a vida sexual de catherine millet

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A Vida Sexual de Catherine M. Catherine Millet Copyright 2001 Editora Ediouro 3- edição

O Número Quando criança, eu era muito preocupada com os números. A lembrança que guardamos dos pensamentos ou das ações solitárias é muito clara: são as primeiras chances dadas à consciência de se mostrar a si mesma. Os acontecimentos compartilhados, por outro lado, permanecem presos à incerteza dos sentimentos que os outros nos inspiram (admiração, medo, amor ou aversão) e que, quando crianças, somos ainda menos aptos a enfrentar e mesmo compreender do que na idade adulta. Lembro-me, então, particularmente dos pensamentos que, toda noite antes de adormecer, me aliciavam para uma escrupulosa ocupação de contagem. Pouco tempo depois do nascimento de meu irmão (eu tinha então três anos e meio), minha família mudou-se para um novo apartamento. Durante os primeiros anos em que moramos lá, minha cama ficava no cômodo maior, diante da porta. Olhando fixamente para a luz que vinha da cozinha, do outro lado do corredor, onde minha mãe e minha avó ainda trabalhavam, eu não conseguia conciliar o sono enquanto não tivesse considerado, em seqüência, várias questões. Uma delas dizia respeito ao fato de alguém ter muitos maridos. Não pensava sobre a possibilidade de que tal situação existisse, o que me parecia óbvio, mas, evidentemente, sobre suas condições. Uma mulher poderia ter muitos maridos ao mesmo tempo ou apenas um depois do outro? Neste caso, quanto tempo deveria ficar casada com um antes de poder trocar por outro? Quantos maridos ela "razoavelmente" poderia ter: alguns, cinco ou seis, ou um número muito maior, ilimitado? Como eu agiria quando crescesse? Com o passar dos anos, a contagem de maridos foi substituída pela contagem de filhos. Acho que me sentia menos vulnerável à incerteza quando fixava meus devaneios nos traços de um homem identificado (atores de cinema, um primo alemão etc.), com quem me encontrava sob o signo da sedução. Imaginava assim, de maneira mais concreta, minha vida de mulher casada e, portanto, a presença de crianças. Colocavam-se novamente as mesmas perguntas: seis era um número razoável ou se poderia ter mais? Que diferença de idade poderia haver entre eles? Acrescentava-se a divisão entre meninas e meninos.


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