próprio turbilhão”: Tudo que desejei fundei no vento que nada guarda e tudo desafia e fratura a paisagem, na porfia de abolir o alicerce e o fundamento. Em vez de confiar meu desalento ao vento confiei minha alegria, mudada a tarde clara na sombria sobeja noite de raio e tormento. Apartado de mim, refém do vento, e em seu sopro mudado, e no arrastão que ousa cegar até a luz do dia, no torvelinho desse apartamento findei por ser o próprio turbilhão e, sendo vento, fui minha alegria. E, também como sucedia na Poesia Completa, em suas reiterações o vento vai combinando-se com outros diversos sintagmas que funcionam como temas-semas, núcleos semânticos da trama poética. Observe-se, por exemplo, no poema Estremecimento, a associação dos temas recorrentes da morte, do pássaro, dos bichos, da passagem e do caminho, todos associados ao vento, que mais uma vez é um agente da destruição e transformação:

290


Um estremecimento na folhagem. Algo quase inaudível, rumor brando de granizo durante a madrugada ou graveto caído de uma árvore. Era um sopro fremente, uma passagem desprovida de sombra e identidade, Era o pouso no chão de um passarinho, o rastejar de um bicho na floresta, um ninho derrubado pelo vento, um passo tenebroso no caminho? Eu não sei se era a vida que partia ou a morte que chegava de mansinho. E o mesmo sucede, ainda que com outros temas-semas, em “Firmamento”: No dia cheio de estrelas como a noite aguardo o vento que vai espalhar a minha alma no firmamento. Na noite de ventania a morte será um frêmito, o luzir de uma luz negra no firmamento. E tudo será silêncio e será esquecimento na eternidade da noite e do vento.

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Em “O Naufrágio”, os temas do mar e da viagem associam-se aos da perda e do nada, resultando em naufrágio, ao termo do qual, mais uma vez, se acha o vento: Ninguém achará as ilhas perdidas nem além do vento nem além da vida. Ninguém recupera o tempo perdido que fica escondido no fundo do mar. Quem parte não chega ao fim da viagem. O porto final é sempre miragem. Sob os céus perplexos as paisagens mentem. Ilhas, ilhas, ilhas vistas da escotilha? Saiba quem viaja: para quem naufraga não há terra à vista. Só água e mais água. Saiba o viajante: não há salvamento nem além da vida nem além do vento. 292


Padecer naufrágio faz parte da vida mesmo que não haja sinal de partida. E em “A Busca”, o sintagma vento é o ponto conclusivo e o signo do que se ganha no desprendimento: A própria procura já é um achamento. O tesouro é vento. No “Soneto ao Vento”, ao caminho se associa a perda, simbolizada no ninho do pássaro levado pelo vento: Saqueado de tudo quanto amei busco na hora final o meu caminho e quanto mais avanço mais regresso. Onde estão os meus pássaros? Que ninho os abriga no vento? E ao vento peço que me devolva tudo o que sonhei. Ainda em “A Ronda da Morte”, reafirma-se a sociedade desta com o vento: A morte não respeita a nossa privacidade e vive nos rondando noite e dia. Insiste em espalhar aos quatro ventos que priva da nossa intimidade 293


o que não passa de deslavada mentira. A morte não é flor que se cheire. Torna-se aconselhável ficar longe dela do seu cerco insistente e detestável e evitar os lugares que ela costuma frequentar. Para a nossa paz e segurança tranquemos todas as portas e janelas para que ela não entre em nossas casas nem mesmo na forma de uma aragem. Outros temas recorrentes da Poesia Completa se reiteram em Mormaço. O silêncio, associado ao tema sideral das constelações: O rádio está mudo. E eu bendigo o defeito de pilha que devolve ao universo o silêncio inicial e enxota a fala inútil dos homens. ............................................................................. As constelações são silenciosas. (“O Rádio Mudo”, grifos nossos) O caminhante, a caminhada, o caminho, que em “As Palavras Errantes”, associando-se aos temas recorrentes do pássaro, da estrela e do navio, constroem o grande tema do caminho que leva a lugar nenhum, a “pátria nenhuma escondida em todas as pátrias”: As palavras não são imóveis como os pilares que [sustentam as pontes estáticas ou os arranha-céus que acendem suas luzes na manhã [vertiginosa. 294


Elas caminham como os ciganos em busca da pátria [nenhuma escondida em todas as pátrias. Armam suas barracas à beira da estrada mas logo [partem e avançam na escuridão do mundo como os [sonâmbulos ou saltam como os grilos na grama ainda úmida de [orvalho. Sempre mudam de lugar como os ataúdes nas lojas [funerárias. Nenhum prego fixa uma palavra na página aberta [na desolação do dia. Ela pousa no papel como uma borboleta e em seguida [voa e procura um jardim. As palavras são pássaros [migratórios que nos incitam a partir para as montanhas. São estrelas errantes. São navios. E eu sou uma palavra: estou sempre andando no mundo que é caminho. É o que se reafirma em “O Dom da Travessia”: Um caminho que não me leve a parte alguma e seja só caminho, sem começo ou fim, é o que peço ao dia, e o dia me concede o dom da travessia, para que eu avance sob estrelas e sóis, rodeado de mim, sem jamais alcançar o portão procurado ou a chave perdida em uma duna pálida. E avanço como o dia, como o dia suspenso Entre a nuvem caída e a chuva de verão, sem deixar quaisquer rastros ou sombras no chão. 295


A presença do caminhante, da caminhada e do caminho se reafirma em “A Chegada”, onde o poeta convoca os semas bichos, fonte, pássaro, Deus e eternidade, que ele encontra ao caminhar na floresta: Entrei por uma brecha. Não segui o caminho aberto pelos outros. Entre lianas e espinhos fui pela floresta até o lugar mais alto. Vi a morada secreta do tomilho e do alecrim. A manhã era regida pelo labor das formigas e o bordado das aranhas. Canafístulas douradas sustentavam o verão. E o inverno espreitava os meus passos no chão com a promessa do frio e da podridão. As fontes se esquivavam no sibilo das raízes e no verdor dos musgos. O dia e a noite se enlaçavam. Eram amantes desnudos numa cama de folhagem. Os pássaros voavam no céu maior que a terra. O ar que eu respirava era o esconderijo de Deus e da eternidade. ...................................... 296


Eu era mais que eu: o excesso de ser, sendo um nome sussurrado entre as fontes e as grutas e as frutas que pendiam de augustas árvores mudas. Foi por uma brecha estreita que cheguei a mim mesmo como a orquídea que floresce no alto da floresta. Ao caminhante e ao caminho, associam-se a sombra e o perecimento, em “Fim do Passeio”: Vou perdido entre a gente. Não me guia nenhum braço ou lanterna no caminho onde a noite pousou o sol do dia. .................................................... De mim mesmo me sinto despojado, sombra errante que esconde a sua sombra entre as sombras do chão desamparado. Este é o fim do caminho. Nada resta. E o próprio nada se dissolve como a folha que apodrece na floresta. Em “Volta a Jaraguá”, a caminhada, a passagem, o pássaro, todos se reúnem, indicando movimento: Que ninguém interrompa o meu diálogo com o dia que passa ....................................... 297


e ninguém me detenha nesta caminhada pela minha praia. ................................... Converso com as águas sempre infiéis e acompanho o voo dos meus pássaros. E em “O Passageiro de Táxi”, a perda e o nada se associam à passagem na figura do passageiro, que aqui não é adjetivo e sim substantivo: Perdi tudo ao perder a minha máscara, pois eu só existia no disfarce. Separado de mim, não sou mais nada. Nada mais sendo, só me resta ser aquele cavalheiro que está pegando um táxi. O branco também comparece, associado à morte, ambos sob o império da ventania: Após o passeio vem a solidão e a branca sereia da branca ambulância. ..................................... Aproveite o dia antes da chegada da noite estridente e da ventania. (“Bom Proveito”, grifos nossos) 298


É a metáfora da morte branca – ou seja: o nada – que se repete no belo “Novo Soneto de Paris”, associada às imagens do caminho e da caminhada, à morte, à estrela, e, ainda, ao vento, que, embora não se mencione explicitamente, subentende-se como presença ativa, na folha que cai do plátano, à qual o poeta, mais uma vez fazendo uso do correlativo objetivo, dedica os versos comovidos: Uma folha caída na avenida. É assim que se extingue um amanhã. Paris me diz que toda vida é vã, a branca estrela da estação perdida. A ti, folha de plátano caída no chão dourado da plúmbea manhã, um frio de outono que nenhuma lã vai proteger da morte prometida. A ti dedico os passos derradeiros que me afastam da vida quando passo sob as árvores da longa alameda. Entre a noite indolente e os sóis primeiros cai a folha do amor, e cai no espaço do dia breve. E a morte é muda e leda. Tema que também se repete em “Ladrilho”: A morte é branca. Os cortinados da UTI são os estandartes que anunciam e saúdam a passagem [da morte. E a vida termina em silêncio, sem o gemido final.

299


Um destaque deve ser dado ao tema-sema tempo, que já era uma presença recorrente na Poesia Completa, mas apenas se fez mais significativo na leitura de Mormaço. Tanto é assim que no estudo anterior ele apenas foi citado, mas não relacionado entre os sintagmas-semas componentes da trama semântica. Será preciso voltar mais uma vez à Poesia Completa quando se quiser esclarecer se de fato aqui, em Mormaço, o tempo se afirma com mais força, ou se a percepção de sua relevância aqui é apenas uma consequência da continuidade da leitura. Seja como for, na leitura de Mormaço, o tempo se afirmou como um dado primacial, tanto pela reiteração quanto pela densidade, enquanto signo de uma fatalidade que nos faz perecíveis, proibindo-nos a imortalidade. Este o sentido reincidente em todos os poemas em que o tempo é citado:

O tempo não passa de um filho da puta que, ao passar por nós, de nós leva tudo e não deixa nada. (“Diálogo na Madrugada”, grifo nosso)

Do outro lado do sono, um horrível sinal indica o meu destino. Qualquer que seja o barco, a atracação final é do tempo assassino. (“O Atracadouro”, grifo nosso)

300


Aproveite o tempo enquanto ainda há tempo. Aproveite a vida que a morte não tarda com o seu suspiro e a sua mortalha. (“Bom Proveito”, grifo nosso) Além de implacável, o tempo é também dissimulado, traiçoeiro, fingido: E o tempo... o tempo o belo escarnecido, por mais longo que seja sempre breve, uma brancura plácida de neve desgarrada do céu escurecido, o tempo, que não cumpre o prometido e jamais paga o soldo que nos deve e finge estar parado quando a leve folha estremece no jardim florido, o tempo que dá voz às águas mudas e o dia fugitivo torna em pura noite de um vivo tempo não vivido, e veste ao sol as árvores desnudas, crava em nós sua flecha, e uma brancura de neve cai do céu escurecido. (“Soneto de Ottawa”, grifos nossos)

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E, pelo condão da metáfora, disfarça-se, oculto nas aparências, espreitando os humanos mesmo quando lhes dá tréguas de breves instantes: O tempo se esconde dentro da paisagem: uma serpente verde na verde folhagem. Instante estacionado na fímbria de um instante como um caranguejo na lama de um mangue. Tempo despojado da aflição dos homens. Sol de um sol dourado no arrebol de sangue. Tempo dos amantes: um lençol encobre o amor esvaído sem depois ou antes. (“O Instante Estacionado”, grifos nossos) O tempo mimético (“serpente verde na verde folhagem”) não se esconde apenas na paisagem, mas até no fundo oceânico: Ninguém recupera o tempo perdido que fica escondido no fundo do mar. (“O Naufrágio”, grifo nosso) 302


E é ele, o tempo, o tema central – como grande inimigo ancestral na indecifrada jornada humana – do poema que encerra Mormaço, numa meditação filosófica que tem algo dos sonetos camonianos, no que reproduz o tema, longamente praticado pelos poetas renascentistas, da luta do amor com seus dois grandes inimigos: o tempo e a morte. “Quando o tempo cessar de ser o tempo tudo será começo e nascimento” dizem os versos iniciais de “O Eterno Retorno”, com o qual o livro se encerra. Mas o vento é uma constante imperiosa, em Mormaço. Assim, em “Passagem”, o caminho se abrindo no mar, o poeta se define como aquele que parte, que só sabe partir, porque tudo é viagem no seu destino, findando por reafirmar sua fidelidade ao vento, a quem somente obedece: Do meu navio que sulca o mar buscando as ilhas afortunadas ouço o clarim no nevoeiro. Que quer de mim a terra firme? Nenhuma amarra me prende ao cais. Só sei buscar e descobrir. Tudo é viagem no meu destino. Não sei ficar. Só sei partir. Não sei voltar. Quero fugir do horror do mundo. Cale a trombeta 303


seu alarido. Cesse o clarim seu chamamento. Como sou livre! Só obedeço à voz do vento. E mesmo quando, em “Identidades”, o poeta discorre sobre a atitude de outros poetas ante a convicção do Eu, é ainda o vento quem conclui a reflexão, afirmando a efemeridade sobre a certeza ontológica: Victor Hugo tinha certeza absoluta de que Victor [Hugo era um pseudônimo de Deus e se considerava proprietário do céu, da terra e do [oceano. ................................................................................ Baudelaire viu num espelho o abismo que o tragou. Paul Claudel pensava ser o suplente de Deus e se derramava em caudalosos versos brancos para celebrar a beleza do universo. ................................................................................ A dúvida de ser Paul Valéry perseguiu Valéry a vida inteira especialmente durante a manhã, quando ele [procurava o eu perdido entre os enigmáticos sonhos da noite. ........................................................... A Paul Verlaine não interessava ser ou não ser Paul Verlaine. Ele sabia que no outono as folhas das árvores são [arrastadas pelo vento. E isto é essencial. O resto é literatura. 304


A ideia do não ser, extinção do Eu, se reitera em “O Atracadouro”, associada ao tema da sombra: Ao ver a minha sombra na sombra de um muro sempre desejei ser aquele que não é para ser sempre o puro desejo de não ser. E a mesma nota se repete em “A Fala Final”: Os anos de minha vida passaram tão rápidos que nem sequer coube neles um voo de pássaro. Agora só falo à noite e às estrelas. Só falo ao silêncio e à escuridão. Emblemático é o poema que, associando aos semas vento e nada os semas tempo, morte e amor, encerra Mormaço com uma profunda meditação filosófica sobre estes três temas clássicos da poesia. O seu título – “O Eterno Retorno” – parece sustentar-se numa irônica referência à ilusão, pois o poeta, que se diz “levado pelo eterno movimento”, no último terceto afirma ser ilusória a crença no retorno à vida, que no entanto aceita, por causa do amor: Quando o tempo cessar de ser o tempo tudo será começo e nascimento. Novas estrelas surgirão no céu e será vento novo o antigo vento. Levado pelo eterno movimento que pulsa no silêncio das galáxias hei de tornar a ser o que já fui e viverei a vida que perdi. 305


Para quem ama, é a morte uma mentira estampada no rosto de quem morre. O céu desmesurado está aberto a todos os regressos e metamorfoses. Ó eterno retorno prometido ao nada e ao pó, aceito que me enganes para poder voltar ao meu amor vivido. Mas é ambíguo este terceto. Quando o poeta diz: ó” eterno retorno prometido ao nada e ao pó, aceito que me enganes para poder voltar ao meu amor vivido”, ele aqui, na verdade, parece assumir a crença em Sâmsara, a roda dos nascimentos e mortes, movida pelo desejo de vida, em eterno movimento até que suceda aquilo que fez o Budha pronunciar a célebre sentença nirvânica: Recorri o círculo de muitas encarnações buscando o [arquiteto. É duro nascer tantas vezes. Arquiteto, finalmente te encontrei. Nunca voltarás a construir a casa. Divisa esta que, no entanto, apenas quando invertida, se coaduna ao propósito desta caminhada que, mesmo se levantando questões filosóficas, será sempre a caminhada de um poeta, movida, em última instância, mais pelo sentir do que pelo pensar, e assim mais próxima da jornada de um Bodhisatwa que da de um Budha. Porque o poeta – esse andarilho inquieto, desde Homero fadado à errância – não se pretende destacado do universo manifesto e sim “levado pelo eterno movimento 306


que pulsa no silêncio das galáxias”. Sua caminhada é incessante, porque assim é a criação da qual se sabe inseparável. “Um caminho que não me leve a parte alguma”, diz por isto o caminhante, que se percebe e se pretende “o que passa” – e ainda em Réquiem dirá, num discurso de bem-aventuranças, essas frases-versos em que ressoam, em subliminar convergência – que se dá no “caminho do meio” – o “Le Voyage” das Fleurs du Mal e o pessoano The Way of the Serpent: Felizes os que partem. Não os que chegam aos portos apodrecidos. Felizes os que partem e não regressam jamais. Que eu esteja sempre no meio do caminho e a minha viagem seja inacabada. Felizes os que não conhecem a estação final.

307


Aqui estou, à espera do silêncio. ....................................................

Uma noite de cinzas sucede agora ao clamor e à alegria. O mar apaga todos os naufrágios e todo fogo se extingue, todo fogo dourado se alastra e se apaga no silêncio do mundo. Réquiem, I Onde vivem os mortos viverei algum dia nesse lugar nenhum que os deuses temporários reservaram a cinzas que são nada e ninguém. ............................................................................... E sempre ouvi a voz que me chama no escuro, 308


III.

“À Espera do Silêncio”: o não lugar de um Réquiem entre dois nadas 309


Aqui estou, à espera do silêncio. ................................................. Uma noite de cinzas secede agora ao clamor e à alegria. O mar apaga todos os naufrágios e todo fogo se estingue, todo fogo dourado se alastra e se apaga no silêncio do mundo. Réquiem, I Onde vivem os mortos viverei algum dia nesse lugar nenhum que os deuses temporários reservaram as cinzas que são nada e ninguém. ........................................................................ E sempre ouvi a voz que me chama no escuro, a voz do outro lado, vinda dos outros mundos que se desfazem no ar, lambidos pela bruma. Sempre amei esta voz que é uma voz nenhuma, um sussurro do nada, a cinza estremecida, uma areia que range na praia infindável. Réquiem, III Felizes os que partem. Não os que chegam, aos portos apodrecidos. Felizes os que partem e não regressam jamais. Que eu esteja sempre no meio do caminho e a minha viagem seja inacabada. Felizes os que não conhecem a estação final. Réquiem, V 310


Agora o silêncio do mundo lacra a minha alma. O róseo raio da rósea alvorada aponta para a noite escura. De mim mesmo afastado pela morte, essa concha que não guarda o barulho do mar, é aqui que termina, na lama negra dos maceiós, o meu longo caminho entre dois nadas. Réquiem, VIII

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O Poema Eis-nos ante Réquiem. Livro com um poema único, mas composto de oito poemas-partes, escreve-se quando Mormaço ia a meio do caminho e conclui-se antes que ele finde. Ter-se-ia dele desprendido ou seria outra a sua nascente? Seja como for, o certo é que, se estes oito poemas não se incluíram em Mormaço, é porque mereceram, enquanto livro, o lugar exclusivo que também têm enquanto capítulo deste meu estudo. Ante este poema me detive, e assim ainda estou, com uma sensação indefinida, nada fácil de traduzir com palavras, de onde já se vê que o poeta não está a brincar quando se diz aqui “à espera do silêncio”. Um silêncio contagioso! O silêncio, aliás, é uma presença que se impõe ao longo do poema: “silêncio da noite”, “silêncio dos peixes”, “silêncio das montanhas”, “silêncio da chuva”, “silêncio do mundo”. A propósito deste silêncio – e para que não se limite a interpretação do poema à de um canto elegíaco à memória de alguém que se foi, pois é preciso ultrapassar esse nível da leitura e proceder a uma compreensão do poema em sua significação metafórica e metafísica – é oportuno lembrar que “réquiem”, vocábulo latino, significa repouso, descanso, e também cessação, quietude, calma, sendo esta, de fato, a impressão que a leitura dos versos nos transmite: a de uma contemplação expectante, na qual o poeta andarilho medita ante a cinza em que se converteu o fogo da vida vivida. O caminhante, que vimos sempre em movimento ao longo de toda a Poesia Completa e do Mormaço, aqui se detém numa meditação sobre o decurso do tempo e a metamorfose; o que à partida imprime a marca de uma diferença a este poema no conjunto da obra de Lêdo Ivo. Porque, se pudermos usar a metáfora do rio para o discurso de toda sua poesia, usaremos para o Réquiem a metáfora do lago.

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Poema singular e misterioso: denso, complexo, túmido de sentido, impregnado de atmosferas que transmitem uma estranha sensação, na qual, de uma umidade marítima e palustre, desprende-se um branco essencial, abstrato, sensivelmente ofuscante e difuso; é ao mesmo tempo uma obra formalmente clara e exata. Em certo sentido, talvez até se pudesse dizer que se trata de um perfeito artefato parnasiano, se sua perfeição formal fosse a da forma pela forma; o que assim não é, contudo, pois aqui as imagens, irrompendo como florações abstratas, são coágulos metafísicos e metafóricos de um fluxo em que campos poéticos se propagam, impondo-se com precisão tão lógica quanto surreal. Aqui as imagens não são puras invenções linguísticas, mas sim formas linguísticas de experiências profundamente sentidas e meditadas. O discurso, que se constitui numa sucessão de imagens e metáforas soberbamente processadas, desdobra-se num ritmo de água que avança, ou carreira de nuvens, em versos sucessivos, que no tom elegíaco soam, no entanto, como equações rigorosas, postulados filosóficos enunciados ritmicamente por um poeta heroico-elegíaco. Com estas palavras ainda um tanto soltas, o que intento dizer é que neste poema se processa uma conjunção – magistralmente resolvida – de estrutura e fluxo. A lama palustre escorre, as nuvens diáfanas avançam, mas sustentadas pelo compasso de um rigor geométrico que as estrutura. E esta conjunção é sem dúvida uma das razões que me levam a afirmar, sem receio de equívoco: considero Réquiem, não apenas a obra-prima de Lêdo Ivo, mas uma obra-prima da poesia. E espero não estar enganada ao antever que o futuro confirmará esta minha afirmação.

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Desdobramento do Discurso Este recitativo filosófico executa o canto elegíaco de um poeta à desaparição de sua amada. Orfeu sem Eurídice contempla, melancólico, “o estilhaço que sobrou das iluminações”. É um poema de fogo e cinza, vida e morte, realidade e sonho. Uma elegia à impermanência, à brevidade, à desaparição, à metamorfose. E dizer que Réquiem é o poema de uma metamorfose é perceber que nele a caminhada se modifica, perceber que algo aqui sucedeu ao caminhante. O poema é o canto à desaparição da amada, canto de um Orfeu que perdeu sua Eurídice, mas é também canto da desaparição de alguém que com ela se foi: ele mesmo, o cantor, ou aquele que ele percebia ser no passado. Agora é outro tempo. Já não há um poeta que diz do tempo – ente abstrato, adversário do espírito – e sim o poeta que diz do tempo decorrido e cumprido, com o qual ele se foi. O drama da vida acabou, as cortinas se fecharam e agora ele, o poeta, contempla o que sobrou, as cinzas do fogo, no “silêncio do mundo” onde está, no “não lugar entre dois nadas”. Por isto, os semas recorrentes na Poesia Completa e reiterados em Mormaço aqui também comparecem, mas vestidos a caráter, como que convocados para uma festa a rigor. Noite, morte, nada; gavião, pássaro, peixe, caranguejo, raposa; mar, maresia, mangue; Deus, sombra; caminho, caminhada, caminhante; todos comparecem, trajados de branco e imersos em silêncio, nesse não lugar expectante, lugar entre dois nadas onde o poeta ouve o sussurro do nada, o silêncio do mundo. Acompanhando o discurso, observemos que ele já se inicia em expectação silenciosa: Aqui estou, à espera do silêncio. Diante do estaleiro apodrecido só vislumbro o estilhaço 314


que sobrou das iluminações. Como todas as sobras, ele traz a marca das coisas escondidas para sempre ou dos seres sepultados no alto das dunas; como as letras gravadas a fogo na anca de um cavalo roubado por um cigano, ou um sinal de nascença no quadril bem-amado. Agora a noite desce para sempre. Meu olhar fatigado segue a canoa que se afasta dos manguezais. Uma luz na restinga. Um caranguejo na lama. E a vida se evapora como as almas no céu que não [abriga nenhum deus. Todas as paisagens que vi se esfarelaram nos postais corroídos. Na Barra de São Miguel, diante do mar, só agora aprendi: o dia mais longo do homem dura menos que um relâmpago. O tempo não será mais celebrado entre as constelações. O céu e a terra vão sumir na cinza desapontada dos amanhãs roubados pela morte. E tudo o que amei se dissolve. É um poema de fluxo contínuo tão regular, em sua soberba resolução, que nos sentimos tentados a transcrevê-lo por inteiro, do primeiro ao último verso, mesmo sabendo não ser isto 315


possível, e nos resignando a recomendar ao leitor que, se ainda não o leu, leia e releia Réquiem com a máxima atenção, ouvindo-lhe a voz, captando-lhe a cadência rítmica e a trama semântica, nele identificando as incidências metafóricas, de modo a compreender a operação que nele se processa, e assim também compreender o sentido muito mais avançado no qual se deve definir o que seja poesia. É a isto que tentarei aqui proceder, em ressonância com este poema, que, pelo refinamento de sua linguagem, penso poder ser entendido, se não como o último, como a culminância da alquimia poética de Lêdo Ivo. Poema que nos oferta a presença do tempo nos seres desaparecidos – tempo que sepulta as “coisas escondidas para sempre”– numa oferenda que é despedida, pronunciada ante o seu lugar de origem: Chegou a hora de dizer adeus à água negra que marulha na treva da laguna e ao vento planetário que seca os peixes pendurados nos varais das palhoças e ao mar caeté que se abriu diante das falésias de minha pátria perdida. Na despedida, em metafórica evocação histórica, surge uma meditação sobre o tempo, e, mais que tudo, sobre a impermanência, a efemeridade, na qual sempre o vento se reitera: A eternidade passa como o vento. Só o tempo é eterno. Sempre estive aqui no meio do meu povo dizimado, e minhas mãos armaram além das dunas a dourada fogueira antropofágica do assombroso festim. Uma noite de cinzas 316


sucede agora ao clamor e à alegria. O mar apaga todos os naufrágios e todo fogo se extingue, todo fogo dourado se alastra e se apaga no silêncio do mundo. Na noite crematória, a morte é uma fogueira. No segundo poema, mantendo-se a excelência rítmico-semântica da linguagem; reiterando-se a imagem inusitada, a metáfora insólita; insinuando-se a transgressão surrealista; reinvocando-se o desfile dos entes em suas circunstâncias; inaugurando-se a presença (poético-filosófica) do “não lugar”; nota-se também um estiramento dos versos que parece indicar a retomada de Ode e Elegia compostos no início do percurso: Além do frio e do calor e das baratas que se espalham como pétalas no celeiro abandonado e dos sinos funerários na manhã da infância e das luzes oscilantes dos caminhões que atravessam lentamente os canaviais espantando os guaxinins além das cestas abertas como corolas para recolher a sobra do dia mutilado pelos ódios e [guerras longe dos ninhos caídos no chão de inverno e das águas dessas chuvas obstinadas que desaparecem subitamente na grande mesa do mar rudimentar e das leves luas límpidas que regem a passagem das [curimãs há um não lugar que dispensa a súplica e a esperança e enxota a solenidade e a reverência. 317


Além dos sonhos visitados pelo mar impaciente e do escuro fétido das cloacas e da claridade solar em que nos movemos aturdidos como as moscas estonteadas pelo calor do verão um não espaço nos espera. .............................................. Além da realidade, há outras realidades que se desdobram como degraus. Nossos passos sobem e descem a escada, no dia admirável [e na noite branda. São como sonhos tributários de outros sonhos ou janelas abertas para o mar. Não sabemos onde estamos. Não sabemos o que [somos. Nada sabemos, a não ser que há uma noite pura e vazia à nossa espera. Uma noite intocável além do fogo e do gelo, e de qualquer esperança. Com a sua mão sinistra a morte esmaga nossos sonhos de insetos deslumbrados e entorna a alvura da água contida no vaso prometido ao desastre de uma flor de estilhaços. A morte, sempre a morte, a nos importunar com o seu zumbir de mosca funerária. Além do bulício fenomênico do mundo, outra realidade nos espera, mas não a de um além mundo platônico, e sim a de “uma noite pura e vazia”. “Noite intocável, além do fogo e do gelo e de qualquer esperança” No poema III o discurso retorna ao bulício do mundo, numa espécie de ode ao movimento das coisas:

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Sempre amei o dia que nasce. A proa do navio, A claridade que avança entre as sombras esparsas, O longo murmúrio da vida nas estações ferroviárias. E em meio ao bulício irrompe a surpresa de uma metáfora viva, insólita, na qual se promove a aproximação de linguagem e mundo: O dia derrama as sílabas do mundo nas calçadas. O fio se desenrola, prosseguindo a ode ao mundo de aparências ruidosas, perpassadas pelo vento: Sempre amei o trovão que dilacera a tarde, a ferrugem e a chuva, os amores que acabam e a fumaça que sobe dos pneus esfolados. ...................................................................... Sempre amei o que passa: os táxis lotados, os apitos dos trens, as nuvens desgarradas e as folhas arrastadas pelo vento. ................................................................. Sempre amei a sucata, a forma destruída pelo tempo tornado maresia. Sempre amei o gorgulho escondido no silo. O rumor da torrente faz a noite mais clara e desfralda entre as pedras os belos estandartes de um sonho que acompanha um sol desmantelado. .............................................................................. 319


No estaleiro de São Miguel dos Campos o mar devolve ao mar o espólio reclamado das vértebras perdidas dos navios. Sempre amei o trovão que desperta os que dormem, a porta de minha casa aberta à trovoada, o dia que perde as escamas como um peixe. ............................................................................... Onde vivem os mortos viverei algum dia nesse lugar nenhum que os deuses temporários reservaram a cinzas que são nada e ninguém. ............................................................................... Sempre amei escutar os rumores do mundo: o zumbido dourado da abelha no esterco, o dia estrepitoso e o vento vagabundo.

Mas a hora é de partir, sempre incitado pelo “vento vagabundo” e “triunfante”:

Os navios apitam. É hora de partir. Toda porta fechada é um porto a ser aberto pelo vento triunfante que dilacera o oceano.

Neste poema III surge um trecho que exemplifica aquela sensação abstrata, difícil de traduzir em palavras, da qual falei no início deste capítulo:

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E sempre ouvi a voz que me chama no escuro, a voz do outro lado, vinda dos outros mundos que se desfazem no ar, lambidos pela bruma. Sempre amei esta voz que é uma voz nenhuma, um sussurro do nada, a cinza estremecida, uma areia que range na praia infindável. Estamos aqui envolvidos, enredados na teia da metáfora. Mas, se nos detemos a perscrutar estas imagens de sentido indefinível, damo-nos conta de que elas nos induzem a uma compreensão mais avançada do que seja o procedimento metafórico. E já a encerrar-se, o poema III ainda elabora outra metáfora rara (“noite depredada”), em que os campos semânticos são transpostos e o sentido literal da linguagem é violado: E sempre amei o tempo e a intempérie, o cupim que prolifera na nudez da matéria, nas pálidas colônias da noite depredada. É sempre da perdição que aqui se fala, perdição que é “naufrágio”, e “obra do vento”: Quis a fortuna que, no perdimento, eu sempre me encontrasse, mesmo estando no naufrágio que é sempre obra do vento. Esta espécie de metáfora, que nos faz lembrar Maiakóvski, reitera-se no poema IV, lembrando também as junções insólitas 321


de adjetivos e substantivos que produzem o surreal em Murilo Mendes e Jorge de Lima: O dia é um relâmpago espatifado. Incide a nota elegíaca na ausência da amada, à qual se segue a imagem recorrente da porta simbólica: Digo adeus a mim mesmo na véspera da treva. E agora a noite desce. Traz a causa perdida. A minha mão não toca mais o corpo bem amado. Um sol negro ilumina a noite de minha alma mas eu quero o outro sol, a grande claridade do dia material que se abre como uma porta. Retorna então o vento: Só ao vento que sopra confio o meu espanto. E surge o gavião, reiterando-se uma imagem recorrente, obsessiva desde a Poesia Completa: Um voo de gavião acompanha os meus passos em direção à vida, em direção à morte, sob a indiferença de um sol imperecível. Se fosse possível simplificar uma explicação para a sensação indefinível provocada pelo Réquiem, eu diria que ela se deve, em grande parte, à força das imagens, que por sua vez provém, no poema, do uso de correlativos objetivos. Funcionando o gavião, 322


nesta incidência, como um desses correlativos, estaria explicado o porquê de sua aparição provocar uma emoção estética. Ele, o gavião, funcionaria como o correspondente objetivo da emoção subjetiva do poeta, destinado a despertar no leitor uma emoção semelhante. Assim sendo, o fundamento do correlativo objetivo seria a teoria das correspondências. Mas esta não passa de uma tentativa de explicar algo que na verdade talvez esteja além da explicação, pois a poesia, como a arte, é uma forma de conhecimento que antecede a ciência e a filosofia, não se deixando jamais capturar por suas definições e explicações. O fio do discurso não se detém, escorre sempre e logo exibe uma metáfora esplêndida (“ninho de nenhum pássaro”) com a qual o poeta designa a morte: Vejo a morte escondida num raio de sol: a sobra do arrebol, ninho de nenhum pássaro e a abolição do voo sobre qualquer páramo. Já o poema V é um discurso de bem-aventuranças, que começam com esta evocação do “Le Voyage”: Felizes os que partem. Não os que chegam, aos portos apodrecidos. Felizes os que partem e não regressam jamais. Aqui o poeta faz uma pausa em suas sensações e passa a exprimir desejos, valores, emoções: Que eu esteja sempre no meio do caminho e a minha viagem seja inacabada. 323


Felizes os que não conhecem a estação final. Felizes os que somem no nevoeiro, os que abrem as janelas quando nasce a manhã ......................................................................... Felizes os que atravessam as pontes .......................................................... Então surge esta comparação, que na verdade funciona como uma metáfora rara e muito bem urdida para definir poeticamente a experiência do nada: Felizes os que sabem que, no fim da travessia, o Nada os espera, como um espantalho num milharal. felizes os que só se acham na perda e no vento. Outra imagem recorrente no Réquiem é a que mistura mundo e linguagem, na imagem da sílaba que se materializa na paisagem natural:

os que ouviram o pio das corujas brancas no silêncio [da noite. Felizes os que encontraram uma sílaba perdida numa [relva orvalhada.

Já quase ao fim, ressurge, silenciosa, majestosa, a presença do gavião: Felizes os que assistiram ao céu abrir-se como um [pálio para acolher o voo do gavião. 324


O poema VI dá sequência ao fluxo invocando os semas familiares que acompanham o poeta desde o início de sua jornada. Cães, constelações, pássaros, galáxias, navios, noite, morte, peixe, porta, passagem, raposa, mar, silêncio, montanhas, e o vento, sempre, sempre o vento comparecem ao inventário da vida no espaço dos fenômenos:

As palavras me seguem como cães quando caminho entre as constelações. ............................................................. No tempo circular, passo e permaneço. Amanheço e anoiteço entre as galáxias e bebo entre dois sóis a minha eternidade. Somado ou dividido, sempre me multiplico quando as constelações voam no céu como pássaros e a verdade do mundo é guardada no porão dos [navios. Sou o vento que sopra em Maceió e a tainha presa no curral marinho. A noite é uma porta que se fecha à minha passagem. O dia é um portulano. Antes do sono e do sonho sorvo o silêncio das [montanhas e atravesso a fronteira onde a morte se esconde como uma raposa na floresta.

Associada ao sema do caminho, reincide a imagem, própria deste livro, em que o sintagma “sílaba” faz a conexão entre linguagem e mundo:

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Ao longo do caminho, sempre escutei o murmúrio de sílabas do mar interminável. E reitera-se o tema-sema da sombra, aqui numa metáfora pictórica surreal como uma tela de Dalí: Na véspera do frio e do fim dos mistérios volto a buscar as vigas do estaleiro e nem sequer encontro a minha sombra sugada pelas nuvens do rubro pôr do sol.

Mas o silêncio se impõe ante certos trechos, como deparamos com estes quatro versos categóricos: Para esta travessia nada trago a não ser o que sobrou de mim, o destroço que prova o meu naufrágio. Andei na multidão. Ouvi o rumor do mundo No inventário do caminho cumprido, os versos se impõem e silenciamos, para melhor ouvir: conversei com a pedra e conheci seu silêncio e espessura; e uma árvore de espuma floresceu para mim na manhã luminosa. Vi o vento ventar nas alagoas e rodear a miséria do mundo. 326


Silenciamos, mesmo ao deparar com outra metáfora rara que se desprende de imagens impregnadas de sensações: Como um lenhador, encerrei o meu dia e esperei a [noite. Ela veio e cegou o fio do machado encostado à [parede, e a lenha ficou acumulada no galpão até ser [transformada em cinza odorante. E eis que surge o cavalo, aqui siderado numa imagem ante a qual também silenciamos: Vi o cavalo manco descer a colina e relinchar sob a [luz das estrelas. Tentei abrir a porta que está sempre fechada. Atravessei as pontes das grandes cidades e respirei o amor, e bebi o universo e tornei a ver o mar, substancial como o vinho e o [pão. O poema VI se encerra com a imagem da morte branca: Vi as luzes da Europa se acenderem [no lento anoitecer. Fui um homem entre os homens, um olhar entre [olhares, e agora estou sozinho. Fui sempre amor no leito memorável e agora a minha mão errante só encontra a treva no lugar em que estava o corpo bem-amado. 327


Um oceano mudo me rodeia e é branco como uma mortalha.

o mar:

E o poema VII se inicia prometendo-se ode ao mar e ante Mar, tambor e martelo, música e sal da vida, grande mar retumbante, eis-me a teu lado!

E logo se desdobra em longos versos que procuram abranger a imensidão do mundo, com suas infinitas paisagens, seus múltiplos fenômenos e criaturas: Junto à ponte do estaleiro que range sobre as vagas aspiro ao silêncio dos peixes que atravessam o [tentáculo rubro dos corais, à inocência da lua que sobe no céu pálido e à vigília [do mar que me convida a ser eterno, e à solidão dos navios afundados que, em leitos de crustáceos, guardam as moedas [perdidas nos naufrágios e o grasnido tardio das [gaivotas. Este poema VII, com seu estiramento de versos, exemplifica o equívoco que seria considerar excessiva a poesia de Lêdo Ivo. Como se houvesse uma régua para uma medida certa de verso, como se poesia fosse o cumprir de um virtuosismo. Na verdade, o que esta poética faz é desdobrar, arrastar, conduzir o fio do discurso, levando-o até onde as coisas vão se as observamos em seu movimento, seu inter-relacionamento, sua pertença à totalidade. 328


O fio se estica até a exaustão, como a linha do mar se alonga e espicha até chegar à praia. Coordenativas e subordinativas são as rótulas que procedem ao desdobramento deste fio. Adjetivos e advérbios também desempenham a mesma função. E o que este estiramento pretende é infinitude e exaustão: Tudo o que eu disse à maré borbulhante e ao sargaço [radioso foi apagado pelo vento que se aninhou entre os [trapiches e sucedeu ao silêncio súbito da chuva que caía no [estuário e umedecia as âncoras avariadas dos navios que guardam em suas entranhas enferrujadas o cheiro conjugado de sal e açúcar e ao negro martelar das águas. Para compreender melhor como se processa este estiramento, façamos um exercício de observação do desdobramento sintático no trecho que se segue: No estaleiro que estremece como um barco quando os remos gotejantes alcançam a restinga onde os sonhos dos homens se agitam em cemitérios [de cal e o esgoto divino sorve as chuvas de verão reclamo o que perdi na longa travessia. Este é o trecho, mas vejamos como se dá o seu desdobramento, decompondo as unidades sintáticas: 329


No estaleiro que estremece como um barco quando os remos gotejantes alcançam a restinga onde os sonhos dos homens se agitam em cemitérios de cal e o esgoto divino sorve as chuvas de verão reclamo o que perdi na longa travessia. Se observarmos com atenção este trecho, na forma sintaticamente decomposta, em que os adjuntos adnominais e adverbiais são alinhados aos termos que complementam, compreenderemos que no estiramento dos versos o que há é uma complexidade sintática na qual se reflete a complexidade do mundo. O fluxo prossegue, invocando a lembrança dos seres levados pelo tempo: Onde estão os loucos de minha infância, os loucos que cantavam e dançavam no hospício devastado pelo sol? Onde estão os meus navios e a luz do farol?

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É, sim, uma meditação sobre o movimento da vida, a impermanência a que chamamos tempo, na qual se dá a metamorfose. E o mar, presença ante a qual o poeta fala, presta-se não apenas como interlocutor, mas como correlativo visível e concreto desse tempo abstrato que apenas se faz visível em seus efeitos sobre os seres. A imagem das ondas que vão e vêm, em incessante movimento, invoca o eterno retorno, que não devolve a Orfeu sua perdida Eurídice, convertida, como entre os gregos antigos, em sombra, forma invisível que se move no não espaço, misto de Averno e Limbo, que Dante fundiu no seu “Canto Primo”: Junto às vagas que morrem e renascem, retorno eterno e eterno movimento, mais uma vez te chamo e não respondes. Agora só nos sonhos vejo a tua sombra. Decerto voaste como um pássaro na escuridão e foste além do sol e do trovão furtivo e da claridade da água. Como todos os mortos estás agora onde não estás, no não lugar que exclui toda esperança. O poema VII se encerra com este verso-sentença categórico: “Tudo o que perdi, perdi para sempre”. Antes, porém, de passarmos ao próximo poema, que é o último, fixemos o que observamos sobre o desdobramento de versos neste penúltimo poema. Lembremos que a razão de os versos serem longos é o propósito obstinado, de caráter cognitivo-ontológico, de perseguição do ser, abstrato e invisível, em seu movimento metamórfico, através da observação dos entes visíveis e concretos, que, sendo formas fenomênicas, são as marcas, as 331


pegadas da passagem inapreensível daquele ser abstrato e invisível. Passemos então ao poema VIII, que logo ao terceiro verso, invocando o tempo na imagem fluvial, escuta o movimento do mundo, os “rumores e desejos”, no “alarido do ser”:

Tempo, composição da água que flui num rio de rumores e desejos. Alarido do ser! ........................................................... Em meio ao alarido, a morte se impõe como presença concreta através de imagens em que os adjetivos (“insolente”, “suprema”, “irregular”, “escancarado”, “estrepitoso”) desempenham um papel decisivo: Sob o despenhadeiro alvo das nuvens a terra guarda o nosso desamparo. E a morte insolente segue os passos dos homens que caminham sob o sol rumo à noite suprema, ao mar irregular. Não temos pressa em morrer e todavia morremos [no dia veloz. E aqui estou, imóvel como a água das cisternas. E a morte é uma aurora que não sabe esperar e rebenta do céu escancarado ao sonho estrepitoso que é a vida.

Também conferem força ao discurso os adjetivos (“exato”, “visível”, “prosódico”) que qualificam o mar ante o qual o poeta emite o seu canto:

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Sempre me faltou sabedoria. Ao longo da minha vida, pouco aprendi e agora, diante do oceano exato e visível, diante do [grande mar prosódico nada sei sobre a travessia. Após tantas viagens, esta é a última fronteira que me cabe transpor. É significativo que se encerre ante o mar este poema em oito cantos, e não um mar qualquer, ou abstrato, mas o mar bem específico de Maceió, ou seja: o mar de sua origem, por ele cantado desde o início de sua produção. Aqui, como no começo da jornada, ele se reconhece na paisagem palustre: O barco sem barqueiro balança na água viscosa. E eu sou a lama negra cheia de miasmas que sustenta as palafitas da miséria e da morte, e a verdade da fome em lábios mudos. Só me foi dado conhecer a chuva interminável e esse vento que arrasta o próprio vento no dia delirante, na noite iracunda. Vi a maré que avança na península e o mar que vinha ao meu encontro como uma [oferenda, o mar feminino que afagava os meus pés. Há um conhecimento que foge dos meus passos mesmo quando piso as tábuas podres do estaleiro e busco em minha sombra a proa dos navios. O tempo é o senhor da verdade e da mentira.

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Acercando-se ao fim, a nota dominante é a da despedida: Digo adeus ao mormaço. É a hora da chegada [daquele pássaro migratório que só surge no [inverno e perturba o mundo sedentário com o [seu canto estridente. Despedida em que se expressa a impermanência das formas: Ó claridade, adeus, despeço-me do sol, do mar incomparável e da noite intempestiva. Vivi sem aprender que tudo é perda e passagem e que a maresia apaga o nome dos navios e leva para bem longe os rumores da vida. Percepção que leva ao silêncio:

Agora o silêncio do mundo lacra a minha alma. O róseo raio da rósea alvorada aponta para a noite escura. Encerra-se este Réquiem com um trecho que começa por abordar o tema renascentista sobejamente glosado por Petrarca e Camões, no qual o poeta constata que a perda da amada, objeto do seu amor, sendo perda de uma parte sua subjetiva (Anima perdida), é também a sua própria perda. Mas a morte se presentifica numa metáfora que é, no meu entender, não apenas singular, mas também a mais excelente entre todos os achados 334


metafóricos deste poema. E é significativo que o poema se encerre com dois versos em que se reafirma a pertença do poeta a dois planos – o da fidelidade à sua origem, na “lama negra dos maceiós”; e o do seu caminho, de poeta-filósofo caminhante, cuja experiência e consciência o situa “entre dois nadas”:

De mim mesmo afastado pela morte, essa concha que não guarda o barulho do mar, é aqui que termina, na lama negra dos maceiós, o meu longo caminho entre dois nadas.

Procedimento Metafórico Do que aqui vimos, ficou claro que a excelência singular do Réquiem se deve, do ponto de vista formal, à força de suas imagens e à densidade conferida ao discurso pelo procedimento metafórico, no qual se engendram as metáforas, mais que ricas, insólitas, que vimos sucederem-se em enunciados surpreendentes, inquietantes. No entanto, além de constatar a força das imagens metafóricas, é preciso dizer que uma compreensão mais profunda e avançada, não só da poesia de Lêdo Ivo, mas da poesia em si, poderá ser alcançada pela observação do que se passa com um enunciado quando nele uma metáfora irrompe. Esta observação foi meticulosamente procedida por Paul Ricoeur em seu longo estudo La Métaphore Vive54, cujo propósito final consiste em demonstrar que a metáfora – ao contrário do que estabeleceu a tradição dos retóricos, baseada, segundo Ricoeur, numa má 54

Ob. cit.

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interpretação da Poética de Aristóteles – não desempenha no enunciado uma função ornamental, que ela não surge no discurso para embelezá-lo, substituindo uma palavra de um campo semântico por outra de outro diferente campo, num faz de conta meramente estilístico, um como se, que se chama sentido figurado. A tradição, diz Ricoeur, contrariou a definição de Aristóteles, segundo a qual a metáfora não é uma comparação abreviada, mas a comparação é que é uma metáfora enfraquecida55, pois, na verdade, a função do procedimento metafórico é a de, operando uma transposição de campos semânticos, restituir as palavras e os seres à sua unidade essencial, redefinindo, neste procedimento, o próprio sentido de realidade. Uma função, portanto, de caráter cognitivo-ontológico. Isto porque – ainda segundo postula Ricoeur, partindo de Jakobson – o enunciado metafórico não suprime a referência, mas estabelece uma referência de segunda ordem, pela qual se questiona a visão de mundo estabelecida no sentido literal do enunciado, que a metáfora desafia. E o resultado mais implicativo deste postulado é que a função da linguagem poética não se restringe à da obtenção de um sentido conotativo – que remete o poema ao sentimento do poeta, encerrando a poesia no intramuros da subjetividade – mas se cumpre, em última instância, como sentido cognitivo, assim restituindo ao mundo sua maior profundidade ontológica. A implicação mais extensiva desta argumentação é que, se a metáfora diz a verdade, então o fingimento poético é um falso fingimento, um fingir ser que na verdade é. E talvez seja isto o que pretende o célebre poema pessoano, quando diz que: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente 55  Ob. cit. p. 312. Do original, traduzido pela autora: “Ainsi, nous resterions fidèles à la tradition d’ Aristote, non suivie par la réthorique ultérieure; pour Aristote, on s’ en souvient, la métaphore n’est pas une comparaison abrégée, mais la comparaison une équivalence afaiblie”.

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que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.

Para bem compreender como se dá o procedimento metafórico na poesia de Lêdo Ivo, observemos o que se passa no fio discursivo do Réquiem quando nele irrompe uma metáfora, entendida não como ornamento retórico e sim como ferramenta de constituição do poético-cognitivo. Para isto, voltemos a algumas metáforas que já assinalamos enquanto acompanhávamos o desdobramento do fio discursivo do poema através de seus oito cantos. No poema II, observemos esta incidência metafórica: Com a sua mão sinistra a morte esmaga nossos sonhos de insetos deslumbrados

O que diz aqui o enunciado? Que a morte tem uma mão sinistra, que nós somos insetos deslumbrados e sonhadores, e que aquela mão sinistra da morte esmaga os sonhos dos insetos que somos nós. Mas, ora, diria a tradição retórica, nem nós somos insetos, pois que somos mamíferos vertebrados racionais, nem a morte, entidade abstrata, poderia ter uma mão. Assim sendo, o poema, por licença poética, usa figuras estilísticas para tecer um enunciado que nos seduza e encante. Bem diferente, contudo, é o que diz a tese da metáfora viva. Se entendermos como cognitiva, e não meramente estilística, a função metafórica, então o enunciado nos dirá o seguinte: os entes, tanto abstratos quanto concretos, definem-se, identificam-se pela sua ação. Se a morte nos vence e elimina, assim como nossas mãos humanas esmagam os insetos, logo, a morte também tem uma mão que nos esmaga, a nós, que portanto somos também insetos. Porque ser inseto, aqui, não 337


quer dizer ser destituído de esqueleto ósseo, mas ser diminuto, frágil, sob o poder de uma mão superior, tal como nós somos ante o poder da morte, esmagador. O que aqui sucede é que mão adquire um sentido imaterial, um sentido de agente, que tanto se aplica aos seres humanos concretos quanto ao ente abstrato que é a morte. Em suma: as coisas passam a definir-se, não como entidades estanques, autônomas, e sim como instâncias de uma cadeia inconsútil, em permanente inter-relação. No poema III, voltemos à metáfora de um mundo silabado: O dia derrama as sílabas do mundo nas calçadas. Aqui, a tradição também poderia estranhar que o dia, não sendo pessoa nem recipiente, derrame qualquer coisa, e que esta coisa seja um mundo silabado, já que sílaba pertence ao campo semântico da língua, e mundo é mundo, não palavra. O enunciado seria, então, apenas um jogo poético que tem por propósito fazer convergirem mundo e linguagem. De fato, há este propósito, e os dois campos semânticos convergem por via metafórica. Mas não é apenas isto, nem principalmente isto o que aqui acontece; pois o poeta, ao dizer que o mundo tem sílabas e que o dia derrama estas sílabas nas calçadas, infringe o modo literal, que seria dizer de um dia que fragmenta a realidade. O pivô aqui é o termo “sílabas do mundo”, cujo cerne é o sintagma “sílabas”. E a conclusão que se extrai, do ponto de vista da metáfora viva, é que “sílaba” aqui não se define como pertença exclusiva do campo-língua, mas como parte do mesmo campo ao qual pertence o sintagma “pedaço”. Pois “sílaba”, como “pedaço”, designam as unidades de um todo que se decompôs em partes. Incidências metafóricas há, porém, que por vezes assumem maior complexidade, quando várias metáforas se reúnem, numa 338


metáfora composta, para constituir um sentido. É o caso das duas que se seguem, extraídas ambas do poema III: A primeira se tece em três versos: Sempre amei o trovão que dilacera a tarde, a ferrugem e a chuva, os amores que acabam e a fumaça que sobe dos pneus esfolados. Trata-se aqui de uma metáfora mais sutil, engendrada numa operação mais engenhosa. Na confluência de campos semânticos diversos, o sentido (metafórico) a que estes três versos remetem é o da universal impermanência das coisas, de sua pertença a um todo em contínua metamorfose e da percepção compromissada que tem o poeta ante essa realidade metamórfica. A segunda, também tecida em três versos, é ainda mais complexa: O rumor da torrente faz a noite mais clara e desfralda entre as pedras os belos estandartes de um sonho que acompanha um sol desmantelado. Começa com uma proposição sinestésica o enunciado: “o rumor da torrente” – que é pertença do campo semântico sonoro – “faz a noite mais clara”, ou seja, atua sobre o campo semântico visual. Mas não só. Ele, “o rumor da torrente, desfralda entre as pedras os belos estandartes de um sonho”. Escorrendo entre as pedras, a água (que Camões, n’Os Lusíadas, metaforicamente designa como “sonorosa linfa fugitiva”), que é concreta, atua também sobre o campo dos entes invisíveis abstratos, desfraldando “estandartes de um sonho”, que por sua vez se prolonga em mais uma metáfora, pois “acompanha um sol desmantelado”. Ora, que enunciado mais absurdo, diz a lógica do 339


sentido literal. Como poderia a água desfraldar estandartes de um sonho, e o sonho acompanhar um sol desmantelado? Na verdade, o que o poema diz é que a torrente, água em movimento, restitui ao mundo a luz que lhe foi subtraída quando a Terra girou e o lugar onde está o poeta deu as costas à claridade solar; e que, com esta luz restituída, reinstaura-se o sonho despedido com aquela claridade. Neste caso, diria a tradição, o poeta se expressa em linguagem figurada para conferir poeticidade ao seu discurso. Mas Eliot aqui veria nitidamente a força de um complexo correlativo objetivo, Ricoeur indagaria: “sabemos nós o que é a realidade?” Voltemos à metáfora magnífica, extraída do poema IV: Vejo a morte escondida num raio de sol: a sobra do arrebol, ninho de nenhum pássaro e a abolição do voo sobre qualquer páramo. “Ninho de nenhum pássaro” é como se define, metaforicamente, a morte, depois de já se ter dito, metaforicamente, que ela se esconde num raio de sol, e que é a “sobra do arrebol”. Lendo o enunciado ao pé da letra, seria até interessante imaginar, pictoricamente, a figura da morte escondida num raio de sol. Mas o que a metáfora aqui pretende é definir a morte como ausência, o nada que sobra ao fim do dia que é a vida. “Ninho de nenhum pássaro”, imagem esplêndida, nos diz claramente deste vazio. No poema V, outra imagem singular, definindo metaforicamente o nada a que nos leva a morte, também transpõe a fronteira entre os campos semânticos dos entes concretos e dos entes abstratos: Felizes os que sabem que, no fim da travessia, o Nada os espera, como um espantalho num milharal. 340


Ainda que aqui a metáfora sofra o abrandamento que se lhe imprime pelo termo comparativo “como”, a imagem do espantalho no milharal não poderia ser mais adequada (é um perfeito correlativo objetivo) para expressar a ausência, solidão e desolação. E nos surpreende, ao fim do poema VIII, a incidência de uma metáfora que – como estas duas supracitadas, porém de modo ainda mais preciso e raro – designa poeticamente o vazio instaurado com a passagem da morte:

De mim mesmo afastado pela morte, essa concha que não guarda o barulho do mar...

A morte, ente abstrato, define-se como concha em cuja cavidade o rumor do mar não é presença, e sim ausência. Metáfora que, sendo conotativa ao dizer de um vazio e silêncio remissivos ao sujeito lírico, é denotativa ao apontar o referente de um silêncio do mundo. E a excelência da imagem sugere que, mimetizando-a, convém também silenciar.

Poesia e Essência As observações aqui desenvolvidas, sobre a importância da metáfora na poesia de Lêdo Ivo – à luz de um conceito de metáfora que confere verdade ao enunciado metafórico e que atribui uma função cognitivo-ontológica à poesia – coadunam-se com uma conclusão deste estudo em que se reflita sobre o ser da poesia e do poeta e sobre o ser segundo o poeta e a poesia. Isto porque, ao demonstrar cientificamente que a poesia diz algo sobre 341


o mundo, que a metáfora executa um desvelamento ontológico, a tese de Ricoeur implica necessariamente um novo olhar sobre a figura do poeta, olhar que lhe confira a respeitabilidade de um status equiparado ao do filósofo. E é também uma curiosa convergência que, se ao iniciar este estudo tinha eu em mente duas concepções de poesia – como tradição e como diálogo – ambas convergentes no entremear de leituras suscitado por uma leitura prodigiosa; ao concluí-lo, retornem ambas em nova escala – a de uma tradição em diálogo sobre a relação poesia/filosofia. É o que sucede quando me vêm à mente estes quatro versos: Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do [mundo. A relação poesia/filosofia aqui se sugere porque com estes versos, que desencadeiam a longa elucubração metafísica desfiada no poema” Tabacaria”, do Álvaro de Campos, Fernando Pessoa se define e ao definir-se não apenas define o ser do poeta – assim aproximando poesia e ontologia –, mas também sugere o caráter cognitivo da função poética; tratando-se, no primeiro caso, de definir-se o que sejam poeta e poesia, e, no segundo, de definir-se o ser das coisas segundo a poesia e os poetas. O ser do poeta, segundo Campos: um nada ser no espaço social da escolha real – que empiricamente define os seres, nomeando-lhes o lugar que ocupam, a função que desempenham, a profissão que exercem – para tudo e todos poder ser no espaço virtual do imaginário; o que implica um salto, ou um desvio, 342


um deslocamento do plano instituído, medianamente acessível à compreensão, e de consensual aceitação, para um plano menos acessível, mais complexo, mais problemático e mais polêmico. Este o destino que definiria o poeta, assim distinguindo-o, não pela afirmação, e sim pela negação. Como diz Campos no mesmo poema: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?” Aparentemente, o sentido destes, como de outros versos pessoanos, apontaria uma falha ontológica: o poeta seria aquele que fracassou em ser algo, aquele que tentou, mas nada conseguiu ser. E esta seria com certeza a interpretação dada pelos contemporâneos (com honrosas e raras exceções) ao poeta da mansarda, quando, vivo e anônimo, era peso morto e presença vexatória na família. Comparado à figura de projeção internacional em que ele hoje se tornou, reformula-se a interpretação, pois agora se trata de uma lucrativa commodity, o que nos faz lembrar de Almada Negreiros quando dizia que Portugal é o país onde Camões morreu à fome e toda a gente vive de Camões. Vê-se então que a incapacidade de ser escondia algo, havia algo mais além da falha ontológica. Resta apenas saber se esse algo está bem compreendido quando se homenageia o poeta que antes inexistia, e seria esplêndido se assim fosse, pois então se entenderia o que dizem poeta e poesia sobre a realidade. Infelizmente, porém, assim ainda não é. Na verdade, poesia e poeta só serão de fato compreendidos quando se entender que o não ser do poeta e da poesia expõe outra dimensão do ser, na qual não se questiona apenas a certeza ontológica do indivíduo poeta, mas também de todos os indivíduos, incluindo-se os que parecem não ter dúvidas sobre a definição da própria identidade ao nível da função social com a qual se identificam. Neste sentido, a função do poeta, com sua poesia, seria expor a relatividade da certeza ontológica definida ao nível das categorias socialmente institucionalizadas, restituindo o homem à sua dimensão essencial. 343


A relação da poesia com a essência – dentro da qual se situa a definição do poeta e de seu lugar no mundo humano – é uma questão pelo menos tão antiga quanto a peremptória acusação com que Platão expulsa a poesia e seus devotos da filosófica República, atribuindo-lhes precisamente, na figura emblemática de Homero, uma recriminável falha ética, além de ontológica. Libelo que a alguns tem espantado, partindo de quem partiu, pois de fato é no mínimo estranha, em Platão, essa guinada que, empurrando a filosofia para longe da poesia, não lhe desfavorece o convívio com a política. A estranheza explicando-se, segundo Maria Zambrano, com o fato de Platão ter sido um poeta que, por um motivo qualquer, renunciou à poesia – valendo-se da condenação para defender-se de sua ameaça (a qual, todavia, se lhe teria imposto ao fim da vida, nos últimos diálogos) – seria tarefa do pensamento filosófico atual refletir sobre o equívoco traumático; o que ela própria faz em trechos como estes, nos quais dialoga criticamente com o autor da República: Para Anaximandro, a injustiça é o ser, o ser das coisas precisamente (...) pois não há razão para que algo seja independentemente, para que se destaque do todo originário e quebre a sua harmonia (...) que algo exista é já uma injustiça. Todo o ser significa ser à custa de algo; ser algo à custa de que outro algo não seja. 56 A realidade é demasiado inesgotável para que esteja submetida à justiça, a uma justiça que não é mais que violência (...) a palavra da poesia é irracional, porque desfaz esta violência, esta justiça violenta do que é. 56  ZAMBRANO, Maria. A Metáfora do Coração e outros Escritos. Lisboa: Assírio e Alvim, p. 74.

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Não aceita a divisão que o ser significa dentro e sobre a inesgotável, obscura riqueza da possibilidade.57 A palavra que quer fixar o inexprimível porque não se resigna a que cada ser seja somente aquilo que parece. Por cima do ser e do não ser, procura a infinitude de cada coisa, reconhecendo-lhe o direito de ser para além dos seus atuais limites (...) porque cada ser leva consigo, como possibilidade, uma diversidade infinita com respeito à qual o que agora é é apenas porque venceu de momento. Significa uma injustiça e talvez uma falácia.58

Reflexões que, corrigindo o olhar do filósofo lançado ao poeta, pugnam pela reconciliação dos dois campos epistemológicos. Em convergência com elas há outros diversos textos. Há, por exemplo, o ensaio “Poesia e Pensamento Abstrato”, no qual Paul Valéry começa por abordar a questão nos seguintes termos: Frequentemente opõe-se a ideia de Poesia à de Pensamento, e sobretudo de “Pensamento abstrato”(...). A maioria crê, sem mais refletir, que as análises e o trabalho do intelecto, os esforços de vontade e de precisão em que ele empenha o espírito não se conciliam com essa a simplicidade de origem, essa superabundância de expressões, essa graça e essa fantasia, que distinguem a poesia e que tornam possível reconhecê-la a partir das suas primeiras palavras.59 57  Id. p. 132. 58  Id. Ibid. 59  VALÉRY, Paul. “Poesia e Pensamento Abstrato”. In: Discurso sobre a Estética. Poesia e Pensamento Abstrato. Lisboa: Passagens, 1995, p. 53.

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E nestes outros termos conclui o discurso: Todo o verdadeiro poeta é bastante mais capaz de raciocínio justo e de pensamento abstrato do que habitualmente se julga.60

Com o mesmo propósito intercede Jean Onimus, num estudo que trata precisamente da cognição poética, enquanto experiência do concreto, que se opõe às abstrações conceituais: a poesia (...) se aproxima das fontes do Ser (...) seu diálogo com as coisas se lança, cedo ou tarde, nesta descoberta fundamental, que o espiritual está contido no sensível, e que se pode participar no espiritual doando-se ao sensível. 61.

E não poderíamos esquecer Heidegger, em quem se dá uma rendição da filosofia à poesia, ainda que de modo ambíguo, pois que preservada uma intransponível distância: Entre ambos, pensamento e poesia, reina um parentesco mais profundamente extraído, porque ambos se oferecem ao serviço da linguagem e se prodigalizam para ela. Entre ambos, contudo, persiste simultaneamente 60

Id. p. 85.

61  ONIMUS, Jean. La Connaissance Poétique. Introduction à la Lecture des Poètes Modernes. Paris: Desclée de Brouwer, 1966. Do original, traduzido pela autora: “la poésie (...) s’ approche des sources de l’ Être (...) son dialogue avec les choses débouche tôt ou tard sur cette découverte fondamentale que le spirituel est contenu dans le sensible et qu’ on peut participer au spirituel en se donnant au sensible”.

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um abismo profundo, porque ambos residem nos montes mais separados.62 Também Pessoa se inclui entre os poetas que pensam. O poeta que extravasa em odes quilométricas, ou compõe ritmadas e rimadas redondilhas, é o mesmo que recomenda o caminho iniciático simbolizado na serpente, ou escreve um longo ensaio em que reflete sobre os novos rumos da poesia em Portugal; com esta atitude revolvendo as pilastras em que se apoiava a recepção convencional da poesia. Talvez pareça despropositado trazer aqui tais considerações, tecidas em torno de um poeta de fama póstuma, quando aqui se trata de um poeta consagrado em vida. No entanto, creio ser oportuna a associação quando penso que à poesia de Lêdo Ivo pode aplicar-se perfeitamente aquele verso metafórico de “Tabacaria” em que se vê “o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada”. Pois uma das formas de compreender a poesia de Lêdo Ivo é esta: uma poesia que atravessa os entes todos, nas diferentes formas concretas e específicas de sua circunstância, para surpreendê-los e suspendê-los ao nível de uma essência que tudo perpassa sem a nada aderir. Ou seja: “a carroça de tudo pela estrada de nada”. Para ambos, Pessoa e Ivo, o ser é aparência, fenômeno, e a essência reside no não ser, que é o cerne das formas fenomênicas. Com efeito: em Lêdo Ivo, o ser é não ser, a essência é negação. Uma essência que está em tudo mas nada é e reside no lugar que poderia ser a “tenebrosa e profunda unidade” acessada 62  HEIDEGGER, Martin. Qu’ est-ce que la Philosophie? Paris: Gallimard, 1957, p. 50. Do original, traduzido pela autora: “entre elles deux, pensée et poésie, règne une parenté plus profondément retirée, parce que toutes deux s’ adonnent au service du langage et se prodiguennt pour lui. Entre elles deux pourtant persiste en même temps un abîme profond, car elles ‘demeurent sur les monts les plus séparés’.”

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por Baudelaire em “Correspondances”, mas não é, porque em Lêdo Ivo ele, o lugar da essência, não é um leito profundo (mesmo se abstrato), onde tudo se funde, e sim uma pura irredutível abstração; na expressão do próprio poeta, “um não lugar”, no qual se expõe a universal inanidade. Aqui a essência não é uma categoria substantiva ou adjetiva, que se encontre ao nível léxico, e sim conectiva, situada em nível sintático. Espaço intermédio, é o elo conectivo dos entes e formas, o ponto que a todos revela como seres interdependentes, apenas existentes uns em relação aos outros. Trata-se, então, duma essência móvel. Jamais o ponto fixo que Dante encontra no Paradiso, ou mesmo o que Borges avista no Aleph. Por isto, ao invés de falarmos dum lugar onde todos os entes e coisas se fundem, como é a unidade panteística em Baudelaire, seria mais preciso falarmos de um entrelugar, onde todos os entes e coisas se interconectam, um lugar de metamorfose, onde as formas se sucedem, emanadas do nada, e tendo por essência o nada que as permeia, espécie de vazio intervalar onde o sentido se suspende, em pura e contemplativa expectação. Luiza Nóbrega Natal, 3 de junho, 2011

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IV. Poemas Escolhidos


As Imaginações (1940-1943) Justificação do Poeta Pai, meus pensamentos não cabem na tua sala com piano [tranquilo a um lado e escuras cadeiras vazias [perto da janela meus inquietos pensamentos não cabem na saleta com [flores morrendo nos jarros e paisagens sorrindo [nas molduras deixa que eles atinjam além das cortinas azuis e caminhem [para muito além das janelas abertas deixa que eles se misturem com o calmo luar não te importes se os outros se espantam com o teu filho [de olhos vivos e cabelos sempre desalinhados não te importes se recito poemas quando a noite cai o tempo não existe na alma do poeta tudo é universal e abrange todos os tempos os poetas, meu pai, são os corações do mundo são as mãos de Deus escrevendo os poemas do mundo [inseguro não importa, pai, que digam que sou louco que choro debruçado nas pontes e me comovo nos teatros que pergunto pela obscura Adriana quando a madrugada [desce em silêncio em silêncio os poetas são os pianos do mundo só eles permanecerão inalteráveis diante das musas e de [Deus só eles terão a noção da agonia do mundo ontem um menino espanhol foi despedaçado por uma [bomba 352


amanhã se encontrarão poemas no bolso do suicida [sonhador enquanto isso os guindastes trabalham incansavelmente [dia e noite e os operários fatigam os braços e as pernas nenhuma oscilação haverá na Poesia ela ficará em equilíbrio porque os ritmos a amparam e Adriana não se prostitui. Sou um comício. Sou uma revolução.

Ode e Elegia (1944-1945) Descoberta do Inefável Sem o sublime, que é o poeta? Sem o inefável, como pode louvar, não traindo a si mesmo, a plena e estranha juventude da moça que ama? Que é o poeta, que imita as marés, sem adquirir com o tempo uma serenidade de coisa [sempre nua como se as estrelas estivessem caminhando governadas [pelo seu riso e seus braços agitassem as árvores feridas pelo clarão da [lua? Sem que seu canto suba até os céus, sufocante música da [terra, que é o poeta? Libertado estou quando canto. E quero que minha respiração oriente a vontade das nuvens e meu pensamento de amor se misture ao horizonte. 353


Cantando, quero outubro, gosto de lágrima, salsugem, no instante anterior ao despertar, folha voando. Sem o inefável, que dura sempre, sem permanecer, como conseguirei louvar essa moça a quem amo e que nasce em minha lembrança plena como a noite e triunfante como uma rosa que durasse eternamente e não se limitasse à glória de um dia? Sem o inefável, que valoriza as mãos e faz o Amor voar, não poderei descer de repente ao inferno de seu corpo nu. O sobrenatural ainda existe. E não seremos nós que alteraremos a indizível ordem das coisas com as nossas mãos que poderão ficar imóveis em pleno amor, diante do corpo amado. É inútil pensar que os anjos morreram ou se despaisaram, buscando outros lugares. Eles ainda estão, unidade admirável do Dia e da Noite, entre as nuvens e as casas em que moramos. Repentinamente, as vozes da infância nos chamam para a [feérica viagem e lembram que podemos fugir para o longe guardado [ainda no sempre. Então, nossas necessidades não se reduzem apenas a [comer, dormir e amar. Temos necessidade de anjos, para ser homens. Temos necessidade de anjos para ser poetas. Vem, incontável música, e anuncia (ao poeta e ao homem, humilde unidade) 354


a ressurreição diária dos anjos. Restaura em mim a certeza de que a folha voando é seu [indomável divertimento pois às vezes sinto que meu primeiro verso foi murmurado [talvez, sem que eu soubesse, por um anjo perturbado com o meu ar desesperado de papel em branco. Não é a manhã, depositando a semente de alegria no [coração dos homens. Não é a vida, cântico triunfal descendo sobre as almas. Não é o poeta, subindo pelos andaimes de carne da [lembrança de uma mulher. São os anjos, que vieram ligar-nos mais uma vez à ordem eterna e à anunciação. Não nos libertaremos jamais desses anjos feitos de terra e mar, celestes criaturas que deixam cair em nós o sol da harmonia. É inútil matar os anjos. Eles são invisíveis e traiçoeiros. De repente, quando nos sentimos seguros, já não somos os consumidores de instantes, e estamos entre o Dia e a Noite, no umbral de uma eternidade vigiada pelos anjos.

Ode ao Crepúsculo (1946) O tempo imita as ondas. Aqui estamos para descer ao abismo de nossa condição terrestre e mesmo certos de que só em fonte imaginária nos [saciaríamos 355


vamos avançando, combatentes do efêmero, e nossos passos ressoam nos bulevares do sono. Desespero, ó confirmação da espera. Nossas lágrimas retornam à sua aldeia de sal. Estamos aqui para explorar o que os outros jamais [explorariam temerosos do inferno, como se não fôssemos o inferno em nosso medo de libertar-nos sem temer o castigo que nos justifica e engrandece. Nós criamos o céu, perpetuamente, e fontes de engano e esplendor renascem ao ritmo de [nossos corpos que, enquanto horizontais, são os epílogos do êxtase. Que é o amor? perguntamos debruçados à beira do riacho de cristal e fogo e estações de parada e regresso. Ninguém nos responde. Redomas de inquietude, que perguntam sempre e recebem o silêncio qual afago de brisa noturna, espanto e enigma, fomos impedidos de afirmar e na estalagem em que estamos ninguém nos conhece. Vivemos evocando diariamente um reino desaparecido que não chegamos a conhecer. Todavia, temos faro do inefável. Nossas fadas, para que lugar as levaram, se não eram moças de aceitar [encontros amorosos nas matas? E nossos circos equipados com um remoto aparelhamento [celeste e uma técnica inaceitável, que inexistência os envolveu, se ainda há pouco, em 1873, [eles nos convidavam para o desmonte da noite aventureira? E nossos jogos de roda, suprema hierarquia noturna, quem os proibiu, entre a lua e o sol, a solfa e a partitura? 356


Enquanto dormíamos, uma nova ordem se impôs contra o fantástico. Estávamos nos preparando para despertar no momento [propício, trazendo nos bolsos os objetos feéricos do sono, quando tudo nos foi arrebatado e acordamos saqueados e nus. Para esconder a nudez, inventamos o abraço que une e [planta na solidão as colunas transfiguradas do amor e da morte. Não queríamos viver sem ter estado face a face com a vida. Horizontes brancos afloravam em nós agora que [estabelecíamos a pura espera de nossos corpos sedentos. Ó alegria de não ter a certeza de outras noites mais longas. Ó terror de amanhecer morto amanhã, não escutando a passagem da carruagem da vida sob nossas janelas... Somos as árvores que sustentam o teto indiscernível do céu. Oh! nós criamos o céu, com as nossas mãos sangrentas e úmidas das indeclináveis tarefas noturnas. Anjos decaídos, desferimos voo e vamos subindo em nossa [própria Queda – e uma torre se ergue dentro de nós, assentada no alicerce de nossas veias e na floresta perecível de nossos corpos que são as conchas da morte. ........................................................................... Consumir-se no próprio canto – eis o essencial ao poeta. Dar-se inteiramente como um cadáver que se desintegra. ........................................................................... 357


Dar-se inteiramente, para não morrer, como folha voante se oferece ao outono. Dar-se inteiramente. E porque nos oferecemos ao inexistente, aqui estamos procurando uma razão para justificar essa oferta que nada vale, porque nada somos. ......................................................................... As horas! Hora em que os pés são os depositários da [aventura e caminham em direção ao navio, à casa de flores e ao [cinema. ....................................................................................... Mas de que me serve estar hospedado aqui se desejo singrar as baías da volúpia, se desejo sentir-me pássaro ferido, se desejo ser uma caravana quebrando o amanhecer, se desejo ir além, muito além dos vales noturnos, perder-me como a música que só existe quando existe, perder-me como os mortos que à tardinha passeiam sob [a terra saltando entre as raízes das árvores? ....................................................................................... Ó meu Deus, neste momento de amor dai-me a alegria [voadora dos pássaros. Dai-me a precisão dos cronômetros, a imobilidade das [estátuas receosas da noite. ....................................................................................... Dai-me o que não tenho, o que não posso ter pois em meu combate com o anjo não busco senão o [inefável. .......................................................................................

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Era preciso dizer de súbito: devo partir agora, fugir desta casa, deste emprego, desta injunção. Um corpo me espera em algum lugar do mundo. No Tâmisa ou no Sena alguém vem de afogar-se em homenagem à minha indecisão. Céu, vigilância da atmosfera, desce gravemente. Amortalha-me em ti a esta pobre criança que sonhou a Poesia, indeciso entre inventá-la ou descobri-la. .................................................................................. Quisera ser estritamente desconhecido e ter a delicadeza dos fantasmas que pedem desculpas [quando assustam. .................................................................................. Que em mim mesmo se crie o canto, para que eu me [cumpra verdadeiramente como as nossas faces na face dos espelhos. .................................................................................. A Poesia aí está, caindo sobre os homens que ao entardecer suspendem o trabalho e se submetem [aos sinais de trânsito. É a Poesia, subindo pelas escadas de incêndio dos edifícios, jogando-se aos trilhos dos bondes como um suicida, levantando a toalha das mesas dos restaurantes, [imobilizando as taxi-girls, é a arbitrária poesia das vitrinas com os seus objetos [mecânicos e sua magia moderna, é a Poesia indo embora nos comboios emigrantes, .................................................................................... ó poesia torrencial e indomável que cabe todavia na frisa [matinal de uma trova,

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do nada te levantas, e vais subindo, e eu vou contigo, atento à tua fúria. .................................................................................... O poeta, desconcertante inventor, cria a poesia num [momento de alarma. Para os outros, lá vai ele pelos campos, saudando as [borboletas, as águas que cantam e as sebes diurnas. ....................................................................................... Uma mulher! Quantas chuvas caíram para que ela viesse ainda molhada de intraduzível orvalho!(...) ....................................................................................... E porque foi, ela virá, não montada nos cavalos selvagens [da aurora, mas voltando a pé, trazendo nas mãos o púcaro vazio de quem vai à fonte buscar a água verdadeira. Cumpre-nos recebê-la com a porta aberta e levá-la pelos caminhos de sempre, usufruindo o existente. ....................................................................................... Corvos, andorinhas, pássaros sem nome, quem não vos invejaria, sabendo-vos nas nuvens, mais perto do que ansiamos, destinados ao ignorado? Que fazeis nas nuvens, se os alimentos estão na Terra, sejais aves do bem ou pássaros do mal? Em vosso voo sem resposta confirmais a necessidade de uma tarefa diária. Os alimentos estão na Terra, e no entanto voais nos pródromos das vagas celestes, entre sublimes janelas. ....................................................................................... Uma ordem foi destruída. Uma hierarquia em que o humano era a tradução visível do angélico desabou como os céus. No fim, eu também desabarei. ....................................................................................... 360


Serei desconhecido de mim mesmo, e me perguntarei: quem é este homem que escreve versos à minha mesa, consulta o dicionário de rimas e lê contos de fadas? ................................................................................... Quem é este homem que copiou meus traços, imitou meus retratos e adquiriu minha tendência para evocar o verão? .................................................................................. é a hora de cair o crepúsculo, é a hora dos saltimbancos, é a hora das ligações perigosas, é a hora do regresso [inopinado de Rimbaud. ....................................................................................... Que grito vem do chão da música, anunciando a noite que vai cair sobre nós? ....................................................................................... Sou um saltimbanco e danço entre as cordas retesas de minha inacreditável [loucura. Em minha atitude de homem sarcástico, que saúda a praia [com um sorriso, esconde-se uma loucura temerosa de sua exatidão e que repele o voo baixo da imaginação poética, mas aceita [os concentrados jogos de palavras. Quero rir amplamente dos que oferecem sua lucidez [como homenagem a si mesmos.(...) ....................................................................................... quero rir e oferecer às estrelas o silêncio que sobrevier à [minha gargalhada e perguntar, com os braços abertos: onde está a vida? dizei-me onde está a vida, que de há muito a procuro e encontro apenas a fábula dos versos. ....................................................................................... 361


Nossa missão é continuar a tarefa dos que vieram antes para que Ela, a Poesia, não desapareça e transmita o intraduzível. Um dia morreremos entre vaias e fanfarras, e ela permanecerá afirmando que existimos, e tentamos cumprir o mandato inefável. ....................................................................................... Ao crepúsculo, canto esta vida mesquinha. Canto os [bondes no mistério dos trilhos, canto os automóveis nas ruidosas pistas da morte, canto os ônibus ....................................................................................... Canto e procuro nesta impureza o que brilha no centro [do diamante sem consumi-lo ou desfigurá-lo. Algo se oculta entre estes [gritos e músicas e existe sem gesto, movimento ou palavra, e ergue-se para [o espaço sem que possamos captá-lo. Algo existe para ser atingido [e superado quando sentes que estás vivendo um sonho de antigamente e por mais que apertes a campainha tua porta não se [abrirá. Canto este crepúsculo. Canto-o com uma alegria [desmesurada que fomenta vertigens, e ampara raios, e atinge o céu com [as mãos. Mais alto que a Morte, canto este crepúsculo que desce. E a noite que vem, antes de ser noite, é minha. ....................................................................................... Eu morto, ninguém exaltará essas coisas que iluminam [repentinamente o celeiro do cotidiano. 362


As coisas que vejo e sinto, cantadas por outrem, jamais [serão o que são agora: a rua em novembro, a chuva ausente, a mulher inclinada [no ônibus, o homem que passa espetacularmente [levando uma braçada de flores para a prosaica [mulher que o desposou há sete anos. ....................................................................................... Este é o meu canto, o de minha paixão e morte.(...)

Ode à Noite (1946) Os fundamentos do meu ser, ao vento, são nuvens procurando um sul incerto onde eu repousaria em pensamento no sono de mim mesmo, e em mim desperto. .................................................................... Instante, labirinto de cristais que à luz alheia esplendem... doce abrigo das horas niveladas no horizonte ................................................................. Instante, porta aberta ao nunca mais... Como te louvarei, pão sempre oferto à minha permanência na memória, se em teu desejo bebo, e em teu deserto o céu tece a traição mais ilusória? Eu te saúdo, Noite – concha aberta ao murmúrio do sono... .................................................................... Louvo-te, Noite, sósia da aventura que às estrelas se entrega... .................................................................... 363


Louvo-te, Noite, que manténs despertos os sentidos do poeta entregue ao sono do esplendor sufocado pelos rastros da emigrada canção que, no abandono, inventa as perspectivas dos desertos e cria as mutações dos grandes astros.

Cântico (1947-1949) A Infância Redimida Tenho um ritmo longo demais para louvar-te, Poesia. Maior, porém, era a beira da praia de minha cidade onde, menino, inventei navios antes de tê-los visto. Maior ainda era o mar diante do qual todas as tardes eu recitava poemas, festejando-o com os olhos rasos d’água e às vezes sorrindo [de paixão, porque grande coisa é descobrir-se o mar, vê-lo existir no [mundo. Ó mar de minha infância, maior que o mar de Homero.

Soneto do Cais Pharoux Se alguém me espera no galpão do mar, que me ame antes que eu parta e o cumprimente. Ter a morte ao meu lado, ou frente a frente, fora melhor que ter de o esperar. 364


Partiria de mim, sem me voltar, ao descobrir-me nesse amor ardente que alguém que não me aguarda, suavemente haveria de dar-me, ao me encontrar. Sem que nos conhecêssemos, tivemos esse encontro marcado junto ao mar, no convés de um navio que partisse. Mesmo que em tempo algum nos encontremos, tenho os olhos eternos de fitar seu perfil tão distante, se existisse.

O Ofício de Viver Vou sempre além de mim mesmo em teu dorso, ó verso. O que não sou nasce em mim e, máscara mais verdadeira do que o rosto, toma conta de meus símbolos terrestres. Imaginação! Teu véu envolve humildes objetos que na sombra resplandecem. vestíbulo do informulável, poesia, és como a carne, atrás de ti é que existes. E as palavras são moedas. Com elas, tudo compramos, a árvore que nasce no espaço e o mar que não escutamos, 365


formas tangíveis de um corpo e a terra em que não pisamos. Se inventar o meu destino, invento e invento-me. Canto.

Linguagem (1950-1951) Os Andaimes do Mundo Minha vida é como uma janela aberta sobre a Ásia. Professo o imaginário, e, neste rito, renasço a contemplar o inexistente que fulge à luz de meu trópico de água como essas ilhas fictícias que não se ajustam às horas [triviais dos navegantes, terras jamais nascidas, horizontes pensados. Os países são hipóteses de segredos que aparecem e somem, ante o assombro da Terra. Imóvel ou caminhando, vejo sempre os polos com suas chuvas rápidas e suas esfinges entre andaimes, e principalmente, meus amigos, com essa atmosfera de [última estação que intriga todos os que nasceram no centro do mundo. Além de minhas pálpebras, onde o pensamento é de sal como se uma lágrima o houvera ungido, haverá um país claro e perfeito, de tão doce desenho como as pedras femininas da noite. Ó estátuas solares, caídas ao peso de tantas flechas... Vejo uma flor, absurda como a vida. 366


Onde a água dormida canta, em outrora ninhos de coral, Ali eu te verei novamente, desolada vida, em tudo semelhante aos desertos rais. Invenção sucessiva de mim mesmo, ó dias, feras domadas, ó dias de minha vida, sumidouro onde afundo, incógnito.

Um Brasileiro em Paris (1953-1954) Um Brasileiro em Paris Virei-me para ver a intrusa na própria fonte dos postais e vi a musa horizontal, ela somente, e nada mais. Não quis subir, ó Torre Eiffel, ao teu aéreo pavimento e ver surgir a feminina cidade na proa do vento. Filha da linha da viagem era aquela tarde em Paris. A muda matilha das águas levava as pinturas do dia. Festa na mesa do horizonte eis a paisagem que eu fitava: pontas de estrelas, arcos e flora postos na terra, entre as estátuas.

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Da fonte vazada nos ares manava o presente maduro e o exílio de agora lançava a sombra do exílio futuro. Submissa às nutrizes celestes, a luz, metáfora do dia, desfez-se no ar. Diante de mim suprimira-se a alegoria. Do real à metamorfose, caminho de inversa magia, eu chegara e fora, e restava o silêncio, severo guia. Forma vazia do vazio, sem povoação de palavras, eu me seguia, como um rio segue o rio, oculto nas águas. Era o céu a pura estrutura do nada, perfeito em si mesmo, e a terra a figura de um jogo que me fixava, imóvel, a esmo. A sombra da tarde cobria a minha aventura domada, fera inativa que buscava a selva na jaula fechada. A minha vida era infinita junto às portas de ouro da tarde. Do silêncio, insensato guia, Restava eu mesmo, sem alarde. 368


Magias (1955-1960) Soneto do Empinador de Papagaio A nada aceito, exceto a eternidade, nesta viagem ambígua que me leva ao altar absoluto que, na treva, espera pela minha inanidade. O que sonhei, menino, hoje é verdade de alva estação que em meu silêncio neva o inverno de uma fábula primeva que foi sol, cego à própria claridade. Na hora do fim de tudo, separados fiquem os dois comparsas do destino que sabe a cinza após o último alento. E a morte guarde em cova os injuriados despojos do homem feito; que o menino empina o papagaio, vive ao vento.

Finisterra (1965-1972) Minha Terra Minha pátria é onde os goiamuns pressentindo o cair da noite buscam as locas entre os mangues. 369


No meu país palustre o peso das chuvas encurva os cajueiros e o sol calcina lágrimas. ............................................................ Eu soletrava a ferrugem de navios sem nome que a lama das lagoas mastigava. ............................................................ Minha terra é o novo caminho que o homem abriu sem querer no capim à beira do arrozal. ............................................................ E, nos monturos, homens e urubus, na lei da livre concorrência, ganham o pão que Deus amassa.

Finisterra Ando na multidão e meu nome é Ninguém. Na cidade que cheira a peixe podre e gasolina e demagogia pisado pela tarde vou roçando as escamas das paredes que cosem a minha dor. ................................................................. Levo na maresia o meu amor de homem e ninguém sabe que amo a não ser os cães que farejam meus passos pelas alamedas. .................................................................. 370


No caminho entre o viaduto e o motel vou quando venho... Partida e chegada são quimeras do horizonte e grasnar de gaivotas que irritam os burocratas na alfândega. E caminhando pelo Rio vivo de todos os assombros .................................................................................. homem que atrás do sol e da alegria se defronta com os terraços cinzentos da amargura. A hora faz uma curva de luz para que eu passe entre os milionários os padres os lixeiros os palhaços e as [prostitutas que são os meus semelhantes. ................................................................................... Comungamos nos guichês. E quando a Bolsa cai nossas almas monetárias tremem. Entre o terror e o telestar e a formiga que sobe a escadaria do Ministério da Fazenda sinais luminosos se formam. (...) ................................................................................... vou na multidão de boca lacrada. Sou um homem isolado dos outros homens que caminham como se já estivessem mortos. Nos parques de estacionamento a luz da tarde queima a relva que me separa dos meus irmãos neste mundo roído pelo terror. Eles gritam onde eu não posso escutá-los. E a aurora rói meus punhos iracundos. E os ratos roem os pulsos de minha alma. ...................................................................... Sou o vento que vem dos subúrbios de urina e querosene e cega lentamente os olhos das estátuas. Os gigantes do mundo me perguntam: “Qual é o teu [nome?” 371


E respondo: “Eu me chamo Ninguém.” Os gigantes jiboiam nos iates ancorados nas ilhas. A cólera da vida treme nas calçadas ......................................................... e os peixes se acumulam nas cestas fétidas nos supermercados diluídos no puro pasmo das fornicações. ......................................................... e junto aos tapumes escarlates da tarde que bloqueia o cansaço dos homens vou rastejando na terra quebrada onde o ódio passa a galope, espalhando a morte. Ó noite dos semáforos e espantalhos e das caranguejeiras [ocultas nos trapiches ó noite dos morcegos que em minha infância sustentavam [os estandartes do sonho as hélices de teus navios carregados de estrelas cruzam os [anfiteatros do mar. Mas onde está a finisterra que me prometeste, além das [ilhas idiotas e dos mitos corroídos pela maresia? Como um lustre no teatro quando as luzes se acendem minha vida inteira estremece ao cair da noite e ouço na escuridão o cântico de tudo o que parte.

A Noite Misteriosa (1973-1982) O Portão O portão fica aberto o dia inteiro mas à noite eu mesmo vou fechá-lo. Não espero nenhum visitante noturno 372


a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos. A noite é tão silenciosa que me faz escutar o nascimento dos mananciais nas florestas. Minha cama branca como a via láctea é breve para mim na noite negra. ....................................................................... No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo. ..................................................................... Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha a porta da [noite. Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho protegido pelo arame farpado que cerca minhas terras e pelos meus cães que sonham de olhos abertos. À noite, uma simples aragem destrói os muros dos [homens. Embora o meu portão vá amanhecer fechado sei que alguém o abriu, no silêncio da noite, e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.

O Jumento No alto da crestada ribanceira pasta o jumento. Seus grandes dentes amarelos trituram o capim seco que restou de tanta primavera. A terra é escura. No céu inteiramente azul o sol lança os fulgores que aquecem tomates, alcachofras e berinjelas. O jumento contempla o dia trêmulo de tanta claridade e emite um relincho, seu tributo à beleza do universo. 373


O Soldado Raso (1973-1986) Lamentação de Camões Fui amor, fui paixão e celebrei o mundo, o vento e as ilhas infinitas. Mas hoje, neste quarto centenário, me assombra o meu destino. Linguistas e filólogos fizeram de mim uma apostila.

Mar Oceano (1983-1987) Privilégio O dia voa como um pássaro e os pássaros voam como os dias num movimento perpétuo. Os dias voam e são pássaros. As belas imagens do mundo emigram levadas pelas águas. Onde estou, a horrível plumagem da morte não se atreve a cobrir-me. No dia inumerável os sonhos voam como pássaros. Ajustei-me às constelações. Sou um homem que está caminhando rodeado por todas as estações da terra.

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A Cerca Eis a noite: ainda estou acordado e na minha vigília ainda estou sonhando. Eis a estrela que interrompe a sua passagem pelo grande céu varrido de meteoros e pousa como um inseto sobre a minha mesa. O vento sopra, o vento que é uma recompensa! As palavras me rodeiam como a cerca fiel que marca os meus domínios e me separa dos outros [homens – a cerca necessária sobre a amplidão da Terra. Eis a noite com os seus fogos que vão durar até a aurora e a água dos brejos que escorre entre os caniços. Os que estão dormindo esqueceram a dor e agora sonham. No meu quarto eu me sinto tranquilo e protegido. Pousado na estaca apodrecida, meu irmão gavião finca na escuridão toda a justiça do mundo.

O Invasor de Terras O Deus cruel que envenena os fungos e outorga à beladona o poder de matar me envia esta noite os seus embaixadores. São formigas, corujas, ratos e morcegos Que me interrogam com a maior arrogância. Eu lhes confesso a minha culpa imemorial. Peço-lhes perdão por existir e perturbá-los com o meu silêncio e incômoda respiração. Reconheço ser um intruso, um invasor de terras. Estou aqui de passagem e à espera do dia. 375


Curral de Peixe (1991-1995) O Poeta e os Críticos Poeta da noite e do sonho que ousa interrogar Deus sem nem mesmo conhecê-lo direito por linhas tortas, assim foi estampilhado por um crítico sagaz. Mas um outro proclamou: és poeta da claridade e o sol que trazes perturba os meus olhos fatigados. Um terceiro o definiu como o poeta do amor e do corpo feminino que freme na escuridão como rosa atravessada. Um resenhista apressado o limitou aos navios que ele viu quando menino no azulverde mar azul da península natal. À luz do estruturalismo um professor garantiu: sei ler a tua linguagem. Teus peixes e caranguejos são metáforas falazes. Não me engana o teu império de maceiós e alagoas nem a luz do teu farol. Não me ilude o goiamum 376


que sorrateiro atravessa a água negra dos teus mangues. Digo, mesmo que te zangues, que a morte é tua matéria. Um poema de tua lavra é chave de cemitério. E aquele crítico atento às suas portas fechadas e às suas folhas caídas chamou-lhe poeta do tempo e das ilusões perdidas e invocava como prova a fria cinza nascida de uma fogueira no bosque. Um crítico o festejava pelos seus versos lacônicos enquanto outro o censurava pelo seu ritmo oceânico.

A Queimada Seja como os lobos: more num covil e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados. Viva e morra fechado como um caracol. Diga sempre não à escória eletrônica. Destrua os poemas inacabados, os rascunhos, as variantes [e os fragmentos que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas. Não deixa aos catadores do lixo literário nenhuma [migalha. Não confie a ninguém o seu segredo. A verdade não pode ser dita. 377


O Rumor da Noite O Cavalo Negro Era um cavalo negro junto ao portão postado. A ninguém pertencia e a ninguém esperava. De que pasto viera ou que vento o trouxera por montes e planícies ninguém ninguém sabia. Os cascos impacientes feriam o chão frio de onde a noite subia para o céu estrelado que finge recolher em seus buracos negros os gritos e suspiros da vida amortalhada. Era um cavalo negro como a noite mais negra: a noite dos cupins e dos ventos amargos; a dos portões fechados que protegem no escuro como se fossem muros as minhas terras belas e o dia das corujas; a dos sonhos quebrados como as telhas das casas. Seu relincho se alçava no silêncio mais negro 378


que sagra a madrugada de lacraia e morcego e, açoite, vergastava a paz que sempre grassa nas ervas e nas cercas. Na noite campesina de pão e formigueiro e de arames farpados era um cavalo negro. Mais negro do que a morte quando ela se entremostra com suas crinas negras de cavalo irritado e seu cheiro de bosta. Mas se a ninguém queria e a ninguém esperava e de campo sabido não era originário por que estava ali, negro cavalo negro, junto ao portão postado?

O Caminho Branco Vou por um caminho branco Viajo sem levar nada. Minhas mãos estão vazias. Minha boca está calada. Vou só com o meu silêncio e a minha madrugada. Não escuto, entre os barrancos, a voz do galo estridente 379


que, na treva do terreiro, anuncia as alvoradas. Nem mesmo escuto a minha alma: não sei se ela vai dormindo ou me acompanha acordada, se ela é vento ou se ela é cinza ou nuvem rubra raiante no dia que se levanta como vela desdobrada em nave que corta as vagas. Não sei nem mesmo se é alma ou apenas sal de lágrimas. Vou por um caminho branco que parece a Via Láctea. Só sei que vou tão sozinho que nem sequer me acompanho, como se eu fosse um caminho pisado por vulto estranho. Não sei se é dia ou se é noite o que surge à minha frente, se é fantasma do passado ou vivente do presente. Não sei se é a torrente clara da água que corre entre pedras ou se um gavião me espreita oculto no nevoeiro, espantalho prometido ao meu dia derradeiro. Atravessando barrancos e plantações de tomate e ouvindo o canto escarlate de airosos galos polacos, vou por um caminho branco: 380


brancura de bruma e prata. Entre tufos de carqueja há constelações de orvalho e um clarão de meio-dia cega a minha madrugada. Vou como vim, sem saber a razão da travessia. Nem sequer levo na boca o gosto de água salgada que relembra a minha infância feita de mar e de mangue. Nem sequer levo nos olhos – nos meus olhos de menino – a mancha rubra de sangue deixada pelo assassino que vi certa madrugada. Vou por um caminho branco e nada levo nem tenho: nem ninho de passarinho nem fogo santo de lenho. Só vou levando o meu nada. Foi tudo quanto juntei para oferecer a Deus nesta branca madrugada.

A Passagem Que me deixem passar – eis o que peço diante da porta ou diante do caminho. e que ninguém me siga na passagem. Não tenho companheiros de viagem 381


nem quero que ninguém fique ao meu lado. Para passar, exijo estar sozinho, somente de mim mesmo acompanhado. Mas caso me proíbam de passar por ser eu diferente ou indesejado mesmo assim passarei. Inventarei a porta e o caminho e passarei sozinho.

Plenilúnio As Palavras Banidas Os poetas são coveiros que enterram palavras e se contentam com algumas migalhas do dicionário. Criaturas frugais, não admitem que as palavras brilhem [como luzes de navios vistas da praia branca da página, da praia banal da vida. Exigem que elas tenham a submissão dos bichos domados [de um circo ou andem trajadas com o burel dos franciscanos. Mas na noite frígida varrida pelas constelações as palavras banidas se levantam de suas tumbas e, no espaço reservado às fulgurações perpétuas, compõem o grande poema do universo.

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Canção de Embalo Quem vive perde a vida levada pela brisa. Quem morre perde a morte trancada em carro-forte. Quem ama perde o amor preso no elevador. Quem sonha perde o sono como um rei perde o trono. E assim a vida vai e assim a vida vem: aragem, maresia, suspiro de ninguÊm.

Areia Branca Um deserto branco onde nada exista nem mesmo o vazio Uma areia branca que a nada sepulte nem vida nem vento Entre tudo ou nada nem nada nem tudo no caminho branco 383


a voz que no mudo se guarda de nada grão imaculado de areia branca.

Soneto da Porta Quem bate à minha porta não me busca. Procura sempre aquele que não sou e, vulto imóvel atrás de qualquer muro, é meu sósia ou meu clone, em mim oculto. Que saiba quem me busca e não me encontra: sou aquele que está além de mim, sombra que bebe o sol, angra e laguna unidas na quimera do horizonte. Sempre andei me buscando e não me achei. E ao pôr do sol, enquanto espero a vinda da luz perdida de uma estrela morta, sinto saudades do que nunca fui, do que deixei de ser, do que sonhei e se escondeu de mim atrás da porta.

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Uma Busca Incessante Ainda não desisti de encontrar Deus. Desconfio que o gavião o esconde em suas asas e os sonhos o abrigam nas dobras de sua oculta sabedoria. Às vezes, um grito dilacera o espaço estival da várzea que divide as minhas florestas. Então sou inclinado a acreditar que ouvi o grito de Deus, após o longo silêncio. Deixo de pisar a formiga negra que avança numa saliência da estrada em declive e me envolve a percepção de que consegui evitar a morte de Deus, em um de seus disfarces. Dedico o dia inteiro à procura incansável e de repente a noite cai: a noite negra como uma formiga. Deus passeia incólume entre as constelações.

Mesmo quando Sozinho Armei uma fogueira na floresta para aquecer os que, longe de mim, estão sentindo frio. Da farinha mais pura fiz o pão para nutrir os que, perto de mim, estão sentindo fome. Cavei um poço e encontrei a água prometida aos que morrem de sede. 385


Sou água, fogo e pão. E não separo as sombras dos longínquos horizontes das vozes que estão perto. Sou longe e perto na clareira aberta na floresta cerrada, no silêncio da flor que desabrocha. E fluido como a água, e duro como as rochas estou sempre onde está a dor do mundo. Mesmo quando sozinho, caminho entre os homens.

O Desejo Não quero a eternidade, a trama interminável de uma roca que fia um dia após um dia na duração perpétua. Quero ser o que passa: a leve nuvem branca que se desfaz no espaço, a fumaça de um jato no céu vazio e claro. Não me agrada ou seduz viver após viver. Antes quero o relâmpago que rasga o céu sombrio, uma folha de álamo no chão de uma viagem e a chuva momentânea 386


que cai sobre as cidades. Prefiro um voo de pássaro a tudo o que é eterno. A tudo o que é durável prefiro o perecível: a sombra fugidia no dia luminoso dos narcisos e rosas; os instantes que regem, na noite indecorosa, o amor dos amantes, seus gritos e gemidos; a pétala fugaz ferida pelo outono. Contenta-me o trajeto entre uma porta aberta e uma porta fechada em plena madrugada ou na manhã mais cândida. O meu Deus é relâmpago, o breve resplendor antes do grande sono. Recuso-me a durar e a permanecer. Nasci para não ser e ser o que não é após tanto sonhar e após tanto viver.

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Mormaço O Atracadouro Os tesouros das ilhas rondam o meu sono quando estou do outro lado e o lençol que me cobre soterra o abandono que é o meu dom de acordado. Longe da multidão desvairada, sozinho e a mim mesmo confiado, conforta-me um calor de pássaro no ninho, de seu voo despojado. Ao ver a minha sombra na sombra de um muro sempre desejei ser aquele que não é, para ser sempre o puro desejo de não ser. Meus tesouros estão ocultos como os ácaros nos ares poluídos. Só quando durmo e sonho tiro a velha máscara dos carnavais perdidos. Meus pés afundam nas areias importunas dos dias abolidos. Os tesouros que busco estão além das dunas e dos cais percorridos. Do outro lado do sono, um horrível sinal indica o meu destino. Qualquer que seja o barco, a atracação final é do tempo assassino. 388


O Dom da Travessia Um caminho que não me leve a parte alguma e seja só caminho, sem começo ou fim, é o que peço ao dia, e o dia me concede o dom da travessia, para que eu avance sob estrelas e sóis, rodeado de mim, sem jamais alcançar o portão procurado ou a chave perdida em uma duna pálida. E avanço como o dia, como o dia suspenso entre a nuvem caída e a chuva de verão, sem deixar quaisquer rastros ou sombras no chão.

A Longa Noite Fria Que fontes se saciam na longa noite fria? Que ventania agride as janelas fechadas da casa adormecida? Que grasnido funesto de rancoroso pássaro dilacera o silêncio dos galhos infinitos como quem rasga o pano de inconsútil mortalha? Que rosa tenebrosa se faz clara de orvalho mesmo antes da alvorada? Estuário dos astros, a noite não responde 389


a nenhuma pergunta nem a nenhum tormento. Longe da dor dos homens e do sono espalhado em seus lençóis insones é apenas o frêmito de uma folha que voa levada pelo vento.

Fim do Passeio Vou perdido entre a gente. Não me guia nenhum braço ou lanterna no caminho onde a noite pousou ao sol do dia. Para tamanha dor, ando sozinho. Nenhum claridade me alumia. Nenhuma medicina cura a dor que me punge e me fere, negro espinho cravado para sempre no que resta da vida em que vivi tamanho amor. Uma luz se apagou após a festa e neste escuro nem a morte assombra o defunto que está desenterrado. De mim mesmo me sinto despojado, sombra errante que esconde a sua sombra entre as sombras do chão desamparado.

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Este é o fim do caminho. Nada resta. E o próprio nada se dissolve como a folha que apodrece na floresta.

O Grande Sono Dia após dia estou sempre acordado e me fatiga o longo despertar que do sono não vem, pois de acordar se foi nutrindo o meu olhar cerrado. Do sono estando sempre desplantado me segue a dor de não poder sonhar o sonho de um portão a se fechar após o escasso passo desvelado. Da vida, que é a passagem de um instante, e emurado na treva busco o enlace das porções de vigília e de abandono, só me resta esperar a visitante que me faça dormir para que eu passe deste sol provisório ao grande sono.

A Chegada Entrei por uma brecha. Não segui o caminho aberto pelos outros. 391


Entre lianas e espinhos fui pela floresta até o lugar mais alto. Vi a morada secreta do tomilho e do alecrim. A manhã era regida pelo labor das formigas e o bordado das aranhas. Canafístulas douradas sustentavam o verão. E o inverno espreitava os meus passos no chão com a promessa do frio e da podridão. As fontes se esquivavam no sibilo das raízes e no verdor dos musgos. O dia e a noite se enlaçavam. Eram amantes desnudos numa cama de folhagem. Os pássaros voavam no céu maior que a terra. O ar que eu respirava era o esconderijo de Deus e da eternidade. Tudo em mim era altura, a costura invisível de chãos enodoados a firmamentos puros. Eu era mais que eu: o excesso de ser, sendo 392


um nome sussurrado entre as águas e as grutas e as frutas que pendiam de augustas árvores mudas. Foi por uma brecha estreita que cheguei a mim mesmo como a orquídea que floresce no mais alto da floresta.

Soneto da Aceitação Não calarei a morte nem a vida que se acercam de mim quando desperto. São vozes que se elevam no deserto, miragens da chegada e da partida. A nada calarei. Que seja ouvida a sentença espalhada a céu aberto que me condena a ter, ao longe e ao perto, a eterna punição imerecida. Sejam vozes do abismo ou firmamento, a mim me cabe apenas escutar o seu pleito de engano ou de presságio. Nem mesmo calarei a voz do vento quando a morte vier e reclamar a prometida sobra do naufrágio.

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Bom Proveito Aproveite o tempo enquanto ainda há tempo. Aproveite a vida que a morte não tarda com o seu suspiro e a sua mortalha. Aproveite o amor pois virá a dor da separação. Repouse a cabeça num bom travesseiro e aproveite o sonho – o sonho enlatado como uma sardinha ou postal largado num velho escaninho. Procure enxergar no céu o cometa. A uma outra mão dê a sua mão. Escolha a alameda. Após o passeio vem a solidão e a branca sereia da branca ambulância. Cultive um jardim. Respire a fragrância da rosa mais casta antes que se abra a flor do terror e do céu desabe 394


a chuva de mísseis. Aproveite a paz antes do homem-bomba que está a caminho. Mate a sua sede bebendo a água pura de um manancial. Beba a sua alvura beba o seu cristal. Não esqueça nunca nossa humana sorte. Aproveite a vida antes que escorra de seus lábios frios a baba da morte. Seja previdente. Aproveite o dia antes da chegada da noite estridente e da ventania.

Novo Soneto de Paris Uma folha caída na avenida. É assim que se extingue um amanhã. Paris me diz que toda vida é vã, a branca estrela da estação perdida. A ti, folha de plátano caída no chão dourado da plúmbea manhã, um frio de outono que nenhuma lã vai proteger da morte prometida. 395


A ti dedico os passos derradeiros que me afastam da vida quando passo sob as árvores da longa alameda. Entre a noite indolente e os sóis primeiros cai a folha do amor, e cai no espaço do dia breve. E a morte é muda e leda.

O Eterno Retorno Quando o tempo cessar de ser o tempo tudo será começo e nascimento. Novas estrelas surgirão no céu e será vento novo o antigo vento. Levado pelo eterno movimento que pulsa no silêncio das galáxias hei de tornar a ser o que já fui e viverei a vida que perdi. Para quem ama, é a morte uma mentira estampada no rosto de quem morre. O céu desmesurado está aberto a todos os regressos e metamorfoses. Ó eterno retorno prometido ao nada e ao pó, aceito que me enganes para poder voltar ao meu amor vivido.

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