LITERATURA INFANTOJUVENIL Autora: Ana Lucia Pitta
SUMÁRIO AULA 1 - CONCEITO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL E PANORAMA HISTÓRICO (DAS ORIGENS À FÁBULA)................................................................................................... 7 Introdução............................................................................................................... 7 Desenvolvimento da unidade................................................................................. 8 O conceito de literatura infantojuvenil e suas funções..................................... 8 O popular e o infantil ..................................................................................... 10 A identidade entre o popular e o infantil ...................................................... 10 Literatura infantil: arte literária ou pedagógica?............................................. 11 A evolução é fenômeno incessante................................................................. 12 Literatura e “consciência de mundo” ............................................................ 13 Panorama histórico: das origens às fábulas......................................................... 14 As fontes orientais do mundo mágico da fábula ........................................... 14 As fontes orientais ............................................................................................... 16 “Calila e Dimna (Pantschatantra)” ................................................................. 16 “As mil e uma noites” ................................................................................... 18 As primeiras manifestações literárias no ocidente europeu – idade média ....... 18 Os isopets (o “romance da raposa”: uma fábula).......................................... 19 Século XVI – o renascimento ................................................................................ 19 Século XVII – absolutismo e classicismo .............................................................. 20 França: a criação da literatura para crianças .................................................. 20 “As fábulas”, de La Fontaine ......................................................................... 21 As fontes ......................................................................................................... 21 A crítica político-social .................................................................................... 22 Síntese.................................................................................................................. 24 Referências .......................................................................................................... 26 AULA 2 - AS NARRATIVAS DE CHARLES PERRAULT, OS IRMÃOS GRIMM E HANS CHRISTIAN ANDERSEN....................................................................................................... 27 Introdução............................................................................................................. 27 Desenvolvimento da unidade............................................................................... 28 Charles Perrault (1628-1703) .............................................................................. 28 A querela e os contos ..................................................................................... 29 As fontes folclóricas e os contos .................................................................... 30 “Contes de Ma Mère L’oye” ........................................................................... 31 Irmãos Grimm - Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) .............................. 33 A natureza dos contos de grimm e seus elementos estruturais .................... 34
A técnica da repetição .................................................................................... 35 As constantes dos contos maravilhosos .............................................................. 37 A onipresença da metamorfose ..................................................................... 37 O uso dos talismãs .......................................................................................... 37 A força do destino .......................................................................................... 37 Os valores ideológicos .................................................................................... 38 Hans christian andersen (1805-1875).................................................................. 39 Maravilhoso x realismo – ternura x violência ................................................. 42 Andersen e a atualidade ................................................................................ 44 Síntese.................................................................................................................. 44 Referências........................................................................................................... 46 AULA 3 - AUTORES E OBRAS INFANTOJUVENIS ATRAVÉS DO TEMPO.................................. 47 Introdução............................................................................................................. 47 Desenvolvimento da unidade............................................................................... 48 Narrativas do realismo maravilhoso (ou mágico) .......................................... 48 Lewis carroll (1832-1898) ................................................................................... 48 James m. Barrie (1860-1937) .............................................................................. 52 Collodi (1826-1890) ............................................................................................. 53 Barão de münchhausen................................................................................... 53 Narrativas do realismo humanitário .................................................................... 54 “Viagens de Gulliver” – Jonathan Swift .............................................................. 56 Jeanne Marie Leprince de Beaumont (1711-1780).............................................. 57 Síntese.................................................................................................................. 58 Narrativas do realismo maravilhoso (ou mágico) .......................................... 59 Narrativas do realismo humanitário ............................................................... 59 Referências .......................................................................................................... 60 AULA 4 - MONTEIRO LOBATO: O MARCO NA LITERATURA INFANTOJUVENIL BRASILEIRA.... 61 Introdução............................................................................................................. 61 Monteiro lobato – um marco .......................................................................... 62 Desenvolvimento da unidade............................................................................... 62 O homem e a obra .............................................................................................. 62 A obra “adulta” .............................................................................................. 65 A obra “infantojuvenil” .................................................................................. 65 Traduções ........................................................................................................ 67 A fusão do real com o maravilhoso .................................................................... 67 A obra lobatiana e seus padrões ideais .............................................................. 69 Emília .............................................................................................................. 70
Crítica por meio do humor ................................................................................... 74 A identificação ..................................................................................................... 75 Novos valores? .................................................................................................... 77 Síntese da unidade............................................................................................... 81 Referências........................................................................................................... 83 AULA 5 - DIÁLOGO ENTRE A LITERATURA INFANTOJUVENIL CLÁSSICA E A CONTEMPORÂNEA.....85 Introdução............................................................................................................. 85 Desenvolvimento da unidade............................................................................... 87 Literatura e consciência de mundo ................................................................. 87 A literatura infantojuvenil ideal: realista ou fantasista?................................. 88 O pensamento mágico..................................................................................... 89 O pensamento lógico ...................................................................................... 89 O maravilhoso e a formação do espírito infantil............................................. 90 A crítica e a literatura infantojuvenil............................................................... 92 Critérios e modalidades de crítica literária ..................................................... 93 Curiosidades..................................................................................................... 95 Linhas ou tendências da literatura infantojuvenil contemporânea...................... 96 Harry Potter...................................................................................................... 98 Referências .......................................................................................................... 99 AULA 6 - A LITERATURA INFANTOJUVENIL CONTEMPORÂNEA: POESIA E HISTÓRIAS EM QUADRINHOS.................................................................................................................. 101 Introdução........................................................................................................... 101 Desenvolvimento da unidade............................................................................. 102 A poesia destinada às crianças ..................................................................... 102 A poesia e seus mediadores ......................................................................... 103 A ruptura modernista e a poesia infantil: a defasagem entre uma e outra.103 Modernismo e ensino.................................................................................... 105 Poesia infantil a partir dos anos 1960........................................................... 107 “A televisão da bicharada” (1962)............................................................... 107 “Ou isto ou aquilo” (1964) .......................................................................... 108
Arca de noé (1971) ........................................................................................... 109 “Pé de pilão” (1976) .................................................................................... 110 A poesia como desconstrução e construção – a eclosão criativa dos anos 1970 e 1980 .................................................................................................. 111 A poesia para crianças e adolescentes no início do terceiro milênio .......... 112 Histórias em quadrinhos ............................................................................... 113 Quino.............................................................................................................. 115 Ziraldo............................................................................................................ 116 Mauricio de Souza – pequena biografia......................................................... 117 Referências ........................................................................................................ 120 AULA 7 - O CONTADOR DE HISTÓRIAS............................................................................. 121 Introdução .......................................................................................................... 121 Desenvolvimento da unidade............................................................................. 122 Contar histórias.............................................................................................. 122 Que história contar? ...................................................................................... 123 Indicadores que possibilitam a escolha ........................................................ 124 Faixa etária e interesses ............................................................................... 124 Cuidados que contribuem para o êxito da narração .................................... 125 A duração da narrativa.................................................................................. 126 Como lidar com as interrupções ................................................................... 126 Conversa depois da história .......................................................................... 127 Atividades a partir da história ...................................................................... 127 Dramatização ................................................................................................ 128 “Forrest Gump: o contador de histórias”...................................................... 130 Referências ........................................................................................................ 130 AULA 8 - LITERATURA INFANTOJUVENIL: UMA ANÁLISE................................................... 131 Introdução........................................................................................................... 131 A luta pelo significado ....................................................................................... 131 Desenvolvimento da unidade............................................................................. 133 O conto de fadas: uma forma artística única ............................................... 133 Analisando “chapeuzinho vermelho”........................................................... 133 As várias chapeuzinhos....................................................................................... 145 Referências......................................................................................................... 146
AULA 1 Conceito de Literatura Infantojuvenil e panorama histórico (das origens à fábula) INTRODUÇÃO
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esta unidade, serão apresentados o conceito de Literatura Infantojuvenil e o seu panorama histórico (das origens à fábula), procurando construir um conhecimento teórico-prático das manifestações desta Literatura e das suas funções. “[...] a cultura orienta o ser sensível, ao mesmo tempo que orienta o ser consciente. [...] Ao se tornar consciente de sua existência individual, o homem não deixa de conscientizar-se também de sua existência social, ainda que esse processo não seja vivido de forma intelectual. [...] Os valores culturais vigentes constituem o clima mental para o seu agir. Criam referências, discriminam as propostas, pois, conquanto os objetivos possam ser de caráter estritamente pessoal, neles se elaboram possibilidades culturais. Representando a individualidade subjetiva de cada um, a consciência representa a sua cultura.” (Fayga Ostrower)
LITERATURA INFANTOJUVENIL
Partindo do dado básico de que é por meio de sua consciência cultural que os seres humanos se desenvolvem e se realizam de maneira integral, é fácil compreendermos a importância do papel que a Literatura pode desempenhar para os seres em formação: é ela, entre as diferentes manifestações da Arte, a que atua de maneira mais profunda e duradoura, no sentido de dar forma e de divulgar os valores culturais que dinamizam uma sociedade ou uma civilização. Daí a importância da Literatura infantil nestes tempos de crise cultural: cumprindo sua tarefa de alegrar, divertir ou emocionar o espírito de seus pequenos leitores ou ouvintes, leva-os, de maneira lúdica e fácil, a perceberem e a interrogarem a si mesmos e ao mundo que os rodeia, orientando seus interesses, suas aspirações, sua necessidade de autoafirmação ou de segurança ao lhes propor objetivos, ideais ou formas possíveis (ou desejáveis) de participação social. Portanto, é ainda ao livro, à palavra escrita, que atribuímos a maior responsabilidade na formação da “consciência de mundo” das crianças e dos jovens. Apesar de todos os prognósticos pessimistas, e até apocalípticos, acerca do futuro do livro (ou melhor, da Literatura), nesta nossa era da imagem e da comunicação instantânea, a verdade é que a palavra literária escrita está mais viva do que nunca. E parece, já fora de qualquer dúvida, que nenhuma outra forma de ler o mundo dos homens é tão eficaz e rica quanto a que ela permite.
DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE O CONCEITO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL E SUAS FUNÇÕES O impulso para ler, observar e compreender o espaço em que vive e os seres e as coisas com que convive é, como sabemos, algo inerente ao ser humano. Desde que sua inteligência teve condições para organizar em um conjunto coerente as formas e situações que enfrentava em seu dia a dia, o homem foi também impelido a registrar, em algo durável, as experiências fugazes. A descoberta da arte das cavernas, de 12 a 15 mil anos atrás, feita pelos arqueólogos, mostra, de maneira inequívoca, esse impulso essencial que leva o homem a expressar por meio de uma forma (realista ou alegórica) suas experiências de vida. Desde as pinturas rupestres da Gruta de Altamira (uma das primeiras a serem descobertas) até as gravuras e os signos da rocha de Valcamonica, pequeno vale dos Alpes italianos (descobertas em fins do século XIX, mas só a partir de 1956 estudadas sistematicamente), o que temos é o registro durável de uma forma de ler o mundo. Um mundo que se revela por meio de uma experiência que deseja se comunicar aos outros. E se, de todas as formas de expressão de que o homem dispõe para dar forma as suas vivências e experiências, a Arte está em primeiro plano, não há dúvida de que, entre as artes, a Literatura é das mais eloquentes, devido à amplitude de seus recursos expressionais. Ela não só pode dar perenidade ao gesto ou ao ato fugaz de viver como principalmente se concretiza em uma matéria formal que corresponde àquilo que distingue o homem dos demais seres do reino animal: a palavra, a linguagem criadora.
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AULA 1 - CONCEITO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL E PANORAMA HISTÓRICO (DAS ORIGENS À FÁBULA)
Ao estudarmos a história das culturas e o modo pelo qual elas foram sendo transmitidas de geração para geração, verificamos que, na transmissão de seus valores de base, a Literatura foi o seu principal veículo. Literatura oral ou Literatura escrita foram as principais formas pelas quais recebemos a herança da tradição que nos cabe transformar, tal quais outros o fizeram antes de nós, com os valores herdados e por sua vez renovados. E é no sentido dessa transformação necessária e essencial (cujo processo começou no início do século e agora chega, sem dúvida, às etapas finais e decisivas) que apontamos na Literatura Infantil (e na Literatura em geral) a abertura ideal para que a nova mentalidade, que se faz urgente conquistar, possa ser descoberta. Já no início dos anos 1970, estudiosos da área de Educação e da Literatura chegavam à conclusão de que um novo interesse pelo livro e pela palavra escrita estava surgindo após o impacto e o grande êxito da televisão que fizera prever, no mundo futuro, a definitiva substituição da palavra escrita pela imagem. Não há dúvida de que uma nova era da letra impressa esteja começando para a Literatura, com a consciência de que ela é a mediadora ideal (porque dá prazer, emociona, alegra, engaja o ser inteiro em sua leitura) para levar o homem (e o ser imaturo, especialmente) a descobrir o mundo em que deve viver em contínua e essencial relação com os outros e com a verdade e responsabilidade de seu próprio eu. Eis porque dizemos que a Literatura Infantil é uma abertura para a formação de uma nova mentalidade. Estamos numa fase de evolução em que o conhecimento do próprio homem, descoberto na profundidade de seu ser, de sua mente e suas potencialidades, talvez vá ser a atividade mais importante da ciência e da arte. Novas formas de viver são solicitadas cada vez com mais urgência e imposição. Nesse sentido, a nova Literatura (infantil, juvenil ou adulta) deve dar corpo e presença atuante àquelas formas. Muitos escritores já estão conscientemente buscando esses novos caminhos que servirão de estímulo, de sugestão ou de iluminação aos novos comportamentos, às novas ideias e aos sentimentos que darão forma definitiva ao mundo de amanhã. A área é extremamente diversificada; os processos, os mais variados; valores, ideias e comportamentos existem numa pluralidade fecunda, pois a humanidade é feita de diversidade e não de um bloco monolítico de valores, tendências ou aspirações. Hoje, longe de ser vista como um “gênero menor” em relação à área global da Literatura, a Literatura Infantil vem sendo reconhecida como um valor maior, como verdadeiro ponto de convergência das realizações, dos valores, dos desvalores, das ideais ou aspirações que definem a cultura ou a civilização de cada época. Tudo aquilo que uma sociedade incorpora como código de valores ou desvalores a pautar o comportamento de seus cidadãos e em relação ao qual cada indivíduo deve se situar para conseguir ou não sua própria realização está expresso (ou deve estar) na Literatura que os adultos destinam aos mais jovens – para que estes conheçam tal código desde cedo e o incorporem (uma vez que ele é a base, é o fundamento que sustenta toda a construção social).
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O POPULAR E O INFANTIL Pode-se dizer que Literatura é um fenômeno de expressão, é uma linguagem específica que, como toda linguagem, expressa uma experiência (a do autor) e provoca outra (a do leitor). Em se tratando de Literatura Infantil, é preciso lembrar de início que, além de ser um fenômeno literário, ela é um produto destinado às crianças, mas que, em suas origens, nasceu destinada aos adultos. Ou melhor, que certas obras que foram famosas como Literatura para adultos com o tempo e por meio de um misterioso processo de adaptação acabaram se transformando em entretenimento para crianças. Diante desta constatação histórica, as pesquisas prosseguiram com suas indagações, tentando descobrir o que existiria em tais obras originais para que esse processo de transformação se tivesse operado e, também, por que certas obras passavam a interessar às crianças e outras não. Entre os fatores que podem ser apontados como comuns às obras adultas que falaram (ou falam) às crianças, estão os da popularidade e da exemplaridade. Todas as que se haviam transformado em clássicos da Literatura Infantil nasceram no meio popular (ou em meio culto e depois se popularizaram em adaptações). Portanto, antes de se perpetuarem como Literatura Infantil, foram Literatura Popular. Em todas elas havia a intenção de passar determinados valores ou padrões a serem respeitados pela comunidade ou incorporados pelo comportamento de cada indivíduo. As pesquisas mostram que essa Literatura inaugural nasceu no domínio do mito, da lenda, do maravilhoso.
A IDENTIDADE ENTRE O POPULAR E O INFANTIL Esta constatação nos leva a uma nova indagação: qual seria a identidade existente entre o popular e o infantil para que tal transformação ocorresse (ou ainda ocorra)? Uma vez que essa possível identidade obviamente está ligada à natureza ou à especificidade da Literatura Infantil, passamos a confrontar as duas categorias em questão. Segundo dados da Psicologia, a mentalidade popular e a infantil se identificam entre si por uma consciência primária na apreensão do eu interior ou da realidade exterior (seja o outro, seja o mundo). Isto é, o sentimento do eu predomina sobre a percepção do outro (seres ou coisas do mundo exterior). Em consequência, as relações entre o “eu” e o “outro” são estabelecidas, basicamente, por meio da sensibilidade, dos sentidos e/ou das emoções. Em outras palavras, no povo (ou no homem primitivo) e na criança, o conhecimento da realidade se dá através do sensível, do emotivo, da intuição, e não por meio do racional ou da inteligência intelectiva, como acontece com a mente adulta e culta. Em ambos, predomina o pensamento mágico, com sua lógica própria. Por isso, o popular e o infantil se sentem atraídos pelas mesmas realidades. Prosseguindo nessa ordem de ideias, torna-se fácil compreender por que a Literatura foi usada, desde as origens, como instrumento de transmissão de valores. Tendo em vista as peculiaridades da mente popular (rudimentar) e da infantil (imatura), compreendese que a linguagem poética (ou literária em geral) tem sido utilizada desde os primórdios (por meio dos rituais, por exemplo) para transmitir padrões de pensamento ou de condutas às diferentes comunidades. Uma vez que tais valores ou padrões (de natureza social, ética, política, artística, econômica, religiosa etc.) são essencialmente abstratos, dificilmente poderiam ser compreendidos ou assimilados por mentes que vivem muito próximas da natureza sensorial, do concreto e, como tal, propensas a conhecerem as coisas por meio das emoções e da experiência concreta.
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AULA 1 - CONCEITO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL E PANORAMA HISTÓRICO (DAS ORIGENS À FÁBULA)
Transmitidos em uma linguagem lógica racionalizante e abstrata (como a filosofia), esses valores não as atingiria a fundo. Daí a importância da civilização. Ela é a linguagem da representação, linguagem imagística que, como nenhuma outra, tem o poder de concretizar o abstrato (e também o indizível) por meio de comparações, imagens, símbolos, alegorias etc. Desde o início dos tempos históricos, ela tem sido a mediadora ideal entre as mentes imaturas com sua precária capacidade de percepção intelectiva e o amadurecimento da inteligência reflexiva (a que preside ao desenvolvimento do pensamento lógico-abstrato, característico da mente culta). Logo se conclui a importância basilar da Literatura destina às crianças: é o meio ideal de auxiliá-las não só a desenvolver suas potencialidades naturais como também auxiliá-las nas várias etapas de amadurecimento que medeiam entre a infância e a idade adulta.
LITERATURA INFANTIL: ARTE LITERÁRIA OU PEDAGÓGICA? Evidentemente, a localização da possível origem da Literatura Infantil em remotas formas da Literatura adulta não é suficiente para explicar as formas que ela vem assumindo desde o momento em que começou a ser escrita especificamente como tal (século XVII): Literatura para crianças. É, talvez, possível que, antes mesmo de ser cogitado o que seria específico ou ideal para uma Literatura ou um estilo para crianças, tivesse sido colocada a questão que até hoje vem levantando controvérsias: a Literatura Infantil pertence à arte literária ou à área pedagógica? As opiniões divergem muito. Uns defendem-na como Literatura, outros exigem que ela seja didática e frequentemente as posições se radicalizam. Inclusive, as editoras que se especializam em Literatura Infantil, com os decálogos que impõem à criação dos autores, acabam radicalizando a intenção didática, uma vez que seu maior público consumidor se encontra nas escolas. Entretanto, se analisarmos as grandes obras que através dos tempos se impuseram como Literatura Infantil, veremos que pertencem simultaneamente a essas duas áreas distintas (embora limítrofes e, na maioria das vezes, interdependentes): a Arte e a Pedagogia. Sob esse aspecto, podemos dizer que, como objeto que provoca emoções, dá prazer ou diverte e, acima de tudo, modifica a “consciência de mundo” de seu leitor, a Literatura Infantil é Arte. Por outro lado, como instrumento manipulado por uma intenção educativa, ela se inscreve na área da Pedagogia. Entre os dois extremos, há uma variedade enorme de tipos de Literatura em que as duas intenções (divertir e ensinar) estão sempre presentes, embora em doses diferentes. O rótulo “Literatura Infantil” abarca, assim, modalidades bem distintas de textos: desde os contos de fadas, as fábulas, os contos maravilhosos, as lendas, as histórias do cotidiano até biografias romanceadas, romances históricos, Literatura documental ou informativa. Via de regra, a eventual opção do escritor em relação a uma dessas atitudes básicas não depende exclusivamente de sua decisão pessoal, mas de tendência predominante em sua época. Essa aparente dicotomia se coloca como problema para aqueles que têm a seu cargo a educação das crianças ou para os que escrevem para elas exatamente em épocas em que a sociedade e a Literatura estão em crise de mudança.
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Sabe-se que nesses momentos de transformações, quando um sistema de vida ou de valores está sendo substituído por outro, predomina o aspecto “arte” na Literatura: o lúdico (ou o descompromisso em relação ao pragmatismo ético-social) é o que alimenta o literário e procura transformar a Literatura na aventura espiritual que toda verdadeira criação literária deve ser. Assim, os que são impelidos mais fortemente pelas forças da renovação exigem que a Literatura seja apenas entretenimento, jogo descompromissado (pois é justamente a atividade lúdica que tem por função desarticular estruturas estáticas, já cristalizadas no tempo). Os que acreditam que a criança precisa ser preservada da crise e ajudada em sua necessária integração social elegem como ideal a Literatura informativa (dessa maneira, oferecendo-lhes fatos cientificamente comprováveis ou situações reais, acontecidas e irrefutáveis; transmitem-lhes, ao mesmo tempo, valores consagrados pelo passado e inquestionáveis e com isso escapam ao difícil confronto com os valores de um presente em plena mutação e ainda um enigma a ser desvendado). Já em épocas de consolidação, quando determinado Sistema se impõe, a intencionalidade pedagógica domina praticamente sem controvérsias, pois o importante para a criação no momento é transmitir valores para serem incorporados como verdades pelas novas gerações. Como exemplos bem próximos de nós, temos a Literatura Romântica que, ainda em plena crise do Classicismo, nasceu como entretenimento ou jogo, abrindo caminho para os valores novos que se impunham. Na luta pela consolidação do Sistema liberal-burguês-patriarcal-cristão (resultante daqueles valores e padrões), afirma-se uma grande Literatura (para adultos e para crianças). Com a instauração total do Sistema (e sua consequente superação), o ideário romântico acaba impondo a todos uma Literatura exemplar (feita de fórmulas), que entra pelo nosso século, ignorando as mudanças que já se faziam necessárias devido à vitória do próprio sistema (que a si mesmo se supera).
A EVOLUÇÃO É FENÔMENO INCESSANTE Compreende-se, pois, que essas duas atitudes polares (literária e pedagógica) não são gratuitas. Resultam da indissolubilidade que existe entre a intenção artística e a intenção educativa incorporadas nas próprias raízes da Literatura Infantil. Atualmente, a confusão é grande. Em geral, uma das atitudes tem predominado sobre a outra. Daí os excessos e os equívocos que proliferam na produção infantil mais recente. Não só os livros publicados, mas também as centenas de originais enviados a concursos ou entregues às editoras revelam que, na maioria, predomina a gratuidade (livros que, em lugar de serem divertidos, como se pretendem, são apenas tolos e cacetes ou, então, fragmentados e sem sentido). Ou então são obras sobrecarregadas de informações corretíssimas, mas que são despidas de fantasia e imaginação; em vez de atrair o jovem leitor, o afugenta. Não podemos esquecer que, sem estarmos motivados para a descoberta, nenhuma informação, por mais completa e importante que seja, conseguirá nos interessar ou será retida em nossa memória. Ora, se isso acontece conosco, adultos conscientes do valor das informações, como não acontecerá com as crianças? Felizmente, para equilibrar a balança, já há uma produção infantil e juvenil de alto ou muito bom nível que conseguiu, com rara felicidade, equacionar os dois termos do problema: Literatura para divertir, dar prazer, emocionar, e que, ao mesmo tempo, ensina modos novos de ver o mundo, de viver, pensar, reagir, criar. E principalmente se mostra consciente de que é pela invenção da linguagem que essa intencionalidade básica é atingida.
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A Literatura Contemporânea é expressão das mudanças em curso e que, longe de pretender a exemplaridade ou a transmissão de valores já definidos ou sistematizados, busca estimular a criatividade, a descoberta ou conquista dos novos valores em gestação. Aqui entra o trabalho didático dos professores fazendo o papel dos médicos nos partos. Enfim, entre esses dois polos, está oscilando a produção atual da Literatura (para adultos ou para crianças) – polos que não se excluem (a não ser quando se radicalizam). Resta aos escritores tornarem-se conscientes das forças atuantes em seu tempo e conquistarem a fusão ideal. Não há dúvida de que essa dialética, natural ao fenômeno literário, é a responsável básica pelas mutações de estilo e de temas que a Literatura Infantil vem apresentando desde as origens e também pela permanência de certos fatores que a singularizam como fenômeno específico que é, embora de difícil definição. Tais mutações ou permanência dependem essencialmente da “consciência de mundo” patente ou latente na matéria literária de cada obra.
LITERATURA E “CONSCIÊNCIA DE MUNDO” Chegamos a uma das polêmicas mais acirradas de nossa época: a aceitação ou a recusa da existência (ou da validade) da “consciência de mundo” como leito do fluxo narrativo e responsável pela intencionalidade básica da obra. Com o descrédito dos valores humanistas, que começa com o desgaste do pensamento romântico e mais recentemente se agrava com o surto científico dos anos 1950 e 1960, houve, como é natural, um instintivo repúdio por parte dos estudiosos da Literatura a tudo quanto se filiasse ao humano e consequentemente aos possíveis valores ideais da obra. A exemplo da área universitária, toda leitura do literário passa a circunscrever-se ao texto, às peculiaridades da forma literária em detrimento da obra em sua significação global. A preocupação com as estruturas do texto e com a construção do discurso literário substituíram por completo a preocupação com a mensagem (só apreendida por uma leitura da obra em seu todo), na qual a intencionalidade do humano se faz presente. Dessa atitude crítica radical (de certo modo negativa, mas que foi extremamente salutar pela crise de conscientização da linguagem que provocou nos estudiosos e nos criadores), vai resultar a aversão dos críticos atualizados pela possível humanidade da obra. Aspecto este que passou a ser visto como superado. Com isso, as análises literárias que surgiram nos anos 1960 e 1970 reduziram-se em sua maioria esmagadora a meros exercícios formais, engenhosos, inteligentes, bem informados, mas estéreis. E isso porque, na confusão das reformas em processo, no campo educacional, uma atitude que seria plenamente positiva para um linguista (trabalhar as estruturas e peculiaridades da língua em textos literários) é repentinamente guindada a único método de trabalho possível ao crítico literário ou ao professor de Literatura. Mas para estes ela é insuficiente. Como sabemos, nenhuma reforma se faz sem desequilíbrios. Hoje, nos meios mais avançados de nossa cultura, o radicalismo formalista (ou estruturalista) já passou. Sua contribuição positiva já está sendo assimilada e incorporada como mais um dado importante da cultura contemporânea. Já se torna possível voltarmos nossa atenção crítica para os valores humanos da obra literária. Atualmente, já não se compreende que escritores, orientadores educacionais ou professores, ao lidarem com o fenômeno literário, não levem em consideração as peculiaridades do humano porventura ali presentes e que, em última análise, respondem por seu valor como obra de arte.
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Atendendo às novas forças atuantes no pensamento culto, podemos dizer, taxativamente, que nenhum escritor poderá criar um universo literário significativo, orgânico e coerente em suas coordenadas básicas (estilísticas e estruturais) e, em sua mensagem, se não tiver a orientar sua escritura uma determinada “consciência de mundo” ou certa filosofia de vida (presença atuante que, nos verdadeiros criadores, é talvez inconsciente). Na ausência destas, o mais que teremos será uma produção livresca que poderá, inclusive, ser atraente e interessante, mas que fatalmente terá vida brevíssima: é mero jogo literário, não chega a ser uma obra literária. Da mesma forma, toda leitura que, consciente ou inconscientemente, se faça em sintonia com a essencialidade do texto lido resultará na formação de determinada “consciência de mundo” no espírito do leitor; resultará na representação de determinada realidade ou de valores que tomam corpo em sua mente. Daí se deduz o poder de fecundação e de propagação de ideias, padrões ou valores que são inerentes ao fenômeno literário e que, através dos tempos, têm servido à humanidade engajada no infindável processo de evolução que a faz avançar sempre e sempre.
PANORAMA HISTÓRICO: DAS ORIGENS ÀS FÁBULAS AS FONTES ORIENTAIS DO MUNDO MÁGICO DA FÁBULA Os ancestrais, ou a célula-mãe da Literatura Infantil, hoje conhecida como clássica, encontram-se na Novelística Popular Medieval que, por sua vez, tem suas origens mais remotas em certas fontes orientais, mais precisamente na Índia! Estudiosos de todos os pontos da terra têm tentado descobrir os misteriosos caminhos seguidos pela Literatura que chegou até nós. Mas esse fenômeno apresenta problemas, na maioria das vezes, insolúveis, como o da questão das origens. Quando e como teria sido criada a Literatura? Qual teria sido sua verdadeira forma no momento em que foi inventada? Por que teria nascido e resistido, através de tempos tão primitivos, até o momento em que entra para a História, ao transformar sua fala em escritura? Na impossibilidade de tocar a verdade, o homem levantou hipóteses a partir dos documentos encontrados em várias regiões do globo. Inscritas em pedras, tabuinhas de argila ou de vegetal, em papiro ou pergaminho, em rolos ou em folhas presas por um dos lados e, finalmente, em grossos livros manuscritos (por vezes fechados com grandes cadeados) as palavras ditas há milênios alcançaram os homens dos nossos tempos.
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Segundo os estudiosos que decifraram parte dessa escrita primitiva, essas inscrições estariam ligadas a antigos rituais. Descobriu-se, assim, que a palavra desde sempre se impôs aos homens como algo de mágico, como um poder misterioso que tanto poderia proteger como ameaçar, construir ou destruir. Daí os cantos e as fórmulas mágicas que, nos rituais dos povos primitivos, ajudariam o homem a vencer as forças que lhe eram hostis: as da natureza, dos animais ou dos inimigos. São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como Literatura primordial. Aquela que, embora não transcrita em material perene, atravessou séculos preservada pela memória dos povos e em cujas origens foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjou durante séculos antes de Cristo e também se perpetuou pela tradição oral. O poder de resistência dessa coisa aparentemente tão frágil e precária que é a palavra (literária ou não) prova de maneira irrefutável que a comunicação entre os homens é essencial a sua própria natureza. O impulso de contar histórias deve ter nascido no homem, no momento em que ele sentiu necessidade de comunicar aos outros alguma experiência sua que poderia ter significação para todos. Enfim, a História mostra que, durante a Idade Média, difundiu-se do ocidente europeu uma Literatura narrativa, hoje conhecida como narrativa primordial, cujas origens remontam a fontes orientais bastante heterogêneas. Sua divulgação por toda a Europa (e colônias americanas, mais tarde) se fez pela transmissão oral e posteriormente pelo registro escrito (que selecionou e fixou as variantes orais). Com ela nascia a hoje chamada Literatura Popular que, por meio da comunicação oral ou da escrita (em folhetos ou folhas volantes), acabou se transformando em matéria folclórica. De seu registro escrito, por via culta, surgiu a Literatura Infantil, hoje conhecida como clássica ou tradicional (Fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine; Contos de Perrault, Grimm ou Andersen etc.) Examinando-se o que circula entre nós e em Portugal como Literatura folclórica e como Literatura Infantil tradicional, esses dois modos de transmissão tornaram-se bastante evidentes. Se confrontarmos histórias comuns às duas áreas (a folclórica e a infantil), verificamos que as versões folclóricas apresentam inúmeras variantes (e continuam circulando e se transformando entre o povo, principalmente no Nordeste brasileiro), enquanto as versões pertencentes à Literatura Infantil reproduzem-se praticamente imutáveis nas várias edições que se sucedem. É a mobilidade da vida contraposta à fixidez de sua representação pela escrita. Registramos a seguir alguns dos textos que formam essa cadeia inicial de obras, umas forjando, outras surgindo de lugares tão distantes entre si, geograficamente, e em épocas em que a deslocação de uma região para outra se fazia com meios tão precários. Por esse encadeamento, podemos ter uma pálida ideia da rede de forças que compõem a vida universal, a que pertencemos e ajudamos a prosseguir em seu contínuo processo de evolução. Diante da complexidade de fatores que intervêm na formação, interdependência e evolução do fenômeno da Arte e da Literatura no mundo, surge bem claro o papel fundamental exercido pela palavra. Daí a importância que ela assume no pensamento contemporâneo.
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Heróis minúsculos Pequetito é o equivalente japonês do Pequeno Polegar, um herói europeu que é perseguido por um gigante. Na história japonesa, o ogro é um oni. Essa criatura malvada possui grandes presas, geralmente vermelhas e azuis, e se transforma num belo samurai.
Boas e más Nos contos chineses, as fadas são jovens e lindas, como as ninfas da mitologia grega. Um herói de sorte pode até se casar com uma fada. Geralmente elas utilizam seus poderes mágicos para fazer o bem, mas, às vezes, cometem pequenas maldades, como acontece na história “O Brocado Marvilhoso”, quando roubam o brocado da viúva.
Para o bem e o mal O diabo na história “O demônio no Jarro” corresponde ao “Djinn” da mitologia árabe, espírito maléfico ou benéfico que se situa acima dos homens e abaixo dos anjos e assume formas diversas quando se apresenta aos mortais.
AS FONTES ORIENTAIS Ao deixar de lado as mil controvérsias e veredas abertas (por filólogos, antropólogos, etnólogos, psicólogos, sociólogos, orientalistas etc.) e sugerir diferentes interpretações das possíveis fontes originais, procuraremos aqui refazer o longo e misterioso caminho percorrido por esse acervo narrativo inaugural até chegar aos nossos tempos. Nesse sentido, seguiremos as principais linhas descobertas pelos orientalistas que no século XIX se lançaram ao encalço de todas as pistas documentais que puderam ser encontradas.
“CALILA E DIMNA (PANTSCHATANTRA)” Segundo a maioria dos orientalistas, a fonte mais próxima das origens da Literatura narrativa no ocidente é a versão árabe da coleção de contos prodigiosos encontrados na Índia e que passou a circular no ocidente com o título de “Calila e Dimna” e que apresenta 14 livros. Esta primitiva versão árabe, da qual restam vários manuscritos, foi realizada por Abdala Ben Almocafa (Ibn Al-Mukafa) por ordem do segundo califa Abasida, Almanzur. Fez-se, no século VIII, por meio de um intérprete persa (que se havia convertido ao Islamismo), a partir de um texto persa que, na primeira metade do século VI, havia sido oferecido ao rei Cosroes por seu médico. Este, tendo ido à Índia (a mando do próprio rei) para procurar “tesouros de sabedoria”, ali encontrara o fabulário indiano de Bidpai (ou Pilpay, figura que ficou conhecida como o Esopo oriental) e o traduziu livremente do sânscrito para o persa, com o título de Calila e Dimna (retirado dos nomes das personagens centrais).
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Essa tradução persa nunca foi achada pelos estudiosos, mas é conhecida por meio da tradução síria (Kalilag y Damnag}, também do século VI, atribuída ao monge Bud que, como visitante, teria percorrido as comunidades sírias da Pérsia e da Índia em 570 já da era cristã. Por outro lado, também não foi possível descobrir, na Índia, o texto que teria servido como origem às versões persa-síria-árabe. Entretanto, sua existência antes do século VI foi confirmada pela descoberta dos apólogos indianos usados por pregadores budistas, o pantschatantra. A versão completa desse livro se perdeu, mas sua fama o registra como um dos mais importantes livros sagrados da Antiguidade. As pesquisas concluíram que “Calila e Dimna” teria reunido narrativas do pantschatantra e da longa epopeia primitiva indiana Mahabarata (escrita entre os séculos IV a.C. e IV d.C.), em que pela primeira vez se registra a estrutura narrativa “caixa de surpresas” (que também aparece em “Calila e Dimna”). Muitas dessas narrativas aparecem também na obra do grego Esopo (século VI a.C.), o que levou muitos estudiosos a apontarem neste a prioridade como fonte da fábula, uma vez que ele viveu em época anterior ao aparecimento das versões escritas de “Calila e Dimna”. Mas há a constatação de que na Índia houve inúmeros fabulistas enquanto na Grécia houve apenas Esopo e também de que as fábulas indianas forçosamente eram anteriores ao início do Budismo (século VI a.C.), confirmando a prioridade da fonte oriental sobre a ocidental. Considerado por alguns como verdadeiro tratado de política (porque a luta pelo poder é um dos seus temas principais) e, por outros, como um exemplário de boa conduta para viver bem, “Calila e Dimna” apresenta nítidas diferenças do fabulário grego, a começar pela estrutura narrativa: o livro de Esopo se constrói com histórias breves e independentes entre si, enquanto “Calila e Dimna” apresenta um encadeamento de histórias do tipo “caixa de surpresas” – uma história saindo de dentro da outra. O fio condutor de cada grupo de narrativas (um livro) é “Dabshalim, rei da Índia”, que pede uma história a “Báidaba, príncipe dos filósofos”, para ilustrar uma situação exemplar: os males da intriga, do ciúme ou da inveja; a ambição desmedida; a precipitação imprudente no agir; a irreflexão das palavras etc. Difere também na representação dos animais que têm como personagens. No fabulário grego, o tratamento dos animais é, em geral, naturalista, isto é, os animais agem de acordo com algo que a eles é natural: a formiga trabalha no armazenamento de seu alimento, a cigarra canta, o lobo e o cordeiro bebem água etc.; na fábula indiana, eles atuam como seres humanos, a ponto de esquecermos que se trata de animais. Comentando o papel desempenhado por “Calila e Dimna” na fecundação da Literatura dos povos modernos, é possível dizer que foi o protótipo de todos os livros. Tão grande era sua popularidade no século XIV que os moralistas cristãos chegaram a considerar como perigoso contágio daquelas moralidades de tão profana origem, persa ou bramânica.
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“AS MIL E UMA NOITES” É a mais célebre compilação de contos orientais que circulam no mundo ocidental (embora sem grande importância na Literatura árabe). Sua forma atual se completou em fins do século XV ou princípio do século XVI. Entretanto, só começou a ser divulgada no mundo europeu no início do século XVIII, quando Galland traduziu para o francês uma primeira coletânea (1704). Adaptando-a para os leitores europeus, Galland expurgou-a de algumas narrativas menos exemplares (ou mais licenciosas) e incluiu outras de origem turca ou persa. Assim, como inocente passatempo, “As mil e uma noites” correu de mão em mão e de língua em língua. Por entre a emaranhada trama das origens de suas narrativas e os desacordos entre os estudiosos, concluiu-se que existe, nesse famoso livro, não só legítima matéria árabe ou síria como também elementos estranhos aos costumes muçulmanos. Nela há também rastros de contos fantásticos indianos e de gentilismo, magia e demonologia persa, o que prova, afinal, sua origem heterogênea e exótica. Como não foi conhecida no mundo europeu até princípios do século XVIII, obviamente não exerceu nenhuma influência direta na novelística ocidental arcaica. A presença de episódios comuns a uma e outra se deve à mediação de “Calila e Dimna” ou de “Sendebar”, as duas coletâneas nas quais têm origem grande parte de seus episódios. Inclusive, sua estrutura em cadeia é idêntica nas duas obras inaugurais. Corresponde às narrativas de Sherazade, ameaçada de morte pelo marido, o sultão, e que todas as noites, a pedido de sua irmã Dinarzade, as vai contando e mantendo assim alerta a curiosidade do sultão que, a cada noite, a vai poupando da morte para ouvir o resto das peripécias. O êxito de “As mil e uma noites”, a partir da primeira tradução de Galland, foi imenso. A princípio, foi olhada com muita desconfiança e desdém pelos orientalistas, não só por duvidarem da fidelidade de Galland aos textos originais, mas também pela licenciosidade de seu conteúdo e vulgaridade de estilo, inteiramente oposto à pomposa retórica clássica árabe. Só em princípios do século XIX, bem mais por interesses filológicos do que literários, a crítica erudita passou a se interessar pela coletânea. Nesse momento, ela já se difundira por todo o mundo ocidental através das várias Literaturas populares e diversos de seus episódios passaram a ser divulgados como Literatura Infantil.
AS PRIMEIRAS MANIFESTAÇÕES LITERÁRIAS NO OCIDENTE EUROPEU – IDADE MÉDIA Durante os séculos medievais, surgiu e se proliferou, em terras do Ocidente europeu, uma copiosa Literatura narrativa que vem de fontes distintas: uma popular e outra culta. A de fonte popular é a prosa narrativa exemplar, derivada das antiquíssimas fontes orientais ou grega. A de origem culta é a prosa aventureira das novelas de cavalaria, de inspiração ocidental. Nestas, é realçado um idealismo extremo e um mundo de magia e de maravilhas completamente estranhas à vida real e concreta do dia a dia. Naquela, afirmam-se os problemas da vida cotidiana, os valores de comportamento éticosocial ou as lições advindas da sabedoria prática. Conforme os estudiosos, foi entre os séculos IX e X que, em terras europeias, começou a circular oralmente uma Literatura popular que, séculos mais tarde, iria transformar-se na Literatura hoje conhecida como folclórica e também como Literatura Infantil.
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OS ISOPETS (O “ROMANCE DA RAPOSA”: UMA FÁBULA) No século X, começam a ser conhecidas as fábulas latinas de Fedro (escravo liberto que viveu em Roma na era de Augusto e traduziu as fábulas gregas de Esopo). Pelo interesse que despertaram no público, provocam o aparecimento, na França, de certas histórias de animais, narradas em versos e em língua romance, que ficaram conhecidas como isopets. Eram relatos moralizantes que, mais tarde, foram escritos e destinados às escolas. O sucesso de tais fábulas foi tornando bastante familiares, na Literatura que surgia, as cenas com animais mais ou menos humanizados. No século XII, começaram a ser inventados, mais para divertir do que para moralizar, episódios originais que se ligavam a um personagem privilegiado, o goupil (termo francês arcaico, vindo do latim vulpeculum), isto é, a raposa. Aviva-se a intenção satírica, multiplicam-se os episódios e as personagens e acaba surgindo a disparatada epopeia animal do século XII, o “Romance da raposa”. Trata-se de um conjunto de 27 relatos independentes, em versos octossílabos rimados, cuja unidade está em seu herói central (a raposa) e as peripécias de sua luta contra o lobo Ysengrin. Conforme a interpretação da crítica, nessas fábulas, o mundo dos animais está organizado à imagem da sociedade francesa do tempo e toda sua arte constitui em parodiar a comédia humana sem jamais nos deixar esquecer de que são animais. Uma arte que La Fontaine, alguns séculos depois, iria retomar e aperfeiçoar.
SÉCULO XVI – O RENASCIMENTO O Renascimento foi o amplo e complexo movimento cultural que se propagou na Europa Ocidental a partir do momento em que as novas nações já estavam praticamente constituídas. Por volta dos séculos XV e XVI, impõe-se um novo viver, preparado durante a lenta transformação do mundo que se processou na Idade Média. Transformação de limites, de horizontes, de ideias, de costumes etc. que foram sendo provocadas por invenções e descobertas: o progresso da arte de navegação abre os mares para as grandes travessias, para o comércio com terras longínquas e descobertas de novas terras; a invenção da pólvora transforma a arte da guerra e precipita a decadência da cavalaria; o desenvolvimento das riquezas e do espírito de progresso provoca novos empreendimentos. Aos grandes descobrimentos de portugueses e espanhóis, segue-se o imenso esforço de colonização. Os limites do mundo se ampliam desmesuradamente. Imensos recursos drenados para a Europa modificam toda a política e a economia que antes tinham o Mediterrâneo como eixo. O surgimento do dinheiro transforma o antigo sistema do comércio por troca em operações de compra e venda. A riqueza cresce, as mudanças se multiplicam, uma prosperidade desconhecida até então favorece as iniciativas mais ousadas. Ao mesmo tempo, se expande o mercantilismo: os bancos. As grandes companhias instauram o capitalismo. Por uma soberania crescente, a Europa domina o mundo. Politicamente mais evoluída, ela procura também sua estabilidade: a individualização crescente das diversas nações exige um esforço de equilíbrio. A mudança do espírito parece mais sensível ainda.
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A vulgarização do papel (a partir da segunda metade do século XIV), a descoberta da gravura (século XIV) e a invenção da imprensa (primeira metade do século XV) modificaram profundamente as condições da vida cultural e intelectual. Melhor armado, o pensamento se abre, vigorosamente lúcido e ao mesmo tempo crítico e criativo, e seu esforço se exerce em três áreas essenciais: nas ciências (Copérnico, Kepler, Galileu renovam a concepção do universo); na religião, em que se desenvolve o vasto movimento religioso desencadeado pela Reforma (Lutero, 1483-1546) e enfrentado pela Contrarreforma Católica (Concílio de Trento – 1545-1562; Inquisição), provocando profundas transformações morais e materiais em todo o mundo ocidental; e no domínio intelectual/artístico, com um retorno à Antiguidade Clássica greco-romana, agora compreendida por um novo ângulo – o do espiritualismo cristão –, que provoca uma essencial renovação da Filosofia, da Literatura e da Arte em geral. Nessa breve síntese, temos o mais vivo do Renascimento: o grande empenho de ressuscitar a Antiguidade na forma de um mundo em plena reformulação; a autoridade fortalece, disciplina e orienta, desde as raízes, os esforços tumultuados do espírito moderno, abrindo também caminho para uma nova Educação. Mas, sem dúvida, o ponto alto das transformações renascentistas está na invenção das imprensas. Sem muito risco de erro, podemos dizer que o aparecimento da Bíblia de Gutenberg, em 1456, foi o acontecimento universal de maior importância no amanhecer do Renascimento. E isso, não exatamente pelo alto e perene valor deste monumento bíblico, “o Livro dos Livros”, mas sim pela invenção do livro que essa publicação marca historicamente. Indiscutivelmente, foi devido a esse natural impulso do homem em procurar prender em algo concreto suas experiências essenciais, mas fugazes (como as realizadas pela palavra, pelo verbo), que puderam chegar até nós os vestígios das mais antigas manifestações do espírito humano que formam o húmus primordial das atuais criações.
SÉCULO XVII – ABSOLUTISMO E CLASSICISMO FRANÇA: A CRIAÇÃO DA LITERATURA PARA CRIANÇAS É na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia absoluta de Luis XIV, o “Rei Sol”, que se manifesta abertamente a preocupação com uma Literatura para crianças ou jovens. “As Fábulas” (1668) de La Fontaine; os “Contos da Mãe Gansa” (1691-1697) de Charles Perrault; os “Contos de fadas” (8 volumes – 1696/1699) de Mme. D’Aulnoy; e “Telêmaco” (1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário infantil, tal como hoje o conhecemos. É esta uma literatura que resulta da valorização da fantasia e da imaginação e que se constrói a partir de textos da Antiguidade Clássica ou de narrativas que viviam oralmente entre o povo. Tal tradição, popularizante ou erudita, redescoberta ou recriada por escritores cultos, contrasta vivamente com a alta Literatura clássica produzida nesse momento: o teatro de um Corneille ou de um Racine, um Malherbe; a oratória de um Bossuet; a teorização poética de um Boileau. Entretanto, vista dentro do panorama geral das ideias e correntes que caracterizam o século XVII, tal Literatura torna-se perfeitamente justificada.
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Conhecendo-se esse panorama e como nasceu essa Literatura Infantil, descobre-se a seriedade e os altos objetivos que nortearam a construção de cada um de seus títulos. Não há nada, nessa produção, que seja gratuito ou tenha surgido como puro entretenimento, sem importância, como muitos veem a Literatura Infantil em geral.
“AS FÁBULAS”, DE LA FONTAINE A Jean La Fontaine (1621-1692) coube o mérito de dar a forma definitiva, na Literatura Ocidental, a uma das espécies literárias mais resistentes ao desgaste dos tempos: a fábula. Embora escrevendo para adultos, La Fontaine (ou melhor, suas fábulas) tem sido leitura obrigatória das crianças de todo mundo. Apesar das acusações e recusas que elas têm recebido através dos séculos e das muitas transformações sofridas, as fábulas continuam vivas, sendo retomadas de geração em geração e traduzidas em todas as línguas para adultos e para crianças. Seria o talento do escritor? O encanto da fábula? Ou a força da tradição? Difícil decidir... Largamente cultivada na Grécia e em Roma, nas Literaturas orientais e na Idade Média, a fábula foi retomada também pelo Humanismo. Desde meados do século XV, italianos e franceses redescobrem as fábulas de Esopo e divulgam várias versões em latim e em francês. No século XVII, a fábula oriental foi revelada em duas coletâneas: “O livro das luzes” ou “A conduta dos reis” (composta pelo sábio indiano Pilpay e traduzida para o francês por David Sahib, em 1664) e “Modelo da sabedoria dos antigos indianos” (traduzida pelo jesuíta Poussines, em 1666). Muitas outras versões apareceram, mas sem nenhuma arte inovadora até que surgiu La Fontaine, a quem coube a tarefa não só de restituir à fábula em verso todo o seu relevo literário, mas também a de elevá-Ia ao nível da alta poesia, alimentada por um novo pensamento filosófico – valores que só a posteridade iria reconhecer, pois em seu tempo foram minimizados pelos contemporâneos. Admirador incondicional dos antigos, cujas obras procurou imitar, La Fontaine não negava também a grande importância dos “modernos” (Ariosto, Tasso, d’Urfé, Malherbe, Racan, Voiture, Marot) como modelos a serem seguidos. Iniciou sua carreira de escritor em 1650, escrevendo peças de teatro, gênero mais importante de sua época. Tentou, em seguida, a poesia. Inspirado em Marot, Malherbe e Ovídio, La Fontaine publicou madrigais, baladas, epístolas nas quais mistura poesia e prosa, elegias: todas essas formas rigorosamente submetidas ao formalismo clássico vigente. Foi influenciado por Boccacio e Ariosto e escreveu “Contes et Nouvelles en vers” (1664), obra que, por seu imoralismo, não foi bem aceita pelo rei Luis XIV (fato que mais tarde pesou negativamente em suas pretensões à eleição na Academia de Letras Francesa, onde só conseguiu entrar em 1683). Nesta área novelesca, destaca-se “Amours de Psyché et de Cupidon” (1669), romance em prosa misturado com versos e que oscila entre o burlesco e o precioso. Cultivou também a epistolografia, gênero muito em voga no século XVII. Entretanto, apesar da variedade destas formas ou desses gêneros nobres que lhe valeram, na época, a fama de escritor, La Fontaine se imortalizou com uma forma literária popular, então considerada menor: a fábula.
AS FONTES Conforme registro de vários pesquisadores, La Fontaine foi buscar seus argumentos nos gregos, nos latinos, nos franceses, nos medievais, nas parábolas bíblicas, nos contos populares, nas narrativas medievais e renascentistas e em várias outras leituras que desafiavam sua infatigável curiosidade. 21
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É esta heterogeneidade de fontes que, talvez, determinou as diferenças de matéria literária evidentes em suas fábulas. Com este rótulo geral, La Fontaine reuniu todos os breves poemas narrativos que constituem os doze livros que resultaram de suas pesquisas e criação durante 25 anos de trabalho. Entretanto, tais poemas narrativos não pertencem à mesma espécie literária: não são idênticos entre si quanto à natureza da matéria que os constitui. Nem todos são histórias de animais. Há, entre eles, um grande número de fábulas; porém, ao lado destas, aparecem também apólogos, parábolas, contos exemplares, contos jocosos, alegorias e historietas. O que existe de comum entre esses poemas narrativos é que todos eles expõem uma situação que se encerra com uma moralidade. Foi devido a essa peculiaridade, a de breves relatos que divertem e instruem, que todos esses poemas narrativos se imortalizaram como fábulas na história da Literatura e passaram a ser repetidos de geração em geração até hoje. Todavia, é curioso notar que tudo aquilo que corresponde ao verdadeiro valor de La Fontaine como escritor (o seu estilo leve e atraente; sua criatividade ao transformar certos relatos em prosa; estes, secos e concisos, em ágil e viva linguagem poética; seu domínio da técnica literária e linguística; seu talento para transfigurar a matéria literária dos Antigos em matéria moderna, como sua época o exigia) praticamente se perdeu nas mil e uma traduções de suas fábulas, que continuam correndo mundo. A grande maioria das versões já não é em verso e apresenta a escrita original e o argumento, ou a moralidade, bastante adulterados. Portanto, o que venceu o tempo, entre o grande público, não foi propriamente a forma literária de La Fontaine, mas as situações humanas ali transfiguradas e que nasceram, com certeza, com uma intenção totalmente distinta das possíveis intenções que o leitor de hoje lhes pode atribuir.
A CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL A julgar pelo testemunho de seus contemporâneos, são verdadeiros textos cifrados que denunciavam misérias, desequilíbrios ou injustiças de sua época. Segundo consta, foi sua dedicação e amizade a Fouquet (Superintendente das Finanças de Luis XIV, afastado do cargo e aprisionado injustamente por seu implacável inimigo Colbert, novo ministro do Rei) que levou La Fontaine não só a intervir publicamente em favor do amigo e protetor como a escrever as fábulas “O Lobo e o Cordeiro” e “A Raposa e o Esquilo”, lidas na ocasião para o público seleto dos salões. Seguindo essa intenção, o leão de suas fábulas seria o Rei, orgulhoso de sua autoridade quase divina, que despreza seus súditos (“animais enfermos da peste”); um rei que gosta de ostentar seu poder em pomposas cerimônias (“A Corte do Leão”); que procura ocasião para mostrar-se generoso (“O Leão e o Rato”), mas que se presta também a comédias, mostrando-se um justo quando, na verdade, está esmagando os fracos. Nesta linha, La Fontaine mostra a corte tal como vai ser mostrada por La Bruyêre: como um país de parasitas, maquinadores de imposturas (“O Pastor e o Rei”), no qual reina a servilidade e a hipocrisia, em que as rivalidades levam às denúncias e traições (“O Leão, o Lobo e a Raposa”). A raposa seria o cortesão, por excelência, com sua arte de bajular o Rei e tocar seu fraco, tomando sempre seu partido. Mas é também aquele que precisa ser prudente porque sabe que não pode confiar muito na palavra do Rei (“O Leão doente e a Raposa”); e também manter a medida nos elogios (“A Corte do Leão”).
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A raposa estaria, em última análise, simbolizando a nobreza burguesa, resultante do enriquecimento recente e dos tomados cortesãos pelo Rei absolutista. Uma nobreza que se enche de tédio em suas propriedades na província, pensando muito mais em suas distrações, seus cães e suas festas do que em seus camponeses, dos quais esperam tudo: “[...] comem suas galinhas, presuntos, bebem seu vinho, acariciam suas filhas e saqueiam imperturbavelmente suas plantações [...]”. A comédia da vida da corte é ainda pintada em “Os Funerais da Leoa”, com suas etiquetas e cerimônias oficiais. Ou os sonhos muito altos, seguidos de ação adequada como em “Perrette ou A Leiteira e o pote de leite” (inspirada na fábula de “Calila e Dimna”, “O Eremita, a jarra de manteiga e o mel”). Entretanto, para a compreensão desses poemas narrativos, não se faz necessário que se conheça essas possíveis relações entre as personagens da fábula e as figuras do tempo de La Fontaine. A simbologia utilizada por ele dispensa qualquer conhecimento de suas possíveis implicações contemporâneas. Embora tenha alterado ou enriquecido substancialmente os argumentos e o espírito das fábulas que retomou dos antigos, La Fontaine não tocou no caráter ou na simbologia que seus antecessores atribuíram aos animais. Nele, o leão ainda é o monarca orgulhoso; a raposa é a astúcia; o rico é gordo; o pobre é magro; a garça é delicada; o coelho, um desmiolado sem experiência; a doninha, uma astuta; o gato, um tartufo, gabola; o urso, um rústico cabeçudo e solitário; a cigarra vive pelo ideal da arte; a formiga, pelo trabalho incessante; o burro, um fanfarrão; o rato, a esperteza matreira; o corvo, a voracidade etc. É evidente, porém, que o elemento simbólico, seja ele qual for, só atua quando corresponde exatamente às características que a tradição consagrou. Seria tolice, portanto, a tentativa, hoje, de se alterar, em novas fábulas, o simbolismo atribuído a cada animal, a não ser que se tratasse de uma narrativa para pôr em questão tal imagem fixada pelo passado e descobrir que a realidade corresponde a uma outra verdade. Obedecendo rigorosamente ao espírito dos antigos, La Fontaine, inclusive, não corrigiu as falhas de conhecimento científico cometidas pelos primeiros criadores das fábulas. Por exemplo, a cigarra não come moscas, não canta e morre antes do inverno; a formiga está adormecida quando vêm os ventos gelados do inverno; o corvo e a raposa, carnívoros, não comem queijo etc. La Fontaine não ignorava tais erros e se divertia com eles, mas como os encontrou nos antepassados fabulistas e sua preocupação principal era contar tais histórias, não hesitou em repeti-las.
O papel do sapo Para alguns povos, o sapo simboliza vida nova e, nos contos de fadas, geralmente faz o papel de uma criatura bondosa e prestativa. Os cristãos, no entanto, os associam com a feitiçaria: a seu ver, um príncipe que é transformado em sapo, como na história, deixa de ser a mais nobre das criaturas de Deus para se tornar uma das mais desprezíveis.
Certo realismo A transformação de gente em animal, e vice-versa, é comum nos contos de fadas, mas, na história a “Raposa manca”, ela mantém algo da natureza vulpina em todas as suas metamorfoses. Este elemento realista está presente também em “A gata que virou mulher”, fábula de La Fontaine: apesar de seu aspecto humano, a mulher-gata não resiste à tentação de perseguir os ratos.
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Com relação às diferenças de matéria literária, pode-se dizer que, no geral, a fábula visa os costumes, o comportamento social dos homens enquanto o apólogo e a parábola visam, em última análise, as atitudes morais – o que não quer dizer que as várias intenções não possam estar presentes em todas as espécies.
Links interessantes: http://fabulassonhadas.wordpress.com/bidpai/ http://facadaleitemoca.com/2011/04/08/ilustracoes-para-as-fabulas-de-la-fontaine/
SÍNTESE Partindo do dado básico de que é por meio de sua consciência cultural que os seres humanos se desenvolvem e se realizam de maneira integral, é fácil compreendermos a importância do papel que a Literatura pode desempenhar para os seres em formação: é ela, entre as diferentes manifestações da Arte, a que atua de maneira mais profunda e duradoura, no sentido de dar forma e de divulgar os valores culturais que dinamizam uma sociedade ou uma civilização. Parte daí a importância da Literatura Infantil nestes tempos de crise cultural: cumpre a sua tarefa de alegrar, divertir ou emocionar o espírito de seus pequenos leitores ou ouvintes, leva-os, de maneira lúdica e fácil, a perceberem e a interrogarem a si mesmos e ao mundo que os rodeia, orientando seus interesses, suas aspirações, sua necessidade de autoafirmação ou de segurança ao lhes propor objetivos, ideais ou formas possíveis (ou desejáveis) de participação social. Pode-se dizer que Literatura é um fenômeno de expressão, é uma linguagem específica que, como toda linguagem, expressa uma experiência (a do autor) e provoca outra (a do leitor). Em se tratando de Literatura Infantil, é preciso lembrar de início que, além de ser um fenômeno literário, ela é um produto destinado às crianças que, em suas origens, nasceu destinado aos adultos – ou melhor, que certas obras que foram famosas como “Literatura para adultos”, com o tempo e por meio de um misterioso processo de adaptação, acabaram se transformando em entretenimento para crianças. Segundo a maioria dos orientalistas, a fonte mais próxima das origens da Literatura narrativa no ocidente é a versão árabe da coleção de contos prodigiosos encontrados na Índia e que passou a circular no ocidente com o título de “Calila e Dimna”, no século VIII. Comentando o papel desempenhado por “Calila e Dimna” na fecundação da Literatura dos povos modernos, é possível dizer que foi o protótipo de todos os livros. Tão grande era sua popularidade no século XIV que os moralistas cristãos chegaram a considerar como perigoso o contágio daquelas moralidades de tão profana origem, persa ou bramânica.
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AULA 1 - CONCEITO DE LITERATURA INFANTOJUVENIL E PANORAMA HISTÓRICO (DAS ORIGENS À FÁBULA)
Conheça a importância dos contos de fadas na formação da criança. A arte de contar histórias está intrinsecamente ligada à existência do pensamento humano. As fábulas, que na maior parte das vezes se encerravam com lições de moral, deram origem aos contos de fadas. Os chamados contos de fadas vieram quiçá da própria necessidade humana de mentir ou de “enfeitar” a realidade. Porém, nas fábulas, que deram origem aos contos de fadas, se buscava uma lição final que cabia como um ensinamento para quem as ouvissem. Curiosamente, “contos de fadas” possuem ou não a presença de fadas, contudo é condição sine qua non o encantamento, a magia, o sobrenatural como animais falantes, transmutações e seres monstruosos. Não esquecendo que eles, ao contrário das fábulas, contam quase sempre com a presença de um ou mais seres humanos geralmente como um herói (ou heroína) em busca de resolver uma tarefa difícil, algo que certamente o levará a uma realização pessoal maior. Todo mundo que lê um livro ou ouve uma história tem a predisposição, criança ou não, de incorporar normalmente este ou aquele personagem. Daí o valor dos contos e das fábulas, principalmente para crianças e pessoas com facilidade em se projetar inconscientemente no todo ou em parte, o que simplifica certos aprendizados. Alguns educadores achavam até que livros para crianças não deveriam conter imagens pois privavam a imaginação com uma maior liberdade. Discutível? Sim, como a Literatura e qualquer arte em pauta. Fonte: Professor Ivanilson Costa
“As Mil e uma Noites” é a mais célebre compilação de contos orientais que circulam no mundo ocidental (embora sem grande importância na Literatura árabe). Sua forma atual se completou em fins do século XV ou princípio do século XVI. Durante os séculos medievais, surge e se prolifera, em terras do Ocidente europeu, uma copiosa Literatura narrativa que vem de fontes distintas: uma popular e outra culta. A de fonte popular é a prosa narrativa exemplar, derivada das antiquíssimas fontes orientais ou grega. O Renascimento foi o amplo e complexo movimento cultural que se propagou na Europa Ocidental a partir do momento em que as novas nações já estavam praticamente constituídas. Por volta dos séculos XV e XVI, impõe-se um novo viver, preparado durante a lenta transformação do mundo: o ponto alto das transformações renascentistas está na invenção das imprensas. Sem muito risco de erro, podemos dizer que o aparecimento da Bíblia de Gutenberg, em 1456, foi o acontecimento universal de maior importância no amanhecer do Renascimento. E isso, não exatamente pelo alto e perene valor desse monumento bíblico, “o Livro dos Livros”, mas sim pela invenção do livro que essa publicação marca historicamente. Indiscutivelmente, foi devido a esse natural impulso do homem em procurar prender em algo concreto suas experiências essenciais, mas fugazes (como as realizadas pela palavra, pelo verbo), que puderam chegar até nós os vestígios das mais antigas manifestações do espírito humano que formam o húmus primordial das atuais criações.
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Mas foi na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia absoluta de Luis XIV, o “Rei Sol”, que se manifestou abertamente a preocupação com uma Literatura para crianças ou jovens. “As Fábulas“ (1668) de La Fontaine; os “Contos da Mãe Gansa“ (1691/1697) de Charles Perrault; os “Contos de Fadas” (8 volumes – 1696/1699) de Mme. D’Aulnoy; e “Telêmaco“(1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário infantil, tal como hoje o conhecemos. É esta uma Literatura que resulta da valorização da fantasia e da imaginação e que se constrói a partir de textos da Antiguidade Clássica ou de narrativas que viviam oralmente entre o povo.
REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: E. Scipione, 2000. AGUIAR, Vera Teixeira; BORDINI, Mª da Glória. Literatura: a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2004. COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. CUNHA, Maria Antonieta A. Literatura Infantil – teoria e prática. São Paulo: Ática, 2004.
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AULA 2 As narrativas de Charles Perrault, os Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen INTRODUÇÃO Nesta unidade, serão apresentadas as narrativas de Charles Perrault, dos Irmãos Grimm e de Christian Andersen, autores considerados primordiais para a Literatura Infantojuvenil, procurando construir um conhecimento teórico-prático das manifestações dessa Literatura e desenvolver seu estudo crítico e sua relação com o processo de alienação/libertação na formação da criança. Como vimos anteriormente, a Literatura é um fenômeno de expressão, é uma linguagem específica que, como toda linguagem, expressa uma experiência (a do autor) e provoca outra (a do leitor). Daí parte a importância da Literatura Infantojuvenil nestes tempos de crise cultural: cumprir sua tarefa de alegrar, divertir ou emocionar o espírito de seus pequenos leitores ou ouvintes e levá-los, de maneira lúdica e fácil, a perceberem e a interrogarem a si mesmos e ao mundo que os rodeia, orientando seus interesses, suas aspirações, sua necessidade de autoafirmação ou de segurança ao lhes propor objetivos, ideais ou formas possíveis (ou desejáveis) de participação social.
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Quando a imaginação não encontra sua satisfação na realidade existente, busca refúgio em lugares e épocas desiderativamente construídos. Mitos, contos de fadas, promessas supraterrenas da religião, fantasias humanísticas, romances de viagens têm sido expressões, em contínua mutação, do que estava faltando na vida real. (Nelly Novaes Coelho) Era uma vez um monte de histórias que existiam há muitos anos e que eram contadas de pai para filho. Um dia, por volta do século XVII, um francês chamado Charles Perrault ouviu essas histórias e resolveu escrevê-las. Graças a ele, até hoje todo mundo conhece Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Bela Adormecida e tantas outras personagens clássicas. No início do século XIX, dois Irmãos apaixonados por contos de fadas tiveram a mesma ideia de Perrault e saíram pela Europa pesquisando fábulas e adaptando-as à Literatura Infantil. Foram os Irmãos Grimm que revelaram ao mundo personagens como Branca de Neve, Rapunzel e João e Maria. Tal como fizeram os Irmãos Grimm, Andersen foi um escritor que se preocupou essencialmente com a sensibilidade exaltada pelo Romantismo. Com seu extraordinário talento para criar encantadores contos infantis, conquistou reconhecimento mundial e estimulou a imaginação de um sem-número de crianças e adultos.
DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE CHARLES PERRAULT (1628-1703) Contemporâneo de La Fontaine e seu opositor na Querela dos Antigos e Modernos, Charles Perrault (tal como aconteceu com o genial fabulista) entrou para a história literária universal não como poeta clássico (eleito para a Academia Francesa em 1671), mas como o autor de uma Literatura popular, desvalorizada pela estética de seu tempo e que, apesar disso, se transformou em um dos maiores sucessos da Literatura para a infância. Escrito num momento em que ainda não existia o gênero Literatura Infantil, “Os Contos da Mãe Gansa”, com o tempo, se divulgaram como leitura para crianças, se imortalizando: o que prova mais uma vez o quanto o acaso – ou o mistério – interfere nos projetos e acontecimentos da vida humana. Marc Soriano realizou sua tese de doutorado na Universidade de Bordeaux, com o material “Les Contes de Perrault, Culture savante et Traditions populaires”, e classifica tais contos como um “ninho de enigmas e de contradições” e mostra que sua celebridade [...] não deve grande coisa à cultura e à educação. É o único clássico que cada criança francesa conhece de cor antes de entrar para a escola, onde aliás não é lido; o único que ela conhece antes mesmo de aprender a ler, o único também do qual ela guardará a lembrança, mesmo que não o releia mais ou não goste de ler. Ora, esse pequeno livro é, ao mesmo tempo, o mais misterioso e o mais paradoxal que possamos encontrar.
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AULA 2 - AS NARRATIVAS DE CHARLES PERRAULT, OS IRMÃOS GRIMM E HANS CHRISTIAN ANDERSEN
Embora aqui não nos interesse a análise freudiana desenvolvida pelo lúcido professor e pesquisador francês, forçoso é convir que, em muitos e muitos pontos, suas conclusões são preciosas para uma melhor compreensão do autor e sua obra. Entretanto, o que afirma das crianças francesas pode-se afirmar também das brasileiras. “O Pequeno Polegar”, “A Bela Adormecida”, “O Gato de Botas”, entre outras, são histórias que fazem parte da vida de toda criança, mesmo antes de aprenderem a ler, e que lhes são tão familiares quanto às cantigas de ninar com que foram embaladas. De onde vem esse sucesso? Difícil ou talvez impossível explicar, embora muitos estudiosos o tenham tentado, levantando uma série de hipóteses e explicações das mais diversas naturezas. Seguindo as descobertas psicanalíticas de Freud e Devereux, M. Soriano aponta para o período de maturação afetiva intensa pelo qual passam todas as crianças dos três aos nove anos. A essa afetividade exigente, os contos de Perrault responderiam perfeitamente, pois não se limitam a exprimir tensões sociais, mas são organizados em torno de interdições ou de permissões que estruturam a família e a sociedade. Eles são ainda um repertório de experiências ancestrais, um grande reservatório de condutas possíveis, um corpo de censuras sociais expresso sob forma simbólica suscetível de retomar vida à vontade tão logo uma experiência humana as assuma. Deixando de lado tais especulações hipotéticas, examinemos objetivamente o autor, o seu momento cultural e sua obra naquilo que apresenta de peculiar e novo para a época em que surgiu. Charles Perrault, durante algum tempo, se destacou nos círculos literários da França de Luis XIV. Intelectual ativo, tornou-se advogado aos serviços do ministro Colbert; participou das polêmicas do momento; tornou-se conhecido como escritor com a tradução, em versos burlescos (em colaboração com seu irmão Claude), do sexto livro da “Eneida”, publicados em 1675 (Recuei! de poésie). Católico convicto, via no catolicismo um progresso inegável sobre o paganismo. Por ocasião da revogação do Édito de Nantes por Luis XIV, Perrault escreve “Saint-Paulin” (1686), epopeia cristã que se apresentava como exemplo de uma arte moral, tal como seu autor julgava necessário no momento. Logo a seguir, fez ler em sessão da Academia Francesa o poema “O século de Luis, o Grande” contra Racine e Boileau, partidários dos antigos, e provocou a polêmica que ficou conhecida como Querela dos Antigos e Modernos que marcou a crise do Classicismo. Obrigado a justificar sua posição de “moderno” e a provar que conhecia perfeitamente os “antigos”, Perrault escreveu “Paralelos” (quatro volumes publicados entre 1688 e 1697). É em função dessa polêmica e durante o período em que ela durou que Perrault produziu os Contos que o iriam imortalizar. É importante notar a respeito que esse período corresponde não só ao declínio ou desgaste da estética clássica como também à deterioração do governo de Luis XIV com o abuso declarado de seu poder absoluto, com sua política de conquista e as terríveis guerras que provocou, as violências religiosas o aumento da miséria do povo e um clima geral de mal-estar, temor e insegurança.
A QUERELA E OS CONTOS Muito tem sido indagado acerca do por que Perrault teria se interessado pela Literatura popular tão menosprezada pelo ideal estético de seu tempo. Entretanto, a julgar pelos fatos registrados pela história, tal interesse não nos parece tão enigmático. Relacionando os pontos principais da questão, temos:
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1) um dos tópicos básicos da Querela era a reação contra a autoridade dos clássicos da Antiguidade greco-romana que se havia transformado em modelo exclusivo da arte desde o Renascimento, há quase dois séculos; 2) outro dos tópicos polêmicos era a recusa à mitologia clássica pagã para a criação do “maravilhoso” na Literatura e a exigência de sua substituição pelo maravilhoso cristão; 3) a defesa da superioridade do francês sobre o latim era outro ponto-chave das discussões; 4) Perrault era um frequentador assíduo dos salões das preciosas, no qual uma das leituras prediletas era a dos caudalosos romances preciosos, cuja matéria exuberante, fantasista e sentimental estava mais perto da desordem do pensamento popular do que da ordem clássica. E mais, como o eixo de tais romances era o amor, obviamente a mulher era o elemento central das atenções; 5) sabe-se também que a sobrinha de Perrault, Mlle. L’Héritier, o atraiu para a causa feminista na defesa dos direitos intelectuais das mulheres tão legítimos quanto o dos homens. Tão ponderável se revelava a produção literária feminina e a atuação de várias mulheres na área da cultura que suscitaram muitas obras de ataque, inclusive de grandes escritores, como Moliere, que as combateu ou ridicularizou em suas comédias “Écoles de Femmes”, “Les Precieuses Ridicules” e “Les Femmes Savantes”, embora nesta última seu tom sarcástico já tenha diminuído; 6) foi exatamente um desses ataques o motivo aparente que levou Perrault a escrever seu primeiro conto. Sabendo que Boileau (seu mais sério opositor na Querela) estava escrevendo sua “Sátira X” contra as mulheres, Perrault se revoltou e escolheu um dos mais antigos fabliaux do folclore francês e escreveu “A Marquesa de Salusses ou A paciência de Grisélidis”. Antes mesmo de Boileau apresentar sua sátira ao público, Perrault leu, na Academia Francesa, este conto em versos, o qual faz o elogio da fidelidade e da paciência das mulheres. Publicado em 1691, “Grisélidis” marcou o início de uma coletânea absolutamente original para a época e que permanece como o sintoma de que seria preciso uma volta às raízes para a revitalização da Literatura que estava, então, em declínio. Perrault tinha cerca de 60 anos de idade quando se deu esse seu repentino voltar-se para o folclore francês, ignorado dos círculos cultos, mas onipresente e extremamente vivo no cotidiano do povo em geral. Obrigado, pela polêmica que ele mesmo desencadeou, a buscar razões que justificassem a superioridade dos modernos franceses sobre os antigos greco-latinos, é natural que tenha ido buscar a autoridade dos antigos franceses para opô-los aos da Antiguidade Clássica. Mesmo porque o rótulo de moderno, nessa polêmica, indicava não os contemporâneos, mas aqueles que, a partir da Idade Média, haviam criado as Literaturas novas da França, da Itália, da Espanha, de Portugal etc. O fundo comum de todas essas novas Literaturas foi, como vimos, o complexo amálgama literário forjado com matéria proveniente das mais diversas fontes e que, de mil maneiras, foram assimiladas pelos vários povos do ocidente europeu.
AS FONTES FOLCLÓRICAS E OS CONTOS Apesar de ser imensa a área da Literatura popular-folclórica que Perrault tinha a sua disposição, sua seleção foi bastante limitada: apenas 11 contos.
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Sua segunda recriação deste material popular se deu três anos depois da primeira e ainda se ligava à Querela. Tratava-se do desenvolvimento, em versos burlescos, de um conte de vieille (correspondente ao nosso “conto da carochinha”), “Os Desejos Ridículos”. Com a recriação desse antiquíssimo conto em versos, Perrault tentava provar certa tese de seu amigo d’Aubignac acerca da Ilíada: as antigas epopeias se compunham de contos tradicionais que ali se encaixavam, de uma ponta a outra, segundo a ordenação de um certo fio narrativo. Como se vê, a preocupação de Perrault, neste início, estava longe de ser com a infância. Foi somente em sua terceira adaptação (e também seu último conto em verso), “A Pele de Asno” (1694), que se manifestou sua intenção de reproduzir uma Literatura para crianças. Em 1695, publicou uma primeira edição desta produção inicial: “Griselidis: nouvelle avec le conte de Peau d’Asne et celuy des Souhaits Ridicules”. No prefácio desta edição, diz Perrault Houve pessoas que perceberam que essas bagatelas não são simples bagatelas, mas que guardam uma moral útil e que a narração que as conduz não foi escolhida senão para fazer entrar (tal moral) de maneira mais agradável no espírito, e de uma maneira que instrui e diverte ao mesmo tempo. Isso me basta para não temer o ser acusado de me divertir com coisas frívolas. Mas como há pessoas que não se deixam tocar senão pela autoridade dos antigos, vou satisfazê-las abaixo. As fábulas milesianas, tão célebres entre os gregos e que fizeram as delícias de Atenas e Roma, não são de outra natureza que a destas. A história da Maratona de Efeso é da mesma natureza que a de Grisélidis: ambas são ‘nouveIles’, isto é, narrações de coisas que podem ter acontecido e que não têm nada que fira a verossimilhança. A fábula Psychê, escrita por Apuleio, é uma ficção pura, tal como o ‘conte de vieille’, Pele de Asno [...] (Edição de Saintyves, 1923).
A partir daí, Perrault voltou-se inteiramente para essa redescoberta da Literatura popular com o duplo intuito de, com este material “moderno”, divertir as crianças, e, ao mesmo tempo, orientar sua formação moral, provando a equivalência de valor entre os antigos greco-latinos e os antigos nacionais. Dois anos depois, em 1697, publicou “Histoires ou contes du temps passé, avec les moralités – Contes de ma mêre l’Oye”, com os oito contos restantes de sua pesquisa.
“CONTES DE MA MÈRE L’OYE” A coletânea que saiu com este subtítulo, “Contes de ma mère l’Oye”, já indicava sua ligação com as narrativas populares – a mãe gansa era personagem de um antigo tabliau e sua função era a de contar histórias para seus filhotes fascinados. Entretanto, uma vinheta que ilustrou a edição original modernizou a antiga tradição: apresentou mère l’Oye como uma velha fiandeira. Foi sob este aspecto, de uma velha que conta histórias, que mère l’Oye se universalizou, adquirindo em cada região um nome diferente. Perrault encontrou, afinal, o caminho certo: abandonou o sistema de versos e passou a redigir em prosa, em linguagem clara, desembaraçada, direta e sabiamente ingênua que agradava plenamente as crianças e os adultos. Seus oito contos publicados em 1697 são:
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1) “A Bela Adormecida no Bosque” (La Belle au Bois Dormant) 2) “Chapeuzinho Vermelho” (Le Petit Chaperon Rouge) 3) “O Barba Azul” (La Barbe-Bleue) 4) “O Gato de Botas” (Le Maitre Chat ou Le Chat Botté) 5) “As Fadas” (Les Fées) 6) “A Gata Borralheira ou Cinderela” (Cendrillon ou La Petite Pantoufle de verre) 7) “Henrique, o topetudo” (Riquet à Ia Houppe) 8) “O Pequeno Polegar” (Le Petit Poucet) Posteriormente incluiu na coletânea mais três títulos: “A Pele de Asno”; “Os Desejos Ridículos” e “Grisélidis”. Vulgarmente, tais histórias circularam na França (e daí para os demais países) como “contos de fadas”, rótulo que os franceses usam até hoje para indicar contos maravilhosos em geral. Nessa coletânea, a metade não apresenta fadas. São apenas contos maravilhosos por existirem em um espaço maravilhoso, isto é, fora da realidade concreta. É o caso de “Chapeuzinho Vermelho”, “Barba Azul”, “O Gato de Botas” e “O Pequeno Polegar”. No primeiro, o elemento maravilhoso está na presença do lobo que fala; no segundo, na chave cuja mancha de sangue não pode ser lavada; no terceiro, no gato de botas que se comporta como uma personagem humana e na presença do Ogre, com sua capacidade de transformação, até que é transformado em rato é comido pelo gato; e no último, nas botas de sete léguas que o Pequeno Polegar usa no final de suas aventuras. Nos demais, o maravilhoso está ligado à intervenção das fadas (boas e más). Quanto à moralidade escrita em versos que encerra cada história, aponta sempre para normas de comportamento que facilitariam o sucesso da pessoa junto aos demais ou lhe evitariam dissabores. Em “Chapeuzinho Vermelho”, a intenção de alertar as meninas contra a sedução amorosa está bem clara. É presente, ainda, a advertência de que meninos e, sobretudo, meninas devem ser rigorosamente obedientes aos conselhos dos mais velhos, como nos versos que encerram a estrofe: “Mas, em vão! quem não sabe que esses lobos sedutores/De todos os lobos, são os mais perigosos!” Em “O Barba Azul”, a interdição do quarto secreto seria uma prova para alertar as esposas sobre a necessidade de obediência ao esposo. Em “O Pequeno Polegar”, ter senso comum e capacidade de julgamento é a condição para sair de situações difíceis da vida. Em “O Gato de Botas”, revela-se bem a moralidade da época, em que a esperteza, o acaso ou os golpes de sorte podiam decidir o destino de alguém. Nesta moralidade bem utilitarista, está evidente uma das realidades da época: a superioridade do burguês industrioso e trabalhador, que trabalha, realiza e conquista. Em relação ao nobre que herda, nada faz e acaba por perder a fortuna herdada. Entretanto, na história, o amo do Gato de botas é um rapaz pobre que nada faz para mudar de situação, pois está conformado com ela. Quem tudo faz é o gato. Que conclusões tirar disso? Seriam as “forças ocultas” que sempre existiram e agiram por detrás dos “bastidores”? 32
AULA 2 - AS NARRATIVAS DE CHARLES PERRAULT, OS IRMÃOS GRIMM E HANS CHRISTIAN ANDERSEN
Enfim, com relação às moralidades: mudam os tempos, mudam os costumes; a cada época, as normas de moral se transformam.
IRMÃOS GRIMM JACOB (1785-1863) E WILHELM (1786-1859) Participantes do Círculo Intelectual de Heidelberg, Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos, grandes folcloristas e estudiosos da mitologia germânica e da história do Direito alemão, recolhem diretamente da memória popular as antigas narrativas, lendas ou sagas germânicas conservadas por tradição oral (consta que Katherina Wieckmann, camponesa de extraordinária memória, teria sido para eles a grande fonte transmissora). Buscando encontrar as origens da realidade histórica nacional, os pesquisadores encontram a fantasia, o fantástico, o mítico e uma grande Literatura Infantil surgiu para encantar crianças do mundo todo. Seriam dois os objetivos básicos desta pesquisa encetada pelos filólogos e folcloristas: o levantamento de elementos linguísticos para fundamentação dos estudos filológicos da língua alemã e a fixação dos textos do folclore literário germânico, expressão autêntica do espírito da raça. No entanto, seu destino ultrapassou muito esta intenção inicial: a obra resultante foi traduzida em todas as línguas e não só incentivou outros povos a procederem o levantamento semelhante como acabou por se transformar em uma das obras primas da Literatura Infantil. Este material folclórico recolhido pelos Irmãos Grimm foi publicado entre os anos 1812 e 1822, resultando no volume “Contos de Fadas para Crianças e Adultos” (Kinder unde Hausmaérchen). Nesta recolha, há também matéria literária de outras procedências e já assimilada pelo povo alemão, que evidentemente faz parte do fundo original comum – europeu. Tanto que algumas delas constam também da recolha feita por Perrault, no século XVII, na França (o que prova a existência de uma fonte comum - oriental ou grega, vistas anteriormente). Relacionando os títulos dessas narrativas, temos: “A Bela Adormecida”; “Os Músicos de Bremen”; “Os Sete Anões e a Branca de Neve”; “Chapeuzinho Vermelho”; “A Gata Borralheira”; “As A venturas do Irmão Folgarão”; “O Corvo”; “Frederico e Catarina”; “Branca de Neve e Rosa Vermelha”; “O Ganso de Ouro”; “A Donzela que não tinha mãos”; “O Pescador e suas Esposas”; “A Dama e o Leão”; “O Alfaiate Valente”; “Os Sete Corvos”; “O Rato, o Pássaro e a Salsicha”; “A Casa do Bosque”; “O Lobo e as Sete Cabras”; “A Guardadora de Gansos”; “O Príncipe Rã”; “O Caçador Habilitado”; “Olhinho, Dois olhinhos, Três olhinhos”; “O Lobo e o Homem”; “O Príncipe e a Princesa”; “A Luz Azul”; “O Lobo e a Raposa”; “O Enigma”; “A raposa e a Comadre”; “A Raposa e o Gato”; “Margarida, a Espertalhona”; “A Alface Mágica”; “As três Fiandeiras”; “João Jogatudo”; “A morte da Franguinha”; “A Velha do Bosque”; “O Prego”; “Joãozinho e Maria”; “O Diabo e a Avó”; “O Senhor Compadre”; “João, o Felizardo”; e “O Pequeno Polegar”. Os tempos de Perrault já vão distantes; e se a época dos Irmãos Grimm não é menos violenta, conflituosa ou agressiva do que o século de Perrault, já são outras as maneiras de o homem ver e compreender o próprio homem, seu mundo e seus objetivos na vida. O Romantismo trouxe para o mundo um inegável sentido humanitário que terá suas consequências na renovação da arte, da Literatura e dos costumes. Assim, a violência (patente ou latente dos contos de Perrault) cede agora a um humanismo no qual se mescla o sentido do maravilhoso da vida. Apesar dos aspectos negativos que continuam presentes nessas histórias, o que predomina sempre é a esperança e a confiança na 33
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vida. Para exemplificar, podem ser confrontados os finais da história de “Chapeuzinho Vermelho” de Perrault (que termina com o lobo devorando a menina e a avó) e a dos Grimm (que o caçador chega e abre a barriga do lobo, deixando que as duas saiam vivas e felizes enquanto o lobo morria com a barriga cheia das pedras que o caçador ali colocou). Aliás, essa história aparece também com o título “O Lobo e as Sete Cabras”, transformada em fábula. Perfeitamente integrados nas forças renovadoras da época – de um lado o culto das tradições populares e, do outro, uma nova preocupação com a criança –, os Irmãos Grimm deram a ambas o melhor de seus esforços e entusiasmo. Dentro do movimento nacionalista popular (exacerbado na Alemanha devido à ocupação francesa napoleônica), os Grimm perscrutaram o passado heroico e redescobriram também a pureza das fontes literárias populares. Além da coletânea de contos, publicam “Pensamento, mito, poesia e história” (1813) e “Mitologia alemã” (1835). Quanto à preocupação com as crianças, após uma séria polêmica com o escritor Von Arnim, os Grimm passaram a suavizar o rigor doutrinal e levaram em conta as exigências da mentalidade infantil que, de início, punham no mesmo plano da mentalidade adulta (como era normal no mundo antigo). Um conto em que dois irmãos brincam de se estrangularem (objeto da mencionada polêmica que punha em dúvida a validade de ele ser dado às crianças devido à violência de seu argumento) foi retirado da edição completa de 1819 e foram suprimidos certos traços de outros contos que poderiam chocar a consciência das crianças.
A NATUREZA DOS CONTOS DE GRIMM E SEUS ELEMENTOS ESTRUTURAIS Incluímos os contos de Grimm na área das narrativas do fantástico/maravilhoso porque todas elas, apesar de serem diferentes espécies literárias, pertencem ao mundo do imaginário ou da fantasia. Nestas duas dezenas de narrativas, não há propriamente contos de fadas (conto maravilhoso em que as fadas aparecem). A maioria são contos de encantamento (histórias que apresentam metamorfoses ou transformações por encantamento) ou contos maravilhosos (histórias que apresentam o elemento mágico, sobrenatural, integrado naturalmente nas situações apresentadas). Apresentam também algumas fábulas (histórias vividas por animais); lendas (histórias ligadas ao princípio dos tempos ou da comunidade e o mágico ou o fantástico aparecem como milagre ligado a alguma divindade); contos de enigma ou de mistério (histórias que têm como eixo um enigma a ser desvendado); e contos jocosos (ou humorísticos, divertidos). Exemplos Contos de encantamento: “O Corvo”; “A Dama e o Leão”; “Os Sete Corvos”; “O Príncipe Rã”; “O Príncipe e a Princesa”; “A Alface Mágica”; “O Cravo”; e “A Casa do Bosque”. Contos maravilhosos: “O Pescador e a Esposa”; “O Ganso de Ouro”; “O Caçador Habilitado”; “Olhinho”; “Branca de Neve”; “A luz azul”; “Joãozinho e Maria”; “O Pássaro de Ouro”; “Chapeuzinho Vermelho”; e “O Pequeno Polegar”. Fábulas: “O Rato, o Pássaro e a salsicha”; “A Morte da Franguinha”; “A Raposa e a Comadre”; “A Raposa e o Gato”; “O Lobo e as Sete Cabras”; e “O Lobo e a Raposa”. Parábola: “O Lobo e o Homem”. Lendas: “João Jogatudo”; “A donzela que não tinha mãos”; O Diabo e a Avó”; “O Sr. Compadre”; e “O Irmão Folgazão”. 34
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Contos de enigma: “O Enigma”. Contos divertidos: “Frederico e Catarina”; “O Alfaiate valente”; “Margarida, a Espertalhona”; “As três Fiandeiras”; e “ João, o Felizardo”. A estrutura narrativa predominante nessas histórias é simples: um só núcleo dramático do qual dependem todos os episódios que compõem a intriga. Exemplo: “O Ganso de Ouro” tem como núcleo dramático a necessidade de fazer a princesa rir e, assim, ganhá-la como esposa, conforme promessa do rei. É em função desse núcleo que os demais episódios se justificam: a ordem dada ao Simplório por um desconhecido, para que cortasse uma árvore; o ganso de ouro que ele encontra nas raízes; o elemento mágico que o ganso revelou ser e que acaba por fazer a princesa, que nunca ria, rir; as novas provas pedidas pelo rei; as vitórias de Simplório etc. Narrativas de estrutura complexa são raras nas coletâneas de contos populares. Assim, nesses contos de Grimm, encontramos apenas uma: “O Príncipe e a Princesa”, um conto de encantamento cujas complexidade e incoerência dão a impressão de que ela resulta do encaixe de histórias diferentes e não bem ajustadas. Por exemplo, a profecia feita no início da história de que o príncipe, aos dezesseis anos, seria morto por um veado acaba sendo esquecida em meio às mil aventuras que se sucedem após ele ter sido aprisionado por um desconhecido que acaba se revelando um rei que tinha três filhas para casar etc. Nesse conto, existem, pois, vários núcleos dramáticos diferentes, o que é de todo contrário à índole da narrativa popular e/ou infantil. A característica básica de tais narrativas (qualquer que seja sua espécie literária) é a de apresentar uma problemática simples e bem configurada, desenvolvida em unidades narrativas que se sucedem praticamente iguais entre si (como é o caso das provas a que o herói deve se submeter para alcançar o que almeja: podem ser muitas as provas, mas são todas da mesma natureza repetitiva). É o caso do conto maravilhoso “O Pescador e sua Esposa”, no qual muitas coisas diferentes acontecem (com os pedidos do pescador, sucessivamente satisfeitos pelo peixe mágico), mas todas coerentemente dependentes de um só núcleo dramático: a ambição desmesurada da esposa do pescador.
A TÉCNICA DA REPETIÇÃO A repetição ou reiteração, juntamente com a simplicidade de problemática e da estrutura narrativa, é outro elemento constitutivo básico dos contos populares. Essa peculiaridade formal, que podemos chamar de técnica da repetição, consiste (como o nome já diz) na repetição exaustiva dos mesmos esquemas básicos (argumentos, tipos e atributos de personagens, motivos, funções das personagens, valores ideológicos etc.). Da mesma forma que a elementaridade ou simplicidade da mente popular ou da infantil repudia estruturas narrativas complexas (devido à dificuldade de compreensão imediata que elas apresentam), também se desinteressam da matéria literária que apresente excessiva variedade ou novidades que alterem continuamente as estruturas básicas já conhecidas. Esta reiteração dos mesmos esquemas, na Literatura Popular/Infantil, vai ao encontro de uma exigência interior de seus leitores: apreciarem a repetição das situações conhecidas porque isso permite o prazer de conhecer ou de saber, por antecipação, tudo o que vai acontecer na história. E mais, dominando, a priori, a marcha dos acontecimentos, o leitor sente-se seguro interiormente. É como se pudesse dominar a vida que flui e lhe escapa.
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LITERATURA INFANTOJUVENIL
Editorial da Revista Mundo Estranho, de abril de 2010 – Sobre o lado dos contos de fadas que ninguém conhece
Era uma vez ... “Quem tem medo do Lobo Mau?” ... Se fechar os olhos, escuto a história dos Três Porquinhos inteirinha, tantas vezes a ouvi numa vitrola vermelha. Grudou no meu cérebro. Sempre tive esperança de que o Lobo Mau deixasse o trio em paz. Outra coisa prendia minha atenção à fábula: o quadro que decorava a casa de um deles. Um prato de salsichas! Sempre gostei de historinhas. Tanto que acabei jornalista. Aqui na redação, todos temos lembranças das historinhas que ouvíamos na infância. Lá vão alguma. Lauro: ‘’As que mais me marcaram foram as de Simbad, o Marujo, que minha mãe contava para mim e meu irmão antes de irmos dormir. Eram aventuras incríveis por lugares mágicos e cheios de monstros.” Marina: “Lembro das que tinham lobo! Morei em sítio até os cinco anos e morria de medo que o bicho aparecesse a qualquer momento.” Jokura: “Tinha pavor do boitatá. Ouvia essa história quando ia passar férias na praia, no Espírito Santo.” Fabrício: “Lembro do velho do saco. Minha mãe tocava o terror pra eu não ir brincar na rua porque esse senhor poderia me levar embora.” Pedro: “A minha era a do Pinóquio, pois eu era muito mentiroso. Minha mãe me fez ver o filme como uma ‘medida moralizante’.” Bernardo: “Lembro muito do Gulliver ilustrado pelo Adelchi Galloni, do Yok-Yok ... um gnomo de chapéu de cogumelo, e Rip Van Winkle, ilustrado por John Howe. E, se me permite ... dois filmes de contos de fadas me marcaram muito também! ‘História Sem Fim’ e ‘A Lenda’.” Diego: “Gostava de um episódio do programa ‘Contos de Fadas’, da Cultura, sobre um menino que saiu de casa pra saber o que era o medo. Ele passou três noites num castelo mal-assombrado e não sentiu nada. Quando saiu, o rei lhe ofereceu a mão da princesa em casamento, fazendo com que o personagem sentisse medo pela primeira vez.”
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AS CONSTANTES DOS CONTOS MARAVILHOSOS Fazendo um levantamento dos elementos que se repetem nos contos de Grimm, verificamos que, no geral, são os mesmos que aparecem nas demais narrativas da mesma espécie recolhidas por outros autores.
A ONIPRESENÇA DA METAMORFOSE Príncipes ou princesas, pobres ou plebeus são encantados, transformando-se, via de regra, em animais (leão, rã, corvo, peixe, pássaro, pomba). Em número menor, há metamorfoses em árvore, prego, roseira, igreja, padre, lago. A transformação dos seres e das coisas, sem dúvida, está ligada à ideia de evolução da humanidade e do universo e deve ter preocupado o homem desde os primórdios, pois aparece nas mais antigas fontes de narrativas que se conhecem. Liga-se, talvez, a antigas crenças de que todos os seres anormais ou disformes (formas humanas misturadas a formas animais, seres fabulosos) possuíam altos poderes de interferência na vida dos homens. Nota-se, ainda, que normalmente são as mulheres que conseguem desencantar os “encantados”.
O USO DOS TALISMÃS Raras são as histórias em que não é feito uso de talismãs ou objetos mágicos: luz azul (quando acesa, fazia aparecer um anão); três gotas de sangue no lenço (davam proteção à filha); três nozes (que, abertas, faziam surgir vestidos maravilhosos); chicotinho do diabo; vara de condão; peixe encantado, espingarda que acertava em qualquer alvo; manto mágico etc. Da mesma forma que os talismãs, há seres prodigiosos que interferem na sorte das personagens para ajudá-las ou prejudicá-las: anões, gnomos, pombos encantados, velhas misteriosas (relacionadas com o diabo). Faz parte do maravilhoso: a solução dos problemas; a satisfação dos desejos; difíceis conquistas se darem subitamente, de maneira instantânea, por “passe de mágica”. No fundo, talvez não haja um ser humano que não sonhe (ou tenha sonhado) em resolver assim, de maneira mágica, algum problema difícil ou a conquista de algo aparentemente inalcançável.
A FORÇA DO DESTINO Destino, determinismo e fado são presenças também constantes e reiteradas nas histórias maravilhosas; tudo parece determinado a acontecer como uma fatalidade a qual ninguém pode escapar. Muitos são os aspectos que essa fatalidade pode assumir: o de uma bruxa, de estrelas, de uma voz não identificada, de anjo do céu, de feiticeiras. Há sempre um mistério, um enigma ou um interdito superlativamente forte para ser superado, decifrado ou vencido pelo herói. Principalmente se tratando de reis, que devem conceder a mão de suas filhas em casamento, agem sempre como insaciáveis em suas exigências e vão multiplicando as tarefas sobre-humanas que devem ser desempenhadas pelos pretendentes.
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É possível fazer uma viagem pelo país das maravilhas, pela Grande Rota Alemã dos contos de fadas. Esta é uma das rotas de férias mais antigas da Alemanha. Este caminho une, com suas mais de 70 cidades, comunidades e as fantásticas histórias no mundo dos contos, das sagas, dos mitos e das lendas que os Irmãos Grimm escreveram no decorrer de suas vidas. Você pode escolher os roteiros: a primeira parte começa em Frankfurt e a segunda começa em Hamburgo. Ou então você pode percorrer os dois roteiros e, assim, conhecer o mundos dos Irmãos Grimm em todos os seus detalhes.
ITINERÁRIO Dia Frankfurt – Steinau – Marburg - Viagem a Steinau e visita à casa onde nasceu os Irmãos Grimm. Continuação a Marburg. A universidade de Marburg foi fundada no século XVI e foi nela que os Irmãos Grimm começaram a estudar os mitos e as lendas da Alemanha e da Europa. Dia Marburg – Kassel: Chapeuzinho Vermelho – Após o café da manhã, viagem até Kassel, passando por Schwalmstadt, Waldeck e Wolfhagen, pequenas aldeias cheias de histórias com casas típicas medievais. A famosa história de Schwalmstadt: “Chapeuzinho Vermelho“, a de Wolfhagen: “O Lobo e os sete cabritinhos“. Viagem a Kassel e visita ao Museu dos Irmãos Grimm. Dia Kassel – Sababurg – Frankfurt: A Bela Adormecida – Pela manhã, visita ao castelo da Bela Adormecida em Sababurg. Esse castelo foi fundado em 1334. A lenda da Bela Adormecida esperando pelo príncipe encantado desenvolveu-se em um bosque encantado perto do castelo. À tarde, retorno a Frankfurt. Dia Hamburgo – Bremen: Os Músicos de Bremen –Viagem a Bremen, onde se conhecem a maravilhosa prefeitura e a estátua de Roland, a catedral e o antigo bairro dos pescadores. Aqui se inicia a Rota dos Contos de Fadas e foi onde se originou um dos contos mais famosos, “Os Músicos de Bremen”, com apresentações sempre aos domingos na prefeitura. Dia Bremen – Hannover: O Flautista de Hamelin –Visita a vários povoados charmosos: Verden, cidade famosa por seus cavalos, Nienburg, com seu centro histórico, e Rinteln, a cidade dos castelos. Chegando a Hamelin, será vivenciado o conto do famoso flautista. Dia Hannover – Kassel – Hamburgo: Da Cinderela a Bela Adormecida – Segue-se para Polle, onde estão as ruínas do castelo em que, segundo a lenda, vivia a Cinderela. É conhecido também o castelo da Bela Adormecida em Sababurg. À tarde, retorno a Hamburgo.
OS VALORES IDEOLÓGICOS Finalizando este registro das peculiaridades conteudísticas e formais dos contos dos Grimm, examinemos os valores ideológicos em que eles se assentam. » » Atmosfera geral é aberta, alegre, tendente ao bom humor como atitude aconselhável no viver cotidiano.
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» » Predomínio dos valores humanistas: preocupação fundamental com a sobrevivência ou as necessidades básicas do indivíduo: fome, sede, agasalho, descanso, estímulo à caridade, solidariedade, boa vontade, tolerância. Valorização da palavra dada que, em hipótese alguma, poderá ser quebrada. » » Oscilação entre uma ética maniqueísta (nítida separação entre o bem e o mal; o certo e o errado) e uma ética relativista (o que parecia mau acaba se revelando bom, o que parecia errado resulta em algo certo). Mas, quanto às ações, a regra é: prêmio para o bem e castigo para o mal. » » Esperteza/astúcia inteligentes vencem a prepotência e a força bruta. » » Insaciabilidade humana que causa desequilíbrios sem conta. » » Há uma ordem natural nos seres e nas coisas que não deve sei contrariada. » » São sempre os mais velhos que detêm o poder e a autoridade de maneira inquestionável, enquanto são sempre os mais novos os preferidos ou os predestinados (representam o futuro). » » O indivíduo que consegue vencer as “provas” e passar do nível mais baixo da sociedade para o mais alto é sempre alguém com dons excepcionais (esta característica vai ser a marca dos heróis românticos que nasciam nesse momento). » » A mediadora, por excelência, dessa passagem de um nível social para outro é a mulher. Casandose com a filha do rei ou do nobre abastado, o indivíduo pobre ou plebeu automaticamente enobrece e se torna poderoso (outro esquema que fará parte da estrutura romanesca). » » Qualidades exigidas à mulher: beleza, modéstia, pureza, obediência, recato e total submissão ao homem (pai, marido ou irmão). » » É dada maior ênfase às relações entre pai e filha do que entre esposo e esposa. Muitos dos núcleos dramáticos dessas histórias expressam problemas entre pai e filha. Ambiguidade da natureza feminina (que, aliás, já vem sendo registrada desde as narrativas orientais): ela é causa de bem e de mal; tanto pode salvar o homem, com sua bondade e amor, como pô-lo a perder com seus ardis e suas traições. Ela tanto pode ser a amada pela qual o príncipe luta como pode ser apenas o instrumento da procriação desejada pelo homem. Nota-se, porém, que os aspectos negativos da mulher aparecem basicamente em contos divertidos, isto é, são aspectos realçados como pilhéria; mulheres gulosas, perdulárias, teimosas, mentirosas, ignorantes, fingidas.
HANS CHRISTIAN ANDERSEN (1805-1875) Célebre poeta e novelista dinamarquês, Andersen nasceu no mesmo ano em que Napoleão Bonaparte obteve suas primeiras vitórias decisivas sobre a Rússia, Prússia, Áustria e Alemanha. Assim, desde menino, respirou a atmosfera de exaltação nacionalista que, desencadeada na Alemanha, ecoou fundo entre os nórdicos. Dinamarca, Suécia e Noruega (reinos escandinavos estreitamente ligados à cultura germânica) também se entregaram a descoberta e cultivo dos valores ancestrais, não com o espírito de autoafirmação política, mas no sentido étnico de revelar o caráter da raça, tal como fizeram os Irmãos Grimm e os de sua geração. Entretanto, começando a sua produção literária cerca de 20 anos depois destes iniciadores do nacionalismo romântico popular, Hans Christian Andersen encontrou
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a sua volta outra atmosfera cultural e política e outras linhas de força que, no fundo, nada mais eram do que o amadurecimento das sementes lançadas pela geração anterior. Escritor que se preocupou essencialmente com a sensibilidade exaltada pelo Romantismo, em suas histórias tratou-a de maneira terna e nostálgica. Andersen acabou se transformando em um dos mais famosos escritores para crianças em todo mundo. Entre os seus “Eventyr” (168 contos publicados entre 1835 e 1872) e os “Contos dos Grimm”, a crítica tem apontado a mesma diferença que distingue a exaltação nacionalista de autodefesa, própria do período napoleônico (1805-1815), e o ritmo calmo e idílico do período de reconstrução pósnapoleônico (1815-1830), os bons tempos do “Biedermeier”. Nos contos dos Irmãos, predomina o mundo maravilhoso; na maior parte dos contos de Andersen, é na realidade concreta do cotidiano que o maravilhoso é descoberto. E, mesclada ao maravilhoso, há muita crueldade e violência que seu humanismo tenta atenuar. Essencialmente sintonizado com os ideais românticos de exaltação dos valores populares e com os ideais de fraternidade e generosidade humana, Andersen se revelou uma das vozes mais puras do espírito dos simples. Não do rudimentar e tosco, mas do singelo, do ingênuo que vive mais pelas emoções do coração do que pelas forças do intelecto. Entre os títulos mais divulgados de sua obra estão: “O Patinho Feio”; “Os Sapatinhos Vermelhos”; “A Rainha da Neve”; “O Rouxinol e o Imperador da China”; “O Soldadinho de Chumbo”; “A Pastora e o Limpador de Chaminés”, “A Pequena Vendedora de Fósforos”; “Pequetita”; “Os Cisnes Selvagens”; “A Roupa Nova do Imperador”; “O Companheiro de Viagem”; “O Homem da Neve”; “João e Maria”; “João Grande e João Pequeno” etc. Embora, entre suas histórias, haja muitas que se desenrolam no mundo fantástico da imaginação, a maioria está presa ao cotidiano. Vivendo em uma época em que a ascensão econômica se fazia por meio da expansão industrial e da nova classe, dos operários, que então se formava, Andersen teve a oportunidade de conhecer os contrastes da abundância organizada ao lado da miséria sem horizontes. Ele mesmo pertenceu a esta faixa social, a da pobreza organizada em sistema. Suas histórias mostram que sua principal reação a essa situação, de fato, foi mais de resignação e de refúgio na fé religiosa do que de revolta contra as injustiças sociais. Como o verdadeiro cristão vê esta vida como o “vale de lágrimas” que ele deve atravessar antes de ir para o céu, também suas personagens mostram-se perfeitamente resignadas com provas que a vida impõe. Esses valores ideológicos presentes em sua obra não indicam, porém, que Andersen tivesse sido um resignado com as situações que a vida lhe ofereceu. Muito pelo contrário, procurou sempre superá-las. Não duvidamos de que a emotividade que perpassa em seu mundo de ficção e o seu poder de tocar a sensibilidade do leitor tenham sido os aspectos que mais diretamente contribuíram para que Andersen conquistasse a glória. Como um verdadeiro romântico, falando a linguagem do coração, ele foi compreendido e amado de imediato por crianças e adultos. Hoje, embora as exigências dos tempos sejam outras, Andersen continua tendo um largo público, pois escreveu com ternura, sem pieguices e, realista como foi, não omitiu os traços de violência que parecem inerentes à vida. Violência ou injustiça contra os desvalidos, eis o que o tocou mais
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fundo: uma violência que a maioria das adaptações tem eliminado. Ao que consta, todas as narrativas recolhidas e adaptadas pelos Irmãos Grimm pertenciam à variada tradição oral, e eles as foram descobrir. Já com Andersen não aconteceu o mesmo. Foram duas fontes de que se utilizou: a da Literatura Popular conservada pela tradição oral ou em manuscritos e da vida real que se oferecia aos seus olhos. Seus inúmeros contos mostram que ele inventou muito mais do que seus antecessores. Começou adaptando contos populares já bem conhecidos, como “A Princesa e o Grão de Ervilha” ou “O Companheiro de Viagem” que ele costumava contar às crianças. Andersen foi também um improvisador, um destes artistas populares “bem dotados” que, em sua época, ainda (mas por pouco tempo mais) percorriam as aldeias e, nos serões, contavam intermináveis histórias. A segunda parte de sua obra é mais pessoal. A partir de 1843, começou a publicar contos inventados por ele mesmo e que têm, por heróis, objetos familiares. São inúmeras as histórias que revelam, de imediato, a sua modernidade, uma vez que seus elementos constitutivos são próprios da civilização de sua época e não dos tempos primitivos, quando viveram os ancestrais (os responsáveis pela existência da Literatura Folclórica). É o caso de muitos objetos que vivem em seus contos, como o soldadinho de chumbo, a janela com vidraça de onde ele caiu, a beira da calçada por onde correu a enxurrada que o levou; é o caso dos fósforos da pequena vendedora; ou o dos velhos armários, enegrecidos pelos tempos e todo coberto de arabescos e figuras entalhadas em alto-relevo onde estavam guardados, entre mil outros objetos civilizados; a pastora de porcelana e o limpador de chaminés ou o velho chinês, também de porcelana; ou o isqueiro mágico ganho pelo soldado etc. Para além desta diferença (a do aproveitamento de elementos reais, pertencentes à vida do dia a dia), Andersen vai tornar mais explícitos os padrões de comportamento exigidos pela sociedade patriarcal, liberal, cristã, burguesa que, então, se consolidava. A par destes valores éticos, sociais, políticos e culturais que regem a vida dos homens em sociedade, Andersen insistiu também no comportamento cristão que devia nortear pensamentos e ações da humanidade para ganhar o céu. Andersen foi, portanto, a primeira voz autenticamente romântica a contar histórias para as crianças e a sugerir padrões de comportamento a serem adotados pela nova sociedade que se organizava. Na ternura que ele demonstra em suas histórias pelos pequenos e desvalidos, encontramos a generosidade humanista e o espírito de caridade próprios do Romantismo. No confronto constante que Andersen estabelece entre o poderoso e o desprotegido, o forte e o fraco, mostrando não só a injustiça do poder explorador como também a superioridade humana do explorado, vemos a funda consciência de que todos os homens devem ter direitos iguais. Entre os vários valores ideológicos românticos, facilmente identificáveis em suas histórias, apontamos: a) defesa dos direitos iguais pela anulação das diferenças de classe (“A Pastora e o Limpador de Chaminés”); b) valorização do indivíduo por suas qualidades intrínsecas e não por seus privilégios ou atributos exteriores (“O Patinho Feio”, “A Pequena Vendedora de Fósforos”); c) ânsia de expansão do “eu” pelo conhecimento de novos horizontes, novos costumes, novos seres. Atração pelo diferente, pelo incomum, pela aventura (“O Sapo”, “O Pinheirinho”, “A Sereiazinha”);
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d) onsciência da precariedade da vida, da contingência dos seres, das situações (“O Soldadinho de Chumbo”, “O Homem de Neve”); e) crença na superioridade das coisas naturais em relação às artificiais (“O Rouxinol”). f) incentivo à fraternidade e caridade cristãs, à resignação e paciência com as duras provas da vida (“O Pequeno Duque”, “Os Cisnes Selvagens”); g) sátira às burlas e mentiras de que os homens vivem se servindo para enganarem uns aos outros (“João Grande e João Pequeno”, “A Roupa nova do Imperador”); h) condenação da arrogância, do orgulho, da maldade contra os fracos e com os animais e, principalmente, contra a ambição de riquezas e poder (“João Grande e João Pequeno”, “A Menina que pisou no pão”, “Os Cisnes Selvagens”); i) valorização de obediência, pureza, modéstia, paciência, recato, submissão e religiosidade como virtudes básicas da mulher. Confirma-se, em Andersen, a imagem da mulher como o ser dual que surge no Renascimento: no plano do ideal, ela é o ser do qual depende a realização total do Homem; no plano da realidade social e humana, é o ser objeto totalmente submisso à vontade do homem a quem pertence (pai, irmão ou marido). Em todas as histórias que afirmam tal imagem da mulher, sempre alguém decide seu destino sem consultá-la para nada: ela é totalmente passiva e a tudo se curva docilmente. Este levantamento corresponde aos contos que se divulgaram mais entre nós. Claro que não podemos esquecer o fato de que, entre o original (em dinamarquês ou em alemão, tradução feita pelo próprio Andersen) e as várias traduções e adaptações feitas nesses cento e tantos anos, muita modificação pode ter ocorrido. De qualquer forma, pela semelhança das versões que pudemos confrontar, parece que o espírito e a linguagem originais puderam ser conservados. É, pois, com base nas edições brasileiras que tiramos nossas conclusões críticas.
MARAVILHOSO X REALISMO – TERNURA X VIOLÊNCIA Uma das peculiaridades de Andersen é a sábia mistura de maravilhoso e realismo existente em sua matéria literária. Nesta não há fadas (encontramos apenas uma na pequena novela de origem popular germânica “Cisnes Selvagens”), o que não impede a onipresença do maravilhoso em seu universo. Na verdade, a maioria das narrativas de Andersen apresentam personagens, espaço e problemática retirados da realidade comum conhecida por todos nós. Entretanto, o elemento mágico está em tudo e é tão naturalmente presente que as coisas passam a acontecer em um espaço no qual não existem fronteiras entre o real e a fantasia. É como se Andersen visse o universo a sua volta como algo maravilhoso, idêntico ao mundo sobrenatural existente nas lendas, nos mitos, nas fábulas, nas sagas, nas novelas, nos ancestrais. São objetos, árvores, pássaros, flores, animais que pensam e falam como se fossem humanos ou seres prodigiosos. Por outro lado, surgem seres humanos cujo direito de serem respeitados pela vida e pelos homens é totalmente ignorado. Pode-se dizer que ternura humana e violência são os dois polos entre os quais fluem as suas histórias. Poucos escritores conseguiram expressar, como Andersen, tanta ternura pelo mundo das crianças, dos animais, das plantas e dos objetos. Mas também poucos, em histórias para crianças, tornaram a violência tão presente, tão dolorosa e irremediável e, em grande
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parte, de natureza bem diferente da que existe nas histórias maravilhosas que o precederam. Ao lermos hoje essa produção literária consagrada pelas crianças (e inclusive nos lembrando do encanto com que convivemos com elas em nossa infância), admiramo-nos do fato que toda a agressividade de que ela está penetrada não tenha atuado de maneira negativa em seus pequenos leitores, levando-os a repudiá-las. É de se notar que os Irmãos Grimm já haviam suavizado a violência existente em certas histórias de Perrault. Entretanto, ainda conservaram muita agressividade – exatamente aquela que faz parte do mundo primitivo de onde vieram histórias maravilhosas. Não há dúvida de que a humanidade vem caminhando de era em era, sempre vencendo os obstáculos que se levantam contra ela, mas continuando sempre ameaçada. Na aurora dos tempos, tinha-se a violência da natureza e os animais monstruosos contra os quais o homem não possuía defesa. Depois, as ameaças, os perigos e as violências foram mudando de feição. Umas desapareciam, mas eram imediatamente substituídas por outras; ameaças ou agressões de toda espécie continuam fazendo parte essencial da vida humana, incitando os homens à luta para sobreviverem. É de se compreender, pois, que as narrativas ancestrais registrassem essas ameaças e esses perigos e temores que, vencidos, transformavam o homem em herói. Pelo caráter sobrenatural da maioria dessas ameaças, conclui-se que a verdadeira causa dos infortúnios que se abatiam sobre os homens eram totalmente desconhecidos. Como nada nem ninguém podia evitá-los quando chegavam, eles passaram a ter também caráter de algo fatal, determinado por potências superiores e irredutíveis. É só lembrarmos, por exemplo, do acontecimento básico das histórias maravilhosas (e que aceitamos com tanta naturalidade): as metamorfoses. As personagens sofrem constantes e terríveis transformações (normalmente adquirindo uma forma animal), sempre em consequência da vontade maléfica e toda poderosa de alguém com poderes sobrenaturais, sem que elas tenham culpa de nada e nem mesmo esbocem um gesto de defesa ou revolta. Da mesma forma, tomam decisões em relação aos seus destinos, sem que suas vontades sejam consultadas. Às personagens das histórias maravilhosas só cabe a resignação ao que lhes acontece, pois são impotentes diante do mal, que tudo decide. Um único ser resiste a esse determinismo mágico e o vence: é o herói (ou a heroína), evidentemente quando for esta a tarefa que lhe cabe cumprir – resistir ao mal e vencê-lo. Assim acontece nos contos dos Irmãos Grimm, mas já não é a regra geral de Andersen. Por detrás do maravilhoso que existe em suas histórias, já percebemos o espírito romântico-liberal denunciando que o mal que se abate sobre os homens é forjado pelo próprio homem e não por seres sobrenaturais. Daí a principal diferença que vemos entre os seus contos e os que o precederam. Para os Irmãos Grimm (e nos contos maravilhosos em geral), a violência e o mal passam quase despercebidos do leitor porque, além de serem penetrados da magia que domina o espaço todo, acabam totalmente vencidos em um final feliz que os neutraliza (tal como acontece hoje nas histórias dos “super-homens” de toda espécie). Nos contos de Andersen, porém, a derrota final da personagem é quase a regra, não só nos contos realistas, mas também nos maravilhosos. Se procedermos a uma estatística, veremos que as histórias com fim negativo são em número superior às de desenlace
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feliz (muito embora essa felicidade tenha sido conseguida após muitos sofrimentos e provações). Apenas como breves exemplos, lembramos: em “A Sereiazinha”, todo o doloroso amor da pequena sereia pelo príncipe (que ela salvara do naufrágio) leva-a a repudiar sua espécie natural, a tentar transformar-se em mulher e, devido a isso, ser submetida às mais terríveis dores que ela suporta estoicamente até o momento da morte. Em “Os Cisnes Selvagens”, uma das mais ternas e belas histórias de Andersen, na qual a religiosidade cristã está bem presente, temos, também, um dos mais terríveis exemplos de autoviolência (aceita pela personagem quase com o espírito dos mártires). Na história da suave princesa Elisa (protótipo da heroína romântica) e de seus onze irmãos transformados em cisnes pela inveja da madrasta, temos dois tipos de agressão: a da metamorfose que se dá independente da vontade dos onze príncipes e a da prova (tecer onze mantos com urtigas) a que a princesa se submete voluntariamente para desencantar os irmãos. Mas, devido ao final feliz, tanto uma como a outra se anulam e são encaradas apenas como etapas necessárias à realização de um ideal, principalmente dentro do conceito religioso de que o sofrimento é o caminho mais curto para o Céu.
ANDERSEN E A ATUALIDADE Enfim, a exemplificação já vai longe. O que fica sobre o exposto anteriormente (e da leitura global de Andersen), pode-se concluir que grande parte de suas histórias (por se tratar de Literatura para crianças, seres em formação) hoje apresentam aspectos que podem ter influência negativa sobre o espírito infantil. Referimo-nos especificamente aos contos que fixam uma visão de vida desencantada e triste, na qual tudo está destinado a morrer. Em uma época em que precisamos, mais do que nunca, incentivar o dinamismo vital da criança e sua participação ativa na vida, uma Literatura que aponta como única saída a passividade e a resignação não estará ajudando em nada. Como se vê, não poderia haver filosofia de vida mais contrária ao que se espera de um livro para crianças. Entretanto, muitos são de opinião que a magia da arte de Andersen supera esse aspecto negativo e pode até fazê-lo passar despercebido das crianças.
SÍNTESE Charles Perrault nasceu em Paris, em 12 de janeiro de 1628. Célebre por dois fatos principais: a participação que teve na Querela dos antigos e modernos, como supremo campeão destes últimos, e a autoria, em 1697, dos contos de fadas que imortalizaram o seu nome (“Contes de ma mère l’Oye”, conhecidos em português como “Contos da Carochinha”). Obtendo desde logo o maior êxito, esses contos foram traduzidos para quase todos os idiomas e passaram a dominar o universo maravilhoso das crianças: “A Bela Adormecida no Bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Barba-azul”, “A Gata Borralheira”, “As Botas de Sete Léguas” e tantos outros que estão definitivamente integrados no folclore infantil. Era o filho caçula de uma família importante; seu pai e seus quatro irmãos pertenciam à corte do rei da França, Luís XIV.
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Foi durante a Querela que Perrault redigiu os seus contos para crianças, publicados com títulos diferentes: “Histórias ou Contos do tempo passado” e “Contes de ma mère l’Oye”. Perrault d’ArmaCourt tinha, na ocasião, dez anos de idade. O mérito do escritor foi ter fixado numa forma simples e elegante os contos tradicionais e anônimos da memória popular. O real e o maravilhoso harmonizaramse de maneira perfeita, refletindo, em seus contos, as concepções romanescas do século XVII. Perrault foi denominado Homero Burguês pela propriedade com que retratou a sociedade de sua época a partir da metamorfose de certos símbolos dos contos populares. Seu trabalho consistiu em transformar os monstros e animais — aos quais os camponeses atribuíam poderes mágicos — em fadas. Em sua vasta obra, “A Gata Borralheira” é o símbolo do personagem humilhado e maltratado. “O Gato de botas” é o pícaro a tirar proveito da corrupção social. “O Pequeno Polegar” é o anão astuto que vence gigantes bobos. Ou seja, suas personagens se armam com os atributos da inteligência e da perspicácia para vencer a força bruta: o poderoso opressor. Perrault foi responsável pela introdução dos desprivilegiados nos salões em contos cujas personagens são as mais estereotipadas: a madrasta, o lobo e os irmãos mais velhos são sempre maus. Os fortes e poderosos são de nítida descendência canibalesca, de devoração dos mais fracos. Jacob e Wilhelm Grimm, os Irmãos Grimm, nasceram na localidade alemã de Hanau. Por volta de 1806, tiveram acesso a uma coletânea de poesias populares que leram com grande interesse. Entusiasmados pela ingenuidade daqueles poemas, que foram transmitidos oralmente de geração a geração, começaram a reunir e a escrever os contos tradicionais narrados nos serões familiares, em uma época em que isso era muito comum porque não existia outra diversão. Em 1812, publicaram uma primeira coletânea com 86 contos, seguida, dois anos depois, por outra que reunia mais setenta contos. Para reunir as histórias, os dois Irmãos percorreram a Alemanha conversando com muitas pessoas. Em 1825, Wilhelm se casou com Henriette. Dorothea, casada com um alfaiate em Kassel, encontrou os Grimm — então bibliotecários da cidade — numa feira onde fora levar uma cesta de verduras. Wilhelm e Jacob percebendo o quanto ela sabia das histórias populares — ouvidas na cervejaria do pai, quando era criança — passaram a convidá-la semanalmente, nos dias de feira, à sua casa, recolhendo, assim, os quase 220 contos de seu livro, cujas edições, em 140 línguas, somam mais de trinta milhões de exemplares. Os Irmãos Grimm foram filólogos e folcloristas. Jacob é considerado o criador da moderna filologia germânica; e Wilhelm, o fundador do folclore moderno. Jacob é responsável, também, por uma das primeiras traduções para a língua alemã da Edda Poética. O legado deixado por eles é importantíssimo para a preservação e o estudo da mitologia germânica. Ambos faleceram em Berlim; Wilhelm, em 1859, e Jacob, em 1863. Hans Christian Andersen nasceu na cidade dinamarquesa de Odense, em 2 de abril de 1805. Era o único filho de um modesto sapateiro, que costumava lhe narrar antigos contos populares, e de uma lavadeira. Menino sensível, preferia entreter-se sozinho e inventar histórias a brincar com outras crianças. Como vinha de uma família pobre, Andersen não teve instrução, mas isso não o impediu de vir a frequentar os salões de aristocratas e reis.
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Andersen viveu a época do Romantismo, durante a qual músicos e escritores abandonaram os cânones e os temas clássicos universais e começaram a buscar inspiração na Idade Média, nas tradições populares e na cultura própria de cada nação. Andersen era admirador dos grandes românticos alemães, como Goethe e Schiller, e, das suas longas viagens pela Alemanha, França, Itália, Grécia, Turquia e Inglaterra (onde se tornou amigo do grande escritor Charles Dickens) obteve material para os seus maravilhosos contos. Também fazia anotações em diários que lhe serviram para escrever interessantes livros de viagens que tiveram muito sucesso na época. É considerado o precursor da Literatura Infantil mundial. Em função da data de seu nascimento, comemora-se, em 2 de abril, o Dia Internacional do Livro Infantojuvenil.
REFERÊNCIAS AGUIAR, Vera Teixeira; BORDINI, Mª da Glória. Literatura: a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2004. COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo, Ática, 1987. ______. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. CUNHA, Maria Antonieta A. Literatura Infantil – teoria e prática. São Paulo: Ática, 2004.
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AULA 3 Autores e obras Infantojuvenis através do tempo INTRODUÇÃO Nesta unidade, serão apresentados autores e obras Infantojuvenis através do tempo, procurando construir um conhecimento teórico-prático das manifestações da Literatura Infantojuvenil. Como vimos anteriormente, quando se fala de contos de fadas, três nomes da Literatura vêm à mente: Charles Perrault, os Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen. É preciso que encontre respostas que preencham as angustiantes lacunas do seu dia a dia. É então que, movido pela necessidade de sonhar uma outra história, o homem cria suas utopias pois utopia é negação de um presente medíocre e sufocante, é espaço futuro sem limites, sustentado pelo desejo, é sonho apaziguador de regresso à perfeição das origens, é reencontro do homem consigo mesmo. (Julio Caro Baroja)
Assim entendidos, os contos de fadas constituem documentos nos quais se inscrevem nossos medos e os mecanismos para neutralizá-los – as utopias. Contemporâneo de Luis XIV, o Rei Sol, Charles Perrault (1628-1703) publicou as suas histórias ou os seus contos dos tempos passados. Cada um é encerrado com uma moralidade em verso. No frontispício, a obra apresenta uma gravura com a inscrição “Contes de ma mère L’Oye” (“Contos da Mamãe Ganso”).
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Também nos contos dos Irmãos Grimm (Jacob, 1785-1863 e Wilhelm, 1786-1859) vamos encontrar idênticas situações em que o fraco (pobre) vence o forte (rico): são situações que alimentam o desejo de prosperidade e de fartura das classes menos favorecidas. O dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), imprimindo a sua obra marcas de sua hipersensibilidade, timidez e de seu temperamento depressivo, publicou seus contos em 1835. Neles também desfilam personagens em busca de abundância, da justiça e do amor.
Mas os tempos mudam... A Literatura é um possível caminho para a criança desenvolver a imaginação, as emoções e os sentimentos de forma prazerosa e significativa. Para contar a história, é preciso saber como se faz, e, por meio das histórias, as crianças aprendem nomes, sons, músicas e se inserem na cultura. Quem conta histórias precisa criar um clima de envolvimento. O objetivo deste trabalho é mostrar a importância da Literatura Infantil e também a importância das pessoas que contam as histórias na Educação Infantil e, acima de tudo, incentivam as descobertas por meio dos livros.
DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE NARRATIVAS DO REALISMO MARAVILHOSO (OU MÁGICO) São as que decorrem no mundo real, que nos é familiar ou bem conhecido, no qual irrompe, de repente, algo de mágico ou de maravilhoso (ou de absurdo) e passam a acontecer coisas que alteram por completo as leis ou regras vigentes no mundo normal. Certos contos de Andersen já apresentam índices da presença do maravilhoso, oculto no mundo cotidiano e prosaico (“Os Sapatinhos Vermelhos”). Foi Lewis Carroll quem, na Literatura moderna, conseguiu explorar de maneira genial as possibilidades desta fusão, explorando também um novo e importante elemento: o nonsense, o sem-sentido, a graça, o lúdico. Incluem-se, nesta tendência, as famosas obras de Collodi, “Pinocchio”, e de J. M. Barrie, “Peter Pan”.
LEWIS CARROLL (1832-1898) O primeiro grande nome na área do realismo maravilhoso (ou mágico), dentro da Literatura Infantil moderna, é o do célebre escritor inglês, Charles Lutwidge Dodgson, que o mundo conhece pelo pseudônimo de Lewis Carroll. Contemporâneo de Júlio Verne, Carroll viveu durante o longo reinado da Rainha Vitória (1838-1901) e, desde cedo, revelou grande pendor para as letras.
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Filho de um pastor anglicano, ele próprio ordenou-se diácono, em 1861, mas nunca chegou a exercer a profissão de pastor devido a «seus tormentos interiores». Em 1845, com 13 anos de idade, publicou seu primeiro conto, «O Desconhecido», na revista editada pelo colégio onde estudava (Richmond College). Em 1850, começou seus estudos no Christ Church College, de Oxford, onde permaneceu como professor de Matemática superior durante 26 anos, fazendo uma carreira brilhante. Em 1855, começou definitivamente suas atividades como escritor, publicando poemas humorísticos e contos na revista Comic Times, já com o pseudônimo que haveria de torná-lo famoso. Foi também um apaixonado pela arte da fotografia, que era então novidade e na qual se tornou perito. Segundo a crônica, era um homem aparentemente tranquilo, cuja vida decorreu sem incidentes e foi marcada por um evidente amor pelas crianças. Sua grande obra foi “Alice No País Das Maravilhas”, inventada, em 1862, durante um passeio de barco pelo Tâmisa com seus amigos, o cônego Duckworth, o casal Macdonald e três meninas, filhas do Deão do Christ Church Colege: Alice Liddell (a heroína das aventuras, então com 10 anos de idade) e suas irmãs, Lorina e Edith. Encorajado pelos Macdonald, Carroll resolveu escrever sua improvisação e a ampliou para a versão que a tornou famosa, cujo primeiro título foi “Alice Underground” (Alice por baixo da terra), depois mudado para “Alice’s Adventures in Wonderland” (Aventuras de Alice no País Maravilhoso). Inicialmente, o próprio Carroll tentou ilustrá-la. Depois, desistindo, conseguiu que o caricaturista John Tenniel aceitasse fazê-la sob sua orientação. Ao que consta, as ilustrações originais de “Alice No País Das Maravilhas” são uma espécie de “desenho por procuração”: idealizados por Caroll e executados por Tenniel. Seu manuscrito foi dado de presente a Alice Liddell e, em 1932, foi vendido a um colecionador americano, Dr. Rosenback. Publicado em 1865, a obra deu-lhe imediata notoriedade. Este sucesso levou Carroll a escrever, em seguida, “Alice Through the Looking Glass and What Alice Found There” (Alice através do espelho e o que Alice encontrou lá). Este também foi ilustrado por TennieI e foi publicado em 1872, com uma tiragem de 12 mil exemplares. Depois de escrever alguns tratados de matemática, Carroll publicou, em 1876, um longo poema fantástico, “The Hunting of Snark” (A Caçada ao Snark – ainda não traduzido no Brasil), que o autor apresenta como um “delírio em oito episódios ou crises”. A partir de 1877, passou os períodos mais fortes do verão (agosto) na praia de Eastbourne, onde fez amizade com novos grupos de crianças. Nessa época, dedicou-se a escrever textos nos quais predominam os jogos de linguagem ou de lógica formal e publicou, em 1879, “Euclides and his Modern Rivals” (Euclides e seus modernos rivais). Tornou-se amigo da artista Gertrude Thompson e, por sua influência, dedicou-se durante algum tempo a fotografar crianças nuas. Logo depois (1880), desistiu subitamente das atividades fotográficas e, em seguida, deixou também o magistério. A partir daí, dedicou-se exclusivamente às pesquisas de lógica formal e também à realização de um livro exemplar para crianças: “Sylvie and Bruno” (1889) e “Sylvie and Bruno Concluded” (1893). Entre esses dois livros, publicou um novo título da série “Alice”, “The Nursery Alice’s” (1890).
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Consta da crônica de sua vida que, em 1881, se reconciliou com a família Liddell (cuja amizade ficara estremecida logo após a publicação de “Alice no País das Maravilhas”, por motivos ignorados) e reencontrou Alice, já então casada. E, a partir de 8 de novembro de 1897, renunciou radicalmente ao personagem “Lewis Carroll”, recusando inclusive receber as cartas que lhe mandavam com esse nome. Faleceu em 14 de janeiro de 1898. Entretanto, sua imortalidade literária se fez com esse pseudônimo e principalmente com as fantasias de seus livros infantis “Alice no País das Maravilhas” e “Alice no País do Espelho”. Tanto um como outro contam as incríveis aventuras de uma menina, Alice, ao entrar subitamente em um mundo desconhecido, totalmente diferente do mundo real e familiar em que vivia. No primeiro, “Alice No País Das Maravilhas”, ao correr atrás de um coelho que, muito apressado, passara por ela (reclamando por estar atrasado e consultando um relógio que tirara de seu colete) e entrara em uma toca, a menina cai em um poço profundíssimo que termina em um lugar onde tudo se faz ao contrário do natural ou convencional; e onde ela vive as situações mais divertidas e absurdas. Da mesma forma, em “Alice no País do Espelho”, de maneira maravilhosa, Alice passa do mundo real de sua sala de estar para o mundo às avessas que ela encontra ao atravessar o espelho que ficava em cima da lareira. Confrontados com a Literatura inglesa da época, esses livros de Lewis Carroll mostram-se ligados à importante corrente do nonsense vitoriano, que começava a aparecer em certa produção literária britânica de meados do século XIX. Tendo chegado ao apogeu das formas literárias que expressavam as certezas e grandezas do realismo vitoriano, a novelística inglesa começava a ser questionada (ainda que de maneira despercebida e sutil) por uma produção poética, ora satírica, ora cética, ora fantasista. O excesso de racionalismo vitoriano vai ser posto em questão principalmente pelo nonsense. Nas raízes do fantasioso universo de “Alice no País das Maravilhas” (ou “no País do Espelho”), é esse nonsense que encontramos. É a lúcida consciência do absurdo das regras e dos valores absolutos que, instituídos em sistema, regem a vida do homem. E a denúncia desse absurdo se faz por meio de outro absurdo: o que resulta da subversão não só das leis naturais que nos regem, mas principalmente da linguagem. Indiscutivelmente, o grande valor literário de “Alice no País das Maravilhas” está em sua invenção de linguagem, correspondendo essencialmente à natureza das fantásticas aventuras ali concretizadas. Essa invenção de linguagem ou subversão linguística tem sido, com toda a evidência, um dos grandes obstáculos ao aparecimento de grande número de traduções fiéis. Uma das dificuldades da leitura do texto original de Lewis Carroll para o leitor não inglês advém da desestruturação da linguagem que ali é realizada. Em inúmeras situações, o importante a ser ali percebido resulta do aproveitamento de: expressões idiomáticas inglesas que são transpostas para outro contexto (tais como “louco como um chapeleiro” ou “louco como uma lebre em março”), canções de ninar, cantigas folclóricas ou poesias escolares (que deviam ser bem conhecidas das crianças da época) e que Carroll parodia de maneira cômica, absurda e fundamente crítica, com elementos folclóricos, como é o caso do Gato do Cheshire, que tem um riso de orelha a orelha e aparece ou desaparece para Alice. A importância simbólica dessa personagem resulta de ter sido inventada a partir de um enfeite folclórico, o Cheshire Dog, uma figura de cão muito triste, vendido na região de Cheshire (tal como os bonecos nordestinos). Desconhecida essa relação de origem, a figura permanece excêntrica, cômica e absurda, mas muito de sua importância na trama se perde. Há, ainda, a presença de palavras paronímicas cuja camada sonora é explorada com mão de mestre pelo autor, imprimindo à narrativa uma grande comicidade pelo absurdo que a linguagem acarreta.
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Queremos crer que as maiores dificuldades encontradas pelos tradutores de “Alice no País das Maravilhas” têm sido exatamente a inventividade do autor ao subverter as normas linguísticas no tratamento das palavras parônimas. Inclusive porque, ao passar para uma outra língua, na maior parte das vezes, a paronomásia não persiste e, assim, o trabalho do tradutor seria encontrar em sua língua os equivalentes ao jogo de palavras pretendido pelo autor, o que nem sempre tem sido possível. Simultaneamente a esta subversão das formas linguísticas, Lewis Carroll põe em relevo a relatividade das coisas, a partir do problema do tamanho. Alice está sempre aumentando ou diminuindo de altura, o que altera radicalmente suas relações com o meio, os seres e as coisas com que entra em contato. Por este aspecto, suas aventuras continuam absolutamente atuais, pois é ainda um dos problemas de nosso tempo, a relatividade dos valores. As metamorfoses (que desafiam nosso desejo de formas estáveis e definitivas) são também um elemento decisivo na construção deste universo fantástico. Inclusive o aparecimento e desaparecimento de coisas ou partes do corpo (como o caso do Gato Cheshire, cujo corpo aparece e desaparece) não decorrem de uma invenção puramente fantasista: decorreu, sem dúvida, de uma operação na técnica de revelação fotográfica, o banho de nitrato de prata, que pode fazer aparecer ou desaparecer a imagem (ou parte dela) em sua transposição da chapa para o papel; Carroll, como perito em fotografia, soube aproveitar de maneira original e criativa esta sugestão da técnica. A propósito, a também constante alteração de tamanho utilizada por Carroll deve ter sido influência do telescópio, bastante mencionado na narrativa. De qualquer forma, para além do lúdico ou da graça das impossíveis aventuras vividas por Alice, o livro de Lewis Carroll continua atual devido à ruptura com a lógica comum que ali é instaurada. É sintomático que essa atração pela ruptura com a lógica comum, que aparece na arte de nosso século, tenha surgido modernamente na Inglaterra da segunda metade do século XIX, exatamente o local e o momento em que mais rigidamente se afirmavam os valores da racionalidade e aristocratismo da sociedade tradicional (na qual tudo – grandezas e misérias, privilégios e diferenças – era rigorosamente explicado e justificado por uma lógica absoluta e irrefutável). Portanto, ao se divulgar como obra-prima da Literatura Infantojuvenil, “Alice no País das Maravilhas” perdeu o estilo peculiar de Carroll: a verdadeira intencionalidade da criação realizada desapareceu completamente. O que ficou foi o sentido do mágico, do maravilhoso ou do absurdo que pode ser encontrado dentro do cotidiano comum e prosaico; e Carroll foi um dos que primeiro descobriu esse sentido para o mundo de ontem e de hoje. Na verdade, embora sendo uma Literatura Infantil, “Alice no País das Maravilhas” tem corrido o mundo em diferentes adaptações. O curioso é que com “Alice no País das Maravilhas” aconteceu o contrário do que sucedeu com as “Viagens de Gulliver” ou as “Aventuras de Robinson Crusoé”. Livros que, escritos originalmente para adultos, acabaram se imortalizando como livros para a juventude. Exatamente nos anos 1950, expandiu-se um novo e peculiar interesse dos estudiosos pela obra “infantil” de Lewis Carroll e, gradativamente, ela vem se transformando em obra para adultos. Quanto à contribuição básica de Lewis Carroll para a Literatura Infantil (que é o que nos interessa aqui diretamente), foi semelhante à de Júlio Verne para a Literatura Adulta: ambos partiram do mesmo princípio – a tentativa de fusão de duas áreas de natureza totalmente distinta. Júlio Verne consegue a fusão da ciência com a ficção e Carroll consegue fundir o mundo real, conhecido e concreto, com o mundo imaginário, desconhecido e abstrato.
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Dessa fusão real/imaginário, resultou na matéria literária uma vivência muito mais rica ou gratificante do que a normalmente permitida pelo mundo real; ou então ameaçadora, pela descoberta, no mundo imaginário, de forças poderosas que a disciplina organizada do mundo real mantêm ocultas e prisioneiras.
Em sua “História da Literatura Inglesa”, Jorge de Sena aponta como índices da reação estilística o nonsense, que aparece em certa poesia satírica, e o grotesco das baladas medievalizantes. Explica-as como obras estranhas, nas quais o poeta aplica à fantasia uma crítica do absurdo, em que as circunstâncias contemporâneas da vida ou da mentalidade (correntes em seu tempo) ocupam importante papel.
JAMES M. BARRIE (1860-1937) Foi romancista e dramaturgo inglês nascido na Escócia, de nobre família presbiteriana. Iniciou sua carreira como jornalista, na London Gazette. Era então leitor apaixonado das novelas de Fenimore Cooper, Meredith Dickens e R. L. Stevenson. A partir de 1887, começou escrevendo novelas em que as aventuras são de base amorosa, com muita fantasia e bom humor. Seu sucesso foi imediato. Em 1895, sua primeira peça teatral, “The Projessor’s Love Story”, foi encenada. Apesar das dezenas de títulos de romances ou teatro que J. M. Barrie produziu, o que o consagrou mundialmente foi a criação de “Peter Pan”. Este encantador personagem do universo literário infantojuvenil aparece pela primeira vez no conto “O Pequeno Pássaro Branco” (escrito em 1896 e publicado em 1902). Por influência do empresário de suas peças, esse conto foi transformado em peça teatral, “Peter Pan, o menino que não queria crescer” (1904). O sucesso do personagem levou Barrie a escrever outros contos: “Peter Pan nos Jardins de Kessington” (1907) e “Peter Pan e Wendy” (1911). É a personagem que consagra na Literatura o mito da eterna infância. Em 1920, seu argumento foi transformado em roteiro cinematográfico (para filme mudo), que foi recusado na ocasião e, anos mais tarde, realizado por Walt Disney com óbvias alterações. Transformado em livro que reúne a maior parte das aventuras de Peter Pan, foi traduzido em vários idiomas. No Brasil, teve sempre grande aceitação pela criançada, principalmente depois que Monteiro Lobato o levou para participar do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” e inventou o pitoresco nome de «pó de pirlimpimpim» para o pó mágico que Peter Pan dava às pessoas e que as permitia voar. Por muitos de seus aspectos maravilhosos, Peter Pan é uma das personagens mais queridas do universo literário infantojuvenil. Hoje, seria necessário rever seu princípio básico: a recusa em crescer. Nossas crianças precisam se tornar adultas e ver essa possibilidade como algo bom e desejável.
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COLLODI (1826-1890) Outra personagem queridíssima é o boneco Pinóquio, criado pelo escritor italiano Carlo Lorenzini, que ficou conhecido pelo pseudônimo de Collodi. Como jornalista e como voluntário, Carlo participou das lutas pelo Movimento Republicano, pela Independência e pela Unidade Italiana. A partir de 1875, começou a escrever para crianças, adaptando contos de Perrault, Mme. D›Aulnoy etc. (contos de fadas). Recriou, em 1877, o personagem folclórico “Gianetto” e com ele escreve uma série de livros mais ou menos didáticos (“A Aritmética de Giannettino” e “Viagem de Giannettino pela Itália”). Escreveu ainda uma novela para adultos, em 1881 (“Meninos da rua”). Nesse mesmo ano, publicou um folhetim, “A Estória de um Boneco”, no Giornale dei Bombini de Roma. Com muitas interrupções, publicou novos folhetins dando seguimento às aventuras do boneco, cujo sucesso levou à sua publicação em livro, em 1883, com o título de “As Aventuras de Pinóquio”. Traduzido em todas as línguas (inclusive em latim), Pinóquio tem encantado crianças e adultos do mundo todo até hoje. É considerado pela crítica em geral como uma obra-prima da Literatura Infantojuvenil. Entendido como símbolo de algo, Pinóquio já foi objeto de inúmeras interpretações sem que nenhuma possa ser declarada como a verdadeira. O que permanece é o encanto que há nesse boneco teimoso e curioso de vida, e que atrai definitivamente o espírito infantil (como o boneco, também curioso e teimoso). Suas muitas traduções e adaptações evidentemente alteraram sua dimensão original, conforme a arte de Collodi o criou. Mas sua graça e humanidade persistem indestrutíveis.
A tradicional fábrica de canetas Montblanc dedicou a Edição Limitada Escritores 2011 ao autor italiano Carlo Collodi, o criador de uma das mais duradouras e míticas das personagens infantis: o Pinóquio. A história imaginária de Collodi sobre o boneco de madeira em busca da sua infância tem encantado gerações e sido objeto de numerosas adaptações no cinema, no teatro e até na arte. “As aventuras de Pinóquio” é uma das mais perenes e reconhecidas histórias infantis da civilização ocidental. A Montblanc criou a primeira Edição Limitada Escritores em 1992, para homenagear ícones literários que, ao longo da sua vida, deixaram uma marca na história cultural, por meio do poder e da beleza das suas palavras. Alguns dos maiores mestres da Literatura do passado já foram homenageados com uma peça de edição limitada Montblanc a eles dedicada, desde Voltaire a Dickens, Dostoievsky ou Proust.
BARÃO DE MÜNCHHAUSEN Personagem histórico lendário, o “Barão de Münchhausen” existiu realmente. Foi ele o Barão Jerôme de Münchhausen, oficial alemão que nasceu em Hanover e viveu entre 1720 e 1797. Famoso por suas excentricidades e fanfarronadas, atraiu o interesse de seus contemporâneos e de três escritores que utilizaram sua rica personalidade e fama para escrever novelas que, partindo do realismo mais comum, se projetam subitamente no plano do absurdo ou do maravilhoso.
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Dois desses escritores eram contemporâneos do Barão e escreveram suas aventuras enquanto este ainda vivia: R. A. Raspe (1737-1794) e G. A. Burger (1747-1794), ambos poetas e novelistas. O terceiro, Karl L. Immermann (1796-1840), da geração posterior à do Barão, publicou sua versão, “Münchhausen”, em 1838. Conforme a crítica, as duas primeiras versões enfatizaram a irracionalidade das façanhas maravilhosas e inverossímeis do Barão num gesto crítico à inteligência iluminista do Racionalismo então dominante. Aventuras pitorescas e fantásticas se desenvolvem num plano em que a realidade se alia ao absurdo e tudo é transformado em pura farsa ou divertimento que provoca o riso. “As A venturas do Barão de Münchhausen”, inicialmente escritas para adultos como crítica ao excessivo racionalismo que se impunha no século XVIII, devido ao seu aspecto fantástico, excêntrico, pitoresco e cômico, acabou se transformando em Literatura Infantojuvenil que muito tem divertido a meninada.
NARRATIVAS DO REALISMO HUMANITÁRIO Narrativas do realismo humanitário são as que mostram o lado sentimental e generoso do espírito romântico, que advoga a causa dos fracos ou perseguidos e principalmente a da criança ignorada, injustiçada. “Robinson Crusoé” representa a inteligência e o poder do homem livre, por isso ele foi escolhido por Rousseau, entre os demais livros de sua época, para servir de leitura ao seu discípulo Emite. Daniel Defoe, após o sucesso de “Robinson Crusoé”, tentou prolongá-lo com a publicação de “Sérias Reflexões durante a Vida” e as “Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoé”, mas não suscitou nenhum interesse. Publicou ainda dois livros que ocupam importante lugar na Literatura inglesa, mas não tiveram a sorte, no além fronteiras, do primeiro. Trata-se de “Moll Flanders” (1722), romance licencioso, ao gosto da época, e que conta as aventuras de uma prostituta que acaba sendo grande dama na Corte. Em 1726, publicou um livro sobre demonologia, “The Political History of Devil”. Sua produção, hoje recolhida toda em livros, foi imensa, mas nem tudo representa o valor literário indispensável: são obras circunstanciais, escritas no calor do engajamento político. A primeira tradução em língua portuguesa de “Robinson Crusoé” foi feita por Henrique Leitão de S. Mascarenhas, em 1786, em Lisboa.
Mágico de Oz é o nome pelo qual é conhecido o personagem fictício dos livros da série sobre a “Terra de Oz”, do escritor e teosofista norte-americano L. Frank Baum (1856-1919). Depois que seu jornal faliu, em 1891, ele e sua família se mudaram para Chicago, Illinois, onde Baum conseguiu trabalho como repórter para o Evening Post e também trabalhava como vendedor ambulante. Em 1897, escreveu e publicou um volume de “Mamãe Ganso em Prosa”, uma coleção de rimas escritas em prosa e ilustrado por Maxfield Parrish. “Mamãe Ganso” foi um sucesso, o que permitiu a Baum deixar seu trabalho de vendedor ambulante.
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Em 1899, Baum fez uma parceria com o ilustrador W. W. Denslow para publicar o “Papai Ganso: O novo livro”, uma coleção de poesias infantis em estilo nonsense, em contraposição a uma série de livros intitulados “Mamãe Ganso”, editados nos EUA e Inglaterra, sem adotar este título já repetido. O livro foi um sucesso, tornando-se o best-seller infantil do ano. Em 1901, Baum e o ilustrador Denslow (com o qual partilhava o copyright das obras infantis) publicaram “O Maravilhoso Mágico de Oz”. O livro foi best-seller por dois anos seguidos. Baum continuou escrevendo mais 13 livros baseados nos lugares e no povo da Terra de Oz. Dois anos depois da publicação de “O Maravilhoso Mágico de Oz”, Baum e Denslow se uniram com o compositor Paul Tietjens e com o diretor Julian Mitchell para produzir uma versão musical do livro. O musical foi apresentado no teatro da Broadway 293 de 1902 a 1911, juntamente com tour em todos os Estados Unidos. O sucesso de “O Mágico de Oz” entusiasmou Baum e Denslow e, em 1901, publicaram “Dot and Tot of Merryland”. O livro foi um dos mais fracos de Baum, e seu fracasso foi uma das causas do rompimento de sua parceria com Denslow. Muitas vezes durante o desenvolvimento da série de Oz, Baum declarou que havia escrito seu último livro dedicando-se a outros livros de fantasia e ficção baseados em outras terras mágicas, incluindo “The Life and Adventures of Santa Claus” e “Queen Zixi of Ix”. Entretanto, persuadido com o demando da popularidade, das cartas de crianças e do fracasso de seus novos livros, ele retornava novamente para a série de Oz. Todos os seus livros estão em domínio público. Em janeiro de 1938, a MGM pagou a L. Frank Baum a quantia de US$ 75 mil pelos direitos de adaptação cinematográfica de seu livro, uma quantia recorde na época. O roteiro estava pronto em 8 de outubro de 1938 (após vários tratamentos). As filmagens começaram em 13 de outubro de 1938 e foram concluídas em 16 de março de 1939. O filme teve sua pré-estreia no dia 12 de agosto de 1939 e, em 25 de agosto daquele mesmo ano, entrou definitivamente em cartaz. A escolha do elenco para o filme foi problemática, com atores trocando de papéis repetidamente no começo das filmagens. O papel de Dorothy foi dado a Judy Garland no dia 24 de fevereiro de 1938. Depois de escalada, alguns executivos da MGM cogitaram trocá-la por Shirley Temple, mas não conseguiram a liberação da jovem atriz pela Fox. Então, outros executivos da MGM vetaram a ideia.
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“VIAGENS DE GULLIVER” – JONATHAN SWIFT Nascido na Irlanda, de pais ingleses politicamente filiados aos tories, Swift tem uma origem que lhe causa obstáculos sérios à plena realização social: irlandeses e tories estavam em desgraça na época. Só aos 21 anos deixa a Irlanda e se fixa na Inglaterra. Foi clérigo humanista, fiel infiel à Igreja da qual era sacerdote. Casou-se secretamente com Hesther Johnson, sua grande paixão e de quem fora preceptor desde os sete anos de idade; paixão que, aliás, não o impediu de se ligar também a outra jovem 21 anos mais nova do que ele, Esther Vanhomrigh. Swift dividiu-se entre ambas até a morte da última, que ele celebrou em versos em “Cadamus e Vanessa”. Sua reação contra a Inglaterra e sua política de opressão contra os irlandeses se deu a partir de 1720, por meio de violentos manifestos. Em 1726, Swift publicou o livro que o iria imortalizar: “Viagens de Gulliver” (Travels into severa remote nations of the world by Lemuel Gulliver) – livro alegórico que, mais tarde, despojado da intencionalidade crítica original, transformou-se em mera narração de viagens fantásticas. No prefácio, Rui Barbosa diz, entre outras coisas: O primeiro capítulo, onde se narra a excursão a Liliput, alude principalmente ao desígnio do autor, à corte e ao governo de Inglaterra na época de Jorge I. O ministro Finmap é uma caricatura de Walpole (1º Ministro da Inglaterra entre 1722 e 1740), devido aos sentimentos de ambição e rivalidade. Swift atribuía, como grosseiras injustiças, o processo de Oxford e o exílio de Bolingbrocke, que tinham reabilitado a Inglaterra com a paz de Utrecht. A sátira amplia-se na viagem a Brobdingnag: já não arremete contra a tática de um partido, mas contra um sistema. Volume existente na Biblioteca Municipal Mário de Andrade. S. Paulo. geral de política, desenhando-se por entre a crítica os contornos ideais de um príncipe patriota e uma organização justa do Estado. [...] Não evita, porém, a censura imparcial a descrição da terra dos Houyhnhnnrs. O tipo dos Yahoos, considerado como figuração da espécie humana, seria um indigno libelo. Mas não é tanto a natureza humana, como a subserviência da razão aos degradados instintos da animalidade, sensualidade, crueldade, avareza, que o escárnio atroz do satirista parece ter em mira.
Três anos depois, já de volta à Irlanda, e talvez a exemplo de Defoe (que havia escrito o panfleto “A Maneira mais rápida com os Dissidentes”, no qual, com o tom mais sério, explicava como acabar com os dissidentes na Inglaterra), Swift publicou a satírica e cruel proposta cujo longo título já diz tudo: “Modesta proposta para evitar que as crianças do pobre povo da Irlanda se tornem um fardo para seus pais ou país, e para fazer deles algo útil para o público”. A proposta era para transformar as crianças em alimento dos lordes ingleses. Uma de suas últimas publicações foi o virulento panfleto em que descreve os costumes delicados da nobreza e grande burguesia inglesa, “Uma Coleção completa de gentil e engenhosa conversação, de acordo com os métodos e maneiras mais polidas” (1738). Falecendo aos 78 anos de idade, em Dublin, Swift deixou não só uma larga produção literária e política, mas também a admiração e o respeito da Irlanda por ter se tornado a voz do povo irlandês, explorado pelo poder britânico.
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Concluindo: seja pela situação de aprendizagem que “Viagens de Gulliver” continua propondo às gerações de todos os tempos, seja pelas reflexões sobre a condição humana que sua crítica registra, a verdade é que continua sendo uma obra que, adaptada, tem muito a dizer para o público infantojuvenil e que, no original, tem muito a revelar para o público adulto no que diz respeito aos valores civilizados, burgueses que, então, se consolidam (sua primeira tradução em língua portuguesa data de 1822 e foi impressa em Lisboa).
JEANNE MARIE LEPRINCE DE BEAUMONT (1711-1780) Jeanne Marie Leprince de Beaumont nasceu em Rouen e lá morreu em 1780. Ela perdeu a mãe quando tinha apenas 11 anos, mas escreveu que não lamentou sua morte. A família era muito pobre e vários de seus irmãos foram enviados para adoção. Ela escreveu que sua mãe havia sofrido terrivelmente por não ser capaz de manter contato com seus filhos ou não saber o que aconteceu com eles. Ela, portanto, sentiu intuitivamente que a morte de sua mãe foi uma bênção. De 1725 até 1735, ela ensinou crianças em Ernemont, cerca de 10 milhas de Rouen. Posteriormente, obteve uma posição de prestígio como professora de canto para as crianças no Tribunal do duque de Lorraine, Estanislau Leszczynski. Seu primeiro casamento, em 1743, foi desastroso e foi anulado depois de dois anos. O duque de Lorraine pagou pessoalmente o seu dote, uma soma enorme para que ela pudesse casar bem, mas o marido usou o dote para pagar suas dívidas e ainda usou o resto para comprar um hotel. Lá, ele realizou festas e se divertia com os desonestos frequentadores. Depois que seu marido contraiu uma doença transmissível como resultado de seu estilo de vida, ela foi capaz de obter uma anulação, mas manteve o nome de seu marido. Em 1746, ela deixou a França para se tornar uma governanta em Londres. Lá, ela escreveu a “Bela e a Fera” e outros clássicos contos de fadas franceses. Depois de uma carreira de sucesso editorial, casou-se novamente, teve filhos e deixou a Inglaterra para viver a resto de sua vida no Savoy. Seu primeiro trabalho, o romance moralista “O Triunfo da Verdade” (Le Triomphe de la vérité), foi publicado em 1748. Ela continuou sua carreira literária publicando livros escolares. Ela, então, começou a publicar coleções que ela chamou de revistas de histórias educativas e moral e poemas para crianças. Foi, ainda, uma das primeiras a escrever contos de fadas para crianças, além de escrever outras obras com base em temas tradicionais dos contos de fadas.
O Pequeno Príncipe – Antoine Saint-exupéry “Le Petit Prince” (no Brasil, “O Pequeno Príncipe”) é um romance do escritor francês Antoine de Saint-Exupéry, publicado em 1943 nos Estados Unidos. Numa primeira leitura, aparenta ser um livro para crianças, mas possui um grande teor poético e filosófico. A história do Pequeno Príncipe atravessa gerações pelo seu encanto. Vale a pena colocar as crianças em contato com este menino sensível que ensina que nós somos os responsáveis por tudo que faz parte da nossa história e que cabe a cada um de nós resolvermos o que fazer e como olhar para ela. O autor do livro foi também autor das ilustrações originais.
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“Le Petit Prince” pode parecer simples, porém apresenta personagens plenos de simbolismos: o rei, o contador, o geógrafo, a raposa, a rosa, o adulto solitário e a serpente, entre outros. O personagem principal vivia sozinho num planeta do tamanho de uma casa que tinha três vulcões, dois ativos e um extinto. Tinha também uma flor, uma formosa flor de grande beleza e igual orgulho. Foi o orgulho da rosa que arruinou a tranquilidade do mundo do Pequeno Príncipe e o levou a começar uma viagem que o trouxe finalmente à Terra, onde encontrou diversos personagens a partir dos quais conseguiu repensar o que é realmente importante na vida. O romance mostra uma profunda mudança de valores e sugere ao leitor quão equivocados podem ser os nossos julgamentos, e como eles podem nos levar à solidão. O livro nos leva à reflexão sobre a maneira de nos tornarmos adultos, entregues às preocupações diárias e esquecidos da criança que fomos e somos. É o livro em língua francesa que mais foi vendido no mundo, com cerca de 80 milhões de exemplares e entre 400 a 500 edições. Também se trata da terceira obra literária (sendo a primeira, a Bíblia, e a segunda, o livro “O Peregrino”) mais traduzida no mundo, tendo sido publicado em 160 idiomas e dialetos. No Japão, há um museu dedicado ao personagem principal do livro.
SÍNTESE A Literatura Infantil é, antes de tudo, Literatura, ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos e a vida prática; o imaginário e o real; os ideais e sua possível/impossível realização. (Cagneti) A Literatura Infantil leva a criança à descoberta do mundo em que sonhos e realidade se incorporam e a realidade e a fantasia estão intimamente ligadas, fazendo a criança viajar, descobrir e atuar num mundo mágico, podendo modificar a realidade seja ela boa ou ruim. No caminho percorrido à procura de uma Literatura adequada para a infância e juventude, pode-se observar duas tendências próximas daquelas que já influenciavam a leitura das crianças: dos clássicos, fizeram-se adaptações e, do folclore, nasceu os contos de fadas, até então quase nunca voltados especificamente para a criança. A Literatura Infantil, desde a sua origem, sempre foi ligada à diversão ou ao aprendizado das crianças. Acreditava-se que seu conteúdo deveria ser adequado ao nível da compreensão e do interesse deste peculiar destinatário. Como a criança era vista como um adulto em miniatura, os primeiros textos infantis resultaram de adaptações ou da minimização de textos escritos para os adultos. Expurgadas as dificuldades de linguagem, as digressões ou reflexões que estariam acima do que eles consideravam
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AULA 3 - AUTORES E OBRAS INFANTOJUVENIS ATRAVÉS DO TEMPO
possível para a compreensão infantil; retiradas as situações de conflitos não exemplares e realçando principalmente as ações ou peripécias de caráter aventuroso ou exemplar, as obras literárias eram reduzidas em seu valor intrínseco, mas atingiam o novo objetivo: atrair o pequeno leitor/ouvinte e levá-lo a participar das diferentes experiências que a vida pode proporcionar ao nível do real ou do maravilhoso.
Filmes de Animação: “40 filmes da Disney em 200 segundos” <https://www.youtube.com/watch?v=nUp5sgUqjGw> “Pinóquio” <https://www.youtube.com/watch?v=g0t-I_7l4N8> “João e Maria na Floresta” <https://www.youtube.com/watch?v=m9ffMUSU5rM> “Peter Pan” <https://www.youtube.com/watch?v=VCXsgAAiAys> “A Bela Adormecida” <https://www.youtube.com/watch?v=x7HEU48KKNU> “Chapeuzinho Vermelho” <https://www.youtube.com/watch?v=S2fJF1lR1mY>
O século XVIII foi marcado por grandes transformações sociais e econômicas. No âmbito social, surgiu uma nova classe denominada burguesia, que buscava estabilidade no poder por meio da intelectualização. Nesse período, grandes artistas, pintores e escritores são valorizados e, como é de conhecimento de todos, como a educação é a grande arma de um país, há uma reorganização escolar e, juntamente a esta, a Literatura Infantil floresce.
NARRATIVAS DO REALISMO MARAVILHOSO (OU MÁGICO) São as que decorrem no mundo real, que nos é familiar ou bem conhecido, no qual irrompe, de repente, algo de mágico ou de maravilhoso (ou de absurdo) e no qual passam a acontecer coisas que alteram por completo as leis ou regras vigentes no mundo normal. Certos contos de Andersen já apresentam índices da presença do maravilhoso, oculto no mundo cotidiano e prosaico (“Os Sapatinhos Vermelhos”). Foi Lewis Carroll quem, na Literatura moderna, conseguiu explorar de maneira genial as possibilidades desta fusão, explorando também um novo e importante elemento: o nonsense, o sem-sentido, a graça, o lúdico. São incluídas nesta tendência as famosas obras de Collodi, “Pinóquio”, e de J. M. Barrie, “Peter Pan”.
NARRATIVAS DO REALISMO HUMANITÁRIO Narrativas do realismo humanitário são as que mostram o lado sentimental e generoso do espírito romântico, que advoga a causa dos fracos ou perseguidos e principalmente a da criança ignorada, injustiçada. “Robinson Crusoé” representa a inteligência e o poder do homem livre e, por isso, foi escolhido por Rousseau, entre os demais livros de sua época, para servir de leitura ao seu discípulo Emite.
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REFERÊNCIAS COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. CUNHA, Maria Antonieta A. Literatura Infantil – teoria e prática. São Paulo: Ática, 2004. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.
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AULA 4 Monteiro Lobato: o marco na Literatura Infantojuvenil brasileira INTRODUÇÃO Nesta unidade, falaremos sobre Monteiro Lobato e sua contribuição para a Literatura Infantojuvenil, procurando construir um conhecimento teórico-prático desenvolvendo o estudo crítico da Literatura Infantojuvenil e sua relação com o processo de alienação/libertação na formação da criança. Como vimos anteriormente, a Literatura Infantojuvenil, desde a sua origem, sempre foi ligada à diversão ou ao aprendizado das crianças. Acreditava-se que seu conteúdo deveria ser adequado ao nível da compreensão e do interesse deste peculiar destinatário. Como a criança era vista como um adulto em miniatura, os primeiros textos infantis resultaram de adaptações ou da minimização de textos escritos para os adultos. Expurgadas as dificuldades de linguagem, as digressões ou reflexões que estariam acima do que eles consideravam possível para a compreensão infantil e retiradas as situações de conflitos não exemplares, realçando principalmente as ações ou peripécias de caráter aventuroso ou exemplar, as obras literárias eram reduzidas em seu valor intrínseco, mas atingiam o novo objetivo: atrair o pequeno leitor/ouvinte e levá-lo a participar das diferentes experiências que a vida pode proporcionar ao nível do real ou do maravilhoso.
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MONTEIRO LOBATO – UM MARCO “Quando olho para trás fico sem saber o que realmente sou. Porque tenho sido tudo, e creio que minha verdadeira vocação é procurar o que valha a pena ser”. (Monteiro Lobato, 1928)
Hoje já é fácil provar que coube a Monteiro Lobato a fortuna de ser, na área da Literatura Infantil e Juvenil, o divisor de águas que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Foi ele, sem sombra de dúvida, que, fazendo a herança do passado submergir no presente, encontrou o novo caminho criador que a Literatura Infantil estava necessitando. Rompeu, pela raiz, com o racionalismo tradicional e abriu as portas para a criatividade que precisava ser liberada. Entretanto, esta liberação não se fez de chofre. Foi resultado de um longo processo de maturação. Quando “A Menina do Narizinho Arrebitado” foi publicado, em 1921, Monteiro Lobato estava com 39 anos de idade. Entretanto, desde adolescente, começara a lidar com as Letras, escrevendo crônicas e artigos para a imprensa do interior de São Paulo e, depois, da capital. Sempre preocupado com a renovação da Literatura Brasileira e com a linguagem brasileira na Literatura, estreou, em 1918, com os contos naturalistas de “Urupês”, no qual procurava, principalmente, o realismo nacional na linguagem e na matéria que lhe servia de tema.
DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE O HOMEM E A OBRA Vivendo entre 1882 e 1948, José Bento Marcondes Monteiro Lobato pertenceu, por formação, à estirpe dos humanistas liberais, de raízes aristocráticas, aqueles que viam no indivíduo de exceção, na inteligência, na cultura e no esforço das minorias esclarecidas (e não nos movimentos de massa) a solução dos grandes problemas que afligem a humanidade. Entre nós, na virada de séculos, dentre os problemas que, com mais urgência, pediam para serem atacados, estava o da consciência nacionalista ligada a todas as áreas do pensamento culto. Em 1890, José Veríssimo resumia este ideal: [...] neste levantamento geral, que é preciso promover a favor da educação nacional, uma das mais necessárias reformas é a do livro de leitura. Cumpre que ele seja brasileiro, não só feito por brasileiro, que não é o mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores trasladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o anime.
Obviamente, este nacionalismo consciente dependia de um processo de maturação que durou anos. Não é nada fácil para um povo, colonizado culturalmente, dependente economicamente das demais nações poderosas, encontrar a sua medida, a sua verdade. Desde então, esse problema foi enfrentado pelos brasileiros e, apesar do muito que já avançamos, ainda hoje estamos em seu encalço. A dimensão verdadeiramente brasileira ainda não foi descoberta em toda a inteireza que só a maturidade trará.
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AULA 4 - MONTEIRO LOBATO: O MARCO NA LITERATURA INFANTOJUVENIL BRASILEIRA
Monteiro Lobato foi um dos que se empenharam a fundo nesta descoberta e, sem dúvida, conseguiu trazer à tona muitas facetas da brasilidade. Pela extensa correspondência trocada durante trinta e tantos anos com seu amigo de adolescência, Godofredo Rangel, sabe-se que, já por volta de 1916, ele se preocupava com esta importante área apontada por Veríssimo, a do livro de leitura. Observando a realidade à sua volta, pensou em como modificá-la. Em uma carta de 8 de setembro de 1916, entre outras coisas, ele diz: [...] ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me, diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha lhes conta. Guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão. Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito com arte e talento, dará coisa preciosa. As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato – espinhentas e impenetráveis. Que é que as nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da Literatura que nos falta. Como tenho um certo jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por talento, ando com ideia de iniciar a coisa. E de tal pobreza e tão besta a nossa Literatura Infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos. Mais tarde só poderei dar-lhes o “Coração de Amicis” – um livro tendente a formar italianinhos.
Baú de frases Curioso de nascença, desde pequeno Monteiro Lobato procurava aprender o máximo sobre as coisas. Visíveis ou imaginárias. E não era só nos livros que buscava respostas. Gostava de saber como as pessoas pensavam. Observava a natureza e descobria seus mistérios. Com tanto conhecimento acumulado, é claro que ele adorava dar palpites sobre todos os assuntos. Tentava mudar o que achava errado, melhorar o que já estava bom e criava frases. Frases que davam a medida exata do tamanho do seu pensar e que estimulavam o leitor a continuar sonhando. Como se pode ver por estas aqui selecionadas. “Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira – mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” (“Mundo da Lua”, 1923) “Ainda acabo fazendo livros onde as nossas crianças possam morar.” (Carta a Godofredo Rangel, Rio de Janeiro, 7/5/1926) “Nada de imitar seja lá quem for. [...] Temos de ser nós mesmos [...] Ser núcleo de cometa, não cauda. Puxar fila, não seguir.” “Porque tenho sido tudo, e creio que minha verdadeira vocação é procurar o que valha a pena ser.” (Carta a Godofredo Rangel, Nova York, 28/11/1928) “Meu plano agora é um só: dar ferro e petróleo ao Brasil.” (Carta a Godofredo Rangel, Nova York, 17/8/1927)
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“O caboclo é o sombrio urupê de pau podre [...] Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive.” [sobre Jeca Tatu] (“Urupês”, 1ª edição, 1918) “Está provado, no sangue e nas tripas, um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não.” [sobre Jeca Tatu] (“Urupês”, prefácio da 4ª edição, 1919) Fonte: <www.globo.com>
Em sua proverbial e saborosa irreverência, Monteiro Lobato dá a exata dimensão do que ocorria. Inclusive, nos mostra a sua modéstia ao se julgar bem mais habilidoso do que talentoso. Entretanto, este projeto não seria realizado de imediato. Sua produção original apareceria antes das fábulas. Em 1920, saíam na Revista do Brasil (São Paulo) uns fragmentos da história de “Lúcia ou A Menina do Narizinho Arrebitado”. No ano seguinte, foi lançado, como “2º Livro de Leitura” (numa tiragem de 50.500 exemplares, feita em sua própria editora recém-criada), “A Menina do Narizinho Arrebitado”, que foi uma lufada de ar puro na atmosfera pesada dos livros então destinados às crianças nas escolas. Seu sucesso imediato entre os pequenos leitores decorreu, sem dúvida, de um primeiro e decisivo fator: a realidade comum e familiar à criança, em seu cotidiano, é subitamente penetrada pelo maravilhoso ou pelo mágico, com a mais absoluta verossimilhança ou naturalidade. Tal como o fizera Lewis Carroll, com “Alice no País das Maravilhas”, na Inglaterra de 50 anos antes, Monteiro Lobato o faz no Brasil: misturou o real e o maravilhoso em uma só realidade. Com o crescimento e enriquecimento do fabuloso mundo de suas personagens, o maravilhoso passa a ser elemento integrante do real. Em vez de esse real se tornar inverossímil ou se “desrealizar”, acontece exatamente o contrário: o inventado passa a ter foros de realidade. É assim que personagens reais (Lúcia, Pedrinho, D. Benta, Tia Nastácia, o leitão Rabicó) têm a mesma contextura das personagens “inventadas” (a boneca Emília, o visconde Sabugosa, o Pequeno Polegar e todas as dezenas de personagens que povoam o universo literário lobatiano). Todas elas são absolutamente verossímeis, fazem parte do universo do faz de conta que Lobato criou durante anos e no qual a criançada brasileira de várias gerações tem “morado”, como ele mesmo o fez com as grandes obras lidas na infância ou adolescência. Obras que ele sonhou criar iguais e o conseguiu. Em carta a G. Rangel, datada de maio de 1926, descobrimos este desejo de Lobato. Ao mencionar certos livros que o divertiram quando criança, ele conclui: Ando com ideias de entrar por esse caminho: livros para crianças. De escrever para marmanjos já me enjoei. Bichos sem graça. Mas para as crianças um livro é todo um mundo. Lembro-me de como vivi dentro do “Robinson Crosoé” de Laemmert. Ainda acabo fazendo livros em que as nossas crianças possam morar. Não ler e jogar fora, sim morar, como morei no Robinson e n’Os Filhos do Capitão Grant.
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Seu desejo foi uma profecia. E quando falamos “crianças”, mais correto seria dizer “meninos e meninas” a partir dos nove ou dez anos de idade; e, em vez de Literatura “Infantil”, Literatura “Infantojuvenil”, pois a verdade é que, à medida que sua obra cresce e amadurece, vai se afastando do infantil e se aproximando do pré-adolescente – uma obra extremamente diversificada que, até o momento, foi bem pouco estudada pela crítica ou pelos estudiosos, mas que tem muito a ser descoberto como intencionalidade ou como invenção literária.
A OBRA “ADULTA” Na esfera da Literatura para adultos, sua contribuição foi também significativa para a época. De suas inúmeras publicações, destacamos: “Urupês” (1918); “Ideias de Jeca Tatu” (1919); “Cidades Mortas” (1919); “Negrinha” (1920); “A Onda Verde” (1921); “Mundo da Lua” (1923); “O Macaco que se fez Homem” (1923); “O Choque das Raças” ou “O Presidente Negro” (1926); “Ferro” (1931); “O Escândalo do Petróleo” (1936). Nascido na época em que o movimento realista-naturalista se consolidava no Brasil, Monteiro Lobato foi educado pelas diretrizes do positivismo progressista. Esta influência materialista, aprofundada depois pela filosofia dinâmica do “super-homem” e da “Vontade de Domínio” de Nietzche (influência de que sua vida e obra estão repletas), impediu que ele, quando adolescente, sentisse qualquer afinidade com a recuperação espiritualista que os simbolistas procuravam impor (mas com muito pouca repercussão). Da mesma forma, seu racionalismo e sua tendência construtivista (apesar de seu espírito iconoclasta) impediram que ele pudesse aderir à ruptura proposta pelos modernistas quando, nos anos 1920, estes começaram a se manifestar entre nós. Em seu espírito, aliadas à força individualista de Nietzche, de certo momento em diante, vão falar muito alto as forças do pragmatismo norte-americano com o struggle for life que fez do homem um gigante ampliado pela máquina e construiu a sociedade tecnológica progressista, cujo modelo se impôs a todo o mundo civilizado. Grande batalhador, idealista, obstinado e generoso (apesar de sua ferocidade crítica), Monteiro Lobato ficou no meio do caminho entre a visão naturalista/positivista de sua formação, a visão socialista que se impunha com as transformações político-econômicas e a visão espiritualista que assumiu no final da vida, como bom brasileiro que foi.
A OBRA “INFANTOJUVENIL” Sua vasta produção na área infantil e/ou infantojuvenil engloba obras originais, adaptações e traduções.
Baú de Frases II Monteiro Lobato “A história dos historiadores coroados pelas academias mostra-nos só a sala de visitas dos povos. (...) Mas as memórias são a alcova, as chinelas, o penico, o quarto dos criados, a sala de jantar, a privada, o quintal (...) da humanidade.” (Carta a Godofredo Rangel, São Paulo, 9/5/1913)
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“O que não somos nunca é ovelha - fiel ovelha do Santo Padre, de Sua Majestade o Rei, do Originais Partido, da Convenção Social, dos Códigos da Moral Absoluta, do Batalhão, de tudo que mata a personalidade das criaturas.” (Carta a Godofredo Rangel, Fazenda, 7/6/1914) “As fábulas em português (...) são pequenas moitas de amora do mato, espinhentas e impenetráveis. Um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se feito com arte e talento, dará coisa preciosa.” (Carta a Godofredo Rangel, Fazenda, 8/9/1916) “Continuo traduzindo. A tradução é minha pinga. Traduzo como o bêbado bebe: para esquecer, para atordoar. Enquanto traduzo, não penso na sabotagem do petróleo.” (Carta a Godofredo Rangel, São Paulo, 15/4/1940) “Passei nesta prisão, General, dias inolvidáveis, dos quais me lembrarei com a maior saudade. Tive o ensejo de observar que a maioria dos detentos é gente de alma muito mais limpa e nobre do que muita gente de alto bordo que anda à solta.” (Carta a Horta Barbosa, presidente do Conselho Nacional do Petróleo, abril de 1941) “Estou condenado a ser o Andersen desta terra - talvez da América Latina.”(Carta a Godofredo Rangel, São Paulo, 28/3/1943) “Todos os nossos males, econômicos, financeiros e morais, (...) provêm de uma causa única: pobreza, anemia econômica. Vou além: miséria.”(Carta a Alarico Silveira, Nova York, 3/5/1928)
“A Menina do Narizinho Arrebitado” (1921); “O Saci” (1921); “Fábulas” e “O Marquês de Rabicó” (1922); “A Caçada da Onça” (1924); “A Cara de Coruja”, “Aventuras do Príncipe”, “Noivado de Narizinho” e “O Circo de Cavalinho” (1927); “A Pena de Papagaio” e “O Pó de Pirlimpimpim” (1930); “As Reinações de Narizinho” (1931); “Viagem ao Céu” (1932); “As Caçadas de Pedrinho” e “Emília no País da Gramática” (1933); “Geografia de Dona Benta” (1935); “Memórias da Emília” (1936); “O Poço do Visconde” (1937); “O Pica-pau Amarelo” (1939) e “A Chave do Tamanho” (1942). Na matéria original que constitui estas narrativas de aventuras, encaixam-se situações, personagens e celebridades que vivem na memória dos tempos, da história, da Literatura ou da lenda. E aí está a maior originalidade de Monteiro Lobato: redescobrir realidades estáticas, cristalizadas pela memória cultural e dar-lhes nova vida em meio às reinações do “pessoalzinho” que vive no Sítio do Pica-pau Amarelo. Entre as inúmeras adaptações que realizou estão: “O Irmão de Pinóquio” e “O Gato Félix” (1927); “História do Mundo para crianças” (1933); “História das Invenções” (1935); “D. Quixote das Crianças” (1936); “Serões de D. Benta” e “Histórias de Tia Nastácia” (1937); “O Minotauro” (1937); e a mitologia grega na série, “Os Doze Trabalhos de Hércules”, publicada em 1944: “O Touro de Creta”, “A Hidra de Lema”; “Hércules e Cérbero”, “Leão de Neméia”, “O Javali de Erimento”, “A Corça de Pés de Bronze”, “As Cavalarias de Augias”, “Os Cavalos de Diomedes”, “Os Bois de Gerião”, “O Cinto de Hipólita”; “As Aves do Lago de Estinfalo” e “O Pomo de Hésperides”.
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Nessas adaptações, Monteiro Lobato preocupou-se com os seguintes objetivos: levar às crianças o conhecimento da tradição (com seus heróis reais ou fictícios, seus mitos e a conquistas da ciência etc.); o conhecimento do acervo herdado e que lhes caberá transformar; e também questionar, com elas, as verdades feitas, os valores e não valores que o tempo cristalizou e que cabe ao presente redescobrir ou renovar.
TRADUÇÕES Seu trabalho como tradutor foi extremamente fecundo. Foram numerosíssimas as obras importantes que sua tradução permitiu aos brasileiros lerem ou conhecerem em sua própria língua. Dono de uma prodigiosa capacidade de produção, Monteiro Lobato traduzia tal elenco de obras que não faltou quem suspeitasse de que ele teria colaboradores anônimos (como é comuníssimo acontecer com os grandes nomes que se especializam em tradução). Suspeita que, obviamente, o irritava por colocar em dúvida sua honestidade e capacidade de trabalho, mas a que nunca se deu ao trabalho de contestar. Por sua correspondência, vemos que traduzir era para ele uma atividade fascinante. Como disse em certa carta: “É uma viagem por um estilo. [ ...] Que delícia remodelar uma obra de arte em outra língua!” Entre os autores que traduziu para os adultos, estão: Lin Yutang, Herman Melville, Mark Twain, Conan Doyle, Saint-Exupéry, André Maurois, Ilya Ehrenbourg, Ernest Hemingway, Bertrand Russel, Maeterlinck, E. H. Wells, Richard Wright, entre outros. Para o público infantil ou pré-adolescente, sua maior produção foi no início dos anos 1930: “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll; “Mowgli, o Menino Lobo” e “Jacala, o Crocodilo”, de Rudyard Kipling; “Os Negreiros da Jamaica”, de Maine Reid; “Caninos Brancos”, “O Lobo do Mar”, “A Filha da Neve” e “O Grito da Selva”, de Jack London; “O Homem Invisível”, de H. G. Wells; “Pinóquio” de Collodi; “O Doutor Negro” de Conan Doyle; “As Aventuras de Huck” de Mark Twain; “Pollyana” e “Pollyana Moça”, de Eleanor Porter; “Novos Contos”, de Andersen; “Contos de Fadas”, de Perrault; “Tarzã” e “O Terrível e Tarzã no Centro da Terra”, de Edgard Rice Burroughs etc.
A FUSÃO DO REAL COM O MARAVILHOSO Sem dúvida, um dos grandes achados de Monteiro Lobato foi mostrar o maravilhoso como possível de ser vivido por qualquer um. Com a mistura do imaginário com a realidade concreta, ele mostrou, no mundo prosaico do cotidiano, a possibilidade de ali acontecerem aventuras maravilhosas que, em geral, só eram possíveis nos contos de fadas ou no mundo da fábula e, mesmo assim, vividas por seres extraordinários. A nosso ver, isso foi decisivo para a imediata atração das crianças pela história de Narizinho Arrebitado. Evidentemente, a linguagem que expressava tal fusão foi elemento fundamental! Fluente, coloquial, objetivo, despojado e sem retórica ou rodeios, o discurso que constrói a fabulação de “A Menina do Narizinho Arrebitado” agarra de imediato o pequeno leitor, principalmente pelo humor que o impregna. À medida que os livros vão sucedendo, mais dinâmico se torna o humor lobatiano (outra das grandes novidades que a sua Literatura Infantil trazia) e , com os anos, vai se tornando mais livre a imaginação criativa do autor. É certo que a verdadeira fusão entre o real e o maravilhoso não se fez logo na primeira versão de “A Menina do Narizinho Arrebitado”.
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Ainda sob o magistério do pensamento materialista/positivista em que foi formado, Monteiro Lobato via o mundo real e o da fantasia perfeitamente delimitados – cada qual com sua natureza específica. Por outro lado, é possível, talvez, explicar o predomínio do racionalismo sobre a livre fantasia nessa primeira versão pelo fato de o livro ter sido escrito para servir como leitura escolar. Esta destinação primeira, obviamente, determinou a natureza básica da obra. Usando a fantasia, mas disciplinando-a com a lógica, Monteiro Lobato fez com que a aventura maravilhosa de Narizinho no Reino das Águas Claras terminasse no momento em que ela vai responder ao príncipe Escamado que a pede em casamento: [...] toda perturbada, ia responder, quando uma voz conhecida a despertou: - Narizinho, vovó está chamando! A menina sentou-se na relva, esfregou os olhos, viu o ribeirão a deslizar como sempre e lá na porteira a tia velha de lenço amarrado na cabeça. Que pena! Tudo aquilo não passara dum lindo sonho [...]. Esclarecendo, nesse final, que tudo não passara de um sonho, Monteiro Lobato anula a presença do maravilhoso dentro do cotidiano que tão bem soubera criar. Deixa que predomine o pensamento racional sobre o pensamento mágico. Entretanto, o sucesso obtido por este pequeno livro escolar vai levá-lo a escrever outras historietas e gradativamente vai conquistando o seu estilo a partir da consciência de que o mundo das crianças é diferente daquele que o adulto vê. Cada vez mais, se deixa impregnar pela psicologia infantil (em que real e maravilhoso não se diferenciam) e nas estórias que continua a inventar e a publicar – os limites entre o mundo real e o outro vão se enfraquecendo, até desaparecerem completamente. É o que se prova pela última versão dada à cena anterior registrada. Em 1934, Monteiro Lobato refundiu as aventuras do “pessoalzinho” do Sítio do Pica-pau Amarelo e publicou a versão definitiva, “Reinações de Narizinho”. Nesta, a fusão real/maravilhoso é total e fica bem evidente: Narizinho se dirigia para o palácio do príncipe Escamado, onde ia haver uma festa. [...] Mas assim que entrou na sala de baile, rompeu um grande estrondo lá fora – estrondo duma voz que dizia: – Narizinho, vovó está chamando! ... Tamanho susto causou aquele trovão entre os personagens do reino marinho que todos sumiram, como por encanto. Sobreveio então uma ventania muito forte, que envolveu a menina e a boneca, arrastando-as do fundo do oceano para a beira do ribeirãozinho do pomar. Estavam no sítio de Dona Benta outra vez!”. (Reinações de Narizinho, 1968, p. 29)
E a narrativa prossegue abrindo-se para uma nova aventura: a anunciada chegada de Pedrinho. Não mais o sonho, mas o real penetrado de magia. Uma análise comparativa entre a primeira e a última versão de “A Menina do Narizinho Arrebitado” (ou de qualquer dos títulos publicados entre 1921 e 1934) mostrará com clareza a evolução do pensamento e da arte literária de Monteiro Lobato destinada às crianças. Entre as muitas diferenças entre a primeira versão e a definitiva, destacamos a alteração na dimensão ou no valor das personagens e do espaço. Pelo confronto do primeiro parágrafo, a mudança ocorrida evidencia a passagem de um estilo ainda bem próximo do convencional para um estilo muito mais livre e novo.
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Por exemplo, o espaço que se apresentava visível ao leitor (“Naquela casinha branca – lá muito longe”) passou a aparecer mais distante, porém, apresentado como algo familiar (“Numa casinha branca, lá no sítio do Pica-pau Amarelo”). Quanto às personagens: D. Benta, que antes aparecia como uma triste velha, “trêmula e catacega” (mais parecendo uma bruxa das histórias clássicas), passou a ser uma “velha de mais de 60 anos”, muito ativa com suas costuras e com seu “óculos de ouro na ponta do nariz”; Narizinho, que foi primeiro apresentada como “netinha órfã de pai e mãe” e caracterizada de maneira comum pelo físico e comportamento normal em criança (“menina morena, de olhos pretos como 2 jabuticabas – e reinadeira até ali!”), acabou perdendo a orfandade e sendo mostrada como uma personalidade ativa e positiva (“a mais encantadora das netas [...] tem 7 anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.”); Tia Nastácia, que nasceu como “uma excelente negra de estimação”, passou a ser a “negra de estimação que carregou Lúcia em pequena”; e, finalmente, Emília, que surgiu como “Senhora Dona Emília – uma boneca de pano fabricada pela preta e muito feiosa, a pobre, com seus olhos de retrós preto e as sobrancelhas tão lá em cima que era ver uma cara de bruxa”, passou a ser “Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita por tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa” . Também o ribeirão (tão importante no primeiro livro) foi alterado substancialmente. Apareceu primeiro com “[...] águas tão claras que se veem as pedras do fundo e toda a peixaria miúda”. Depois passou a ter “[...] águas muito apressadinhas e mexeriqueiras, correndo por entre pedras negras de lima, que Lúcia chama-as ‘tias Nastácias do rio’”. Como se vê, tornou-se muito mais verossímil esta caracterização do ribeirão, pois tendo “águas tão claras” e deixando ver “toda a peixaria miúda”, como não estaria visível o Reino das Águas Claras que Narizinho vai visitar em companhia do Príncipe Escamado? Com a menção das “pedras negras de limo”, automaticamente no espírito do leitor as águas também se escurecem e, obviamente, escondem o que se passa em seu fundo. No todo, as mudanças revelam uma familiaridade ou uma afetividade muito maior da primeira para a versão final, e também uma precisão muito maior na manipulação das palavras.
A OBRA LOBATIANA E SEUS PADRÕES IDEAIS Não há dúvida de que o grande valor da invenção literária de Monteiro Lobato e o amplo sucesso obtido junto aos pequenos leitores não se deu apenas à sua prodigiosa imaginação ao inventar personagens e tramas cheias de pitoresco e de humor sadio, concretizadas em uma linguagem original e viva. Como em toda grande obra, o seu mérito maior está na perfeita adequação entre sua matéria literária, as ideias e os valores que lhe servem de húmus e as imposições da época em que ela foi escrita. Entre a complexidade dessas ideias, dos valores e das imposições, destacamos duas atitudes que, a nosso ver, atuaram com mais força na lenta elaboração do universo literário que Monteiro Lobato construiu durante mais ou menos 20 anos. São elas: a necessidade de ruptura com o sistema de vida tradicional (esclerosada, mas ainda vigente) e a defesa incondicional do homem de iniciativa, cuja inteligência, a vontade de realização e o poder de trabalho abriam para o mundo – a nova era de progresso tecnicista e financeiro.
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A primeira atitude pode ser vista, inicialmente, em artigos publicados na imprensa ou no panfleto “Ideias de Jeca Tatu” (1919), nos quais Monteiro Lobato denunciou, de maneira irreverente e satírica, o nacionalismo retrógrado que insistia em seu falso ufanismo e fechava os olhos para as mazelas que cobriam a realidade brasileira. Posteriormente, este desejo de ruptura vai ser concretizado na invenção literária que caracteriza o seu estilo para crianças: a fusão do real com o maravilhoso, no qual a lógica tradicional é abolida e um novo espaço é aberto para a crítica. A segunda atitude pode ser detectada já em sua obra de estreia, os contos de “Urupês” (1918), com tão diversas influências. Neles, Monteiro Lobato oscila entre duas concepções de vida que mediam forças no entresséculos: a do naturalismo positivista, que situa o homem em um mundo trágico que o esmaga e onde tudo está destinado a perecer de maneira brutal ou silenciosa; e a da crença nietzschiana na força do homem, capaz de vencer todos os obstáculos pelo poder de sua vontade. Em sua obra infantil (a partir do momento em que Monteiro Lobato se tornou consciente do que poderia construir ali), predominou esta última crença, avivada por seu novo avatar: o homem de iniciativa, o ser de exceção que os Estados Unidos exportava como modelo para o mundo e com o qual (encarnado em capitães de indústria, como Henry Ford) ele mesmo teve ocasião de conviver em seus quatro anos de estágio norte-americano. Parece-nos ponto pacífico que, dentro do universo lobatiano, este modelo de individualismo audaz, confiante e empreendedor vai encontrar na Emília, sua mais completa realização. Lembremos que Emília foi a única personagem que evolui dentro do universo lobatiano. Na primeira versão de “A Menina do Narizinho Arrebitado”, seu papel era secundaríssimo – era apenas uma bruxinha de pano que Lúcia levava para todo o canto consigo, mas que nada fazia. Somente na versão posterior que ela adquiriu o dom da fala com a “pílula falante” que o Major Agarra lhe deu. A partir de então, foi se definindo cada vez mais como a porta-voz do autor – circunstância que o próprio Monteiro Lobato admitiu. Também não teria sido por acaso que, justamente durante sua estada nos Estados Unidos, Monteiro Lobato tenha pensado pela primeira vez em uniformizar as aventuras de suas personagens infantis num todo harmônico, dando-se conta do que ali podia realizar. Coincidentemente ou não, esta ideia lhe surge num dos momentos mais desafiadores à força de vontade do homem: o mundo todo (e Monteiro Lobato, inclusive, com a falência de sua editora) sofria as consequências do desastre econômico que sobreveio ao Crack da Bolsa de Nova York. E no “rocambole” infantil que Monteiro Lobato publicou com o título “Reinações de Narizinho” (em 1931 e depois em versão definitiva em 1934), Emília começou a assumir abertamente a liderança que, nas obras posteriores, monopolizou completamente.
EMÍLIA Indiscutivelmente, a personagem mais importante para se compreender o universo lobatiano é Emília, pois é a única que vive em tensão dialética com os outros. Todas as demais personagens que formam a constelação familiar do Sítio do Pica-pau Amarelo são arquétipos: Narizinho e Pedrinho – crianças sadias, alegres e sem problemas, que servem para dar suporte à trama dos acontecimentos e, em geral, para servirem de contraponto à boneca; D. Benta, a avó ideal; e Tia Nastácia – o símbolo idealizado da raça negra, afetuosa e humilde que está em nossa gênese de povo e que foi a melhor fonte das histórias que alimentaram a imaginação e a fantasia de gerações e gerações de brasileiros.
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Os que chamaram Monteiro Lobato de racista, por criar essa personagem negra e ignorante, não perceberam que dentro de seu universo literário não havia preconceito racial nenhum, pois Tia Nastácia é respeitada e querida por todos. Tirando-a do universo real onde a conheceu, ele estava sendo apenas realista. Até os personagens maravilhosos que viviam no Sítio são limitados em seus papéis: o leitão Marquês de Rabicó, o Visconde de Sabugosa, o Príncipe Escamado, o Rinoceronte Quindim etc. simplesmente fazem parte das “reinações” rocambolescas que ali aconteciam. Impossível detalhar aqui a atuação da boneca Emília nas várias situações em que ela se revelou como o protótipo-mirim do “super-homem” nietzschiano, com sua vontade de domínio e exacerbado individualismo. Atitude esta, por um lado, positiva (pois leva a grandes realizações ao nível social) e, por outro, negativa (porque, com facilidade, resvala para a exploração do homem pelo homem) – dualidade que Monteiro Lobato devia ter sentido bem fundo pois, a par de situações em que esse individualismo é valorizado, registrou momentos em que o satiriza. Como intenção de valorização, vemos o espírito de líder que caracteriza a boneca, sua ascendência “mandona”, mas brejeira, sobre os que conviviam com ela, a obstinação com que ela sabia querer as coisas ou como mantinha seus pontos de vista ou suas opiniões. Foi positiva também sua incessante mobilidade, o seu fazer coisas, sua curiosidade aberta para tudo ou a franqueza rude com que ela manifestava sua crítica aos erros ou tolices dos que a rodeavam ou da nossa civilização. Como intenção de sátira dos desmandos a que tal atitude leva fatalmente (estimulada pelo sistema de concorrência feroz em que vivemos), temos o consciente despotismo com que Emília agia em certos momentos, num verdadeiro arremedo do que realmente acontece no mundo “civilizado”, em que alguns poucos poderosos desfrutam de riquezas produzidas por multidões de desvalidos. Em “Memórias de Emília”, Monteiro Lobato deixa bem evidente esta denúncia na caricatura capitalista assumida pela boneca. Desde o início, Emília ordena (nem sequer “pede”) ao Visconde de Sabugosa que seja o seu secretário: “– Visconde, venha ser meu secretário. Veja papel, pena e tinta. Vou começar as minhas Memórias. [...] Faça o que eu mando e não discuta. Veja papel, pena e tinta. O Visconde trouxe papel, pena e tinta. Sentou-se. Emília preparou-se para ditar [...]”. Ao mando ditatorial, corresponde a obediência servil. Mais adiante, Monteiro Lobato abre completamente o jogo no diálogo entre Emília e o Visconde acerca da autoria das “Memórias”. Vale a pena recordar o trecho todo. – Sabe escrever memórias, Emília? – repetiu o Visconde ironicamente. Então isso de escrever memórias com a mão e a cabeça dos outros é saber escrever memórias? – Perfeitamente, Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeça dos outros: isso é que é saber fazer as coisas. Ganhar dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama com a cabeça da gente é não saber fazer as coisas. Olhe, Visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco tempo, mas já aprendi a viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser esperto é tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho, dava-lhe um só conselho: “Seja esperto, meu filho!” – E como lhe explicar o que é ser esperto? – Indagou o Visconde. – Muito simplesmente, respondeu a boneca. Citando o meu exemplo e o seu, Visconde. Quem é que fez a ‘Aritmética’? Você. Quem ganhou nome e fama? Eu. Quem é que está escrevendo as Memórias? Você. Quem vai ganhar nome 71
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e fama? Eu ... O Visconde achou que aquilo estava certo, mas era um grande desaforo. (Capítulo X)
Aí temos configuradas duas práticas que caracterizam a deformação do Sistema liberal capitalista: de um lado a filosofia do sucesso a qualquer preço (que acaba se transformando na filosofia da aparência de sucesso); e, do outro, a sua inevitável consequência – a exploração do homem pelo homem, “o homem lobo do homem” que desde o início tem fortalecido as raízes da progressista sociedade de produção e consumo que se expande para o mundo via Estados Unidos, a partir dos anos 1930 e 1940. Identificado com essas duas práticas, está o struggle for life, resultante da feroz concorrência exigida pela engrenagem socioeconômica e que acaba erigindo a ousadia e a esperteza por lema. Monteiro Lobato estava bem consciente desta terrível dialética inseparável do magnífico progresso que o nosso mundo vem conhecendo. Daí a contínua ambiguidade que encontramos nas atitudes de suas personagens (principalmente na Emília). Voltando ao texto anteriormente transcrito, facilmente verificamos que ressalta muito mais o seu sentido referencial (a afirmação cínica de que o certo é explorar os outros para conseguirmos lucro ou sucesso ou fama) do que o sentido crítico, satírico ou caricatural que Monteiro Lobato certamente teve a intenção de dar. Daí a compreensível reação negativa de muitos adultos, que tinham a seu cargo a orientação das crianças. Tomado em seu sentido lato, temos de convir que o texto transmite realmente uma mensagem negativa e perigosa para ser passada para as crianças. Sem prévia preparação, elas poderão perceber a crítica ali contida? Dificilmente, pois no texto está muito mais realçado o humor do que a provável sátira. Na realidade, Monteiro Lobato tinha bem mais o dom do humor do que o da sátira ou da ironia (em que Machado de Assis foi um mestre). Assim, muita coisa que escreveu como crítica (ou talvez como gozação) acabou sendo entendido ao pé da letra e acabou como elogio daquilo que pretendia combater. Em seu afã de desmistificar os desmandos, as injustiças ou as deteriorações do sistema (ou a estupidez dos homens, como ele dizia), Monteiro Lobato não deixa “pedra sobre pedra”. Ainda em “Memórias de Emília”, esta diz: “[...] Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais”. Ou ainda: “Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso”. Ou então: “[Filósofo] é um bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando”. Em seu radicalismo, Monteiro Lobato zombou de tudo. Por detrás do pitoresco ou da comicidade que ele transmitia ao seu discurso literário, está o seu espírito maroto e iconoclasta, quebrando imagens consagradas. Outro dos livros que sofreu o peso desta ambiguidade patente com a magnífica alegoria do mundo atual que Monteiro Lobato criou foi “A Chave do Tamanho”. Jogando, de maneira divertida e incrivelmente inteligente, com a relatividade dos valores, Monteiro Lobato caiu, entretanto, em frequentes distorções da verdade comum das coisas ou emitiu conceitos tão desumanos que espantam.
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Entre esses conceitos, está a enfática aceitação da violência para obter a paz. É o que a Emília defende quando justifica que milhões de homens devem morrer (por serem incapazes de se adaptar, do dia para a noite, ao terem sido reduzidos ao tamanho de insetos) para que não haja mais guerras (aliás, no que ela está muito bem acompanhada pelos dirigentes deste nosso mundo louco ). Por mais que a história nos tenha mostrado que isso é prática corrente entre os homens desde que o mundo é mundo, jamais uma Literatura para crianças (ou para adultos) poderá endossá-lo. A Literatura ou as Artes em geral, por mais que pretendam registrar a verdade do real, nunca se afastam do ideal a ser alcançado como meta do aperfeiçoamento que a humanidade busca há milênios. Em “A Chave do Tamanho”, Emília volta a insistir na inexistência da verdade, identificando-a como mentiras dos adultos. Isto de falar a verdade nem sempre dá certo, muitas vezes a coisa boa é a mentira. Se a mentira fizer menos mal do que a verdade, viva a mentira!” era uma das ideias emilianas. Os adultos não querem que as crianças mintam, e no entanto passam a vida mentindo de todas as maneiras – para o bem. Há a mentira para o bem, que é boa; e há a mentira para o mal, que é ruim. Logo, isso de mentira depende. Se é para o bem, viva a mentira! Se é para o mal, morra a mentira! E se a verdade é para o bem, viva a verdade! Mas se é para o mal, morra a verdade! (op. cit. p. 52).
Vídeos interessantes! “As Emílias do Sítio Clássico – supercenas de Dirce, Reny e Suzana!” <http://www.youtube.com/watch?v=gLRR4OvtuWo> “Vida e obra de Monteiro Lobato” <http://www.youtube.com/watch?v=sCo1hyBUEBw> “Sítio do Pica-pau Amarelo – 1977, 1º capítulo do 1º ano” <http://www.youtube.com/watch?v=chy7Q7ids24>
Como se vê, temos aí uma atitude cínica e perigosa que, embora corresponda a uma censurável prática cotidiana, não pode ser realisticamente dada como valor às crianças. Seria o caso de fornecermos às crianças e aos jovens, como modelos a serem seguidos, todos os desmandos e as arbitrariedades de ação praticadas pelos adultos. A que levaria isso? “A Chave do Tamanho” não é propriamente um livro para crianças, mas para a meninada pré-adolescente. Mesmo assim, não deixa de ser uma leitura perigosa pelo que pode passar de ceticismo ou descrença na condição humana. Não se pode negar que o ceticismo de Monteiro Lobato (o outro prato em sua balança, que se equilibra com seu desmesurado entusiasmo pela vida) destrói todos valores pela base. O mais curioso, porém, é que tal niilismo não salta à vista, não pesa na leitura. E a que podemos atribuir isso?
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Talvez porque, de um lado, o questionamento do mundo é uma necessidade do leitor contemporâneo; e de outro, porque esse niilismo é neutralizado pela brejeirice, imaginação e graça com que a fabulação é inventada, ou talvez porque em seu universo nada parece ser levado a sério. Quanto à graça, damos apenas um pequeno exemplo da Emília, em suas “Memórias”. A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem para de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso. [...] Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre. – E depois que morre? – perguntou o Visconde. – Depois que morre vira hipótese, ou não é? O Visconde teve de concordar que era.
Como sempre, todos concordam com suas opiniões e decisões. Mas quem duvidará desta pitoresca e deliciosa definição? Os exemplos poderiam ser multiplicados às dezenas, mostrando como a sátira, que se confunde com o humor e a compreensão do texto, é perturbada. É curioso que o próprio Monteiro Lobato deve ter tido a percepção de que sua intenção satírica poderia escapar ao leitor, pois terminou “Memórias de Emília” com um capítulo escrito por ela mesma, que soa a algo bastante falso pela ausência da irreverência que sempre a caracterizou. Inclusive, apresenta-se como um capítulo de defesa de sua personagem preferida contra possíveis acusações de insensibilidade ou ceticismo humano. O capítulo é longo, mas por um parágrafo apenas já se pode avaliar o tom predominante. Antes de pingar o ponto final, quero que saibam que é uma grande mentira o que anda escrito a respeito do meu coração. Dizem todos que não tenho coração; falso. Tenho, sim, um lindo coração – só que não é de banana. Coisinhas à toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça. Dói tanto, que estou convencida de que o maior mal deste mundo é a injustiça. Quando vejo certas mães baterem nos filhinhos, meu coração dói. (Capítulo XV). O capítulo se estende por sete páginas, num tom emotivo que não é absolutamente aquele a que a boneca nos habituou. E como em tudo quanto foi dito naquelas «Memórias», não houve nenhuma acusação contra ela; há de se crer que fosse aos leitores ou aos críticos que a Emília-Lobato estivesse se dirigindo. Daí o desequilíbrio que sobrevém ao livro, em que tal capítulo se insere como uma espécie de apêndice.
CRÍTICA POR MEIO DO HUMOR Se há algo que Monteiro Lobato sempre recusou em suas histórias foi o sentimentalismo (o humanismo sentimental) tão em voga em sua época (o que prova o extraordinário sucesso de “Coração de Amicis”). Substituiu-o pela irreverência gaiata, pelo humor e pela ironia. Também nas muitas adaptações que fez de livros clássicos da Literatura Infantil, Lobato eliminou a sentimentalidade piegas. Da mesma forma, criticou as moralidades das fábulas e, por meio dos vários volumes de seu “rocambole” infantil, ridicularizou tais moralidades, provocando uma verdadeira revolução nas verdades absolutas que elas vêm repetindo através dos séculos. Embora preconceituoso em relação a certos valores (por questão de formação), Monteiro Lobato foi um inovador pela irreverência com que tratou o ranço que ainda
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se mantinha vigente na sociedade de sua época. Também foi muito importante sua preocupação em evitar, em suas histórias, as tensões emotivas e/ou dramáticas que, via de regra, caracterizavam as leituras infantis no fim do século. Tatiana Belinki (uma especialista lobatiana) sintetiza bem a solução adotada por Lobato para evitar tais tensões que, fatalmente, resvalariam para soluções utópicas ou sentimentais. Diz ela: No Sítio do Pica-pau Amarelo, Lobato criou uma constelação familiar sui-generis, a única talvez na qual seria possível, sem parecer forçado, aquele relacionamento ideal, livre das naturais tensões que existem na família normal. As crianças, Narizinho e Pedrinho, não são irmãos, mas primos, não vivem na mesma casa e o seu encontro no Sítio não é uma rotina mas uma festa permanente. Os adultos não pressionam nem atrapalham, porque a autoridade no sítio não é pai nem mãe, e sim a avó. E as relações entre avós e netos são afetuosas e descontraídas. Especialmente, no caso de uma avó como Dona Benta Encerrabodes de Oliveira, inteligente e culta, enérgica e compreensiva, sensata e carinhosa, realista, mas capaz de topar as mais fantásticas brincadeiras. Lobato teve a habilidade de eliminar de suas histórias o elemento perturbador que seriam os pais, com as ansiedades, os atritos e os problemas emocionais que assolam normalmente até as melhores relações entre pais e filhos. Pedrinho e Narizinho não são órfãos, eles têm pais que devem ser ótimos, mas são invisíveis, não estão no Sítio. No Sítio, os adultos que existem podem ser curtidos e amados sem maiores complicações. Tia Nastácia tem uma ascendência sem mandonismo, proveniente da afeição mútua e aceita com naturalidade. Dona Benta é a autoridade máxima, tácita e livremente aceita, com amor e respeito, sem qualquer receio ou tensão. No Visconde de Sabugosa, “gente grande”, mas boneco, pode ser descarregada, sem prejuízo da consideração devida à sua sapiência sabugal, a crítica ao adulto pomposo e professoral. E Emília, em que pese toda sua brilhante personalidade lobatiana, por ser boneca e não gente, pode demonstrar a fazer desfilar impunemente todos os “pecados” infantis: a malcriação, o natural egoísmo de criança, a rebeldia, a birra, a teimosia, a esperteza marota e interesseira e até uma certa maldade ingênua – tudo imediatamente esquecido, sem maiores consequências nem sentimentos de culpa. (“Literatura Infantil é Monteiro Lobato” – Livraria Informática – São Paulo).
A IDENTIFICAÇÃO Muito já se tem falado na espécie de catarse que ocorreria no espírito da criança por meio de sua identificação com a conduta libertária de certas personagens, plenamente assumida por estas e aceita, sem sanções, pelos demais. Tal identificação desafogaria a criança de quaisquer tensões internas ou consciência de culpa por sentir-se impelida (de fato ou por desejo) às mesmas atitudes que (ao contrário do que sucederia no mundo de faz de conta) são censuradas pelo meio social disciplinador que a cerca. Seria a reação previsível em face da Emília. Por outro lado, o fato de tais impulsos (que lhe são mostrados pelo meio social como negativos) serem vividos por uma boneca, impede que se crie em sua mente o choque que seria inevitável entre valores antagônicos atribuídos a uma mesma realidade (apontada ao mesmo tempo como positiva por uns e negativa por outros).
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É bem possível que estes complexos mecanismos de identificações e catarses possam ter ocorrido (ou ocorram) com os pequenos leitores de Monteiro Lobato. Não temos condições de ajuizar. O importante, no caso, é a inequívoca identificação do comportamento da boneca com os impulsos mais naturais da criança e que a idealização romântica transformou em más inclinações ou pecados. Monteiro Lobato percebeu com agudez a verdadeira natureza infantil e, assim, sua necessidade adulta de desafiar a ordem vigente vai fazer com que ele explore em sua marota personagem aqueles traços libertários que caracterizam o infantil e que, no homem, desaparecem (ou se atenuam) por força do processo educativo disciplinador. Em geral, esses traços infantis são: a necessidade de autoafirmação, de liderança ou de predomínio sobre os demais; a vaidade, o egoísmo, a gula, a mitomania ou a agressividade (que na maioria das vezes é um sinal de comunicação ou participação com o outro); a tendência ao disfarce ou à malícia para vencer forças mais fortes que a sua (como a dos adultos que constantemente a coíbem em seus autênticos impulsos, a fim de educá-la) etc. Nota-se, ainda, dentro da intenção de crítica e de ruptura assumida por Monteiro Lobato, que a boneca Emília, de livro para livro, vai se tornando cada vez mais “gente”, na medida em que se agudiza a sua visão crítica das coisas e não à medida que se socializa (como era de molde a acontecer nas histórias tradicionais – ou atuais – em que o anti-herói do início se transformava em “herói” no final, como, por exemplo, acontece com o boneco Pinóquio). No sentido de se dobrar às regras ou às verdades gerais do grupo, Emília não se socializa. Permanece contestadora até o fim; verdadeiro ser de exceção, no qual a vontade de domínio e o impulso para a ação aparecem como dominantes. Analisando, por exemplo, “A Chave do Tamanho”, a ação é praticamente toda da personagem e essa fidelidade ao seu próprio individualismo ficará evidente. Quanto ao papel do libertário dentro do universo lobatiano, queremos crer que deve ter sido extremamente importante como novidade de comportamento para os pequenos leitores dos anos 1920, 1930 ou 1940, quando a educação familiar ou escolar era ainda restritiva (baseada na obediência absoluta). É de se imaginar o impacto e o desafogo que tal modelo deve ter ocasionado. Pressionados pelo rigor com que seus pecadilhos (afinal, naturais e, via de regra, superados com o amadurecimento da personalidade) eram reprimidos ou punidos, os pequenos leitores devem ter recebido a gaiata e irreverente boneca como a salutar abertura de uma prisão. Hoje, porém, diante da liberação disciplinar em que vivem as crianças (pelo menos as dos meios urbanos), por força dos meios de comunicação de massa que divulgam as atitudes libertárias ou por força da evolução da consciência do adulto em relação à criança, ou ainda devido à crise que desestruturou o ensino ou que afrouxou o sistema familiar, já nos perguntamos se tal irreverência ou desafio à disciplina ou à ordem em geral continuarão a ser salutares ao pequeno leitor, sem que sua leitura seja precedida por uma boa preparação de sua consciência crítica, para que ele possa se distanciar da história depois de a ler e entendê-la em suas principais intenções. Poderiam objetar que as muitas qualidades lobatianas fariam com que tal defasagem entre os padrões ideais ali presentes e as necessidades da nossa época passassem despercebidas do leitor. Neste sentido, lembramos apenas que Monteiro Lobato escreveu Literatura e que, por natureza, a verdadeira Literatura deixa a sua mensagem no inconsciente e um dia eclode. O próprio autor estava consciente deste poder quando, em carta a G. Rangel, comenta sua intenção de “mexer nas moralidades” das fábulas que pretendia adaptar para as crianças, e conclui:
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[...] meus pequenos ouvem as fábulas, guardam-nas de memória e vão recontá-las aos amigos – sem entretanto prestarem nenhuma atenção à moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no subconsciente para ir se revelando mais tarde, à medida que progredimos em compreensão.
Da mesma forma, também o individualismo audaz e prepotente que foi importante em certa altura da evolução da sociedade (e que é a característica básica de Emília) continuará a ser positivo como modelo a ser incorporado? Obviamente que não. Novas soluções já estão presentes em muitos de nossos escritores e escritoras que, nestes últimos anos, estão escrevendo para o público mirim. Que se aproveite ainda, e sempre, a natureza das soluções lobatianas no incentivo à criatividade, ao despertar da curiosidade intelectual – caminho aberto para a conquista da autorrealização. Mas que sejam elas veículos de novos valores que ofereçam às crianças e aos jovens, já libertos da obediência aos valores antigos, um novo sentido de vida, de pensamento e de ação e que lhes permita a autodisciplina interior sem a qual nenhum projeto de vida pode se desenvolver de maneira fecunda. Desde Monteiro Lobato, muitos anos se passaram. Bem sabemos que, no plano de práxis, no plano da vida concreta em que a vida se resolve, muita coisa (ou quase tudo) permanece igual (ou pior). Entretanto, no plano dos valores, muita coisa já mudou. E aqui o problema se complica para o escritor atual: quais os padrões válidos hoje para serem transmitidos como modelos? Em plena crise de transformação do mundo, quem pode hoje decidir com segurança quais os melhores padrões de comportamento a se oferecerem como ideais às crianças? Difícil ou quase impossível de decidir com segurança.
NOVOS VALORES?
Algo já se sabe: o valor de um indivíduo não deve ser medido apenas (ou exclusivamente) pelo seu poder de mando, pelo seu sucesso na práxis, por sua vitória sobre os demais ou pelo resultado final de sua ação. O que importa verdadeiramente não é vencer, mas sim fazer; criar algo, participar da vida em comum com os companheiros de seu grupo social. Mais do que valores estabelecidos, a Literatura de hoje deve propor projetos de ação e estimular a consciência reflexiva e crítica de seus leitores, a fim de que ele encontre a sua direção e tenha capacidade para encontrar um sentido para a vida.
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Esta participação é uma constante no universo lobatiano; o estímulo para fazer coisas, descobrir, dar asas à fantasia e à imaginação criadora, também o é. Falta-lhe, porém, certa meta ou objetivo a ser alcançado e que, na época seria, talvez, impossível apontar: o velho ainda imperava e o novo estava ainda em gestação. O que Monteiro Lobato fez (e de maneira magistral) foi ajudar a demolir o velho edifício carcomido que teimava (ou teima) em ser habitado. Foi mostrar que a toda renovação de ideias corresponde uma renovação formal. Foi provar que o convívio gratificante entre as pessoas é possível, desde que haja circunstâncias permissíveis. Foi apontar, na infância, a resposta para a reconstrução necessária (o que só em parte é verdadeiro). Foi lutar, como homem de negócios, para dar bases econômicas mais seguras a essa reconstrução (e embora falhando, deixou a ideia). Foi principalmente explorar o “jeitinho brasileiro” de viver: muita imaginação, inteligência espontânea e improvisação diante dos problemas que a vida vai propondo. O que, se por um lado é o recurso mais realista e adequado devido à falta de apoio que o brasileiro encontra nas estruturas da sociedade que o deve amparar, por outro lado é sério o verdadeiro amadurecimento do seu ser, por meio do estudo, do trabalho planejado, do projeto de vida. Faltou ao universo lobatiano o “projeto de vida” que a evolução dos tempos começa a tornar possível aos nossos escritores a partir do caos ainda reinante na violência desenfreada do dia a dia. Manter o estado de infância como Lobato o fez, deixando seus personagens eternamente crianças (tal como Barrie o fez com Peter Pan), não é solução para a vida atual, embora fosse, talvez, a única encontrada naquele momento agudo do processo de destruição que foi iniciado concretamente em nosso século e que (esperamos!) já esteja completado. A criança, por natureza, precisa crescer, cumprir seu ciclo vital e cultural. E, para isso, precisa de um projeto de vida em que se engaje e no qual aplique, de maneira dinâmica e harmoniosa com o todo, toda a potencialidade de suas energias vitais. Monteiro Lobato deu-lhe (e ainda lhe dá) um projeto cultural, mostrando o valor essencial da Literatura e abrindo a sua frente o mundo maravilhoso da cultura. Concluindo: A função lúdica da Literatura, que foi privilegiada por Monteiro Lobato, precisa ser enriquecida ou aprofundada com outras funções igualmente essenciais ao espírito da criança. O caminho já está aberto!
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POLÊMICA Livro de Monteiro Lobato é alvo de processo no STF Instituto de Advocacia Racial e Ambiental acusa autor de racista Se estivesse vivo hoje, Monteiro Lobato certamente incluíra a recente discussão sobre sua obra dentro do universo fabuloso povoado por bonecas de pano falantes, sabugos de milho intelectuais e sacis. Mas a polêmica envolvendo Ministério da Educação e o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) a respeito do livro “Caçadas de Pedrinho”, quase 80 anos depois da publicação original, virou realidade e é alvo de processo no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria do ministro Luiz Fux. Testemunha ocular dos primeiros anos pós-abolição da escravatura, o criador do “Sítio do Picapau Amarelo” foi fortemente influenciado pela discussão racial do início do século passado, justamente no momento em que produziu alguns dos mais importantes clássicos da Literatura Infantil na América Latina, como “Reinações de Narizinho”. Até por isso, a discussão sobre o preconceito nas obras de Lobato não é de hoje e se intensificou no ano passado, quando foram publicadas cartas do escritor datadas da década de 1920 que mostravam uma defesa engajada de ideias eugenistas (pretensa ciência que pregava a superioridade dos brancos). À época, outros escritores como Ruy Castro e Ziraldo saíram em defesa de Lobato, tratando a polêmica como uma atitude “politicamente correta de galinheiro”. Este ano, a causa voltou à cena quando o IARA questionou a distribuição de “Caçadas de Pedrinho” às escolas públicas entre 2003 e 2006. Segundo o instituto, trechos como “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão” podem incitar manifestações racistas em alunos, por isso os professores deveriam participar de capacitações para saberem como trabalhar com o livro nas escolas. Algo que, frisa o IARA, não acontece. O conto “Negrinha”, também de Lobato, foi posteriormente inserido na discussão. Em resposta, o Ministério da Educação diz haver uma recomendação para que professores contextualizem a obra em aula, explicando conceitos da época para amenizar o conteúdo do livro. Além disso, afirma que vai aumentar a divulgação de um parecer do CNE (Conselho Nacional de Educação) em que há orientações para o manejo de livros com conteúdo preconceituoso. O IARA não concordou e a polêmica chegou ao STF, onde também não houve acordo nos primeiros encontro. Educadores se dividem Estudiosa da obra de Monteiro Lobato e pesquisadora do Programa Institucional de Literatura Infantil e Juvenil (Prolij) da Univille, a diretora da Biblioteca Pública de Joinville, Alcione Pauli, considera a discussão equivocada. “Dizer que Monteiro Lobato é racista é desqualificar toda uma obra grandiosa, reconhecida mundialmente por sua criatividade. Quando ele escreveu eram outros tempos, não dá para analisar à luz da contemporaneidade”, frisa.
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Para Alcione, o fato de a polêmica ter sido levantada por quem não é do campo da Literatura já mostra como a discussão é infundada. “Seria como se eu, que não sou médica, entrasse num consultório para questionar a receita dada pra minha filha. Estão se metendo numa discussão alheia”, conclui. A secretária municipal da Educação e professora Vanessa da Rosa concorda que o contexto de Lobato era outro, mas faz ressalvas quanto alguns conteúdos de seus livros. “Não podemos desmerecer a importância deste escritor na Literatura, mas ele era racista sim, muito por causa do momento que o País passava naquela época”, pontua. Vanessa diz ter trabalhado com a obra de Lobato com turmas de 1ª a 4ª série, justamente para trabalhar com a questão racial. “Recolher o livro não resolve a problemática. É preciso politizar os leitores, explicar as questões raciais que estavam em discussão naquele contexto. O preconceito existe e precisa ser discutido”. Fonte e autoria: Rodrigo Schwarz (Publicado em 28/09 ANO no www.ndonline.com.br)
Curiosidade... Sítio do Pica-pau Amarelo – adaptações para a televisão A primeira adaptação para a televisão foi exibida de 3 de junho de 1952 a 1962, na TV Tupi, ao vivo, no programa Teatro Escola de São Paulo, criado por Júlio Gouveia e Tatiana Belinky. A história escolhida para inaugurar o programa foi “A Pílula Falante”, um dos capítulos do livro “Reinações de Narizinho”. O programa ficou no ar por dez anos e foi um grande sucesso da emissora, chamando a atenção de anunciantes e se transformando no primeiro programa da TV a utilizar a técnica de propaganda. A série não tinha intervalo comercial e os produtos como biotônicos e vitaminas eram apresentados durante a história. Em 1964, a atriz e diretora Lúcia Lambertini trouxe a série para a TV Cultura de São Paulo. Ela foi produzida durante seis meses mas não repetiu o sucesso alcançado na TV Tupi. No elenco, os mesmos atores da versão da TV Tupi viviam Emília, Narizinho e Pedrinho. Já o Visconde era interpretado por Roberto Orosco, Dona Benta por Leonor Pacheco e Tia Nastácia por Isaura Bruno. Em 12 de dezembro de 1967, Júlio Gouveia e Tatiana Belinky traziam o Sítio de volta à TV, agora pela TV Bandeirantes e com o patrocínio do Bolo Pullman. A série ganhava o cenário de um sítio de verdade e ganhava um tema de abertura assinado por Salatiel Coelho, além de usar o recurso do vídeo-tape. Cada episódio tinha 30 minutos e a série ficou no ar por dois anos, até 1969. Os atores começaram a ser substituídos por outros no decorrer do seriado e Zodja Pereira assumiu a Emília, Silvinha Lanes, a Narizinho e Ewerton de Castro, o Visconde de Sabugosa.
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A adaptação mais conhecida e exportada para o mundo todo foi a da Rede Globo, de 7 de março de 1977 a 31 de janeiro de 1986, sobretudo, para países de língua portuguesa. Os bonecos eram todos brasileiros criados por Rui de Oliveira e Marie Louise Neri. A trilha sonora foi dirigida por Dori Caymmi e era formada por temas essencialmente nacionais, ressaltando a mitologia e o folclore. Destaca-se a música tema da abertura composta por Gilberto Gil, “Sítio do Pica-pau Amarelo”. Em julho de 2000, a Rede Globo assinou um contrato de 10 anos com os herdeiros de Monteiro Lobato para produzir uma nova adaptação para a televisão das histórias do Sítio do Pica-pau Amarelo e, no dia 12 de outubro de 2001, passou a exibi-la. O programa começou sendo exibido dentro da TV Globinho, mas depois ganhou seu próprio horário na grade de programação da Globo. A primeira temporada durou do final de 2001 até o ano de 2002, contando as histórias de Monteiro Lobato. Naquele mesmo ano, após as histórias dos livros terem acabado, iniciouse outra fase do programa com novas histórias feitas para a televisão.
SÍNTESE DA UNIDADE “Quando olho para trás fico sem saber o que realmente sou. Porque tenho sido tudo, e creio que minha verdadeira vocação é procurar o que valha a pena ser”. (Monteiro Lobato, 1928)
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Hoje já é fácil provar que coube a Monteiro Lobato a fortuna de ser, na área da Literatura Infantil e Juvenil, o divisor de águas que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Foi ele, sem sombra de dúvida que, fazendo a herança do passado submergir no presente, encontrou o novo caminho criador que a Literatura Infantil estava necessitando. Rompeu, pela raiz, com o racionalismo tradicional e abriu as portas para a criatividade que precisava ser liberada. Contista, ensaísta e tradutor, este grande nome da Literatura Brasileira nasceu na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, no ano de 1882. Formado em Direito, atuou como promotor público até se tornar fazendeiro, após receber herança deixada pelo avô. Diante de um novo estilo de vida, Lobato passou a publicar seus primeiros contos em jornais e revistas, sendo que, posteriormente, reuniu uma série deles em “Urupês”, obra prima deste famoso escritor. Em uma época em que os livros brasileiros eram editados em Paris ou Lisboa, Monteiro Lobato tornouse também editor, passando a editar livros no Brasil. Com isso, ele implantou uma série de renovações nos livros didáticos e infantis. Notável escritor, é bastante conhecido entre as crianças, pois se dedicou a um estilo de escrita com linguagem simples em que realidade e fantasia estão lado a lado. Pode-se dizer que ele foi o precursor da Literatura Infantil no Brasil. Suas personagens mais conhecidas são: Emília, uma boneca de pano com sentimento e ideias independentes; Pedrinho, personagem que o autor se identificava quando criança; Visconde de Sabugosa, a sábia espiga de milho que tem atitudes de adulto; Cuca, vilã que aterroriza a todos do sítio; Saci Pererê e outras personagens que fazem parte da inesquecível obra “O Sítio do Pica-pau Amarelo” que até hoje encanta muitas crianças e muitos adultos.
Escreveu ainda outras incríveis obras infantis, como “A Menina do Nariz Arrebitado”, “O Saci”, “Fábulas do Marquês de Rabicó”, “Aventuras do Príncipe”, “Noivado de Narizinho”, “O Pó de Pirlimpimpim”, “Reinações de Narizinho”, “As Caçadas de Pedrinho”, “Emília no País da Gramática”, “Memórias da Emília”, “O Poço do Visconde”, “O Pica-pau Amarelo” e “A Chave do Tamanho”. 82
AULA 4 - MONTEIRO LOBATO: O MARCO NA LITERATURA INFANTOJUVENIL BRASILEIRA
Desde Monteiro Lobato, muitos anos se passaram. Bem sabemos que, no plano de práxis, no plano da vida concreta em que a vida se resolve, muita coisa (ou quase tudo) permanece igual (ou pior). Entretanto, no plano dos valores, muita coisa já mudou. E aqui o problema se complica para o escritor atual: quais os padrões válidos hoje para serem transmitidos como modelos? Em plena crise de transformação do mundo, quem pode hoje decidir com segurança quais os melhores padrões de comportamento a se oferecerem como ideais às crianças? Difícil ou quase impossível de decidir com segurança. Porém, algo já se sabe: o valor de um indivíduo não deve ser medido apenas (ou exclusivamente) pelo seu poder de mando, pelo seu sucesso na práxis, por sua vitória sobre os demais ou pelo resultado final de sua ação, porque o que importa verdadeiramente não é vencer, mas sim fazer; criar algo, participar da vida em comum com os companheiros de seu grupo social. Mais do que valores estabelecidos, a Literatura de hoje deve propor projetos de ação e estimular a consciência reflexiva e crítica de seus leitores a fim de que encontrem a sua direção e tenham capacidade para encontrar um sentido para a vida.
REFERÊNCIAS CUNHA, Maria Antonieta A. Literatura Infantil – teoria e prática. São Paulo: Ática, 2004. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil brasileira – História e histórias. São Paulo: Ática, 2007. ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a Literatura Infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
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AULA 5 Diálogo entre a Literatura Infantojuvenil clássica e a contemporânea INTRODUÇÃO
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om o objetivo de analisar as tendências atuais da Literatura Infantojuvenil e estabelecer a sua relação com a alfabetização e a sua importância neste processo e na formação do leitor e compreensão da realidade, nesta unidade, criaremos um diálogo entre a Literatura Infantojuvenil clássica e a contemporânea.
Como vimos anteriormente, a localização das origens da Literatura Infantojuvenil em remotas expressões da Literatura Adulta, por si só, não explica as diferentes formas que ela vem assumindo desde que, no século XVII, começou a ser escrita especificamente como tal. O que se pode deduzir, então, diante das tendências que ela vem seguindo nesses três séculos de produção, é que um dos primeiros problemas a suscitar polêmica quanto à sua forma ideal é o de sua natureza específica: a Literatura Infantojuvenil pertence à arte literária ou à área pedagógica? Essa controvérsia tem raízes na Antiguidade Clássica, desde quando se discutia a natureza da própria Literatura. Na mesma linha, põe-se em questão a finalidade da Literatura destinada às crianças. Instruir ou divertir? Eis o problema que está longe de ser resolvido. As opiniões divergem e, em certas épocas, radicalizam-se.
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Entretanto, se analisarmos as grandes obras que, através dos tempos, se impuseram como Literatura Infantil, veremos que pertencem simultaneamente a estas duas áreas distintas (embora limítrofes e, na maioria das vezes, interdependentes): a arte e a pedagogia. Sob este aspecto, podemos dizer que, como objeto que provoca emoções, dá prazer ou diverte e, acima de tudo, modifica a consciência de mundo de seu leitor, a Literatura Infantojuvenil é arte. Sob outro aspecto, como instrumento manipulado por uma intenção educativa, ela se inscreve na área da pedagogia. Entre os dois extremos, há uma variedade enorme de tipos de Literatura em que as duas intenções (divertir e ensinar) estão sempre presentes, embora em doses diferentes. O rótulo “Literatura Infantil” abarca, assim, modalidades bem distintas de textos: desde contos de fadas, fábulas, contos maravilhosos, lendas, histórias do cotidiano até biografias romanceadas, romances históricos, Literatura documental ou informativa. Via de regra, a eventual opção do escritor em relação a uma dessas atitudes básicas não depende exclusivamente de sua decisão pessoal, mas de tendência predominante em sua época. Esta aparente dicotomia se coloca como problema para aqueles que têm a seu cargo a educação das crianças ou para os que escrevem para elas, exatamente em épocas em que a sociedade e a Literatura estão em crise de mudança. Sabe-se que, nesses momentos de transformações, quando um sistema de vida ou de valores está sendo substituído por outro, o aspecto arte predomina na Literatura: o ludismo (ou o descompromisso em relação ao pragmatismo ético-social) é o que alimenta o literário e procura transformar a Literatura na aventura espiritual que toda verdadeira criação literária deve ser. Assim, os que são impelidos mais fortemente pelas forças da renovação exigem que a Literatura seja apenas entretenimento, jogo descompromissado (pois é justamente a atividade lúdica que tem por função desarticular estruturas estáticas, já cristalizadas no tempo). Os que acreditam que a criança precisa ser preservada da crise e ajudada em sua necessária integração social elegem como ideal a Literatura informativa (dessa maneira, oferecendo-lhes fatos cientificamente comprováveis ou situações reais, acontecidas e irrefutáveis, transmitindo-Ihes, ao mesmo tempo, valores consagrados pelo passado e inquestionáveis e, com isso, escapando ao difícil confronto com os valores de um presente em plena mutação, como um enigma a ser desvendado). Já em épocas de consolidação, quando determinado sistema se impõe, a intencionalidade pedagógica domina praticamente sem controvérsias, pois o importante para a criação no momento é transmitir valores para serem incorporados como verdades pelas novas gerações. Como exemplos bem próximos de nós, temos a Literatura Romântica, que, ainda em plena crise do Classicismo, nasceu como entretenimento ou jogo, abrindo caminho para os valores novos que se impunham. Na luta pela consolidação do sistema liberal-burguês-patriarcal-cristão (resultante daqueles valores e padrões), afirma-se uma grande Literatura (para adultos e para crianças). Com a instauração total do sistema, o ideário romântico acabou impondo a todos uma “Literatura exemplar” (feita de fórmulas), que adentrou o século XX, ignorando as mudanças que já se faziam necessárias devido à vitória do próprio sistema (que se supera ao engendrar um novo homem).
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Atualmente, a confusão é grande. Em geral, uma das atitudes tem predominado sobre a outra. Daí os excessos e os equívocos que proliferam em certa produção mais recente. Não só os livros publicados, mas também as centenas de originais enviados a concursos ou entregues às editoras revelam que, na maioria, predomina a gratuidade (livros que, em lugar de serem divertidos, como se pretende, são apenas tolos ou, então, fragmentados e sem sentido) ou que são obras sobrecarregadas de informações corretíssimas, mas que, despidas de fantasia e imaginação, em lugar de atrair o jovem leitor, o afugenta. A Literatura contemporânea é a expressão das mudanças em curso e, longe de pretender a exemplaridade ou a transmissão de valores já definidos ou sistematizados, busca estimular a criatividade, a descoberta ou a conquista dos novos valores em formação. Aqui entra o trabalho didático dos professores. Enfim, entre esses dois polos, está oscilando a produção atual da Literatura (para adultos ou para crianças); são polos que não se excluem (a não ser quando se radicalizam). Resta aos escritores tornarem-se conscientes das forças atuantes em seu tempo e conquistarem a fusão ideal.
DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE LITERATURA E CONSCIÊNCIA DE MUNDO Atendendo às novas forças atuantes no pensamento culto, podemos dizer, taxativamente, que nenhum escritor poderá criar um universo literário significativo, orgânico e coerente em suas coordenadas básicas (estilísticas e estruturais) e em sua mensagem se determinada consciência de mundo ou certa filosofia de vida (presença atuante que, nos verdadeiros criadores, é talvez inconsciente) não o orientar. Na ausência destas, o que teremos será uma produção livresca, que poderá, inclusive, ser atraente e interessante, mas que fatalmente terá vida brevíssima: é mero jogo literário, não chegando a ser uma obra literária. Da mesma forma, toda leitura que, consciente ou inconscientemente, se faça em sintonia com a essencialidade do texto lido resultará na formação de determinada consciência de mundo no espírito do leitor e, ainda, na representação de certa realidade ou de valores que tomam corpo em sua mente. Daí se deduz o poder de fecundação e de propagação de ideias, padrões ou valores que são inerentes ao fenômeno literário e que, através dos tempos, tem servido à humanidade, engajado no infindável processo de evolução que o faz avançar sempre. Esclarecendo o significado que atribuímos aqui ao termo “consciência”, valemo-nos da definição dada pelo pedagogo e psicólogo francês René Hubert (1952): “A consciência se descobre como relação entre um objeto e um sujeito claramente distintos um do outro, opostos um ao outro e, ao mesmo tempo, unidos um ao outro”. É, portanto, de uma relação que se estabelece entre o eu e o outro que nasce a consciência e é desta que resulta o conhecimento. Pelo fato de a consciência nos levar ao conhecimento, ela se impõe como fator essencial da obra literária. Ou melhor, porque sabemos que todo ato criador tem, em sua gênese, determinada consciência de mundo (que, de modo consciente ou inconsciente, interfere no ato de criação), torna-se importante, para compreendermos melhor cada obra literária, conhecermos as relações que se estabelecem entre seus fatores constituintes. É dessas relações que
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resulta sua literalidade, cujas características, por sua vez, resultam da referida consciência de mundo do autor. Consciência que não é outra coisa senão o seu conhecimento de mundo, as relações que se estabeleceram entre ele e o espaço/tempo em que viveu (seus padrões ideais de comportamento, seus desejos, suas frustrações, paixões, esperanças, cultura, decepções, seus medos, suas revoltas, seus entusiasmos etc.). Quanto mais orgânicas e profundas forem tais relações entre o eu do escritor e as “suas circunstâncias” e quanto mais a sua escritura for coerente com tais relações, tanto mais perfeita será a criação literária que dela resultará. No ato da leitura, por meio do literário, dá-se o conhecimento da consciência de mundo ali presente. Assimilada pelo leitor, ela começa a atuar em seu espírito (e, conforme o caso, a dinamizá-lo no sentido de certa transformação). Mas, para que essa importante assimilação se cumpra, é necessário que a leitura consiga estabelecer uma relação essencial entre o sujeito que lê e o objeto, que é o livro lido. Só assim o conhecimento da obra se fará e sua leitura se transformará naquela aventura espiritual de que falamos anteriormente. Além disso, como lembra Hubert (1952), “[...] esse conhecimento não se faz de chofre [...], só progressivamente ele alcança perfeita clareza”. Daí a importância que se atribui, hoje, à orientação a ser dada às crianças no sentido de que, ludicamente, sem tensões ou traumatismos, elas consigam estabelecer relações fecundas entre o universo literário e seu mundo interior, para que se forme, assim, uma consciência que facilite ou amplie suas relações com o universo real que elas estão descobrindo dia a dia e no qual elas precisam aprender a se situar com segurança, para nele poder agir.
A LITERATURA INFANTOJUVENIL IDEAL: REALISTA OU FANTASISTA? Uma questão que, de tempos em tempos, volta a provocar discussões e dividir opiniões é a da validade, maior ou menor, de cada uma das formas básicas da Literatura Infantil: o ideal para os pequenos leitores seria a Literatura realista ou a fantasista? A verdade é que esse problema se coloca também para a Literatura em geral e, conforme a época, uma ou outra dessas duas formas (realismo ou imaginário) acaba por predominar no ato criadouro no gosto do público. Tal predomínio, evidentemente, não se dá por acaso, mas resulta de uma série de causas interdependentes e complexas que, aqui, não cabe analisar. Entretanto, é importante notar que a atração de um autor pelo registro realista do mundo à sua volta ou pelo registro fantasista resulta de sua intencionalidade criadora: ora testemunhar a realidade (o mundo, a vida real), representando-a diretamente pelo processo mimético (pela imitação fiel), ora descobrir “o outro lado” dessa mesma realidade – o não imediatamente visível ou conhecido –, transfigurando-a pelo processo metafórico (representação figurada). Neste caso, a matéria literária identifica-se não com a realidade concreta, mas com a realidade imaginada, com o sonho, a fantasia, o ímã desconhecido. Nenhuma dessas formas é melhor ou pior literariamente. São apenas diferentes e dependem das relações de conhecimento que se estabelecem entre os homens e o mundo em que eles vivem.
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O PENSAMENTO MÁGICO Em seus primórdios, a Literatura foi essencialmente fantástica: na infância da humanidade, quando os fenômenos da vida natural e as causas e os princípios das coisas eram inexplicáveis pela lógica, o pensamento mágico, ou mítico, dominava. Ele está presente na imaginação que criou a primeira Literatura: a dos mitos, das lendas, das sagas, dos cantos rituais, dos contos maravilhosos etc. A essa fase mágica, e já revelando preocupação crítica com a realidade das relações humanas, correspondem as fábulas. Nestas, a imaginação representa, na figura de animais, os vícios e as virtudes que eram característicos dos homens. Compreende-se, pois, por que essa Literatura arcaica acabou se transformando em Literatura Infantil: a natureza mágica de sua matéria atrai espontaneamente as crianças.
O PENSAMENTO LÓGICO À medida que o homem avança no conhecimento científico do mundo e começa a explicar os fenômenos pela razão ou pelo pensamento lógico, também vai exigir da Literatura uma atitude científica que possa representar a verdade do real. Mas, como nenhuma conquista do conhecimento é definitiva, as épocas de crença na verdade científica se alternam com épocas de grande descrença nas verdades exatas e, consequentemente, de redescoberta da fantasia, da imaginação ou da magia. A Literatura fantasista foi a forma privilegiada da Literatura Infantil desde seus primórdios (século XVII) até a entrada do Romantismo, quando o maravilhoso dos contos populares foi definitivamente incorporado ao seu acervo. Entretanto, a necessidade de mostrar a nova verdade conquistada pela sociedade romântico-burguesa gerou uma nova Literatura para crianças, centrada no realismo cotidiano: narrativas que se constroem com fatos reais (facilmente identificados na vida cotidiana ou na história), das quais a obra da Condessa de Ségur é modelo. Portanto, à medida que o cientificismo se impôs como única possibilidade de conhecimento (baseado em fatos e em suas leis), o Realismo passou a dominar a Literatura como forma privilegiada de revelar o mundo. Desde o final do século XIX até meados dos anos 1950, diferentes correntes de pensamento cientificista têm sucedido na cultura moderna (positivismo ou materialismo; pragmatismo ou utilitarismo; personalismo, behaviorismo, socialismo etc.). Embora cada corrente tenha seus fundamentos e suas características próprias, todas se igualam na tendência realista e experimentalista: recusam taxativamente qualquer possibilidade de conhecimento que pretenda ir além da experiência concreta ou sensível, seja a dos fatos positivos e da matéria, seja a do jogo das relações sociais (indivíduo versus sociedade) etc. Nos anos 1960, o próprio avanço da ciência, descobrindo fenômenos inexplicáveis pela lógica científica, acabou por desacreditar o enfoque realista, superado pelo enfoque fantasista. A era dos computadores começou; o homem dominou o espaço planetário, lançou satélites, chegou à Lua e continuou avançando na descoberta do desconhecido; o poder da mente começou a ser investigado por meio de diferentes processos (em que se alternam religião, parapsicologia, experiências com alucinógenos, ocultismo etc.); enfim, uma nova mentalidade e uma nova era foram vislumbradas num horizonte possível de ser atingido em pouco tempo (pelo menos é o que se crê).
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Em face desse acelerado processo de transformação tecnológica e científica, é de se compreender que o conhecimento científico, objetivo e realista fosse novamente superado por suas próprias conquistas. As forças da fantasia, do sonho, da magia, da imaginação, do mistério, da intuição etc. foram desencadeadas como novas possíveis formas de representação da experiência humana. O maravilhoso voltou a entrar triunfalmente na Literatura. Hoje, as duas tendências coexistem igualmente poderosas e vivas (ora separadas, ora fundidas no realismo mágico ou na ficção científica), tanto na Literatura Adulta como na Infantil.
O MARAVILHOSO E A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO INFANTIL O maravilhoso sempre foi e continua sendo um dos elementos mais importantes na Literatura destinada às crianças. Essa tem sido a conclusão da psicanálise ao provar que os significados simbólicos dos contos maravilhosos estão ligados aos eternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional – o que se processa desde a fase narcisista ou egocêntrica inicial, em que domina o eu inconsciente, primitivo e instintivo (id), durante a qual, segundo Jung, a energia psíquica primária (que regula toda a vida humana) é dirigida exclusivamente para o próprio eu, até a fase final (a que poucos chegam) de transcendência da própria humanidade por um eu ideal (superego). Entre essas duas fases polares, ocorre a evolução mais significativa do ser humano: a passagem do egocentrismo para o sociocentrismo: a do eu para o nós – a fase do eu consciente (ego), real, afetivo, inteligente, que reconhece e valoriza o outro como elemento-chave para sua própria autorrealização. Nessa fase se inicia, para a criança, a luta pela defesa de sua vontade e de seu desejo de independência em relação ao poder dos pais ou à rivalidade com os irmãos ou amigos. É quando, inconscientemente, a criança tenta construir sua própria imagem ou identidade e se depara com os muitos estímulos ou as interdições aos seus impulsos etc. É, pois, nesse período de amadurecimento interior que a Literatura Infantil e, principalmente, os contos de fadas podem ser decisivos para a formação da criança em relação a si mesma e ao mundo à sua volta. O maniqueísmo que divide as personagens em boas e más, belas ou feias, poderosas ou fracas etc. facilita à criança a compreensão de certos valores básicos da conduta humana ou do convívio social. Tal dicotomia, se transmitida por meio de uma linguagem simbólica e durante a infância, a nosso ver, não será prejudicial à formação de sua consciência ética (como muitos temem ao lembrar a falsidade das divisões estanques – bem/mal, certo/errado etc. – que caracteriza os contos maravilhosos). E não o será porque, por meio dela, a criança incorporará os valores que desde sempre regeram a vida humana. Entre os tópicos dignos de reflexão propostos pelo psicólogo Bruno Bettelheim, está a defesa da presença do mal nas histórias para crianças. Diz ele: “Ao contrário do que acontece em muitas estórias infantis modernas, nos contos de fadas o mal é tão onipresente quanto a virtude. Em praticamente todo conto de fadas, o bem e o mal recebem corpo na forma de algumas figuras e de suas ações, já que bem e mal são onipresentes na vida e as propensões para ambos estão presentes em todo homem. É esta dualidade que coloca o problema moral e requisita a luta para resolvê-lo.
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O mal não é isento de atrações – simbolizado pelo poderoso gigante ou dragão, o poder da bruxa, a astuta rainha na “Branca de Neve” – e com frequência se encontra temporariamente vitorioso. [...] A cultura dominante deseja fingir, particularmente no que se refere às crianças, que o lado escuro do homem não existe, e professa a crença num aprimoramento otimista. [...] As figuras nos contos de fadas não são ambivalentes – não são boas e más ao mesmo tempo, como o somos todos na realidade. Mas dado que a polarização domina a mente da criança, também domina os contos de fadas. Uma pessoa é ou boa ou má, sem meio-termo. Um irmão é tolo, o outro esperto. [...] A apresentação das polarizações de caráter permite à criança compreender facilmente a diferença entre as duas, o que ela não poderia fazer tão prontamente se as figuras fossem retratadas com mais semelhança à vida, com todas as complexidades que caracterizam as pessoas reais. As ambiguidades devem esperar até que esteja estabelecida uma personalidade relativamente firme na base das identificações positivas. Então, a criança terá uma base para compreender que há grandes diferenças entre as pessoas e que, por conseguinte, uma pessoa tem que fazer opções sobre quem quer ser. Esta decisão básica, sobre a qual todo o desenvolvimento ulterior da personalidade se construirá, é facilitada pelas polarizações do conto de fadas.” (BETTELHEIM, 1980). Coube sempre a cada sociedade decidir o que, para ela, é “bom” ou “mau”. O que a criança encontra nos contos de fadas são, na verdade, categorias de valor perenes. Impossível prescindirmos de juízos valorativos: a vida humana, desde as origens, tem se pautado por eles, o que muda é apenas o conteúdo rotulado de “bom” ou “mau”, “certo” ou “errado”. A psicanálise observa que a criança é levada a se identificar com o herói bom e belo, não devido à sua bondade ou beleza, mas por sentir nele a própria personificação de seus problemas infantis: seu inconsciente desejo de bondade e de beleza e, principalmente, sua necessidade de segurança e proteção. Identificada com os heróis e as heroínas do mundo do maravilhoso, a criança é levada, inconscientemente, a resolver sua própria situação – superando o medo que a inibe e ajudando-a a enfrentar os perigos e as ameaças que sente à sua volta e assim, gradativamente, poder alcançar o equilíbrio adulto. Esse é um problema vital que está sendo enfrentado hoje pela Literatura que se quer atualizada: como tratar o “lado escuro do homem” na mente infantil? Prosseguir com a polarização ou, como querem alguns, mostrar logo a relatividade das coisas e a ambiguidade dos seres? De nossa parte, concordamos com Bettelheim (1980): “[...] as ambiguidades devem esperar até que esteja estabelecida uma personalidade relativamente firme na base das identificações positivas”. Concluindo a análise desse problema, Bettelheim (1980) demonstra que, dando acolhida ao mal – com força quase igual ao bem, embora perdendo no fim –, os contos de fadas ensinam às crianças que, na vida real, é imperioso que estejamos sempre preparados para enfrentar grandes dificuldades. E, nesse sentido, dá também sugestões de coragem e otimismo que serão necessários à criança para atravessar e vencer as inevitáveis crises de crescimento. Intuitivamente, a criança compreenderá que tais histórias, embora irreais ou inventadas, não são falsas, pois ocorrem de maneira semelhante no plano de suas próprias experiências pessoais.
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Sua análise ressalta ainda que a finalidade dessas histórias é confirmar a necessidade de se suportar a dor ou correr riscos para se conquistar a própria identidade. O final feliz acena com a esperança no fim das provações ou ansiedades. Principalmente os escritores de Literatura para crianças – meninos, meninas ou jovens – encontrarão, neste instigante estudo, farto material de reflexão para sua criação literária. Nele, descobrirão também que “[...] hoje, como no passado, a tarefa mais importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudá-la a encontrar significado na vida” (BETTELHEIM, 1980). E aí está a Literatura para servir de mediadora para essa tarefa.
A CRÍTICA E A LITERATURA INFANTOJUVENIL Embora precária e sem nenhuma organicidade, entre nós, a crítica sobre Literatura Infantil vem se realizando e, apesar de muitos equívocos, gradativamente, ganhando foros de atividade orientadora da criação. O curioso a se notar é que muitas das vozes críticas que se fazem ouvir em congressos, mesas-redondas, encontros de professores ou de escritores, seminários ou em artigos em revistas especializadas raramente são da área de Letras; vêm de vários ramos das ciências humanas (sociologia, psicologia, antropologia, comunicação, política, educação). Apenas essa circunstância já prova amplamente que a Literatura Infantil e Juvenil não é, nem pode ser, mero entretenimento. Está tão ligada ao sistema de valores vigente na sociedade que profissionais das diferentes áreas do conhecimento humano se voltam para ela. As razões podem ser as mais variadas. Mas, a julgar pelo teor desses estudos, a maioria pretende encontrar nela melhores subsídios para a compreensão do fenômeno de mutação que nosso mundo está sofrendo. No entanto, seja qual for a razão, uma coisa é certa: nenhum desses profissionais está interessado na Literatura como fenômeno literário, mas como veículo de ideias ou padrões de comportamento. Devido à carência de uma crítica literária organizada (que sirva de orientação metodológica aos professores, bibliotecários, orientadores educacionais, pais e mães interessados em estimular na criança e nos jovens o gosto e o interesse pela leitura), cabe aqui chamar a atenção para esse interesse das demais áreas pela Literatura Infantil e Juvenil. É importante que entendamos a natureza e os prováveis objetivos dessas análises que vêm sendo divulgadas, porque elas podem, equivocamente, ser tomadas como análises literárias e, se aplicadas com os pequenos leitores, forçosamente darão resultados bem negativos, pois se arriscam a transformar a compreensão ou a valorização literária do texto em mera denúncia de caráter sociopolítico-econômico. Essas denúncias, se, por um lado, são extremamente úteis para o público adulto, ainda não consciente da deterioração dos valores ou padrões tradicionais vigentes em nossa sociedade, por outro lado, podem induzir os “despreparados” a tomá-las como o caminho mais válido para a leitura e análise da Literatura. Essa diretriz crítica tem sua justificativa em determinadas circunstâncias e, obviamente, não é privativa dos críticos brasileiros. Expressa uma tendência que se vem manifestando em vários países da Europa e das Américas e que, por meio dos textos literários infantis, vem reivindicando os direitos milenarmente recusados aos grandes injustiçados da história: a mulher, a criança e as raças que, há séculos, têm sido dominadas pelos brancos.
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Nesse sentido, ao ser ligada de maneira radical a problemas sociais, étnicos, econômicos e políticos de tal gravidade, a Literatura Infantojuvenil perde suas características de literalidade para ser tratada como simples meio de transmitir valores ou é lida exclusivamente em função de seus estereótipos sociais. Daí a urgência que vemos na conscientização e organização de uma crítica literária para a Literatura Infantil brasileira.
CRITÉRIOS E MODALIDADES DE CRÍTICA LITERÁRIA Sabemos que a crítica, esse importante campo da cultura, é uma das mais carentes entre nós. Deixando de lado as prováveis causas ou os fatores que impedem o amplo desenvolvimento da crítica brasileira em geral, examinemos mais de perto o que é (ou pode ser) a chamada crítica literária (de Literatura para crianças ou adultos). Que critérios seriam válidos, hoje, para sua produção efetiva e fecunda? Dentro do relativismo que comanda o mundo atual, é evidente que não há nenhum critério ou fórmula preestabelecidos que possam determinar o que é a crítica ideal. Dependendo de seus objetivos imediatos e do público que ela pretende atingir, os processos se diversificam e surgem os vários tipos de análise. A julgar pelos aspectos de que se reveste hoje, entre nós, a produção desse setor, veiculada pela imprensa ou desenvolvida no meio universitário e divulgada em revistas especializadas, percebe-se que, apesar da diversidade de abordagens e de um evidente desnorteamento quanto aos objetivos a serem alcançados, há um sério esforço para a descoberta de novos processos de leitura crítica. Desde que, na passagem do século XIX para o século XX, desapareceram os modelos literários e/ou linguísticos (que serviam de parâmetro para a crítica decidir do valor ou desvalor das obras que surgiam), uma multiplicidade de critérios têm sido inventados e inúmeros métodos, experimentados. Não é, aqui, o caso de examinarmos as peculiaridades, os acertos ou desacertos desses critérios. Quanto aos métodos, por diferentes que pareçam ser, quase todos desenvolvem uma leitura analíticointerpretativa das obras, isto é, não têm como objetivo conhecer o valor da obra, mas apenas descrever a sua matéria literária. É compreensível que, na falta de padrões aferidores, a leitura crítica se visse impossibilitada de apontar os pressupostos valores das obras. Daí sua recusa a qualquer tipo de valorização e sua consciente limitação ao texto, nada mais do que o texto – lei básica de todas as análises formalistas. O que importa a essa diretriz metodológica é a descoberta do mecanismo da linguagem ao se estruturar um texto. É a análise do discurso ou a análise semiótica (ou semiológica). Entretanto, nota-se uma nova preocupação com o valor, embora não mais com o sentido absoluto de corresponder a um modelo, como acontecia com a leitura tradicional. Isto é, não se trata mais de julgar o mérito de uma obra em relação a parâmetros ou modelos considerados ideais, mas de descrever e interpretar a matéria literária (no caso da Literatura Infantil, também a matéria imagística, que é fundamental) em sua organicidade estrutural, adequação temática, natureza da linguagem usada etc., tendo em vista o contexto temporal e cultural.
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Na prática atual, têm predominado os métodos descritivos ou formalistas que procuram, no texto, o “o quê” ele quer comunicar ao leitor e “como” essa comunicação se constrói. Há ainda a linha que vimos chamando de culturalista e que, para além do “o quê” e do “como”, procura descobrir e interpretar o “porquê” da obra: a intencionalidade que estaria explícita ou implícita em sua construção. A análise de texto por meio da ótica culturalista investiga as possíveis relações existentes entre a escritura literária (ou imagística) e o universo criado por ela, isto é, a obra em seu todo. Procura também as relações entre a obra e o seu momento. Com esse processo, a análise visa descobrir em que medida a obra difere ou não das diretrizes propostas pelo seu tempo; em que medida inova ou dá continuidade; em que medida sua matéria literária pode ser classificada como original, enriquecedora, convencional ou diluidora. De uma maneira geral, a análise avança por meio de uma série de perguntas: a) O que a obra transmite? Qual seu enredo, assunto, trama, fabulação? b) Como isso é expresso em escritura literária? Quais os recursos de linguagem, de estilo ou de estrutura escolhidos pelo autor? Qual a intenção que predominou nessa escolha: a estética ou a ética? (A primeira dá ênfase ao fazer literário, a segunda, aos padrões de comportamento.) c) Qual a consciência de mundo (ou sistema de valores) ali presente ou latente? Há ou não coerência orgânica na construção da obra entre estilo, recursos expressivos, problemática e consciência de mundo? (É essa organicidade que lhe dá o valor de obra literária.) d) Qual a intencionalidade do autor que pode ser percebida na obra? Qual seria a sua finalidade em relação ao leitor? Divertir, instruir, educar, emocionar, conscientizar? A partir dessas perguntas básicas, a análise vai abrindo caminhos imprevisíveis, pois são as respostas dadas pela matéria interrogada que vão decidindo. Obviamente, só por um artifício didático podemos separar os elementos anteriormente enumerados. Bem sabemos que todos estão integrados em um só fenômeno: a escritura literária. Qualquer intenção ou finalidade é determinada por uma consciência propulsora e requer meios para se realizar. Por outro lado, só se pode pensar em meios quando se tem uma finalidade ou um objetivo à vista. É, pois, das relações mútuas entre esses fatores básicos, manipulados com arte e com criatividade, que surge a obra, o livro, o fenômeno literário. Embora, por exigência operativa da análise, sejamos obrigados a separar os vários elementos constituintes da obra, não podemos esquecer que só a interação orgânica entre intencionalidade (fins) e sua concretização (meios) na matéria literária e/ou imagística (obra) permitirá que ela adquira valor como o produto literário que é. E mais: é a adequação entre a consciência de mundo (implícita na intencionalidade da obra) e a natureza do discurso literário (linguagem que dá corpo à consciência de mundo) que nos permite conhecer o grau de criatividade que dá à obra o seu maior ou menor valor literário.
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CURIOSIDADES “Charlie and the Chocolate Factory” (no Brasil, “A Fantástica Fábrica de Chocolate”) é um livro infantil do escritor galês Roald Dahl, escrito em 1964. O livro é conhecido por sua linguagem fácil e espontânea e por suas detalhadas descrições. Há quem o descreva como um livro de ficção científica para crianças. A história já mereceu duas adaptações para o cinema. A última transposição do conto para a tela foi com o filme homônimo do diretor Tim Burton, com o ator Johnny Depp no papel de Willy Wonka, que foi lançado em julho de 2005 nos cinemas brasileiros. O conto infantil “A Fantástica Fábrica de Chocolate” foi lançado em 1964 nos Estados Unidos e obteve grande sucesso nas livrarias. Isso levou o diretor Mel Stuart a filmá-lo em 1971, com adaptação para o cinema feita pelo próprio escritor. Essa primeira versão para o cinema teve Gene Wilder como o polivalente Sr. Wonka. Roald Dahl (1916-1990), nascido no país de Gales, filho de noruegueses, atingiu notoriedade na década de 1940 com obras tanto para adultos quanto para crianças e se tornou um dos escritores mais vendidos no mundo. É conhecido principalmente por seus livros infantis, entre os quais figuram “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, “Matilda”, “As Bruxas” e “James e o Pêssego Gigante”.
Adaptações cinematográficas e suas variantes no discurso Apesar de manterem o leitmotiv da narrativa do livro, os dois filmes diferem entre si e da obra original. “Willy Wonka and the Chocolate Factory”: A adaptação de 1971 não se manteve totalmente fiel ao livro. No filme, não existe a figura do pai de Charlie e nem se sabe se ele está morto ou se saiu de casa. O roteiro introduz cenas ao redor do mundo da frenética corrida pelos bilhetes premiados, adicionando um humor mais maduro à narrativa. Também são dadas nacionalidades aos personagens, sendo dois americanos – Michael e Violet –, uma britânica – Veruca – e um alemão ocidental – Augustus. A localização da fábrica e a nacionalidade de Charlie permanecem desconhecidas. A ação dentro da fábrica se mantém praticamente a mesma, com a adição de um problema moral que Charlie precisou resolver para ganhar o prêmio. “Charlie and the Chocolate Factory”: Dirigido por Tim Burton, esse filme de 2005 se manteve mais fiel ao livro em termos de narrativa. A família de Charlie aparece completa, assim como são mostradas as histórias que Grandpa Joe conta a Charlie sobre o Sr. Wonka. Ainda assim, há um diálogo com o filme de 71, como, por exemplo, na maneira como as personagens se apresentam e suas nacionalidades. Também é feita uma história paralela explicando o passado de Willy Wonka. Veja trechos dos filmes: <https://www.youtube.com/watch?v=P3LUPlmP8q0> <https://www.youtube.com/watch?v=VRwKyy5IrnA> <https://www.youtube.com/watch?v=Eqcz1AUQ580> <https://www.youtube.com/watch?v=gguVvhNheCM>
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LINHAS OU TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEA
DA
LITERATURA
INFANTOJUVENIL
Pode-se dizer que, hoje, todas as tendências temáticas e estilísticas se impõem com igual força na produção literária para crianças, jovens e adultos. Passado e presente se fundem para gerar novas formas. No panorama literário geral, coexistem, com igual interesse, diferentes linhas ou tendências de criação literária. Como orientação didática, selecionamos cinco linhas básicas, que, por sua vez, se desdobram em outras. Obviamente, não se trata de uma seleção exaustiva, mas apenas representativa – o que não quer dizer que certos títulos não possam ser incluídos em mais de uma linha ou tendência. É importante lembrar que, em Literatura ou Arte, nada é absoluto. » » Linha do Realismo cotidiano (desdobrada em: Realismo crítico, Realismo lúdico, Realismo humanitário, Realismo histórico ou memorialista e Realismo mágico). » » Linha do Maravilhoso (desdobrada em: Maravilhoso metafórico, Maravilhoso satírico, Maravilhoso popular ou folclórico, Maravilhoso fabular e Maravilhoso científico). » » Linha do Enigma ou da Intriga policialesca. » » Linha da Narrativa por imagens. » » Linha dos Jogos linguísticos. 1. Linha do Realismo cotidiano (situações radicadas na vida do dia a dia comum) Linha que se desdobra em diferentes ângulos de visão: crítico/participativo, lúdico, humanitário, histórico ou memorialista e mágico. 1.1. Realismo crítico (participante ou conscientizante) Obras atentas à realidade social e cuja matéria literária é orientada ou filtrada por uma perspectiva político-econômico-social. 1.2. Realismo lúdico Obras que enfatizam a aventura de viver, as travessuras do dia a dia, a alegria ou os conflitos resultantes do convívio humano. 1.3. Realismo humanitário Obras que, atentas ao convívio humano, dão ênfase às relações afetivas, sentimentais ou humanitárias. 1.4. Realismo histórico (ou memorialista) Obras orientadas por uma intenção predominantemente informativa ou didática: informar o leitor; revelar-lhe ou explicar-lhe fenômenos do mundo natural ou de determinados setores da sociedade ou de certas regiões do país, com seus costumes, seus tipos, sua linguagem etc. Incluímos nesta linha as biografias ou narrativas históricas.
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1.5. Realismo mágico Obras em que as fronteiras entre realidade e imaginário se diluem, fundindo-se as diferentes áreas para dar lugar a uma terceira realidade em que as possibilidades de vivências são infinitas e imprevisíveis. Situações centradas no cotidiano comum em que irrompe algo “estranho”, que é visto ou vivido com a maior naturalidade pelas personagens. 2. Linha do Maravilhoso (situações que ocorrem fora do nosso espaço/tempo conhecido ou em local vago ou indeterminado na Terra) O mundo do maravilhoso pode se apresentar sob diferentes aspectos: metafórico, satírico, científico, popular ou folclórico e fabular. 2.1. Maravilhoso metafórico (ou simbólico) Narrativas cuja fabulação atrai por si mesma, isto é, pelo referencial, pela história que transmite ao leitor, mas cuja significação essencial só é apreendida quando o nível metafórico de sua linguagem narrativa for percebido ou decodificado pelo ele. 2.2. Maravilhoso satírico Narrativas que utilizam elementos literários do passado ou situações familiares, facilmente reconhecíveis, para denunciá-las como erradas/superadas e transformá-las em algo ridículo. O humor é o fator básico dessa diretriz. 2.3. Maravilhoso científico Narrativas que se passam fora do nosso espaço/tempo conhecidos, ou seja, nas quais ocorrem fenômenos não explicáveis pelo conhecimento racional. 2.4. Maravilhoso popular ou folclórico: contos, lendas e mitos Narrativas que exploram nossa herança folclórica europeia e nossas origens indígenas ou africanas. 2.5 Maravilhoso fabular Situações vividas por personagens animais que podem ter sentido simbólico, satírico ou puramente lúdico. 3. Linha do Enigma ou da Intriga policialesca Narrativa cujo eixo de fabulação é um mistério, um enigma ou um problema estranho a ser desvendado. A maior parte está na linha detetivesca do romance policial. 4. Linha da Narrativa por Imagens Livros que contam histórias por meio da linguagem visual; de imagens que “falam” (desenhos, pinturas, ilustrações, fotos, modelagem ou colagem fotografadas etc.). Sem o apoio de texto narrativo (ou com brevíssimas falas), esse tipo de livro de história sem palavras apresenta excelentes estratégias para as crianças reconhecerem seres e coisas que se misturam no mundo que as rodeia e aprenderem a nomeá-las oralmente. Processo lúdico de leitura que, na mente infantil, une os dois mundos em que ela precisa aprender a viver: o mundo real e concreto à sua volta e o mundo da linguagem, no qual o real precisa ser nomeado para existir definitivamente e ser reconhecido por todos.
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5. Linha dos Jogos linguísticos Essa linha abrange livros que expressam claramente a consciência de que a escrita é um jogo criador e estimulador das potencialidades do pequeno leitor. Aí está a brincadeira inteligente que é criada entre as palavras, as ideias, as imagens etc., que leva o pequeno leitor, ou ouvinte, a interagir com a história. Entram, na construção desses jogos, recursos de linguagem como os da metalinguagem (a história sobre a própria história, a narrativa que fala de sua própria construção) e de intertextualidade (a assimilação de um texto antigo por um novo texto).
HARRY POTTER “Harry Potter” é uma série de aventuras fantásticas escrita pela britânica J. K. Rowling. É constituída por sete livros e, desde o lançamento do primeiro volume, “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, em 1997, ganhou grande popularidade e sucesso comercial no mundo todo, dando origem a filmes, videojogos, entre outros itens. Mundialmente, a série “Harry Potter” vendeu cerca de um bilhão de exemplares até dezembro de 2011, em mais de 67 idiomas. O livro da série que mais vendeu foi “Harry Potter e a Pedra Filosofal”, com cerca de 120 milhões de cópias comercializadas. Graças ao grande sucesso dos livros, Rowling tornou-se a mulher mais rica na história da Literatura. Os livros são publicados pela Editora Rocco no Brasil. Grande parte da narrativa se passa na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts e foca os conflitos entre Harry Potter e o bruxo das trevas, Lord Voldemort. Ao mesmo tempo, os livros exploram temas como amizade, ambição, escolha, preconceito, coragem, crescimento, responsabilidade moral e as complexidades da vida e da morte, e acontecem num mundo mágico com suas próprias histórias, seus habitantes, sua cultura e suas sociedades. Todos os sete livros planejados foram publicados. O sétimo e último, denominado “Harry Potter and the Deathly Hallows” (traduzido como “Harry Potter e as Relíquias da Morte” no Brasil e como “Harry Potter e os Talismãs da Morte” em Portugal), foi lançado nos Estados Unidos em 21 de julho de 2007 e, no Brasil e em Portugal, respectivamente, em 10 de novembro e 16 de novembro daquele mesmo ano. Os sete livros deram origem a oito filmes, com o último, “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, dividido em duas partes: uma lançada em 19 de novembro de 2010 e a outra, em 15 de julho de 2011. Veja trechos dos filmes: <https://www.youtube.com/watch?v=fRkBWFNFZkw> <https://www.youtube.com/watch?v=njPVPm9zl6o> <https://www.youtube.com/watch?v=JV7dRAcbl9M> <https://www.youtube.com/watch?v=Fxyz1Bx_Hk0>
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REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 2000. AGUIAR, Vera Teixeira; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2004. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. CUNHA, Maria Antonieta A. Literatura infantil : teoria e prática. São Paulo: Ática, 2004. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática, 2007.
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AULA 6 A literatura infantojuvenil contemporânea: poesia e histórias em quadrinhos De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo. [...] Me tira desta areia, ó Espírito redime estas palavras de seu pó. (Adélia Prado)
INTRODUÇÃO
C
om o objetivo de analisar as tendências atuais da literatura infantojuvenil e estabelecer a sua relação com a alfabetização e a sua importância no processo de alfabetização da criança, na formação do leitor e na compreensão da realidade, propiciando a compreensão da relação entre subjetividade e linguagem, trataremos, nesta unidade, da poesia e das histórias em quadrinhos.
LITERATURA INFANTOJUVENIL
A poesia e os quadrinhos são gêneros quase naturais para a infância. Ao contrário do que possamos imaginar, metáforas e estruturas heterodoxas não são difíceis para as crianças. O que são poemas e quadrinhos, afinal, senão brincadeiras com palavras e sentidos? A simplicidade de linguagem e um repasse cristalino de mensagem não impedem a feitura de um grande texto (e não um texto grande) nem comprometem a verticalidade de uma abordagem. O que não parece viável nem honesto é adaptar, construir uma simplicidade falsa, denotativa pela falta de coragem de trabalhar um caminho de acesso, ou acreditar que a criança seja um ser reprodutivo, um claudicante observador, incapaz de direcionar sua própria descoberta. O simples nunca foi o fácil, e nisto reside a confusão maior desse questionamento. Ninguém pode imaginar quanto um poeta ou um cartunista sofrem, quanto exigem de si mesmos para alcançar o que Drummond chama de “estado de simplicidade”. A simplicidade, e não a simplificação, brota da depuração, da eliminação difícil da sedução formal (coisa espetacular) e funciona como uma centrífuga que, de uma fruta, tira apenas o suco, sem resíduos adicionais. O preconceituoso erudito, muitas vezes, não sabe que persegue o acessório, e não o essencial. Como afirma Drummond: “Mais pura é a obra, e mais perplexa a indagação: ‘Mas é somente isso? Não há mais nada?’ Havia, mas o gato comeu (e ninguém viu o gato)”.
DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE A POESIA DESTINADA ÀS CRIANÇAS Comecemos por lembrar que a essência da poesia arraiga em certo modo de ver as coisas. É uma visão que vai além do visível ou do aparente, para captar algo que nele não se mostra de imediato, mas que lhe é essencial. Esse poder de ver além do visível, que é dado aos poetas (e que até agora nenhuma pesquisa científica conseguiu explicar), foi tido, desde a origem dos tempos, como um dom dado pelos deuses. É essa a crença de Adélia Prado. Daí sua queixa de que, amputada da poesia, só via na pedra uma simples pedra, e não aquele algo oculto que a faria mais preciosa. Um “algo” que Carlos Drummond de Andrade deve ter visto na “pedra” quando escreveu o poema: No meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
Poema aparentemente simples e objetivo, mas cujo significado oculto (se é que tem) nunca foi definitivamente desvendado, porque cada leitor lhe atribui um sentido. É essa a magia da palavra poética – multiplica-se em diferentes sentidos, dependendo do olhar e do espírito de quem a lê. Por outro lado, lembremos que poesia é palavra, como disse Cassiano Ricardo: Que é a Poesia? Uma ilha cercada de palavras por todos os lados. 102
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Mas não é só palavra. Poesia é também imagem e som. As palavras são signos que expressam emoções, sensações e ideias por meio de imagens (símbolos, metáfora, alegorias) e de sonoridade (rimas, ritmos). É, pois, um jogo de palavras, e este é o principal fator de atração que as crianças têm pela poesia transformada em canto (as cantigas de ninar, cantigas de roda, lenga-lengas) ou pela poesia ouvida ou lida em voz alta, que lhes provoca emoções, sensações e impressões, numa interação lúdica e gratificante. O jogo poético, além de estimular o “olhar de descoberta” nas crianças, atua sobre todos os seus sentidos, despertando um sem-número de sensações: visuais (imagens plásticas, coloridas, acromáticas etc.); auditivas (sonoridade, música, ruídos); gustativas (paladar); olfativas (perfumes, cheiros); tácteis (maciez, aspereza, relevo, textura); de pressão (sensações de peso ou de leveza); termais (temperatura, calor ou frio); comportamentais (dinâmicas, estáticas). É óbvio que, num só poema, dificilmente todas essas sensações são provocadas ao mesmo tempo, pois cada um deles apresenta determinados tipos de transfiguração imagística, que tem seu modo peculiar de atuar no pequeno leitor ou ouvinte. Se partirmos do princípio de que, hoje, a educação da criança visa basicamente levá-Ia a descobrir a realidade que a circunda, a ver realmente as coisas e os seres com que ela convive, a ter consciência de si mesma e do meio em que está situada (social e geograficamente), a enriquecer sua intuição daquilo que está para além das aparências e ensiná-la a se comunicar eficazmente com os outros, a linguagem poética destaca-se como um dos mais adequados instrumentos didáticos. É nesse sentido que cabe àqueles a quem está entregue a orientação da infância prepararem-se para extrair desse instrumento suas mil virtualidades.
A POESIA E SEUS MEDIADORES A poesia destinada às crianças (ou aos imaturos em geral) deve ser breve, ter versos curtos, ritmos e rimas que toquem de imediato sua sensibilidade, sua curiosidade ou suas sensações. E, de preferência, que tenha um conteúdo narrativo, isto é, que expresse uma situação interessante. Como objeto de exploração na escola (ou para o grande público), a poesia pode ter certos mediadores que facilitam sua plena fruição. Referimo-nos à poesia-espetáculo (cujos mediadores são a voz do artista, suas posturas, seus trajes; o espaço cênico; a ambientação musical; as luzes etc.) ou à poesiacanto, isto é, veiculada pela música. É exatamente essa peculiaridade da poesia (necessitar de mediadores para atingir o leitor não iniciado) que nos leva a pensar nos elementos essenciais a um texto poético que se queira aceito e amado pelas crianças. Uma excelente introdução ao texto seriam atividades com canto e música. Daí a validade das brincadeiras de roda e as cirandas como alegre estímulo à sensibilidade perceptiva dos pequenos.
A RUPTURA MODERNISTA E A POESIA INFANTIL: A DEFASAGEM ENTRE UMA E OUTRA A ruptura modernista com os padrões literários tradicionais não chegou a atingir a poesia para crianças até o início dos anos 1960.
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Lembremo-nos de que o único modernista que surgiu na literatura infantil nos anos 1920 foi Monteiro Lobato, e no âmbito da prosa narrativa. Os poucos poemas que apareceram em coletâneas ou livros escolares dos anos de 1920 a 1950 repetiam os poetas do passado ou expressavam as “saudades da infância”, manifestadas pelos adultos, como Hermes Fontes em “A fonte da mata” (1926): Depois de longa ausência e penosa distância, vi a fonte da mata, de cuja água bebi, na minha infância. E que melancolia nessa emoção tão grata! Ver constância das coisas, na inconstância, ver que a Poesia é uma segunda infância e que toda a Poesia vem da fonte da mata.
Apesar da verdade contida nesse poema, ele está longe de poder atrair ou envolver o pequeno leitor, pois se nutre de uma vivência adulta, amadurecida pelos anos (e, portanto, distante da experiência infantil). Com raras exceções, é a essa esfera adulta que pertence a maioria das poesias que se ofereciam aos pequenos na primeira metade do século XX, em clara continuidade do pensamento tradicional. Entre as exceções, está o poemeto de Maria Eugênia Celso, escrito em 1924: Bolinhas de gude Brancas, verdes, rajadinhas, Amarelas, As bolinhas Vão rodando Vão dançando Seja liso ou rude O chão onde vão rolando Lá vão elas, lá vão elas... As bolinhas de gude... [...] E tão vivas, tão ligeiras, tão alegres e Estouvadas Que até fica parecendo Que são elas As bolinhas Que com eles estão brincando.
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Além do ludismo característico da poesia modernista, bem sintonizado com os impulsos infantis, há nesse poemeto a disposição gráfica das palavras na folha, imitando o espalhar das bolinhas, e também uma inversão de fatores, provocada por uma nova maneira de ver, que contraria a lógica tradicional: em lugar de as crianças brincarem com as bolinhas, são estas que parecem brincar com aquelas. Uma pequena inversão de postura que representa uma grande mudança nas relações comuns entre os homens e as coisas. Há aí uma “desordem” de raiz modernista. Lembremos que o mundo tradicional começou a afundar, oficialmente, nos anos 1910, quando teve início a eclosão dos “ismos” (Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo). Por diferentes que fossem entre si, essas manifestações vanguardistas tinham em comum a fragmentação, ou melhor, a intenção de romper com a ordem tradicional, que estabelecia de maneira absoluta a natureza das relações entre os homens e o mundo. A lógica consagrada pela sociedade era o grande alvo visado pelo ímpeto demolidor do Modernismo. A poesia, rompendo com os esquemas tradicionais e sua linguagem lógica, tornou-se lúdica, irreverente e fragmentada. Em lugar de manipular conceitos (como antes), a poesia explorava as virtualidades da matéria verbal: a sonoridade e o ritmo das palavras soltas. Por isso, em geral, os breves poemas modernistas agradam os ouvidos infantis. Mais do que a significação dos vocábulos, importa seu dinamismo lúdico, a brincadeira com as coisas, como no poemeto de Manuel Bandeira: Trem de ferro Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isto maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça [...]
É um poema/canto jocoso que explora a onomatopeia como estrutura básica e se desenvolve em torno de uma necessidade básica da criança (a alimentação), combinada com uma situação de prazer (a viagem), e cuja comunicação com o leitor é intensificada pelo diálogo entre o poeta e o leitor/ ouvinte.
MODERNISMO E ENSINO As mudanças de perspectivas provocadas pelo Modernismo não se difundiram na literatura (para crianças ou adultos) da noite para o dia. Levaram anos. Tais mudanças, para serem absorvidas pela prática, exigiam também que o sistema de educação e ensino as absorvesse. Lembremos que, nessa época (anos 1920), já se multiplicavam, na Europa, as experiências com novos métodos de ensino (Pestalozzi, Montessori, Froebel etc.), a chamada Escola Nova; mas ainda não haviam sido absorvidos pelos sistemas oficiais de cada país. As modificações das leis são lentas e exigem luta paciente e obstinada. No Brasil, a primeira tentativa de escola experimental surgiu em 1897, no Rio de Janeiro, com a Pedagogium. Em 1914, foi criado o primeiro “Laboratório de Pedagogia Experimental” na Escola Normal de São Paulo. 105
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É importante atentarmos para o fato de que as mudanças de mentalidade ou de maneiras de ver o mundo (como as exigidas pela nossa época) são muito lentas, demandam tempo para serem vivenciadas. Entre nós, longos anos se passaram para que projetos de lei (que atravessaram vários governos) conseguissem ser aprovados, a fim de se concretizarem mudanças nos currículos do ensino. Só nos anos 1960, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 4.024/1961, mais tarde regulamentada pela Lei nº 5.692/1971, é que o uso de textos literários se tornaram obrigatórios para o ensino da Língua Portuguesa (ou Comunicação e Expressão) nas escolas. Essa legislação foi decisiva, pois obrigou a introdução da Literatura nos estudos da língua, comunicação e expressão. Claro está que sobreveio um novo caos: o sistema escolar vigente não estava preparado para isso. A produção literária para crianças nesse período pós-lobatiano (anos 1930 a 1960) foi muito desigual: ao lado de tentativas de sintonização com o novo, permanecia o tradicional, “camuflado” de novo (sintaxe linguística moderna e conteúdo tradicional ou exemplar, como é o caso da volumosa obra de Vicente Guimarães “O vovô Felício”, uma das que mais sucesso fez nos anos de 1937 a 1960). No âmbito da poesia, destaca-se, a nosso ver, uma única experiência que pode ser considerada moderna nessa época: “A Festa das Letras” (1937), texto de Cecília Meireles e de Josué de Castro (médico, eminente especialista em alimentação), com coloridos desenhos de João Fahrion. Foi o primeiro volume da série “Alimentação”, coletânea de poesias infantis (segue a ordem alfabética das letras) que fazia parte de uma campanha nacional de esclarecimentos sobre a importância da alimentação e da criação de hábitos salutares, indispensáveis à formação de uma infância forte, inteligente e feliz. As características modernas estão evidentes: situação atraente, ludismo, graça, ritmo ágil, reiteração de fonemas em eco ou de vocábulos básicos (bom, bem, brincalhão); estímulo à convivência, à interação da criança com os hábitos de higiene (banho), com a alimentação como prazer (brincadeira com o “b” de batatinha etc.); sintaxe dialogante; predomínio dos sinais de pontuação emotiva (? ! – :), que apelam mais para os impulsos afetivos do que para os racionais da pontuação lógica (. , ; “ “ ( ) []). Ligada ao magistério e atenta aos problemas educacionais, Cecília Meireles (uma das grandes vozes poéticas dos anos 1920 e 1930) começou a escrever poemas infantis, divulgando-os na imprensa; mais tarde, foram incluídos em antologias e manuais escolares, como é o caso de: “A canção dos tamanquinhos” (1934): Troc... troc... troc... troc... ligeirinhos, ligeirinhos, troc... troc... troc... troc... vão cantando os tamanquinhos. Madrugada. Troc... troc... pelas portas dos vizinhos vão batendo, troc... troc... vão cantando os tamanquinhos. Chove. Troc... troc... troc... no silêncio dos caminhos alagados, troc... troc... vão cantando os tamanquinhos. 106
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E até mesmo, troc... troc... os que têm sedas e arminhos, sonham, troc... troc... troc... com seu par de tamanquinhos.
Singela canção que, por meio de onomatopeias e rimas finais e internas, registra uma situação pitoresca para as crianças de hoje; e lembra aos adultos (crianças de ontem) um acontecer diário e gratificante que fazia parte dos costumes de outrora: o soar, nas pedras da calçada, dos tamancos usados pelos leiteiros e padeiros que madrugavam para deixar o leite e o pão quentinho nos portões das casas. Os últimos quatro versos resultam também de uma verdade da qual somos testemunhas: como a poeta, qualquer menina daqueles anos também sonhava em ter um “par de tamanquinhos”, cujo som amigo nos acordava todas as manhãs. Seria curioso saber como as crianças de hoje interpretariam essa alegre canção, uma vez que ignoram a situação da qual ela se originou.
POESIA INFANTIL A PARTIR DOS ANOS 1960 As primeiras vozes que, nos anos 1960, prepararam caminho para o chamado boom da literatura infantil nos anos 1970 se fizeram ouvir na área da poesia. A nova poesia infantil descobriu a palavra como um jogo, uma brincadeira com a fala, com a pura sonoridade (ritmo, cadência, onomatopeias, aliterações, refrões, paralelismos, trava-línguas etc.), numa linha de criação que resgata o encantatório das antigas cantigas de ninar, cantigas de roda, parlendas e lenga-lengas presentes no folclore do mundo todo. Essa nova poesia infantil tem como um de seus marcos históricos a Editora Giroflê-Girafa, fundada em São Paulo, em 1960, exclusivamente dedicada à literatura para crianças. Seu fundador foi Sidônio Muralha (1929-1982), poeta português e exilado salazarista que, depois de percorrer as “sete partidas do mundo”, radicou-se no Brasil, inicialmente em São Paulo e, posteriormente, em Curitiba, onde deixou semente, hoje transformada na Fundação Sidônio Muralha (dirigida por sua viúva, Dr.a Helen Bühler Muralha) – verdadeiro centro de irradiação de cultura inteiramente dedicado às crianças e aos jovens. O volume inaugural da Coleção Giroflê-Girafa, “A televisão da bicharada”, de Sidônio Muralha, conquistou o 1º Prêmio da II Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
“A TELEVISÃO DA BICHARADA” (1962) Original já pelo formato, “A televisão da bicharada” apresenta-se como álbum de figuras de forma alongada (talvez por analogia ao pescoço da Girafa), com capa dura, folhas grossas e fortemente coloridas, tipos grandes e nítidos que, inteligentemente diagramados, formam um todo orgânico e atraente aos olhos infantis devido aos pitorescos desenhos de Fernando Lemos. Escolhendo ao acaso, ouçamos esta divertida “conversa” entre dois tatus: Quando um tatu encontra outro tatu tratam-se por tu: – Como estás tu, tatu? – Eu estou bem e tu, tatu? Essa conversa gaguejada ainda é mais engraçada: – Como estás tu, ta-ta, ta-ta, tatu?
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– Eu estou bem e tu ta-ta, ta-ta, tatu? Digo isto para brincar pois nunca vi um ta, ta-ta, tatu gaguejar.
Jogando com aliterações, onomatopeias, assonâncias, consonâncias ou reiterações rítmicas das mais variadas, é sempre da camada sonora que o poeta extrai o maior interesse do motivo central e cria o enovelamento de graça, ridículo, pitoresco e inesperado que provoca a interação do leitor/ouvinte com o texto. Embora de vida curta, a Giroflê-Girafa marcou seu pioneirismo com uma dezena de títulos de poesia para crianças assinados por nomes como Cecília Meireles, Maria Bonomi, Gerda Brentano, Fernando Lemos, Fernando Correa da Silva e outros.
“OU ISTO OU AQUILO” (1964) Outro marco deixado por essa iniciativa editorial quixotesca é o livro de Cecília Meireles “Ou isto ou aquilo” (ilustrado por Maria Bonomi), em cujos lúdicos poemas a arte maior da poeta ilumina (para crianças ou adultos) novas maneiras de ver as coisas mais simples do cotidiano, descobrindo, ainda, novas relações entre os seres e as coisas. Exemplifiquemos com dois poemas: “O colar de Carolina” e “Ou isto ou aquilo”, que dá titulo à coletânea. Em “O Colar de Carolina”, fixa-se um momento de alegre liberdade da menina com o colar de coral correndo numa colina, ao ar livre, sob o sol. Com seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da colina. O colar de Carolina cobre o colo de cal, torna corada a menina. E o sol, vendo aquela cor do colar de Carolina, põe coroas de coral nas colunas da colina.
O jogo poético se constrói com a relação dinâmica entre a cor avermelhada do coral, do sol e das faces coradas da menina – elementos diferentes, mas que se inter-relacionam por meio do “vermelho”, que metaforiza a vitalidade da situação enfocada. Há, nesse poema, uma correspondência essencial entre matéria sonora e matéria semântica. O jogo som/ritmo surge de uma sucessão de fonemas semelhantes ou discordantes entre si que obedecem a uma ordem interior e essencial. A redondilha maior dá a estrutura básica dos versos e torna-se mais ágil devido à alternância com métricas menores. As rimas, libertas de esquemas preestabelecidos, percorrem livremente o poema, tal como a menina na colina sob o sol. Claro está que o pequeno leitor ou ouvinte não perceberá esses pequenos/grandes detalhes estilísticos (e nem lhe interessará!), mas a nós, adultos, cabe saber que é devido a tais detalhes que a sua leitura, recitação ou cantarolar seduzem os leitores e propõem uma experiência vital diferente das brincadeiras comuns. A poesia (ou a arte em geral) é um jogo que enriquece interiormente aqueles que a ele se entregam.
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Da mesma forma, o poema “Ou isto ou aquilo” propõe uma nova maneira de ver ou perceber algo que é comuníssimo no dia a dia de qualquer um de nós: a necessidade de escolha, ou o convívio com as oposições: Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. Uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares! Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro. Ou isto ou aquilo! Ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo! Mas não consegui entender ainda qual é melhor se isto ou aquilo.
Nessas contínuas oposições, o jogo poético, ao realçar para o leitor as diversas opções que a vida nos exige, transmite-lhe uma importante lição de vida: toda escolha que dependa de nós deve ser bem pensada, pois sempre acarreta o abandono ou a desistência de outra. Esse é um dos segredos da vida (e que a literatura nos ensina): conseguirmos escolher o mais acertado dentro das circunstâncias que nos cabe viver.
ARCA DE NOÉ (1971) Um dos livros de poesia para crianças que fez grande sucesso nos anos 1970 foi a “Arca de Noé”, de Vinicius de Moraes. Inclusive foi transformado num belíssimo show de formas, ritmos, cores e danças com o qual a TV Globo homenageou o poeta logo após a sua morte, em 1980. Desse livro, reproduzimos: O Pato Lá vem o Pato Pata aqui, pata acolá Lá vem o Pato Para ver o que é que há. O Pato pateta Pintou o caneco Surrou a galinha Bateu no marreco Pulou no poleiro No pé do cavalo Levou um coice Criou um galo Comeu um pedaço
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De jenipapo Ficou engasgado Com dor no papo Caiu no poço Quebrou a tigela Tantas fez o moço Que foi pra panela.
Nesse e nos demais poemetos de “Arca de Noé”, o dinamismo poético é provocado pelo humor, pela brincadeira com as palavras, os sons e os ritmos ou, ainda, pelo nonsense – conjunto de qualidades que, para além de divertir o leitor/ouvinte com as inesperadas situações criadas (como as do “Pato pateta”), desperta-o para as mil possíveis correlações entre os sons e pode estimulá-lo a inventar outras tantas por si mesmo.
“PÉ DE PILÃO” (1976) Outro grande poeta que fez sucesso escrevendo para crianças foi o gaúcho Mário Quintana, com seus poemas narrativos, como os de “Pé de pilão”: O pato ganhou sapato, Foi logo tirar retrato. O macaco retratista Era mesmo um grande artista. Disse ao pato: “Não se mexa Para depois não ter queixa”. E o pato, duro e sem graça Como se fosse de massa! “Olhe pra cá direitinho: Vai sair um passarinho.” O passarinho saiu, Bicho assim nunca se viu. Com três penas no topete E no rabo apenas sete.
E a narrativa poética vai se desdobrando em outros inesperados acontecimentos que saem uns dos outros como de uma caixa de surpresas. Estruturado em dísticos (estrofes de dois versos), versos redondilhos (sete sílabas) e em rimas binárias (aa, bb, cc), o fluxo poético se forma de lembranças de velhas histórias, tropelias de animais, situações absurdas e engraçadas, feitiçarias ou milagres de Nossa Senhora, tudo resultando num jogo divertido que atrai e estimula a imaginação criativa do leitor/ouvinte. Os coloridos desenhos de Edgar Koetz, interagindo com o pitoresco e o dinamismo do texto, concorrem para que todos os sentidos da criança sejam estimulados para uma apreensão global do mundo ali representado (de maneira visual, auditiva, gestual ou rítmica e conceptual).
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A POESIA COMO DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO – A ECLOSÃO CRIATIVA DOS ANOS 1970 E 1980 Os poetas que surgiram nos anos 1960 (tentando criar, em poesia, novos modos de ver e de dizer o novo mundo em formação) abriram caminho para a explosão de criatividade que aconteceu nos anos 1970 e 1980 na área da literatura para crianças. É importante notar que a poesia que surgiu no Modernismo do início do século XX como desconstrução do mundo antigo e como tentativa de construção de uma nova forma de ver e de dizer, mas só na segunda metade desse século alcançou a poesia para crianças. Isso se deu não por falta de talento, arte e criatividade por parte daqueles que se sentem atraídos por essa difícil arte para crianças, mas sim por razões extraliterárias. A verdade que a história nos ensina é que, só depois que as novas ideias, os valores e os comportamentos se impõem nos adultos como “verdade” vivenciada, esse “novo” consegue ser expresso em linguagem lúdica e acessível às crianças ou às mentes imaturas intelectualmente. Então, cerca de 50 anos se passaram para que o novo germinado no Modernismo do início do século pudesse brotar na literatura infantil por meio de uma nova linguagem verbal e visual, lúdica, atraente e acessível aos pequenos. Além disso, é preciso lembrar que este fenômeno atinge não só a literatura (ou a arte) destinada aos pequenos, mas também o sistema de ensino. São, essas duas esferas – a da criação literária para crianças e a do ensino –, as últimas a serem atingidas pelas mudanças trazidas pelo tempo. Por quê? Simplesmente porque, por natureza, elas representam a cúpula do edifício social. Representam a síntese das ideias e dos valores que constituem a sociedade e que precisam ser transmitidos às novas gerações que lhe devem dar continuidade. É dentro desse contexto histórico-cultural que podemos entender o percurso seguido pela poesia destinada às crianças e também o paradoxo atualmente vivido não só pela literatura infantil/juvenil, mas também pela escola: ambas, ao mesmo tempo, estão sendo forçadas a ser sementes e sínteses do “novo”; ou, em outras palavras, têm de servir de alicerce para uma nova maneira de ver, pensar e agir e, simultaneamente, ser a cúpula ou a síntese provisória do novo sistema em gestação. É esse, pois, o grande desafio da educação neste início do terceiro milênio. Tal como aconteceu no âmbito da literatura, só nos anos 1960 o nosso sistema curricular começou a ser oficialmente alterado e, na prática escolar, diferentes métodos começaram a ser experimentados, embora ainda de maneira caótica. Até hoje, como sabemos, predomina o desnorteamento metodológico e didático, muito embora já se multipliquem visivelmente os pequenos grupos, em escolas e faculdades, que já estão chegando a sistematizações e estratégias de orientação e ensino altamente positivas. Dentro dessa perspectiva e voltando à poesia infantil, compreende-se que, naquele início dos anos 1920, só tenha havido um modernista na seara literária para crianças: o gênio de Monteiro Lobato, que, encarnando o novo ou o libertário em uma boneca (e em outros seres imaginários, e não em crianças “reais”, como Narizinho, Pedrinho etc.), soube infiltrar a semente da mudança sem ferir frontalmente ou escandalizar os costumes vigentes – aqueles que cabia à escola preservar e defender. O fato é que o referido boom da literatura infantil veio provar um importante fenômeno: os novos valores, as novas ideias ou os comportamentos que começaram a se impor, no início do século XX, já estavam sendo incorporados por todos; já haviam invadido o domínio público por meio da publicidade, de novelas de TV, filmes, teatro, canções e, portanto, já estavam alcançando o povo em geral, embora de maneira caótica. A partir daí, puderam se manifestar na literatura e na poesia para crianças em uma linguagem verbal e imagística perfeitamente acessível. 111
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A POESIA PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO INÍCIO DO TERCEIRO MILÊNIO São múltiplos os caminhos e as intenções que podem ser detectados na produção poética infantil e juvenil dos anos 1970 a 1990. Apesar de sua diversidade de temas, sonoridades, ritmos etc., há algo de comum em sua variada manifestação: a valorização da poesia como um modo de ver o mundo e um caminho para a autodescoberta do “eu” em relação ao “tu” (ao outro) com o qual se deve conviver para que a vida se cumpra em plenitude. A poeta portuguesa Maria Alberta Meneres definiu bem esse “algo comum” ao registrar em livro as “experiências poéticas” feitas por seus alunos (cujas idades iam dos 9 aos 12 anos). Diz ela: O poeta faz-se aos 10 anos (1973) [...] poesia é a beleza e o sentido das coisas e de nós próprios. É uma maneira de olhar o mundo. É uma forma de atenção a tudo. Ela pode estar em toda parte: nós, às vezes, é que não estamos atentos a ela, só porque passamos por ela, distraídos. E outras vezes estamos atentos e a encontramos [...] mas não a sabemos escrever. Encontrá-Ia já é maravilhoso. E escrevê-Ia? Que difícil é o caminho da escrita! Tentar ir à raiz das coisas. Fugir do repetido, do habitual, do “já sabido”. [...] É preciso sentir alegria de escrever.
É esse estado de espírito, incentivado pela poeta (“sentir a alegria de escrever”), que encontramos no melhor de nossa atual poesia para crianças e jovens. Lembremos o poema “Convite”, de José Paulo Paes, em seu livro “Poemas para brincar”, de 1990: Convite Poesia é brincar com palavras como se brinca com bola, papagaio, pião. Só que bola, papagaio, pião de tanto brincar se gastam. As palavras não: quanto mais se brinca com elas mais novas ficam. Como a água do rio que é água sempre nova. Como cada dia que é sempre um novo dia. Vamos brincar de poesia?
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HISTÓRIAS EM QUADRINHOS As histórias em quadrinhos são tão válidas quanto os livros de figuras como processo de leitura acessível ou adequado às crianças com menos idade. O interesse das crianças pelas histórias e o prazer que demonstram ao ouvi-Ias ou lê-las são os sintomas de que tal ato, mais do que simplesmente divertir, satisfaz a uma necessidade interior e instintiva: a necessidade do crescimento mental, inerente ao ser em desenvolvimento. Tal como o prazer da movimentação incessante dos jogos ou correrias sem finalidade aparente, tão naturais na infância, resulta da necessidade instintiva do crescimento orgânico. Da mesma forma, o interesse maior que as crianças demonstram pelos livros ilustrados ou, mais ainda, pelas histórias em quadrinhos está na facilidade com que esse tipo de literatura “fala” à mente infantil; ou melhor, atende diretamente à natureza ou às necessidades específicas da criança. Como dissemos anteriormente, as imagens no livro infantil são essenciais no processo de comunicação da mensagem para o leitor, pois atingem direta e plenamente o pensamento intuitivo, sincrético e globalizador que é característico da infância. O fascínio da meninada pelas histórias em quadrinhos não resulta apenas do fato de gostarem desse tipo de literatura “fácil”, mas porque essa literatura corresponde a um processo de comunicação que atende mais facilmente à sua própria predisposição psicológica (o fato de grande número de adolescentes ou adultos continuarem presos a esse único tipo de leitura indica a precariedade do amadurecimento cultural do homem contemporâneo em geral – embora amadurecido organicamente e bem informado dos fatos do dia a dia, permanece psicologicamente imaturo). Quanto à reiterada acusação dos malefícios que podem ser causados pela leitura de histórias em quadrinhos sobre as mentes infantis, seria preciso uma nova reflexão que distinguisse o processo de leitura proporcionado pelos quadrinhos e o conteúdo que é veiculado pela grande massa dessa literatura (a maior parte, realmente, negativa). Como processo, a literatura em quadrinhos oferece uma grande riqueza de propostas para serem exploradas em proveito das crianças. Como conteúdo, as revistas, os jornais, os suplementos etc., que circulam pelo nosso mercado, precisariam passar por uma rigorosa seleção feita pelos adultos a quem cabe a orientação infantil. Da mesma forma, se analisarmos as justas queixas que vêm sendo feitas contra a “cultura selvagem” difundida pelos vários meios de comunicação de massa, veremos que o mal não está nos meios ou nos processos, mas naquilo que é comunicado por meio deles. Daí a urgência da criação de novas mensagens para um aproveitamento mais positivo dos meios em questão. Claro que essa renovação não é fácil. Há muito está sendo buscada, mas ainda permanecem vários obstáculos barrando o caminho à sua divulgação. No Brasil, embora ainda predomine a produção estrangeira de história em quadrinhos, já existe uma tradição que arraiga no famoso “O tico-tico”, lançado em 1905, com as aventuras do ingênuo/travesso Chiquinho, versão brasileira (criada por J. Carvalho, grande desenhista da época) da personagem Buster Brown, um garoto crítico e contestador criado nos Estados Unidos, em 1902, pelo famoso cartunista Outcault (Richard Felton), que, em 1895, criara o Yellow Kid, dando início ao gênero que seria um dos mais populares no mundo todo: a história em quadrinhos.
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Nesse contexto, cresce em importância o terreno conquistado pela arte dos quadrinhos de Mauricio de Sousa. Conforme diz Álvaro Moya: Hoje, praticamente, a luta pela história em quadrinhos brasileira está sobre os ombros de um jovem que, desde 1961, distribui nos jornais de todo o País, inclusive editando suplementos dominicais coloridos completos, com personagens seus. Trata-se de Mauricio de Sousa, ou, mais precisamente, Mauricio de Sousa Produções Ltda. É ele o único desenhista que vive de quadrinhos, pois os outros são publicitários, ilustradores, professores e também desenhistas em quadrinhos... (Shazam!).
Problema complexo e dependente de uma complicada política econômica, a literatura em quadrinhos extrapola o literário ou o lúdico para adentrar no ideológico e no ético. Esse é o perigo, apontado por estudiosos dessa massa de produção estrangeira, que invade o nosso país e “alimenta” o brasileiro: poderá ela descaracterizar o nacional? Pergunta que só poderá ser respondida a longo prazo. Atuante profissional como jornalista, Mauricio de Sousa, em 1960,resolveu lançar-se na grande aventura das histórias em quadrinhos. Em 1963, já dirigia uma pequena equipe de desenhistas e iniciava a criação de novos personagens no “Diário da Noite”: Chico Bento, Penadinho, Astronauta e Bola Bola. Esses mais o Bidu, o Franjinha, o Cebolinha, o Piteco e a Turma da Mata já existiam, quando, em 1964, Mauricio criou a principal figura de seu mundo infantil, Mônica. Daí para o sucesso total foi um passo. Mauricio conseguiu unir sua criatividade à indispensável engrenagem industrial/publicitária e comercial. Em 1966, a distribuidora Mauricio de Sousa Produções Ltda. alcançou jornais de todo o Brasil com tiras e tabloides de suas personagens e entrou no largo âmbito do merchandising (dezenas de indústrias lançaram produtos infantis com a Turma da Mônica). Em 1970, por meio da Editora Abril, Mauricio de Sousa lançou a revista “Mônica”, e seu sucesso transpôs as fronteiras do país. No Congresso Internacional de Lucca, na Itália, em 1971, “Mônica” deu o troféu Gran Guinigi à Editora Abril e o troféu Yellow Kid ao seu criador – o prêmio máximo do Congresso, uma espécie de Oscar dos quadrinhos. “A Turma da Mônica” tornou-se a mais famosa e bem-sucedida família de personagens de histórias em quadrinhos do Brasil; e a distribuição nacional da Mauricio de Sousa Produções Ltda. chegou a 2.500 tiras, 800 tabloides e o suplemento em cores “Jornalzinho da Mônica”, sem contar as inúmeras revistas especiais. Após a revistinha “Mônica”, seguiu a do “Cebolinha” (1973), também resultando em sucesso editorial. Em 1977, surgiu “Pelezinho”. Essas três revistas, de nível internacional, atingiram tiragens de quase um milhão de exemplares mensais. A filosofia das histórias criadas por Mauricio é a de divertir, entreter e, na medida do possível, transmitir às crianças (e aos adultos) mensagens de otimismo. Seus personagens não são neuróticos; eles tentam resolver seus próprios problemas. Seu estilo de desenho é simples, coerente com o tipo de narrativa que faz para o consumo diário. Os leitores de histórias em quadrinhos querem entendê-las num relance e sem grande esforço. Arabescos, enfeites de fundos e detalhes em demasia dificultam essa visão imediata. Enraizados na realidade da vida e do cotidiano, seus bonecos são “gente”. Identificam-se com as pessoas, retratam a vida no seu dia a dia. A conversação dos personagens é popular. Os elementos do dia a dia – comer, dormir, ter emoções boas ou más, sentir amor ou raiva – são ingredientes universais.
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Logo, o que vale para o Chico Bento, vale para o mundo. O que se pretende é exportar esse espírito alegre e comunicativo do brasileiro para o mundo todo. E a mensagem universal das histórias criadas por Mauricio é incontestável, mas não nasceu por acaso; veio de anos de estudo, planos, trabalho e, principalmente, da sensibilidade de um artista que pretendeu e pretende projetar para além das barreiras sociais, ideológicas e geográficas a sua mensagem alegre, otimista e confiante no futuro e nos homens. A mensagem é dirigida ao público leitor mais exigente do mundo: a criança. Enfim, pode-se dizer que, no Brasil, o fenômeno história em quadrinhos em termos nacionais apenas começou. E, talvez mais cedo do que imaginamos, possamos resolver os grandes problemas de editoração e mercado que ele envolve e principalmente resolver o que aqui nos interessa mais de perto: a descoberta da literatura para os pequenos leitores como prazer e como elemento formador de seu espírito ou consciência de mundo.
QUINO Joaquín Salvador Lavado Tejón, mais conhecido como Quino, é um pensador, historiador gráfico e criador de história em quadrinhos. Filho de imigrantes espanhóis da Andaluzia, nasceu em 1932 na província de Mendoza, na Argentina. Desde cedo foi chamado pelos familiares pelo apelido com que é conhecido – Quino – para diferenciá-lo do tio homônimo, desenhista, com quem, já aos três anos de idade, aprendeu o gosto pela arte. Em 1945 perdeu a mãe e, em 1948, o pai. No ano seguinte, abandonou a Faculdade de Belas Artes com a intenção de se tornar um autor de quadrinhos, e logo vendeu o seu primeiro desenho animado, um anúncio de uma loja de seda. Tentou encontrar trabalho no Editorial Buenos Aires, mas não conseguiu. Depois de fazer o serviço militar obrigatório em 1954, estabeleceu-se em Buenos Aires em condições precárias. Por fim, publicou a sua primeira página no humor semanal: “Isto é!”. Seguiram-se outras editoras: TV Guide, Ver e Ler Damas y Damitas’, Usted, Panorama, Adam, Atlântida, Che, no jornal “Democracia” etc. Em 1954, começou a publicar regularmente no Rico Tipo e no Tia Vicenta e Dr. Merengue. Logo depois, começou a tirar fotos de publicidade. Publicou as suas coleções primeiro no livro “Mundo Quino”, em 1963, e logo surgiram algumas encomendas para algumas páginas numa campanha de publicidade encoberta por Mansfield, uma empresa de eletrodomésticos. A primeira história de “Mafalda” foi publicada no Leoplán, e pouco depois as histórias passaram a ser publicadas regularmente no semanário “Front Page”, já que o editor do semanário era um amigo de Quino. Entre 1965 e 1967, foram publicadas no jornal “O Mundo”. Depois disso, publicou as primeiras coleções de livros da “Mafalda”, que começou a ser lançada na Itália, na Espanha (onde a censura o forçou a rotulá-la como “conteúdo para adultos”), em Portugal e outros países. Depois de pôr um fim à “Mafalda” em 25 de junho de 1973, segundo ele por as suas ideias estarem esgotando, Quino mudou-se para Milão, onde continuou a fazer as páginas de humor que o caracterizam. Em 2008, a cidade de Buenos Aires o imortalizou. Por iniciativa do Museu de Desenho e Ilustração e com curadoria de Mercedes Casanegra, em Buenos Aires, a empresa Subway realizou dois murais da sua personagem Mafalda na estação Peru, na histórica Plaza de Mayo. Isto irá assegurar o conhecimento do seu trabalho para as gerações futuras.
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Mafalda, uma menina questionando o mundo! A obra mais famosa de Quino é a “Mafalda”, publicada entre os anos 1954 e 1983. Editada em tiras nos jornais, “Mafalda” questionava todos os problemas políticos, de gênero e até científicos que afligiam sua alma infantil e, ao mesmo tempo, refletia o conflito que as pessoas da época enfrentavam, sobretudo com a progressiva mudança dos costumes e a já incipiente introdução da tecnologia no cotidiano. Apesar de ter sido interrompida ainda no começo dos anos 1970, “Mafalda” possui uma legião de fãs, e o trabalho de Quino ainda tem reconhecimento internacional como um dos maiores cartunistas do mundo.
ZIRALDO Ziraldo Alves Pinto nasceu em 24 de outubro de 1932, em Caratinga, Minas Gerais. Começou sua carreira nos anos 1950 em jornais e revistas de expressão, como “Jornal do Brasil”, “O Cruzeiro”, “Folha de Minas” etc. Além de pintor, é cartazista, jornalista, teatrólogo, chargista, caricaturista e escritor. A fama começou a vir nos anos 1960, com o lançamento da primeira revista em quadrinhos brasileira feita por um só autor: “A Turma do Pererê”. Durante a Ditadura Militar (1964-1984), fundou com outros humoristas “O Pasquim” – um jornal não conformista que fez escola e até hoje nos deixa saudades. Seus quadrinhos para adultos, especialmente “The Supermãe” e “Mineirinho – o Comequieto”, também contam com uma legião de admiradores. Em 1969 Ziraldo publicou o seu primeiro livro infantil, “FLICTS”, que conquistou fãs em todo o mundo. A partir de 1979, concentrou-se na produção de livros para crianças e, em 1980, lançou “O Menino Maluquinho”, um dos maiores fenômenos editoriais no Brasil de todos os tempos. O livro já foi adaptado com grande sucesso para teatro, quadrinhos, ópera infantil, videogame, internet e cinema. Uma sequência do filme deve ser lançada em breve. A partir de 1979, Ziraldo passou a dedicar mais tempo à sua antiga paixão: escrever histórias para crianças. Nesse ano, publicou “O Planeta Lilás”, um poema de amor ao livro, em que mostra que ele é maior que o Universo, pois cabe inteirinho dentro de suas páginas. Em 1980, Ziraldo recebeu sua maior consagração como autor infantil, na Bienal do Livro de São Paulo, com o lançamento de “O Menino Maluquinho”. Esse livro se transformou no maior sucesso editorial da feira e ganhou o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, em São Paulo. Foi adaptado para o teatro, o cinema e para a web e teve uma versão para ópera infantil, feita pelo maestro Ernani Aguiar. “O Menino Maluquinho” virou um verdadeiro símbolo do menino nacional. Em 1989, começaram a ser publicadas a revista e as tirinhas em quadrinhos desse personagem.
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AULA 6 - A LITERATURA INFANTOJUVENIL CONTEMPORÂNEA: POESIA E HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Em 1994, “O Menino Maluquinho”, o “Bichinho da maçã”, a “Turma do Pererê” e o próprio Saci-Pererê transformaram-se em selos comemorativos de Natal. Devido a essa homenagem dos Correios e Telégrafos ao artista, sua arte foi espalhada pelos quatro cantos do planeta, com votos de boas festas, feliz Natal e feliz ano-novo. Os trabalhos de Ziraldo já foram traduzidos para diversos idiomas, como inglês, espanhol, alemão, francês, italiano e basco, e representam o talento e o humor brasileiros no mundo. Estão até expostos em museu! Ziraldo ilustrou o primeiro livro infantil brasileiro com versão integral on-line, em uma iniciativa pioneira. Conheça mais detalhes sobre a sua biografia e visite a sua galeria de fotos! Por ter criado uma vasta obra na área da literatura infantojuvenil, Ziraldo foi convidado, em 2000, para montar um parque de diversões temático em Brasília. No Ziramundo, as crianças podem rodar dentro da panela do Menino Maluquinho e subir à Lua com o FLICTS. Em 2004, Ziraldo ganhou, com o livro “FLICTS”, o prêmio internacional Hans Christian Andersen. Sua arte faz parte do nosso cotidiano e pode ser identificada em logotipos famosos; ilustrações de livros e revistas; caixinhas de fósforos, que viraram itens de colecionador; cartazes da Feira da Providência (no Rio) e do Ministério da Educação; centenas de camisetas e símbolos de campanhas públicas ou privadas. Ziraldo está sempre envolvido em novos projetos. Conheça mais em: http://www.ziraldo.com.br.
MAURICIO DE SOUZA – PEQUENA BIOGRAFIA Mauricio de Sousa é desenhista e cartunista brasileiro. Criou a “Turma da Mônica” e vários outros personagens de história em quadrinhos. É membro da Academia Paulista de Letras, ocupando a cadeira nº 24. É também o mais famoso e premiado autor brasileiro em quadrinhos. Mauricio de Sousa nasceu em Santa Isabel, São Paulo, em 27 de outubro de 1935. Filho do poeta Antônio Mauricio de Sousa e da poetisa Petronilha Araújo de Sousa, passou parte de sua infância em Mogi das Cruzes, desenhando e rabiscando nos cadernos escolares. Mais tarde, passou a ilustrar pôsteres e cartazes para os comerciantes da região. Aos 19 anos, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou, durante cinco anos, no jornal “Folha da Manhã”, escrevendo reportagens policiais. Em 1959, quando ainda trabalhava como repórter policial, criou seu primeiro personagem, o cãozinho «Bidu». A partir de uma série de tiras em quadrinhos com «Bidu e Franjinha», publicadas semanalmente na “Folha da Manhã”, Mauricio de Sousa iniciou sua carreira. Nos anos seguintes, criou diversos personagens – Cebolinha, Piteco, Chico Bento, Penadinho, Horácio, Raposão, Astronauta etc. Em 1970, lançou a revista da «Mônica», com tiragem de 200 mil exemplares, pela Editora Abril. Em 1986, Mauricio saiu da Editora Abril e levou seus personagens para a Editora Globo. Em 1998, recebeu do então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, a medalha dos Direitos Humanos. Em 2006, saiu da Editora Globo e hoje está na Panini, uma multinacional italiana.
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Em 2007, Mônica foi homenageada com o título de «Embaixadora do Unicef». Pela primeira vez, um personagem de histórias infantis recebeu esse título. Na mesma cerimônia, Mauricio de Sousa foi homenageado «Escritor para Crianças do Unicef». Em 2008, o Ministério do Turismo nomeou Mônica «Embaixadora do Turismo Brasileiro». A publicação «Turma da Mônica Jovem», uma linha de personagens com 15 anos de idade, vendeu, em 2008, mais de um milhão e meio de exemplares dos quatro primeiros números da revista. Nas comemorações do centenário da Imigração Japonesa para o Brasil, Maurício criou os personagens «Tikara» e «Keika», que foram incorporados às histórias da “Turma da Mônica”. Hoje, entre quadrinhos e tiras de jornais, suas criações chegam a cerca de 30 países. O autor já chegou a 1 bilhão de revistas publicadas. Os quadrinhos se juntam a livros ilustrados, revistas de atividades, álbum de figurinhas, CD-ROMs, livros tridimensionais e livros em braile. Mais de 100 indústrias nacionais e internacionais são licenciadas para produzir quase 2.500 itens com os personagens de Mauricio de Sousa, entre jogos, brinquedos, roupas, calçados, decoração, papelaria, material escolar, alimentação, vídeos e DVDs, revistas e livros. Prêmios, títulos e homenagens » » Prêmio Gran Guinigi, pela revista Mônica (Itália, 1971). » » Troféu Yellow Kid, o Oscar dos Quadrinhos Mundiais (Itália, 1971). » » Prêmio de Literatura Infantil da ABL (Brasil, 1999). » » Doutor Honoris Causa da Universidade La Roche (Pittsburgh, 2001). » » Medalha do Vaticano (Washington, DC, 2004). » » Homenagem da Escola de Samba Unidos do Peruche (São Paulo, 2007). » » Medalha de Vermeil (França, 2008). » » Prêmio Pulcinella, pelo conjunto da obra (Itália, 2011).
As crônicas de Mauricio de Sousa De onde vem o que não existe? Eu tinha que “fechar” uma revista “Mônica”. E faltavam 13 páginas. Não tinha a grande equipe que tenho hoje para ajudar na produção das historietas. Eu, mesmo, tinha que escrever e desenhar boa parte das histórias em quadrinhos. Especialmente as de abertura. E as tais 13 páginas faltantes ficaram me martelando a cabeça durante todo o dia. Tinha uma viagem marcada para Porto Alegre na manhã seguinte. Compromisso inadiável. Mas o fechamento da revista também era inadiável. E o dia acabou sem que eu conseguisse me concentrar num bom tema para desenvolver. Resolvi sair um pouco dos estúdios e andar pelas ruas para espairecer. Naquele tempo, trabalhava num prédio ao lado do jornal Folha de São Paulo, na Alameda Barão de Limeira. Dali caminhei em direção à Avenida São João onde vasculhei bancas de jornal, espiei vitrines de lojas, tomei um lanche e entrei no cinema Metro para ver o filme que estivesse passando. Não importava qual. Queria relaxar um pouco. Às onze da noite retornei ao estúdio, sentei à prancheta e
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comecei a desenhar uma história, sem qualquer planejamento nem ideia pré-concebida. Os textos começaram a brotar juntamente com desenhos marcados pelo lápis em traços firmes e rápidos. A história fluía, o ritmo vinha correto, os desenhos eram rascunhados, num primeiro momento, para em seguida receberem o traço definitivo, uma espécie de arte-final ainda em lápis. Desenhei durante seis horas, sem me levantar da cadeira. Às cinco da manhã terminei o último quadrinho da página final. Só aí parei para contar quantas páginas havia produzido durante aquela compulsão: exatamente treze. Justamente o número que eu precisava para fechar a revista. Deixei as páginas sobre a mesa da secretária para as providências de finalização no estúdio e fui fazer as malas. A história produzida naquela noite – “Mônica e os Azuis” – é uma quase fábula que mexe veladamente com o tema da discriminação racial. Enquanto voava para Porto Alegre, pensava no estranho e maravilhoso processo criativo que tinha vivido para trazer à luz uma história já prontinha, bem elaborada, com começo, meio e fim, no tamanho certo e no prazo exato. E me lembrava, também, que toda semana esse processo se repetia quando sentava à prancheta para criar as histórias em quadrinhos do dinossaurinho Horácio. No caso do Horácio, as ideias vinham para preencher páginas semanais. Eu começava a desenhar sem pensar exatamente num tema, os quadrinhos se encadeavam num ritmo adequado e quando eu percebia, estava desenhando o último quadro da história exatamente no fim da página. Durante quase 30 anos exercitei essa brincadeira mágica de tirar Horácios do nada. Mas passaram pelo mesmo processo dezenas de histórias do Chico Bento, do Astronauta, do Cascão, do Bidu... Eu brincava, no estúdio, que fazia uma viagem no tempo, quando começava a criar. Entrava numa espécie de transe onde ia buscar uma história que já existia, no futuro. Era só captá-la. Antecipar sua existência. Mas naturalmente isso era uma explicação que não explicava nada. Remetia para o paranormal, para a psicografia. E não acredito, particularmente, nisso. Acredito, isso sim, num processo de libertação do espírito para criar a partir do conhecido e vivido. E tudo o que tinha visto, aprendido, assimilado, eu conseguia passar para o papel em fabulações bem-humoradas, num modelo onde também pesava a técnica, assimilada e dominada após tantos anos de leitura e de exercícios de criação. E a prova disso, pelo menos para mim, são os incontáveis rascunhos, esboços de histórias, de sinopses, que precisava elaborar nos primeiros tempos de desenhista de quadrinhos. Custava para encontrar a forma, o estilo, o jeito adequado para contar a história com ritmo correto. Mas a prática e a necessidade me empurraram para dominar a técnica e, em poucos anos, chegar à criação “espontânea”. Após essa fase, chega-se à fantástica situação em que não se duvida, mais, de nenhuma possibilidade criativa. Tudo pode ser imaginado, elaborado e passado adiante. Tanto nas histórias em quadrinhos quanto através de qualquer outro modo de comunicação. E eu vivo, neste momento, essa fase mágica. Inclusive quando sento à frente do micro para escrever estas crônicas. Sem pensar no que virá, sem planejar temas, sem me preocupar com a inspiração. Basta começar a digitar... Afinal, se eu me curvar à lenda, esta crônica já está publicada na semana que vem. É só ir buscar. Conheça mais crônicas do Mauricio em: http://www.monica.com.br/mauricio/cron1-50.htm.
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REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 2000. AGUIAR, Vera Teixeira; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2004. ZILBERMAN, Regina. A literatura Infantil na escola. São Paulo: Global, 2005.
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AULA 7 O contador de histórias INTRODUÇÃO
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esta unidade, falaremos da arte de contar histórias e do papel fundamental do contador, com o objetivo de analisar as tendências atuais da literatura infantojuvenil e estabelecer a sua relação com a alfabetização e a sua importância no processo de alfabetização da criança, de formação do leitor e de compreensão da realidade, propiciando a compreensão da relação entre subjetividade e linguagem. Não há quem resista a boas histórias. Nas páginas dos livros, dos jornais e das revistas, na tela do computador e na televisão, narradas presencialmente ou transmitidas pelo rádio, independentemente de onde e como aparecem, elas encantam, amedrontam, fazem rir ou chorar, assustam e são capazes de levar a lugares distantes, ainda que em pensamento, pessoas de qualquer idade, especialmente as crianças. Na pré-escola, elas fazem parte da rotina de duas maneiras: leitura e contação. Além de proporcionar aos pequenos o contato com o mundo dos livros, os momentos de leitura os levam a compreender que a escrita é uma maneira de fixar o texto. Afinal, todas as vezes em que se lê um conto de fadas ou uma fábula, por exemplo, a história é a mesma, está registrada. A contação, por sua vez, explicita o valor da cultura oral. Por serem transmitidas de geração para geração, sem um suporte concreto, as narrativas sofrem diversas transformações.
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Os saberes construídos e as habilidades desenvolvidas durante essas duas atividades não se encerram com esses exemplos. Tanto a contação quanto a leitura são um convite para explorar o mundo da ficção e a riqueza da linguagem literária. Ler e contar histórias, porém, não é a mesma coisa – embora possa parecer à primeira vista, principalmente se as atenções estiverem voltadas só para o enredo. As práticas têm particularidades no que diz respeito aos objetivos e à postura de quem apresenta a trama, por isso, cada uma delas pede comportamentos distintos tanto dos educadores como dos pequenos e ambos os grupos precisam estar cientes dessa necessidade. Contar histórias é uma arte. Por conseguinte, requer certa tendência inata, uma predisposição latente, aliás, em todo educador, em toda pessoa que se propõe a lidar com crianças. Além do conjunto de técnicas que a didática ensina, há determinadas qualidades que contribuem para a eclosão desse talento e que podem ser estimuladas, desenvolvidas. Em primeiro lugar, o contador precisa estar consciente de que a história é o importante. Ele é apenas o transmissor, conta o que aconteceu – e o faz com naturalidade, sem afetação, deixando as palavras fluírem. A naturalidade depende de segurança, e esta é adquirida por meio da certeza de que conhece a história, domina a técnica e está convenientemente preparado para contá-la. Contar com naturalidade implica ser simples, sem artificialismos. São também indispensáveis a sobriedade nos gestos e o equilíbrio na expressão corporal. Se o contador vivencia o enredo com interesse e entusiasmo, ele estabelece sintonia com o auditório. É necessário exercitar a criatividade para recriar o texto com originalidade, sem modificar a estrutura essencial. Um bom contador de histórias não pode proceder como se estivesse num palco, representando. Por isso, embora emocionalmente envolvido com a narrativa, sua postura vai influenciar muito: sempre no mesmo nível dos ouvintes, de preferência sentado. Um narrador não se agita, não se movimenta para um lado e para outro, senão as crianças não saberão a quem acompanhar – se a quem narra ou se aos personagens da história. As emoções se transmitem pela voz, principal instrumento do narrador. Há vários tipos de vozes: sussurrante, adocicada, suave, cálida, eriçada, espinhenta, metálica, sem vibrações, sem modulações, inertes, sem consistência, inexpressivas, monocórdicas.
DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE CONTAR HISTÓRIAS O narrador tem de expressar-se numa voz definida, inconfundível; tem de saber modulá-la de acordo com o que está contando, considerando alguns aspectos:
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Intensidade – O timbre de voz varia na razão direta da distância de quem fala a quem ouve e também conforme a emoção que se quer passar, juntamente com o ritmo, a inflexão e as entonações. É a voz que sugere o que aconteceu, ora mais forte, vibrante, intensa, ora mais pausada, suave, num tom mais baixo, que volta a crescer, sem jamais tornar-se estridente, irritante ou de falsete. Durante cursos de treinamento, algumas pessoas perguntam como se faz a voz do lobo ou do porquinho. E lobos falam? Nunca escutei a voz de um porco... O narrador conta o que o lobo disse ao porquinho e, sendo o lobo um animal de maior porte que assume na história um papel violento, o narrador engrossa a voz, tornando-a mais grave. Se o foco da narrativa gira em torno de crianças, flores, seres delicados, o narrado reveste-se de ternura, sem falsear a voz. Isto é muito importante: saber modular a voz e torná-la expressiva deverá constituir um treino constante para que ela possa ser utilizada em toda a sua plenitude. Clareza – Significa boa dicção, correção de linguagem, evitando repetições desnecessárias e os chamados «tiques» de linguagem, os cacoetes (“certo?”, “então”, “aí”, “entenderam?” etc.), defeitos que podem ser corrigidos com disciplina, exercícios e impostação de voz, recorrendo-se quando preciso aos cursos de foniatria. Conhecimentos – Evidentemente, o narrador precisa aprofundar-se nos estudos de literatura infantil e folclore e possuir noções básicas de psicologia evolutiva, para melhor escolher as histórias, apreciar os comentários das crianças e avaliar as suas reações. Entretanto, nada disso funciona se ele não gosta de crianças, se não se diverte tanto quanto elas com a história. Funciona, aí sim, quando é capaz de sentir que o ato de narrar é uma interação integral, de captar com sensibilidade a mensagem implícita na narrativa. Contar histórias é uma prática tão gratificante que chega a produzir no narrador uma catarse dos conflitos mais íntimos. Não apenas as crianças, mas também adultos podem descobrir numa história a solução de algum problema.
QUE HISTÓRIA CONTAR? Nem toda história vem, no livro, pronta para ser contada. A linguagem escrita, por mais simples e acessível, ainda requer a adaptação verbal que facilite sua compreensão e a torne mais dinâmica, mais comunicativa. Naturalmente, é necessário fazer uma seleção inicial, levando em conta, entre outros fatores, o ponto de vista literário, o interesse do ouvinte, sua faixa etária e suas condições socioeconômicas. Esse primeiro passo é o mais demorado, recomendando-se cuidado para evitar tropeços depois. Às vezes, leva-se algum tempo pesquisando em livros e revistas até se encontrar a história adequada à faixa etária e que atenda aos interesses dos ouvintes e ao objetivo específico que a ocasião requer. É preciso, também, considerar o estilo e o gosto pessoal do narrador. A história é o mesmo que um quadro artístico ou uma bonita peça musical: não poderemos descrevê-los ou executá-los bem se não os apreciarmos. Se a história não nos desperta a sensibilidade, a emoção, não iremos contá-la com sucesso. Primeiro, é preciso gostar dela e compreendê-la, para transmitir tudo isso ao ouvinte.
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INDICADORES QUE POSSIBILITAM A ESCOLHA Entre os vários indicadores que nos orientam na seleção da história, destaca-se o conhecimento dos interesses predominantes em cada faixa etária. Há publicações específicas sobre o assunto e as editoras costumam fornecer catálogos com tal indicação. Ao narrador, cumpre escolher tendo em vista, principalmente, a qualidade literária, mesmo quando se tratar de histórias de tradição popular. Uma história com o necessário tratamento literário difere da narrativa comum por subordinar-se a um princípio de seleção e organização que imprime graça à forma, obtendo o máximo de efeito estético com o mínimo de elementos. Antes de contar uma história, precisamos saber se se trata de assunto interessante, bem trabalhado e se é original, se demonstra riqueza de imaginação e se consegue agradar às crianças. A linguagem deve ser correta, de bom gosto, simples, sem ser vulgar nem rebuscada. Os recursos onomatopaicos e as repetições contribuem para tornar a história mais interessante e dão mais força às expressões. Geralmente, uma boa história agrada a todos. Ocorre, entretanto, que no caso de uma narrativa para crianças, é necessário respeitar-lhes as peculiaridades, sobretudo seu estágio emocional. A história é um alimento da imaginação da criança e precisa ser dosada conforme sua estrutura cerebral. Sabemos que o leite é um alimento indispensável ao crescimento sadio. No entanto, se oferecermos ao lactente leite deteriorado ou em quantidade excessiva, poderão ocorrer vômitos, diarreia e prejuízo da saúde. Feijão é excelente fonte de ferro, mas nem por isso iremos dar feijão a um bebê, pois fará mal a ele. Esperamos que cresça e seu organismo possa assimilar o alimento. A história também é assimilada de acordo com o desenvolvimento da criança e por um sistema muito mais delicado e especial. Então, o que contar, tendo em vista a quem contar?
FAIXA ETÁRIA E INTERESSES Pré-escolares Até três anos: fase pré-mágica / De três a seis anos: fase mágica » » Histórias de bichinhos, brinquedos, objetos, seres da natureza (humanizados). » » Histórias de crianças. » » Histórias de repetição e acumulativas (“Dona Baratinha”, “A formiguinha e a neve” etc.). » » Histórias de fadas. Escolares Sete anos » » Histórias de crianças, animais e encantamento. » » Aventuras no ambiente próximo: família, comunidade. » » Histórias de fadas. Oito anos » » Histórias de fadas com enredo mais elaborado.
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» » Histórias humorísticas. Nove anos » » Histórias de fadas. » » Histórias vinculadas à realidade. Dez anos em diante » » Aventuras, narrativas de viagens, explorações, invenções. » » Fábulas, mitos e lendas.
CUIDADOS QUE CONTRIBUEM PARA O ÊXITO DA NARRAÇÃO Antes da narrativa, o narrador precisa conhecer o local e informar-se da clientela prevista, do número e da faixa etária dos ouvintes. Isso quando se trata, é óbvio, de ambiente diferente do habitual: auditório, salão de festas, igreja, hospital, praça pública etc. Portanto, o primeiro cuidado refere-se a quem e onde será contada a história. Sempre acontece um rebuliço entre as crianças quando a história é anunciada. Todas querem se aproximar do contador. No caso de pouca gente, há as que disputam um lugar no seu colo. A melhor arrumação consiste em sentá-Ias em semicírculo, numa posição descontraída, na qual todas possam ver o narrador e o material a ser apresentado sem forçar o pescoço. Prefira que os ouvintes fiquem sentados em cadeiras ou, em certas ocasiões, no chão. Mesmo arrumados, ainda assim um acotovela o outro, mudam de lugar. Se o narrador fica pedindo silêncio ou atenção, possivelmente a história acaba antes de começar. Certa vez, uma professora, muito preocupada em manter os alunos quietos, introduziu: “Era uma vez uma bela adormecida...”, para logo interromper: “Senta, menina! É por isso que não gosto de contar história para vocês!”. Para evitar esse tipo de situação, no começo, pode-se cantar com eles assim: “Uma linda história nós vamos ouvir e quem vai contar é a tia aqui...” Ou assim: “Era uma vez... assim vai começar a linda história que agora vou contar. Bata palmas, minha gente! Bata palmas, outra vez. Bata palmas, bem contente! Vou contar... Era uma vez...”
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A DURAÇÃO DA NARRATIVA A duração da narrativa em si depende da faixa etária e do interesse que suscita: de 5 a 10 minutos para os pequeninos, de 15 a 20 minutos para os maiores. Isso é muito flexível. Há crianças da fase pré-mágica que acompanham todo o enredo, enquanto outras do mesmo grupo não conseguem fixar a atenção e se dispersam. Compete ao narrador alongar ou diminuir o texto, conforme aprendeu ao estudar sua estrutura, sabendo distinguir os fatos principais dos detalhes. Geralmente, ao final, os ouvintes pedem: “conte outra”, “conte de novo”, “conte outra vez”. Dependendo das circunstâncias, se for possível prolongar o prazer, é preferível contar outra vez. Aliás, convém repetir uma mesma história durante alguns dias e, de vez em quando, voltar a fazêlo. As crianças o exigem por uma forte razão: da primeira vez, desconhecendo o que irá suceder, a expectativa é muito forte. Nas seguintes, conhecendo o enredo, já identificadas com algum personagem, apreciam melhor a trama, podem antecipar as emoções e torná-las mais ricas, mais duradouras. Sem dúvida, é um renovado prazer. Segundo Bruno Bettelheim (1980): [...] só escutando repetidamente um conto de fadas e sendo dado tempo e oportunidade para demorar-se nele, uma criança é capaz de aproveitar integralmente o que a história tem a lhe oferecer com respeito à compreensão de si mesma e de sua experiência de mundo. [...] Redirecionar os pensamentos da criança prematuramente para uma segunda história pode matar o impacto da primeira, enquanto fazê-lo numa época posterior pode aumentá-lo.
COMO LIDAR COM AS INTERRUPÇÕES É raro haver interrupção da narrativa se a conversa inicial foi bem desenvolvida. Mesmo assim, ocorrem certas interrupções por motivos variados, prevalecendo aquela que é mais uma participação do ouvinte, quando faz uma espécie de adendo ao que o narrador contou. Entretanto, alguém pode interromper com algum dito que nada tenha a ver com o enredo, apenas para chamar a atenção sobre sua pessoa. Em nenhum caso, o contador interrompe a narrativa. Se for um adendo, deve confirmar com um sorriso, uma palavra, um gesto de assentimento. Na segunda hipótese, deve fixar o olhar na direção de quem interrompeu, sorrir e, com um gesto, pedir-lhe para aguardar. Concluída a narração, imediatamente pergunta-lhe o que estava querendo dizer ou indagar, dando-lhe oportunidade de expressar-se. Se o narrador mantiver sempre uma atitude calma e tranquila, sem se impacientar ou se irritar, mesmo as crianças que, por algum motivo, não conseguem ficar atentas, brevemente serão boas ouvintes, pois nada melhor que uma história para desenvolver a capacidade de atenção. As crianças que interrompem com frequência e mostram sinais de indisciplina são as que mais necessitam ouvir histórias. Há outro tipo de interrupção que acontece quando se começa a contar uma história conhecida: «Ah, essa eu já sei!». No caso de história clássica contada com variantes, é frequente advertirem: «Não foi assim», «Eu sei de outra forma».
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“Chapeuzinho Vermelho” é um exemplo típico. Como sabemos que cada qual ouviu de uma forma, pode-se perguntar, no início, o que Chapeuzinho levava na cesta para a vovó: maçã, leite, pão, manteiga, doce, biscoito, geleia. Então, pode-se prosseguir: “Chapeuzinho levava na cesta...” e coloca-se tudo o que citaram. Desse jeito, não há quem não acompanhe a menina “pela estrada afora”. Quando o lobo chega à casa da vovó, pode-se interromper novamente e perguntar o que aconteceu na história que ouviram antes: «A vovó se escondeu debaixo da cama». E continua-se deixando a vovó onde eles preferem; na maioria das vezes, na barriga do lobo! Chapeuzinho chega, encontra o lobo na cama da vovó. Nesse momento, pode-se convidar os pequenos ouvintes a fazerem junto com a narração, o célebre diálogo – o narrador fazendo a voz de Chapeuzinho; e a plateia, a voz do lobo: – Vovó, pra que esses olhos tão grandes? – Pra te olhar – arregalam bem os olhos. – Pra que essas orelhas tão grandes? – Pra te «orelhar»... – risadas. E, assim, chegamos à última pergunta: – Pra que essa boca tão grande, vovó? – Pra te comer! – cada um abre bem sua boca. E o final da história, segundo a versão que conhecem, será como preferirem. Desmistifica-se o medo do lobo. O resultado sempre é divertidíssimo!
CONVERSA DEPOIS DA HISTÓRIA Frequentemente, estamos comentando o que nos causa impressão: fatos do cotidiano, o último livro que lemos, filmes, peças de teatro, novelas de televisão. Comentar, ao que parece, prolonga o deleite, conduz a novas leituras da trama e dos personagens e a uma compreensão mais nítida e esclarecedora. Isso também ocorre com as crianças em relação à história que as impressiona intensamente. Comentar não significa propor questões interpretativas e muito menos destacar a mensagem contida na história. A criança por si só percebe essa mensagem e a revela nas colocações que faz. São comentários interessantes, oportunos, engraçados, algumas vezes denunciando conflitos existenciais. O comentário do ouvinte evidencia o efeito da história contada e oferece condições de avaliar sua maior ou menor repercussão. É nessa fase, inclusive, que o narrador apreende reações básicas das crianças, aprimorando-se na prática da arte de contar e aperfeiçoando um estilo próprio.
ATIVIDADES A PARTIR DA HISTÓRIA A história não acaba quando chega ao fim. Ela permanece na mente da criança, que a incorpora como um alimento de sua imaginação criadora.
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Sempre que possível, convém propor atividades subsequentes. As chamadas atividades de enriquecimento ajudam a “digerir” esse alimento num processo de associação a outras práticas artísticas e educativas. A história funciona, então, como agente desencadeador de criatividade, inspirando cada pessoa a manifestar-se, expressivamente, de acordo com sua preferência.
Há vários tipos de atividades que podem ser desenvolvidas com base nas sugestões que o enredo oferece: » » dramatização; » » pantomima; » » desenhos, recortes, modelagem, dobradura; » » criação de textos orais e escritos; » » brincadeiras; » » construção de maquete. São atividades espontâneas, jamais funcionando como imposição, e delas participam apenas os que quiserem.
DRAMATIZAÇÃO Pergunta-se, informalmente, quem quer brincar de representar a história. A maioria aceita, no caso de público infantil, que ainda não está condicionado como o adulto. Há enredos que se prestam melhor à dramatização, isto é, enredos de repetição, movimentados e fáceis de guardar, pois a dramatização logo após a narrativa não é ensaiada, os participantes escolhem o próprio papel, resolvem entre si as situações de modo convincente, sem ser necessárias caracterizações de vestuário ou cenário. Levando em conta a predisposição geral da turma para participar, escolhido o elenco, o restante do grupo poderá compor o cenário: árvores, flores, pedras, vento, brinquedos – sem se afastarem de seus lugares para apreciar a ação do elenco, numa posição de espectadores ativos. O narrador deixa-os agir livre e criativamente. Os espectadores é que interferem, corrigindo falas, atitudes, num perfeito entrosamento. Todos riem muito e há ocasiões em que a mesma história é dramatizada seguidamente por dois, três elencos diferentes. Quem foi pato quer ser rato, a borboleta quer ser flor e vice-versa. Além de outras vantagens, a dramatização ajuda a desinibir os tímidos, retraídos, mesmo que não atuem como protagonista. Pantomima É uma reprodução da história mediante expressão corporal, sem usar a voz, indicada principalmente para reproduzir trechos do enredo ou expressões do personagem.
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AULA 7 - O CONTADOR DE HISTÓRIAS
Desenhos, recortes, modelagem, dobraduras Considerando-se as tendências individuais, não é conveniente pedir apenas desenhos. É melhor que cada um tenha oportunidade de expressar-se de acordo com suas preferências: desenhar, recortar, dobrar, modelar etc. Criação de textos orais e escritos Se já sabem escrever, propõe-se que escrevam em prosa ou verso ou que criem uma quadrinha, mas é bom fazer propostas que permitam à criança refletir sobre a história, oferecer um final diferente, redigir uma carta para alguém. Brincadeiras Alguns textos sugerem cantigas de roda, brinquedos, novas adivinhas, parlendas etc. Construção de maquetes Consiste em reproduzir uma ou mais cenas da história. Cada criança se incumbe de uma tarefa a seu gosto, depois vão arrumando as peças que construíram com o material disponível, o que resulta numa construção plástica original que as deixa bastante animadas. Certa ocasião, um menino pegou um punhado de clipes e foi enganchando um no outro. Ficou muito contente depois, conforme revelou, porque, sendo só o que sabia fazer, sua “corrente” transformou-se no cabo ao qual se prendeu a âncora (recortada em papel) para colocar um barco (de dobradura) no ancoradouro.
Conforme o enredo, pode-se entrar com algumas sugestões. – Se você fosse uma nuvem com o que gostaria de se parecer? (“Uma nuvem chamada Fofinha.”) – Que país escolheria para visitar, e o que há nesse país? (“O país do Pinta Aparece.”) – Como gostaria que fosse sua casa? (“Quero casa com janela.”) – Que presente gostaria de ganhar ou oferecer? (“O presente dos pássaros.”) – Qual o vestido de La Íris que mais lhe agradou? (“A lenda do arco-íris.”) – Represente alguma coisa que tenha perdido. (“O reino perdido do Beleléu.”) Depois, faz-se uma exposição dos trabalhos.
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“FORREST GUMP: O CONTADOR DE HISTÓRIAS” É um filme norte-americano de 1994. Esse drama, dirigido por Robert Zemeckis com Tom Hanks no papel-título, é baseado no romance homônimo de 1986, escrito por Winston Groom. A história atravessa várias décadas na vida do personagem central, Forrest Gump, um rapaz inocente e simples do Alabama que passeia pela história norte-americana de três décadas. Com seu jeitão puro, ele luta no Vietnã, é condecorado, conhece o presidente Kennedy, fala em uma grande concentração pacifista em Washington e circula pela era da libertação sexual. Assim, leva aos espectadores as transformações pelas quais a sociedade local passou desde a década de 1960. Forrest viaja ao redor do mundo, encontra figuras históricas, influencia a cultura popular e é testemunha de alguns dos eventos históricos mais notórios da segunda metade do século XX. Para muitos, é uma cínica sátira ao sonho americano; para outros, a mais pura exaltação deste. Texto para reflexão: http://criandocondicoesaliberdade.blogspot.com.br/2011/02/liberdadede-forrest-gump.html.
O Contador de Histórias: http://www.contadordehistorias.com.br/ index_site.html. “O contador de histórias”, filme de Luiz Villaça baseado na vida de Roberto Carlos Ramos: http://wwws.br.warnerbros.com/ocontadordehistorias/site. Casa do Contador de Histórias – ONG: http://www.casadocontadordehistorias.org.br/home.htm.
REFERÊNCIAS ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 2000. AGUIAR, Vera Teixeira; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2004. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. ZILBERMAN, Regina. A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 2005. ______. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
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AULA 8 Literatura infantojuvenil: uma análise INTRODUÇÃO
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esta unidade, teceremos as últimas considerações referentes à literatura infantojuvenil e analisaremos o clássico “Chapeuzinho Vermelho”, procurando construir um conhecimento teórico-prático das manifestações da literatura infantojuvenil e desenvolver o seu estudo crítico e a sua relação com o processo de alienação/libertação na formação da criança.
A LUTA PELO SIGNIFICADO Se esperamos viver não só cada momento, mas ter uma verdadeira consciência de nossa existência, nossa maior necessidade e mais difícil realização será encontrar um significado em nossas vidas. É bem sabido que muitos perderam o desejo de viver e pararam de tentá-lo porque tal significado Ihes escapou. Uma compreensão do significado da própria vida não é subitamente adquirida numa certa idade, nem mesmo quando se alcança a maturidade cronológica. Ao contrário, a aquisição de uma compreensão segura do que o significado da própria vida pode ou deveria ser é o que constitui a maturidade psicológica. Essa realização é o resultado final de um longo desenvolvimento: a cada idade, buscamos e devemos ser capazes de achar alguma quantidade módica de significado congruente com o “quanto” nossa mente e compreensão já se desenvolveram.
LITERATURA INFANTOJUVENIL
Ao contrário do que diz o mito antigo, a sabedoria não irrompe integralmente desenvolvida como Atenas saindo da cabeça de Zeus; é construída por pequenos passos a partir do começo mais irracional. Apenas na idade adulta podemos obter uma compreensão inteligente do significado da própria existência neste mundo a partir da experiência nele vivida. Infelizmente, muitos pais querem que as mentes dos filhos funcionem como as suas – como se uma compreensão madura sobre nós mesmos e o mundo e as nossas ideias sobre o significado da vida não tivessem que se desenvolver tão lentamente quanto nossos corpos e nossas mentes. Hoje, como no passado, a tarefa mais importante e também mais difícil na criação de uma criança é ajudá-Ia a encontrar significado na vida. Muitas experiências são necessárias para se chegar a isso. A criança, à medida que se desenvolve, deve aprender passo a passo a se entender melhor; com isso, torna-se mais capaz de entender os outros e, eventualmente, pode vir a se relacionar com eles de forma mutuamente satisfatória e significativa. Para encontrar um significado mais profundo, devemos ser capazes de transcender os limites estreitos de uma existência autocentrada e acreditar que daremos uma contribuição significativa para a vida – se não imediatamente agora, pelo menos em algum tempo futuro. Esse sentimento é necessário para uma pessoa estar satisfeita consigo mesma e com o que está fazendo. Para não ficar à mercê dos acasos da vida, devemos desenvolver nossos recursos interiores, de modo que nossas emoções, a imaginação e o intelecto se ajudem e se enriqueçam mutuamente. Nossos sentimentos positivos nos dão força para desenvolver nossa racionalidade; só a esperança no futuro pode nos sustentar nas adversidades que inevitavelmente encontraremos. Sob esses aspectos e vários outros, no conjunto da literatura infantil – com raras exceções –, nada é tão enriquecedor e satisfatório para a criança, como para o adulto, do que o conto de fadas folclórico. Na verdade, em um nível manifesto, os contos de fadas ensinam pouco sobre as condições específicas da vida na moderna sociedade de massa; esses contos foram inventados muito antes que ela existisse. Mas, por meio deles, é possível aprender mais sobre os problemas interiores dos seres humanos e sobre as soluções corretas para seus predicamentos em qualquer sociedade do que com qualquer outro tipo de história dentro de uma compreensão infantil. Como a criança, em cada momento de sua vida, está exposta à sociedade em que vive, certamente aprenderá a enfrentar as condições que lhe são próprias, desde que seus recursos interiores o permitam. Exatamente porque a vida é frequentemente desconcertante para a criança, ela precisa ainda mais ter a possibilidade de se entender neste mundo complexo com o qual deve aprender a lidar. Para ser bem-sucedida neste aspecto, a criança deve receber ajuda para que possa dar algum sentido coerente ao seu turbilhão de sentimentos. Necessita de ideias sobre a forma de colocar ordem na sua casa interior e, com base nisso, ser capaz de criar ordem na sua vida. Necessita – e isto mal requer ênfase neste momento de nossa história – de uma educação moral que, de modo sutil e implícito, a conduza às vantagens do comportamento moral, não por meio de conceitos éticos abstratos, mas daquilo que lhe parece tangivelmente correto e, portanto, significativo. A criança encontra esse tipo de significado nos contos de fadas. Como muitas outras modernas percepções psicológicas, esta foi antecipada há muito tempo pelos poetas. O poeta alemão Schiller escreveu: “Há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina”.
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DESENVOLVIMENTO DA UNIDADE O CONTO DE FADAS: UMA FORMA ARTÍSTICA ÚNICA Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança. Os contos de fadas são ímpares, não só como uma forma de literatura, mas como obras de arte. Integralmente compreensíveis para a criança como nenhuma outra forma de arte o é, o significado mais profundo do conto de fadas será diferente para cada pessoa e diferente para a mesma pessoa em vários momentos de sua vida. A criança extrairá significados diferentes do mesmo conto de fadas, dependendo de seus interesses e de suas necessidades do momento. Tendo oportunidade, voltará ao mesmo conto quando estiver pronta a ampliar os velhos significados ou substituí-los por novos. Como obras de arte, os contos de fadas têm muitos aspectos dignos de serem explorados em acréscimo ao significado psicológico e ao impacto a que o livro está destinado. Por exemplo, nossa herança cultural encontra expressão em contos de fadas e, por meio deles, é comunicada à mente infantil.
ANALISANDO “CHAPEUZINHO VERMELHO” A imagem de uma menina inocente e encantadora sendo engolida por um lobo deixa uma marca indelével na mente. Em “João e Maria”, a bruxa só planejou devorar as crianças; em “Chapeuzinho Vermelho”, o lobo realmente engole a avó e a menina. “Chapeuzinho Vermelho”, como a maioria dos contos de fadas, possui muitas versões diferentes. A mais popular é a dos Irmãos Grimm, na qual Chapeuzinho e a avó voltam a viver e o lobo recebe um castigo bem merecido. Mas a história literária desse conto começa com Perrault. O conto, em inglês, é mais conhecido pelo título de “Capinha Vermelha”, embora o título dado pelos Irmãos Grimm, de “Chapeuzinho Vermelho”, seja mais apropriado. Contudo, Andrew Lang, um dos estudiosos mais eruditos e sagazes dos contos de fadas, observa que, se todas as variações de “Chapeuzinho Vermelho” terminassem como Perrault a concluiu, seria melhor que as abandonássemos. Este teria sido seu destino, provavelmente, se a versão dos Irmãos Grimm não o transformasse no conto de fadas mais divulgado. Mas, como essa história começa com Perrault, consideraremos – e abandonaremos – seu relato inicial. A história de Perrault começa, como nas outras versões, contando que a avó fizera uma capinha vermelha com chapéu para a neta, o que levou a menina a ser conhecida por este nome. Um dia, a mãe mandou Capinha Vermelha levar uns doces para a vovozinha que estava doente. O caminho da menina passava por uma floresta, onde se deparou com o lobo. Este, na ocasião, não se atreveu a devorá-Ia porque havia lenhadores na floresta. Por isso, perguntou a Capinha Vermelha para onde ela ia, ao que ela respondeu. O lobo perguntou o lugar exato onde morava a avó, e a menina lhe informou. Então ele disse que iria visitar a avó e partiu rapidamente, enquanto a menina se retardava pelo caminho.
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Um exemplo pode ilustrar: na história dos Irmãos Grimm “Os sete corvos”, sete irmãos desaparecem e tornam-se corvos assim que a irmã deles nasce. É necessário buscar água do poço numa vasilha para o batismo da menina e a perda do jarro é o incidente fatídico que estabelece o cenário para a história. A cerimônia de batismo também proclama o começo de uma existência cristã. É possível encarar os sete irmãos como representação daquilo que tinha de desaparecer para a cristandade existir. Se for assim, eles representam o mundo pré-cristão, pagão, no qual os sete planetas representam os deuses celestes da Antiguidade. A menina recém-nascida é então a nova religião, que só pode ter sucesso se o antigo credo não interferir no seu desenvolvimento. Com a cristandade, os irmãos que representam o paganismo ficam relegados à escuridão. Mas, como corvos, eles habitam uma montanha no fim do mundo, e isso sugere sua existência continuada num mundo subterrâneo, subconsciente. O retorno deles à humanidade ocorre apenas porque a irmã sacrifica um de seus dedos – o que está de acordo com a ideia cristã de que apenas os que estão dispostos a sacrificar a parte do corpo que os impede de atingir a perfeição, se a circunstância o requer, terão permissão de entrar no céu. A nova religião, o cristianismo, pode libertar mesmo aqueles que permaneceram de início presos ao paganismo. Fonte: BETTELHEIM, 1980.
O lobo consegue entrar na casa da avó fingindo ser Capinha Vermelha e engole imediatamente a velhinha. Na história de Perrault, o lobo não se disfarça de avó; simplesmente deita-se na cama dela. Quando Capinha chega, o lobo pede-lhe que se deite com ele. Capinha Vermelha tira a roupa e deita na cama, quando então se espanta com a aparência desnuda da avó e exclama: “Vovó, que braços enormes você tem!”, ao que o lobo responde: “São para te abraçar melhor!”. Capinha então diz: “Vovó, que pernas grades você tem!”, e recebe como resposta: “São para correr melhor!”. Segue-se a esses dois os diálogos (que não ocorrem na versão dos Irmãos Grimm) com perguntas bem conhecidas sobre os olhos, as orelhas e os dentes grandes da avó. O lobo responde a esta última pergunta dizendo: “São para te comer melhor”. E, pronunciando essas palavras, atira-se sobre Capinha Vermelha, devorando-a. Aí termina a tradução de Lang, como fazem muitos outros. Mas o relato original de Perrault continua com um pequeno poema no qual propõe uma moral a ser deduzida: que meninas bonitinhas não deviam dar ouvidos a todo tipo de gente. Se o fazem, não é de surpreender que o lobo as pegue e devore. Quanto aos lobos, eles aparecem de todos os tipos; e, entre eles, os lobos gentis são os mais perigosos, especialmente os que seguem as mocinhas nas ruas até as suas casas. Perrault não desejava apenas entreter o público, mas dar uma lição de moral específica com cada um de seus contos. Por isso, é compreensível que ele os modificasse de acordo com o que desejava. Infelizmente, com isso, tirava muito do significado dos contos. Quando conta a história, não há ninguém que advirta Capinha Vermelha para não perder tempo no caminho para a casa da avó nem desviar-se da estrada certa. Na versão de Perrault, também não faz sentido que a avó, que não cometera nenhum erro, termine destruída.
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“Capinha Vermelha”, de Perrault, perde muito de seu atrativo porque fica óbvio que o lobo não é um animal ávido, mas uma metáfora, que deixa pouco à imaginação do ouvinte. Essas simplificações junto com uma moral afirmada diretamente transformam esse conto de fadas potencial num conto admonitório que especifica tudo. Assim, a imaginação do ouvinte não entra em ação para dar um significado pessoal à história. Preso a uma interpretação racionalista da finalidade da história, Perrault explicita tudo ao máximo. Por exemplo, quando a menina se despe e entra na cama com o lobo e este lhe diz que os braços fortes são para abraçá-la melhor, não sobra nada para a imaginação. Como Capinha não responde a essa sedução óbvia e direta com uma tentativa de escapar ou lutar, ou ela é estúpida ou deseja ser seduzida. Nos dois casos, não é uma figura própria com quem alguém possa se identificar. Com esses detalhes, Capinha Vermelha se transforma de uma menina atraente e ingênua, que é induzida a negligenciar as advertências da mãe e a divertir-se com o que acredita conscientemente ser um caminho inocente, em uma mulher decaída. O valor do conto de fadas para a criança é destruído se alguém detalha os significados. Perrault faz pior: reelabora-os. Todos os bons contos de fadas têm significados em muitos níveis; só a criança pode saber quais significados são importantes para ela no momento. À medida que cresce, a criança descobre novos aspectos desses contos bem conhecidos, e isso lhe dá a convicção de que realmente amadureceu em compreensão, já que a mesma história agora revela tantas coisas novas para ela. Isso só pode ocorrer se a criança não ouviu uma narrativa didática do assunto. A história só alcança um sentido pleno para a criança quando é ela quem descobre espontânea e intuitivamente os significados previamente ocultos. Essa descoberta transforma algo recebido em algo que ela cria parcialmente para si mesma. Os Irmãos Grimm contam duas versões dessa história, o que não Ihes é habitual. Em ambas, tanto a história como a heroína têm o nome de “Chapeuzinho Vermelho” devido ao “Chapeuzinho de veludo vermelho que lhe caía tão bem que ela não usava nenhum outro”. A ameaça de ser devorada é o tema central de “Chapeuzinho Vermelho”, como em “João e Maria”. As mesmas constelações básicas que aparecem no desenvolvimento de cada pessoa podem levar a personalidades e destinos humanos mais diversos, dependendo de outras experiências do indivíduo e de como ele as interprete para si próprio. Da mesma forma, um número limitado de temas básicos retratam, nas histórias de fadas, aspectos muito diferentes da experiência humana. Tudo depende da forma da elaboração do tema e do contexto em que ocorra. “João e Maria” lida com as dificuldades e ansiedades da criança que é forçada a abandonar sua ligação dependente com a mãe e a libertar-se da fixação oral. “Chapeuzinho Vermelho” aborda alguns problemas cruciais que a menina em idade escolar tem de solucionar quando as ligações edípicas persistem no inconsciente, o que pode levá-la a expor-se perigosamente a possíveis seduções. Em ambos os contos, a casa da floresta e o lar paterno são o mesmo lugar, vivenciados de modo diverso devido a mudanças na situação psicológica. Na sua própria casa, Chapeuzinho Vermelho, protegida pelos pais, é a criança pré-púbere sem conflitos que é perfeitamente capaz de lidar com as circunstâncias. Na casa da avó, que também é segura, a mesma menina se torna totalmente incapaz em consequência do encontro com o lobo.
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João e Maria, sujeitos à fixação oral, só pensam em comer a casa que representa simbolicamente a mãe má que os abandonara (forçara-os a deixar o lar) e não hesitam em queimar a bruxa no fogão, como se ela fosse um alimento preparado para se comer. Chapeuzinho Vermelho, que ultrapassara a fixação oral, não tem mais desejos orais destrutivos. Psicologicamente existe uma enorme distância entre a fixação oral simbolicamente transformada em canibalismo, que é o tema central de “João e Maria” e a forma como Chapeuzinho castiga o lobo. Este é o sedutor, mas, até onde vai o conteúdo manifesto da história, o lobo não faz nada que não seja natural – a saber, devora para alimentar-se. E é normal o homem matar um lobo, embora o método usado nessa história seja inusitado. Chapeuzinho Vermelho vive num lar de fartura que ela, como já ultrapassou a ansiedade oral, compartilha com a avó alegremente, levando-lhe comida. Para Chapeuzinho, o mundo fora do lar paterno não é uma selva ameaçadora onde a criança não consegue encontrar o caminho. Existe uma estrada bem conhecida da qual a mãe a aconselha não se desviar. Enquanto João e Maria tiveram de ser empurrados para o mundo, Chapeuzinho deixa o lar voluntariamente; não teme o mundo externo, mas reconhece sua beleza, e aí está o perigo. Se o mundo fora do lar e do dever se torna atraente demais, poderá acontecer uma volta a um comportamento baseado no princípio do prazer que, presume-se, Chapeuzinho já havia abandonado em favor do princípio da realidade graças aos ensinamentos paternos – podendo então ocorrer graves choques. O dilema entre o princípio da realidade e o princípio do prazer é afirmado explicitamente quando o lobo diz a Chapeuzinho: – Veja como são lindas as flores ao seu redor. Por que não dá uma olhada? Acho que você nunca parou para ouvir o lindo canto dos pássaros. Está caminhando atenta e concentrada como se fosse para a escola, enquanto aqui na floresta tudo é prazer.
O mesmo conflito entre fazer o que gostamos e o que devemos, sobre o qual a mãe de Chapeuzinho advertira no início, aconselhando a filha a caminhar de modo conveniente e a não sair da estrada e a, quando chegar à casa da Vovó, não se esquecer de desejar um bom-dia e não ficar espiando todos os cantos. Assim, a mãe está ciente das inclinações de Chapeuzinho para desviar-se do caminho conhecido e espiar pelos cantos para descobrir os segredos dos adultos. A ideia de que Chapeuzinho lida com a ambivalência infantil entre viver pelo princípio do prazer ou pelo da realidade é sustentada pelo fato de ela só parar de colher flores “[...] quando já juntara tantas que não podia mais carregá-las”. Nesse momento, Chapeuzinho “lembra-se novamente da Avó e prossegue o caminho para ela”. Ou seja, só quando apanhar flores deixa de ser agradável, o id, em busca de prazer, recua e Chapeuzinho torna-se ciente de suas obrigações. Chapeuzinho Vermelho é, na realidade, uma criança que já luta com problemas púberes, para os quais não está preparada emocionalmente, pois ainda não dominou os problemas edípicos. Chapeuzinho é mais madura que João e Maria e o demonstra por sua atitude interrogativa quanto ao que encontra no mundo. João e Maria não se questionam sobre a casa de biscoitos nem exploram as intenções da bruxa. Chapeuzinho deseja descobrir as coisas, como indica a advertência materna para que não fique espionando os cantos. Ela observa que algo está errado quando encontra a avó “parecendo muito estranha”, mas se confunde com o disfarce do lobo nas roupas da avó. Chapeuzinho está tentando entender quando pergunta à avó sobre suas orelhas grandes, quando observa os olhos grandes e questiona as mãos enormes e a boca horrível.
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Aqui temos uma enumeração dos quatro sentidos – audição, visão, tato e paladar – que a criança púbere usa para compreender o mundo. “Chapeuzinho Vermelho”, de forma simbólica, projeta a menina nos perigos do conflito edípico durante a puberdade e depois a salva deles, para que ela possa amadurecer livre de conflitos. As figuras maternais, a mãe e a bruxa, que eram tão importantes em “João e Maria” são insignificantes em “Chapeuzinho Vermelho”, em que nem a mãe nem a avó podem fazer nada – nem ameaçar nem proteger. O macho, em contraste, é de importância capital, dividido em duas figuras opostas: a do sedutor perigoso que, se cedermos a ele, se transforma no destruidor da avó boa e da menina; e a do caçador, a figura paterna responsável, forte e salvadora. É como se Chapeuzinho tentasse entender a natureza contraditória do homem vivenciando todos os aspectos da personalidade dele: as tendências egoístas, violentas e potencialmente destrutivas do id (o lobo); e as propensões altruístas, sociais, reflexivas e protetoras do ego (o caçador). Chapeuzinho Vermelho é amada universalmente porque, embora virtuosa, sofre a tentação; e porque sua sorte nos diz que confiar nas boas intenções de todos, que nos parecem tão bons, na realidade nos deixa sujeitos a armadilhas. Se não houvesse algo em nós que aprecia o lobo-mau, ele não teria poder sobre nós. Por conseguinte, é importante entender sua natureza, mas ainda mais importante é aprender o que a torna atraente para nós. Por mais atraente que seja a ingenuidade, é perigoso permanecer ingênuo toda a vida. No entanto, o lobo não é apenas o sedutor masculino. Também representa todas as tendências associadas e animalescas dentro de nós. Abandonando as virtudes da idade escolar, de “caminhar atentamente”, como exige a sua tarefa, Chapeuzinho reverte à posição da criança em busca de prazer edípico. Cedendo às sugestões do lobo, também dá a este a oportunidade de devorar a avó. Aqui a história fala a algumas pessoas das dificuldades edípicas que permanecem mal resolvidas na menina e do castigo merecido, por Chapeuzinho ter arrumado as coisas de um jeito que permitiu ao lobo devorá-la e a avó. Mesmo uma criança de quatro anos se questiona sobre o que Chapeuzinho pretende quando responde à pergunta do lobo e dá as direções específicas para se chegar à casa da avó. Qual o propósito de uma informação tão detalhada, pergunta-se a criança, senão o de assegurar-se de que o lobo encontrará mesmo o caminho? Só os adultos, convencidos de que os contos de fadas não têm sentido, deixam de ver que Chapeuzinho inconscientemente está contribuindo para matar a avó. Esta também não está livre de culpa. Uma jovem necessita de uma figura materna forte para sua proteção, como um modelo a ser imitado. Mas a avó de Chapeuzinho se deixa levar pelas próprias necessidades, indo além do que é bom para a criança, como narra o conto: “Não havia nada que ela não desse à menina”. Não seria nem a primeira nem última vez que uma criança mimada e estragada pela avó incorre em perigo na vida real. Seja a mãe ou a avó – depois de afastada a mãe –, é fatal para a jovem a mulher mais velha abdicar de seus próprios atrativos para os homens e transferi-los para a filha, dando-lhe uma capa vermelha tão atraente. Em “Chapeuzinho Vermelho”, tanto no título como no nome da menina, enfatiza-se a cor vermelha, que ela usa declaradamente. O vermelho é a cor que simboliza emoções violentas, incluindo as sexuais. O capuz de veludo vermelho que a avó dá para Chapeuzinho pode, então, ser encarado como o símbolo de uma transferência prematura da atração sexual, que, além disso, é acentuada pelo fato de a avó estar velha e doente demais até para abrir a porta. O nome “Chapeuzinho Vermelho” indica a importância capital desta característica da heroína na história. Ele sugere que não só o chapeuzinho vermelho é pequeno, mas também a menina. Ela é demasiada pequena, não para usar um chapéu, mas para lidar com o que ele simboliza e com o que o uso dele atrai. 137
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O perigo para Chapeuzinho é a sua sexualidade em botão para a qual não está ainda emocionalmente madura. Pessoas psicologicamente preparadas para as experiências sexuais podem dominá-las e crescer com isto. Mas uma sexualidade prematura é uma experiência regressiva, despertando tudo que ainda é primitivo dentro de nós e que ameaça nos engolir. A pessoa imatura, que ainda não está pronta para o sexo, mas que é exposta a uma experiência que suscita fortes sentimentos sexuais, recai nas formas edípicas de lidar com ele. A pessoa só acredita, então, que possa vencer no sexo livrando-se dos competidores mais experientes – daí as instruções específicas que Chapeuzinho dá ao lobo para que este chegue à casa da avó. Mas nisto também mostra sua ambivalência – orientando o lobo para a casa da avó, age como se lhe estivesse dizendo: – “Deixe-me sozinha: vá ter com vovó, que é uma mulher madura; ela será capaz de lidar com o que você representa, eu não”. Essa luta entre o desejo consciente de fazer as coisas corretamente e o anseio inconsciente de vencer a mãe (avó) é o que nos faz amar a menina e a história, tornando-a supremamente humana. Quando crianças, muitos de nós tínhamos ambivalências internas que, apesar de nossos esforços, não podíamos controlar, e, como nós, Chapeuzinho tenta empurrar o problema para outra pessoa: uma pessoa mais velha, um dos pais ou um pai substituto. Mas, tentando fugir da situação ameaçadora, ela quase se destrói. Como mencionamos anteriormente, os Irmãos Grimm também apresentam uma variação importante de “Chapeuzinho Vermelho”, que consiste essencialmente de um acréscimo à história básica. Na variação, eles contam que posteriormente, quando Chapeuzinho Vermelho leva de novo doces para a avó, outro lobo tenta atraí-Ia para fora do caminho correto (da virtude). Desta vez, a menina corre para a avó e conta-lhe o sucedido. Juntas, trancam a porta para que o lobo não possa entrar. No final, o lobo escorrega do teto e cai numa tina cheia de água e morre afogado. A história termina, “[...] mas Chapeuzinho Vermelho voltou feliz para casa, e ninguém lhe fez nenhum mal”. Essa variação confirma a convicção do ouvinte de que, depois de uma experiência ruim, a menina percebeu que ainda não está bastante madura para lidar com o lobo (o sedutor) e está disposta a estabelecer uma boa aliança com a mãe. Isto é simbolicamente expresso quando corre para a avó logo que um perigo a ameaça, em vez de não ligar para ele, como ocorreu no primeiro encontro com o lobo. Chapeuzinho Vermelho elabora o fato com a mãe (avó) e segue seu conselho – ou seja, em seguida, a avó diz para Chapeuzinho encher a tina com uma água que cheira a molho cozido, e o odor atrai o lobo, e na qual cai dentro –, e juntas vencem facilmente o lobo. A criança, portanto, necessita formar uma firme aliança de trabalho com o pai do mesmo sexo para que, por meio da identificação e aprendizagem com ele, possa crescer e transformar-se num adulto bem sucedido. As histórias de fadas falam ao nosso consciente e ao nosso inconsciente e, por conseguinte, não precisam evitar as contradições, já que elas coexistem facilmente neste. Num nível bem diferente de significado, o que acontece com a avó pode ser encarado sob nova luz. O ouvinte certamente se pergunta por que o lobo não devorou Chapeuzinho logo que a encontrou, isto é, na primeira oportunidade. Como é típico de Perrault, ele oferece uma explicação aparentemente racional: o lobo o teria feito se não temesse os lenhadores que estavam por perto. Como na história de Perrault o lobo é o tempo todo um sedutor masculino, faz sentido que um homem mais velho tenha medo de seduzir uma menina às vistas de outros homens.
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Mas no conto dos Irmãos Grimm as coisas são muito diferentes. Nele, entendemos que a voracidade excessiva do lobo é responsável pelo atraso: “O lobo pensou – ‘Como é tenra! Que bom bocado! Deve ser mais gostosa do que a velha: tenho de proceder habilmente para pegar as duas!’”. Mas esta explicação não faz sentido porque o lobo poderia pegar Chapeuzinho imediatamente e, depois, enganar a avó, como ocorre na história. O comportamento do lobo começa a fazer sentido na versão dos Irmãos Grimm se concordamos que, para pegar Chapeuzinho, o lobo teria que acabar primeiro com a avó. Enquanto a avó (mãe) estiver por perto, Chapeuzinho não será dele. Mas, com a avó fora do caminho, a estrada se abre para a realização dos desejos, que tinham de ser reprimidos pela presença desta por perto. A história, nesse nível, lida com os desejos inconscientes de a filha ser seduzida pelo pai (o lobo). Com a reativação dos anseios edípicos primários na puberdade, o desejo da menina por seu pai, sua inclinação para seduzi-lo e seu desejo de ser seduzida por ele também se reativam. Então a menina sente que merece um castigo terrível da mãe, senão também do pai, pelo desejo de tirá-lo da mãe. O reaparecimento, na adolescência, das emoções primárias que estavam relativamente adormecidas não se restringe aos sentimentos edípicos. Inclui mesmo as ansiedades e os desejos mais primários que reaparecem durante esse período. Num nível diverso de interpretação, poderíamos dizer que o lobo não devora Chapeuzinho logo que a encontra porque deseja levá-la para a cama com ele primeiro: um intercurso sexual tem de preceder ao “devoramento”. Embora a maioria das crianças não tenha conhecimento dos animais que morrem durante o ato sexual, essas conotações destrutivas são bem claras na sua mente consciente e inconsciente, já que a maioria das crianças encara o ato sexual primariamente como um ato de violência que um dos parceiros efetua sobre o outro. Acreditamos que se trata da equação infantil de excitação sexual, violência e ansiedade a que Djuna Barnes alude quando escreve: “As crianças sabem de algo que não podem explicar; gostam de Chapeuzinho Vermelho e o lobo na cama!”. A história de Chapeuzinho Vermelho corporifica essa estranha coincidência de emoções opostas que caracteriza o conhecimento sexual infantil e, por isso, atrai inconscientemente as crianças e os adultos, que, por meio dela, se lembram vagamente da própria fascinação infantil em relação ao sexo. Outro artista exprimiu esses mesmos sentimentos subjacentes. Gustave Doré, numa de suas famosas ilustrações para os contos de fadas, mostra Chapeuzinho Vermelho e o lobo juntos na cama. O lobo é retratado com uma aparência plácida, mas a menina parece assolada por sentimentos ambivalentes poderosos enquanto olha para o lobo que descansa a seu lado. Não faz nenhum movimento para se afastar. Parece intrigada pela situação, atraída e repelida ao mesmo tempo. A combinação de sentimentos que seu rosto e seu corpo sugerem pode ser descrita como fascinação. A mesma fascinação que o sexo, e tudo o que ele envolve, exerce sobre a mente da criança. Isto, voltando à afirmativa de Djuna Barnes, é o que a criança sente acerca de Chapeuzinho e o lobo e a relação deles, mas não sabe dizer – e é o que torna a história tão cativante. É essa fascinação “mortal” com o sexo – que é experimentada simultaneamente com grande excitação e grande ansiedade – que está ligada aos anseios edípicos da menina pelo pai; e esses mesmos sentimentos são reativados de forma diferente durante a puberdade. Sempre que essas emoções reaparecem, evocam as lembranças das inclinações da menina para seduzir o pai e outras memórias de seu desejo de ser seduzida por ele também.
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Enquanto que no relato de Perrault a ênfase recai sobre a sedução sexual, na história dos Irmãos Grimm dá-se o oposto. Nela, não se menciona nem direta nem indiretamente nenhuma sexualidade: isso pode estar sutilmente implícito, mas, essencialmente, o ouvinte tem de completar a ideia para compreender a história. Para a mente infantil, as implicações sexuais permanecem pré-conscientes, como deveriam. Conscientemente, a criança sabe que não existe nada de errado em colher flores; o que está errado é desobedecer à mamãe quando estamos encarregados da importante missão de atender um interesse legítimo de um pai (a avó). O conflito principal é entre o que parece ser interesses justificados para a criança e o que ela sabe que os pais desejam dela. A história implica que a criança não sabe como pode ser perigoso ceder a desejos que considera inofensivos, e por isso tem de aprender com o perigo, ou melhor, como adverte a história, a vida lhe ensinará às suas custas. Chapeuzinho Vermelho externaliza os processos internos da criança púbere: o lobo é a expressão da maldade que a criança sente quando vai contra os conselhos dos pais e se permite tentar, ou ser tentada, sexualmente. Quando se desvia do caminho que os pais lhe traçaram, encontra “maldade” e teme que esta a engula e ao pai, cuja confiança traiu. Mas pode ocorrer uma ressurreição a partir dessa “maldade”, como diz, em seguida, a história. Diferentemente de Chapeuzinho, que cede às tentações do id e com isso trai a mãe e a avó, o caçador não permite que suas emoções o dominem. Sua primeira reação quando encontra o lobo na cama da avó é: “Então você está aqui, seu velho pecador? Há muito venho tentando encontrá-lo”. E seu desejo imediato é atirar no lobo. Mas seu ego (ou razão) se afirma, apesar das instâncias do id (raiva contra o lobo), e o caçador percebe que é mais importante tentar salvar a avó do que ceder à raiva, matando o lobo imediatamente. O caçador se controla e, em vez de matar o animal, abre cuidadosamente o estômago dele com sua tesoura, salvando Chapeuzinho e a avó. O caçador é a figura mais atraente, tanto para os meninos como para as meninas, porque salva os bons e castiga o malvado. Todas as crianças encontram dificuldades em obedecer ao princípio da realidade e reconhecem facilmente, nas figuras opostas do lobo e do caçador, o conflito entre o id e os aspectos do superego da personalidade. A ação violenta do caçador (abrir o estômago) serve aos propósitos sociais mais elevados (salvar as duas mulheres). A criança sente que ninguém aprecia que suas tendências violentas lhe pareçam construtivas, mas a história demonstra que elas podem ser. Chapeuzinho tem de ser extraída do estômago do lobo por uma espécie de operação cesariana; por isso, assimila a ideia de gravidez e nascimento. Com isso, associações de uma relação sexual são evocadas no inconsciente da criança. Como um feto entra no útero materno?, pergunta-se a criança. Ela, então, decide que isso só pode ocorrer se a mãe engolir alguma coisa, como o lobo. Por que o caçador fala do lobo como um “velho pecador” e diz que há muito tenta encontrá-lo? Chama-se um sedutor de lobo, na história, e quando este seduz especificamente uma jovem, o sedutor é chamado popularmente de “velho pecador”, tanto agora como antigamente. Num nível diferente, o lobo também representa as tendências não aceitáveis dentro do caçador; todos nos referimos ocasionalmente ao animal que está dentro de nós como equivalente à nossa propensão para agir violentamente ou conseguir irresponsavelmente nossos objetivos. Embora o caçador seja da maior importância para o final da história, não sabemos de onde ele vem; apesar de nem conversar com Chapeuzinho Vermelho, ele a salva, e é tudo. Durante a história, não se menciona o pai, o que não é habitual numa história desse tipo. Isso sugere que o pai está presente, mas de forma velada. A menina certamente espera que o pai a salve de todas as dificuldades, especialmente das emocionais que são uma consequência de seu desejo de seduzi-lo e ser seduzida 140
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por ele. “Sedução”, aqui, significa o desejo da menina e os seus esforços para induzir o pai a amá-la mais do que a todos e o seu desejo de que ele faça todos os esforços para induzi-la a amá-Io mais do que a todos. Então, podemos ver que o pai está realmente presente em “Chapeuzinho Vermelho” de duas formas opostas: como o lobo, que é uma externalização dos perigos de sentimentos edípicos reprimidos; e como o caçador, na sua função resgatadora e protetora. Embora a inclinação imediata do caçador seja matar o lobo, ele não o faz. Depois de salva, é a própria Chapeuzinho quem tem a ideia de encher o estômago do lobo com pedras, “[...] e quando ele acordou, tentou escapar, mas as pedras eram tão pesadas que ele caiu e morreu”. Cabe a Chapeuzinho planejar espontaneamente o que fazer com o lobo e executá-lo. Para que ela esteja a salvo no futuro, deve ser capaz de acabar com o sedutor, livrar-se dele. Se o pai/caçador o fizesse por ela, Chapeuzinho nunca sentiria que realmente vencera sua fraqueza porque não teria se libertado dela. É da justiça dos contos de fadas que o lobo morra por causa daquilo que tentou fazer: a voracidade oral foi o seu erro. Como tentou indevidamente colocar algo em seu estômago, o mesmo é feito a ele. Há outra razão excelente para que o lobo não morra em consequência do corte no estômago que liberta o que ele engoliu. O conto de fadas protege a criança de uma ansiedade desnecessária. Se o lobo morresse quando a barriga foi aberta, como numa operação cesariana, os ouvintes poderiam temer que uma criança, ao sair do corpo da mãe, a matasse. Mas, como o lobo sobrevive à operação e só morre devido às pedras pesadas, então não há razão para ansiedades quanto ao parto. Chapeuzinho Vermelho e a avó não morrem realmente, mas certamente renascem. Se há um tema central na grande variedade dos contos de fadas, esse é o tema de um renascimento para um plano mais alto de existência. As crianças (e também os adultos) devem ser capazes de acreditar que é possível atingir uma forma de existência mais alta se dominarem os graus de desenvolvimento que isso requer. As histórias que contam que isso, além de ser possível, é o provável têm uma tremenda atração para as crianças porque combatem o temor sempre presente de que não conseguirão fazer essa transição ou de que perderão muito no processo. Por essa razão, por exemplo, em “Irmão e irmã”, os dois não se perdem depois da transformação, mas levam uma vida melhor juntos. Essa também é a razão por que Chapeuzinho se torna uma menina mais feliz depois do salvamento e por que João e Maria têm uma vida muito melhor depois de voltarem para casa. Muitos adultos, hoje em dia, tendem a tomar literalmente o que é dito nos contos de fadas, quando estes deveriam ser encarados como relatos simbólicos de experiências de vida cruciais. A criança o compreende intuitivamente, embora não o “saiba” explicitamente. A afirmação que o adulto faz à criança de que Chapeuzinho “realmente” não morreu quando o lobo a engoliu é vivenciado pela criança como conversa fiada. É o mesmo que se dissesse a uma pessoa que, quando Jonas foi engolido pela baleia, isto não foi “realmente” seu fim. Todos sabem intuitivamente que a permanência de Jonas no estômago da baleia tinha um propósito – o de que ele voltasse a viver como um homem melhor.
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A criança sabe intuitivamente que o fato de Chapeuzinho ser engolida pelo lobo – como muitas outras mortes de heróis de contos de fadas – não significa que a história acabou, mas é uma parte necessária desta. A criança também compreende que Chapeuzinho realmente “morreu” como a menina que permitia que o lobo a tentasse; e quando a história diz que a menina “pulou fora” do estômago do lobo, ela volta à vida como uma pessoa diferente. Esse expediente é necessário porque, embora a criança possa entender prontamente que uma coisa seja substituída por outra (a mãe boa pela madrasta malvada), ainda não pode compreender transformações internas. Por isso, um dos grandes méritos dos contos de fadas é que, ao ouvi-Ias, a criança acredita que essas transformações são possíveis. A criança cujos consciente e inconsciente ficaram profundamente envolvidos na história compreende o que significa o lobo engolir a avó e a menina: que, devido ao que aconteceu, as duas ficaram temporariamente perdidas para o mundo – perderam a capacidade de estar em contato e influenciar o que sucede. Por conseguinte, alguém de fora deve vir em socorro; e quando se trata de mãe e filha, quem poderia ser, além do pai? Chapeuzinho Vermelho, quando cai na sedução do lobo para agir de acordo com o princípio do prazer em vez do da realidade, implicitamente retoma a uma forma de existência anterior e mais primitiva. Numa forma típica dos contos de fadas, a sua volta para um nível de vida mais primitivo é exagerada, indo até a existência pré-natal no útero, já que a criança pensa em extremos. Mas por que a avó deve ter o mesmo destino da menina? Por que ela também morre e é reduzida a um estado prévio de existência? Este detalhe está de acordo com a forma de a criança conceber o significado da morte – que a pessoa não está mais disponível, não tem mais serventia. Os avós devem ter utilidade para a criança: devem ser capazes-de protegê-la, ensiná-la e alimentá-la; caso contrário, são reduzidos a uma forma primitiva de existência. Como a avó, em “Chapeuzinho Vermelho”, não é capaz de lidar com o lobo, tem o mesmo destino que a menina. A história deixa claro que as duas não morreram ao serem engolidas. Isso é evidenciado pelo comportamento de Chapeuzinho quando é libertada. “A menina pulou fora gritando: – Ó, como eu tive medo; como estava escuro dentro do corpo do lobo!”. Sentir medo significa que a pessoa estava bastante viva, um estado oposto ao da morte, quando não se sente nem se pensa mais. O medo de Chapeuzinho era de escuridão porque, devido a seu comportamento, ela perdera o estado mais elevado de consciência, que iluminava seu mundo. É como a criança que, sabendo que errou, ou não se sentindo mais protegida pelos pais, sente a escuridão da noite com os terrores se impondo sobre ela. Não só em Chapeuzinho, mas em toda a literatura de contos de fadas, a morte do herói – diferente da morte de uma pessoa idosa, depois de ter vivido – simboliza o fracasso. A morte dos que fracassam – como a dos que tentaram chegar até a Bela Adormecida antes do tempo devido e pereceram nos espinheiros – simboliza que a pessoa ainda não está madura para efetuar a tarefa solicitada, que tolamente (prematuramente) empreendeu. Essas pessoas devem passar por outras experiências de crescimento, que a tornarão capacitadas para as tarefas. Os predecessores do herói que morreu nos contos de fadas são apenas as encarnações anteriores e imaturas deste.
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Depois de lançada na escuridão interior (a escuridão dentro do lobo), Chapeuzinho está madura e capaz de apreciar as coisas sob uma nova luz, de compreender melhor as experiências emocionais que tem de dominar e as que tem de evitar para que não a esmaguem. Nas histórias como “Chapeuzinho Vermelho”, a criança começa a entender – pelo menos num nível pré-consciente – que só as experiências esmagadoras despertam sentimentos internos correspondentes com os quais não podemos lidar. Dominando-os, não precisamos temer o encontro com o lobo, nunca mais. Isso é reforçado pela sentença final da história, pois Chapeuzinho não diz que nunca mais se arriscará a se encontrar com o lobo ou a andar sozinha na floresta. Ao contrário, o final implicitamente adverte à criança que fugir das situações problemáticas é a solução errada. A história termina assim: “Mas Chapeuzinho Vermelho pensou: – Enquanto eu viver, não sairei da estrada para entrar na floresta por mim mesma quando mamãe me proibir”. Com esse diálogo interno, fundamentado numa experiência perturbadora, o encontro de Chapeuzinho com a própria sexualidade terá um resultado bem diferente quando ela estiver preparada – quando então a mãe a aprovará. Desviar-se do caminho reto como um desafio à mãe e ao superego foi temporariamente necessário para a menina obter um estado de melhor organização da personalidade. A experiência convenceu-a dos perigos de ceder aos desejos edípicos. Ela aprendeu que é melhor não se rebelar contra a mãe nem tentar seduzir ou permitir-se ser seduzida por aspectos ainda perigosos do homem. Apesar dos desejos ambivalentes, é bem melhor aguardar um pouco mais pela proteção que o pai oferece, quando ele não é visto em seus aspectos sedutores. Ela aprendeu que é melhor assimilar o pai e a mãe e os valores deles com mais profundidade e de uma forma mais adulta dentro de seu próprio superego para se tornar capaz de lidar com os perigos da vida. Há várias contrapartidas modernas de “Chapeuzinho Vermelho”. A profundidade dos contos de fadas aparece quando os comparamos à literatura infantil moderna. David Riesman, por exemplo, comparou “Capinha Vermelha” com uma história infantil moderna, intitulada “Apito, o trenzinho”, um dos “Livrinhos de Ouro” que teve uma vendagem de milhões de exemplares. Nele, um trenzinho vai para uma escola de trens aprender a se tornar um grande trem de carreira. Como Chapeuzinho Vermelho, ele recebeu a recomendação de não sair dos trilhos. Também sofre a tentação de desviar-se, pois gosta de brincar entre as flores do campo. Para impedir que Apito se desvie, os cidadãos se juntam e concebem um plano esperto, do qual todos participam. Na próxima vez em que Apito deixar os trilhos para vagar nos prados, em cada vez que se virar, será impedido por uma bandeira vermelha até prometer não sair mais dos trilhos. Hoje em dia, podemos perceber que a história exemplifica a modificação do comportamento por meio dos estímulos adversos: as bandeiras vermelhas. Apito se reforma, e a história termina com ele corrigindo seu comportamento e realmente se transformando num grande trem de carreira. Apito parece ser essencialmente um conto admonitório, advertindo as crianças para permanecerem no estreito caminho da virtude. Mas é medíocre quando comparado com os contos de fadas. “Chapeuzinho Vermelho” fala de paixões humanas, voracidade oral, agressão e desejos sexuais púberes. Opõe a oralidade educada da criança em maturação (levar os doces para a vovó) à sua forma canibalista primária (o lobo que engole a menina e a avó). Com sua violência, incluindo a que salva as duas mulheres e destrói o lobo quando o caçador abre a barriga do animal e coloca pedras dentro, o conto de fadas não mostra o mundo cor de rosa. A história termina quando todas as figuras – a menina, a mãe, a avó, o caçador e o lobo – fazem o que é devido: o lobo tenta escapar e cai morto,
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então o caçador tira a pele do lobo e a leva para casa; a avó come o que Chapeuzinho lhe trouxe; e a menina aprendeu a sua lição. Não existe uma conspiração de adultos para forçar o herói a emendar-se como exige a sociedade – um processo que nega o valor da autodireção interna. Em vez de os outros fazerem as coisas por ela, a experiência de Chapeuzinho leva-a a modificar-se, já que promete a si própria: “Enquanto viver, não sairei do caminho para entrar na floresta”. O conto de fadas é muito mais verdadeiro tanto em termos de realidade de vida quanto em relação às nossas experiências internas quando comparado com “Apito, o trenzinho”, que se utiliza de elementos realistas como pontos de apoio: os trens correndo nos trilhos, as bandeiras vermelhas fazendo-o parar. Os detalhes são bastante reais, mas o essencial não o é, pois a população inteira de uma cidade não para o que está fazendo para ajudar uma criança a se corrigir. Além disso, não houve perigo real para a vida de Apito. Sim, ele recebe ajuda para se corrigir, mas tudo o que esta experiência de crescimento envolve é tornar-se um trem maior e mais rápido, isto é, um adulto externamente mais bem sucedido e útil. Não há o reconhecimento de ansiedades internas nem dos perigos da tentação para a nossa própria existência. Citando Roesman: “Não há acontecimentos graves como em ‘Chapeuzinho Vermelho’”, que foram substituídos por “[...] uma fraude que os cidadãos armam em benefício de Apito”. Em “Apito, o trenzinho”, não há nenhuma externalização das personagens da história quanto aos processos internos e aos problemas emocionais pertinentes ao crescimento que permitam à criança encarar os primeiros e resolver os últimos. Acreditamos integralmente no que diz o final de “Apito, o trenzinho”: ele esqueceu que algum dia gostara de flores. Qualquer pessoa com abertura de imaginação sabe que Chapeuzinho Vermelho não poderia nunca esquecer o encontro com o lobo nem deixaria de gostar de flores ou da beleza do mundo. A história de Apito, não criando nenhuma convicção interna na mente do ouvinte, necessita impor a ela a lição e predizer o resultado: o trem ficará nos trilhos e se tornará um trem de carreira. Nenhuma iniciativa, nenhuma liberdade. O conto de fadas possui internamente a convicção de sua mensagem; por conseguinte, não necessita prender o herói a um modo específico de vida. Não precisa dizer o que Chapeuzinho fará ou qual será seu futuro. Devido à experiência, ela será capaz de decidir por conta própria. Todos os ouvintes adquirem uma sabedoria a respeito da vida e dos perigos que os desejos de Chapeuzinho podem provocar. Chapeuzinho perdeu sua inocência infantil quando se encontrou com os perigos do mundo e os de dentro dela e os trocou pela sabedoria que só os que “renascem” possuem: os que não só dominam uma crise existencial, mas também tomam consciência de que era a sua própria natureza que os projetava na crise. A inocência infantil de Chapeuzinho morre quando o lobo se revela e a engole. Quando sai do estômago do lobo, ela renasce num plano superior de existência, relacionando-se de modo positivo com os pais, não mais como criança; ela volta à vida como uma jovem donzela.
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AS VÁRIAS CHAPEUZINHOS
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