Escritas e Escutas

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ANTONIO CAR LOS SECCHIN ESCRITAS E ESCUTAS ANT ONIO CARLOS SECCHIN ESC RITAS E ESCU TAS ANTONIO



Produção editorial Monique Mendes Organização e Revisão Flávia Amparo Gilberto Araújo Editoração eletrônica Marcelo Duque Estrada Projeto de capa e ex-libris Guilherme Secchin



Apresentação “uma escrita é uma escuta feita voz” (Secchin) Todo grande poeta tem o dom de nos conceder as palavras capazes de nos traduzir e de nos revelar a nós mesmos. E o poeta não precisa necessariamente escrever em versos para nos conceder esse instante revelador das palavras. Pensamos na vida como um instante de criação através do Verbo primordial: Fiat lux! – mas, a partir do instante genesíaco, temos já franca necessidade de achar novos nomes para traduzir esse mundo recém-criado; ainda mais quando se trata de um universo já estabelecido, murado por construções desgastadas pelo cotidiano. Se retomarmos o dizer machadiano, “O mundo não nos é dado, o mundo nos é proposto”, temos, pois, uma concepção de mundo que sugere a necessidade de uma contraproposta ou de uma reinvenção dos seres e das coisas. Certamente essa tarefa criadora fica a cargo dos poetas. Mas se o poeta nos traduz, como, pois, poderemos traduzi-lo? Talvez falte aqui nesta apresentação a palavra precisa para definir o poeta Antonio Carlos Secchin - no dizer de Riobaldo: “Muita coisa importante falta nome”, ao que podemos acrescentar que um só nome talvez não seja suficiente para revelá-lo em toda a extensão de seu estro. Se para o poeta se faz necessária a inspiração de Todos os ventos, também concordamos que as múltiplas vozes que se reúnem nessa homenagem possam compor uma escuta atenta do trabalho do poeta, do literato, do professor, do crítico, do bibliófilo, do apaixonado pelas letras e, enfim, do irmão, do amigo e do mestre que tanto nos inspira[m].


Antonio Carlos Secchin ora se aposenta do magistério universitário. Ainda bem que essa é apenas uma faceta do versátil homem de letras, que se desdobra em bibliófilo, crítico, poeta, ficcionista e acadêmico. Este livro, dedicado especialmente ao professor, contempla também os antonios que não solicitaram aposentadoria. Nosso desejo inicial era organizar um volume alentado, colhendo depoimentos e estudos nos diversos estados e países visitados por Secchin, em pessoa ou em obra. No entanto, esbarramos na conhecida burocracia universitária e na alegada carência de verbas. Decidimos, então, que nós mesmos, seus alunos e amigos, custearíamos o livro, que, apesar do empenho coletivo, resultou lacunoso: aqui não estão vários estudiosos da obra secchiana; tampouco aparecem muitos outros amigos do homenageado. Fizemos o que o tempo e os recursos permitiram e, em todo caso, os vazios nos servem de estímulo a investidas posteriores. Esta empreitada não se concretizaria, não fossem a deferência e a diligência de Monique Mendes e Marcelo Duque Estrada, que, em tempo recorde, materializaram o projeto sem por isso receber nenhum retorno material: ela, chefe do Setor de Publicações da Academia Brasileira de Letras, ficou responsável pela produção editorial; ele, pela editoração eletrônica. Agradecemos também a Guilherme Secchin, artista plástico (e primo do professor) que desenhou a capa e o ex-libris, a Edla van Steen, pela contribuição literária e financeira, e à gráfica Imprinta, pelo preço camarada. Esperamos, por fim, que Escritas e escutas seja um conjunto de folhas em branco, um eterno convite ao Mestre Secchin. Flávia Amparo e Gilberto Araújo


Sumário I – Depoimentos e Homenagens: • • • • • • • • •

Adriano Espínola Antonio Carlos Secchin e a palavra que ilumina...........................9 Cleonice Berardinelli A Antonio Carlos Secchin, lamentando que deixe nossa Faculdade tão cedo....................................................................... 16 Cristina Secchin Antonios........................................................................................27 Edla Van Steen O sósia...........................................................................................36 Igor Fagundes Escritos sobre Secchin & alguma fricção.....................................37 João Pedro Fagerlande A Secchin.......................................................................................59 José Maurício Gomes de Almeida A trajetória de um escritor e de um amigo.................................. 60 Marlene de Castro Correia Retrato rápido de Antonio Carlos Secchin...................................69 Ubiratan Machado O bibliófilo Secchin......................................................................72

II – Estudos: • • • • • • • • • •

Cláudio Murilo Leal As duas faces de Janus.................................................................79 Dau Bastos Vai escrever, Antonio!................................................................. 84 Flávia Amparo Uma ilha secchiniana...................................................................92 Gilberto Araújo A lâmpada, a vela e o caldeirão..................................................105 Ivan Junqueira Antonio Carlos Secchin: exato e numeroso................................ 126 Luciano Rosa Procura da poesia....................................................................... 141 Marcos Pasche É ele!........................................................................................... 152 Marcus Vinicius Quiroga Seis sonetos à procura de um eu-lírico...................................... 164 Sânzio de Azevedo Antonio Carlos Secchin e as estéticas do passado...................... 176 Sérgio F. Martagão Gesteira Passagem pelo mundo intocado ................................................188



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Antonio Carlos Secchin e a palavra que ilumina Adriano Espínola(1) Em fevereiro de 1983, dirigi-me, no final da tarde, à caixa de correio da casa, em Fortaleza. Quase todos os dias recolhia ali – afora, é claro, a correspondência costumeira – um a dois livrinhos de poesia enviados por autores de diversas regiões do país. Vivia-se, na época, um surto de poesia, enquanto gênero, à semelhança do que ocorrera em relação ao conto, na década anterior, principalmente entre novos escritores. Verdadeira praga seguida de outra. Daí a frequência com que essas coletâneas aterrissavam na minha caixa. Tais livros, compostos por um pouco mais de uma vintena de poemas, eram, em regra, custeados e distribuídos via Correios pelos próprios autores. No geral, falavam dos dramas existenciais e amorosos de uma geração que começava a sair do sufoco do regime militar. Os textos traziam acentuada liberdade verbal (chegando algumas vezes à utilização de termos vulgares), sem muito compromisso formal, em que valia mais a expressão das cicatrizes, carências e urgências dos corpos & mentes dos autores e parceiros, no cotidiano reconquistado das cidades, do que a busca de maior resultado estético. Mas eis que me chama a atenção, na correspondência daquele dia, um pequeno livro denominado Elementos, publicado por uma das mais conceituadas editoras da época, 1  Adriano Espínola, poeta, contista e ensaísta, professor aposentado da Universidade Federal do Ceará, doutor em litera tura brasileira pela UFRJ, ex-aluno e ex-orientando no doutorado do Professor Antonio Carlos Secchin.


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a Civilização Brasileira. Ali se encontravam poemas que revelavam grande domínio formal e temático por parte do autor, com versos e imagens surpreendentes. Impressionado, decidi escrever para o suplemento cultural de um importante jornal da cidade sobre o livro. Busquei destacar no artigo o nível artístico alcançado pelo autor de Elementos, um certo Antonio Carlos Secchin, carioca, de 31 anos, em contraste com o que se publicava, em média, na época. Nunca ouvira falar nele. Não obstante, registrei: “A Civilização Brasileira (...) acertou em cheio ao lançar a finíssima e equilibrada poesia de Antonio Carlos Secchin, praticamente um estreante.” (Diário do Nordeste, Fortaleza, 10/03/1983). Para marcar a isenção do meu julgamento, frisei: “Não conheço o camarada, não é meu amigo, nem nunca escreveu sobre mim. Menciono-o aqui porque sua poesia é boa. Excelente até, em alguns trechos.” (Idem) Em seguida, externei uma opinião que, hoje percebo, parece falar também, ao mesmo tempo, do poeta e do crítico futuros: “O que notamos, de pronto, em seu trabalho, é uma exemplar e rara consciência do fenômeno poético, oriunda, bem se vê, de reflexões amadurecidas, a partir da leitura do que melhor se tem dito e realizado em relação à velha arte de Horácio.” (Idem) O tempo passa, e eis que me mudo com a família, em julho de 1986, para o Rio de Janeiro, a fim de fazer curso de mestrado em Poética, na UFRJ, na Ilha do Fundão. É verdade que dois anos antes, de passagem pelo Rio, fui apresentado rapidamente ao autor de Elementos, num dos corredores da antiga Faculdade de Letras da UFRJ, no Centro. Mas o fato é que somente a partir do ano seguinte é que passaria


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a conhecê-lo melhor, dando início a uma fraternal amizade que, desde então até hoje, apesar das numerosas viagens para outras cidades e temporadas mais ou menos prolongadas em outros países, feitas tanto por um quanto por outro, só tem prosperado com o passar dos anos, mercê do respeito, admiração, camaradagem e afetividade mútuos, quer em termos intelectuais-literários, quer em termos pessoais. Relembradas aqui rapidamente as circunstâncias e mesmo o acaso que possibilitaram a aproximação entre o então crítico cearense e o poeta carioca, passo a destacar aqui outra marcante faceta da produção intelectual de Antonio Carlos – a de crítico literário. Um dos maiores do país, diga-se logo, sobretudo no exame da obra de grandes poetas brasileiros. Para começar, a de João Cabral de Melo Neto, sobre a qual tornar-se-ia um dos exegetas mais agudos, a ponto de o próprio Cabral afirmar que “entre todos os professores, pesquisadores e críticos (...) foi ACS quem melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como poeta.” O livro João Cabral: a poesia de menos (São Paulo, Duas Cidades/INL, 1985), sua tese de doutorado, em que reúne uma série de ensaios sobre alguns dos mais significativos poemas do pernambucano – analisados e interpretados sob o signo da contenção retórica e da incorporação dialética da realidade sócio-cultural da região nordestina, marcada pela aridez e a carência – é a prova incontestável disso. Foi premiado pelo Instituto Nacional do Livro no mesmo ano em que publica Elementos, em 1983. Essa simples coincidência cronológica, ligando os dois livros, no início da sua carreira de escritor, nos sugere a indissociável relação existente entre o poeta e o


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crítico, cuja produção, nessas duas vertentes, soube manter-se em altíssimo nível. Com efeito, ao nos entregar, em 1996, um novo livro, Poesia e desordem (Rio: Topbooks), conjunto de ensaios de superior qualidade, publicaria em seguida Todos os ventos (Rio: Nova Fronteira, 2002), com o qual arrebataria os prêmios de Poesia da Fundação Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Letras. O mesmo crítico cearense que havia saudado, na terra de Alencar, o poeta de Elementos, manifesta-se com idêntico entusiasmo, na terra de Machado, em página do Jornal do Brasil, sobre o crítico de Poesia e desordem, ao assinalar que Antonio Carlos Secchin, ao conceber a poesia como metáfora desestabilizadora e a crítica, como leitura amplificadora das potencialidades ideológicas da estrutura poética, “se lança a uma espécie de aventura hermenêutica, pronto a articular os espaços da poesia (também da prosa) e da realidade, propostos por escritores brasileiros do século passado e de hoje.” Para tanto – acrescentaria – “não lhe faltam ousadia nem equipagem teórica para dar conta da empreitada. A elegância estilística, a imaginação crítica, capaz de incorporar a pulsão ficcional do texto analisado, produzindo, a partir daí, conceitos e expressões com força poética, e a desenvoltura interpretativa servem-lhe de bússola segura. Dois continentes, pelo menos, são revisitados e redescobertos no esplendor de suas topografias artísticas: João Cabral e Machado de Assis.” (Ideias/JB, Rio: 04/5/1996). Quanto a Todos os ventos, o entusiasmo não seria menor. Curioso é que o autor destas linhas recebe o livro em Fortaleza,


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assim como recebera Elementos. Em carta dirigida ao amigo, diz-lhe: Bom saber que aquele poeta de Elementos, que eu havia saudado, há quase 20 anos, retorna com a mesma força expressiva, só que agora banhado de certa graça paródica, de certo humor atento “ao avesso não-simétrico da fala ideológica”, como você diria, e que o faz de certo modo diferente do tom grave e celebratório do poeta elementar. Muitos são os poemas de destaque no livro. Entre outros, encontram-se os sonetos “De chumbo eram somente dez soldados”, “À noite o giro cego das estrelas”, “A casa não se acaba na soleira” e sobretudo o belo e inspirado “Estou ali...”, que fala da “foto de um garoto que morreu”, cujos tercetos merecem transcrição:

No retrato outra imagem se condensa: percebo que apesar de quase gêmeos nós dois somos somente a chama inútil

contra a sombra da noite que nos trai. Das mãos dele recolho o que me resta. Eu o chamo de filho – e é meu pai.

Em meio aos poemas do livro, eis que surge uma seção denominada “Aforismos”, composta de enunciados, alguns bem humorados, a revelar o dedo do crítico e do pensador


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literário apaixonado pela matéria, lado a lado com o poeta. Por exemplo: “Estilo de bêbado não tem dono”; “Onde é hoje aceita a moeda do poeta? Uma resposta seria: no material barato da vida, nas grandes liquidações existenciais, nas pontas de estoque afetivo”. Ou, ainda: “O grande artista relativiza as leis do estilo em que se inscreve; cabe aos menores acreditar demais em tudo aquilo.” E sobre a poesia e as suas promessas, propõe-nos uma reflexão que nos parece definitiva: A poesia representa a fulguração da desordem, o mau caminho do bom senso, o sangramento inestancável da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum. No ano seguinte, reafirma a sua vocação de crítico ao lançar Escritos sobre poesia & alguma ficção (Rio: Eduerj, 2003), alentado volume no qual junta ensaios iluminadores sobre alguns dos nossos melhores poetas dos séculos XIX e XX (Castro Alves, Cabral, Bopp, Álvares de Azevedo, Cecília Meireles, Drummond, Murilo Mendes etc.), resenhas, anteriormente publicadas, a respeito de alguns poetas atuantes no momento (Gullar, Junqueira, Neide Archanjo, Alexei Bueno, Antonio Cícero e outros) e entrevistas concedidas antes a jornais e suplementos especializados. Não satisfeito, publica, ainda, Memórias de um leitor de poesia (Rio: Topbooks, 2010), seu mais recente volume de ensaios, em que estuda poetas brasileiros situados em um arco temporal que vai de Tomás Antônio Gonzaga a Chico Buarque, passando por Varela, Pederneiras, Jorge de Lima e Vinicius


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de Morais. Especificamente sobre poesia, brinda-nos com dois magníficos textos, que falam da sua experiência pessoal com a matéria, como crítico e professor, no caso “Memórias de um leitor de poesia” (que, como se vê, dá título ao livro), originalmente concebido como aula inaugural da Faculdade de Letras da UFRJ, realizada a 15 de março de 2004, e que emocionaria a plateia pela forma clara, precisa e sedutora com que foi lido pelo autor; e “Poesia: escutas e escritas”, valioso depoimento sobre a sua própria experiência como poeta, autor de Ária de estação (1973), Elementos (1983), Diga-se de passagem (1988) e Todos os ventos (2002). Encontram-se, assim, neste mesmo volume, o conferencista, o mestre de literatura, o crítico atento à produção contemporânea, o ensaísta original na abordagem dos grandes escritores da nossa história literária, o estilista primoroso e elegante e, por fim, o poeta criativo e lúcido, que soube dar à sua vida de professor, de escritor e de amigo, um sentido maior de doação e beleza, através da “palavra que ilumina” – a poesia. Valeu, Secchin, abrir naquela longínqua tarde de fevereiro de 1983, em Fortaleza, a caixa postal e descobrir a sua poesia, assim como valeu vir ao Rio de Janeiro, mais tarde, e descobrir aqui a sua amizade. Ambas, inestimáveis, e raras.


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A Antonio Carlos Secchin, lamentando que deixe nossa Faculdade tão cedo... Cleonice Berardinelli(1) Em 1971, uma professora de Literatura Portuguesa, que já contava 27 anos de magistério universitário na Faculdade Nacional de Filosofia, propõe, aos seus sempre interessados alunos, a seguinte questão: “Nacionalismo laudatório e visão crítica n’ Os Lusíadas (nos textos lidos), remetendo aos outros autores vistos no curso.” Um dos estudantes – dos que mais se tinham distinguido – escreve ali mesmo, na sala de aula, três páginas manuscritas (a era dos computadores apenas dava seus primeiros passos), um texto inteligente que aliava o que fora sensivelmente apreendido durante o curso – aproveitado in totum,– e o que já pertencia ao seu arquivo pessoal de conhecimentos adquiridos em leituras anteriores, de poetas antigos e de outros mais ou menos contemporâneos, tais como Miguel Torga e António Gedeão. Passo a transcrever o texto de Secchin: Todos Os lusíadas se caracterizam basilarmente pela louvação a Portugal e a sua gente (daí advindo o fato de o poema não apresentar um herói, como a Eneida, e sim coletivizar-se numa sucessão de reis e almirantes): “As armas e os barões assinalados”(I,1,1 - grifo nosso). A noção de herói coletivo é antecipada 1  Professora emérita de Literatura Portuguesa da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras.


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por Garcia de Resende, em seu Prólogo, ao realçar a garra e a guerra lusas contra os inimigos e, achando-se indigno de ressaltar os grandes feitos (curiosamente, o próprio Camões, diante da importância da matéria a ser narrada, recorre ao auxílio das Musas). E, para reiterar o caráter impessoal da bravura dos portugueses, deve-se destacar que Garcia de Resende, ao largo de todo o Prólogo, não se refere nem uma só vez ao nome de qualquer rei ou herói. Camões não se limita ao registro dos fatos: além dos acontecimentos em si, era necessário destacar a bravura dos lusos e as dificuldades por que estes passavam (exatamente para realçar o valor dos fatos em si). A intromissão do maravilhoso na obra realça o caráter das dificuldades vencidas pelos portugueses. E, algumas vezes, é o próprio obstáculo que reconhece o valor dos lusos. Observemos esta passagem do “Adamastor”: “E disse: Ó gente ousada, mais que quantas / No mundo cometeram grandes coisas” (V,41,1-2). Em sentido inverso, retoma Antônio Gedeão “essa perspectiva camoniana”. É inverso seu sentido por se concentrar, no “Poema da malta das naus”, no anti-herói, ou, mais exatamente, no herói anônimo que contribui obscuramente para a construção da História. E, mesmo ao seu nível, nota-se a consciência do valor de Portugal: “O meu valor é diferente / Provome e saibo-me a sal. / Não se nasce impunemente / Nas praias de Portugal.” Mas é na primeira estrofe do


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poema que o risco e a bravura são ressaltados: “Lancei ao mar um madeiro, / espetei-lhe um pau e um lençol. / Com palpite marinheiro / medi a altura do Sol.” Exatamente na precariedade de sua instrumentação (pau, lençol, palpite marinheiro) reside o valor do seu risco em enfrentar o mar. A tentação de comparar Portugal com outras nações está presente em Camões. Essa comparação ou se reveste de um aspecto temporal (o presente luso sendo mais “alevantado” que o passado grego), ou se apresenta espacialmente, num confronto direto com o mundo de sua época: “Vós, tenro e novo ramo florescente / De uma árvore de Cristo mais amada / Que nenhũa nascida no Ocidente”, (I,7,1-3). Essa comparação, além de um aspecto subjetivo (a superioridade da alma lusa) que examinaremos mais tarde, comportava também um aspecto concreto, a extensão do reino: “Vós, poderoso Rei, cujo alto Império / o Sol, logo em nascendo, vê primeiro; / Vê-o também no meio do Hemisfério, / E quando desce o deixa derradeiro”; (I, 8, 1-4). O elemento físico da grandeza também está presente em Miguel Torga (Ibéria): “Terra nua e tamanha / Que nela coube o Velho-Mundo e o Novo...”.(2) Já o elemento temporal, nós o temos em Garcia de Resende, quando julga que em “todas outras antigas crônicas e estórias, nam achariam mores façanhas, nem mais notáveis feitos, que os que dos nossos naturais se podiam escrever, 2

TORGA, Miguel. Alguns poemas ibéricos. Coimbra: Coimbra Editora, 1952, p. 7.


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assi dos tempos passados como d’agora”. Mas o caráter subjetivo dos feitos lusos também é destacado n’ Os lusíadas. Mais do que as conquistas em si, estava em jogo a fé cristã, e é nesses termos que Camões analisa a empreitada de seu povo: “Daqueles reis que foram dilatando / A fé, o império, e as terras viciosas” (I,2,2-3). Ressalte-se que Camões antepôs fé a império, denotando a primazia concedida ao plano espiritual. Gil Vicente, tanto no Auto da fama quanto na Exortação da guerra também é categórico a esse respeito: “Vós, Portuguesa Fama, não tenhais ciúmes, / que estais colocada na flor dos Christãos. / Vossas façanhas estão colocadas / diante de Christo, Senhor das alturas”. (A. F.); “África foi de Christãos, / mouros vo-la tem roubada” (E. G.). Todavia, não é apenas no louvor que Camões centra sua ótica narrativa: a crítica à matéria narrada também surge, se bem que parcamente, em seu poema. Mas essa crítica, é claro, se armará sobre os fatores subjetivos dos lusos, já que, materialmente, não se podia criticar o império, então (ainda) bastante poderoso. De duas maneiras essa visão crítica comparece. Na primeira, o narrador empresta a um personagem (o velho do Restelo) sua voz de acusação: “A que novos desastres determinas / De levar estes Reinos e esta gente? / Que perigos, que mortes lhe destinas, / Debaixo dalgum nome preeminente?” (IV,97,1-4).


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Mas cabe-nos aqui um reparo: essa crítica se incrusta dialeticamente na estória, e funciona como um elemento (profético) de negação exatamente para se contrapor à sua não concretização, que significa, afinal, outra vitória lusa e um louvor (implícito) aos que não se atemorizavam diante dos agouros. É, portanto, uma falsa crítica. Assim, na cantiga de Diogo Pezelho, ao mesmo tempo em que se critica um clérigo por querer impor um comportamento com que muitos não concordavam, louva-se, subrepticiamente, a obstinação, a fé e a lealdade dos que tinham coragem de se opor à situação. Bem diferente é a configuração do segundo tipo de crítica existente n’ Os lusíadas: agora, o lamento parte do próprio poeta-narrador (o que, inclusive, descaracterizaria a épica pura, no sentido de um registro subjetivo do narrador): “Não mais, Musa, não mais, que a Lira tenho / Destemperada e a voz enrouquecida, / E não do canto, mas de ver que venho / Cantar a gente surda e endurecida” (X,145,14). Temos, novamente, a crítica voltada ao aspecto imaterial, à índole do povo (gente surda e endurecida). Mas, dessa vez, seu lamento se isola, é muito mais uma reflexão do que uma narração pertinente à estória. E, assim como louvou seu povo como um todo, critica-o também em bloco: “O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a pátria, não, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza.” (X,145, 5-8, grifo nosso).


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Essa crítica à psicologia do comportamento grupal pode ser encontrada em Damião de Góis e em Fernão Lopes. Mas, em ambos os casos, da pura abstratização do pensamento camoniano teremos de nos guindar à causa concreta (discussões, lutas, matanças) que ambos os historiadores oferecem para explicar o procedimento do povo. Em Camões, ao contrário, as causas concretas não se revelam explicitamente. Em relação às trovas de Duarte da Gama, notamos uma preocupação social, mas sem nenhum aprofundamento psicológico: as pessoas são o que, empíricamente, fazem. E não só sob essa perspectiva se distanciam Duarte da Gama e Camões: há, no primeiro, uma tendência particularizante, que o faz centrar sua crítica sobre determinadas classes sociais, e, mais ainda, sobre determinados indivíduos: faltoulhe um enfoque orgânico da nação como um projeto comum, como um todo; e esse apego ao todo, essa incapacidade de sentir o herói desligado de sua terra e sua gente foi uma das características mais incisivas de Camões, no louvor do povo que sempre amou e proclamou. Retomo a palavra: Ao fim da página (e do texto), escreveu a professora – que é, transparentemente, a que vos fala, – as seguintes palavras:


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– Antonio Carlos: Foi um prazer ser sua professora. Sem querer profetizar – como a Ninfa da Ilha dos Amores – asseguro-lhe um grande futuro. C. Berardinelli Não me enganei – esta homenagem hoje prestada ao professor que se despede deixando longas saudades confirma as minhas palavras escritas há 30 anos. Pediramme vocês algumas páginas sobre ele para engrossar o coro de louvores que a ele se devem, sem nenhuma lisonja. Achei que trazer-lhes as suas próprias palavras, escritas antes dos 20 anos, pouco mais que adolescentes, seria uma revelação da sua precocidade crítica, rica em perspicácia, em finura, em amor à ars scribendi e, pois, uma forma de sublinhar a sua qualidade de crítico da literatura. Mas este crítico, este ensaísta agudo é, antes do mais, um poeta sensível, original, que domina os metros mas também sabe desdenhá-los, quando percebe que mais valem os versos sem metro e/ ou sem rima para exprimir anseios de liberação de regras e peias. Quanto a mim, confesso que ainda admiro mais os seus versos rigorosamente medidos, nos quais o metro é indispensável à comunicação plena do sentido. Leio-os com grande prazer. Em 2006, Secchin publica um volume que me oferece em 10 de janeiro de 2007, com um poeminha-dedicatória em que vejo meu nome rimado ­ com ­­um verbo muito encontradiço na minha fala, oral ou escrita: dizer. É uma quadrinha em redondilha maior, num pacotinho de presente, envolto em


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“um abraço afetuoso”. Não resisto à tentação de citá-la: “Haverá, talvez, poesia em algo que aqui se disse? Melhor indagar à mestra em verso e prosa – Cleonice!” Não mais como mestra, ­mas como colega – feliz de sê-lo – há cerca de 30 anos, respondo-lhe que há, sim, poesia – e da melhor – nas páginas de seus vários livros. Começo por um poema que admiro particularmente (e encontro nas páginas da revista Iararana):

Revejo a luz gelada de manhãs perdidas e os sonhos que eu mandei para o endereço errado. Tanto azul me nauseia e nada se dissipa em meio ao mangue seco onde estanquei meu barco. Muitas sombras debatem-se à beira do quarto. Fantasmas nos lençóis da noite estreita e aflita esgueiram seus anzóis no meu silêncio farto de saber que eles são a única visita. Imóveis no sofá, me contemplam ferozes e cravam com desdém as garras da rapina. Espanto o pó e a dor que descem dessas vozes rolando sem parar pela memória acima. O espelho só me ensina a ruína do desejo. Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo.(3) 3  Iararana, revista de arte, crítica e literatura. Salvador: Ano VIII, nº 12-nov. 2006, p. 10.


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Considero-o dos mais perfeitos, desde o engenho que põe na estruturação do texto, brincando com técnicas que muito bem domina, ao misturar rimas consoantes e toantes, estas mesmas nem sempre iguais entre si, tais como: “perdidas” e “dissipa”, a rimar imperfeitamente com “aflita”, consoante de “visita” e de novo toante de “rapina” e “acima”, para terminar com dois pares de rimas perfeitamente consoantes: “ferozes” e “vozes”, “desejo” e “vejo”. É, pois, um breve poema de 14 alexandrinos clássicos, dos quais 6 apresentam rimas toantes; os outros 8, consoantes. Dos restantes poemas, privilegio alguns já por ele selecionados quando os incluiu no pequeno e precioso volume de 50 poemas escolhidos pelo autor e deles destaco alguns sonetos criados a partir de papéis antigos e fotografias já esbatidos pelo tempo, deixando-se decifrar apenas parcialmente, tais como o soneto que começa pelos decassílabos: “Com todo o amor de Amaro de Oliveira.­/ São Paulo, 2 de abril de 39.”e interrompese com uma explicação de que o autógrafo se espalhava na folha inteira, para ser interrompido pela “trama envelhecida de outro enredo”. Restou, possivelmente, na página um nome de mulher, que o poeta busca adivinhar, mas não o consegue por estar “extinta / a pólvora escondida na palavra, / na escrita escura do que já fugiu.” Resta apenas a informação suposta de que “Amaro am[ou] alguém no mês de abril.” Pólvora e escrita ocultas numa escuridão apenas disfarçada pela claridade sonora dos decassílabos secchinianos. Vale a pena salientar ainda um belíssimo soneto, o que dedica ao pai, também em decassílabos perfeitos e também


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encontrado em folha meio apagada pelo tempo: “Estou ali...” Estou ali, quem sabe eu seja apenas a foto de um garoto que morreu. No espaço entre o sorriso e o sapato há um corpo que bem pode ser o meu. Ou talvez seja eu o seu espelho, e olhar reflete em mim algum passado: o cheiro das goiabas na fruteira, o murmúrio das águas no telhado. No retrato outra imagem se condensa: percebo que apesar de quase gêmeos nós dois somos somente a chama inútil contra a sombra da noite que nos trai. Das mãos dele recolho o que me resta. Eu o chamo de filho – e ele é meu pai. O soneto se inicia por uma plena afirmação: “estou ali”, mas a situação precária que o poema insinua vai-se acentuando pelas expressões dubitativas: “quem sabe”, “bem pode ser”, ou “talvez seja”; outra imagem se condensa; “apesar de quase gêmeos”, “a sombra da noite nos trai”. Do retrato meio destruído, o que de mais nítido ficou foi “um corpo que bem pode ser o meu”, e que se situa “no espaço entre o sorriso e o sapato”, bem demarcado, no qual se pode conter o menino/


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adulto inteiro. Será o poeta esse corpo bem demarcado, ou o seu espelho, que ele olha, neste olhar misturando-se, vindas do passado, outras sensações sinestésicas – de olfato – “o cheiro das goiabas na fruteira”, de audição – “o murmúrio das águas no telhado”. Mas nele se condensa outra imagem – a imagem do pai, tão semelhante à do poeta como se fossem gêmeos, e contendo em si o que deste resta, levando-o a dizer, num reconhecimento ainda duvidoso: “Das mãos dele recolho o que me resta. / Eu o chamo de filho – e ele é meu pai.” O soneto se intitula “Estou ali...”; à primeira oração do primeiro verso e, para mais, seguida de reticências, eu gostaria de que o autor me autorizasse a acrescentar uma interrogação medial: “Estou ali?...” reduzindo assim a dúvida dispersa pelo poema à dúvida final, que se pode considerar expressa ao fim do último verso: “Eu o chamo de filho – e ele é meu pai?” Esta pergunta final é mais que uma nova dúvida: é a afirmação quase definitiva da negação que esteve pendente sobre o texto durante o seu desenvolvimento, como uma ameaça de cair a cada passo. Antes de encerrar este texto-homenagem, retomo, como fecho do mesmo, os seus dois versos finais, dos mais belos escritos por Antonio Carlos Secchin e por mim sublinhados: “Das mãos dele recolho o que me resta. / Eu o chamo de filho – e ele é meu pai.”


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Antonios Cristina Secchin(1)

O bisavô era italiano e tinha o apelido de Tonico. Esse é o Antônio mais longínquo na família. Seu nome, Antonio Carlos, seria em homenagem a ele? Acredito que não. Contam que, irritadiço, teve a sorte de casar-se com Catarina, muito cordata, o que tornava a vida familiar confortável. Ao Tonico encantou o bisneto Antonio Carlos. Em comum tinham a paixão pela comida italiana que a bisa Catarina preparava. Nesta época o Antonio Carlos se chamava Tonho, e Tonho fazia rir ao Tonico. Tonho, então aos dois anos, sentava-se na soleira da porta, quietinho, batendo com a colher no fundo do prato, o olhar pidão, à espera do convite para o almoço. Era mesmo uma das alegrias do bisavô. E havia o avô português, José Antônio. Seria o nome do neto também uma homenagem a ele? Da relação dos dois existe uma história curiosa. Recém-nascido o Antonio Carlos, o vovô José Antônio chorou muito. Por mais que a nossa mãe houvesse perguntado, nunca respondeu o porquê de tanta emoção. A vida daria essa resposta? O Antonio Carlos, aos 20 anos já escritor, foi uma boa alegria para o também escritor vovô José Antônio. Filho de criação de Cachoeiro de Itapemirim, já que nasceu aqui no Rio de Janeiro e lá passou a primeira infância, muito 1  Psicóloga com especialização em Educação de Adultos, RH e Psicologia Organizacional. Atualmente é Diretora de Recursos Humanos de Multinacional.


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cedo ele e a audiência tiveram seu primeiro encontro amoroso. Havia um programa de calouros na rádio da cidade que, ocasionalmente, permitia a participação de crianças. Estamos falando de Cachoeiro de Itapemirim. Dona Regy, nossa mãe, era filha do Rio de Janeiro, do Cassino da Urca, dos bailes do clube Botafogo e dos programas de rádio, em voga nos anos 40 e 50. Esses programas faziam parte de sua geração e da rotina carioca. Assim foi que inscreveu seus dois filhos mais novos no programa de calouros. O mais velho, Tonho, por volta dos seus cinco anos e a mais nova, Cristina, com três. A música que caberia ao Tonho cantar, ensaiada em casa, começava assim: “No forró fui dançar o miudinho, mas o Chico...”. Frente à espontaneidade, o olhar vivaz do cantor mirim, a plateia veio abaixo em aplausos. Antonio Carlos ganhou seu primeiro prêmio em uma apresentação pública aos cinco anos de idade. Já a Cristina, com três anos, achou o desafio de decorar a letra da música tão difícil que parou por ali mesmo, na segunda estrofe. O menino se apresentou ao público e fez bonito. Já que mencionei a Cristina, vou contar para vocês que sou a irmã quase gêmea do Antonio Carlos – sou a gêmea com dois anos de atraso. Atrasei em doze dias o meu nascimento só para homenagear o meu irmão. Alguém acredita nisso? Espero que não. Esclarecendo, nasci dois anos depois dele, e doze dias depois da data esperada pelo obstetra da nossa mãe. Como retribuição a essa homenagem, em criança ele me chamava de meu presente de aniversário, sempre que eu relutava a entrar na brincadeira para a qual ele estava me convidando. Claro que o presente tinha que ser legal com o presenteado.


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Acredito que descobri, depois, a razão da coincidência da data de dez de junho. Nós dois nascemos nove meses depois do dia de aniversário de nossa mãe. Ou seja, a coincidência está relacionada aos folguedos comemorativos do casal. Como irmã mais nova, e a de idade mais próxima, ele tinha que se virar comigo mesma no dia a dia, e eu era chamada para brincar de algumas coisas legais, como derreter vela sobre as folhas das revistas em quadrinhos (a imagem escolhida era absorvida pela cera da vela e transferida para a gota de vela). Também era convidada a compor o júri que elegia a melhor música dentre aquelas que tínhamos em vinil. Dessa brincadeira de “Qual é a melhor música que temos em LP em casa” costumava participar também o nosso primo Sérgio. Talvez porque as mulheres ainda não houvessem queimado seus sutiãs em praça pública, eu não era convidada para os grandes torneios de futebol de botão, que aconteciam em nossa casa e na casa do Sérgio. Futebol era coisa de meninos. Mas me encantava a atenção e o preciosismo que o Antonio Carlos e o meu pai dedicavam aos jogadores, ou botões, dos times. Alguns dos jogadores eram comprados em lojas de material de esporte, bazar ou Lojas Brasileiras, outros eram talhados, lixados e polidos até que a matéria-prima, o pedaço da casca de coco, se transformasse em um bom jogador: redondo e deslizante. Algumas vezes cheguei a ensaiar usar a palheta, mover os jogadores, fazer um gol, mas minha presença não era esperada nesta atividade masculina, e cá entre nós, a mesa era muito alta para mim. Alguns brinquedos marcaram a sua infância, tenho certeza. Nossa tia Odette, sua madrinha, morava nos EUA e em função


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disso o Antonio Carlos tinha um carro modelo rabo de peixe, azul e branco, capota conversível, movido a controle remoto. O maior sucesso. É claro que o controle era preso ao carro por um fio, e isso era o máximo da tecnologia em brinquedo para a época. Brincávamos de batalha naval e... líamos. Líamos desde sempre. Em nossa casa, em Cachoeiro de Itapemirim, havia um escritório com uma estante cheia de livros. Eles ficaram por lá. A saudade deste tempo eu a trouxe dentro do bolso do meu short, aos quatro anos de idade e à minha volta permanece até hoje. O sentimento do que não foi, o significado de permanência e das perdas. O Antonio Carlos também trouxe Cachoeiro de Itapemirim em si para sempre, em sua forma particular. O sentimento de pertencimento e importância nas recordações emocionais foi dividido em forma de poema, há 14 anos, quando a família se reuniu na cidade natal de nossos antepassados para celebrar o centenário da vinda da família Secchin para o Brasil. Apesar de termos ficado com poucos livros quando retornamos para o Rio de Janeiro eles tinham um destaque especial. Nosso pai tem uma coleção das Aventuras de Julio Verne, de muito simples valor como edição, mas que merece um móvel especialmente desenhado para guardá-la. Essa coleção sempre esteve ao alcance das mãos do papai. Papai, Sives, também tem a enciclopédia ilustrada, Lello Universal, que era guardada dentro do seu armário como uma grande preciosidade. Menos pelo valor literário das obras, e mais pela posição de destaque e zelo em relação aos livros, acredito que o Sives mostrou um respeito à palavra escrita muito importante para a nossa formação. Líamos Diversões Juvenis, líamos


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gibis, líamos Monteiro Lobato, mas das brincadeiras entre nós a que mais deliciava o Antonio Carlos era me dar aula. A estória dos gibis deve ter horrorizado o capelão de minha escola. Com oito ou nove anos, adorava ler os gibis do Tarzan e O Fantasma. Um dia li na capa do Fantasma que a revista era imprópria para menores de catorze anos, e eu tinha oito. Não tive dúvidas do que fazer: fui me confessar. Confessei que lia as revistas proibidas do meu irmão. Demorei muito a entender o porquê de minha penitência tão grande. Foi o meu recorde de Pais-Nossos e de Ave-Marias ajoelhada na igreja do colégio. Voltando às aulas que o meu irmão me dava, quando o meu interesse pelo assunto era restrito, ele chegava a me motivar com chiclete Ploc, figurinha para álbum, coisas assim. Parecia que para ele não havia brincadeira mais interessante do que ensinar. E tentava me ensinar o conteúdo de três séries acima da minha. Quando chegamos ao Rio de Janeiro, vindos de Cachoeiro de Itapemirim, ele fez uma prova para entrar no colégio e foi designado para uma série acima da que cursava por lá, e por isso sempre foi um ano mais moço que seus colegas de turma. Lembro do dia em que aprendeu a manejar os esquadros, e mais, que, apoiando um dos esquadros no outro, poderia desenhar linhas paralelas com uma boa simetria. Neste dia ganhei uma aula de desenho geométrico. Ele, com dez anos, e eu, com oito. Acho que fui a única aluna dele nessa matéria. Acho também que aquela foi a única aula de desenho geométrico que ele deu na vida. Além de jogar botão, voltando ao futebol, o Botafogo sempre foi sua paixão, como uma herança muito forte do meu pai. Até


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hoje, quando o time acaba de jogar, pergunto o resultado e imediatamente penso: “Legal, o papai e o Antonio Carlos estão felizes, ou, coitados, devem estar chateados.” A nossa infância teve Marataízes na casa dos nossos avós paternos, teve matinê de domingo com desenhos animados no cinema Copacabana, teve praia na Santa Clara e teve também o dia sete de setembro. Sempre brincamos com a nossa mãe que ela é muito patriota, porque nasceu nesta data. Assim que passamos a integrar o grupo de quase cachoeirenses ausentes e viemos morar no Rio, uma das diversões de nossos pais era assistir ao desfile de sete de setembro. O casal era animado mesmo. Adoravam fazer visitas, ir à praia, assistir ao desfile de escola de samba e participar de tudo que a cidade pudesse oferecer, ou seja, íamos ao Pão de Açúcar com o papai e a mamãe, visitávamos o Cristo Redentor com eles, íamos à Feira da Providência e passeávamos pelo Jardim Botânico. Muito cedo, vovô José Antônio, pai de nossa mãe, Regy, começou a ter um lugar de destaque na vida do meu irmão e do nosso primo, Sérgio. Vovô era escritor, já tinha uma biblioteca de pequenas dimensões e era para lá que os dois se dirigiam muitas de suas tardes. O retorno era sempre acompanhado de certo ar de encantamento e excitação. Para mim, essas visitas deles tinham um quê de descoberta. E o escritor Antonio Carlos surge na adolescência, quando começaram a acontecer os festivais da canção. Nosso colégio organizou o seu festival e, para minha surpresa, lá estava o meu irmão entre os concorrentes. Sua segunda exposição a um público maior, agora não mais reproduzindo a fala do outro,


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mas tendo a letra da música que escrevera sendo exposta ao julgamento aberto. Bem cedo, ainda adolescente, ele começou a dar aulas particulares de análise sintática, entre outras. Essa parte da disciplina era o terror dos alunos do ginásio, meu inclusive. Véspera de prova, ele deixava de ser meu irmão e, transformado em professor com toda a dignidade e postura, o Tonho, no horário marcado, sentava-se ao meu lado e me explicava a matéria. No dia seguinte eu fazia a prova, tirava nove ou dez, e ele vibrava pelo nosso sucesso. Sua alegria era completa e genuína. Pela facilidade do professor ao alcance da mão, no mês seguinte eu já tinha esquecido tudo. Sabia da paciência infinita do meu professor particular. Prova seguinte, lá estava ele, novamente, com “frase subordinada é aquela que....”; e tornava a vibrar com o nove ou dez que eu tornava a obter... só mesmo tendo criado esse destino para si, ou tendo feito deste destino o seu desejo maior. Ainda muito jovem, dezesseis anos talvez, a biblioteca do Antonio Carlos já ocupava a maior parede do seu quarto, ocupava todo o seu dinheiro, sua atenção e sua paixão. Tive o privilégio de um grande entendimento e harmonia em interesses literários nesta época. A parceria era ótima: ele comprava os livros, e eu pedia orientação do que ler. Sempre percebi que ele encarava essa tarefa como uma responsabilidade maior. Ele nunca me entregou simplesmente um livro. Falava do autor, da obra e me parecia que ele pensava na sequência do que eu deveria ler: “vamos começar com Machado de Assis”. “Olha, apareceu um escritor novo que você deve ler, pegue esse Autran Dourado”. “Acredito que você vá gostar deste


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livro do Dalton Trevisan”. Assim acredito que eu tenha sido, além de sua primeira aluna, também a primeira a receber sua orientação literária. Sempre que acabava de ler um livro, e ia começar outro, ele pedia que eu fizesse um pequeno comentário sobre o que eu havia lido. Ele sempre aprovava e complementava o que eu trazia de conteúdo, de entendimento da leitura, e ria muito porque eu esquecia, de imediato, o nome do livro que acabara de ler. Ele me dizia que eu era o oposto de muitas pessoas que, só de lerem as orelhas dos livros, guardavam para sempre o nome do autor e da obra. Pois sou assim até hoje. Consigo relembrar as emoções de cada leitura, as danças de cada filme, o subentendido dos diálogos, mas não me perguntem o nome das obras. Sua influência em minha vida profissional mostra que seu encantamento pela leitura, pela escrita e principalmente sua fé no compartilhamento do acesso ao saber fazem de mim sua pupila. Especialista em Educação de Adultos, profissional de treinamento e desenvolvimento, quando olho minha vida profissional sinto que os momentos que valeram a pena foram aqueles em que pude tocar e possibilitar a transformação de pessoas e saberes pré-estabelecidos. Soltar as amarras do outro permitindo que ele se reveja, se reconstrua a partir de novas e diferentes visões de mundo. Eu tinha 18 anos quando o meu irmão me convidou para assistir a uma palestra que ele havia escrito e iria acontecer na biblioteca Thomas Jefferson, em Copacabana. Muito tínhamos ido lá, nos anos anteriores, em busca de livros e conhecimento. Nesta época ele já era Professor Auxiliar na universidade. O espaço estava lotado, e ele começou a falar. Ele fazia uma


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interpretação psicanalítica de um texto de Machado de Assis, dentro da linha lacaniana, que então estudava. Seus olhos eram o que ele estava dizendo, sua voz vivia cada palavra, todo seu corpo acreditava e vibrava com a sonoridade dos significantes e significados. Ao final, os aplausos. Emocionei-me com a emoção dele, com a vibração a minha volta. Como se o prazer de aprender, de transformar e de dividir esse processo com o outro tivesse encontrado seu lugar definitivo. O resto é de domínio público.


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O sósia Edla Van Steen(1) Para Antonio Carlos Jonas era sósia de um político. Aparecia sempre de frente, de costas, ou de lado, em fotos oficiais, mesmo que o original estivesse pescando no Araguaia, certo da cumplicidade dos funcionários e da própria mulher, sorridente, ao lado do falso marido. Havia quem dissesse que o filho do político seria de Jonas, o outro sempre viajando para suas pescarias, e ele não podia ficar com ciúmes, afinal de contas a mulher podia estar fazendo de conta, sabe como é. O político morreu num desastre de helicóptero, no momento em que a mulher e o sósia desciam do carro para entrar numa festa no palácio do governo. Por pouco a farsa não foi motivo de escárnio na imprensa. Mas aí começa a grande dor de Jonas: já não era sósia de ninguém. Quem era ele, então? Passou a vida fingindo ser outra pessoa, ganhara o sustento com isso. E agora? Seu último trabalho: fazer-se passar pelo morto, deformado demais no acidente. Ele tomaria um sonífero e representaria o falecido no caixão. Na hora em que este fosse colocado no carro fúnebre, seria trocado pelo corpo do defunto. Um monte de dinheiro no banco, a oferta irrecusável. E tinha esperança de herdar a viúva. Jonas não previu erros na sua última e fatal performance. 1 Escritora com vinte e cinco livros publicados, entre contos, romances, entrevistas, infantojuvenis, livros de arte e peças de teatro.


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Escritos sobre Secchin & alguma fricção Igor Fagundes(1) Imaginasse o céu a repousar no branco da página, por entre a tinta negra das letras, e um desafio astronômico se não fosse já microscópico: flagrar a primeira e última estrela nas lentes de Antonio Carlos Secchin, que, frente a todo universo chamado Texto, sabe – como poucos – ir direto ao ponto; ao núcleo de irradiação disto que, a iluminá-lo, também por ele se ilumina. Seria preciso fracassar na localização do eixo-sol de Secchin: mantendo-me impotente, aquém do que se precisa além para se reconhecer i.menso, forjo nas mãos atadas a possibilidade de alguma reverência ao que – sem margens – nem pode ter centro. Diante de um vocabulário arriscado entre microscopias, telescopias e lentes, não raro (e em nome do raro) Secchin trocaria “mãos” por “olhos atados”, a fim de não dar ouvidos ao senso comum, ou melhor, não lhe dar bocas (evitando, assim, outro clique de clichê sob a sobrancelha, para não dizer, nas sobras de uma boca ordinária, “ao pé da orelha”). Reverenciar implica, portanto, não a mera referência, mas o esmero de quem desiste de falar sobre (por cima de) alguém. Tampouco a respeito de, como se qualquer pessoa e obra pudessem ser reduzidas a um objeto, tornando-se reféns de determinado sujeito. É, no mínimo, por respeito ao que não se deixa determinar, nem terminar, que a implicação 1  Doutorando em Ciência da Literatura (UFRJ), poeta, crítico e ator.


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da reverência diz o contrário da explicação. Nesta, Secchin se colocaria para fora de suas dobras, segundo um maior ou menor poder meu de simplificá-lo. Naquela, qualquer tentativa de distanciamento cuida de flagrar-nos condicionados por um abismo intersticial, isto é, na condição de desdobramentos de uma dobra onde cada uma das falas assinala – complexa e perplexamente – sua proveniência radical. Na imensidão que tanto me separa de Secchin quanto me une aos seus espectros, o fracasso da mensuração também fracassa, podendo, oxalá, virar a medida de algum sucesso: quando, no ínterim da abertura, o universo do escritor se mantiver incontornável, ou seja, quando não se mantiver, para se ter incontinente e, daí, acatar o imperativo da contenção que o demarca; ou melhor, para não se ter, não se acatar, na instância em que me tem em desacato, deixando em mim a marca de seu imaculado, revelado e revelando-se sob máscaras em torno do vazio: “No princípio do precipício / meu início”(2), ouço lá no (sem) fundo. Todavia, não fosse possível um contorno, mesmo que provisório, deste abismo; algum salto sobre ele; algum sobressalto a revelá-lo, o i.menso jamais ganharia relevo para pronunciar-se como tal. O que não tem medida, limite – porquanto infinito – é nada. Mas, na medida em que o nada é, já terá sido tudo o que for. A imensidão: o verter de tudo; inclusive, da vertigem (“Na derivada do nada / minha estada”(3)). Somente quando universo, o nenhum excessivo se torna um, ganha corpo, faz sentido: a ausência doa presença, 2

SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p.109.

3  Id., ibid.


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e vice-versa (“O ar ancora no vazio. / Como preencher seu signo precário?”(4)). Na fricção da voz dentro do que a engole, Secchin se ficciona na “nave da navalha”(5), na palavra que só o conta quando o corta – “invente em mim / o avesso do neutro. / Preparo para o dia / a fala, curva do finito / num silêncio de âncora”(6). A ausência de limites não significa, assim, a falta ou negação do que se tinha; antes, a excessiva doação do que se tem e ainda, e sempre, se pode ter. É, no máximo, por respeito ao que só se deixa principiar, que os limites do que digo jamais serão o lugar em que o discurso se interrompe e termina, mas sobretudo onde irrompe e, a cada vez, começa. Onde, friccionando o infinito, ele se gera: recebe uma poética. Disso resulta jamais um eu a falar sobre outro, mas a partir do que, entre o eu e o outro, se abre, e já se terá aberto para – nessa tensão com nada-não – poder abri-los. No vazamento de um vão anterior e ulterior a mim e a Secchin, a qualquer duplo (“para ser sincero, acho o duplo muito pouco”(7)), o silêncio a partir do qual toda fala é. Falar de Secchin pressupõe trazer à voz isto que se lhe antecipa e nos ultrapassa: o silêncio do qual e para o qual tendem a sua e a minha palavra, no sentido de que, a partir dele, cheguem à diferença que lhes couber. No sentido de que, partindo novamente a ele, me encontre a ouvir a fonte da voz de um Antonio em mim foz: “Entre o dentro e o fora / falar / me ancora”(8). Somente nesse “entre” ou liminaridade, 4

Ibid., p. 101.

5

Ibid., p. 103.

6

Ibid.

7  Id. “Entrevista ao jornal RioLetras”. Memórias de um leitor de poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, p. 270. 8

Id. Todos os ventos. Op. cit., p. 117.


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em que o vazio aporta num ar e respiração possíveis, a medida de um corpo – do diferente, do único, do especial – terá o imenso como o sem-lugar que o dá a conhecer multiplamente. Consoante faz Secchin com as prosas desconcertantes que escreve, aforismando-as em novo concerto, desloco do poema de origem os versos seguintes, a fim de parir algum outro que (não) dê conta do laço entre nós: “Tudo está mais além e aquém do que se fala, / a palavra encaminha ao salto o que é de dentro”(9). S) Imaginasse o céu a repousar no branco da página Nesta fala que discorre (e de onde escorre) um poeta, a regra seria clara, se já não enigma: o poético a penetra e me interpenetra desde “o princípio do precipício”. A fronteira entre o incurso crítico e o percurso literário os confunde. E o texto fica todo prosa quando em poesia. Secchin brinca com as palavras mesmo quando a falar sério. Porque, seriamente, “no ‘mau caminho’ do bom senso”(10) e “não prometendo nada além de rituais para deus nenhum”(11), a análise será tão mais lúcida quanto mais lúdica. Quando, no pretexto de que analisa, a letra catalisa uma reação química na página, frequentemente ocorre a combustão: o papel em big bang reverbera criatura e criador. Imaginemos o cosmo a repousar no caos e teremos o universo crítico-poético de Secchin quando o caótico pousar 9

Ibid., p. 33.

10  Ibid., p. 18. 11  Ibid., p. 18.


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na cosmogonia do verbo. Senão, a poesia não fulgurará como “desordem sob controle”(12); ela “não pretende ser espelho do caos, hipótese em que tudo, isto é, nada, seria poético”(13). Este, contudo, pode sibilar nas sílabas da prosa, perfurando a folha com um ou como um buraco negro em seu espaço, digamos, sideral (quando não siderúrgico nas indústrias de um punho a depurar “poemas para ferro e joão”(14)): “o prosaico não é o oposto do poético, e sim do poemático”(15). E) por entre a tinta negra das letras Antonio Carlos Secchin faz do silêncio da poesia o pré-texto para a criação da e na análise. Desse modo, a síntese analítica passa a anabólica quando, sobretudo, a sintetizar alguma proteína nas fibras musculares da folha: os aminoácidos do poético são as moléculas hipertrofiantes do tecido crítico. No vigor do que se quer rijo, não perder a flexibilidade dos movimentos parece conspirar para a saúde do corpo linguístico, a exemplo das trações assonantes e aliterantes, exercitadas em meio às contrações e alongamentos da musculatura dissertativa. Se, em algum passado ultrapassado, proibiramme na prosa os polichinelos da rima, a educação física de Secchin me concede licença (poética) para a desaprendizagem de um aprender “visceralmente comprometido com as sucessivas versões de verdade que vão nos mostrando ou 12  Id. Poesia e desordem: escritos sobre poesia & alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 19. 13  Id. Todos os ventos. Op. cit., p. 75. 14  Ibid., p. 19. 15

Ibid., p. 79.


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desmentindo o que seja viver e criar”(16). Uma vez evidente o vazamento da aliteração numa prosa (de) entre(-)vista como esta, o mestre involuntariamente range em cada r e t “por entre a tinta negra das [minhas] letras”. As mesmas que, com “a primeira e última estrela”, lá no início do meu precipício, detonaram o toante no timbre fechado da vogal e. Do verso para o parágrafo, a escrita continua em baile ou ciranda, mesmo que ordenada, militarmente, à marcha. Por tirar leite das pedras (por tirar do crítico o poeta, e viceversa), o “caminho do meio” de Secchin (onde ele se alimenta dos extremos, mas com moderação extremada) me livra do medo de todo pedregulho no meio do caminho: de toda prosa no meio do caminho da poesia. Se perdida, esta poderá se reencontrar em meio a alguma prosa a meio caminho do inteiro. A inteireza, aqui, não é o esgotamento da totalidade da paisagem na soma de cada passo, posto que, entre um e outro, há e haverá sempre um passo não dado, uma passagem a doar um próximo passeio, um caminho no meio do meio, um vão a completar o que não se encaminhou. Daí que, por entre a tinta negra das letras, a caminhada de um texto não apenas reconhece a palavra dentro do branco, a preenchê-lo. Quanto mais um verbo aparece e diz, mais o rediz e deixa aparecer espaços abertos por dentro de si. A palavra se preenche de vazio e, por isso, cuida de salvaguardar na página, e como céu em página, o inteiro da i.mensidão. O ensaísmo eufônico de Secchin me advoga e me absolve quando articulo aqui e acolá uma dança polifônica a infringir as leis do corpo duro da prosa, aquele sem molejo, mas sem 16  Id. “Entrevista ao jornal RioLetras”. Op. cit., p. 263. (Grifos meus).


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moleza na hora em que o chamo a ensaio. Em nome de certa ética do rítmico e do fonético, sem a qual teoria literária alguma se faz ethos de um incerto que cintila no avesso das métricas, o réu em que me rascunho só tem culpa de e se cometer o crime da poesia, em legítima defesa quando atacado pelo código penal do prosaico (como quem, por pena deste, também quer salválo de seu imbróglio). Diante de cega promotoria teórica (“e o pior cego é aquele que não quer ouvir”(17)), o acusado passaria a promotor, acusando o ministério público da literatura de falso testemunho: se realmente literária, feita pelo literário, a teoria deve fazê-lo e refazê-lo – testemunhar seu rosto, sua força – indefinidamente, sem se bastar com qualquer dizer que, rarefeito de literatura, a expõe já desfeita. Por outro lado, e de modo inversamente semelhante, um poema que não se engendre crítico (pelo menos de si mesmo) jamais mereceu advocacia ou defesa, julgamento e sentença de Antonio Carlos Secchin. Ele é cultor do arremesso de – falsos – originais à lixeira, embora um detetive dos que, empoeirados de esquecimento, esperam, no futuro, ter sua “verdade” (re)descoberta. Certa vez lendo um livro inqualificável, a merecer todo desmerecimento crítico, e tendo que escrever uma resenha para ele, tive dúvidas de publicála, a fim de não denotar arrogância, nem provocar trauma no autor então iniciante. Recorri a um conselho de Secchin, que, surpreso com o impasse (por saber e alegar que sempre tiro – ou pelo menos tento tirar – o tal leite das pedras), confessou jamais ter escrito sobre alguém cujos defeitos suplantassem os méritos (“Cala-te boca se diante de outra que não soube 17

Id. Todos os ventos, Op. cit., p.76.


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calar!”, invento ora um lead para a lição). Se, mais do que qualquer um na crítica brasileira, Secchin não economizou palavras para compreender a palavra econômica de João Cabral de Melo Neto, o ofício oposto de tirar pedra do leite também valeria, para todo poeta, como Educação. Em especial os que não ruminam o verde de seu capim. Crítica na poesia não se reduz, então, a engajamento político e social. O que no coração (do) lírico perdeu ou quer perder o juízo deve tê-lo possuído um dia. Do contrário, não viveria crise alguma. Nem se colocaria em crise (em crítica, em verso, em pensamento) a emoção da perda. C) e um desafio astronômico se não fosse já microscópico: Enquanto, na crítica, a poesia não há de comparecer para roubar-lhe a comunicabilidade (mas, sim, para que o analista se comunique melhor com seu não-objeto), a autocrítica do verso cuida de não distendê-lo e expandi-lo à imensidão – astronômica – do universo, se, microscopicamente, o além-céu pode se presentear intensivo e contraído dentro das letras. Tirar cabral e cabalmente “pedra do leite” significa mais do que o desnatar para suprimir o gorduroso. Consiste em congelá-lo, deixá-lo dormir por um tempo, até o ponto em que, protegido do apodrecimento e novamente provado, seja capaz de estranhar o paladar de quem o beba (requerendo, enfim, a depuração do gosto). Um poeta não se equipara somente ao gado que, involuntariamente, cede o leite e se alimenta, digamos assim, bem grosseiramente, de suas próprias tetas. Passar o pente fino no que se anuncia grosso modo participa


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do processo onde, antes de servido à mesa, o fluido exprimido (ou expressivo) passa pela técnica ou tecnologia da indústria láctea re-criadora(18). Nela, as etapas de congelamento, pasteurização, controle de qualidade e embalagem repercutem como o cuidado da forma sem o qual milhões de bactérias microscópicas poderão azedar astronomicamente o produto. E não adiantará chorar o leite derramado: dor de cotovelo não é – nem nunca será – remédio para dor de barriga. Se a crítica autopoética de Antonio Carlos Secchin consegue se afastar do perigo iminente do impressionismo barato, persegue também elogiosamente os poetas autocríticos que se distanciam do expressionismo gratuito. Não que todos os joões escritores devam se tornar Cabrais: o Melo passou por um filho e conseguiu chegar a Neto – não disse querer bisnetos, nem precisa de mais sucessores. A desconfiar dos epigonismos, o autoexame realizado pelo eu-lírico de Antonio Carlos aprende com o diagnóstico dos poetas lidos, elaborado por Secchin. Sua poesia se faz de todos os ventos e não, única e deserticamente, da aridez do sertão cabralino. Isso não significa que os ventos todos devam soprar de uma só vez e dentro de um mesmo poema, em furor dadaísta: “a antiordem foi moderna no modernismo; repeti-la ainda hoje, sob a capa da vanguarda, é iludir o leitor”(19). A despeito dos que acreditam ser todo poeta um desequilibrado, em cujas mãos um verso (ou antiverso) se 18  Conforme Secchin, tanto a prática criativa quanto a interpretativa não se reduzem “ao domínio do aspecto técnico, mas, de todo modo, nada pode fazer-se sem ele. Confinados à técnica, temos o excesso, a transformação do instrumento em fim. Sem a técnica, não temos nada” (Id. Memórias de um leitor de poesia, op. cit., p. 19-20). 19  Id., Todos os ventos. Op. cit., p. 77.


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quer fluxo do inconsciente, ou refluxo do inconsequente, Secchin crê que, sem lucidez ou equilíbrio, poeta algum fica de pé no meio da ventania. Não adianta, em um arroubo de bêbada bravura, caminhar contra o vento, sem lentes nem documentos, para – ademais, rouco – se gritar gênio(20): “Há poetas quase afônicos; de tanto espremerem para expressar alguma coisa, acabam exprimindo coisa alguma”(21). Sem enxergar o que há pela frente, e pelos lados, a miopia do modernoso e o astigmatismo do pós-modernoso preferem o desconhecimento do “antigo”. Este, desse modo, ainda inédito para eles, segue como a novidade sempre adiada pela moda mais nova, e imediatamente entregue a museu, uma vez lotados os cemitérios. Todavia, caberia ao artista “ver para descrer”(22). Na contramão da cegueira dos que se julgam certeiros, mesmo que (e paradoxalmente porque) desprovidos de lentes de contato, resta ao “antigo”, no futuro do (não) passado, tão-somente ventar e, como tal, no presente, ser sempre mais forte – e mais atual – do que a não permanência do artista cambaleante. Gauche na vida foi aquele homem atrás dos óculos e do bigode. Não este exclusivamente atrás do ópio e do boicote dos poucos e raros amigos, dos poucos e raros livros lidos, dos muitos raros escritores por ele não sabidos. Não sabendo, enfim, de onde vem e para onde vão todos esses ventos (para que tanto vento, meu deus, não pergunta 20  Lembro-me aqui dos versos de “Um poeta”: “Rei de si mesmo, truão engalanado, / poeta acuado pelo peso dos anos, / por sua parca inspiração escoa / o esgoto fracassado de seus planos. // Crê-se o maior vate do planeta / um pigmeu no rodapé da poesia. / Implora a Deus por quem o louve. / Nada ouve? Ele mesmo se elogia.” (Ibid., p. 20). 21

Ibid., p. 77.

22  Ibid., p. 81. (Grifo meu).


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o coração!), o rebelde perdido dentro da própria rebeldia não caminha. Desorientado, sequer se torna “um desorientador, sempre desconfiado da direção que lhe apontam”(23). “Negar o grandioso é insuficiente para impedir seu enviesado retorno através da monumentalização do mínimo”(24). Não obstante a recusa das lentes, ignorar os documentos, a História, em nome de um monumento sem precedentes é como querer descobrir a pólvora (da poesia) no século XXI. Secchin ensina que a traição pode ser tão tradicional quanto a tradição, se não a tiver por célebre pressuposto; se tudo o que tiver for o antinormativo imposto (convertido, portanto, na célere norma do – já destinado ao – natimorto): “O antinormativo é o imprevisível com hora marcada”(25) e, desse modo, não bota a gente comovido como o diabo. C) flagrar a primeira e última estrela Ao trazer à página o ninho celeste da noite (pois somente nela as estrelas aparecem para a[s]cender o verbo), distancio Antonio Carlos Secchin da poesia solar de João Cabral de Melo Neto: “Atmosfera cheia de luz, espaço sempre diurno: ‘Sertão é uma palavra cercada de sol por todos os lados’”(26). Não porque, anacronicamente oitocentista, esteja a dicção de Secchin imersa na evasão romântica ao soturno dos versos. Tampouco se faz emersa da invasão simbolista de um céu 23  Id. “Entrevista ao jornal A Tarde”. Escritos sobre poesia & alguma ficção. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 291. 24  Id. Todos os ventos. Ibid., p. 80. 25

Ibid., p. 80.

26  Ibid., p. 76.


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noturno na folha transcendental. Os estilos de época se misturam com harmonia e dissonância na astrologística de quem, atento às previsões, sabe evitar “excessos”, moderar “a voz, a gula, a ira”, abrindo “portas de entrada / e armadilhas de saída”(27) em toda galáxia, órbita e eclipse que frequente. Secchin entende que “negociar com as palavras [com as estrelas de cada época] as frestas de perturbação e mudança de que elas e nós necessitamos para continuarmos vivos”(28) culmina em seu próprio “estilo”(29). Metaforicamente (mas jamais meteoricamente), a constelação de “Sagitário” influi, por exemplo, no geminiano Antonio Carlos quando, entre terra e céu, um centauro flechado de letras se aprende gêmeo somente do dessemelhante e, “sem mais nada a evitar”, “evita todos os horóscopos”(30). Para além dos autores famosos, o interesse de Secchin nos livros de poetas poucos conhecidos, (quase) anônimos no passado (ou mesmo iniciantes a fim de presente), atesta sua obsessão pela mais antiga e recente estrela da poesia. Não no sentido estreito de buscar autores-ícones, isto é, de tornar o céu do poético efeito de um sujeito luminoso. A primeira e última estrela descoberta hão de ser índices e símbolos do que as autoriza a ser luz: o próprio – ou impróprio – breu criador, a poesia (im)propriamente (não) dita. A tomada de posição de determinado astro só se faz possível na instância em que ele já está dentro de uma estrutura ou sistema, mas estes, por sua 27

Ibid., p. 56.

28

Ibid., p. 75.

29  Ibid. 30  Ibid., p. 56.


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vez, ganham e se fazem perspectiva apenas quando os pontos ou partes que o constituem se encontram lançados num mesmo horizonte. Senão, nada se avista, nem se articula. Nenhuma relação se viabiliza. Posto que o horizonte é doação de limite no e pelo não limite (o infinito ganhando linha e costura, a imensidão ganhando universo, o caos operando cosmos, o silêncio procurando voz), não há ponto de vista sem que algo se dê a ver e ao ver nesta abertura que os contorna. Todo visto é – na memória de um espelho rosiano – somente a ponta de um mistério, uma vez que o pontual resguarda infinitos pontículos. Dito de outro modo: sob estes pontilhos a cada vez descobertos (sob a primeira e última estrela a cada vez flagradas), é o infinito que os (que as) resguarda. Circunscrevendo quem vê e o que se vê, a luz permite o acontecer do aparecimento e o aparecer do acontecimento. Mas, em uma luminosidade sem sombras, coisa alguma se veria. Diante do intolerável da máxima claridade, o obscuro concede o amanhecer da percepção. Todo dia é lusco-fusco: interstício doado pela noite e dela doador. E é dessa maneira que esta pode, aqui, ser tão romântica quanto simbolista, ou nem romântica nem simbolista no céu de Secchin; nem barroca nem parnasiana, nem moderna, nem da antiga Grécia, mas disso tudo, porque tão-somente poética: A poesia é igualmente um espaço de sombras, tentativa de perceber o escuro no escuro. Se a poesia é noturna, o poeta [...] não deixa de ser um iluminado. Mesmo que, no seu caso, se possa dizer: um iluminado de sombras(31). 31  Ibid., p. 75; 76.


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H) nas lentes de Antonio Carlos Secchin Ao localizar, na imensidão, o universo da literatura; ao focar, dentro dele, o sistema solar de uma obra; ao identificar, em meio aos planetas, a estrela rainha de um poema ou de um verso, a perspicácia com que Antonio Carlos Secchin vai sempre direto ao ponto (aos limites em que o i.menso principia para se verter numa unidade possível e passível de percepção) faz a viagem extensiva pela linha contínua ou descontínua da história literária confluir com o movimento intensivo de um texto dentro de seu próprio repouso. No interior de um ponto, dissemos: há o infinito. Porque o pontual é (o instantâneo é) a eternidade tornada, tautologicamente, instante. Para saber todos os ventos, caminhar com lentes e documentos não parece, então, descartável. No revezamento entre a objetiva dos focos e a grande-angular das panorâmicas, estas fotografias – porque grafias da luz (chamadas ora de crítica, ora de poesia ou ficção em Secchin) – sabem que toda lente é documento diante e dentro do que, monumental, tem proporção concomitantemente microscópica e astronômica. Com essa desenvoltura, Secchin desloca dada passagem feliz de um texto seu (inicialmente compreendida no todo panorâmico) e a torna legível, inteira enquanto parcial (porque agora, em foco, objetivada aforismaticamente). Conhecendo o que, por exemplo, em João Cabral, se fez ao mesmo tempo traição e tradição na poesia brasileira(32), a obra de Antonio Carlos Secchin estabelece tanto as margens do céu cabralino quanto as do seu e de qualquer outro que, em 32  Cf. “João Cabral: marcas”. Em: Poesia e desordem. Escritos sobre poesia & alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.


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uma página, se emoldure em objetivas e grande-angulares. As lentes do crítico, atando-o a um poeta, possibilita que o outrora chamado por mim de “fracasso dos olhos atados” também não se cumpra como tal no professor. Felizmente, “promessas são dúvidas”(33) e o não cumprimento do distanciamento tem chance de reverter-se na dádiva de uma proximidade contaminante: a contaminar, enquanto se contamina. A errância da análise se faz acerto na medida em que o reconhecimento da imensidão das obras lidas dá a Secchin, em sua renúncia à fria explicação, bem como no anúncio de uma calorosa implicação, as condições de uma reverência a ser também realizada por ele. Ou seja: a possibilidade de uma crítica inventiva. Face à análise poetizada de um poema, Secchin ainda se atreve a uma ficção interanalítica (incorporando, à sua aventura narrativo-dissertativa de leitor-ficcionista, personagens e enredos criados por outrem(34)) e comete uma poesia que se presta a parafrasear e parodiar seus antecessores. Para dilatá-los enquanto os delata e, não, para deletá-los(35): “Na paródia, numa relação algo incestuosa com a linguagem, o texto-matriz cintila sobre os escombros, pois, pretensiosamente aniquilado, transforma-se na grande força de legitimação do texto que o acusa”(36). Por esses atamentos se justificam não uma primeira e última estrela das e, sim, nas lentes de Antonio Carlos Secchin. Na 33  Id. Todos os ventos. Op. cit., p. 78. (Grifo meu). 34  Cf. Escritos sobre poesia & alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. (O grifo é meu.) 35  Vejam-se os poemas “É ele!”, “Cisne”, “A um poeta”, “Noite na taverna”, “Trio”, “Colóquio”, “Mulheres”, “Notícia do poeta”, “Soneto das Luzes”, “A João Cabral”, “A Fernando Pessoa”, entre outros, em Todos os ventos. Op. cit. 36  Id., ibid., p. 76.


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objetiva, sua subjetividade é o grande-ângulo, obtuso, no limite do ilimitado, do i.menso em que todos os ventos se capturam como nós de um eu aberto em arcos de cento e oitenta graus, em giros de trezentos e sessenta. Nas lentes movidas e comovidas por estes sopros ora geométricos, a precisão do olhar tremula e tal impossibilidade de mantê-lo fixo, intacto, apropria-se de si positivamente: no que ela olha para a imprecisão, se precisa além. Exatamente no segundo parágrafo, precisara-me (no) inexato: “mantendo-me impotente, aquém do que se precisa além para se reconhecer i.menso”. É aí que a debilidade se me ergue potente, em fertilidade, porque a alimentar-se do que, em Secchin, se reconhece exitoso quando a converter o hesitante em excitante. Quando levada também sua obra ao trêmulo de minhas lentes, permito que eu me ate à causa do tremor. E sinto-me firme por não dar (e para não dar) como terminado (paralisado) meu ponto de/sem vista. O êxito, afinal, é poder sempre estar de partida ao “não assinalado, / o lado além / do outro lado”(37) (com todo o risco de essa transcrição parecer, fora de seu contexto de origem, um “dia diluído, / num som sem / sentido”(38). Mas aí já terei conseguido chegar ao “vazio esvaziado”(39), e pronto: ficará o não dito pelo dito). I) que, frente a todo universo chamado Texto, sabe – como poucos – ir direto ao ponto Sem partir direto ao ponto; sem rumar às obras de Secchin para depois, aqui, arrumá-las (porque partindo 37

Ibid., p.106.

38

Ibid.

39  Ibid.


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sempre do ainda-não, e do já-não-mais), o sucesso desta desarrumação é também, como ironia, ter alcançado – sem querer, querendo – o que, no escritor, insurge nuclear: o irônico. Nos questionamentos realizados por Antonio Carlos e, agora, em torno dele, o humor do que me cria, ao criá-lo. Na lida cotidiana, quando agora o chamo – ineditamente – sem o sobrenome, A.C.S. também formal e informalmente assim se apresenta, ausentando-se: sob ironias. Para quem conhece a pessoa, e imediatamente não, bem sabe que o laconismo e a contenção de sua obra também se descrevem na discrição do ser humano que é. Pelas iniciais A.C.S., sugere-se, é claro, a ironia do que, na abreviação, pode dizer o que não é claro e quer-se sigla do contrário de pequeno. Dos restos de um dito prolixo, A.C.S. se des-apossa para apostar no oposto de seu sim, enquanto se desconfessa: sou um “Antônio antônimo de mim”(40). Se, com poucos – mas vigorosos – livros, a produção parece abreviada, sua carreira se carrega extensa. De alguma estante da Memória (biblioteca tão grande quanto a que o bibliófilo A.C.S. possui), ainda colho: “Fui alfabetizado aos cinco anos e, entusiasmado, aos seis já queria ser escritor”. Em outro corredor, lembro-me do mestre a defender que devemos escrever o mínimo possível, mas ler ao máximo. Neste sentido, abreviada não seria exatamente sua produção, mas a quantidade de publicações. Um escritor deve produzir não só palavras, mas silêncios. Entre uma rasura de rascunho e outra, a escrita não se constitui apenas do publicado, mas, sobretudo, do que segue privativo, por publicar-se. A produção 40  Ibid., p. 62.


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de infindas (re)leituras também compete a quem, desejandose artista e pensador, precisa dar lábios ao silente. Participa da carreira de um grande escritor o máximo de labor dedicado à construção do que, nele, será sempre o mínimo que pode dizer. Cabe-lhe a devoção de leitor: aquela que se nutre da bibliofilia. Nessa pista, ter-se tornado professor se justifica quando, mesmo não publicando livros, Antonio Carlos Secchin torna pública, em sala de aula, o amor e a disciplina necessários ao trato da literatura. Com isso, não pretendo que o conjunto da obra de Secchin se explique a partir de um comportamento conjuntural ou frequente de Antonio Carlos: convém-me explicá-lo a partir de sua obra, ou seja, desexplicá-lo – mantê-lo implicado naquela já famosa abertura em que, sendo impossível falar de um próximo-distante (uma vez que ele não se determina nem termina), nos resta a perplexidade do silêncio como informante mais confiável. Os versos “No compasso de minha mudez / minha nudez”(41) arrematam o poema deste homem “no princípio do precipício”(42). A produzir soberanamente o silêncio que, a um só tempo, afasta uma pessoa de nós e a confunde conosco, A.C.S. – por ele mesmo – passa a ser, de si, em si, um texto no qual o poético depõe seu jogo: tanto mais se dá ao sentido quanto mais se retrai. A.C.S. é a personificação e a performatização deste trânsito do que vem a ser deixando de ser, e vice-versa, e vide o verso. Da varanda para o atlântico de Copacabana, ele se reflete – se espelha, se especula – nos fogos de artifício. Daquele céu em véspera de página, os lampejos 41  Ibid., p. 109. 42  Ibid.


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se lhe presenteiam como primeira e penúltima estrela do si-mesmo. A poesia, eis isto: um réveillon de Copacabana, em que a noite se desenha transe do estampido das luzes que chegam partindo, e partem chegando, repartindo-se em meio à inteireza, ao uno-múltiplo, ao que é único (irrepetível) no espetáculo. A poesia: quando, na explosão dos fogos, o luminoso nasce de sua própria morte e o silêncio liberta o som entre o ruído e a sinfonia. Na fugacidade do ínterim da partida e da chegada, em que vida reluz i.mensa, o inesquecível se ousa nos clarões do apagamento: a eternidade irrompe da abreviação. Em minha única, breve e eterna visita a um dos lares onde A.C.S. viveu rente à queima do foguetório, ele me disse – com outras palavras, de que não me recordo – amar Copacabana ao modo de um flâneur quase platônico. Como se lhe agradasse a sensação paradoxal de estar bem perto, dentro do bairro, e imediatamente à distância, de fora; no centro e à margem da feitiçaria que mistura idosos aposentados com jovens prostitutas trabalhadeiras, tradição & traição, Nossa Senhora de Copacabana e suas senhoritas, por vezes travestidas, travestis tirando leite das pedras e das pernas, tirando pérolas (moedas) do leite. Outrossim, como se lhe agradasse a sensação paradoxal de estar bem perto dos jovens escritores que aplaude, e imediatamente à distância, de fora, porque junto aos consagrados; no centro e à margem das academias, a misturar os anciões da Brasileira de Letras com os ansiosos da universitária. Diante deste homem que me dava a sempre primeira sem última palavra-estrela de incentivo, também o


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via próximo e distante, fora e dentro de mim, tão acessível quanto o inacessível de uma obra de arte. E não me iludo se me encanta: “mudo, é dexistência do profundo – e é tudo”(43). Se pouco publica, A.C.S. menos ainda se publica, para que a poética do humano perpetue ao resguardar-se no instante em que se mostra: “o que eu calo e o que não digo / atropelam meu percurso / [...] / e me deponho, inverso, / no subsolo do discurso”(44). Objetivo quando fala, mas permitindo – na contenção – não se esgotar em objetividade alguma que, porventura, lhe imponhamos, nada sobra em seu – não dito. Tudo é a presença absoluta de quem não quer perder tempo e ganha sua temporalidade própria, a vez de sua voz, sem que precise ter voz todas as vezes. Em A.C.S., tudo é a presença absorvente de quem também não possui espaços a perder e, assim, contraindo-os no lugar que inaugura e em que se inaugura, não relaxa frente aos relógios da vida, do verbo e dos pronomes oblíquos: “Encaminho-lhos”, eis a poética da contração levada ao máximo nos e-mails mínimos que me escreve com milimétrico cuidado. Diante de um capital humano volátil na bolsa de valores das convivências, sua economia verbal não é sintoma de avareza, nem efeito de pobreza nenhuma; da falta de ter o que dizer, ou de querer dizer. O econômico é causa da fartura do que diz. O economista zela pela eficiência, pelo bom rendimento do dito. Não pela inflação do mal dito.

43  Ibid., p. 118. 44

Ibid., p. 111.


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N) ao núcleo de irradiação disto que, a iluminá-lo, também por ele se ilumina. No calçadão de Copacabana, é desde o forte de Secchin que caminho ao Leme de alguma praia literária que me orle. Que a força de alguém é tão maior quanto, de longe, se mostra capaz de perpetuar na imediação de um corpo. A.C.S. não só reconhece a semente de uma estrela quando o céu de um jovem poeta o procura. Ele, como professor e sentinela da poesia, cuida de regar o grão passível de frutos, porque entende que a literatura vive de intermináveis réveillons – de promessas de novas luzes, novos escritores. A despeito das celebridades que só se pronunciam quando o assédio rende ribalta, A.C.S. nunca deixa sem palavra, sem retorno, um aspirante a poeta que lhe envie originais, tampouco um antigo escritor que tenha lançado mais um livro. A atenção ou interesse dispensado a quem lhe escreva atesta que economia verbal também não significa emprestar à palavra um olhar blasé. Criterioso ao responder com o estritamente necessário, ele concorda que é também estritamente necessário responder. Mesmo tantas vezes assinando as mensagens com a eloquência cômica e lacônica de um simples “S.”, tão sóbrio quanto um sol soberano em sua e de sua solidão. Muito antes de aluno da oficina que me recomendou não fazer; antes de tornar-me colega-professor; mais tarde, o amigo com quem trocaria figurinhas (de linguagem); antes de convidado a revisar publicações de sua responsabilidade; antes de indicado por ele como resenhista, fui – na verdade, sou – aquele menino que o pôs (talvez, ainda o ponha) debaixo de sete mil tijolos. Desde que escreveu na orelha de Sete mil


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tijolos e uma parede inacabada, livro em que – aos 22 anos – eu me queria obreiro do verso, Antonio Carlos Secchin nunca mais se abreviou em meus ouvidos. Tampouco em minha fala, a dar-lhe crédito sempre que possível. Pessoalmente apresentados um ao outro só depois de mutuamente lidos e admirados como escritores, o primeiro encontro (digamos assim, “fisionômico”) se deu em 2004, no evento de posse na Academia Brasileira de Letras – o que significa que, diante de mim, Antonio Carlos Secchin nasceu, espantosamente, já imortal.


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A Secchin João Pedro Fagerlande(1)

que secura? haveria alguma? Secchin seria só o solidário semblante assinalando sílabas suaves sabedouras solícitas num assim sereno ofício que saudamos e secchimos

1  Mestrando em Literatura Brasileira (UFRJ) e poeta.


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A trajetória de um escritor e de um amigo José Maurício Gomes de Almeida(1) Convidado por Flávia Amparo e Gilberto Araújo para participar de um livro em homenagem a Antonio Carlos Secchin, vi-me mergulhado em dúvidas e hesitações: a quem homenagear, ao amigo de mais de trinta anos ou ao professor e intelectual, cuja carreira acompanhei de perto? Talvez a melhor opção seja a de combinar as duas linhas, que na verdade muito se misturam. Conheci Secchin nos idos de 1970, na Faculdade de Letras da Av. Chile, onde ambos nos formamos e fizemos juntos a Pós-graduação, sob a orientação do saudoso Prof. Afrânio Coutinho. Apesar do contexto político atribulado, era uma época de entusiasmo pelas letras, quando se afirmava toda uma nova geração de escritores, poetas e ficcionistas, e a própria música popular invadia o espaço universitário, galvanizando o ânimo dos estudantes. A amizade construída ao longo dos cursos de formação desdobrou-se e acentuou-se na prática docente, pois, a convite de Afrânio Coutinho, passamos ambos a integrar a equipe de professores de Literatura Brasileira, numa fase particularmente dinâmica dos estudos literários na Faculdade de Letras da UFRJ. Nosso roteiro intelectual assumiu, porém, desde os primórdios, direções divergentes: enquanto eu me voltava para o campo da narrativa, onde me mantive ao longo de toda a carreira, Secchin, um apaixonado pela poesia, vai 1  Crítico literário, ensaísta e professor de Literatura Brasileira da UFRJ.


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a ela dedicar o melhor de sua capacidade intelectual, como professor, como ensaísta e como criador de uma obra poética despojada e altamente expressiva. Na verdade, é como poeta que Secchin estreia nas letras, ainda estudante, em 1973, com Ária de estação. Desde esta época a poesia marca sua trajetória, em todos os campos. Assim, tanto a dissertação de Mestrado, como a tese de Doutoramento constituem um exame aprofundado da obra de um poeta, João Cabral de Melo Neto. A integração destes dois trabalhos vai-se transformar no livro inaugural de sua carreira como ensaísta – João Cabral: a poesia do menos (1985), livro que permanece até hoje uma referência obrigatória nos estudos cabralinos. Daí para frente, Secchin afirma-se cada vez mais fortemente tanto como poeta, como na qualidade de um dos críticos mais argutos e sensíveis da poesia brasileira. Crítico este que, voltando as costas às modas efêmeras, procurou sempre resgatar o que de melhor havia na tradição lírica do país, mesmo em se tratando de poetas pouco celebrados ou rejeitados pelas vanguardas do momento. Não caberia aqui registrar todos os passos do percurso literário de Antonio Carlos Secchin; vale apenas destacar, para aqueles que buscam encontrar o poeta em sua essência mais acabada, Todos os ventos (2002), suma depurada de sua criação poética. A obra do crítico, por sua vez, desdobrase em vários volumes, mas que poderiam, no conjunto, ser enfaixados sob o expressivo título que designa o último publicado: Memórias de um leitor de poesia (2010), pois é como um leitor privilegiado da poesia brasileira que Secchin se destaca no ensaísmo literário contemporâneo.


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Se tivesse que apontar, na produção do autor, um traço dominante, não hesitaria em salientar o culto da palavra, que faz com que, mesmo no ensaísmo crítico, seu texto vibre com uma ressonância especial que atenua a severidade própria do discurso analítico e o faz aproximar-se da criação poética. “Penetra surdamente no reino das palavras”, aconselha Drummond aos que procuram a poesia. Ora, Secchin busca sempre, em todos os seus escritos, seguir esta máxima sábia, mas difícil. Daí porque seus textos, sem fugir à clareza expositiva, evitem o linguajar rebarbativo, recheado de eruditismos pedregosos, em que se comprazem tantos cultores da crítica literária dita “científica”. Ao contrário destes, Secchin sabe que a beleza e a fluência da linguagem em nada prejudicam à agudeza da análise desenvolvida. Além do poeta e do crítico, desejo também ressaltar a militância do professor dedicado, que vai ao encontro das necessidades efetivas dos alunos, sendo, por isso mesmo, por eles solicitado e prestigiado. Num momento em que as Letras vivem uma crise inequívoca, quando a hegemonia tecnológica tende a descartar como luxo dispensável tudo o que não se atém aos seus domínios, o ensino da literatura tornou-se um desafio: não basta transmitir saber, é necessário mostrar aos alunos o valor único e insubstituível da experiência literária como fonte preciosa de humanismo, sem o qual nenhuma cultura é digna deste nome. Respondendo a esse desafio, Secchin, focando sempre suas aulas na análise sensível e minuciosa dos textos, procura levar os alunos à descoberta do potencial de riqueza que a poesia e a literatura, em seu sentido mais amplo, podem trazer à nossa experiência estética e existencial. * * *


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No início deste trabalho, referindo-me à relação sempre próxima que existiu entre as nossas carreiras universitárias, ressaltei, contudo, que a diversidade de gostos (ou de personalidades...) levou-nos a optar por campos diferentes: a ficção, no meu caso, e a poesia, no de Secchin. Todavia, se, ao invés de focarmos a atenção na diversidade das províncias literárias elegidas, privilegiarmos o aspecto temático, certas afinidades logo se fazem sentir. É fácil entender: alguns aspectos da realidade parecem sensibilizar particularmente determinadas pessoas – sejam estas criadores ou simples leitores –, fazendo-as mais receptivas àquela ordem de problemas. Destaco neste caso um velho tema que me é particularmente caro – o tempo –, de longa tradição na literatura, e cujo poder corrosivo e dissolvente sobre a vida já o nosso Machado de Assis tantas vezes abordara em sua obra. Pois bem, o tempo fornece matéria para alguns dos textos mais expressivos de Secchin. Nesta ótica seleciono um poema de Todos os ventos, da série “Dez sonetos da circunstância”, que tive a satisfação de ver dedicado à minha pessoa (talvez pelo fato de o poeta conhecer a relevância que tem para mim a ideia do tempo, tanto como motivo de criação literária, como de cogitações existenciais...). Eis o texto: “De chumbo eram somente dez soldados” De chumbo eram somente dez soldados, plantados entre a Pérsia e o sono fundo, e com certeza o espaço dessa mesa era maior que o diâmetro do mundo.


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Aconchego de montanhas matutinas com degraus desenhados pelo vento, mas na lisa planície da alegria corre o rio feroz do esquecimento. Meninos e manhãs, densas lembranças que o tempo contamina até o osso, fazendo da memória um balde cego vazando no negrume do meu poço. Pouco a pouco vão sendo derrubados as manhãs, os meninos e os soldados. Rememorando a infância perdida, Secchin concebe a imagem, ao mesmo tempo realista e alegórica, dos soldados que o menino arruma sobre o espaço de uma mesa, espaço que o imaginário poético da criança transfigura num universo ilimitado de encantamento e poesia. Mas o aconchego presente nesse alvorecer da vida, que se espraia na “lisa planície da alegria”, metaforizada no espaço infinito daquela mesa, só podia prevalecer em sua pureza porque o menino desconhecia o rio insidioso e feroz do tempo que atravessava, desapercebido, a paisagem de sua infância. O soneto representa, por parte do poeta adulto e já sem ilusões, uma contemplação nostálgica daquele momento de inocência, daquelas “densas lembranças” que o tempo, inexorável, contaminou, deixando em troca apenas o negrume de um poço. Assim,


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Pouco a pouco vão sendo derrubados as manhãs, os meninos e os soldados.

O motivo do tempo corrosivo perpassa por vários dos “sonetos da circunstância”, onde as manhãs serenas da vida parecem já trazer em si a semente do desengano que lhes reservam as “tardes traiçoeiras”:

Repara como a tarde é traiçoeira: dentro dela se abriga o desengano desse dia que acabou sendo somente um resto de boneco, arame e pano. (“Repara como a tarde é traiçoeira”)

Tais “sonetos da circunstância”, de resto, pouco têm de obra de circunstância, pois desenvolvem uma ordem de ideias que transcende de muito qualquer elemento fortuito ou passageiro. O olhar desencantado daquele que já alcançou a madureza, a “terrível prenda” a que se refere Drummond em um poema magistral de Claro enigma (“A ingaia ciência”), vai aos poucos desfazendo as ilusões da vida, mostrando-a sob uma luz crua que destrói “o sonho da existência”. A perspectiva de Secchin não chega ao pessimismo do texto de Drummond, mas a consciência do tempo “de tocaia em cada corpo”, bordando “com seu fio mais delgado” nossa imagem passada e transmutando sem cessar o rosto do menino que algum dia fomos (“O menino se admira”), não deixa espaço para uma visão eufórica e ingênua. Neste sentido, o motivo da fotografia como instrumento de reflexão sobre as mutações que o tempo vai imprimindo em nossas


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existências assume um lugar destacado no imaginário poético de Secchin, como se pode constatar em “Estou ali...”, uma das realizações mais acabadas dos “sonetos da circunstância”: “Estou ali...”

Estou ali, quem sabe eu seja apenas a foto de um garoto que morreu. No espaço entre o sorriso e o sapato há um corpo que bem pode ser o meu.

Ou talvez seja eu o seu espelho, e o olhar reflete em mim algum passado: o cheiro das goiabas na fruteira, o murmúrio das águas no telhado.

No retrato outra imagem se condensa: percebo que apesar de quase gêmeos nós dois somos somente a chama inútil

contra a sombra da noite que nos trai. Das mãos dele recolho o que me resta. Eu o chamo de filho – e é meu pai.

Na contemplação de uma fotografia que traz à lembrança o passado distante, o eu atual busca em vão reencontrar-se naquele “garoto que morreu” – talvez pela evocação pungente de sensações que, apesar da ação impiedosa do tempo, ainda persistem na lembrança:


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o cheiro das goiabas na fruteira, o murmúrio das águas no telhado.

A tentativa de identificação se revela, porém, frustrada, pois os dois eus, “apesar de quase gêmeos”, nada podem contra “a sombra da noite” que se estabelece dominante, deixando subsistir apenas, daquele menino antigo, uma herança fugidia no poeta em que hoje ele se transformou:

Das mãos dele recolho o que me resta. Eu o chamo de filho – e é meu pai. *

*

*

Partindo de um depoimento sobre o percurso intelectual de Antonio Carlos Secchin e sobre as relações de amizade por nós desenvolvidas à sombra da antiga Faculdade de Letras da Av. Chile, acabei desaguando na obra do poeta, e comentei, a propósito, o tratamento modelar que ele empresta à temática do tempo e suas implicações na trajetória existencial do ser humano, como fator permanente de desgaste e metamorfose. Contudo, se o fluir incessante das horas vai tudo transformando e levando de roldão, alguns sentimentos conseguem, por vezes, escapar à terrível correnteza e até crescer, burlando a vigilância do velho Cronos: é o caso da amizade que, quando bem fundada, logra superar os redemoinhos que marcam a trajetória do ser, e sair, ao final, fortalecida e renovada. Conosco assim sucedeu, e tenho hoje o duplo prazer de celebrar o sucesso de um grande amigo e de um notável poeta


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e ensaísta. Que o escritor continue a sua carreira literåria, produzindo novos frutos para os seus leitores, e que a amizade permaneça viva, intensificando sempre o sentido fraterno de que hoje ela se reveste.


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Retrato rápido de Antonio Carlos Secchin Marlene de Castro Correia(1) Alunos e ex-alunos de Antonio Carlos Secchin pedem-me um depoimento sobre a “trajetória” de seu admirado Mestre, o qual, para alegria minha, foi meu aluno – dos mais instigantes e brilhantes – nos idos de 70. Os feitos e glórias de Antonio Carlos são de domínio público: estão ao alcance de todas as várias coletâneas de poemas de sua autoria e os seus diversos volumes de crítica literária, voltados particularmente para o estudo da poesia brasileira, e que se distinguem, de imediato, por dois aspectos complementares: a invejável versatilidade, que atesta a sedução do autor pelo exercício da palavra poética em sua multiplicidade de formas e estilos, e que testemunha ainda sua libertação de pré-conceitos – fatos estes que o levam a congregar, em abraço generoso e acolhedor, estrelas de diferente grandeza; ao mesmo tempo, no entanto, como Brás Cubas, Secchin tem as suas ideias fixas... Exemplo? A obsessão amorosa pela obra de João Cabral de Melo Neto, matéria constante e penetrantemente submetida à faca só lâmina do exímio anatomista da linguagem poética que é o nosso Antonio Carlos. Todos lucramos com essa dupla feição dos ensaios do nosso homenageado: a poesia brasileira, que, assim revisitada, tem seus autores reavaliados e redimensionados por uma consciência crítica que não se deixa contagiar por modismos nem intimidar pela opinião dominante, aqui e ali navegando 1  Professora aposentada da UFRJ, crítica literária e importante estudiosa da obra do poeta Carlos Drummond de Andrade.


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lúcida contra a corrente. E aos alunos-leitores, essa lição de liberdade intelectual lhes serve de alerta contra o comodismo das ideias feitas. Em meu depoimento, no entanto, não quero aludir somente às qualidades intelectuais de Antonio Carlos, visíveis em seus escritos e apreensíveis em seu status de Professor Titular da UFRJ e de membro da Academia Brasileira de Letras. A par desses méritos de conhecimento público, quero referir-me aqui e agora a alguns aspectos de sua personalidade que talvez escapem a quem o conhece apenas através da palavra escrita e de sua atuação pública. Merecem igualmente atenção e admiração as atitudes de Antonio Carlos como pessoa, no dia a dia de seu convívio com aqueles que lhe estão mais próximos. Nesse círculo mais restrito e privado, ressaltam em seu comportamento o estímulo caloroso e o aplauso entusiástico às conquistas de colegas e amigos. Ele vibra com o sucesso de quem o cerca. Ora é o cumprimento veemente após a conferência da antiga professora: “é o melhor texto que você já escreveu!”; ora é o ultimato carinhoso mas peremptório: “trate de publicar logo este trabalho, não espere mais!” Sempre atento às preferências e amores literários de seus companheiros, quando coordena em ciclo de palestras no CCBB ou na ABL, Secchin os convoca – mais, ele os intima – a compartilhar o seu saber e paixão com um público mais amplo e diversificado. O perfil de Antonio Carlos Secchin – como pessoa e intelectual de sete faces que é – desborda deste esboço de retrato rápido... Rápido, mas que não se quer por demais incompleto, e por isso põe em foco um dos traços mais cativantes da personalidade de nosso retratado: o fino


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sentido de humor, que se mostra em ensaios, aulas, batepapos, e que faz da convivência com o nosso amigo uma festa para o espírito. Acrescentem-se o entusiasmo pelo que faz, a vibração e paixão, o élan vital e compreende-se que seja um prazer e um privilégio privar da companhia e afeto de Antonio Carlos Secchin.


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O bibliófilo Secchin Ubiratan Machado(1) Conheci Antonio Carlos Secchin no lugar mais adequado para o encontro de dois amigos do livro, entre prateleiras repletas de obras raras, muitas delas com belas encadernações dos séculos XVIII e XIX. Foi na sala de Margarete Cardoso, na antiga livraria Kosmos, onde o visitante era saudado na entrada por um daqueles sininhos cujo som, segundo as crenças orientais, tem o dom de espantar os espíritos maléficos e atrair os bons fluidos. Deve ser verdade, pois todas as tardes para ali acorriam, em busca de alguma coisa paradisíaca, intelectuais, escritores e bibliófilos, assanhados e felizes como estudantes que saem da escola. Não me lembro o ano preciso, final da década de 1980 ou início dos anos 90. E muito menos do breve diálogo que travamos, mas desconfio (desconfiança com absoluta certeza) de que tenha sido a respeito de livros. A partir daí, nossos caminhos se cruzaram em diversos encontros em livrarias, na garimpagem das pepitas literárias. Da afinidade de interesses, da paixão comum pela literatura, em especial a brasileira, surgiu a curiosidade em saber se o outro possuía tal ou qual obra e a dimensão de sua biblioteca. Essa bisbilhotice foi satisfeita com a visita de Secchin à minha caótica coleção de livros e a visita de retribuição que fiz à sua clara e ordenada biblioteca, uma das mais completas e bem selecionadas de literatura brasileira, com destaque para a parte de poesia. Assim, aos poucos, através do contato pessoal 1  É bibliófilo, ensaísta e um dos maiores estudiosos da obra de Machado de Assis.


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e por informações de terceiros, fui tomando conhecimento da personalidade e das múltiplas atividades do professor, conferencista, poeta, crítico e bibliófilo Antonio Carlos Secchin. Das mais reveladoras foi a conversa que tive com um rapaz, cujo nome não guardei, na livraria Brasileira, no edifício Avenida Central. Contou-me ele que estudava física, ou química, quando, a convite de um amigo, foi assistir a uma conferência de Secchin sobre determinado autor ou tema de literatura, arte pela qual se interessava, mas de maneira vaga e imprecisa. À exposição sedutora e elegante do conferencista, sentiu, lá no fundo do estômago, aquele friozinho que indica o início irremediável de uma paixão de toda a vida. O que era vago e impreciso se tornou claro e exato. Resultado: trocou o curso de física, ou química, pelo de literatura. A historinha serve, também, para realçar o principal aspecto da atividade intelectual de Secchin. Antes e acima de tudo, ele é um professor, apesar de sua fala ou escrita passarem a milhares de quilômetros do famoso espírito professoral. Em determinado romance, não sei mais de quem, um personagem, irritado com a retórica cansativa de seu interlocutor, desabafa: “Cala-te, falas como um professor alemão!”. Secchin é o oposto do professor alemão. Na linguagem oral ou escrita, não há resquício de preciosismos ou afetação. Tudo é simples e claro, ordenado numa linguagem cheia de graça e harmonia, mas sempre com uma rigorosa linha didática. O professor traça o roteiro lógico, o artista suaviza-o, para tornar a caminhada do leitor, ou ouvinte, atraente e sedutora. Essa fusão harmoniosa do professor e do artista revela-se também no crítico de poesia,


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um dos melhores e, por certo, o mais equilibrado em atividade no país, e até na paixão bibliofílica. João Ribeiro ensinava que as palavras têm franjas. Traduzem sempre um pouco mais do significado principal. Distorcendo a observação do mestre, podemos levá-la do campo filológico para o psicológico. Aí, ela se estica em muitas e longas franjas. Cuidado, que elas podem se embaralhar em suas pernas, desavisado leitor. Vamos evitar quedas e nos deter, apenas, nos extremos de um tipo: o bibliófilo. Numa ponta, aquele cujo coração secou como uma folha de papel, disposto a tudo, até a um ato de loucura, no delírio pela posse de um livro raro. Na outra, o bibliófilo capaz de gestos humanos, cuja paixão pelo livro, mesmo sendo absorvente, não lhe embotou a sensibilidade. Os dois extremos encontram-se representados belamente na literatura francesa, em um conto de Gustave Flaubert e em um romance de Anatole France. O conto de Flaubert, intitulado “Bibliomania”, é a história de um bibliófilo, cuja paixão desenfreada o levou à classe dos bibliômanos. O ex-monge Giácomo toma conhecimento do leilão do mais velho livro impresso na Espanha, uma Bíblia latina, com comentários gregos. Exemplar único, o que o leva ao delírio. Arrisca todo o dinheiro que conseguira com a venda de um manuscrito, mas a peça acaba adquirida pelo seu maior inimigo, Baptisto, cuja casa, naquela noite, sofre um incêndio. Giácomo não hesita. Através de uma escada, colocada sob a janela, penetra no prédio em chamas, conseguindo roubar a Bíblia. Tempos depois, acusado de atear o incêndio para roubar aquele livro único, vai a julgamento. O advogado de defesa procura fragilizar a acusação, exibindo outro exemplar


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da Bíblia. Condenado à morte, apesar de inocente, o bibliófilo só se preocupa com a sua paixão bibliofílica. Retirando o livro das mãos do advogado, rasga-o e, num grito de vitória, desafia: “O senhor mentiu. O meu era o único exemplar existente na Espanha”. O crime de Sylvestre Bonnard, romance de estreia de Anatole France, encantou os contemporâneos com seu ceticismo risonho e sua ironia zombeteira. Nele, o autor, bibliófilo requintado e apaixonado, trata deste tema de sua preferência, a bibliofilia, através da pequena odisseia de um velho professor. Num impulso de generosidade, ele rapta uma jovem, maltratada pelos seus responsáveis, para que ela se case com o amado. E ainda sacrifica a sua biblioteca, para formar o dote da moça. Mas, num instante de fraqueza, “rouba” um livro querido da coleção. Sem se importar com o rapto, crime definido em lei, só sente remorso pelo roubo do livro, para ele o único crime na vida honrada e estudiosa de Sylvestre Bonnard. O bibliófilo Secchin não está em nenhum desses extremos. Não rasgaria um livro, para ficar com o exemplar único, e duvido muito que se desfaça de seu livro mais amado, seja qual for o motivo. A sua bibliofilia foge dos extremos e repousa naquela zona remansosa, onde a paixão do colecionador se integra com o amor pelo estudo, sem os impulsos do Giácomo, do conto de Flaubert, ou do Sylvestre Bonnard. Bibliófilo, mas também leitor constante e atento. Sua biblioteca nunca poderia ser ironizada, como a daquele colecionador português, cardeal da Cunha, possuidor de onze mil volumes, chamados de “as onze mil virgens”. Mas, como todo apaixonado, por livros, por


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quadros ou por mulheres, por vezes ele sofre cruelmente até a conquista de seu objeto de desejo. Nestes momentos, mostra-se ansioso, sua expressão muda. Quer porque quer o livro e não admite perdê-lo. Com essa obstinação, capaz de pequenas, médias e, acredito, grandes loucuras monetárias, Secchin foi formando a sua rica biblioteca. Muitas vezes, ajudado pelos deuses da bibliofilia. O que significa encontrar um livro raro entre centenas de exemplares de pouco valor, a preço nem sequer de banana ouro ou maçã, mas da mais barata banana prata. Também a sua atividade como conferencista e participante de mesas universitárias, em vários estados e no exterior, nos tempos préestante virtual, foi um precioso auxiliar na formação de sua biblioteca. Naqueles longínquos dias, há cinco ou seis anos, um livro raro podia permanecer anos enterrado na prateleira de uma pequena livraria qualquer do Tocantins ou do Paraná, à espera do visitante de um estado longínquo, que o viesse desenterrar. Com o comércio virtual, essa descoberta se tornou cada vez mais difícil. Todos os livros à venda no país estão caindo nos sítios comerciais da internet, o que significa o fim das surpresas em livrarias e o aumento acentuado dos preços. Livros antigos. Não importa se raros. Basta ser velho, para que o vendedor virtual o eleve à categoria de preciosidade. Bem, o que eu quero dizer é que, em suas viagens, Secchin nunca deixa de visitar as livrarias. E sempre volta para casa com uma obra que, pode não ser rara, no conceito clássico da palavra, mas é difícil, e que vai alegrar o colecionador e enriquecer a sua magnífica coleção.


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Nunca é demais lembrar que colecionar livros se distingue em espírito e sensação de outras coleções. O colecionador de porcelanas satisfaz a sua busca pela beleza e o seu sensualismo visual ao adquirir uma peça e expô-la em local adequado. Pode até organizar uma biblioteca de estudo sobre o assunto, mas o principal é a visão do objeto. A relação com o livro vai muito além, é intelectual, inquietadora, provocativa. E sensual. Pedro II dizia amar os livros com os cinco sentidos. E claro, um certo sensualismo, palavra que o imperador talvez evitasse empregar, por pudor ou inconveniência, para a época. Desconfio que Secchin pode dizer o mesmo. A desconfiança se torna quase certeza, quando o vemos apresentando sua biblioteca ao visitante, de maneira didática, de acordo com sua vocação de professor, mas também com o sensualismo e o zelo indisfarçável de um amante ciumento. Pega nos livros com o cuidado de quem segura um recém-nascido. Agora, já podemos entrar em sua biblioteca, ordenada, com a paciência de um monge, em sequência cronológica: das origens da literatura brasileira, percorrendo todo o período colonial, atravessando os autores românticos, naturalistas, simbolistas, modernistas, contemporâneos, boa parte, se não a maioria, em primeiras edições ou edições de época, até os volumes de crítica e estudos literários, fim de nosso passeio. São cerca de doze mil volumes, muitos deles autografados, raros, raríssimos, difíceis ou apenas comuns, mas indispensáveis ao estudo: obras de referência, dicionários, antologias. A eles juntam-se manuscritos originais, exemplares únicos, capazes de levar ao infarto um bibliófilo invejoso. Todos eles alinhados nas prateleiras como soldados prontos ao bom combate:


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entreter, elevar a alma, reciclar e/ou enriquecer conhecimentos, auxiliares na tentativa vã de entender o incompreensível mundo em que vivemos. Senhores e servos do suave prazer do estudo e da grande arte de colecionar livros, arte exigente, que queima como chama infernal, mas que abre as portas do mais gratificante dos paraísos da vida, os paraísos de papel. Tudo o mais é retórica.


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As duas faces de Janus Cláudio Murilo Leal(1) Autor de vários livros de poesia, que se esgotaram rapidamente, Antonio Carlos Secchin, com 50 poemas escolhidos pelo autor, publicado em 2006, pela editora Galo Branco, oferece um quadro subjetivo de suas indagações existenciais e revela total maestria no manejo da carpintaria poética. A poesia de Secchin se manifesta, nesta antologia pessoal, principalmente sob a inspiração do diálogo. Conversa que trava consigo mesmo, com o seu passado, quando revê o menino que se distancia cada vez mais no tempo e se torna memória. No resgate propiciado pela poesia, busca reconquistar a felicidade edênica dos dourados dias da infância, os alumbramentos da inocência. Esse diálogo introspectivo e silencioso, na verdade um monólogo interior, banhado por suave nostalgia, verbaliza-se em versos como: “vendo ver-se no menino do retrato,” uma síntese saudosista confessada no comovente soneto “O menino se admira”, que vale a pena lê-lo integralmente. A segunda retomada do diálogo não se dá no âmbito da biografia, mas no da intertextualidade literária. Crítico, professor universitário, acadêmico, Antonio Carlos Secchin mantém em seus poemas uma constante interação com os autores do passado e com a tradição da cultura universal, não de forma caótica e fragmentada, ao estilo de um Ezra Pound, 1  Poeta, professor da UFRJ, autor do livro Módulos, dentre outros.


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mas consistente e articulada. Muitas vezes recorre o poeta ao expediente do humor para evitar qualquer contaminação com o eruditismo pedante e inadequado. Ao evitar a modernosa vertente barroca, Secchin transmite em muitos de seus melhores versos uma sensação de naturalidade e despojamento verbal. Mas simplicidade não se confunde com o poema simplório, infenso aos conhecimentos sempre renovados das sutilezas da Arte. A linguagem poética de Secchin não está congelada em um único estilo e oferece roteiros dicotômicos. Os “Sonetos com aspas”, identificáveis pelos títulos que repetem os primeiros versos, e que em seu livro Todos os ventos estão reunidos como “Dez sonetos da circunstância,” são exemplos de um tratamento culto dado à linguagem, vazada em ressonâncias castiças, sermo nobilis, que se caracteriza pela elevação do tom da dicção poética, próxima dos cânones estéticos do classicismo, da arte pela arte simbolista. No Brasil, a moderna poesia culta é também encontrada no engajamento na tradição literária, que marcou os poemas de Mário Faustino, em O homem e sua hora, e pela poesia de entonações elegíacas de Ivan Junqueira, poetas cronologicamente posteriores à da chamada Geração de 45. É interessante observar que Secchin trafega também com desenvoltura pela via do verso impregnado de humor, construído através das analogias entre a inteligência e a fina sensibilidade poética. São poemas impregnados do chamado wit, uma aliança entre conceito e metáfora, isto é, razão e poesia. Pope, Dryden, Donne e outros poetas metafísicos ingleses usaram e abusaram do wit, que pode ser entendido


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como uma festa da inteligência poética. Com Antonio Carlos Secchin, o wit se manifesta sob espécie da paráfrase ou de secretas alusões, captadas apenas pelos iniciados e, ainda, produzindo uma orgânica reciclagem do passado, recursos estes de que a pós-modernidade lançou mão para criar uma literatura que se apresentasse como nova, mas que, ao mesmo tempo, conservasse os ecos da tradição. Mais refinada do que a piada antropofágica modernista (que também aparece discretamente em “Notícia do poeta,”) essa linha alternativa dos poemas de Secchin, nuançada por um leve tom paródico, produz um outro diálogo, desta vez com a história literária, adoçando a solenidade do verso parnasiano, por exemplo, naquele ar brincalhão que perpassa “Trio”, soneto que descobre a cômica predestinação dos poetas-ícones do Parnasianismo a se desmaterializarem em verso alexandrino: Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, Antônio Mariano Alberto de Oliveira e Raimundo da Mota de Azevedo Correia são dodecassílabos que não envergonhariam qualquer tratado de versificação de Guimarães Passos ou de Antônio Feliciano de Castilho. A intenção do poeta ao satirizar o vocabulário pedante professoral em “Linguagens” – hipálage, enálage, anáfora, aférese – e quejandas abstrusidades, ou na escolha de algumas personagens femininas ficcionais ou reais da nossa literatura, em “Mulheres”, a intenção e o trabalho do poeta se concentram em iluminar, criticamente, o palco de um mundo literário carnavalizado. Outros poemas, sem links literários, revelam um diverso tipo de humor, que o poeta rastreia no cotidiano urbano carioca, fonte de certeira inspiração hilária. “Sagitário”, interface com o discurso astrológico, “Repente,” o lugar comum


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recriado pelo milagre da poesia. Mas nem tudo é sorriso de poeta que olha o mundo com o cético humor machadiano. A poesia de Antonio Carlos Secchin se inscreve sob a égide mitológica de Janus, representada por suas duas faces. Ao lado dos poemas de alegria convivem poemas de angústia, solidão e sofrimento. Nestas horas dolorosas, o poeta luta para que a linguagem não sucumba à prolixidade que assedia, em geral, os poemas de fundo confessional. Nestes momentos, a técnica do poeta cumpre o papel de mediadora entre o subjetivo e o objetivo, orientando o enxugamento dos excessos líricos, transformando o sofrimento em arte, a vivência pessoal em sentimento universal. Este outro viés da obra poética de Secchin está consubstanciado em seus poemas graves e meditativos. Muitos deles recorrem à linguagem labiríntica dos hermetismos para que o eu-lírico não se submeta à aridez do discurso denotativo da comunicação social. É exemplo a linguagem cifrada do obscuro soneto que começa: “Vingo a velhice dos verões / desmoronados, planície rigorosa / que desmente o labirinto. / Se falo, minto, e o calendário dessa hora / me faz deserto, em que viver não me demora. / Álgebra das aves em clara correnteza, / ensina a teu cantor tua clareza./ Estreita tua trilha à minha história, / me emudece para o jogo desse dia, / resgata em prosa o que eu perco em poesia”. Não sendo um poeta bissexto, Antonio Carlos Secchin se mostra parco em publicar e extremamente criterioso em selecionar seus poemas. Como Dante Milano, Mallarmé e Valéry, a quantidade não atrai o poeta, mas sim a qualidade, que se resguarda na redoma de uma poesia contida e rara. Secchin pertence à família dos little few, econômico na linguagem


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(como João Cabral) e na produção (como Augusto dos Anjos). Uma poesia ora subjetiva, ora voltada para a redescoberta da literatura, mas sempre submetida à indagação sobre as questões da vida e do mundo. “Poema do infante” sintetiza essa dialética entre o Ser e o Mundo, cosmovisão poética que procura explicar o complexo universo em que vivemos:

É a noite. E tudo escava tudo na língua ambígua que desliza para o esquivo jogo. Amargo corpo, que de mim a mim se furta, não recuso teu percurso no hálito das pedras que me existem em ti – estéril dorso entre águas estancadas. O nada, o perto, o pouco, não posso dividir do que se espera o que me habita, ao fazer fluir a via antiga de um menino que mediu o lado impuro. Operário do precário, me limito nesse corpo amanhecido, asa e gozo onde a morte mora. Minha vida, mapeada e descumprida, está pronta para o preço dessa hora.


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Vai escrever, Antonio! Dau Bastos(1) Na Bienal de 2000, eu estava no estande da EdUERJ, da qual fazia a supervisão editorial, quando vi surgir um homem um tanto esbaforido, lançando olhares rápidos para os livros, feito alguém que conhece bem o supermercado do bairro e sabe de cor a lista de compras. Era Antonio Carlos Secchin, já sobraçando um número razoável de volumes e com cara de quem faria um tour completo pela feira. Eu não o conhecia pessoalmente e, nas poucas frases que então trocamos, tive dificuldade de acomodar aquela agitação à serenidade que perpassa seus escritos. No ano seguinte, iniciei meu recém-doutorado na Faculdade de Letras da UFRJ e, como me dividia entre pesquisa e docência, participava das reuniões dos professores do Setor de Literatura Brasileira. Diferentemente da agilidade com que adquiria novos títulos para sua biblioteca de mais de doze mil livros, Antonio (como passei a chamá-lo por achar “Secchin” muito distante) se permite a distensão ao encontrar os colegas: centrado e cheio de humor, porta-se com calma mesmo quando o assunto se mostra espinhoso. Sua atuação é facilitada pelo fato de nunca tirar partido da condição de titular da disciplina e trabalhar programaticamente para encontrar soluções boas para todos. Poucas vezes conheci uma pessoa tão distinta em relação àqueles com os quais a convivência prolongada poderia ter resultado em desgaste. 1  Escritor e professor de Literatura Brasileira (UFRJ).


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O trato fino se estende aos outros dias, por meio de respostas imediatas e bem escritas a qualquer e-mail que lhe enviemos. Os alunos são unânimes em dizer da surpresa de receber tanta atenção de alguém atarefadíssimo. O que eles não sabem é que, para manter em dia sua volumosa correspondência, o professor acorda às seis da manhã. Apesar de todo o tempo reservado ao trabalho, sacrifica até o almoço, substituído por um sanduíche e uma fanta (!) trazidos de casa. Sempre que o encontrei na sala de nosso setor debruçado sobre a estranha combinação, soltei um desses ralhos que dirigimos a um familiar que faça mal à própria saúde. Irmanado ao Conselheiro Aires pelo “tédio à controvérsia”, Antonio ria, concordava comigo e dava continuidade à “refeição”. Minutos depois partia para a sala de aula, driblando quem se encontrasse em passo lento pelo corredor, de modo a chegar na hora, para magnetizar os alunos com exposições meticulosamente planejadas e extremamente consistentes. A esses trunfos acrescenta um nível de exigência que faz de suas turmas, mesmo de graduação, verdadeiras seleções de estudantes realmente interessados em poesia – fatia da literatura de sua predileção. A eloquência e o perfeccionismo se estendem de tal maneira às comunicações e palestras que não hesitaria em colocá-lo entre os cinco melhores oradores de nossa área. Pensei isso ao ouvi-lo falar sobre Ferreira Gullar no ciclo “Literatura Brasileira em Debate”, que Ivo Barbieri e eu organizamos no CCBB do Rio de Janeiro. A certeza me veio com sua exposição


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no “I Seminário Machado de Assis”, realizado conjuntamente pela UERJ, UFF e UFRJ. Acontece que sua competência para falar em público decorre de uma familiaridade com a literatura e uma obsessão em lapidar o discurso que fazem a riqueza de seus ensaios e poemas. É o que percebemos em livros tão diferentes quanto João Cabral: a poesia do menos (1985), Todos os ventos (2002) e Escritos sobre poesia & alguma ficção (2003), sobre os quais tecerei alguns comentários. Pós exemplar João Cabral: a poesia do menos integra tão bem a dissertação e a tese que as duas composições parecem constituir um só original. Se os estudos de pós-graduação partem de um patamar a partir do qual já se pode falar em produção de saber e visam ao aprofundamento ininterrupto de questões apenas suscitadas durante a graduação, raramente se chega a uma colagem tão feliz entre mestrado e doutorado – feito a que Antonio soma a coragem de tratar de um autor em plena produção. O orientador foi Afrânio Coutinho, que, conhecido pelo afã de fomentar a teoria da literatura no Brasil, encontrou no orientando uma pessoa capaz de conciliar cordialidade e personalidade. Antonio evitou aderir a alguma corrente que lhe facilitasse a abordagem e se entregou a um corpo a corpo com os quinze livros que o poeta publicara até 1980. É de se acrescentar, porém, que jamais resvala para a crítica impressionista, pois, além de convidar à interlocução os melhores analistas do autor, mantém os pressupostos teóricos como pano de fundo.


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Conforme se pode concluir a partir da leitura completa do livro, a abertura de espaço para teorizações demoradas desequilibraria o enfoque e ofuscaria a obra cabralina. Igualmente acertada foi a decisão de evitar o uso burocrático de notas de rodapé, reservadas aos suplementos de informação e reflexão que, apesar de importantes, reduziriam a fluência caso se inserissem no próprio texto. Tais decisões, que denotam sensibilidade autoral e tino editorial, fazem pensar que em trabalhos de cunho analítico as marcas acadêmicas relativas à bagagem do estudioso e às normas técnicas merecem destino semelhante ao dos “andaimes do edifício” de que fala Bilac: são fundamentais, contudo, para que não comprometam o efeito da recepção, devem permanecer em segundo plano. Na verdade, Antonio comprova que o ensaio que nos cabe produzir depende da entrega ao corpus específico e do conhecimento da literatura em geral, mas, se realmente pretende fazer jus à poesia e à prosa, precisa deslocar para seu âmbito a recomendação horaciana de combinar instrução e deleite. O resultado satisfez tanto que o próprio Cabral, em entrevista a Ricardo Vieira Lima, afirmou que nosso colega “foi quem melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como poeta”. Quando lembramos que o pernambucano foi um dos autores que levaram mais longe a fusão entre forma e reflexão, enxergamos plenamente o alcance do elogio. Atravessando os dois últimos séculos Alguém com o senso de comunicabilidade do Antonio evidentemente recebe muitos convites para colaborar com os periódicos e falar aos mais variados públicos. Em ambas


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as frentes, contribui significativamente para mostrar que a universidade é um espaço cheio de vida e as faculdades de Letras zelam pelo verbo. Quanto aos leitores e ouvintes, têm facilitado o acesso a dados e descobertas que de outra forma lhes pareceriam incompreensíveis, pois que acumulados ao longo do tempo, a partir de investigações e exegeses realizadas em nossa área. Um dos frutos mais importantes dessa atuação é o livro Escritos sobre poesia & alguma ficção, feito de papers de palestras proferidas dentro e fora do país, além de resenhas sobre os mais diferentes autores e temas. A primeira parte é formada de capítulos mais longos, distribuídos temporalmente desde meados do século XIX até a década de 1990. Já a segunda congrega textos curtos sobre produções vindas a lume em nosso novecentos. Finalmente, um conjunto de quatro entrevistas combina a espontaneidade da palavra pronunciada e o capricho de quem tem na linguagem sua matéria-prima. Partidário do cultivo do estilo como busca de atingir a isomorfia entre conteúdo e forma, Antonio encontra sempre uma maneira particular de mergulhar no assunto. Escrupuloso, reescreve exaustivamente cada frase, em movimento balizado por um domínio da literatura que lhe possibilita discorrer habilmente sobre seus mais variados aspectos, períodos e protagonistas. A harmonizar o todo há também o empenho, sempre bem-sucedido, de alcançar um alto grau de legibilidade. A sensação do leitor é de se encontrar diante de algo merecedor de atenção, em contato dos mais agradáveis.


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Esse prazer talvez nos autorize a pensar a afabilidade como ponto de contato entre persona e produção: gentleman nas relações pessoais, Antonio conduz o leitor com toda a delicadeza. É possível que haja sentido em verificar em que medida o fato de se desdobrar em ensaísta, poeta e até ficcionista contribuiria para a originalidade de cada abordagem e o acabamento dos diferentes textos. Se este artigo não comporta o desenvolvimento de tais cogitações, que ao menos tomemos “Algumas notas sobre o parnasianismo” como capaz de lançar um pouco de luz sobre o esmero do homenageado. O artigo faz ressalvas ao movimento, mas aponta a injustiça de a parte positiva de seu legado ter sido completamente descartada. Ainda que o sombreamento se explique pelo conservadorismo encarnado por Alberto de Oliveira e companheiros, não se pode negar a importância da “consciência técnica de seu ofício” para os autores de qualquer época. Ao atentar para essa necessidade, Antonio consegue ser um dos pesquisadores mais bem nutridos e ter um dos textos ensaísticos mais bem resolvidos de nosso campo. Por dentro da poesia Mais de dez anos atrás, Antonio afirmou em entrevista ao jornal baiano A Tarde que “a poesia (pelo menos pretensamente) costuma invadir a linguagem do ensaísta Secchin, e um severo olhar autocrítico nunca abandonou o poeta Antonio Carlos”. Prova cabal disso encontramos na seção “Aforismos”, do volume de poemas Todos os ventos, composta de extratos dos livros de ensaio Poesia e desordem (1996) e Escritos sobre poesia & alguma ficção: sete páginas


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de excertos brilhantes e bem expressos sobre a literatura, a indicarem a pertinência de vermos o pensamento e a poesia como originários da mesma fonte. Os demais textos do livro, exclusivamente em versos, também se deixam atravessar pela autorreflexividade, ora colocando-se em perspectiva e revelando-se construções, ora promovendo aproximações entre diferentes tempos e procuras da poesia. Desde os árcades até os contemporâneos, passando pelos românticos, simbolistas, parnasianos e modernistas, muitos são os nomes convocados para um diálogo em que o carinho faz par com a crítica. Capaz de amá-los a todos, Antonio varia o tratamento que lhes dispensa, indo da homoerotização do belíssimo mas nem por isso menos machista e preconceituoso “É ela! É ela! É ela! É ela!”, de Álvares de Azevedo, até o comovente “Cisne”, em louvor de Cruz e Sousa. Desejoso de atualizar essa família, Antonio estabelece um novo recorde de dedicatórias num mesmo livro: das 87 peças que o compõem, 86 são oferecidas a coetâneos com algum vínculo com o mundo das letras. Frisemos tão somente que a abertura ao outro, seja ele pessoa ou poeta, não implica anular seu próprio projeto. Companheiro dos mais corteses, o autor arrasta consigo quem mais preza, em passeio por um leque temático que inclui desde o trágico até o cômico, para sempre alcançar a qualidade e a leveza. Uma das chaves de compreensão do êxito talvez se encontre ao final do poema “Autoria”:


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Na linha anônima do verso, aposto no oposto de meu sim, apago o nome e a memória num Antonio antônimo de mim. Esse entendimento e esse apuro me estimularam a fazer deste texto um misto de aplauso e apelo de leitor entusiasta. Assim, satisfaço uma vontade que me ocorreu logo depois da eleição para a ABL, quando encontrei o poeta, ensaísta e professor debruçado sobre uma agenda monstruosa, dizendo da angústia de não ter tempo para responder positivamente a todos os convites, que, de resto, já eram muito numerosos antes de virar acadêmico. Como a universidade não lhe tomará mais tempo, espero que aproveite que se aposenta com apenas 59 anos e cheio de gás para encher nossos olhos com o que faz de melhor – e que realmente conta. Sua obra não deve nada a ninguém e é justamente seu valor que me leva a pedir mais. Seja poesia, seja ensaio, até ficção, repito: vai escrever, Antonio!


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Uma ilha secchiniana Flávia Amparo(1) “Uma escrita é uma escuta/ feita voz...” (Antonio Carlos Secchin)

Alguns críticos costumam dizer que a produção poética de Antonio Carlos Secchin é “enxuta”, tendo em vista o número de poemas publicados no transcurso de sua carreira. O próprio autor já afirmou ser um poeta “bissexto”, considerando a sua esparsa produção nos últimos trinta anos, reunida no livro Todos os ventos, publicado em 2002. De fato o poeta não se “entorna” em versos, mas se deixa revelar aos seus leitores gota a gota, de maneira que, lentamente, se possa saborear cada instante, fluido e intenso de sua poesia. Sobretudo, a memória deixa uma marca nos versos e, escorrendo sorrateira, trai o poeta e chega até o leitor através de imagens de rara beleza. De chumbo eram somente dez soldados, plantados entre a Pérsia e o sono fundo, e com certeza o espaço dessa mesa era maior que o diâmetro do mundo. Aconchego de montanhas matutinas com degraus desenhados pelo vento; mas na lisa planície da alegria corre o rio feroz do esquecimento. 1  Professora Adjunta de Literatura Brasileira da UFF e do Colégio Pedro II.


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Meninos e manhãs, densas lembranças que o tempo contamina até o osso, fazendo da memória um balde cego vazando no negrume do meu poço. Pouco a pouco vão sendo derrubados as manhãs, os meninos e os soldados.(2) A recorrência à metáfora líquida aqui utilizada não é apenas um recurso de estilo da escrita literária, mas uma marca do poeta Antonio Carlos Secchin, tanto no que se refere à sua poesia quanto à própria biografia. Nascido no Rio de Janeiro, o poeta viveu a primeira infância em Cachoeiro de Itapemirim, onde aprendeu a mágica das letras no Grupo Escolar cachoeirense, sendo alfabetizado aos cinco anos de idade. A primeira praia vista pelo menino seria a de Marataízes, cuja origem do nome refere-se a “águas que correm para o mar”. De Cachoeiro ao Rio, esse retorno à terra natal marcaria também a transição da infância para a adolescência. Ao passar a residir com a família em Copacabana, teria o mar sempre ao alcance dos olhos e do coração a ensinar-lhe as lições futuras nesse jogo de chegadas e de partidas. Mesmo quando residiu na França, onde foi professor-leitor de literatura brasileira, a cidade escolhida continuava a marcar a incidência líquida em sua vida: Bordeaux, cuja tradução significa “borda das águas”, referência à localização da cidade nas margens do Rio Garona. Nada mais natural que 2  SECCHIN, Antonio Carlos. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 36.


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viesse a lecionar na Ilha do Fundão – na UFRJ -, sua porção de terra cercada de mar e poesia por todos os lados. A primeira publicação secchiniana, A ilha, traz a data de 1971, quando o escritor ainda era um jovem estudante de graduação (de 18 anos), mas já revela o começo da vocação poética, igualmente centrada no ambiente líquido. A plaquete foi composta por um poema longo, dividido em cinco partes, sendo a primeira delas sumariamente cortada em publicações posteriores. Onde este fardo molhava a memória dessas mãos; onde um rio iluminava um voo claro como campo de setembro; aí acuso o corpo que me cerca, em mim se perde o som que se disfarça se apaga e gasta noutro ser que eu inventei. Mas este ser é tanto, e tanto andei em seus secretos bosques que hoje me perdi do que serei. Largada fúria, me descubro nesse ponto, me procuro e me devoro no tinir da gaia aurora.(3) O que se percebe é uma duplicidade do eu-lírico nessa estreia poética, através da criação de um outro. Esse desdobramento do poeta revela um espelhamento do ser na 3

SECCHIN, Antonio Carlos. A ilha. Rio de Janeiro, 1971. (Edição particular).


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imagem da pessoa amada ou, na concepção criativa da obra de arte, mostra a possibilidade do eu-lírico de recriar-se a partir de um eu-projetado na folha de papel. No verso, “que hoje me perdi do que serei”, notamos esse conflito primordial, entre o agora e o devir, como se o presente fosse o fator determinante e absorvesse todos os tempos num só. Como o movimento genesíaco de criação primordial, o “eu”, traduzido em “nós”, cria ou constrói uma ilha assinalada a partir desse primeiro fiat poético. E olhamos a ilha assinalada pelo gosto de abril que o mar trazia e galgamos nosso sono sobre a areia num barco feito só de vento e maresia. Depois foi a terra. E na terra construída erguemos nosso templo de água e de partida. Além do mar, o elemento “terra” é essencial para compor essa ilha secchiniana, que não dispensará também o elemento ar, presente em outro trecho: “e seguimos no caminho de ser vento/ onde as aves vinham ver se havia maio”. O fogo, único elemento ausente nesse primeiro poema, fica subentendido na própria construção poética, se levarmos em consideração a afirmativa de Rimbaud de que o poeta é, verdadeiramente, um ladrão do fogo sagrado. Essa estreia do poeta revela-nos muitas das tendências desenvolvidas no futuro como, por exemplo, a escolha de


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elementos da natureza para nomear os livros posteriores, como Ária de estação (1973), Elementos (1983) e Todos os ventos (2002). De igual modo, tanto as estações do ano quanto os quatro elementos primordiais (fogo, água, ar e terra) e os ventos da inspiração, ponto de partida de sua poética, são mutáveis e instáveis, apontando para a transitoriedade da vida do homem e para o esfacelamento dos desejos, assim como simbolizam uma sucessão das fases da vida, que ora se sobrepõem, ora se desvencilham irremediavelmente. Em Diga-se de passagem (1988), há um curioso desdobramento na própria descrição biográfica presente no livro, onde o autor assim se apresenta: “Antonio Carlos é poeta, com dois livros publicados. Secchin é professor de literatura da UFRJ.” Seria essa a cisão definitiva entre o poeta e o crítico, ou mais uma forma de criar espelhamentos em sua escrita autoral? Esse jogo de antônimos e Antonios ficaria mais claramente delineado em um dos mais belos e profundos poemas do escritor, “Autoria”, que funciona como chave interpretativa da escrita secchiniana: Por mais que se escoem coisas para a lata do lixo, clipes, cãimbras, suores, restos do dia prolixo, por mais que a mesa imponha o frio irrevogável do aço, combatendo o que em mim contenha


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a linha flexível de um abraço, sei que um murmúrio clandestino circula entre o rio de meus ossos: janelas para um mar-abrigo de marasmos e destroços. Na linha anônima do verso, aposto no oposto do meu sim, apago o nome e a memória num Antônio antônimo de mim.(4) Nessa trajetória do poeta, retomando aqui o poema “Confessionário”, existem versos, versões e fatos. Se compararmos as primeiras edições dos livros da juventude com os poemas reunidos em Todos os ventos, além de um corte rigoroso efetuado pelo escritor, veremos muitas modificações e remodelações dos versos originais. Por exemplo, o poema “Cartilha”, que consta na parte dedicada à Ária de estação, teve apenas preservados dois versos das três estrofes que compunham o poema original: “me aprendo em teu silêncio/ feliz como um portão azul”, suprimindo completamente o interlocutor presente na primeira edição: “Amada, me aprendo em teu silêncio”. Assim também, de um livro a outro, percebemos que alguns versos têm seus sentidos alterados completamente, como é o caso do “Poema do infante”, também de Ária. Se na versão 4  SECCHIN. Todos os ventos. Op. cit. p. 61.


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original o poeta diz: “Me inauguro para além do labirinto/ na asa avessa que a ausência escora,/ onde, renovada e redimida, a vida/ se amplia para o eterno dessa hora”(5); em Todos os ventos, o mesmo poema recebe a seguinte versão, que contradiz a primeira: “Me limito nesse corpo amanhecido,/ asa e gozo onde a morte mora./ Minha vida, mapeada e descumprida,/ está pronta para o preço dessa hora.” Como havíamos percebido em A ilha, em relação aos desdobramentos do eu-lírico, neste caso específico, o tempo influi diretamente, fazendo o poeta maduro rasurar o infante. A vida, outrora ampliada, agora se encontra pronta, porém – mapeada e descumprida – parece desfazer-se das crenças anteriores, esperando apenas “o preço dessa hora”, ou seja, assumir as consequências de seu rompimento com os planos do passado. Como num jogo de espelhos, o olhar crítico do poeta revisita o ontem e o reescreve, criando um diálogo entre as duas pontas da vida, muito bem delineado em “O menino se admira...”: O menino se admira no retrato e vê-se velho ao ver-se novo na moldura: é que o tempo, com seu fio mais delgado, no rosto em branco já bordou sua nervura. E por mais que aquele outro não perdure, quase sombra no relâmpago desse ato, ele há de ver-se mais antigo no futuro, vendo ver-se no menino do retrato. É que o tempo, de tocaia em cada corpo, 5  SECCHIN, Antonio Carlos. Ária de estação. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1973. p. 47.


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abastece a manhã com voz serena, que pouco a pouco se transmuda em voz de corvo, na gula aguda de ficar sozinho em cena. A moldura vazia denuncia o intervalo: sobra o tempo, e nada ou ninguém para habitá-lo.(6)

Nesse jogo de representações, o menino olha à sua frente a margem do futuro, confrontando o agora e o passado recente, o que se foi e o que se é, enquanto o eu-lírico, na maturidade, já chegou à outra margem e olha à distância os sonhos enviados para o endereço errado, descumprindo o percurso traçado do “devia ser”. A voz de corvo, a anunciar-lhe o “não” eterno, denuncia o intervalo, a lacuna, entre ambos os tempos. A arte, portanto, é o único meio de reunir novamente as duas margens, servindo como ponte poética para as antíteses cindidas na memória. A reescrita dos poemas não pode ser considerada apenas uma revisão criteriosa, que seria passível de acontecer com qualquer autor que reedita a própria obra, mas trata-se de uma reescrita do olhar, um confronto entre o eu e um “outro”, método mais profundo que a construção de heterônimos. “Ser é corrigir o que se foi”, diz Secchin no primeiro verso de um poema dedicado a Fernando Pessoa, configurando o ato de ser como um movimento de eternas reedições. Esse conceito está muito próximo do adotado pelo defunto-autor Brás Cubas a respeito da vida humana: “Cada estação da vida é uma edição, 6  Idem. p. 34


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que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”(7) Como bom bibliófilo, Secchin não lança fora a definitiva edição, talvez sequer acredite numa edição definitiva e, por isso, a recolhe e a revitaliza com novas assimilações do presente: palimpsestos, elipses, enigmas, diálogos. A infância feliz é sobrevoada pelos espantos da maturidade e por seus eternos desencantos. Os tempos se sobrepõem e, entre os cacos ou ruínas do presente, os sonhos do passado ainda são inquilinos do homem, como se o menino ainda permanecesse nos vãos da casa, sussurrando seus risos, contaminando a tristeza de súbito prazer. A casa não se acaba na soleira, nem na laje, onde pássaros se escondem. A casa só se acaba quando morrem os sonhos inquilinos de um homem. Caminha no meu corpo abstrata e viva, vibrando na lembrança como imagem de tudo que não vai morrer, embora as maçãs apodreçam na paisagem. Sob o ríspido sol do meio-dia, me desmorono diante dela, e tonto bato a porta de ser ontem alegria. O silêncio transborda pelo forro. 7  ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ed. Globo, 2008. p. 102.


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E eu já não sei o que fazer de tanto passado vindo em busca de socorro.(8) A nota de esperança fulgura em outro momento, no “Poema para 2003”, reunido na coletânea 50 poemas escolhidos pelo autor (2006): “Fluímos num tufão de pasmo e gozo/ sentindo que o passado é um destino/ pois brilha sobre a morte e os precipícios/ uma luz do que em nós inda é menino”(9). Aqui a infância é ponte para superar a morte e os precipícios, e luz para guiar em nova jornada. Se “dentro da criança o outono dançava”, como afirma no poema “Tempo: saída e entrada”, dentro do poeta o menino ainda dança e revolve a precariedade e as incertezas do tempo presente, como aquele outono de outrora, que varria as folhas antigas para dar espaço às novas. Nesse movimento, o riso contamina a melancolia e os verdes anos parecem surgir para espantar o pó e a dor dos antigos móveis da alma. Coexistem várias poéticas em Antonio Carlos Secchin. Uma delas seria a da memória, que se aproxima do biográfico e intermedeia as duas pontas da vida, num jogo tenso entre infância e maturidade. Outra vertente é a do humor, muito caro ao poeta, que se autoanalisa e julga as perdas e danos, rindo de suas próprias limitações. Essa vertente também dialoga com o crítico, que analisa as questões do mundo literário através da ótica corrosiva da ironia. É o que constatamos em “Remorso”: A poesia está morta. 8

SECCHIN. Todos os ventos. Op.cit. p. 38.

9  SECCHIN, Antonio Carlos. 50 poemas escolhidos pelo autor. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2006. p. 39.


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Discretamente, A. de Oliveira volta ao local do crime.(10) Há ainda a face erótica, ora tensa ora sublimada, que aparece como uma constante em sua produção poética desde o primeiro livro. Ao visitarmos o universo amoroso do poeta, vemos a representação do desejo por diversos focos, desde o amor plenamente realizado às inquietas manifestações do prazer amargo/amaro ou dos desencontros do eu lírico, em suas constantes viagens ao redor do corpo. As constatações do vazio, a fuga do compromisso, as alegrias e frustrações mostram os diversos amares que circundam a ilha do poeta, amares esses que tanto podem ser o prenúncio de salvação ou a permanente despedida. O meu corpo se entrelaça ao suspiro, e gira e caça no intervalo de um soluço essa pele decifrada pela força de meu sangue. E com fúria e flama não derrubo o que me abarca, nem revelo em minha posse as premissas do que sinto: eu devoro o meu amor, arbitrário como um cinco.(11)

10  SECCHIN. Todos os ventos. Op. cit. p. 86. 11  Idem. p. 154.


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Os amores permitidos e proibidos se alternam “no espaço de um soluço” e o prazer, como lâmina afiada, sempre deixa marcas na carne. A “pele decifrada”, por sua vez, sugere a necessidade do corpo de se desfazer dos seus enigmas diante do parceiro, como uma constante necessidade humana de desvelamento ou descoberta. O poeta devora suas próprias metáforas, como num ritual autofágico, ao optar por um hermetismo que transborda em versos de expressões dúbias e sentidos infindos, que podem conter o nada e o tudo, o sim e o não, o excesso e a falta, a realização ou a eterna luta contra “o gozo zero” ou a solidão. Assim, nos vemos diante do “Confessionário” do poeta: Não posso dar-me em espetáculo. A plateia toda fugiria antes mesmo do segundo ato. Um ator perplexo misturaria versos, versões e fatos. E um crítico, maldizendo a sua sina, rosnaria feroz contra minha verve sibilina.(12) No entanto, nada na poética secchiniana se converte em afirmação categórica. O mesmo “eu” que não se pode dar em espetáculo é também o “outro”, que se põe como espectador – ora distanciado, ora envolvido – que ri de si mesmo. Neste segundo ato do poeta, ele oferece ao leitor, pelas vias do riso, 12  Idem. p. 55.


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uma reaproximação do palco, um retorno à cena onde acontece o desvelamento do eu-lírico. Na poética de Antonio Carlos Secchin, como nos versos de Rimbaud, o leitor descobre que “eu é um outro”, já que o “mostrar-se” do poeta pode ser também uma nova estratégia de velar-se atrás de nova máscara. A sua verdadeira face aparece em meio à multiplicidade de outros disfarces, mas como distingui-la? “Entre mares e amares”: assim definiremos a poética de Antonio Carlos Secchin. Nesses infinitos mares e amares secchinianos, o leitor, em sua constante busca por decifrações, pode avistar a ilha do poeta – único espaço de solidez no universo fluido da poesia de Antonio Carlos Secchin – mas dificilmente poderá ancorar em suas plagas ao se defrontar com a força de todos os ventos que a circundam. Navegando em piccioletta barca, mesmo após se aventurar por essas águas, o leitor novamente se descobre no ponto de partida. Talvez, retomando o itinerário de Ulisses, o poeta jamais permita que nos aproximemos definitivamente de sua Ítaca.


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A lâmpada, a vela e o caldeirão Gilberto Araújo(1) “Pressionei a perna até sair sangue. Depois, rasguei três páginas de um dicionário e improvisei uma compressa.” (Secchin, Movimento, pág. 55)

Dentre os gêneros frequentados por Antonio Carlos Secchin, a narrativa ficcional é a menos divulgada. Recordam-se o crítico e o poeta, mas o ficcionista permanece tímido, reduzido a praticamente duas aparições bissextas: “Memórias póstumas de Castro Alves”, publicado em Escritos sobre poesia & alguma ficção, e “Carta ao Seixas”, inserido em Machado de Assis, uma revisão. Em ambos os casos, a ficção acoberta-se sob o ensaio, apenas como um saboroso aperitivo ao leitor. O próprio autor parece reservar espaço suplementar ao gênero, conforme sugere o ambíguo e modesto “alguma ficção” no título mencionado. A despeito da modesta visibilidade, o ficcionista pouco ou nada perde para as outras máscaras do polígrafo, bastando-se ler o texto menos conhecido de Secchin, a novela Movimento (1975), única ficção editada autonomamente, sem o concurso de outro gênero, digamos, central. A rigor, haveria outras três incursões na prosa de ficção, especificamente, no conto (“Fim de papo”, “Santo Antonio das Palmas” e “Ana à esquerda”), todas, no entanto, encartadas em antologias (Os cem menores contos brasileiros do século (2004), Quartas histórias (2006) e Capitu mandou flores (2008), respectivamente), o que 1

Doutorando em Literatura Brasileira (UFRJ); pesquisador e redator (ABL).


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justifica a singularidade de Movimento. A capa do livro, onde o “Antônio” aparece erroneamente acentuado, prefigura aspectos importantes da obra. De uma sequência de palavras, rasuradas letra a letra, desponta o vocábulo “movimento”, em maiúsculas. Desse registro peculiar o leitor intui que o dinamismo seja um princípio soberano, resistente à fome do rabisco, ao qual, ironicamente, impõe seu triunfo definitivo. (Ao rededicar-me um exemplar do livro, antes pertencente ao poeta Jorge Wanderley, Secchin escreveu: “o movimento não pode interromper-se!”). Tal hegemonia motora desdobra-se ainda no emprego do singular: se o plural, por isomorfia, poderia enfatizar a multiplicidade, o singular confere estatuto universal ao mobilismo:

De fato, a novela descarta toda forma de acabamento, sobretudo no que tange à escrita, desenvolvendo uma apologia do provisório. Não por acaso, o primeiro parágrafo da obra, transcrito a seguir, incrusta-se no último, delineando a permanente angústia diante do papel, sempre a exigir um recomeço: “É preciso contar. Meu corpo treme de frio, o papel parece aumentar seu limite branco nas minhas mãos. Mas eu resisto. Sempre vivi imaginando histórias, tecendo


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minuciosamente os enredos mais complexos, para tudo acabar no silêncio” (3)(2). O envolvimento do narrador-personagem com o narrado é tal que a dificuldade de escrever irradia-se por seu corpo. Apesar disso, ele denega qualquer vínculo emocional, em defesa de um discurso objetivo capaz de apagar os rastros do emissor: Se alguma coisa ameaça me envolver sentimentalmente, mudo logo de assunto, leio um livro técnico, aprendo fórmulas químicas. O cimento é um pó aglutinante obtido por ustulação. (...) Quero falar de coisas neutras. Por exemplo, aquela mancha que vejo na parede do quarto. É uma forma pura, isenta de qualquer acontecimento que eu tenha vivido. Seu jeito de noite parada lembra os ponteiros de um relógio antigo. Quando volto de uma viagem, ela parece ter diminuído, como se o tempo rodasse ao avesso e a levasse de novo à gota inicial. (7) Como se vê, mesmo o trecho enaltecedor da neutralidade trai uma progressiva contaminação subjetiva: a mancha, forma carente de contorno exato, entra em frequência analógica, assemelhando-se à “noite parada” e aos “ponteiros de um relógio”. A mancha umedece o cimento. Infere-se daí que a dificuldade do narrador está menos no papel em branco do que na folha já escrita, pois romper a inércia criativa parece 2  Doravante, mencionarei apenas as páginas de onde extraí as citações, já que todas são oriundas de SECCHIN, Antonio Carlos. Movimento. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1975.


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mais exequível do que manter a ilusão da imparcialidade. A impotência em sustentar a alienação é destacada por outra personagem, Ana, que “fala de minha inconstância, diz que sou incapaz de concluir um projeto criativo” (5). Na capa do livro, ela é chamada de “a pecadora”, como se fraturasse o dogma pacificador inventado pelo protagonista, que, por isso, ressalta o papel perturbador da mulher: “No fundo, é assim que ela me admira: me sabe capaz de brincar com meu próprio fracasso, abrindo caminhos que logo abandono. Desistindo no começo, ao menos esboço uma hipótese de perfeição que, se eu prosseguisse, nunca daria certo” (5). É Ana quem o apresenta à obra incompleta de Nataniel de Araújo, fictício poeta simbolista, autor de “três poemas e um fragmento de diário” (7). Desse espólio só conhecemos um texto, “A mancha”: A mancha é um mar imóvel como um lobo em ventania. Condensa em si o novo antigo, cristal partido ao meio-dia. (8) De extração borgiana, o poeta é o antípoda do protagonista de Movimento, encarnando a escrita lacunar e paradoxal. Sua obra é inconclusa e sua mancha não se define por nenhum atributo objetivo. Com efeito, após transcrever o poema, o narrador anota o desconforto deflagrado pela linguagem


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opaca de Nataniel: “Acho que é assim. De qualquer modo, a poesia me desnorteia. Não me contento com o conhecimento sensível, gosto que me expliquem tudo, tudinho” (8). Mais à frente, confessará que não se interessa por Nataniel porque ele “descreve de um jeito complicado demais para mim. Admiro as coisas exatas, como uma lei da Física ou os centímetros de uma régua” (41). Para estancar o transtorno, ele tenta “pensar que tudo é literal, que os fatos estão acontecendo como o poeta diz” (89). Assim, visualiza uma narrativa que, pedagogicamente, reconstrua e ordene as imagens criadas pelo vate simbolista: numa praia deserta, onde se ouvem uivos de lobo, um homem tropeça, quebra um copo de cristal em sua mão, e os estilhaços formam um “buquê de sangue” (9). Novamente, a objetividade termina em metáfora... Independente de quem a deseje plasmar, um físico ou um poeta, a mancha sempre dissolverá o empenho da delimitação. A “hipótese de perfeição” cobiçada pelo protagonista assenta-se no afastamento entre escrever e viver, equação problematizada no decorrer do livro. De início, há nítida valorização do primeiro polo, funcionando a escrita como um facilitador compensatório das dificuldades da vida. Escreve-se para não se viver: Viver me atormenta. Seria bem mais fácil imaginar-me um personagem, dizer, em forma de ficção, o que me inquieta e me perturba: aí, tendo a desculpa de estar fazendo arte, não correria o risco de ser acreditado. Não é fácil falar de mim. (4)


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Pela janela, meus olhos cobrem uma realidade enorme, que existe apesar de mim. Não posso fazer nada. E desanimo cedo demais. Essa realidade quer me impor uma hierarquia que não entendo. (9) Viver é uma tarefa que cumpro como uma vela queima. Se há cera derretida em sua base, se há pessoas precisando de seu brilho vagaroso, não importa. Serenamente, cumprir-se. (41) No entanto, a cisão radical entre vida e escrita lubrifica-se desde a primeira página do livro, quando o escritor-personagem (categoria por si questionadora dessa fronteira) confessa ser perseguido por sua criação favorita, Telêmaco, chegando a vêlo na rua. A criatura protagonizaria uma narrativa absurda: uma noite, Telêmaco acorda com ruídos estranhos produzidos por um relógio velho na sala. De repente, o tempo represado começa a estufar o aparelho, e ele passa a morar dentro do relógio “para viver de novo aquelas horas intactas” (3). A recusa da vida, simbolizada no encarceramento, recalca todo imprevisto, sacrificando o risco da incerteza pela monotonia da repetição. Condenar-se ao relógio implica submeter-se à cronologia, artifício habitual na maioria das narrativas de ficção. Cronometrar significa logicizar o tempo, amenizando, provisoriamente, seu potencial destrutivo numa previsibilidade domável; afinal, “amanhã” é mesmo bom eufemismo para a morte. O isolamento preventivo do personagem projeta-se no seu nome: na Odisseia, Telêmaco é aquele que combate à distância (conforme, aliás, a etimologia grega), peregrinando


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à cata de notícias de Ulisses, seu pai ausente. Curiosamente, esse esforço repulsivo, afastando sujeito e objeto, escritor e obra, parece chocar-se com a dedicatória do livro, “A meus pais”, de evidente impregnação familiar. Movimento divide-se em cinco capítulos ou, conforme o original, “movimentos”: primeiro, segundo, terceiro, quarto e outro. Cada um deles é antecedido por uma breve didascália, que, pastichando um roteiro cinematográfico, sumariza a matéria a ser narrada. A seção inicial, por exemplo, é assim apresentada: “Um método de escrever. Cenas da infância. Ana, Adolfo, Mateus. Análise do poema ‘A Mancha’. As aventuras de Telêmaco preso no relógio. As aventuras de um velho bêbado cercado de lobos” (1). Endossado, nesse primeiro bloco, o não envolvimento entre autor e obra, o livro encenará doravante a falácia do projeto, já insinuada aqui e ali. No segundo movimento, fazendo jus ao motor dinâmico, surge outra narrativa, vazada em fonte diferente, mais próxima da letra cursiva. Trata-se da história de Paulo, autor de O vampiro da Lapônia, romance em que Papai Noel, ao invés de presentear as crianças, sugava-lhes o sangue e transformava-as em morcegos. Aí está o primeiro indício de um complexo fágico em Movimento: uma sequência de vampirismos e de canibalismos revelarão que a escrita é um processo de absorção de energia – própria e/ou alheia –, uma cadeia alimentar em permanente digestão. Paulo, por exemplo, vivencia uma experiência vampiresca que, em alguma medida, abala sua mediania de mau escritor: certo dia, escuta ruídos vindos do relógio da sala e constata que dentro do aparelho vivia um rato, que subitamente salta


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para o chão. De início, Paulo permanece calmo e julga que bastaria espantar o bicho. Aos poucos, no entanto, constata que no animal pulsava a vitalidade faltante a seus frígidos personagens. Então, passa a golpeá-lo até o resumir a uma mancha de sangue (a capa de Movimento é vermelha): “Eu via, com fascínio e horror, aquela agonia de carne e osso, tão diferente da agonia fingida de meus personagens, em que o sangue era apenas um problema de seis letras” (19). O sadismo avança a uma profunda identificação com o bicho, culminada em cena de devoração: Tremo de nojo. O corpo vivo agoniza em minhas mãos, e os filetes rubros se tornam tão espessos que tenho a impressão de segurar somente uma cor, livre de qualquer matéria. Aproximo o rato de minha cara. A distância que nos separa é tão pequena que pareço respirar seu fôlego arquejante, já não sei onde termino ou ele começa, já não sei se existe alguma distância ou se nós nos continuamos, simplesmente. (...) Os lábios de Paulo se aproximam do rato. Fechou os olhos com um horror resignado, esfregou o pequeno corpo em sua cara. Como um vampiro, abriu a boca para sorver aquele sangue novo. A agonia do Rato chegava ao fim. Jogou o animalzinho ao chão, espalhou as manchas vermelhas de sua mão na parede branca da sala. Paulo, lentamente, começou a catar os originais de seu romance. Precisava acabá-lo depressa. Como o pai iria se desfazer do cadáver do vampiro? Precisava embrulhá-lo, jogar fora aquele corpinho inerte,


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depois então trataria de apagar a mancha que fizer na parede. Espiou o ratinho, tombado no chão. Uma ideia absurda nasceu em seu cérebro. Seu coração batia com a força de um (20-1) Paulo vive na realidade aquilo que projetara no conto, a sucção do sangue alheio e o contato com sua porção abjeta, e acaba deixando a assepsia em favor da desordem (Secchin é autor de Poesia e desordem). A quebra do estabelecido, tanto em O vampiro da Lapônia quanto na vida de Paulo, traça uma continuidade especular entre vida e obra, entre homem e rato. A sujeição ao desconhecido e ao ignóbil resgata parte da humanidade que o escritor retalhara na resma de papel. Oportunamente, na perseguição contra o animal, os originais de seu romance espalham-se pela sala, cuja parede branca também se enodoa pela mancha sanguínea. A narrativa de/ sobre Paulo arma um espelhamento interno que inflete sobre o primeiro movimento do livro, onde também havia a explosão (iminente) de um relógio e a perda de sangue, como se os movimentos da escrita nascessem de sua própria entropia, de sua autoconsumação, num eterno processo de digestão e produção, de destruição e criação, uma espécie de autofagia. Lembremos, ademais, que, onze anos antes de Movimento, G.H. degustara um animal, refeições que não deixam de resistir à higienização imposta pela sociedade, sobretudo em contextos ditatoriais. Além disso, os rabiscos na capa da novela secchiniana dialogam, avant la lettre, com a multiplicidade de títulos (13!) que, em 1977, Clarice Lispector atribuiria ao livro A hora da estrela, obras que na nomeação camaleônica exibem


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uma geração resistente à homogeneização e devota à liberdade. A brusca interrupção da narrativa (“com a força de um”) encontra equivalente na alteração da fonte utilizada: na próxima página, o leitor assistirá não só ao retorno da formatação anterior, saída de uma máquina de escrever, como também ao surgimento de uma outra micro-história. Antes de chegarmos a ela, observemos que, no último trecho aqui citado, há nítida oscilação entre a primeira e a terceira pessoas do discurso, como se o texto fosse simultaneamente narrado por Paulo e por um narrador externo, como se Paulo fosse ao mesmo narrador de personagens e personagem de narrador(es). De fato, ao virar a folha, verificamos que o que acabamos de ler era um conto lavrado por Pedro, “bom escritor”, segundo o resumo no início do movimento. O imbricamento de motivos, de personagens e de narrativas indicia, conforme apontamos, a inevitabilidade das contaminações no processo criativo, afetando, mais uma vez, a pretensão de uma escrita neutra, quimera igualmente deposta pela alternância entre observador/sujeito e observado/ objeto. Como o homem se prolonga no rato, Pedro continua em Paulo, uma narrativa brota da outra, e vice-versa. Desse modo, a polarização entre viver e escrever é enganosa. Ainda se lerá que “escrever é um modo menor de viver. A realidade é ampla demais para se comprimir nas letras de um romance. Criar me restringe” (39). Concluído o conto, ao qual Pedro hesitava sobre que título dar (“Um rato”, “O vampiro” ou “Buquê de sangue”), o escritor lê anúncio decisivo num jornal: “Queres sentir o prazer de criar? Queres ser escritor? Ensinam-se todos os gêneros. Cartas, com pretensões, currículo e retrato. Para este jornal,


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3591” (22). A sutil anteposição do “prazer de criar” a “ser escritor”, aparentemente inadequada ao objetivo suporte jornalístico, ratifica que a fruição estética embasa a sob o número

criação e, embora solicite um instrumental técnico capaz de exprimi-la, não deve subjugar-se a ele. Ou seja, não se deve escrever sem prazer. Esse grito contra a burocratização da literatura novamente farpeia o ideal objetivante. As diferentes formatações de Movimento – até agora, três: a maioria, vazada de uma máquina de escrever; a história de Paulo, em fonte cursiva; o anúncio, em caixa alta – reclama nossa atenção para a letra, um grafema individualizado por excelência. A caligrafia carrega a assinatura, e a letra datilografada, tecla objetiva, não remove a impressão digital, marca intransferível. Essa reciprocidade é confirmada por outra guinada repentina na estrutura do livro: a intromissão do discurso cinematográfico, que transforma Pedro em personagem de uma câmera desconhecida: “Agora, focalizase a mão de Pedro em primeiro plano” (22). Há, portanto, um aprofundamento do mise en abyme, fazendo da narrativa algo como um fractal para dentro: Paulo é escrito por Pedro, que é filmado/escrito por outrem. A detecção da autoria, neste caso, importa menos do que o desejo de encenar, cinematograficamente, a inseparabilidade entre criador e criatura: “Agora, num movimento contínuo, se alternam as duas imagens: a do quarto e a da gota de suor, numa velocidade tão grande que acabam se superpondo: a gota parece cobrir o aposento inteiro. Os objetos começam a perder seu contorno. Progressivo escurecimento do quarto, como a indicar a sonolência do homem” (23). O suor do escritor dilui a frieza


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do quarto numa mancha – como, aliás, fizera Nataniel de Araújo – e a plasticidade fílmica da cena suaviza a hipertrofia de metalinguagem verbal. No terceiro movimento, narra-se, inicialmente com foco externo, a visita de Pedro à madame Zunglash, senhora que estampara o reclame no jornal. Obviamente, ao deixar sua casa, ele abandona o conforto da previsibilidade e da rotina, lançando-se ao desconhecido. Antes de sair, imagina o contato com a madame, antevendo a proximidade de uma experiência radical: Sim, iria visitá-la. Inventaria uma desculpa qualquer, faltaria ao trabalho. Paulo olhava o ratinho morto. Nenhuma piedade em seu coração endurecido. Pedro foi para a sala. Na mesa, uma toalha azul, com dois fios entrelaçados. Chegou perto, soprou os fiozinhos unidos, que começaram a fazer um estranho movimento. Deixou-se ficar ali, absorto na gratuidade do gesto. Depois, arrancou-os com força, levandoos para perto dos lábios. Sentiu nojo daqueles fios encardidos, há quanto tempo não lavava a toalha? (27) A mescla de narradores e de tipologias gráficas marca a porosidade do discurso literário: a criação ratifica-se como processo dinâmico de aproximação e de distanciamento entre autor e obra. A criatura acompanha o corpo do criador e sai com ele à rua (lembremo-nos de Telêmaco), em franco acinte à literatura de gabinete. A abertura a vozes externas,


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forjadora de uma narrativa coral, comparece na imagem dos fios entrelaçados em “estranho movimento”. O escritor Pedro, como seu personagem Paulo, chega à iminência da mastigação, quase engolindo os farrapos, procedimento delator da inevitável antropofagia artística. O motivo dos fios aparecera no primeiro movimento da novela, quando o narrador-personagem recordava-se do velório do corpo da avó sobre a mesa da sala. Sem compreender a morte, o menino foi para outra sala, onde também havia uma mesa. Lá, brincou com seu primo Adolfo: Me aproximei. A toalha era azul, e na parte inferior dois fiozinhos estavam soltos, fazendo uma espiral que quase tocava o chão. Soprei com força, para espiar o movimento das fibras enlaçadas. E comecei a pensar em muitas coisas diferentes: minha avó na cadeira de balanço, a borboleta que Adolfo escondeu na boca dizendo para mim é gostoso, suas asas parecem duas hóstias vivas, mas não morde, que é pecado sentir a carne de Deus. (6) Aludindo ao sopro do criador, a lembrança enfatiza a fagocitose criativa, maximizada na ingestão da borboleta. A remissão à hóstia, além de privilegiar o simbólico sobre o factual, também realça o crivo subjetivo, insinuando que o escritor deglute mortos e ressuscita-os em seu organismo, como os fiéis à “carne de Deus”. Devorar é, neste caso, mais gerar do que destruir, axioma dramatizado pelos diversos espelhamentos na narrativa; afinal, o espelho carrega


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para dentro de si aquilo que ele não é, sendo não apenas identificação e complementaridade, mas também diferença e vestígio. (No primeiro dia de aula de sua Oficina de Escrita, na Pós-Graduação da UFRJ, Secchin solicita aos alunos um texto baseado no sintagma “O espelho”). De súbito, após ligeiro intervalo em branco, Pedro tornase narrador do movimento, onde até então atuava somente como personagem. A mudança de perspectiva franqueia-lhe confessar as inquietações que o levaram à madame Zunglash: Eu vou contar. Juro, não aguento mais viver com meu segredo. Quando tudo começou? Bem, meu nome é Pedro. Sabe, eu sempre fui assim, meio calado. Portanto, se eu esquecer algum fato importante, se eu me contradisser, não fiquem envergonhados de me interromper, perguntar o que vocês quiserem. Só quero que saibam toda a verdade. Trabalho há dezoito anos no mesmo ofício, que odeio: colocar em ordem alfabética o nome dos clientes de uma companhia de seguros, ver se as prestações estão em dia, essas coisas. (29) O emprego ensimesmado serve de crítica à automatização da palavra, alienada de suas fulgurações inovadoras. A escrita funcionária-pública empenha-se em organizar o mundo, empanando-lhe as tensões, ideia expressa no fato de Pedro trabalhar numa companhia de seguros colocando em “ordem alfabética o nome dos clientes”. Zunglash reativará algo do “prazer de criar”, reacendendo o potencial instaurador


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da criação poética. Ao permitir a intervenção dos leitores ou ao fingi-lo, Pedro começa a fazer ruir a figura do escritor tirano, que supõe subjugar a criação à hegemonia de sua voz autocentrada. Tanto o é que, na página seguinte, o leitor interferirá explicitamente na novela, perguntando sobre madame Zunglash. Finalmente, Pedro chega à casa da senhora. No ínterim entre bater à porta e alguém girar a maçaneta, a narrativa é interrompida por um parágrafo entre parênteses, narrado em terceira pessoa, e por duas meias páginas em branco, depois das quais reaparece o sintagma “a maçaneta” na exata posição em que foi deixada duas páginas antes: à direita, quase no fim da folha. Na rubrica entre parênteses, em novo assalto fílmico, alertam-nos de que “Pedro se confundiu ou, propositalmente, ludibriou as pessoas para quem narra sua história” (32). Alargando a interrupção da novela, o espaço vazio descerra uma brecha no discurso de Pedro, minandolhe a centralidade, como se literalmente o devolvesse ao seu lugar. O homem é recebido por um cachorro e, em seguida, por madame Zunglash, “uma velha, com uma camisola transparente a cobrir seu corpo flácido. No pulso esquerdo, trazia acorrentado um pássaro de asas cortadas. A outra mão segurava papéis, tão velhos quanto ela” (34). O primeiro contato com a senhora desestabiliza o autocontrole de Pedro, involuntariamente entregue a pulsões primitivas, resgate instintivo sinalizado pela abundância de animais na casa de Zunglash:


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– É preciso escrever, me disse [Zunglash]. Só eu (o pássaro pulava doidamente em sua mão) sei ensinar. Não vou mentir: me deu uma vontade esquisita de sentir uma carícia daqueles dedos, apertá-los com força, molhar seu corpo na umidade de meu beijo. Há muito tempo não via um corpo quase nu pulsando a meu lado. E agora, eu sentia esse desejo horrendo, essa vontade de tatear cada poro daquele corpo. (...) Uma pancada forte me atirou ao tapete. Sentia a língua do cão em meu pescoço. Zunglash começou a cantar. Que música era aquela, que entrava em meus ouvidos como um chicote de ar? (...) Eu não passava de um rato preso na ratoeira. Cravei os dentes num pedaço de madeira, o sangue saía de minhas unhas feito um batalhão de formiguinhas. (...) [Zunglash] me entregou vários papéis, em silêncio. Tentando perder o medo, comecei a lê-los. Eram coisas estranhas, textos de uma língua que eu não conhecia. (34-5) A zoomorfização de Pedro, feito rato e formiga, liberta sua matriz selvagem, despertando o apetite sexual. Paralelamente, a linguagem escapa do engessamento em arquivos de seguradora e eletriza-se na fixação do incognoscível. Tais irrupções do inconsciente, rasurando as balizas entre o racional e o instintivo, desmontam cabalmente a possibilidade de uma escrita segura de seus limites, embora a obsessão ordenadora do escritor resista a essa insubmissão: “Quanto mais me quero fugir, mais volto a mim. Isso não me acontecia antes. Sei que o que importa é o que escrevo, não o que vivo. Tento unir as duas


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coisas” (42). Está posto o impasse da alfândega criativa: manter a vigilância rigorosa, vetando a infiltração do eu, ou flexibilizar o controle e comprometer a objetividade da obra? Na primeira condição, sobra escrita e falta vida, proporção invertida no segundo caso. A saída contra os desequilíbrios migratórios é abrir a obra à vida, mas não o inverso: “Reparando bem, percebo que todos eles [os personagens] possuem minha cara, meu peso, minha altura. Eles são os modos possíveis de mim.” (42); “Me envolvem tanto quanto uma lâmpada queimada” (39). Para manter a integridade pessoal, o escritor convertese num crupiê que, em respeito aos vestígios da política do não envolvimento, sobriamente distribui suas angústias entre os personagens. Anulada a hipótese de “fingir que [a] vida é uma questão de linguagem” (42), igualmente se exterminará o distanciamento entre autor e obra, operação encetada pelo convívio com madame Zunglash. Sim, porque Pedro envolveu-se tão intensamente com aquele dia a dia exótico, avesso à monotonia de seu cotidiano, que se abrigou na residência da senhora que o ensinaria a escrever. Todo aprendizado tinha “o silêncio inicial por matéria obrigatória” (50), prioridade que enobrece o papel vazio perante o escrito. Com efeito, Zunglash instruirá Pedro a desacelerar a produção para abastecer-se da tradição, mostrando-lhe que nunca provocará um fiat sem conhecer os gêneses precedentes. O silêncio do branco é um coro à espera de maestro. Sugerindo a empreitada desafiadora, Zunglash desempenha papel inverso ao de Ana: enquanto esta censurava os projetos inconclusos, solicitando em negativo um escritor full time, a estranha senhora prefere a recepção bem digerida à


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criação mal preparada, a ponderação ao insucesso. Talvez por isso, os nomes de ambas iniciem-se, cada um, com uma ponta do alfabeto: se A é o primogênito, Z é o caçula, absorvendo a contribuição de todos os irmãos. Na mediania repousa o N de Nataniel de Araújo. Aliás, em Movimento, paira um trauma do abecedário, como possível contestação ao esquartejamento lógico da linguagem, e, nesse sentido, a atuação de Zunglash é fundamental. Note-se, entretanto, que a proposta de degustação da biblioteca universal não subtende a eliminação da criatividade do novo escritor: ao contrário, as leituras ampararão o estreante, auxiliando-o no exercício de práticas anteriores ou na experimentação de caminhos inéditos, conselho que parece se materializar no pássaro de asas cortadas no pulso de Zunglash. Trata-se, a rigor, de um percurso de acumulação inventiva, em sutil consonância simbólica com a velhice da madame. A hospedagem prolongada familiariza Pedro com a inusitada casa-oficina de Zunglash, da qual ele acaba absorvendo o espírito libertador: quebra xícaras e pratos, come com as mãos, dorme com as cabras, anda nu, sente-se “tão natural quanto o vento e a raiz das árvores” (51). Na recusa aos protocolos, merece destaque a destruição dos pratos, rebeldia que obriga os convivas a fazer as refeições em cones de páginas de livro (Secchin guardava livros na despensa de seu apartamento). Seria este o paroxismo da antropofagia criativa preconizada por Zunglash, não houvesse Pedro descoberto que a senhora “comia livros para escrever. Escolhia os melhores, colocava-os no caldeirão, dissolvia-os na água fervendo. Quando esfriava,


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ela mergulhava a cara naquela água viscosa e devorava tudo, até o limite de seu estômago” (55). O banquete termina insolitamente: E eu vi, horrorizado. Zunglash se transformava num livro imenso, monstruoso. Eu já não distinguia a carne e o papel. Estrofes, poemas, capítulos inteiros explodiam de seu corpo dilacerado. Ela gritava de dor, e de sua boca não saíam palavras, mas escorriam letras. Recuei, virei o rosto. Comecei a chorar, e as lágrimas devolviam minha humanidade. Quando voltei a olhála, Zunglash já era um livro enorme, velho, de capa dura e lombada negra.(56) A transmutação dolorosa de Zunglash em livro denuncia a importância visceral do corpo, na condição de reduto concreto da subjetividade, no processo criativo. A despeito da dor, ou por causa dela, é com a vida que se escreve. A combustão funde tradição e invenção em massa indissociável, amálgama incandescente de escrita e de vida. Merleau-Ponty opõe o pintor (escritor) ao cientista (arquivista), pois enquanto este “manipula as coisas e renuncia habitá-las”, aquele, pintando com o corpo, “é o único a ter direito de olhar sobre todas as coisas sem nenhum dever de apreciação”(3), alforriando o pensamento/escrita da vassalagem ao cogito/neutralidade. De fato, a bibliomorfização da senhora envolve Pedro num páthos aterrador que, ironicamente, o aproxima antes da realidade que do papel. 3

MERLEAU-PONTY. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004, pág. 13.


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Sob efeito do espetáculo grotesco, Pedro aproxima-se do caldeirão, prova um pouco do caldo e, malgrado a insipidez, continua a comê-lo, terminando a refeição dois dias depois. Em seguida, sai da casa, onde não há mais animais, como se, tendo completado o ciclo de aprendizado e de re-humanização, o escritor pudesse retornar à vida normal. Mas De repente, tive uma vertigem. Me sentei na beira da calçada. Sem que eu soubesse por que, dezenas de frases explodiram em meu cérebro. Advérbios, pronomes, substantivos jorravam num fluxo incontrolável. Pensei rapidamente no meu conto, criei um epílogo que minha limitação jamais imaginaria. Mas logo outras ideias surgiam e eu, inebriado, me deixava levar por tudo aquilo. Me excitava de felicidade, os cabelinhos do braço arrepiados iguais às antenas de um inseto. (57) O êxtase algo kafkiano arremata o escreviver. O autor é dominado pelo fluxo inconsciente, sangue inestancável, buquê implodido, vermorragia que alimenta a fornalha de uma escrita flamejante. Em resposta à frieza distanciada de Telêmaco, Pedro engole Zunglash e tudo que com ela se derreteu. Curado o trauma do alfabeto, desaparecem seus sintomas: Eu estava livre. Viver, para mim, era um modo imperfeito de não escrever. Viver era a lacuna entre um e outro capítulo dos livros, a pausa detestável para dormir, ir ao banheiro, trabalhar. Eu estava livre.


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Para que mandar notícias a Ana? Não, ela nunca me entenderá direito. E eu não suporto a obra de Nataniel de Araújo. Que angústia ter de aturar a filosofia barata de seu diário! (57) Como Pedro em relação a Zunglash, surpreendi-me tanto com um Secchin desconhecidamente experimental que, animado pelo livro, pulei do terceiro ao outro movimento, deixando o quarto sem qualquer comentário. Em tempo: nele, aparece um outro narrador, que pode ser Antonio, Antônio, o antônimo de um deles ou ainda de ambos, ou nenhuma dessas alternativas: Agora mesmo, acabei de escrever dois capítulos de uma história, que vai chamar-se Movimento. Acho que cometi alguns erros de narrativa, me embaralhei ao escrevê-los. Além de tudo, por que escolhi este título, se mal consigo movimentar meus personagens? Releio as histórias, tento ser imparcial. Prefiro a primeira, a de Paulo. É mais lógica, creio que ordenei melhor os fatos. A outra tem muitos detalhes, me cansa um pouco. Não devia gastar tantas folhas com a viagem de Pedro. Cinco páginas dentro de um ônibus! Talvez eu reescreva tudo. (39) P.S.: Quando finalizei a leitura, a quarta capa desprendeu-se do livro.


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Antonio Carlos Secchin: exato e numeroso Ivan Junqueira(1) Podemos lembrar Antonio Carlos Secchin de diversas maneiras: o Professor Titular da cátedra de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ, que agora se retira após quarenta anos de profícuo magistério; o acadêmico exemplar, que durante quatro anos se manteve à frente da Comissão de Publicações da Academia Brasileira de Letras; o infatigável e obsessivo bibliófilo, autor do já clássico e consultadíssimo Guia dos sebos; o primeiro editor executivo da revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, onde durante muitos anos trabalhamos juntos; o fraterno amigo de mais de vinte anos, por quem tanto me empenhei para que ingressasse na ABL; o crítico literário que muito militou – e ocasionalmente ainda o faz – nos mais importantes veículos de nossa imprensa; o fino e astucioso ensaísta que nos legou, entre outros, o premiadíssimo João Cabral de Melo Neto: a poesia do menos e, mais recentemente, Memórias de um leitor de Poesia; o zeloso editor das obras poéticas completas de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar; o aplaudido conferencista, que levou nossa literatura a ser mais conhecida em cidades da França, de Portugal, do México e dos Estados Unidos; ou ainda o exímio gourmet que sempre nos surpreende com suas iguarias. E mais não digo para que não me caiba aqui a acusação de inventariante, quando, a bem da verdade, fui 1  Poeta, tradutor, crítico literário e imortal da Academia Brasileira de Letras.


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convidado a prestar um depoimento no qual, acima de tudo, gostaria de recordar o poeta que nele desde sempre existiu para além de toda a sua assídua e numerosa atividade literária, exatamente como o fiz, aliás, quando tive a honra de recebê-lo na Academia Brasileira de Letras em agosto de 2004. É sobre esse poeta – sem o concurso do qual jamais subsistiriam o crítico e o ensaísta que nele coabitam – que pretendo me deter um pouco ao longo deste depoimento. Já o fiz, aliás, em 1997, no Centro Cultural de São Paulo, onde pronunciei uma conferência sobre o poeta que ilumina seus textos em prosa e que muito me lembram aquela exigência que nos impunha Baudelaire num dos fragmentos de Mon coeur mis à nu: “Sois toujours poète, même en prose”. Disse eu na ocasião que, por ser até aquela data essencialmente um crítico de poesia, tal condição o inibiria no que toca à arte de escrevê-la. É bem de ver que tal conjectura tem lá o seu grão de verdade, pois o pleno e ininterrupto exercício de suas demais atividades, às quais se acrescentava então a espinhosa e multitudinária responsabilidade que lhe cabia como editor da revista Poesia Sempre, decerto o levaria, como de fato o levou, à fímbria de uma outra exigência, esta de Leonardo da Vinci, quando aludia ao ostinato rigore com que deve proceder o artista em tudo o que faz. E esse rigor, se não inibe, sem dúvida concorre para que qualquer escritor só dê à estampa o que julga digno de si e de sua pena. Muito embora o que acabamos de dizer contribua para caracterizar a escassez de uma poesia do pouco, como então a batizei glosando aquilo que Secchin definia como “a poesia do menos” no que respeita à severa arquitetura verbal de


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João Cabral de Melo Neto, pareceu-me que o fio da meada principiava com o seu próprio comportamento de autor, que se ocultava, de todo arredio às efêmeras glorietas literárias, sob o manto de uma quase paradoxal e extrema sociabilidade mundana. É que, num dos poemas de seu segundo livro, Elementos, que absorve a poesia do primeiro, Ária de estação, “revisitada e diminuída”, como a corroborar aquela tendência ao menos e ao pouco a que já nos referimos, encontramos estes versos: “Na sonância do que vive, / minha fala é resistência, / e dizer é corroer o que se esquiva.” Comportamento idêntico é o que se vê nas últimas linhas da estranha novela metapoética Movimento, onde ele confessa: “Coloco uma folha na máquina. Penso no que vou escrever. Por alguns segundos fico indeciso. É preciso contar. Meu corpo treme de frio, o papel parece aumentar seu limite em branco nas minhas mãos. Mas eu resisto.” Resiste, claro está, como resistia Mallarmé quando escreveu o célebre verso: “Sur le vide papier que la blancheur défend.” De tanto lidar com as palavras, Secchin passou a duvidar delas. Por isso mesmo, ainda em Elementos, alude à “língua iludida da linguagem”, pois o que pretendia era aquilo que se situava “aquém do nome, / movendo a voz que se / publica enquanto cala”. É tanta a sua pudicícia diante da sacralidade do verbo poético que ele chega a nos pedir: “me emudece para o jogo desse dia, / resgata em prosa o que eu perco em poesia”. Sua metalinguagem está crivada de versos que comprovam à


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saciedade essa desconfiança quanto à eficácia das palavras, tema com que T.S. Eliot, aliás, conclui o último movimento do primeiro de seus Four quartets. Sem incidirmos aqui em nenhuma estapafúrdia ou abstrusa comparação, o que lemos em Secchin é, mutatis mutandis, quase o mesmo, sobretudo quando diz: “enquanto na garganta do meu canto / um sol solene me assassina.” Ou quando, desolado, confessa: O que faço, o que desmonto, são imagens corroídas, ruínas de linguagem, vozes avaras e mentidas. O que eu calo e que não digo entrelaçam meu percurso. Respiro o espaço fraturado pela fala e me deponho, inverso, no subsolo do discurso. É claro que, ao “purifer les mots de la tribu”, qualquer poeta – e o próprio Mallarmé é o exemplo supremo dessa escassez no que toca ao volume da obra poética – tende não apenas à concisão de tudo o que escreveu, mas até mesmo à redução daquilo que se entende como o corpus poético de sua produção. A rigor, o exemplário vem desde Leopardi, cujos Canti somam apenas quarenta poemas. O conjunto de Les fleurs du mal, de Baudelaire, totaliza somente 167 poemas, e nele está tudo o que o autor escreveu em verso, se aqui desprezarmos sua irrelevante Juvenília. E é pequena, também, a obra poética


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de Valéry, o mais ilustre dos discípulos de Mallarmé. Pequena, entre nós, é a obra fundamental de Dante Milano, que morreu aos 91 anos de idade e nos deixou uma exígua produção de 141 poemas. Esse Dante Milano que Drummond, ao fim da vida, considerava o maior dentre todos os poetas brasileiros do século passado. E se os cito aqui, é porque todos encarnam essa poética do pouco, que teria a coroá-la aquele juízo do poeta expressionista alemão Gottfried Benn, segundo quem o que de fato permanece para sempre de cada grande poeta não chega a oito ou dez poemas dignos desse nome. Não quero dizer com isto que esse reducionismo seja, necessariamente, sinônimo de qualidade estética: pode-se escrever pouco e, ainda assim, escrever mal. O que quero dizer é que, quando se trata de um grande e verdadeiro poeta, essa avarícia equivalerá, quase inevitavelmente, a um salutar exercício de concentração intelectual que tende a expurgar o que não presta. E é isto o que vemos desde o primeiro livro do autor, onde já se lê muita poesia que merece esse nome, sobretudo, por exemplo, no poema que dedica a João Cabral de Melo Neto e naquele que leva o título de “Onde este fardo molhava”, cujos versos aparecem algo modificados (vale dizer: reduzidos) em Elementos. Não resisto aqui, muito a propósito, a transcrever os esplêndidos versos de sabor camoniano que abrem a terceira parte desse poema que nos recorda também certa ambiência que Jorge de Lima criou na Invenção de Orfeu: E olhamos a ilha assinalada pelo gosto de abril que o mar trazia e galgamos nosso sono sobre a areia


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num barco só de vento e maresia. Depois, foi a terra. E na terra construída erguemos nosso tempo de água e de partida. Sonoras gaivotas a domar luzes bravias em nós recriam a matéria de seu canto, e nessas asas se esparrama nossa glória, de um amor anterior a todo estio, de um amor anterior a toda história. Dizem alguns que a poesia de Secchin paga tributo à sintaxe desértica de João Cabral. Por mais que essa dívida fosse algo previsível, já que ele mergulhou mais fundo do que ninguém nas vísceras do verso cabralino, não vemos dela qualquer indício em seus poemas, já que o autor soube manter-se incólume ao jugo dessa influência, à qual, diga-se logo, sucumbiram incontáveis epígonos do autor de Uma faca só lâmina. É que não se deve confundir a poesia do menos com a poética do pouco, muito embora sejam ambas quase tangenciais. E mais: há que se entender que os processos verbais de João Cabral e de Secchin são inteiramente distintos. A poesia daquele primeiro é essencialmente visual e guarda poucas relações com aquilo que poderíamos definir como a música da língua, com essa melopeia que nos vem desde Camões e Sá de Miranda e que entranha boa parte dos versos de seu intérprete, nos quais a todo instante aflora a chamada índole da língua, como o vemos, de forma cabal, na primeira estrofe do poema “Vou armar as margens dessas lendas”, na qual se lê:


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Vou armar as margens dessas lendas alugadas pelas galas da alegria. Sobre o cimo de uma voz zombada avisto o nada, e meu avesso me recria.(2) E surpreende até que assim o seja, pois quem frequenta a poesia de João Cabral – ou, mais grave ainda, quem a estuda a fundo, como o fez o autor de Elementos –, conhece como ninguém o seu fundo e insidioso poder de contaminação estilística. Conviver com essa poesia, sobretudo quando se é poeta, é como anular-se na fímbria de um sortilégio que se quer impor e imprimir seu estigma sobre tudo o que porventura medre ao seu redor. Penso que todos nós já corremos esse risco, e alguns foram por ele devorados. Estranhamente, Secchin não o foi. E é possível, neste caso, que nos deva uma explicação. De nossa parte, arriscamos aqui um paradoxo: talvez justamente por conviver à exaustão com a poesia de João Cabral é que ele pôde se furtar ao seu traiçoeiro fascínio. Depois de Ária de estação e de Elementos, Secchin somente retorna à poesia publicada em 1988, e, ainda assim, de raspão. Ou en passant, como sugere o título de uma plaquete que lhe reuniu apenas oito poemas e que leva o título de Diga-se de passagem. É bem de ver aí sua preocupação metalinguística, já que quatro desses oito poemas de algum modo a ilustram, conquanto em dois deles, “Notícia do poeta” e “Remorso”, predominem antes o humor e o sarcasmo antiparnasianos, como naquele segundo, onde se lê: “A poesia está morta. / 2  Nota dos organizadores: O poema sofreu modificações quando foi republicado em 50 poemas escolhidos pelo autor (2006).


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Discretamente, Alberto de Oliveira volta ao local do crime.” Interessa-nos mais de perto, entretanto, o primeiro poema do livro: “Biografia”. É que sua primeira estrofe proclama uma poética que jamais poderia ser endossada pela raison raisonante que preside a poesia de João Cabral de Melo Neto:

O poema vai nascendo num passo que desafia: numa hora eu já o levo, outra vez ele me guia. No processo cabralino, o que se percebe é a mão tenaz e dominadora do poeta, de modo que o poema jamais o guia, sendo antes por ele controlado e mesmo subjugado. É claro que sobre esse assunto de precedências caberia aqui toda uma discussão que este breve depoimento não comporta. O que quero deixar claro, mais uma vez, é que, embora haja analisado com rara acuidade a poética de João Cabral, é outra a matriz a partir da qual se articula o processo poético de Secchin, tal como o vemos, ainda em Diga-se de passagem, num belo poema veladamente metalinguístico que tem como título “Cintilações do mal”, cujas duas primeiras estrofes tomo aqui a liberdade de citar: Cintilações do mal. Precipício de poemas, travessia para um sol que vem de longe. Minha sombra aparecendo na calçada repentina feito a mão de um monge.


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Enroladas nos panos da cama, na malícia de serpente e lã, dormem as mulheres que não tive na delícia vermelha da maçã.(3) Vejam bem que, neste caso, o tom seria antes bandeiriano do que cabralino. Ou mesmo eliotiano, se nos lembrarmos daqueles “Preludes” que constam de Prufrock and other observations. E isso atesta aquilo que costumo chamar de boa formação poética. Em outras palavras: quanto mais influências ou pontos de tangência, tanto melhor para a saúde literária de qualquer autor. Os poemas até então inéditos, que, juntamente com os que já se encontravam publicados, o autor reuniu em Todos os ventos, confirmam todas as suas anteriores virtudes, além de acrescentar-lhes outras. Assim, paralelamente ao domínio cabal da língua e da linguagem poética, assiste-se ao seu amadurecimento como artista, essa maturidade que não se deve apenas a uma conquista do espírito e da alma, mas também a uma refinada educação sentimental, como nos sugere o romance de Gustave Flaubert. Percebe-se nesses poemas que Secchin renunciou a qualquer artifício verbal ou pompa estilística, o que os leva àquela difícil comunhão entre o quê e o como da expressão poética. Não há neles nem sobras nem arestas: são apenas exatos, como exatas são a vida e a morte. Sua música weberiana já não mais recorre àqueles traiçoeiros e amiúde fáceis artifícios da paronomásia 3  Nota dos organizadores: A segunda estrofe desse poema foi suprimida pelo poeta em edições posteriores (Todos os ventos – 2002)


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ou da aliteração. Nota-se ainda que a poesia do autor se avizinha cada vez mais daquela concepção wordsworthiana segundo a qual o fenômeno poético poderia ser entendido como uma “emotion recollected in tranquility”. É pelo menos isto o que comprovam pelo menos dois dos “Dez sonetos da circunstância”, cuja pompa é nenhuma e cuja poesia é absoluta. Assinale-se em ambos o misterioso estigma de um tempo que passou e deixou suas marcas, essas marcas que devem aqui ser compreendidas como uma “busca do tempo perdido”, na qual o ser humano se redescobre porque alcança a dimensão estética do tempo, como no ápice do romance proustiano. Nesse sentido, é exemplar o primeiro quarteto do soneto “O menino se admira”, no qual se lê: O menino se admira no retrato e vê-se velho ao ver-se novo na moldura. É que o tempo, com seu fio mais delgado, no rosto em branco já bordou sua nervura. Há também nesses poemas uma vertente a que Secchin jamais renunciou: a do humor. Se é verdade que ela aflora mais intensamente em seus ensaios críticos, nem por isso podemos desconsiderar sua existência desde os primeiros textos poéticos que escreveu o autor. Essa “rebelião do espírito contra a miséria da nossa condição”, como escreveu certa vez Aníbal Machado a propósito do humor, faz-se visível em dois de seus últimos poemas: aquele em que explora um breve episódio das peregrinações azevedianas, quando o grande poeta romântico cumpre certa visita no Catumbi; e um outro


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em que Secchin confessa não poder se dar “em espetáculo”, pois “a plateia toda fugiria / antes mesmo do segundo ato”. Não bastasse essa fuga, ele teria ainda contra si um crítico que, “maldizendo a sua sina / rosnaria feroz / contra a minha verve / sibilina”. Mas é antes fina do que sibilina a verve com que o autor descreve a tal visita de Álvares de Azevedo naquele primeiro poema, cujos últimos versos dizem: Ao sair, deixa ao sono cego do parceiro dois poemas, um cachimbo e um estilo. Sim, um estilo. E eis aqui uma das chaves, se não a principal, para que possamos entender não apenas a sua poesia, mas também a sua prosa e o seu ensaísmo. Esse estilo austero e de poucas palavras que não se pode dissociar daquele que ilumina seus textos ensaísticos, nos quais, como sublinha Antônio Houaiss, “há um lastro preciso de elegâncias (na linguagem, nas imagens, no encaminhamento das ideias, no respeito ao leitor, no pudor para com os criticados)”. Esse estilo, remata ainda Sérgio Paulo Rouanet, é que “mantém uma misteriosa afinidade” com a “matéria poética que trabalha”. Refiro-me aqui a tais circunstâncias porque é amiúde importante, para compreendermos a poesia de determinados autores, que lhe examinemos mais de perto a prosa estético-doutrinária que nos legaram. É isso, por exemplo, o que acontece com Horácio, Boileau, Coleridge, Baudelaire, Valéry, Eliot, Leopardi, Paz, Borges e tantos outros cuja crítica literária tem a iluminá-la a condição de poetas que sempre foram. E mais crucial ainda do que todas essas ponderações que faço aqui para compreender


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melhor o seu estro poético seja talvez esmiuçar-lhe o próprio pensamento doutrinário a respeito do assunto, ou seja, o que nele se entende por poesia. No ensaio “Poesia e desordem”, que abre sua coletânea homônima de escritos sobre poesia e alguma prosa, diz Secchin que “a poesia não pretende ser o espelho do caos, hipótese em que, ausente qualquer padrão de reconhecimento, tudo, isto é, nada, seria poético.” É ainda nesse ensaio que ele nos esclarece quanto à sua própria concepção do fenômeno poético quando sustenta que “a poesia representa a fulguração da desordem, o ‘mau caminho’ do bom senso, o sangramento inestancável do corpo da linguagem, não prometendo nada além de rituais para Deus nenhum”. Ou seja, o ato poético, como o entende o autor, seria uma espécie de “desordem sob controle”. E argumenta que, nessa perspectiva, “a poesia poderia ser também encarada como uma espécie de grande metáfora da língua, um discurso que, simulando ser a imagem do outro, já que dele utiliza as palavras e a sintaxe, acaba produzindo objetos que desregulam o modo operacional e previsível da matriz”. E como que para confirmar essa atitude exegética afirma Secchin ao cabo do segundo ensaio do volume: “Por isso, desconfio da crítica que escamoteia, por pudor epistemológico, sua condição de navegante à deriva do texto, na busca infatigável da invenção do sentido.” Temos aqui, efetivamente, o tipo de poeta que ele é ou, na pior das hipóteses, o que sua escolha estética nos leva a crer que seja: um poeta de poetas e um crítico de poetas. E não apenas sua poesia como também sua prosa o atestam. E há nessa mesma poesia um dado que talvez a explique melhor.


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Aludo aqui a uma breve e concisa inscrição a partir da qual se articula sua meditação pré-socrática sobre aqueles quatro elementos que serviram de base à especulação filosófica dos primeiros pensadores daquela colônia grega de Mileto, na Ásia Menor: O real é miragem consentida, engrenagem da voragem, língua iludida da linguagem contra a sombra que não peço. O real é meu excesso. É graças a esta inscrição, verdadeira declaração de princípios poéticos, que se pode começar a entender o pensamento do autor, sempre avesso à evanescência da música simbolista ou à fantasmagoria da ilusão romântica. Sua preocupação é antes com a palavra concreta, e não com o vazio de um “signo precário”. Em certa medida, ele reage contra aquele esforço no sentido de dizer o indizível que caracteriza quase toda a poesia rilkiana. E não creio que assim o seja apenas por influência da dura e áspera sintaxe cabralina, mas por algo que nele já preexistia, quer como crença estética, quer mesmo como desígnio poético, ao seu monumental estudo sobre João Cabral de Melo Neto. É que supomos que essa aproximação com a poesia do autor de Pedra do sono resultaria antes de uma goethiana afinidade eletiva. A mesma, por exemplo, que levou Baudelaire a difundir na França o poetic principle de Edgar Allan Poe e a traduzir-lhe quase toda a obra ficcional. E no que toca a essa obsessão pela visibilidade concreta do signo


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poético ou à sua desconfiança com relação a tudo o que não seja emocionalmente tangível, se aqui não me derem ouvidos, não os façam moucos ao que Secchin escreve no primeiro poema de Elementos: Palavra, nave da navalha, gume da gaiola, ave do visível. Ao fim deste breve depoimento, gostaria de dizer ainda algumas poucas palavras sobre Todos os ventos, volume em que o autor reuniu toda a sua poesia, pois é nele que melhor se pode observar a cristalização de todos esses processos estilísticos e verbais a que já aludi, como o atestam, muito particularmente, aqueles modelares “Dez sonetos da circunstância”. E se digo modelares, faço-o apenas porque neles não se percebem aquelas fraturas e fissuras que nos levam às vezes a concluir que se rompeu a indissolúvel comunhão entre forma e fundo, como se vê amiúde nos poemas dos autores que não alcançaram ainda a sua maturidade. Nesses sonetos, ao contrário, vemos confirmada aquela concepção de que forma e fundo são uma coisa só, tamanho e tão íntimo se revela o matrimônio entre o que se quis dizer e o que efetivamente se disse. É de tal modo austera e solene a sua linguagem que, no prefácio ao livro, Eduardo Portella nos assegura que nele estão “todos os ventos e nenhum vendaval”, exceto “a serena percepção do precipício, esse núcleo tenso e intenso que promove a dispersão e a coesão”. Outro ilustre


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acadêmico e astucioso crítico literário, Alfredo Bosi, sustenta que, em Todos os ventos, Secchin logrou “alcançar o nível raro da expressão singular, forte e desempenada”, e logo em seguida se refere aos “belos sonetos ingleses” de que há pouco me ocupei. Para concluir estas poucas palavras, reservo-me aqui, por uma questão de estima pessoal, o direito de escolher apenas um desses dez soberbos sonetos, aquele que me dedica o autor e que leva o título de “À noite o giro cego”. Nele diz o poeta e amigo de todas as horas: À noite o giro cego das estrelas, errante arquitetura do vazio, desperta no meu sonho a dor distante de um mundo todo negro e todo frio. Em vão levanto a mão, e o pesadelo de um cosmo conspirando contra a vida me desterra no meio de um deserto onde trancaram a porta de saída. Em surdina se lançam para o abismo nuvens inúteis, ondas bailarinas, relâmpagos, promessas e presságios, sopro vácuo da voz frente à neblina. E em meio a nós escorre sorrateira a canção da matéria e da ruína.


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Procura da poesia Luciano Rosa(1)

Antonio Carlos Secchin é um operário das letras. Ao contrário do que fazem supor o aparente simplismo e o tom clichê da frase, tratando-se de Secchin a afirmativa assume variadas feições, desdobradas na natureza multifária de sua militância artística e intelectual. Operário das letras é predicativo que se ajusta tanto ao premiado poeta de Todos os ventos – hábil artífice da expressão lírica que bem conhece a importância do trabalho na forjadura do poema – quanto ao ensaísta meticuloso e ao crítico refinado, que fazem da lida diligente com o texto alheio a matéria-prima de páginas luminosas e iluminadoras. Neste operário das letras também coabitam, entre outros, o ficcionista bissexto, o dileto professor de literatura brasileira – do qual fui aluno, com imenso prazer, na Faculdade de Letras da UFRJ –, o pesquisador laborioso, o acadêmico atuante, o membro de conselhos editoriais, o organizador e prefaciador de diversos volumes e antologias de poesia brasileira. Outra faceta particularmente interessante se irmana com as demais: o bibliófilo apaixonado, responsável em grande medida pela impressionante biblioteca de Secchin, que decerto figura entre os mais significativos acervos particulares do país, seja pelo número de volumes, seja pela raridade de algumas peças. O amor aos livros fez do bibliófilo íntimo 1  Doutorando em Literatura Brasileira (UFRJ).


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conhecedor dos caminhos tortuosos por que circulam (ou em que se escondem) preciosidades literárias. Se hoje a internet e seus alfarrabistas virtuais facilitam sobremodo a garimpagem de títulos fora de catálogo, o Guia dos sebos elaborado por Secchin foi, até bem pouco tempo, uma espécie de mapa da mina para os aficionados de livros antigos e esgotados. Ao longo dos anos Secchin tem se aplicado a desdizer a crença de que certo livro ou poema é carta fora do baralho. A busca incansável de obras raras levou-o a descobertas extraordinárias, dignas de um Sherlock Holmes. Eis mais um ofício desse operário das letras: o detetive obstinado que de pista em pista persegue o esconderijo do manuscrito, o paradeiro do último ou único exemplar de alguma obra apagada da história da literatura brasileira. O caso Primeiros poemas, de João Cabral de Melo Neto

Boa parte da extensa produção crítica e ensaística de Secchin versa sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto. Ao seu João Cabral: a poesia do menos (1985), referência no estudo da obra do poeta pernambucano, juntam-se diversos outros textos dedicados à poética cabralina, publicados esparsamente e depois coligidos nos demais livros do ensaísta. Certa feita Cabral afirmou: “Entre todos os professores, pesquisadores e críticos que já se debruçaram sobre minha obra, destaco Antonio Carlos Secchin. Foi quem melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como poeta”. Em 1990 a UFRJ concedeu a Cabral o título de Doutor Honoris Causa. Para celebrar a ocasião, Secchin, que


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propusera a honraria, sugeriu ao poeta a edição de algo especial: “indaguei se não me cederia, para publicação, um pequeno caderno manuscrito (com a letra da primeira esposa, dona Stella) contendo sua produção inicial, dos 16, 17 anos. Para minha surpresa, aquiesceu de imediato, e o resultado foram os Primeiros poemas, que saíram pela Faculdade de Letras da UFRJ em tiragem numerada e limitada a quinhentos exemplares”.(2) Entre outras preciosidades, o volume trouxe 17 poemas da produção incipiente de Cabral, absolutamente inéditos, e textos que só apareceram na raríssima primeira edição de Pedra do sono (1942), volume de estreia do poeta. Desde 2008 a coletânea integra – com o devido destaque, inserida na cronologia da obra cabralina ­– a edição da Poesia completa e prosa de João Cabral de Melo Neto, organizada por Secchin para a Nova Aguilar. O caso Nevrose azul, de Júlio Salusse O fluminense Júlio Salusse foi poeta de minguada produção talhada à moda parnasiana, na qual sobressai o soneto que lhe assegurou alguma notoriedade: “Cisnes...”, publicado pela primeira vez em 1893 na revista O Álbum e incluído no ano seguinte em seu primeiro livro, Nevrose azul. A bibliografia do poeta conta ainda com Sombras, de 1901, e um terceiro título (Fitas coloridas, com poemas datados até 1947) que não chegou a ser publicado em vida do autor. A obra de Salusse sempre esteve tocada pela invisibilidade 2  SECCHIN, Antonio Carlos. Entrevista ao jornal Rascunho. In: Memórias de um leitor de poesia & outros ensaios. Rio de Janeiro: ABL; Topbooks, 2010. p. 254-5.


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– quer pelo pequeno alcance da fatura poética, quer pela quase impossibilidade de se encontrarem exemplares de seus livros. Não obstante, foi incluído na Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana (1938), preparada por Manuel Bandeira, e na seleta Poesia parnasiana (1967), organizada por Péricles Eugênio da Silva Ramos, que afirmou: “Os que desejavam conhecer a obra do poeta esbarravam, contudo, e ainda esbarram, com uma dificuldade: os livros de Salusse eram difíceis de ser obtidos ou sequer vistos”.(3) De fato, ao que se sabe, praticamente não restou exemplar localizado de sua obra. De Nevrose azul não há registro nas principais bibliotecas do país. Até que em 1993 surgiu, no volume 113 dos Anais da Biblioteca Nacional, a Obra poética de Júlio Salusse, organizada e prefaciada por Secchin. Lá estão os dois títulos publicados e o até então inédito Fitas coloridas. No estudo introdutório, referindo o absoluto extravio de Nevrose azul, Secchin afirma: “a obra simplesmente desapareceu: nem na Biblioteca Nacional há notícia de Nevrose azul”.(4) Na sequência pergunta: “Como, então, tornou-se possível esta edição, que devolve às nossas letras um livro que fisicamente não se conhece?”. O próprio Secchin responde à questão, em nota explicativa que, adquirindo curiosa autonomia, soa como saboroso fragmento de trama investigativa: Num sebo no Rio de Janeiro encontramos um caderno manuscrito com a transcrição de quatro livros: 3  RAMOS, Péricles Eugênio da Silva apud SECCHIN, Antonio Carlos. “A volta dos cisnes”. In: Poesia e desordem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. p. 41. 4  SECCHIN, Antonio Carlos. Ibidem.


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Nevrose azul, Sombras e Fitas coloridas, de Júlio Salusse; Visões de moço, de Olegário Mariano. [...] O manuscrito, infelizmente, não era autógrafo de Salusse, conforme pudemos verificar. Como, então, assegurar a fidedignidade dos textos? Nesse ponto foi fundamental a reprodução, na biografia de Castelo Branco, do livro Sombras, de que existe um exemplar na Biblioteca Municipal de São Paulo. Cotejando o manuscrito com o texto estampado pelo biógrafo, verificamos que a transcrição havia sido perfeita: todos os poemas de Sombras encontravam-se no caderno, na sequência original e absolutamente corretos. Ora, se tal apuro fora comprovado neste livro, por que não atribuir a mesma confiabilidade aos demais? Dois outros fatores reforçam a hipótese. Castelo Branco (sem jamais ter visto o livro) refere que Nevrose azul conteria um segundo poema dos “Cisnes...”. No manuscrito, deparamo-nos com “Sonhando...”, clara retomada (algo diluída) do famoso soneto. Convém ainda observar que o biógrafo agregou a seu estudo “tantas outras pérolas” [sic] coligidas na produção esparsa de Júlio; pois bem, todos esses dispersos (e mais alguns) estão presentes naquele que seria o terceiro livro de Salusse, Fitas coloridas, deixando entrever, na organização do manuscrito, um desejo de publicação, inviabilizada pela morte do autor. Sintomaticamente, a coletânea se encerra com “Desencanto”, último soneto de Júlio, datado de 1947. Finalmente, num artigo de Lausimar Laus, (“Notas sobre Júlio Salusse”, publicado no Jornal do Commercio em 27/12/1959), consta a informação de que Roberto Vieira, um amigo do poeta:


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reuniu todas as poesias para que Salusse fizesse um livro. [...] Não só a velhice, mas também a doença ameaçavam a vida do velho fazedor de versos, e o caderno em que Roberto havia reunido tudo o que estava esparso, parece-me, ficou com Nilo Bruzzi, amigo do poeta. Até comprovação em contrário, o manuscrito terá tido, pelo menos, o mérito de abrigar o livro inédito do cantor dos cisnes, obra que, conforme registramos, se constitui no ponto mais alto de sua produção. (5) Obras desaparecidas, manuscritas em velho caderno descoberto num sebo, cotejadas linha a linha com fonte impressa a fim de comprovar a fidedignidade de um achado raríssimo mencionado en passant em artigo de jornal publicado há mais de 30 anos. Não fosse a veracidade inquestionável, dirse-ia tratar-se de estratégia narrativa tipicamente detetivesca. No entanto, é tão somente a explicação de como retornaram à luz os praticamente delidos poemas de Nevrose azul, bem como os de Fitas coloridas, que muito provavelmente ainda estariam confinados no olvido, não fosse o trabalho tenaz de Secchin. O caso Espectros, de Cecília Meireles Embora a carreira editorial de Cecília Meireles tenhase inaugurado em 1919, a autora considerava sua trajetória poética iniciada em 1939, com a publicação de Viagem. 5

Idem, pp. 48-9.


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Os livros anteriores foram renegados, conforme se pode constatar na Obra poética vinda a lume em 1958: a reunião da obra então editada de Cecília (única compilação lançada em vida da poeta) abria-se com Viagem, registrando a deliberada exclusão dos títulos publicados antes de 1939. Entre os alijados, Nunca mais, de 1923, e Baladas para El-Rei, de 1925, seriam reincorporados à obra da autora em 1973, quando a nova edição de suas Poesias completas, a cargo de Darcy Damasceno, os resgataria. Havia, no entanto, outro livro de Cecília, surgido ainda antes de Nunca mais. Trata-se de Espectros (1919), vindo a público quando a poeta contava 18 anos, em única edição de pequena tiragem da qual não se conhecia nenhum exemplar. Desaparecido e nunca encontrado, o livro tornouse lendário, envolto em bruma realmente espectral, havendo mesmo a suspeita de que nunca tivesse de fato existido. O mistério foi dissipado em 2001, com o lançamento da Poesia completa de Cecília, organizada por Secchin para a Nova Fronteira, em comemoração ao centenário da poeta: lá está republicado Espectros, após oito décadas depois de total desaparição. Falando sobre a edição do centenário, o organizador lembra o prodígio: Quanto a Espectros, sua obra de estreia em 1919, há mais de oitenta anos dela não se tinha notícia. [...] O elo perdido, o texto primordial, verdadeiro espectro a povoar a insônia dos arqueólogos literários. Finalmente, após numerosas buscas nos sebos e bibliotecas públicas e particulares, tanto no Brasil quanto em Portugal, consegui, graças à generosa


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colaboração de um bibliófilo, localizar um exemplar do livro, que a nova edição restituirá à memória da poesia brasileira, décadas após seu – supostamente irreversível – desaparecimento. (6) Mais uma vez Secchin, de sobretudo, lupa e cachimbo, empreendia silencioso trabalho investigativo e resgatava um dos livros mais raros da poesia brasileira. Em que pese a relevância da descoberta, à republicação da obra antecedeu a hesitação entre respeitar a rejeição da autora e privilegiar o valor histórico da reinserção de Espectros no conjunto da poesia de Cecília, como revela o organizador: A satisfação com a descoberta do livro fez-se acompanhar de uma dúvida: seria lícito reeditar uma obra que a autora, segundo tudo leva a crer, preferiu omitir de seu trajeto? A solução, quem sabe, poderia ser sua inclusão em apêndice, mas tanto a editora quanto os descendentes de Cecília foram favoráveis a que Espectros, ao contrário, abrisse a edição do centenário, não apenas pela importância da redescoberta de um livro dado como perdido de um de nossos maiores poetas, mas para que se mantivesse o critério de ordenação cronológica do material. (7) A boa decisão dos envolvidos no projeto editorial da Poesia completa de Cecília Meireles soube reconhecer o valor da 6  SECCHIN, Antonio Carlos. “Poesia completa, de Cecília Meireles: a edição do centenário”. In: Escritos sobre poesia & alguma ficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. pp. 160-1. 7

Idem, p. 162.


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localização de Espectros, de modo que o antes misterioso livro está novamente – e em definitivo – à disposição do público leitor. O caso Os 25 poemas da triste alegria, de Carlos Drummond de Andrade Ao contrário de Cecília, Carlos Drummond de Andrade não renegava qualquer de seus livros, que começaram a ser publicados em 1930, com Alguma poesia. O volume, que já prenunciava claramente o grande poeta, sempre esteve presente nas reedições de sua obra. Mas há no percurso de Drummond (como de resto na de todo escritor) uma proto-história literária, de que seria testemunha um livro inédito: Os 25 poemas da triste alegria. Sobre o volume há comentários de, por exemplo, Manuel Bandeira, que chegou a ler os originais da obra, e José Maria Cançado, biógrafo de Drummond. Em passagem de Os sapatos de Orfeu, Cançado refere que, no início da década de 1920, o poeta confiou a Dolores, então sua namorada, a tarefa de bater os textos à máquina: “Da perícia de datilógrafa de Dolores saiu [...] o único exemplar de um livro de poemas que Drummond chegou a organizar e que acabou se perdendo: Poemas da triste alegria”. (8) Mais um mistério nas letras brasileiras: uma obra extraviada sem publicação, escrita por um de nossos maiores poetas, desaparecida há décadas. Alguma notícia sobre o livro dá conta de que, em 1924, Drummond, à época morando em Belo Horizonte, mandou encadernar um único exemplar e 8  CANÇADO, José Maria. Os sapatos de Orfeu – biografia de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Globo, 2006. p. 94.


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o enviou ao Rio de Janeiro, aos cuidados de Rodrigo Melo Franco de Andrade. O amigo mineiro radicado na então capital federal tinha contatos no meio literário que talvez facilitassem a publicação do livro. Em 1937, já residindo no Rio e trabalhando como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde Pública do governo Vargas, Drummond reouve o material encaminhado a Melo Franco e nele manuscreveu observações, datadas e assinadas, sobre os poemas. Em matéria da revista Veja, o jornalista Marcelo Bortoloti escreve: Depois de 1937, a trajetória dos 25 poemas é um mistério. Na década de 80, Drummond declarou, em entrevista, que Rodrigo Melo Franco emprestara a obra a alguém que desapareceu com ela. Clara de Andrade Alvim, de 73 anos, filha de Rodrigo, lembrase de uma história diferente. Seu pai contou que recebera certa vez um original de Drummond, mas, por ter demorado a comentá-lo, o poeta o apanhara de volta e nunca mais o devolvera. “Isso magoou muito meu pai”, conta. Clara não tem certeza de que se trata de Os 25 poemas da triste alegria, mas diz que esse original não está no acervo da família desde a década de 50, pelo menos. (9) O fato é que, depois de tantas idas e vindas, o livro, ainda mais precioso com anotações de próprio punho do autor, 9  BORTOLOTI, Marcelo. Drummond antes de Drummond. In: Revista Veja, Rio de Janeiro, Ed. Abril. edição de 11.11.2009. p. 209.


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havia sumido. Dele não havia notícia até que Secchin, em suas andanças à cata de raridades, percebeu que no meio do caminho tinha uma pérola: Os 25 poemas da triste alegria cintilaram diante de nosso Sherlock, que descobriu “os originais quase por acaso, pesquisando em um acervo no qual esperava encontrar edições raras de João Cabral e Jorge de Lima (que não estavam lá)”(10), como informa Marcelo Bortoloti na matéria da Veja. Resgatados, Os 25 poemas da triste alegria devem finalmente vir a lume em edição facsimilar, segundo promessa de Secchin. “No livro antigo/ meu domingo perdido.” (11) Muito embora pareça referir-se ao pesquisador abnegado ou ao crítico renitente, o dístico de “Limites”, do poeta Secchin, bem se aplica à devoção do bibliófilo converso em detetive, sempre disposto a renúncias em nome do que o absorve: o resgate de obras que em surdina se lançam para o abismo da obscuridade. Lá estão os poemas que esperam, proscritos, a chegada daquele que os desprenderá do limbo do esquecimento, a que pareciam inapelavelmente fadados. Com livre trânsito pelos recantos nebulosos do reino das palavras, Antonio Carlos Secchin, qual Orfeu, desce a esse precipício de poemas e os conduz na travessia para um sol que vem de longe, o sol da memória, cuja luz duradoura agora os perpetua. Está lançada, assim, entre um ontem vivo e um amanhã apressado, a ponte sobre o rio difícil da deslembrança, de onde se salvam os livros que se negam a se transformar em desprezo. 10  Idem. 11  SECCHIN, Antonio Carlos. Limites. In: Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 133


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É ele! Marcos Pache(1) No princípio do precipício meu início. Numa das mais notáveis páginas de Escritos sobre poesia e alguma ficção, Antonio Carlos Secchin, em texto dirigido à Real Academia Sueca indicando Ferreira Gullar ao Prêmio Nobel de Literatura, aponta algumas das vertentes estilísticas pelas quais os poetas se notabilizam, para, um pouco à frente, dizer que a obra do maranhense comporta todos os itens por ele enumerados. A alusão aqui não é apenas uma rememoração para quem já leu o texto, tampouco uma recomendação para quem ainda não o fez. Aliás, o leitor pode fazer, sim, essas interpretações, pois elas não serão vãs. No entanto, dois motivos me levam a mencionar “O Nobel para Gullar”: o primeiro é o fato de ele ser uma bela lição; o segundo, sendo quem aqui escreve um declarado devoto aluno de Secchin, é fazer dele um mote para estas linhas. Há alguns anos tem se tornado cada vez mais comum nas faculdades de Letras a figura una e múltipla do profissional docente: hoje a maioria dos que fazem literatura é constituída por aqueles que lecionam literatura, e como a atividade universitária exige autoria de pesquisa, o professor estendese à vertente ensaística. Quando levadas a sério, com a perspectiva de colaboração com a universidade, com o país e 1  Doutorando em Literatura Brasileira (UFRJ) e crítico literário.


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com o mundo, cada uma dessas atividades é dotada de uma nobreza e importância que inegavelmente nos garante melhor conhecimento da realidade e, por isso, acende em nós maiores repulsa e amor pela mesma. A notoriedade em “apenas” um desses campos já basta para conferir ao notável substantivas congratulações, porque a excelência em qualquer ofício requer uma vocação a ser lapidada continuadamente, sempre à custa de muita renúncia, independentemente do perfil do trabalhador. Alcançar a maestria no que se faz é algo bastante difícil, e por isso é convencional e compreensível que se veja entre os profissionais universitários um movimento de compensação: um é ótimo professor, porém não se distingue na escrita analítica; outro escreve teses estupendas, mas parece saber apenas para si (como costumam dizer os estudantes); aquele é mediano na sala de aula e na pesquisa, entretanto cria ótimos romances ou/e magníficos poemas. Há casos, raros, em que alguém atua com o mesmo nível de competência em duas dessas esferas. E há casos raríssimos, em que o autêntico homem de letras brilha como professor, como analista e como criador. Este é o caso de Antonio Carlos Secchin. Entre uma ou outra atuação docente (no ensino secundário, no início da carreira, e como professor visitante de universidades estrangeiras), Secchin consagrou-se como professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Letras da UFRJ, na qual estudou e da qual se tornou professor titular em 1993. Conciliando o cumprimento infalível de suas atribuições a uma grande capacidade de exposição verbal, Secchin a cada semestre recebia uma grande procura


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por seus cursos, o que o levava a estabelecer nas turmas de graduação e de pós-graduação um limite do número de alunos para que fosse assegurado melhor ritmo das aulas. Mas os estabelecimentos sempre foram em vão, porque a procura de alunos ouvintes fazia com que o contingente quase dobrasse o previsto, o que se explica pelo vasto conhecimento, pela competência ao transmiti-lo e, especialmente, pelo respeito e carinho destinado aos discentes, nunca permitindo que a aura criada em torno de seu nome fosse motivo para arrogância ou soberba. Particularmente, lembro-me de dois episódios tocantes. O primeiro ocorreu com uma colega de início de graduação. Moradora de Japeri, na Baixada Fluminense, onde fica a última estação da linha férrea do circuito iniciado na cidade do Rio de Janeiro (e a partir desta referência seria ocioso apontar as adversidades que uma pessoa com este perfil enfrenta para fazer curso superior na Ilha do Fundão), a moça confessou que sentia dificuldades para compreender os poemas trabalhados em sala. Além de se colocar à disposição para o esclarecimento das dúvidas, o professor passou a trazer letras de músicas para familiarizar a aluna às particularidades do texto poético, proporcionando a ela uma nova e densa educação. Noutra feita, um amigo meu, soldado do corpo de bombeiros e postulante ao curso de Mestrado em Literatura Brasileira, consultou-o a respeito das provas do concurso a ser realizado. Então Secchin, por não participar da banca examinadora daquele ano, recomendou que o candidato fizesse as provas dos anos anteriores para que ele as corrigisse. E isso sem ter com o rapaz qualquer vínculo prévio de amizade.


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A importância de gestos dessa natureza cresce ainda mais se inserirmos Secchin no contexto contrastivo dos discursos e das ações, das aparências e das essências, que marca o ambiente universitário. A princípio, causa certa estranheza que um professor insista em levar para a sala de aula textos do século XIX, e que na leitura dos mesmos ele chame a atenção para fatores textuais supostamente arcaicos, como métrica, rima, estrofação etc. Somando isso ao fato de o professor em questão possuir ares aristocráticos, dado o visual ordenado, o discurso polido, a etiqueta impecável e o vínculo com a Academia Brasileira de Letras, faz-se um diagnóstico: trata-se do típico burguês conservador, circunscrito ao seu umbigo e alheio aos problemas gerais, provavelmente órfão das musas e saudoso do tempo da inspiração. Mas a práxis demonstra o radical contrário: o firme compromisso com as diretrizes a que estão submetidos os trabalhadores da esfera estatal, traduzido pela assiduidade, pontualidade e programação de todas as suas aulas (algo que muitos professores costumam negligenciar). Isso é fruto de um respeito inalienável aos alunos, que, dentro da universidade pública, são a parte mais fraca da corda que se completa pelos docentes e pelos funcionários técnico-administrativos. A mais, Secchin participou ativamente dos eventos da faculdade, ora em projetos editoriais, ora em palestras que ele proferiu ou coordenou, provando sua vocação de homem público. Nunca foi homem de levantar bandeiras, de proferir sermões ou de cobrar posicionamentos. Não que isso seja, em si, algo ruim. Mas os movimentos de base e os partidos políticos mais tipicamente instalados na universidade pública, que são os de esquerda, também praticam o que rechaçam, e no lugar de aderir à ação ou á inércia programática, Secchin


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preferiu a dedicação total à sala de aula e ao enriquecimento cultural da universidade, o que, aliás, deveria ser a obrigação primeira de todos os seus membros. Tal forma de atuação estende-se à sua produção ensaística. O primeiro livro crítico de Antonio Carlos Secchin é até hoje o mais importante: João Cabral, a poesia do menos é já um clássico da crítica literária brasileira e referência obrigatória nos estudos cabralinos. O rigor analítico, a penetração discursiva e a originalidade interpretativa já se evidenciam no início da tese, onde se estampa também a lucidez crítica que faz do dizer da obra o dizer da análise, e não o contrário: Este livro procura interpretar a poesia de João Cabral de Melo Neto a partir da hipótese de que ela se constrói sob o prisma do menos (...). Se a obra cabralina comporta essa linha de análise, é evidente que nela não se esgota. Por isso, sobre enfatizarmos os processos especificamente ligados à nossa proposta geral, procuramos depreender outros aspectos a ela não imediatamente vinculados, mas também relevantes para a compreensão da poesia do autor (1985, p. 13, grifos do autor). Essa conjunção de fatores rendeu a Secchin o Prêmio Nacional do Instituto Nacional do Livro, o reconhecimento acadêmico e a declaração do próprio João Cabral de Melo Neto, afirmando que ele “foi quem melhor analisou os desdobramentos daquilo que pude realizar como poeta”.(2) 2  Jornal de Letras. Rio de Janeiro: 4 de junho de 1991.


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Os livros seguintes confirmam a excelência do estudioso no trato do texto literário, especialmente o poético. Poesia e desordem (1996), Escritos sobre poesia e alguma ficção (2003) e Memórias de um leitor de poesia (2010) atestam que seu autor é o mais equipado e visceral intérprete de poesia do país. Tais livros desautorizam qualquer hipótese de, como sugerido há pouco, associá-lo ao mau conservadorismo, pois suas reflexões abraçam a obra de poetas importantíssimos da modernidade literária brasileira, estejam eles no século XX ou não. Nas páginas desses livros, estampa-se uma grande marca estilística da crítica de Secchin: a microscopia do poético. A análise detalhada de todos os itens textuais, até mesmo as dedicatórias, volta-se para a confirmação da tese geral do estudioso – a de que a poesia dispõe de meios próprios de estruturação, constituindo uma desordem organizada. Seja na produção de um longo estudo, seja na escrita de ensaios ou na feitura de resenhas para cadernos literários, Secchin cria uma verdadeira pedagogia da leitura poética. Numa esplêndida comparação entre a “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, e a “Nova canção do exílio”, de Carlos Drummond de Andrade, a leitura instilada torna absolutamente límpido o obnubilado poema do poeta itabirano: Como traduzir “Em cismar, sozinho, à noite, / Mais prazer encontro eu lá” eliminando-se a primeira pessoa? Resposta: por uma sutil modificação num sinal gráfico... No texto de 1843, o verso 2 se encerra em ponto e vírgula; na “Nova canção”, por dois-pontos. Os dois pontos permitem que o sabiá possa exercer


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a função de sujeito da oração. Essa leve mudança faz com que o verso 1 flua, sintaticamente, para o posterior, gerando, desse modo, uma ambiguidade na concordância verbal: “seria” admite tanto o sujeito oculto “eu” (segundo a lição do original) quanto a supressão do “eu” em prol do outro (o sabiá, na lição drummondiana) (2010, pp. 167-8). Como é próprio dos grandes literatos, as lições artísticas de Secchin estendem-se a lições para a vida. Dessa forma, um dos mais importantes alicerces de sua obra é a advertência contra os diversos maniqueísmos que se atolam no dia a dia e também nos estudos culturais. O comentário a respeito da modernidade de Cecília Meireles é um dentre tantos exemplos: Paradoxalmente, somos levados a afirmar que tal modernidade consiste, em larga escala, exatamente na resistência ao Modernismo, no que ele continha de mais óbvio (...). Tal resposta, porém, não é suficiente, pois muitos que renegaram o Modernismo o fizeram em nome de um obsoleto Neoparnasianismo – o que não corresponde, de modo algum, à prática poética de Cecília (Idem, p. 128). A paixão pela poesia e o mergulho nos estudos acerca da mesma ocasiona em Secchin uma atividade pela qual ficou famoso: a de bibliófilo (vejam que aqui já extrapolamos a indicação das três linhas de atuação feita no início deste texto). Como se sempre estivesse disposto a ir além da


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historiografia, Secchin costuma ter todas as primeiras edições dos livros com que trabalha, edições estas nem sempre de posse das famílias dos autores, quando já falecidos, ou mesmo de alguns autores, mesmo estando vivos. E na empreitada de desbravar bibliotecas e sebos do Rio e do Brasil (o que deu ocasião ao Guia dos sebos, já na quinta edição), ele resgatou obras tidas como absolutamente extintas, fazendo, por exemplo, a reconstituição dos escritos do parnasiano Júlio Salusse, recuperando Espectros (1919), de Cecília Meireles, e encontrando originais de Drummond anteriores à publicação de Alguma poesia, o que acentua, de modo brilhante e pouco reconhecido, sua inestimável prestação de serviços à memória cultural brasileira. A intimidade de Secchin com o literário manifesta-se de forma igualmente densa no âmbito da criação. Embora nesse sentido seu trabalho de poeta seja mais conhecido, há nele um talentoso ficcionista, ainda embrionário na novela Movimento (1975), e já de escrita encorpada em contos aos quais falta dar uma edição em livro, como é o caso do belíssimo “Carta ao Seixas”: Tudo poderia ser diverso, Seixas. Mas, agora, não posso senão acreditar que as máquinas do mundo se azeitaram para moer-me os sonhos. Não tive filhos. Restam-me a casa, o criado, os jornais, e uma cabeça que pensa, pensa, e só consegue destilar a náusea em gestos de caridade rentável e pública: eu dou esmolas como quem cospe. Tudo poderia ser bem diverso. O ex-futuro deputado. O quase provável ministro. Mas


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tropecei naquele amor. Tinha olhos de ressaca: me atirei sem boia nesse mar. Afastei-me da costa, tive força de retornar e recolher os destroços: era quase nada. Náufrago a seco, pergunto-me hoje se não teria sido melhor deixar-me levar pelo turbilhão. Nadar, nadar, nadar, até perder a memória dos homens, e docemente sumir nas águas mornas e densas dos cabelos de Capitu.(3) E é como poeta que Secchin revela sua mais contínua e mais substantiva ação criativa. Depois de procurar por si mesmo durante alguns anos e livros – A ilha (1971), Ária de estação (1973), Elementos (1983) e Diga-se de passagem (1988) – ele encontrou uma dicção particular em Todos os ventos (2002), a lira dos cinquenta anos que, conforme ele próprio diz, “representa ao mesmo tempo a minha ‘estreia’ e minha ‘obra completa’” (2007, p. 22). Esta dicção, finamente trabalhada pelo olhar atento e pela mão exigente de quem a constitui, é marcada especialmente pelo intertexto – É ele ! No Catumbi, montado a cavalo, lá vai o antigo poeta visitar o namorado. Não leva flores, que rapazes raro gostam de tais mimos. Leva canções de amor e medo. 3  Rascunho. Edição 106. Curitiba, fevereiro de 2009.


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Cachoeiras de metáforas, oceanos de anáforas, virgens a quilo. Ao sair, deixa ao sono cego do parceiro dois poemas, um cachimbo e um estilo. (p. 17)

– pela repulsa ao patrulhamento literário – Severos juízes da lira alheia, sabem falar vazio de boca cheia. Este não vale. A obra não fica. Faz soneto, e metrifica. E esse aqui o que pretende? Faz poesia, e o leitor entende! (p. 26, grifos do autor) – e pela atmosfera lírica com que contempla a vida, conhecendo-a por meio de versos bordados em sílabas de renda, sejam eles portadores do desencanto proveniente da constatação da efemeridade – O menino se admira no retrato e vê-se velho ao ver-se novo na moldura: é que o tempo, com seu fio mais delgado, no rosto em branco já bordou sua nervura. E por mais que aquele outro não perdure, quase sombra no relâmpago desse ato,


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ele há de ver-se mais antigo no futuro, vendo ver-se novo no menino do retrato (p. 34) – sejam embalados pelo afeto flutuante com o qual desejamos apagar os motores cancerígenos do mundo – Passeiam pares de bicicletas Sob um céu abotoado de estrelas (p.51). Há homens e mulheres que realizam com beleza, coerência e honra um singular amálgama entre o que apregoam e o que defendem, talvez por uma sólida noção da linearidade moral, talvez por uma paixão infantil que os mantém conectados àquilo que amam, talvez por terem entranhado teimosamente no espírito o que lhes ensinaram os sonhos e as promessas de uma vida melhor (ou talvez pela soma desses fatores). Isso se aplica com precisão ao múltiplo e sempre único Antonio Carlos Secchin, que agora se encaminha para uma merecida aposentadoria. Apesar da impreenchível lacuna que deixará na Faculdade de Letras da UFRJ, ele há de permanecer na parte mais afetiva da memória dos que com ele conviveram e dele sorveram sinceramente inúmeras e indeléveis lições. Acreditamos honestamente estarmos longe do encômio circunstancial, mas não nos poupamos de dirigir a ele o mais justo e caloroso aplauso e os mais suaves e azulados ventos para louvar o homem que se fez de corpo e alma regido pela poesia, e que, como ela, vai ficar. Para sempre.


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REFERÊNCIAS:

Do autor: SECCHIN, Antonio Carlos. Escritos sobre poesia e alguma ficção. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003. ______. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades, 1985. ______. Memórias de um leitor de poesia. Rio de Janeiro: Topbooks, 2010. ______. Poesia e desordem: escritos sobre poesia e alguma prosa. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. ______. Todos os ventos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

Sobre o autor: “Não há mais lugar para a inocência” (entrevista concedida a Ricardo Vieira Lima). In: BASTOS, Dau (org.). Papos contemporâneos: entrevistas com quem faz a literatura brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. Na Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Carlos_ Secchin Na página da Academia Brasileira de Letras: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start. htm?sid=217


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Seis sonetos à procura de um eu-lírico Marcus Vinicius Quiroga(1) Escolhemos para este pequeno ensaio uma parte do conjunto dos sonetos publicados por Antonio Carlos Secchin. Dos 16 textos de que temos ciência, deixamos de lado “Cisne”, o poema-homenagem a Cruz e Souza; “Trio”, poema paródia ao poetas parnasianos; “Mulher”, poema intertextual com as heroínas da literatura brasileira; “Poema para 2002”, texto autoirônico, dentro de sua linha de humor; “Com todo o amor”, poema também desta linha de humor sutil; “Sete anos de pastor”, poema parodístico e bem humorado; “Linguagens”, paródia linguística e didática; e “Século das Luzes”, paródia de estéticas diversas. Optamos por cinco dos dez sonetos da circunstância, ainda que “A luz maciça”, “Repara como a tarde é traiçoeira”, e “Desmoronam promessas e misérias” também pudessem fazer parte de nossa leitura. Desta forma, escolhemos os sonetos “O menino se admira”, “De chumbo eram somente dez soldados”, “À noite o giro cego”, “A casa não se acaba na soleira”, “Estou ali” e “Revejo a luz gelada de manhãs perdidas”, cujos títulos são seus primeiros versos. E passaremos a designá-los como sonetos 1,2,3,4,5 e 6, por comodidade didática. Primeiramente, temos que nos referir ao fato de os cinco primeiros fazerem parte dos poemas da circunstância, e alertarmos que esta palavra tem aqui o sentido histórico, e não o sentido depreciativo, muito usado em literatura como o de obras circunstanciais, isto é, sem pretensão ou mérito literários. 1  Poeta, contista, crítico literário, doutor em Literatura Brasileira, menbro da Academia Carioca e do PEN club do Brasil.


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Propomos uma leitura imagística e temática destes textos, estabelecendo uma relação intratextual, diversa da que aparece, por exemplo, em “Poema do Beco” e “Última canção do Beco”, de Manuel Bandeira, em que esta relação já vem explicitada nos títulos. Relemos os textos como se eles dialogassem entre si, sem que para tanto fosse necessária uma intenção prévia do autor. Isto é, consciente ou inconscientemente, o poeta recuperou temas, imagens e palavras de textos anteriores, dando uma continuidade que vemos aqui como a da busca de uma identidade, a configuração de um eu-lírico. Para termos uma ideia do itinerário poético desta busca, apresentamos na íntegra “O menino se admira”, que é o texto do qual partimos. “O Menino se Admira...” O menino se admira no retrato e vê-se velho ao ver-se novo na moldura: é que o tempo, com seu fio mais delgado, no rosto em branco já bordou sua nervura. E por mais que aquele outro não perdure, quase sombra no relâmpago desse ato, ele há de ver-se mais antigo no futuro, vendo ver-se no menino do retrato. É que o tempo, de tocaia em cada corpo, abastece a manhã com voz serena, que pouco a pouco se transmuda em voz de corvo,


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na gula aguda de ficar sozinho em cena. A moldura vazia denuncia o intervalo: sobra o tempo, e nada ou ninguém para habitá-lo. O eu-lírico se vê no espelho se vendo, qual no quadro de Velásquez, e aqui, mais que um “olhar em abismo” é um abismo à beira do olhar. O eu-lírico vai em busca de si mesmo pelo tempo. Olha-se no retrato e no espelho, ambos com molduras, assim como um soneto é um poema com moldura, um quadro fixo na parede da página. A busca da identidade pertence à lista de temas eternos, eternos porque não se satisfazem com as respostas obtidas, porque inconclusas em suas certezas, porque não se bastam. Lembra-nos ainda dos temas da viagem e da errância, tão frequentes na literatura ocidental, desde a antiguidade. E se no século XVIII já escreveram a viagem ao redor do próprio quarto, Secchin escreve agora a viagem no espaço do tempo, no interior do eu-lírico, espaço em que todos os tempos se fundem. Fundem-se também o menino e o velho, porque desfazem a antítese no retrato-espelho em que se refletem e se veem. Se a busca não têm êxito e os sonetos não encontram o seu eu poético, não faz mal. O eu escapa às medidas e às molduras, posto que não é feito de certeza, mas de movimento. Este não encontro, se me permitirem a linguagem lúdica, não é tampouco desencontro. Antes é o reconhecimento de que o eu é feito de e no tempo, portanto sua imagem não se aprisiona em retratos e espelhos, nem em versos. O eu, como os sonhos do homem no poema “A casa não se acaba na soleira”, é um


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inquilino que, por um ato falho e uma associação rímica, quase escrevemos um clandestino. Ora, o tema do estrangeiro também pode ser visto aqui. Se em “Uma canção”, de Mário Quintana há os versos “Sob os céus da minha terra/Eu canto a Canção do Exílio!”, nos sonetos de Secchin o eu poético também se exila na própria máscara. Tão visível que acaba por se esconder, como a carta na parede da famosa história de Edgar Allan Poe. Ou carta de baralho, um curinga que se desloca no jogo e contracena em papéis diversos. O eu poético não é encontrado, uma vez que ele não é a imagem fixa, a outra margem a que poderíamos chegar, mas a própria busca para todo o sempre inconclusa. Esta busca do eu é a busca também de um corpo que se deixa fotografar ou que se reflete no espelho, pois ser é ser visto, ser reconhecido, em suma, ser identificado. A palavra “corpo”, por exemplo, aparece em três dos seis poemas em estudo. Além dela, registramos, metonimicamente, partes do corpo como rosto, nervura, osso, mão, sorriso e olhar. Aqui o substantivo “olhar” nos lembra do verbo “olhar” (com as variantes “ver”, “rever”, “admirar” e “contemplar”) que aparecem 10 vezes nestes poemas, o que é bastante significativo. O eu-lírico privilegia a visão, já que está em busca, deseja se enxergar nas coisas e enxergar-se . Se é fácil verificar que o poeta dá atenção aos vários sentidos, mais fácil ainda é constatar como a área semântica da visão perpassa todos os textos, oferecendo uma quantidade de exemplos. Deste modo, temos, além dos verbos citados, as seguintes palavras: “refletir”, “espelho”, “foto”, “sombra”, “luz”, “sol”, “fantasmas”, “neblina”, “relâmpago”, “negro”, “cego”, “negrume”, “branco” e “azul”. Desta relação de


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palavras destacamos ainda: “sombra”, “fantasma”, “neblina”, “negro”, “negrume” e “cego” (6 vezes), por significarem a dificuldade, o obstáculo e a ausência de visão. Em outras palavras, o eu que se procura se defronta com o vazio do não-eu, a ponto de se dizer “chama inútil/contra a sombra da noite que o trai”, em um “mundo todo negro e todo frio”. Ora, se existem sombras e fantasmas confundindo a visão e afastando o eu-lírico do encontro consigo mesmo, existem também, por oposição, as luzes e as manhãs, que vão lhe iluminar a imagem, permitindo que ele se veja no retrato e no espelho. E já que nós falamos em oposição, vale a pena apresentar outras oposições textuais: menino/velho, antigo/menino e filho/pai. Só que estas oposições (como outras ainda) estruturam a linguagem e não representam de fato uma oposição interna que cinda o eu-lírico, pois este não é a reunião destes contrários, mas a dupla visão de uma unidade. Esclarecemos: tais oposições, como menino e velho, não criam uma contradição, uma vez que o eu-lírico é, em certo sentido, ao mesmo tempo, os dois, o menino e o velho. A constituição de sua identidade não é excludente: ao se olhar no retrato, ele cria dois tempos que, poeticamente, coexistem e neste preciso momento, digamos assim, o menino e o velho se encontram e são um só. Como dissemos que se trata da busca da identidade de um eu-lírico, vamos agora justificar os poemas como líricos. Sem dúvida, não encontramos neles o lirismo exaltado e derramado dos românticos ou simbolistas, embora o autor seja um poeta cuja obra mantenha inúmeras relações intertextuais com


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a tradição, ora criticando-a, ora resgatando-a. Vemos aqui claramente o lirismo da literatura pós-modernista e usamos este termo para diferençá-lo da classificação pós-moderna, que não nos parece pertinente no caso da obra em estudo. Lembremo-nos de que escolhemos seis sonetos, não pela forma fixa ou suposto vínculo com outras séries literárias, mas por sua imagística e pela possibilidade de leitura que eles nos oferecem. Se os estados emotivos do eu-lírico não repetem o sentimentalismo exacerbado anterior ao Modernismo, revelam, no entanto, o incômodo de se inquirir sobre a vida e de procurar a si mesmo. É, então, lirismo mais reflexivo do que sentimental ou, para sermos mais abrangentes, lirismo de um sentimento reflexivo. Com exceção do soneto 1, todos se encontram na primeira pessoa, mas mesmo neste soneto é fácil reconhecer o eu-lírico projetado no menino que se vê no espelho. Não faltam nos poemas referências à solidão, à perda, ao sonho, à dor, à lembrança, à morte, à alegria e ao desejo; não falta também a afetividade no mascaramento do eu-lírico em menino, explícito no soneto 1 (“O menino se admira no retrato”) ou implícito nos soldados de chumbo do soneto 2 (“De chumbo eram somente dez soldados”). O autor, avaro em sua exposição, exerce um controle sobre a emotividade e desloca os sentimentos do sujeito lírico para os objetos do mundo: o retrato, os soldados, a casa, as frutas, a chuva, o quarto, os lençóis... Torna-se, no entanto, mais pródigo nas metáforas e afrouxa as rédeas da razão, permitindo que as imagens irrompam pelos textos. Sua linguagem é, pois,


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densamente conotativa, fazendo uso de metáforas, antíteses, personificações, sinestesias etc. Em cinco dos seis sonetos, temos as palavras “cego” e “sombra”, repetidas algumas vezes, significando a visão embaçada e a ausência de nitidez. Da mesma forma, a carga metafórica elevada destes textos nem sempre é explicitada, apresentando um grau de opacidade. Vejamos como a metaforização mantém a tensão dos sentidos, não se oferecendo dócil a uma leitura pautada na lógica. Ouçamos os exemplos:“quase sombra no relâmpago desse ato“ (1), “Em surdina se lançam para o abismo/sombras inúteis, ondas bailarinas,/ relâmpagos, promessas e presságios,/sopro vácuo da voz frente à neblina”(3) ou ainda “Fantasma nos lençóis da noite estreita e aflita/ esgueiram seus anzóis no meu silêncio farto” (6). Podemos dizer que nos defrontamos com imagens que não podem ser decodificadas, que permanecem sugestão de significados, afastando-se, assim, das expectativas de uma leitura somente lógica. E já que estamos tratando da linguagem, vejamos como se dá a musicalidade, característica fundamental do gênero lírico. Muitos são os exemplos dos diversos recursos utilizados pelo poeta, mas nos restringiremos a dar apenas um de cada. Ei-los: aliteração em “E vê-se velho ao ver-se novo na moldura”; coliteração em “Contra a sombra da noite que me traz”; assonância em “mas na lisa planície da alegria”; aliteração e assonância juntas em “na gula aguda de ficar sozinho em cena”; repetição em “É que o tempo, com seu fio mais delgado”/ “É que o tempo, de tocaia em cada corpo”; e paronomásia em “A casa não se acaba na soleira”. A


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utilização frequente destes fenômenos estilísticos da fonética dão suporte ao conteúdo lírico, mostrando um modo especial de recorte do mundo e de arranjo da linguagem. Agora, quanto ao tempo lírico, é usual dizer-se que se trata de um “presente eternizado”, pois o eu-lírico tende a presentificar o passado e a fundir em um só momento os diversos tempos. Nada mais adequado para nos referirmos à questão do tempo nestes sonetos. Reparemos nos três exemplos: “Ele há de verse mais antigo no futuro/vendo ver-se no menino do retrato” (1); “E eu já não sei o que fazer de tanto/passado vindo em busca de socorro” (4); “Ou talvez seja eu o seu espelho,/e olhar reflete em mim algum passado” (5) Sem dúvida, temos um presente eternizado, isto é, o resgate de um passado que adere ao presente, fazendo da duplicidade temporal um tempo único. É nas viagens pelo tempo que os poemas mostram a busca da identidade do eu-lírico. Para tanto cabe à memória, mencionada nos sonetos 2 e 6, trazer o tempo pretérito, mas em sendo ela “este balde cego”, o que traz do “negrume do poço” do eu poético são lembranças nebulosas. Não há, portanto, certezas em momento algum. E, se não há certezas, como determinar a identidade do eu-lírico que se confunde com as coisas de um mundo feito de sonhos, sombras, fantasmas e neblina? Detalhemos as referências temporais. No primeiro soneto, é feita a alusão à traição do tempo: “É que o tempo, de tocaia em cada corpo/ abastece a manhã com voz serena,/que pouco a pouco se transmuda em voz de corvo”. E, em um soneto fora desta série, o poeta confirma essa ideia: “Repara como a tarde é traiçoeira/ dentro dela se abriga o desengano/ desse dia que


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acabou sendo somente/ um resto de boneco, arame e pano.”. Ora, as traições do tempo são, além de envelhecimento, esta nervura bordada no rosto em branco, e da morte, pois já não há nada ou ninguém para habitar o tempo, a traição das modificações que o tempo impõe, que tornam a identidade do eu-lírico instável. No último soneto escolhido, o eu vê a sua dispersão, e “os sonhos que mand[ou] para o endereço errado”, este não encontro com o outro são neste momento seu próprio não encontro, ou pelo menos a ausência de identidade. Mas adiemos conclusões e continuemos a pensar sobre o tempo. No soneto 1, o poeta fala da transitoriedade e da traição do tempo e do seu fim para nós com a morte, enquanto ele, o tempo, permanece eterno e indiferente. No soneto 2, o verso no gerúndio dá noção de continuidade, ao mostrar que o tempo e as pessoas, quais soldados de chumbo, vão caindo, desaparecendo, morrendo. No soneto 3, os dois últimos versos dizem “em nós escorre sorrateira/ a canção da matéria e da ruína.” No soneto seguinte, o eu-lírico se refere ao passado como se fosse materialmente uma casa, mas uma casa também se acaba, quando acabam os sonhos do homem. E há ainda neste texto a imagem do apodrecer das maçãs. No soneto 5, a foto é supostamente a de um garoto que morreu. Trata-se da morte ambígua: morreu de fato o garoto ou cresceu, deixando para trás a infância? Já o soneto 6 recupera no verso final a palavra “ruína”, agora aqui associada a desejo. Dito isto, podemos pensar que a imagem do tempo traz sempre a imagem de morte, de ruína, do desfazer-se lento e permanente. Estamos diante de um fato recorrente, texto a texto: no soneto 1, o tempo é vazio e tudo está morto; no 2, o


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tempo passou; no 3, o tempo pretérito retorna; no 5, o tempo pretérito é refletido no presente; e no 6, o tempo perdido é revisto. Observemos ainda um sentimento de desalento na contabilidade do que foi feito e/ou desfeito com o passar do tempo. Se em outros textos, o humor refinado e a autoironia do poeta servem para mascarar a visão desencantada, nos sonetos por nós escolhidos o mesmo não ocorre. Nestes poemas, temos, imagisticamente, o fim das manhãs, dos meninos, dos soldados, das maçãs e da casa, o que corresponde ao fim da infância e da juventude. Ou, dito de outro modo, à transformação contínua do eu poético que se vê, se revê e que escapa de si mesmo, simultaneamente, semelhante e diferente. E a canção da matéria e da ruína que escorre sorrateira seria a imagem-síntese e mais eficaz deste estado de reflexão existencial, em que matéria e ruína evocam tanto o desfazer-se da matéria quanto o materializar-se da ruína. Não queremos levar à conclusão de uma visão definitiva e sombria da existência, mas de uma inquietação permanente e não conciliada. E é esta inquietação do eu-lírico que o põe em movimento, não pelo espaço, mas pelo tempo, este, sim, espacializado, como bem demonstram os últimos verso do soneto 1: “A moldura vazia denuncia o intervalo:/sobra o tempo, e nada ou ninguém para habitá-lo”. Para atarmos as pontas desta trajetória, ouçamos outro soneto na íntegra.


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“Estou ali...” Estou ali, quem sabe eu seja apenas a foto de um garoto que morreu. No espaço entre o sorriso e o sapato há um corpo que bem pode ser o meu. Ou talvez seja eu o seu espelho, e olhar reflete em mim algum passado: o cheiro das goiabas na fruteira, o barulho das águas no telhado. No retrato outra imagem se condensa: percebo que apesar de quase gêmeos nós dois somos somente a chama inútil contra a sombra da noite que nos trai. Das mãos dele eu recolho o que me resta. Eu o chamo de filho – e ele é meu pai. Notemos as expressões “quem sabe”, “bem pode ser” e “talvez”, todas dando ideia de dúvida; e a palavras “ver” (no sentido de considerar), “errante”, “cego”, “neblina”, “sombra”, “sonho” ou “fantasma”, todas sugerindo incerteza e indefinição. E melhor ainda os seguintes versos: “E vê-se velho ao ver-se novo na moldura”, “Eu o chamo de filho – e é meu pai.” e ainda “Sei que é meu esse olhar em que não mais me vejo”.


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Nos três versos acima, para corroborar a sensação de incerteza, há a presença do outro, um duplo (menino/velho, filho/pai), correspondendo ao eu-lírico que se pluraliza na diversidade dos tempos. O tema da errância aqui se dá internamente: o nômade, o peregrino não tem narrativas sobre suas viagens, mas lembranças, imagens, fragmentos, sensações dos tempos que se acumulam e se superpõem dentro de si. O paradoxo de “Sei que é meu esse olhar em que não mais me vejo” (último verso do soneto 6) mostra que inúteis são os retratos e os espelhos, pois o eu-lírico não se identifica na imagem refletida. A procura dos poemas não se frustra. Tampouco termina. O eu-lírico permanece na terceira margem do tempo, no instante “é” de Clarice Lispector. Ou, para recuperar o Pirandello do título: “Assim é, se lhe parece.”


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Antonio Carlos Secchin e as estéticas do passado Sânzio de Azevedo(1) Conheci Antonio Carlos Secchin em 1979, quando ambos éramos alunos em um curso sobre Machado de Assis ministrado pelo prof. Wilton Cardoso no Doutorado da Faculdade de Letras da UFRJ, e tenho de certa forma acompanhado sua carreira de escritor. Por isso aceitei prontamente o convite que me fez Gilberto Araújo para escrever algo num livro em homenagem ao professor, ensaísta e poeta. Começo por lembrar que não são poucos os escritores de nosso tempo que demonstram um solene desprezo pelas escolas literárias do passado, como se somente após o advento do Modernismo pudéssemos falar em literatura brasileira. Essa a razão por que fico feliz quando vejo alguém contemplar em seus estudos não apenas escritores do presente, mas também escritores de outras épocas. Antonio Carlos Secchin, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras, frequenta a poesia contemporânea, tendo sua tese de Doutorado versado sobre João Cabral de Melo Neto: a poesia do menos (2.ª ed. 1999), mas vez por outra se volta para a produção literária de românticos, parnasianos e simbolistas. Sem a pretensão de focalizar todos os seus trabalhos nesse campo, começo por aludir à série de conferências pronunciadas na Academia Brasileira de Letras entre 2001 e 2003, sob a coordenação de Ivan Junqueira, que as enfeixou nos dois 1  Professor de Literatura Brasileira (UFC) e membro da Academia Cearense de Letras.


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tomos de Escolas literárias no Brasil, publicados pela ABL em 2004. No tomo I temos a conferência “Os sexos do anjo”, proferida por Antonio Carlos Secchin em 6 de agosto de 2002, comentando alguns aspectos da poesia de Casimiro de Abreu, texto do qual vou pinçar uns poucos trechos que me chamaram a atenção. Ao tratar, por exemplo, do amor nos versos do cantor d’As primaveras (1859), diz o crítico que o poeta deseja a virgem, mas, entre ele e ela, existem vários obstáculos e, ao explicar o “obstáculo intransponível”, observa: “Eu diria que desejar a virgem é desejar o impossível, uma vez que a perda dessa condição de virgem implicaria a inexistência do atributo básico, que é a virgindade, que levou o poeta à declaração de seu desejo.” (p. 295) Esse paradoxo faz com que não haja “qualquer perspectiva de reciprocidade desse amor” (p. 299), o que leva o ensaísta a expor este problema: “À virgem o poeta só promete amá-la quando for possível, isto é, nunca”. Ou, como sugere, “numa esfera mais celeste: amar aqui na terra, por quê?” (idem) E conclui que o próprio poeta evita o salto rumo ao outro: “Afinal, ao poeta interessa mais enunciar que deseja do que desejar aquilo que enuncia.” (idem) Na mesma série de conferências, desta vez no tomo II da obra coordenada por Ivan Junqueira, Secchin discorre sobre a “Presença do Parnaso: caracterização do Parnasianismo brasileiro e do seu controvertido legado no século XX”, isso em conferência do dia 2 de setembro de 2003. Logo no início do ensaio encontro um trecho ao qual já me referi em um dos meus trabalhos sobre a escola. Apesar de


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não muito breve, tenho de transcrevê-lo na íntegra para que não seja truncado o pensamento do crítico: O ponto de partida para refletirmos sobre o Parnasianismo é o seguinte: o movimento costuma ser estigmatizado por não ser o que ele não se propôs a ser. Existem contra ele críticas dessa natureza: o Parnasianismo não tem a carga emotiva do Romantismo, então o Parnasianismo, nesse viés, é um romantismo desfalcado de emoção; o Parnasianismo não tem a complexidade do Simbolismo; o Parnasianismo não carrega a carga irônica de nosso primeiro Modernismo. Observe-se, em todas estas condenações, uma espécie de definição negativa, de tentar dizer que o movimento é aquilo que deixou de ser. (p. 491) Depois de reproduzir algumas frases nada lisonjeiras com relação à escola, partidas paradoxalmente de nomes ligados a ela, como Olavo Bilac, que afirmou não existir escola parnasiana no Brasil; Raimundo Correia, que via nos poemas do movimento os sintomas da sua decadência; e João Ribeiro, que só via técnica no verso parnasiano, faz o ensaísta esta observação pertinente: Se o poeta Bilac narrava longínquos episódios da Grécia e do Oriente, o cidadão Bilac desenvolvia intensa atividade pública, metendo-se em política, lutando pela obrigatoriedade de prestação do serviço


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militar, e opinando sobre as reformas urbanísticas do Rio belle époque. (p. 497) Seja-me permitido acrescentar que, tendo eu lembrado a Antonio Carlos Secchin em 2006 que em 2007 ocorreriam os 150 anos de nascimento e os 70 de morte de Alberto de Oliveira, graças a ele a Academia Brasileira de Letras faria publicar, nesse último ano, pela Global Editora, o livro Alberto de Oliveira, na série Melhores poemas, dirigida por Edla van Steen. No mesmo ano, Secchin sugeriu ao prof. Sergio Martagão Gesteira que me convidasse para integrar a Banca de Doutorado para apreciação da tese Fundamentos modernos das poesias de Alberto de Oliveira, de Camilo Cavalcanti, orientando do referido professor. A defesa ocorreu no dia 28 de janeiro de 2008, na UFRJ. Naturalmente Antonio Carlos Secchin fazia parte da Banca. Ao organizar o volume da Poesia reunida de Mário Pederneiras, publicado pela Academia Brasileira de Letras em 2004, Antonio Carlos Secchin pôs no estudo introdutório o título “Mário Pederneiras: às margens plácidas da modernidade”. Depois de algumas informações de caráter biográfico, fala o ensaísta nos primeiros poemas de Mário Pederneiras, estampados na imprensa entre 1888 e 1892, a maioria sob o pseudônimo J. Júnior, “que em nada deixavam antever o poeta em que ele se transformaria” (p. XIV), e em seguida refere-se à influência de Cruz e Sousa, acrescentando: “Após os pastiches tardo-românticos, Pederneiras se viu às voltas com a nova


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maneira simbolista, e por ela deixou-se contaminar de modo integral.” (p. XV) Isso ocorreu com relação aos primeiros livros do poeta, Agonia (1900) e Rondas noturnas (1901). Depois de transcrever palavras do poeta, em depoimento de 1905 para O momento literário, de João do Rio, que seria editado em 1907, depoimento no qual Pederneiras considera sua terceira obra, que será Histórias do meu casal (1906), o seu melhor livro, observa Antonio Carlos Secchin: “De fato, em Histórias não temos apenas um novo livro, mas, sobretudo, um novo poeta. Depois dos balbucios neorromânticos, do aprendizado simbolista, Pederneiras, finalmente, encontrava a própria voz: modesta que fosse, era sua.” (p. XVII) “A placidez do amor doméstico (...) não está longe de evocar um mundo – mutatis mutandis – de um poeta confessadamente caro à formação de Pederneiras: Tomás Antônio Gonzaga”, diz o ensaísta, na p. XVIII, a mesma em que faz esta constatação interessante: “Os poemas dedicados à esposa são castos, e, também na esteira da sensibilidade árcade, as descrições de Júlia raramente vão além dos olhos, dos lábios ou dos cabelos.” Efetivamente, a partir de Histórias do meu casal o poeta é um cantor das coisas íntimas: o lar, a família, o bairro e sua paisagem com as árvores e a contemplação do mar. Mas adverte o prefaciador: “A segunda parte do livro compõe a travessia do luto de Pederneiras frente à morte das duas filhas.” (p. XIX) Em nossa historiografia literária tornou-se um lugar-comum dizer que Mário Pederneiras inaugurou o verso livre na poesia


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brasileira, coisa de que sempre discordei, escrevendo ou nas minhas aulas de Teoria do Verso na UFC. Foi por isso que concordei com a observação feita por Secchin, depois de aludir aos poetas Guerra-Duval e Alberto Ramos, cujos versos livres não tiveram muita repercussão. É esta a observação de Antonio Carlos Secchin tratando de Mário Pederneiras: (...) é forçoso reconhecer a timidez com que nosso poeta se valia do recurso, a ponto de ser lícito conjecturar se o que ele praticava consistia efetivamente no versilibrismo ou seria apenas a versão (mais moderada) do verso polimétrico. Ou seja: utilização de várias medidas, mas todas compreendidas entre 2 e 12 sílabas, com as cesuras tradicionais, ao que se acrescentava um esquema rítmico pouco ortodoxo, mas ainda assim perceptível. (p. XX) Adiante, falando desse mesmo livro, diz o ensaísta, após a transcrição de uma estrofe: Versos livres? Melhor inferir uma permanência do antigo sob o manto do moderno, ou, na melhor das hipóteses, uma plácida convivência entre traços arcaicos e algum ímpeto de modernidade. Sim, porque, a rigor, Pederneiras parece um poeta ‘à beira’; percebe o rumor da iminente modernidade, mas a ela não se entrega. (p. XXI)


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Tratando do último livro que Mário Pederneiras publicou em vida, Ao léu do sonho e à mercê da vida (1912), escreve o prefaciador: O título conota um ‘deixar-se levar’, uma impossibilidade de comandar o próprio destino, e essa perspectiva se confirma na maioria dos 26 poemas da obra. Tecnicamente, ao lado da manutenção de pequeno contingente de textos em forma fixa, intensifica-se a experiência do verso polimétrico. (idem) Interessante a observação de Secchin segundo a qual o poeta pouco modificará sua assumida posição de observador algo distanciado do mundo, em decorrência da ‘torre do verso’ em que confessadamente se instala, e da prerrogativa de saber-se poeta. A poesia funciona, assim, como instrumento que, ao mesmo tempo em que revela o espaço externo, dele resguarda o poeta” (p. XXII-III). E reproduz versos em que o próprio poeta confessa: “O mundo, o próprio Mundo, o próprio homem, / Tudo, / Eu vejo/ Do alto.” Daí o crítico afirmar: “Pederneiras falará da rua, mas nunca na rua. (idem) Quanto ao último livro do poeta, Outono, escrito em 1914 e publicado postumamente em 1921, é obra que, ainda segundo o ensaísta, “reitera, aprofundando-as, as principais


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características da poesia de Mário, a partir de Histórias do meu casal”. (p. XXIV) Comecei estas notas falando de Romantismo, ao focalizar a conferência de Antonio Carlos Secchin sobre Casimiro de Abreu, e termino este passeio pelos seus ensaios, comentando a antologia Romantismo, organizada pelo acadêmico para a coleção Roteiro da poesia brasileira, dirigida por Edla van Steen na Global Editora, a mesma coleção em que tive a honra de publicar a antologia Parnasianismo (2006). Romantismo, seleção e prefácio de Antonio Carlos Secchin, é de 2007 e reúne vinte poetas. Na introdução do volume, detecta o organizador, na recepção dos poetas da escola, um “escalonamento em três grandes faixas de prestígio (ou desprestígio) crítico”. (p. 12) A primeira faixa reúne Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves e Fagundes Varela. A segunda seria a de Gonçalves de Magalhães (o pioneiro) e mais Junqueira Freire, Bernardo Guimarães e Sousândrade, “objeto de apreciações antagônicas, que vão do quase-desprezo de alguns à extrema valoração de outros”. (idem) “O terceiro escalão acolhe nomes que sobrevivem mais em decorrência de peças esparsas, presentes em várias antologias, do que propriamente pela consideração de suas obras como um todo”. (idem) É o caso, entre outros, de Francisco Otaviano, Luís Gama e Tobias Barreto, este último, segundo o antologista, prejudicado pelo entusiasmo exagerado de Sílvio Romero, que o quis pôr acima de Castro Alves. Para chegar aos vinte nomes que compõem sua coletânea, o organizador percorreu e comentou outras antologias. A


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exemplo de Edgard Cavalheiro, em O Romantismo (1959), incluiu pelo menos um poema de cunho humorístico de Álvares de Azevedo, assim como, seguindo o modelo de Péricles Eugênio da Silva Ramos, em Poesia romântica (1965), abrigou uma voz feminina, a de Narcisa Amália, cujo livro Nebulosas (1872) teria impressionado o imperador D. Pedro II, como informa Antônio Simões dos Reis, que reuniu seus poemas em 1949. Suponho seja esta a única antologia brasileira a registrar dos poetas apenas o nome literário, procedimento para o qual não encontrei explicação. Mas a seleção dos poemas é louvável: de Gonçalves de Magalhães, por exemplo, em vez do sovado “Napoleão em Waterloo” (que é quase uma tradução de Alessandro Manzoni), figuram “Invocação à saudade” e “Adeus à Europa”. De Gonçalves Dias poderá alguém estranhar a ausência do belíssimo “Ainda uma vez – adeus”, mas só a presença da “Canção do exílio” (que “é a ‘certidão poética’ de nosso nascimento literário”, p. 8), de “Se se morre de amor” e do extraordinário “I-Juca-Pirama” redime o antologista de qualquer omissão. De Álvares de Azevedo, além do humorístico “O poeta moribundo”, foram incluídos “Lembrança de morrer”, “Ideias íntimas” e o notável “Se eu morresse amanhã”, entre outros textos. Irretocável me parece a escolha dos poemas de Casimiro de Abreu, com o famoso “Meus oito anos”, cuja beleza nunca envelhece; “A valsa”, vazada em dissílabos e querendo imitar os volteios da dança, de tal forma que, através de sinalefas e sinafias, parece, quando dita em voz alta, que se compõe de versos de 11 sílabas; e, entre outros, “Amor e medo”, bem típico da poesia casimiriana.


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O mesmo se pode dizer de Fagundes Varela, com “Arquétipo”, tão byroniano, e “A flor do maracujá”, cuja leveza contrasta com a atmosfera pesada do comovente “Cântico do Calvário”, entre outros. Castro Alves comparece com oito poemas, entre os quais “Mocidade e morte”; essa obra-prima que é “O navio negreiro” e “Crepúsculo sertanejo”, vazado em hendecassílabos iâmbico-anapésticos, poema que me parece ser a mais bela página descritiva do Romantismo brasileiro em poesia. A certa altura adverte o antologista: Não convém esquecer alguns poetas amiúde alijados do cânone, e que revelam uma outra face da natureza, não a selvagem, mas a dos campos e das fazendas, onde, em vez da presença de grandes dramas e conflitos, a vida flui em pacatas conversas ao pé do fogo, vazadas num tom menor, e, talvez, mais próximo da sensibilidade contemporânea.” (p. 10-11) Esse grupo, para ele, é composto por “Trajano Galvão, Bittencort Sampaio e Bruno Seabra, entre outros” (idem) E entre esses outros lembro o cearense Juvenal Galeno, que está representado na antologia justamente por aquelas que são suas duas melhores produções, e também as mais conhecidas: “Cajueiro pequenino” e “A jangada”. É verdade que eu gostaria de ter encontrado, entre os poetas, o carioca Dutra e Melo, que morreu com 23 anos de idade; o maranhense Franco de Sá, que se foi ainda mais jovem, com 20 anos; ou Franklin Dória, com seus hendecassílabos


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originais; ou ainda José Bonifácio, o moço, do livro Rosas e goivos (1848) e autor de um belo poema a Calabar, para não aludir ao nome de Paulo Eiró, “o poeta de Santo Amaro”, de quem ouvi por volta de 1960, em São Paulo, poemas inteiros ditos de cor por admiradores do poeta biografado por Afonso Schmidt. Mas é claro que não pretendo incorrer, aqui, naquela falha apontada por Secchin nos críticos do Parnasianismo, que o censuram não pelo que ele foi, mas pelo que eles acham que devia ter sido... Romantismo, de Antonio Carlos Secchin, vale pelo que é, e sem dúvida é uma das melhores antologias que temos da escola na qual ressoaram, entre outras, as vozes de Gonçalves Dias e de Castro Alves. Vê-se que o organizador da crestomatia não se limitou a seguir os passos de outros antologistas, nem quis impor exclusivamente seu gosto pessoal. Aliás ele mesmo o disse na introdução da sua coletânea: Acreditamos que, de algum modo, uma antologia deva representar um diálogo entre o cânone estabelecido pela historiografia literária e o olhar pessoal que o organizador logra lançar sobre esse mesmo cânone. (p. 15) Não sei se conheço todos os textos críticos do escritor sobre escolas do passado, mas, com o que dele acabo de comentar, posso concluir que Antonio Carlos Secchin é um escritor de nosso tempo, mas que sabe analisar os poemas de


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estéticas anteriores ao Modernismo, com a mesma isenção e com a mesma segurança com que dialoga com o verso contemporâneo.


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Passagem pelo mundo intocado Sérgio F. Martagão Gesteira(1) “Falar é tatear o nome do que se afasta” Esta epígrafe, retirada de Elementos (1983), de Antonio Carlos Secchin, traduz uma das faces mais densas de sua poesia. Com efeito, desde Ária da estação, seu primeiro livro, anterior àquele em uma década, percorre os poemas secchinianos o assinalamento de algo que parece escapar ao empenho do eu-lírico em lhe conter a obstinada deriva, que, sorrateira e ardilosa, a tudo se impõe, em que pese aos múltiplos ardis empregados por uma palavra quase tão poderosa, em nada órfã dos mais ricos recursos do lirismo. Uma palavra, pois, que perde, ao cabo, mas que não se perde, porque tocada pelo talento e destreza de uma enunciação incansavelmente atenta aos jogos sutis de som e sentido. Acompanhemos a incidência, desde os primórdios, das alusões a perdas ao longo de Todos os ventos, obra que também inclui todo o mais da poesia de Secchin. No primeiro livro, os três poemas iniciais, voltados para a infância, trazem à cena lírica alguns seres marcados pelos traços de privação e ausência: o “outono vazio” e as “molduras corroídas” de “Tempo: saída & entrada”; o “urso caolho” ou o “passarinho morto” de “Inventário”; ou a dicção truncada de “Infância”, já a partir de seus dois primeiros versos, de funda negatividade: “A vez de quem nunca outro após/além daqui, jamais rios”. Essas fraturas, porém, não chegam a impregnar de tom elegíaco o 1  Professor de Literatura Brasileira (UFRJ).


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restante do livro, porquanto lhe equilibram a ocorrência mais faltosa dos elementos de ordenação e claridade provenientes do convívio e apreço de Secchin pela poesia cabralina, em que é, aliás, exímio especialista. Seriam de citar o “A João Cabral” (“O engenheiro debruçado/(...)/constrói os vértices do verde”; ou, pouco em seguida, quando ele aparece “amestrando o som do cais”); e o “Ver”, em que se descortinam os “Riscos de luz/ sobre vidros arriados”, ou, ainda, a apreensão da leveza dessas “Aves/navegando as lajes/do azul.”. Mas a mais contida dicção cabralina fica limitada nisso, e outros tons e estilos ocupam a maioria dos poemas, como, em “A ilha”, as fascinantes figuras destas “Sonoras gaivotas a domar luzes bravias”, ou a bela imagem de “as aves vinham ver se havia maio”, em que a aliteração e a cadência das sílabas pares do decassílabo (a/ vi/ver/vi/ma) parecem sugerir o ritmo do voo no encalço desse mês eufônico, de força encantatória. Algo, entretanto, centrado no corpo, dota de inesperadas sombras o fecho de Ária da estação, pois o “Poema do infante” falará da noite, do “amargo corpo”, do nada, do pouco, do precário e da morte, sinais, portanto, desse universo lacunar que, na obra seguinte, Elementos, se concentrará no núcleo mesmo do discurso lírico – a palavra poética, num dos momentos mais inspirados no conjunto da obra. É dessa específica e tortuosa via, com seus fascínios, claudicações e ultrapassamentos, trilhada pela palavra do poema que nos ocuparemos aqui. No pórtico de Elementos, como a anunciar a natureza da paisagem que será tecida pelas imagens de ar, terra, fogo e água, respectivamente, o poeta traduz o real por “miragem”, “voragem” e “excesso” e, no que atinge e compromete o cerne da enunciação lírica,


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“língua iludida da linguagem”. O caráter iluso dessa língua vota, pois, a um prévio fracasso a pretensão do ato de dizer o real, e dessa carência ontológica nem mesmo parece escapar a poesia, porventura a mais dotada para lidar, com algum êxito, com a multiplicidade e a equivocidade do mundo. Pelos atributos mesmos do elemento ar – “O ar ancora no vazio” –, este parece ser o mais propício a abrigar as imagens de ausência do empenho em dizer “o não-assinalado/o lado além/do outro lado”. Nostalgia, pois, de alguma forma, de acesso ao mundo intocado, anterior às burlas da designação: “Quero a coisa/ aquém do nome”, ou: “Quero a matéria/plena, e não a fala.” O vigor desses versos está em que a poesia expressa, muitas vezes, uma genuína vontade de transpor a opacidade de um real excessivamente petrificado pelos nomes que, a pretexto de o fazerem falar, acabaram por emudecê-lo. Por isso, – e com todo o risco da eleição desses lugares abismais – o eu-lírico se põe, no primeiro poema da série seguinte, “Fogo”, “no princípio do precipício” e na “derivada do nada”. Aí, desde logo, um “sol sagrado” “faz do medo sua dor e dote”, exibindo “as pontas do fogo bravo”. Inevitável dilaceração (“um sol solene me assassina”) consequente ao fascínio por esse fogo por assim dizer primordial, a evocar o berço das cosmogonias – inclusive o dos vocábulos e o de todos os sentidos. Pois, ecoando os efeitos desse lugar simbólico de precipício, o poeta sabe que “Toda linguagem/é vertigem, farsa”, e lida apenas com “ruínas de linguagem,/ vozes avaras e mentidas”. A experiência de expor-se ao primordial defronta-se com “um sol atento e surdo” que “já salga a terra como um céu deitado”. O real se adensa como não-sentido, clausura essencial, descerrando ao eu-lírico um, apenas, “dia sem portas, lajes, lados”. Mas o impulso lírico


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não desiste, e busca outros signos/seres capazes de lhe sugerir o acesso à nitidez de tudo quanto há. Como o cumprem os pássaros, na leveza e luminosidade de seu voo, na belíssima imagem de “Álgebra das aves em clara correnteza/ ensina a teu cantor tua clareza.” Na série seguinte, “Terra”, composta, como as demais, por quatro poemas, o falar e o dizer continuam submetidos à apreciação que aponta toda a insuficiência das pretensões verbais. Respondem por juízos proferidos pela voz lírica um “me ancora” (vale dizer, aprisiona-me o movimento), e os “me tomba” e “me gasta” do mesmo texto. O recurso aos deuses, como atalho que descortinasse desimpedidas vias para essa morada intacta dos seres é, por seu turno, também descartado: “Deuses, não mais que máquinas noturnas/ sangradas pela terra que as nomeia”, ou, ainda, tornados “datas adiadas da matéria” e “alfabetos da agonia”... Os dois últimos poemas da série são particularmente pródigos em imagens muito conseguidas na pintura desse desejo insistente, por parte do eu-lírico, de capturar o mundo fragilizado pela sedimentação de sentido, a qual enterrou o mais pulsátil de sua presença dele. Daí advém a constatação, desiludida e nostálgica, de que “Alto e outro era o sonho do dizível,/carência do quase, aragem da usura,/ na popa do divino e nos eles da loucura”. O sonho, pois, em algum momento, deixou-se arrastar pela fantasia que o fez dialogar com esses ares promissores e tão alevantados a ponto de tocarem o território dos deuses e a experiência sem norte da loucura. Essa topologia da distância benfazeja, que acenou, com saudosa insistência, ao olhar ansioso da alma romântica, começa a acusar rupturas e insuficiências, dando lugar, a pouco


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e pouco, ao assinalamento de um momento crítico, exacerbado já pela constatação de que “Falar é dar ao nada os seus espelhos” e “o que em mim é nada está fluindo...” Sintomáticas reticências, prenunciadoras de uma ultrapassagem que, ecoando, até, a “dexistência do profundo”, do segundo poema da série, opta pela ampla rendição do sujeito ao vigor do discurso poético: “Escrita, a ti me entrego, e me possuis/no vão das horas, nas máscaras do tempo.” Como veremos abaixo, na belíssima oitava que fecha a série “Terra”, o apaziguamento, não do impulso lírico, que atinge aqui um momento de intensa força, mas da rememoração de uma momentânea plenitude na construção do visível, o apaziguamento, dizíamos, se faz logo acompanhar, nos últimos quatro versos, pelo reconhecimento dos limites quanto à captura do “lado além do outro lado”, como se se tratasse de uma radical descida ao solo, numa espécie de capitulação luminosa face às insistentes esquivanças do empíreo, da vacuidade ígnea e do mundo subterrâneo, cujas promessas e perspectivas, como se viu, se mostraram pouco redentoras: Não, não era ainda a era da passagem do nada ao nada, e do nada ao seu restante. Viver era tanger o instante, era linguagem De se inventar o visível, e era bastante. Falar é tatear o nome do que se afasta. Além da terra, há só o sonho de perdê-la; Além do céu, o mesmo céu, que se alastra num arquipélago de escuro e de estrela.


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A série “Água”, que encerra os Elementos, inicia-se por um poema que reafirma a rumo inaugurado pela opacidade da terra, pela consideração de um céu fechadamente pleonástico quanto à distância. O sujeito lírico se diz agora “cheio de palavra e de formato”, entende sua fala como resistência, eis que “dizer é corroer o que se esquiva”. A corrosão é já, portanto, efeito de uma aproximação que vai além do infausto e mais deceptivo tatear daquele nome que se afastava, pois com ele de outro modo se avém, numa dinâmica que põe em cena a imagem da fecundidade, recuperando as alusões aos três elementos disseminados nas séries precedentes: “Vou no que me passa, intervalo/ entre voo e asa, para a secreta/ febre desse campo, o da semente.” Anotemos: (1: ar – voo; 2: fogo – febre; 3: terra – campo, e, supostamente, campo fértil, também por seus atributos de calor). As pretensões hegemônicas da enunciação, que se fascinava pelo salto audaz em que se esquivaria, por fim, da esquivança, agora acolhe um território mais restrito por onde possa fluir, como o sugere este verso do mesmo poema: “Se o largo mar já navega em água imensa,/em curtos rios ele aprende seu impulso.” Desfaz-se a miragem de onipotência que o alto impulso lírico tendia a prometer, e acata-se, agora, o vozeio do vazio, deixando que ele se pronuncie; e a noturnidade da alma considera agora as ancoragens que de algum modo superem esse “testamento/ de naufrágios, restos e dilúvios” de sua aventura até aqui: O que em mim se mira é o pleno em sua ausência, e pequeno me anoiteço em cada hipótese de porto.


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O porto, neste passo, não se deve ler como final de viagem e abandono do percurso do mar, pois a água, como está no derradeiro poema desses Elementos, se traduz por “marcas de aventura”, “luzes largas”, “pacto de barcas” e “baliza do azul”. De fato, o que ali se percebe é o larguíssimo mar oceano... Por isso, uma palavra incisiva, drástica e promissora, será convocada para quebrar a rítmica fluência marinha dos dísticos hexa e heptassílabos que se vinham tecendo nos versos, e, após a feliz pintura dessas partes das barcas sugestivamente apoiadas nas alveoares /s/ e/z/ que as tornam mais dúcteis – “Baliza do azul, suor/do silêncio nos cascos”, eclode no fecho do poema o termo que o abre à potencialidade radical da escrita, como resposta ao apelo do que é capaz de mover a infindável navegação lírica: o “Horizonte”. Feita a experiência fundante da palavra do poeta em sua passagem pelo vazio, o livro que se segue, Diga-se de passagem (1988), exibe aqui e ali as cicatrizes dessa luta interior que é, aliás, congenial de toda poesia digna do nome. A “Biografia”, que inaugura a obra, mostra as faces dúplices e contraditórias com que há de lidar o poeta em seu ofício. Desde a primeira quadra: O poema vai nascendo num passo que desafia: numa hora eu já o levo, outra vez ele me guia. E também em versos que apresentam, quanto ao ser do poema, enunciados de feição paradoxal, como um “jorro que engole” e um “pombo de pluma e granito”. Portanto, a


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aparente incongruência do mundo recebe o acolhimento amplo do poema. Além disso, memória tardia daquelas águas de Elementos, o mar retorna num belo poema amoroso cujo título já o recupera fonicamente (“Margem”) e engendra quadros ligados ao líquido, com talentoso apoio nas laterais (/l/), na vivência do desgarramento e do peso dos entes e das palavras que os dizem: “A noite está boiando/ num óleo grosso de silêncio e luz”; “Insônia de musgos/na beira das águas redondas”; “Meu olhar (...) querendo saber/a que distância um nome deixa de doer”; “destroços de palavras, pedaços de seu nome/ sílabas que batem contra os cascos.” Assim, a “dexistência do profundo”, vê-se, não impede o poeta, no seu empenho por traduzir a si e ao mundo, de incluir os fragmentos e as derivas, também das palavras, que circunscrevem a aventura humana. Em Todos os ventos (2002), o último livro e o mais extenso da obra poética de Secchin, a reflexão lírica sobre o ser da poesia cinge-se a algumas poucas mas não menos expressivas ocorrências, cedendo lugar para outros flagrantes líricos, conduzidos com habitual mestria. Relativamente aos anteriores, Todos os ventos é o mais variado, encerrando maior multiplicidade de temas, motivos e recursos (inclusive rímicos como quer/bière; zoom/nenhum), e onde o refinado humor e a intertextualidade literária, presentes já nos Dispersos da década de 70 (“Linguagens” e “Soneto das luzes”), retornam com delicioso sabor e lhe impregnam de uma grata leveza a poesia (que se leia o primeiro poema do livro, “É ele”, ecoando talentosamente o “É ela! É ela! É ela! É ela!”, de Álvares de Azevedo, ou “Noite na taverna”, que se atualiza, por exemplo, na alusão à AIDS). Também, dentro da linha intertextual, há poemas que se apropriam de marcas da dicção de alguns de


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nossos poetas mais caros, como em alguns passos do soneto “Cisne”, centrado em Cruz e Sousa, ou em “A um poeta”, em João Cabral. Além disso, certo vezo irônico comparece a outros textos, como o excelente “Colóquio”, relativo à ”Academia do poeta infeliz”, formada por “Severos juízes da vida alheia/”, os quais “Sabem falar vazio de boca cheia”. O humor é também de ótima cepa em poemas como “Sagitário” e, sobretudo, em “Repente”: “Desfaço mau-olhado em meia-hora,/ amanhã trago o amor que escapuliu”. Há ainda, em Todos os ventos, poemas que remetem à alta dicção do lirismo, sobretudo nos, assim denominados, “Dez sonetos da circunstância”, em que esta escapa do mais prosaico e se alça a um questionamento do tempo e de sua corrosão (por exemplo, “O menino se admira...”); ou, também, centrando-se no universo familiar, os sonetos que elaboram sintaxes em que passado, futuro e presente se fundem magicamente, (como em “Estou ali...”), ou se convocam (como em “A casa não se acaba”). Mas voltemos à questão central deste pequenino estudo. Em Todos os ventos, retorna, pelo menos em três poemas, a ruminação sobre o ser e o destino da palavra poética. São eles: “Cinco”, “Arte” e “Desmoronam promessas e misérias”. Em “Cinco”, a escrita, apesar de ela ser uma “escuta/feita voz”, é comparada ao nó “que se desfaz/no traço breve/de grafite e pó.” Em seguida, trazendo à cena a imagem de um “bicho arisco” em que a escrita acaba por refazer-se, assinala-se que o bico veloz de tal ave “voa feroz no vento/ para além do livro/ que o quis reter”. Em “Arte”, recobrando a imagem das aves, os poemas são ditos “pardais perdidos sem direito a ninho”, e, também, “ar e água à beira de anzóis e riscos”. Esses riscos e anzóis, que podemos ler como o próprio de todo esforço de dar


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sentido (e a poesia é, fundamentalmente, uma reinauguração incessante do sentido) parece ensejar a percepção, pelo poeta, desse caráter em última instância rebelde da palavra poética quanto às pretensões do poeta em lhe ser mestre e despótico senhor. Não; nas invenções de real que a poesia é, algo da ordem da fatuidade, vale dizer, das marcas mortais de tudo, subtrai ao texto suas pretensões de jugo e de eternidade, de suas íntimas cogitações de um resgate que o entronizasse como palavra finalmente domada e conseguida. A manifestação dessa precariedade dota o verbo poético de um destino agônico e solitário, não obstante aberto ao convívio das palavras que se tecem sobre ele ou ao redor dele. O que, no fundo, parece sustentar essa visão da poesia é a consideração cada vez mais tensional, por parte do sujeito lírico, da hegemonia avassaladora do tempo sobre as obras humanas, da preponderância desta que “em meio a nós escorre sorrateira” – a “canção da matéria e da ruína”. Nesse cantábile tão audível do verso secchiniano emerge a memória do eterno fluxo do mundo, que o próprio título da obra reunida, Todos os ventos, tanto no que inclui quanto no que dispersa, parece sugerir. Esse fluxo impositivo, capaz de devorar até o poema, aparece no primoroso texto que fecha a série dos sonetos: Desmoronam promessas e misérias, pedaços da palavra e da memória, e o sol da força bruta da matéria escorre para o ralo como escória. Os ratos já devoram toda história, e avançam contra os cacos do presente,


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seus dentes decompondo em pó a glória de um futuro podado na semente. Do muito que sonhamos talvez sobre o sopro de uma aurora que nos leva além da nossa dor, mas não descobre a flor que pulsa e arde em meio à treva. Depois, virando cinza o que é graveto, não sobrará nem mesmo este soneto. O poeta, que dexistira do profundo, que, em “Repara como a tarde é traiçoeira”, afirmara não ter tempo para ser eterno, sabe, como se lê no primeiro de seus “Aforismos” (Todos os ventos), que “A poesia (...) representa o sangramento inestancável da linguagem, não prometendo nada além de rituais para deus nenhum”. Poesia, portanto, compreendida como ritual, isto é, como o que obriga também à forma e à expressão desta, e poesia que remete, pela imagem mesma do sangue, à feição sacrificial do ato ritualístico, ao pôr em cena, num esforço que atravessou a penúria, a linguagem em sua pulsação vital e ígnea – via lírica do inesperado, de onde se pode descortinar o incandescer-se terno e áspero do poético, eis que, como se lê em “Biografia” (Todos os ventos), o poema é precisamente este ser que nasce de uma “lenta letra que incendeia/ com a carícia de um murro”.




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