Livro adulto 1° trimestre 2018

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e, esperanรงa e ar ia carta aos Hebr

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A supremacia

deCristo

Fé, esperança e ânimo na carta aos Hebreus José Gonçalves

[ \s . T-

CB4D

Rio de Janeiro

2017


Todos os direitos reservados. Copyright © 2017 para a língua portuguesa da Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Aprovado pelo Conselho de Doutrina. Preparação dos originais: Miquéias Nascimento Capa/Adaptação de capa Wagner Almeida Projeto gráfico e editoração: Elisangela Santos CDD: 230 - Cristianismo e teologia cristã ISBN: 978-85-263-1476-4 As citações bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revista e Corrigida, edição de 1995, da Sociedade Bíblica do Brasil, salvo indicação em contrário. Para maiores informações sobre livros, revistas, periódicos e os últimos lançamentos da CPAD, visite nosso site: http:// www.cpad.com.br SAC — Serviço de Atendimento ao Cliente: 0800-021-7373 *

Casa Publicadora das Assembleias de Deus

Av. Brasil, 34.401 - Bangu - Rio de Janeiro - RJ CEP 21.852-002 Ia edição: 0utubro/2017 Tiragem: 43.000


Agradecimentos

A

Cristo Jesus, nosso eterno e com passivo Sum o Sacerdote, que, depois de haver feito a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da M ajestade nas alturas e está intercedendo por nós. À m inha esposa, M aria Regina, pelo apoio incondicional. A m eu am igo e com petente teólogo, Carlos A ugusto V ailatti, por prefaciar este livro.



Apresentação

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0 Desmonte da Igreja Evangélica

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m últimas três décadas, a igreja evangélica brasileira tem pasSftâfe p o r um gigantesco processo de transformação. Se volta®nk>^' no

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tempo, não tão longe, e procurarmos descobrir com o viviam oç cristãos, observaremos que em nada se parece com a igreja de hoje. \ jk 4 Ela éstá mais enrugada, apática, anêm ica e desfigurada! Vivemps uni ? V * processo de desmonte da igreja evangélica brasileira! E a razão parece • - ' r .. óbvia — a igreja hodierna tem-se afastado da cruz e se aproximàdo . assustadoramente do mundo! Infelizm ente, as redes sociais, que deveriam ser um a poderosa ferramenta de evangelização e discipulado, tem-se tom ado a caixa de ressonância dessas deformações. Vídeos bizarros, mostrando pastores, cantoras e cantores flagrados em adultério são postados a todo o momento nas páginas da web. Os compartilhamentos no Facebook, nos quais é mostrado pastores, pregadores e cantores trocando de esposa sem uma razão bíblica justificável, têm-se viralizado! Os políticos "crentes" tam­ bém não escapam. A Lava-jato tem exposto as vísceras não só do mundo sem Deus, mas também daqueles que dizem andar com Deus. Sem dar nomes aos bois, todo mundo sabe citar o nome de algum "crente" que, de um a forma ou de outra, envolveu-se em corrupção. As Convenções e Concílios também espelham essa mudança. Nesses conclaves, ser membro da Diretoria é mais importante do que ser membro da igreja! Exercer um cargo eclesiástico tom ou-se mais importante do que exercitar um dom espiritual! Os Estatutos tomaram o lugar da Bíblia! Quem entra nesse campo minado precisa estar disposto a ser caluniado, acusado, vilipendiado e até mesmo morto! Essa onda, que vem com o um a enxurrada arrastando a tudo e a todos, como um tsunami impiedoso, tem deixado seu mar de lama nos quatro cantos do país. Atordoados, aqueles que ainda estão na corrida e brigam para ser crentes perguntam-se: “O que está acontecendo?". Sim, o que está acontecendo na igreja de hoje? De fato, alguma coisa anorm al e m uito grave está ocorrendo no arraial evangélico! Uma apostasia generalizada parece espalhar-se por todo o universo cristão! Não faz muito tempo, dois expoentes líderes evangélicos, um de tra­ dição reformada e outro pentecostal, anunciaram seus desligamentos de suas respectivas igrejas de origem para filiarem-se ao catolicismo. São tempos de apostasia! Fé, esperança e ânim o (em tempo de apostasia) é o tema deste livro. Nada mais apropriado para entendermos a cultura secular, que, assim


A Supremacia de Cristo como um grande polvo, tem enlaçado a igreja com seus tentáculos. É nesse contexto que a mensagem da carta aos Hebreus levanta-se como um poderoso baluarte contra o desânimo, a desesperança e a descren­ ça. Ela leva-nos a acreditar novamente na mensagem do evangelho e faz-nos crer que Cristo Jesus continua sendo o mesmo ontem, hoje e eternamente. Hebreus é uma carta que alimenta o ânimo, a esperança e a fé! Toda­ via, não foi escrita para amaciar o ego dos crentes. Seu tom exortativo é o mais forte e incisivo do Novo Testamento. O perigo que rondava a comunidade para a qual o autor endereçou essa carta era presente e real. Hebreus vem carregada de enfoque doutrinário e recheada de exortações severas! O perigo de dar as costas para o calvário e voltar para o deserto, rumo ao Egito, foi o que motivou o autor escrever esta carta com ar de dramaticidade. A apostasia é um perigo e também um a realidade sobre a qual o crente deve precaver-se. A exortação do autor é para que se continue na estrada, para que se cam inhe para frente. Todavia, o perigo de voltar para trás existe e é uma ameaça real, não apenas hipotética. A carta é um grito de alerta quando os cristãos pareciam cochilar na fé. Mas, mesmo usando um tom severo, às vezes até mesmo duro, a carta aos Hebreus não foi escrita para produzir insegurança, muito menos medo. Quem está em Cristo está seguro; essa segurança, no entanto, não é compulsória. Ela está condicionada ao andar e permanecer nEle. Escrevi este livro objetivando alimentar a fé dos crentes e fortalecê-los através da reflexão teológica. Para tanto, fiz um comentário versículo por versículo desse importantíssimo documento neotestamentário que o Espírito Santo inspirou e deixou-nos como legado. O texto é de natu­ reza exegética, mas também teológica e devocional. Neste comentário, procurei trazer a minha experiência com as línguas originais da Bíblia para dentro do texto. Por alguns anos, antes de ingressar no ministério pastoral de tempo integral, atuei como professor de grego e hebraico no Instituto Bíblico Pentecostal de Teresina (IBPT) e na FAEPI — Fa­ culdade Evangélica do Piauí. Esse fato fez o texto tomar-se técnico às vezes, devido às constantes análises de palavras das línguas originais. Todavia, esse tecnicismo, que é uma marca característica das obras de natureza eminentemente exegética, também tem seus ganhos. A meu ver, o mais importante deles é permitir ao leitor ver o pensamento do autor neotestam entário numa dim ensão m uito mais am pla do que aquilo que a tradução no vernáculo consegue mostrar. E um fato documentado que a carta aos Hebreus, devido à pecu­ liaridade de seu texto, tem sido objeto de intensos debates teológicos desde os primórdios do cristianismo. No olho do furacão, estão aque­ les textos que tratam da apostasia. Ainda quando comentava o texto, observei que algumas passagens dessa carta demandavam uma análise

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Apresentação léxica, gramatical e contextuai mais aprofundada, por ter que dialogar com as diferentes escolas de interpretação. Para que o texto não ficasse demasiadamente extenso dentro do corpo do com entário do livro e também para que o leitor não sofresse nenhum prejuízo por conta de uma exegese superficial, resolvi tratar desse assunto em um apêndice, posto logo após o capítulo 12 deste livro. Ali, o autor mostra o que diz as diferentes correntes de interpretação do texto de Hebreus, bem como interpreta esse texto a principal vertente do pentecostalismo brasileiro. Desejo dizer que o texto não é perfeito, porém reflete com preci­ são o pensamento de quem também busca ânimo, esperança e fé em tempos de apostasia. A Deus seja a glória! Pastor José Gonçalves Água Branca, PI Março de 2017



É t o longo dos tempos, a epístola aos Hebreus tem recebido os mais J L jk diversos predicados. Ao referir-se a ela, Orígenes (185-254 d.C.) M r T \ declarou: “Os conceitos da epístola são admiráveis e em nada infçrioreSaos <Jas genuínas cartas apostólicas”.1 Séculos mais tarde, Martipibí» Lutero (1483-1546) classificou-a como "uma epístola maravilhosamente bela".2 João Calvino (1509-1564), por sua vez, afirmou que “não há ne­ nhum livro da Santa Escritura que tão claramente fale do sacerdócio de Cristo” e que "tão plenamente explique que Cristo é o cumprimento da lei” quanto a Carta aos Hebreus.3Já em épocas mais recentes, Adam Clarke (1760-1832) assim se pronunciou sobre o valor deste livro bíbli­ co: "A epístola aos Hebreus [...] é, de longe, a mais importante e útil de todos os escritos apostólicos; todas as doutrinas do evangelho estão nela encarnadas [...]”.4 Tais declarações, entre tantas outras que poderiam ser acrescentadas, por si mesmas demonstram a boa reputação de que Hebreus tem desfrutado no decorrer da História da Igreja. Em A Supremacia de Cristo, seu autor, José Gonçalves, na esteira do entendim ento desses que o precederam, mas, ao mesmo tempo, sem abrir mão de suas convicções pessoais, debruça-se com erudição e piedade sobre esse documento neotestamentário de inestimável valor para a igreja cristã. O autor, semelhantemente a um garimpeiro que vive a escavar a terra em busca de pedras preciosas, consegue extrair do texto sagrado, com m uita destreza, as valiosas pepitas do saber bíblico e teológico. O livro em questão, ao destacar a tríade fé, esperança e ânimo em seu título, lembra-nos, de certo modo, os dizeres da sul-africana Mpomela, que, em sua autobiografia, afirmou que, “com ânimo, esperança e fé, você pode sobreviver a todos os ventos tempestuosos".5Para Gonçalves, "com fé, esperança e ânimo, podemos nos resguardar contra a apostasia". A apostasia, isto é, o abandono deliberado e total da fé anteriormente abraçada, longe de ser um perigo irreal e, portanto, fantasioso — como os 1Citado por Eusébio de Cesareia em sua História Eclesiástica 6.25.12. (Cf. CESARÉIA, Eusébio de. H is tó ria Eclesiástica. (Coleção Patrística |V o l.15). [Trads. M onjas Beneditinas do Mosteiro de M aria Mãe de Cristo]. São Paulo, 2000, p.314). 1 PELIKAN, J. & LEH M AN, H. [Eds.]. Luther’s Works. Vol.35. Philadelphia, Fortress Press, 1960, p.395. 3 CALVINO, João. Hebreus. [Trad. Valter Graciano Martins]. São José dos Campos, Editora Fiel, 2012, pp.21,22. 4 CLARKE, Adam. [Ed.]. The Holy Bible, with a Commentary and C ritical Notes by Adam Clarke. (Volume II11 Corinthians to Revelation). London, Thomas Tegg and Son, 1836, p. 1699. 5 M PO M ELA , Thandiwe Rachel. I Was Left with an In ch to G o Dow n: The Journey Through my Life. Bloomington, Xlibris, 2014, p.15.


A Supremacia de Cristo monstros imaginários e ilusórios perseguidos por Dom Quixote de la Mancha e Sancho Pança, seu fiel escudeiro — é, pelo contrário, uma ameaça tangível que vive a rondar de perto a vida de todo e qualquer cristão verdadeiro. Aliás, as várias advertências encontradas em Hebreus, por exemplo, para que não nos desviemos em tempo algum do que ouvimos (2.1), para que não nos apartemos do Deus vivo (3.12), para que não caiamos (6.4-6), para que não recuemos na fé (10.38) e para que não nos desviemos daquele que é dos céus (12.25) não fariam o menor sentido se não fossem advertências reais. Se tais avisos não passam de meras situações hipotéticas, desprovidas de qualquer possibilidade de tomarem-se realidade, como alguns pensam equivocadamente, essas advertências, então, devem ser levadas a sério do mesmo modo como um garoto de 12 anos encara com seriedade a possi­ bilidade de machucar-se gravemente num acidente automobilístico de um jogo de video gamei Noutras palavras, as advertências de Hebreus contra o perigo da apostasia são tão reais quanto às placas de advertência de uma estrada que, de igual modo, chamam nossa atenção para o perigo iminente de uma multa ou de um acidente de trânsito caso não as obedeçamos. Bem, mas como nos prevenir contra o real perigo da apostasia? A mesma epístola aos Hebreus encarrega-se de fomecer-nos a resposta. Podemos precaver-nos com ânimo, cientes do fato de que Cristo, por meio de sua morte, aniquilou "o que tinha o império da morte, isto é, o diabo" (2.14), bem como sendo conhecedores da verdade segundo a qual “não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura” (13.14). Além disso, podemos enfrentar a apostasia por meio da esperança se “conservarmos firme a confiança e a glória da esperança até ao fim” (3.6) e se retivermos “a esperança proposta” (6.18) e “a confissão da nossa esperança" (10.23). Finalmente, podemos vencer a ameaça da apostasia por meio da fé, visto que "o justo viverá da fé” (10.38a), pertencendo ao grupo "daqueles que creem para a conservação da alma" (10.39). Tudo isso, naturalmente, só é possível se, com o auxílio da graça divina, permanecermos "olhando para Jesus, autor e consumador da fé” (12.2). Em suma, a presente obra, além de apresentar um comentário escla­ recedor sobre Hebreus versículo por versículo, também nos brinda com um rico e interessante apêndice sobre a condicionalidade da segurança da salvação na vida dos crentes. Nesse item, o autor, com muita propriedade e sólida fundamentação exegética, desfaz o mito muitas vezes difundido por meio da máxima "uma vez salvo, salvo para sempre”. É por esses e por muitos outros motivos que, com entusiasmo, recomendamos a leitura e o estudo minucioso deste compêndio. Congratulamos a CPAD e o Pr. José Gonçalves pela publicação deste importante contributo bíblico e teológico à Igreja Evangélica brasileira. Carlos Augusto Vailatti Doutor em Estudos Judaicos pela USP, Bacharel e Mestre em Teologia.

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imentos

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Apresentarão

Prefácio...;.... Introdução.... Capitulo 1 A Excelência de Cristo

Capítulo 2

Uma Salvação G ra n d iosa......................................................................30

Capítulo 3 A Superioridade de Jesus em relação a M oisés.................................. 39

Capítulo 4 Jesus É Superior a Josué: o Meio de Entrar no Repouso de D e u s .................................................................................................... 48

Capítulo 5 Cristo É Superior a Arão e à Ordem Levítica......................................56

Capítulo 6 Perseverança e Fé em Tempo de Apostasia.........................................63

Capítulo 7 Jesus: Sumo Sacerdote de um a Ordem Superior............................... 69

Capítulo 8 Uma Aliança S u p erio r........................................................................... 79

Capítulo 9

Contrastes na Adoração da Antiga e Nova A lian ça............................ 86

Capítulo 10

Dádiva, Privilégios e Responsabilidades na Nova A lia n ça ................97

Capítulo 11 Os Gigantes da Fé e o seu Legado para a Igreja.............................. 107


A Supremacia de Cristo Capítulo 12 Exortações Finais na Grande Maratona da F é ..................................117

Apêndice ................................................................................................. 131

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Introdução

A Carta aos Hebreus

N

q seu to m en tário sobre a carta aos Hebreus, o teóloga Josipqrici apresenta um a abordagem m etodológica q tfe u ver, além de facilitar muito o entendimento desse import2Uhtç do?, cumento neotestamentário, também nos permite enxergar toda a sua excelência e beleza literária. Josipovici parte da narrativa do encontn? de Jesus com os discípulos no caminho de Em aús (Lc 24.13-35) para, de forma metafórica, fazer um a ponte literária entre o passado e ó presente. Essa passagem bíblica contrasta a vida dos discípulos por meio da relação entre o que havia acontecido antes com aquilo que estava acontecendo agora. Os discípulos estavam com suas mentes e focos no passado e não conseguiam enxergar nada além dele. O que havia acontecido, sublinha Josipovici, eram "os eventos confusos que levavam à morte de Jesus; o desaparecimento do corpo; o fornecimento de informação, que é clara, porém não compreendida, embora se pre­ suma que os dois discípulos estejam familiarizados com a Escritura". É nesse contexto que Jesus revela-se, fazendo que eles vejam o que está acontecendo naquele momento. Essa manifestação do Cristo vivo produz a "iluminação final, por meio de uma ação específica executada por alguém presente entre eles, que lança um a luz retrospectiva sobre tudo o que aconteceu antes”.1 O Cristo ressurreto faz que eles vejam o que está acontecendo, e não apenas o que havia acontecido. Jesus faz a ponte entre o passado e o presente! Ele irá mostrá-los que os eventos passados dão significado ao presente, mas que o presente, da mesma forma, dá significado ao passa­ do. Esses fatos, quando relacionados à vida de Cristo, acontecem numa sucessão de eventos: a morte de Jesus, o túmulo vazio, as Escrituras, que dão testemunho desses fatos, e a presença viva de Jesus. Josipovici conclui: "A Epístola aos Hebreus concentra-se principalmente na terceira etapa, o modo como a Escritura confirma os eventos da vida de Jesus e com o aqueles eventos dão significado à Escritura. Seu argumento poderia ser resumido assim: Deus, em tempos passa­ dos, falou-nos por meio de sombras e enigmas, mas o sacrifício de Jesus, seu Filho, agora tom ou seu significado claro. Os ho­ mens da Antiga Aliança eram, como nós, peregrinos, avançando em direção a seu objetivo e lugar de descanso final, mas nunca realmente o alcançando. Nós, por outro lado, agora conhecemos conosco o objetivo e estamos em posição de alcançá-lo. É por


A Supremacia de Cristo isso que uma carta assim é necessária, para confortar e encorajar aqueles que poderiam, por causa do medo, preguiça ou ambos recuar, perder a fé, recusar-se a ver a verdade óbvia”.2

A n ô n im a , porém I nspirada Hoje, há praticam ente um a unanimidade entre os biblist|»s de que o apóstolo Paulo não foi o autor da carta aos Hebreus. Para esses intér­ pretes, é mais fácil dizer quem não escreveu Hebreus do que afirmar quem a escreveu. Todavia, o seu uso na liturgia da igreja antiga desde os primórdios do cristianismo atesta que a mesma teve, ainda muito cedo, aceitação com o docum ento inspirado. Esse fato foi impulsio­ nado pela tradição antiga que associava essa carta ao corpus paulino, colocando-a logo após a epístola aos Romanos. Essa ordem, por sua vez, segue um antigo m anuscrito grego (200 d.C), conhecido com o P46, que contém a carta aos Hebreus. As controvérsias sobre a autoria de Hebreus aconteceram de forma mais acalorada na igreja do Ocidente, de fala latina, do que na igreja Oriental, de fala grega, e estenderam-se até o século IV d.C. Essas controvérsias giravam em tomo de uma segunda oportunidade de arrependimento para quem viesse a pecar depois do batismo. Os textos que serviram como base dessa controvérsia eram, respectivamente, Hebreus 6.4-6; 10.2631 e 12.17. Isso pode ser visto, por exemplo, na exposição dos textos do Pastor de Hermas (120-140 d.C) e de Tertuliano (160-220 d.C), bispo de Cartago. Novaciano (200-258), que era conhecido pelo seu rigorismo, afirmava que os cristãos que renunciaram a fé por conta da perseguição movida por Décio (201-251) não podiam mais ser perdoados. Por outro lado, Cipriano defendia que, após uma penitência rigorosa, os infiéis poderiam ser novamente enxertados na igreja. Os pais gregos, diferentemente dos latinos, embora questionassem as interpretações dadas a carta aos Hebreus, não dogmatizaram, todavia, as questões relacionadas à sua autoria. Erik M. Heen e Philip D. Krey destacam que: "O Oriente grego, ainda que se discutiam temas relacionados com a autoria paulina, as passagens do segundo arrependimento não se consideravam tão problemáticas como no Ocidente, e nunca se questionou seriamente a autoria da carta aos Hebreus. Os exegetas alexandrinos Pateno e Clemente aceitaram a au­ toria paulina, ainda que Clemente sugeriu que as diferenças estilísticas da carta se deviam a tradução que Lucas fez do original hebraico para o grego; esta tradução foi incorporada a glossa ordinária e foi a opinião tradicional que prevaleceu na

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Introdução igreja medieval do Ocidente. Orígenes aperfeiçoou essa ideia ao sugerir que a carta estava redigida em uma ordem diferente em que apresentava em sua tradução”.3 I Os comentários de Orígenes sobre a autoria da carta aos Hebreus são representativos da tradição grega em geral.4 Em sua H om ilia Sobre a Carta aos Hebreus, Orígenes (185-254 d.C), escreveu: “De minha parte, se hei de dar m inha opinião, eu diria que os pensamentos são do apóstolo (Paulo), mas o estilo e a compo­ sição são de alguém que evocava de memória os ensinamentos do apóstolo, com o um aluno que anota por escrito as coisas que seu mestre disse. Por conseguinte, se algum a igreja tem esta carta como de Paulo, que. também por isto a estime, pois não sem motivo os antigos a tem transmitido como de Paulo. Mas quem escreveu a carta? Deus sabe de verdade”.5 Clemente Romano cita a carta aos Hebreus em 95 d.C, mas não faz nenhuma alusão a Paulo. Em cerca de 180 d.C, Pantenus, um dos pais orientais, defendeu a autoria paulina de Hebreus, posição semelhante adotada pela igreja ocidental a partir de Hilário. Todavia, foi somente no Concílio de Cartago, ocorrido em 397 d.C., que a carta aos Hebreus foi reconhecida de forma oficial pela igreja e tida como fazendo parte, de fato e de direito, do corpus paulino. A partir desse Concílio, a carta aos Hebreus é tida como uma obra escrita pelo apóstolo dos gentios e que, portanto, possuía valor canônico. Na Idade Média, foi essa a opinião prevalecente. No entanto, com o advento do Renascimento e da Reforma Protestante, onde um interesse por um retomo às fontes dominava os círculos acadêmicos, as antigas questões relacionadas à carta aos Hebreus voltaram novamente. Não se questionava a sua inspiração, mas, sim, a sua autoria. Lutero, por exemplo, acreditava que Apoio (e não Paulo) seria o autor dessa carta. F. M. Young destaca que Lutero estava ciente da anti­ ga discussão em tom o dessa carta e concluiu que Paulo não poderia ser seu autor. “Ele notou que a recusa em permitir o arrependimento após o batismo em Hebreus (6.4-6) diferia da aceitação do arrependimento após o batismo nos evangelhos e nas epístolas de Paulo”.6 Para ele, Apoio, por ser um varão "eloquente e poderoso nas Escrituras” (At 18.24), ajustava-se melhor no perfil de quem escreveu Hebreus. O dogma criado pela igreja católica em tom o da autoria paulina de Hebreus prevaleceu por muito tempo, e seus defensores apresentam o que acreditavam ser prova disso. Neil R. Lightfoot, que não é dogmático nessa questão, enumerou as razões favoráveis a um a autoria paulina para Hebreus, conforme postas por seus defensores:

IS


A Supremacia de Cristo 1.

As circunstâncias apresentadas nos versículos finais deÍHebreus são semelhantes àquelas existentes nas cartas reconhecida­ mente com o paulinas (Hb 13.3 e 13.18; comparar/com Rm 15.30; 2 Co 1.11 ; At 23.1; 24.16; 2 Co 1.12; 1 Tm 6.9; 2 Tm 1.3; Hb 13.19; comparar com Fm 22; Fp 1.24-25; Htí 13.20,25; comparar com Rm 15.33, 1 Tm 5.28 e 2 Tm 3 .1

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a ) Muitas ideias apresentadas em Hebreus são feemelhantes às encontradas nas cartas paulinas. Ciistologia. Em Hebreus e em Paulo, Cristo é representado com o a imagem de Deus (Hb 1.3; cf. Cl 1.5); o agente? e sustentador de toda a criação (Hb 1.1-3, 10-12; cf. Cl 1.16 -17; 1 Co 8.6); hum ilhado com o homem e exaltado acim a dos anjos (Hb 2.14-17; 1.4-14; cf. Fp 2.5-11; E fl.2 p -2 3 ); aquele cuja morte foi um sacrifício por todos (Hb 1.3; 2.9; 9.26; 10.12; cf. 1 Tm 2.6; E f 5.2; 1 Co 15.3).

b ) As duas Alianças. A Velha Aliança não passava de som­ bra das boas coisas da Nova (Hb 10.1, cf. 2.16-17), assim como os acontecimentos e planos da antiga eram típicos da nova (Hb 8.1-6; 4 .1 -2 ,11 ; cf. 1 Co 10 .11). A A ntiga Aliança, por causa da sua fraqueza (Hb 7.18; cf. Rm 8.3), tinha de aguardar algo além de si mesma (8.8-13) e ser substituída com o estabelecimento de uma nova aliança (Hb 7.19; 8.13, cf. 2 Co 3 .9 -11).7 2.

Certo número de frases e termos em Hebreus é similar aos encontrados nas cartas paulinas.

3.

Segue-se uma lista de alguns dos paralelos dados por Moses Stuart.

a) O texto de Hebreus 1.5 só ocorre outra vez no Novo Testa­ mento e é de uso paulino em At 13.33 em referência a Cristo.

b ) O texto de Hebreus 2.4 destaca os dons do Espírito San­ to, que é paralelo aos encontrados nos escritos de Paulo (1 Co 12.4; 12.11; Rm 12.6).

c) O texto de Hebreus 2.10 destaca Cristo como o autor e proprietário de todas as coisas. A mesma verdade é ensi­ nada por Paulo (Cl 1.16; 1 Co 8.6)

d ) O texto de Hebreus 2.16 enfoca a descendência de Abraão, que é paralelo àquilo que Paulo escreveu sobre o velho patriarca (G1 3.29; 3.7; Rm 4.16)

e ) Hebreus 4.12 usa a espada como um símbolo da Palavra de Deus. A mesma metáfora é usada por Paulo (E f 6.17). f) O texto de H b 6.3: "[...] se Deus o permitir” só é usado outra vez no Novo Testamento em 1 Co 16.7.

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Introdução g) O texto de Hb 10.19 destaca o acesso a Deus que foi ga­ rantido por Cristo. Muitos paralelos são encontrados em Paulo (Rm 5.2; E f 2.18; 3.12).8 Apesar de esses paralelos parecerem bastante fortes em defesa da autoria paulina de Hebreus, a erudição bíblica protestante, seguindo os reform adores M artinho Lutero (14 8 3 -15 4 6 ), Filipe M elâncton (1497-1560), João Calvino (1509-1564) e Teodoro de Beza (1519-1605), optou por rejeitar essa autoria. As diferenças de estilo, forma e temas teológicos são as principais razões que os levaram a essa rejeição. Dentre essas razões, são enumeradas: 4.

O apoio histórico para a autoria paulina é praticamente nulo. A opinião de Clemente de Alexandria, que atribui a autoria de Hebreus ao apóstolo dos gentios, é tardia e incorreta porque não há evidência alguma de que essa carta foi escrita original­ mente em hebraico e, depois, traduzida para o grego. O texto grego de Hebreus, o mais refinado do Novo Testamento, depõe contra a ideia de uma tradução.9 Por outro lado, o testemunho de Orígenes, para quem “somente Deus sabia quem escreveu Hebreus", deve ser levado em conta. O cânon muratoriano, Irineu, Hipólito e Gaio de Roma não consideravam Hebreus como sendo escrita por Paulo.10

5.

O estilo e a linguagem da Epístola aos Hebreus diferem consi­ deravelmente das cartas de Paulo. Enquanto o estilo paulino é marcado por frequentes irregularidades, anacolutos, parênteses inconclusos e misto metafórico, a carta aos Hebreus possuí fluidez, simetria e é possuidora de um estilo artisticamente elaborado. O conceito de fé também difere nos dois autores. Em Hebreus, a fé aparece como uma recompensa daqueles que ousaram crer nas promessas de Deus, enquanto em Paulo, a fé está associada à justificação que independe das obras da lei.11 As expressões “Jesus Cristo”, "Nosso Senhor Jesus Cristo”, Cristo Jesus” e "Senhor” (para Cristo) são usadas mais de 600 vezes por Paulo; todavia, não estão presentes em Hebreus. O tema do Sumo Sacerdócio de Cristo, que praticamente domina toda a carta aos Hebreus, está ausente em Paulo. Outro fato notável é a maneira como os dois autores usam o Velho Testamento em suas citações. O autor de Hebreus utiliza-se do recurso: "Deus diz”; “O Espírito Santo diz” ou foi "testificado em algum lugar”, enquanto Paulo valia-se de fórmulas, tais como: “Está escrito”; “as Escrituras dizem”.12

6.

O autor de Hebreus recorre à Septuaginta, enquanto Paulo nem sempre se vale dessa tradução.

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A Supremacia de Cristo 7.

O autor admite que a salvação pregada por ele foi transmiti­ da e “confirmada pelos que a ouviram" (Hb 2.3). Paulo, por outro lado, insiste que não recebeu o evangelho po»parte de homem algum, mas diretamente de Jesus Cristo (Gl 1.11-12).”

Outros nom es além de Paulo foram levantados com o (possíveis autores de Hebreus. Tertuliano (160-220 d.C) defendeu Barriabé, com ­ panheiro de Paulo, como sendo o autor dessa carta. Ele escreveu: “Pois ainda existe um livro escrito por Barnabé aos Hebreus”.14 Charles A. Trentham observa que Barnabé, um levita, natural de Chipre, ajusta-se bem ao profundo conhecimento que o autor de Hebreus possuía sobre a adoração levítica. Por outro lado, o significado de seu nome (“filho da exortação" ou "consolação") explica o forte tom exortativo dessa carta. Sendo natural de Chipre, ilha reconhecidamente de cultura alexandrina, Barnabé estava qualificado, como judeu helenista, a manusear o grego com maestria como o fez o autor de Hebreus. A sua amizade com Timóteo e Pauio explicaria aquilo que parece influência paulina errj Hebreus.Is Fica, portanto, em aberto a questão da autoria da carta aos Hebreus, mas não a sua inspiração. Quis o Espírito Santo que o autor ficasse no anonimato, mas não a sua autoridade e inspiração.

Os P rimeiros L eitores Os manuscritos gregos Sinaiticus (c. 330-360) e Vaticanus (c. 300-325) trazem o título "Pros Hebraious” (Aos Hebreus). Todavia, como se tratam de cópias, não é possível afirmar com segurança que esse título fizesse parte da redação original. O que pode ser afirmado é que eles atestam a existência de um a tradição muito antiga que associava a carta aos Hebreus a uma antiga comunidade de crentes de origem judaica. Uma quantidade significativa de intérpretes conservadores acredita que essa tradição reflete melhor as evidências encontradas no texto de Hebreus. As evidências internas da carta revelam que os destinatários de Hebreus eram judeus helénicos. Não faria sentido o autor recorrer ao Velho Testamento como forma de validar seus argumentos se os seus leitores fossem gentios. Nesse aspecto, vale a pena destacar que a carta contém várias pas­ sagens que só fazem sentido se o público leitor fosse de judeus (Hb 7.11; 13.13). Frederick Fyvie Bruce (1910-1990) comenta: “Os destinatários parecem ter sido, portanto, um grupo de cristãos judeus que nunca tinha visto ou ouvido falar de Jesus em pessoa, mas eles tinham aprendido sobre ele (como fez o escritor da epístola) de alguns que tinha pessoalmente ouvido de sua conversão. Tinham sido expostos à perseguição, espe-

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Introdução cialmente em um estágio no início de sua corrida cristã, mas apesar de terem de suportar abuso público, prisão e saques de suas casas, ainda não tinha sido cham ado a morrer por sua fé. Tinham fornecido provas concretas de sua fé para servir os seus irmãos cristãos e especialmente para cuidar daqueles em sua congregação que tinha sofrido m ais em tem pos de perseguição. M as seu desenvolvimento cristão tinha parado: em vez de avançar, tendiam a estagnar com pletam ente em seu progresso espiritual e até mesmo a recuar em direção a um a fase que tinham superado. Muito provavelmente, eles se recusaram a cortar seus últimos laços com a religião que con­ tava com a proteção do direito romano e enfrentar os riscos de um comprom isso irrevogável para a cam inhada cristã. O escritor, que conhece ou ouviu falar sobre eles por um tempo considerável, e sente solicitude pastoral para com seu bem-es­ tar, alerta-os sobre esse recuo, porque isso pode resultar em um afastamento completo da fé cristã. Ele encoraja-os com a garantia de que podem perder se voltarem, mas vencerão se continuam resolutamente no cam inho”.16

C onteúdo e P ropósito Uma leitura cuidadosa de Hebreus mostra que o autor tencionava pro­ duzir ânimo, esperança e fé em um tempo de apostasia. Com o faziam parte da segunda geração de crentes, os Hebreus estavam dando sinais de arrefecimento na fé muito cedo. Aquele entusiasmo presente marca­ do pelo primeiro amor estava desaparecendo. Em lugar disso, alguns mostravam encantamento pelo velho sistema do qual haviam saído. Já no início de sua exposição, o autor faz um contraste entre a posição dos anjos com a posição do Filho. No judaísm o antigo, os anjos ocupavam um a posição de alta relevância, e, ao que parece, muitos cristãos a quem o autor dirige a palavra estavam novamente sendo fascinados por esse ensino. O autor ressalta a importância que os anjos possuíam, m as eles estão longe de serem comparados com Jesus, o Filho de Deus, que não é uma criatura angélica, mas, sim, o criador de todas as coisas e a expressão exata do ser de Deus (1.1-4). A passagem de hebreus 2.1-4 “visa conscientizar os leitores sobre as graves consequências do menosprezo da mensagem de Deus, ou seja, a salvação mediada pelo Filho”.17 Os capítulos 3 e 4 são usados pelo autor para contrastar as figuras de Moisés e Josué com a pessoa de Jesus. Nem Moisés nem tam pouco Josué conseguiram o objetivo de prover o descanso completo para o povo de Deus. Nessa parte, o autor lembra seus leitores que, assim com o os hebreus fracassaram na cam inhada, os cristãos, nos seus

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A Supremacia de Cristo dias, da m esm a form a, estavam incorrendo no m esm o perigo (Hb 3.8,13,15:4.6,11,14). J Numa seção mais extensa, que vai do capítulo 4.14 até 10.39, a carta explora o sistema sacerdotal levítico, contrastando com o sacerdócio de Jesus, que é de uma ordem superior. Para o autor, esse assunto/não seria de fácil explicação porque os seus leitores tomaram-se tardios piara ouvir. Ao invés de agirem com o adultos, terem suas faculdades exdrcitadas e alimentarem-se de comida sólida, eles ainda estavam necessitando de leite. "Esse bloco teológico se conclui com um novo trecho exortativo (10.19-39), que acrescenta algum as inform ações novas: Há pessoas que estão abandonando a comunidade (10.23-25), Com o brasas que se isolam do braseiro, vão perdendo a esperança, a fé e o amor. Ao invés de buscar na comunidade o calor e a força para resistir, há pessoas que preferem a saída mais fácil de renunciar à prática da fé”.18 A seção que vai do capítulo 12.1 a 13 .17 é usado pelo autor para agregar mais conteúdo exortativo. O autor está consciente das lutas de seus irmãos, porém lembra-os de que esses sofrimentos não eram motivo de desespero, visto que eles ainda não haviam suportado o martírio por causa da fé que professavam. Nenhum deles havia derramado sangue por sua fé. Era preciso atentar para o fato de que muitas provas eram permitidas por Deus. Era uma forma de disciplina usada pelo Senhor com o propósito de que os crentes participassem da sua santidade. O momento, portanto, não era de voltar atrás, mas, pelo contrário, de sair fora do arraial para que, juntamente com Cristo, levassem seu vitupério. Era a igreja sendo igreja fora dos seus portões.

N otas 1 JOSIPOVICI, Grabiel. Guia Literário da Bíblica. Editora UNESP, São Paulo, SP. 2 dem. pp. 545. 3 HEEN, Erik M. e KREY, Philip D. La Bíblia Comentada Pelos Los Padres de La Iglesia - Hebreos. Editorial Ciudad Nueva, Madrid, Espana. 4 La Bíblia Comentada Pelos Los Padres de La Iglesia - Hebreos. Editorial Ciudad Nueva, Madrid, Espana (tradução livre do autor). 5 CESAREIA, Eusébio. História Eclesiástica. CPAD, Rio de Janeiro, RJ. 6 YOUNG, F.M. Dictionary o f Biblical Interpretation, 2 vol. Abingdon Press, Nashville, USA, 1999. 7 LIGHTFOOT, Neil R. Epistola aos Hebreus - comentário vida cristã. Editora Vida Cristã, Belo Horizonte, MG., 1981. 8 STUART, Moses. Commentary on the Epistle to Hebrews, Londres, 1950. 9 Em Hebreus, há um grupo de 150 palavras gregas que ocorrem somente nesta carta e em nenhum outro lugar do Novo Testamento (VICENT, Marvin R. Word Studies in Hebrews. New York, 1886.

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Introdução ,0LIGHTFOOT, Neil R. Epístola aos Hebreus - comentário vida cristã. Editora Vida Cristã, Belo Horizonte, MG., 1981. u VICENT, Marvin. Word Studies in Hebrews. New York, 1886. 12LIGHTFOOT, Neil R. op.cit. 13LIGHTFOOT, Neil R. Epistola aos Hebreus - comentário vida cristã. Editora Vida Cristã, Belo Horizonte, MG., 1981. 14 CESARÉIA, Eusébio. História Eclesiástica. CPAD, Rio de Janeiro, RJ. 15 TRENTHAN, Charles A. Comentário Bíblico Broadman - Hebreus. JUERP, Rio de Janeiro, RJ. O meu professor de Novo Testamento no Seminário onde me formei advogava a tese de Tertuliano. 16 BRUCE, F. F. La Espistola a Los Hebreos. Grand Rapids, Michigan, EE.UU, 2002 (tradução livre do autor). 17 DOBBERAHN, Friedrich Erich. Hebreus - guardar a esperança até o fim. Editora Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro, 1992. 18 Idem. pp. 10,11.

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I

Capítulo 1

A Excelência de Cristo Com entário de Hebreus 1.1-14

F

ugindo das características que são com uns na abertura de um a carta ou epístola, o autor vai diretamente ao assunto que ele quer tratar. No original, é possível perceber a beleza da sua construção literária ainda nas primeiras linhas. Neil R. Lightfoot observa que, já rta abertura de seu texto, o autor antecipa tudo o que se seguirá. Ele mostrará a supremacia da fé cristã em relação ao judaísmo primitivo.

“Havendo Deus, antigamente, falado, muitas vezes e de muitas maneirasí aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos, nestes últimos dias, pelo Filho” (v. 1). Os profetas eram os arautos de Deus para o povo de Israel. A Instituição Pro­ fética no Antigo Testamento é por demais importante para ser minimizada. Para um judeu, a pior desgraça que poderia existir era o silêncio profético. A trombeta profética servia de alerta quando a vida moral, a espiritual e a social não iam bem. Abraham Joshua Heschel (1907-1972), famoso rabino austro-americano, escreveu sobre a importância dos profetas: “O significado dos profetas de Israel não reside apenas no que eles disseram , m as tam bém no que eles foram . N ão podem os en­ tender com pletam ente o que eles pretendiam dizer a nós, a menos que tenhamos algum grau de consciência do que lhes aconteceu. Os momentos que passaram em suas vidas não estão agora disponíveis e não podem se tom ar objeto de análise científica. Tudo o que temos é a consciência desses momentos como preservados em palavras [...]. O profeta faz pouco caso daqueles para quem a presença de Deus é auxílio e segurança; para ele, é um desafio, uma exigência incessante. Deus é compaixão, não concessão; justiça, embora não inclemência. A palavra do profeta é um grito na noite. Enquanto o mundo dorme despreocupado, o profeta sente o golpe vindo do céu”.1 O autor de Hebreus tem consciência desse fato — os profetas foram arautos de Deus para o seu antigo povo. Todavia, uma voz superior a deles fora levantada — a voz do Filho de Deus! Essa voz era em tudo superior a dos profetas. Os profetas foram agentes da revelação divina, mas não foram a revelação final. O autor lembra que essa revelação final, a última palavra profética, era do Filho de Deus. Nenhum profeta, por mais importante que tivesse sido, poderia igualar-se em importância com Jesus Cristo. A ideia, aqui, não é que Deus não falaria m ais a partir daquele mom ento, com o nos quer fazer acreditar alguns autores, mas, sim, mostrar Jesus Cristo como sendo o cumprimento de tudo aquilo que foi predito pelos profetas.2 Adam Clarke (1760-1832) comentou com m uita propriedade que:


A Supremacia de Cristo "Debaixo do Antigo Testamento, as revelações foram feitas em ocasiões distintas por várias pessoas, em diversas leis e forma de ensinamentos com diferentes graus de clareza, símbolos, tipos e figuras e com distintos modos de revelação, tal como por anjos, visões, sonhos, impressões mentais, etc.; veja Nm. 12.68. Todavia, debaixo do Novo Testamento, tudo está feito por um a só pessoa, quer dizer, Jesus, que cumpriu o que disseram os profetas e completou as profecias”.3

“A quem constituiu herdeiro de tudo, p o r quem fez também o m un­ do” (v. 2). A palavra "herdeiro", que traduz o termo grego kleronomos, era usada em referência à divisão dos bens que um pai realizava em favor de seus filhos. No judaísm o antigo, esse termo foi usado para o lançam ento de sortes para ser definido a quem caberia a parte da herança. A ideia é que Jesus Cristo, por ser o único Filho de Deus, tom ou-se o herdeiro de tudo. Todavia, Ele não era apenas o herdeiro de tudo, mas também foi o agente da criação. Através dEle, os mundos foram criados. A palavra "mundo” traduz o termo grego aionas, com o significado de “eras'. O sentido é que Deus, em Cristo, criou o mundo com tudo o que nele há. Com o bem destacou Efrén de Nisibi: "tanto o mundo espiritual como o material".4

"O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, ha­ vendo feito p o r si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da Majestade, nas alturas" (v. 3). Esse versículo compõe aquilo que os teólogos denominam de “cristologia alta”. A patrística valeu-se com frequência desse texto para afirmar a divindade de Cristo. Ainda muito cedo, Orígenes escreveu: “A m im me parece que o Filho é um reflexo da glória de Deus, conforme ao que Paulo afirma: 'Ele é o reflexo de sua glória’. Deste reflexo de toda a gloria, reflete certamente os reflexos parciais que tem as demais criaturas dotadas de razão, pois penso que nada, exceto o Filho, pode conter o reflexo da glória do Pai em sua totalidade”.5 Por outro lado, Atanásio, em seu discurso contra os arianos, escreveu: “Quem já viu um a luz sem resplendor? A o escrever aos Hebreus, o apóstolo afirma: ‘Cristo é o esplendor de sua glória e a m arca de sua substância’, e Davi, no Salm o 89, canta: ‘O esplendor do Senhor, nosso Deus, está conosco’, e também: 'Em tua luz, vemos a luz’. Quem é tão néscio que não entende que essas palavras referem-se à eternidade do

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A Excelência de Cristo Filho? Com o pode alguém ver a luz sem o esplendor de sua irradiação para poder dizer a respeito do Filho: 'Houve um tem po no qual ele não existia’ ou ‘Não existia antes de ser gerado'? A expressão do Salm o 144 refere-se ao Filho: “Teu reino é um reino eterno” e não permite a ninguém pensar em um intervalo cronológico, qualquer que seja, no qual o Logos não existia".6 Em seu clássico e exaustivo comentário sobre a carta aos Hebreus, o puritano William Gouge (15 75 -16 5 3 ) lança mais luz sobre o enten­ dimento desse texto: "Essa frase, a expressa imagem, é uma exposição da palavra grega xaPaKC*\P> que pode ser traduzida com o character (ca­ ráter). O verbo do qual essa palavra é derivada, charattein, insculpir, significa gravar, e aqui é usada com o sentido de carimbar ou imprimir alguma coisa gravada como a impres­ são sobre uma moeda; a impressão sobre o papel feita pela impressora; a marca deixada pelo selo”.7 Em outras palavras, aquilo que Deus é, Jesus Cristo também é.

“Feito tanto mais excelente do que os anjos, quanto herdou mais excelente nom e do que eles” (v. 4). Tendo mostrado a dignidade do Fi­ lho de Deus e sua superioridade sobre o ministério profético, o autor passa a fazer um contraste entre Jesus e os anjos. A cultura judaica, representada tanto na literatura canônica com o na apócrifa, dá um papel de destaque para as figuras angélicas. Os anjos frequentemente aparecem nas páginas do Antigo Testamento. O apóstolo Paulo adver­ tiu a igreja de Colossos sobre os perigos de um a adoração angélica: “Ninguém vos domine a seu bel-prazer, com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão" (Cl 2.18). Em nenhum m om ento, o autor deprecia a instituição profética, nem tampouco procura desqualificar o papel dos anjos dentro do plano de Deus. O seu foco, porém, é mostrar que ninguém, nem mesmo os anjos, que habitam os céus, pode ser m aior do que o Filho de Deus. "A ideia é a de superioridade em dignidade, valor ou utilidade, sendo a ideia fundamental de poder, e não a de bondade”.8

“Porque a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, hoje te gerei? E outra vez: Eu lhe serei p or Pai, e ele me será p or Filho” (v. 5). Embora os anjos sejam chamados na Bíblia de "filhos de Deus” (Jó 1.6; 2.1), o Senhor, todavia, jamais os chama de "meus filhos”. Essa expressão só é aplicada a Cristo conforme demonstra o Salmo 2. Aqui, não está presente a ideia de uma inferioridade do Filho em relação ao pai pelo fato de aquEle ter sido

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A Supremacia de Cristo "gerado”. Os cristãos neotestamentários não tinham problema algum com a divindade de Cristo, sendo que tais questionamentos foram disseminados em tempo posterior com a heresia ariana. Na cultura hebraica, as ideias por trás das palavras “Pai" e “Filho” não trazem o sentido de origem do ser e de superioridade, nem tampouco de subordinação e dependência. Da mesma forma, os termos “gerado” e "criado” não podem ser tidos como sinônimos. Loraine Boettner (1901-1990) observa que essas palavras trazem em si as “noções semíticas e orientais de semelhança e igualdade de natureza e igualdade do ser. Obviamente, a sensibilidade semítica é que sublinha a fraseologia das Escrituras, e, quando elas chamam Cristo de ‘Filho de Deus’, confirmam sua divindade verdadeira e apropriada. Isso indica um a relação peculiar que não pode ser afirmada a respeito de criatura alguma, nem tampouco compartilhada. Da mesma forma que qualquer filho humano assemelha-se ao pai em sua natureza essencial, isto é, possui humanidade, assim também Cristo, o Filho de Deus, era como o Pai em sua natureza essencial, isto é, possuía Divindade".9 C. S. Lewis (1898-1963), o consagrado escritor britânico e autor de as Crônicas de Námia, em uma carta escrita a Arthur Greeves, disse que: "Gerar é tomar-se pai; criar é fazer. A diferença é esta: quando você gera, gera algo da mesma espécie que você. Um homem gera bebês humanos, o urso gera filhotes ursos, e um pássaro gera ovos que se transformam em passarinhos. Mas quando você cria, faz algo de uma espécie diferente da sua. O pássaro faz o ninho, o castor constrói um dique, o homem faz o telégrafo — ou talvez faça alguma coisa mais parecida consigo mesmo, como talvez uma estátua. Se for um escultor bem qualificado, pode fazer uma estátua bem parecida com um homem. Naturalmente, porém, ela não será um homem verdadeiro, apenas se assemelhando a ele. Ela é incapaz de respirar ou pensar. Não está viva. Essa é a primeira coisa a compreender. O que Deus gera é Deus; assim como o que o homem gera é homem. O que Deus cria não é Deus; da mesma forma que o que o homem cria não é homem. Daí a razão de os homens não serem filhos de Deus no mesmo sentido que Cristo. Eles podem assemelhar-se a Deus em certos aspectos, mas não pertencem à mesma espécie. Aproximam-se mais de estatuas ou figuras de Deus”.10

“E, quando outra vez introduz no mundo o Primogênito, diz: E todos os anjos de Deus o adorem" (v. 6). O autor põe em relevo a superioridade do Filho em relação aos anjos quando destaca que estes devem prestar-lhe adoração. A ideia, aqui, não é apenas de prestar um a homenagem com o sugere o ensino ariano. O vocábulo grego proskyneo traz a ideia de prostrar-se e adorar. 11 Os intérpretes acreditam que o autor nessa

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A Excelência de Cristo citação fez uma combinação de Deuteronômio 32.43 com o Salmo 97.7 (96.7 LXX). Tanto o texto massorético em hebraico como o texto grego da Septuaginta traduzem as palavras histahãwüe proskyneo como adorar.

“E, quanto aos anjos, diz: O que de seus anjos faz ventos e de seus ministros, labareda de fogo” (v. 7). A tradução "vento", e não "espírito”, posta logo após o termo “anjos", conforme aparece na Almeida Revista e Atualizada, capta melhor o sentido do original. O sentido é que os anjos podem assumir tanto a forma de vento com o de fogo! Por outro lado, a palavra “ministros” (gr. leitourgeo ) dá a ideia de alguém a serviço de outrem. Os anjos são seres a serviço de Deus.

“Mas, do Filho, diz: Ó Deus, o teu trono subsiste pelos séculos dos séculos, cetro de equidade é o cetro do teu reino" (v. 8). Aqui, o autor faz uma referência ao Salmo 45. Precisamos enxergar o caráter messiânico desse salmo se quisermos, de fato, entender o pensamento do autor. Em seu comentário do Novo Testamento, Joseph Benson (1749-1821) observa que essa citação só tem sentido quando aplicada a Cristo.12 Somente Ele pode ser chamado de Deus. Archibald Thomas Robertson (1863-1934), da mesma forma, vê nesse texto uma afirmação da divin­ dade de Cristo. Robertson observa que “essa citação (a quinta) provém do Salmo 45.7ss. Uma ode nupcial hebraica (epithalam ium ) para um rei, que aqui é tratado como messiânico. Aqui, ho theos deve tomar-se como vocativo (dirige-se a palavra como na forma nominativa, como em João 20.28, onde o Messias é designado como Deus; cf. Jo 1.18)”.13

"Amaste a justiça e aborreceste a iniquidade; p o r isso Deus, o teu Deus, te ungiu com óleo de alegria, mais do que a teus companheiros” (v. 9). Eusébio de Cesareia (263-339 d.C.) destaca: “aqui, o primeiro versículo do texto o cham a de Deus; o se­ gundo o honra com o cetro real. E a continuação depois de seu poder divino e régio mostra o mesmo Cristo, em terceiro lugar, ungido não com óleo que procede de matéria corporal, senão com o óleo divino do gozo, pelo que vem significar sua excelência, sua superioridade e sua diferença em relação aos antigos, ungidos mais corporalmente e em figura”.14

“E : Tu, Senhor, no princípio, fundaste a terra, e os céus são obra de tuas mãos” (v. 10). Com sua mente no Salmo 102.25-27 e sempre seguindo a Septuaginta, o autor descreve a exaltação de Cristo, que é retratado aqui como Senhor e Criador. Para o autor, uma das inúmeras razões da superioridade de Jesus sobre os anjos é que Cristo não é uma criatura, mas, sim, o próprio Criador de tudo o que há. Essas palavras fazem um paralelo com Colossenses 1.16 e João 1.3.

“Eles perecerão, mas tu permanecerás; e todos eles, co m o roupa, envelhecerão” (v. 11). Em contraste com o mundo que passará, Jesus permanecerá para sempre.

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A Supremacia de Cristo “E, com o um manto, os enrolarás, e, com o uma veste, se mudarão; mas tu és o mesmo, e os teus anos não acabarão” (v. 12). O autor põe em relevo as metáforas para contrastar a transitoriedade do mundo criado com a eternidade do Filho. Em seu comentário sobre Hebreus, James Moffat (1879-1944) escreveu: “O mundo desgasta-se, e até mes­ mo os céus (12.26) são abalados, e com ele as luzes celestiais, mas o Filho permanece. A natureza está a sua mercê, e não Ele à mercê da natureza”.15

“E a qual dos anjos disse jamais: Assenta-te à m inha destra, até que ponha os teus inimigos p o r escabelo de teus pés?” (v. 13). Aqui, a figura é de um monarca sendo honrado diante de seus súditos. O assento da direita revelava posição de honra. Por outro lado, no Oriente, era cos­ tume dos vencedores colocar o pé no pescoço dos vencidos (Js 10.24). Nenhum dos anjos ocupou um a posição de honra semelhante àquela ocupada por Jesus. A expressão assenta-te, que traduz o grego kathou, está no presente contínuo e descreve o estado permanente da grandeza e supremacia de Jesus para todo o sempre. O autor está próximo de introduzir outra seção na sua argumentação, mas ele precisa concluir sobre aquilo que ele havia argumentado sobre a superioridade do Filho em relação aos anjos. Os anjos são servos de Deus, Jesus é Filho e Senhor; os anjos não têm trono, o Filho tem. Os anjos são servos a serviço da salvação; o Filho é o autor da Salvação.

"N ão são, porventura, todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor daqueles que hão de herdar a salvação?" (v. 14). O versículo 14 conclui o que o autor tencionava fazer ao contrastar a pessoa de Jesus com os anjos. Ficou meridianamente claro que o Filho de Deus é superior aos anjos em tudo. Os anjos estão a serviço da so­ berania divina no seu projeto redentivo. “Afinal, o que são os anjos?", pergunta Stuart Olyott. “Não são pessoas da Divindade. São espíritos criados que foram enviados por Deus, não somente para servi-lo, mas também para servir os cristãos. Quão revelador e confortante é isso! E m alguns mom entos parecemos tão rebaixados e os anjos aparecem tão poderosos. M as nós é que herda­ remos a salvação, não eles. Em bora já estejamos salvos, a consum ação final de nossa salvação (o corpo ressurreto, a absolvição pública no juízo final, as glórias celestiais, etc.) ainda nos aguarda. Os anjos já estão tão elevados o quanto é possível; nós ainda aguardamos a glorificação final, quando "julgaremos os próprios anjos” (1 Co 6.3). M as jamais po­ deremos nos comparar em glória com nosso Senhor Jesus Cristo. M uito menos os anjos podem ser comparados a ele! Por que, então, alguém é tentado a deixá-lo e retomar a uma

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A Excelência de Cristo religião centrada em um conjunto de regras dadas por meio de intermediários angélicos?".16

N otas 1 HESCHEL, Abraham Joshua. The Prophets. Hendrickson Publishers, Peabody, Massachsetts, EU A, 2014. 2 É assim que devemos entender o uso do particípio aoristo làlesas, (tendo falado) no versículo 1 e o aoristo do indicativo ativo elalesen (falou) no versículo 2. A revelação final havia-se completado. O ministério profético da Antiga Aliança havia terminado (Lc 16.16), sendo que, a partir desse ponto, Deus falaria através do seu Filho, a revelação final; e este conti­ nuaria a falar à sua igreja através do seu Espírito (Jo 16.13; At 21.11). 3 CLARKE, Adam. Comentário de La Santa Biblia - Nuevo Testamento, tomo I I I - Hebreos. Casa Nazarena de Publicaciones, Lenexa, Kansas, EUA, 2014. 4 NISIBI, Efrén. Comentário a la Carta a los Hebreos - Lá Biblia Comentada por Los Padres de La Iglesia. Editora Ciudad Nueva. Madrid, Espana. 5 ORÍGENES. Comentário al Ev. De Juan, 32, 353-354. La Bíblia Comen­

tada por Los Padres de La Iglesia. 6 ATANÁSIO. Discursos Contra Los Arianos. La Bíblia Comentada por Los Padres de La Iglesia. 7 GOUGE, William. Commentary on Hebrews - A Puritan Classic Exegetical and Expository Comentary, 2 Vol. Solid Ground Christian Books, Birminghan, Alabam, EUA. 8 RIEN ECK ER, Fritz & ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Editora Vida Nova, São Paulo, SP. 9 BOETTNER, Loraine. Studies in Theology. Conforme citado por Josh Mcdowel em: Jesus - Uma Defesa Bíblica de Sua Divindade. Editora Candeia, São Paulo. 10LEWIS, C. S. They Stand Together: The Letters o f C. S. Lewis to Arthur Greeves. Walter Hooper. Nova Iorque: McMillan, 1979. 11 KITTEL, Gerhard. Theological Dictionary o f the New Testament, 10 volu­ mes. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Michigan, EUA. 12BENSON, Joseph. New Testament Commentary. Nova Iorque: T. Mason & G. Lane, 1839. 13ROBERTSON, A. T. Comentário al Texto Griego del Nuevo Testamento obra completa. 6 tomos em 1. Editorial CLIE, Terrassa, Barcelona, Espana. 14CESAREIA, Eusébio. História Eclesiástica, 1,3, 7-20. Conforme citado em La Biblia Comentada pelo los Padres de La Iglesia. 15MOFFAT, James. A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Hebrews. Edimburgo, 1924. 16OLYOTT, Stuart. A Carta aos Hebreus - bem explicadinha. Editnru Cultura Cristã. São Paulo, SP.

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Uma Salvação Grandiosa Comentário de Hebreus 2.1 -18

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o capítulo 1, o autor mostrou a superioridade de Jesus êm relação aos anjos. Neste capítulo, o autor dem onstrará as im plicações práticas daquilo que ele afirmara. Os intérpretes destacam que a superioridade de Jesus em relação aos anjos acontece em três aspectos: 1.

Nenhum dos anjos podia trazer a nova relação entre irmãos (Hb 2.5-13)

2.

Nenhum dos anjos podia livrar os homens do temor da morte (Hb 2.14-16);

3.

Nenhum dos anjos podia realizar a obra da expiação pelos pecados (Hb 2.17-18).

“Portanto, convém-nos atentar, com mais diligência, para as coisas que já temos ouvido, para que, em tempo algum, nos desviemos delas" (v. 1). Aqui, o “portanto" (gr. dia tou to) tem o sentido de "acordo com o que acabei de mostrar”. Nesse contexto, “portanto" é usado em re­ ferência à superioridade de Jesus sobre os anjos. Uma verdade de tão grande magnitude deveria ter recebido uma maior atenção por parte dos leitores. Eles deveriam ter atendido as verdades ensinadas com maior diligência. O termo grego prosechein, traduzido aqui como "atentar", tem o sentido de “prestar atenção a, atender, dar o u v i d o s " O termo é usado no sentido de dar um a resposta positiva ou negativa a uma mensagem recebida. É usado em Atos 8.6 para afirmar que as pessoas "atendiam” unânimes as palavras pregadas por Filipe. Por outro lado, em Tito 1.13,14, é usado para exortar os crentes a “não dar ouvidos” às fábulas judaicas. Em ambos os casos, a participação do ouvinte é requerida. Pedro afirma que seus leitores faziam bem em “atenderem” a palavra profética (2 Pe 1.19). Esse mesmo termo é usado por Lucas para narrar a conversão de Lídia (At 16.14). “Certa mulher, cham ada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, temente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia” (At 16.14 - ARA). Enquanto Paulo falava acerca do Reino de Deus, Lídia escutava a Palavra de Deus, e o Senhor abriu-lhe o co­ ração para atentar (prosechein ) àquilo que o apóstolo dizia.2 As Escrituras exortam o cristão a ser vigilante e batalhar pela fé que uma vez lhe foi dada (Jd 3). O autor não queria que os crentes aos quais


Uma Salvação Grandiosa ele escrevia ficassem desviados da fé. A palavra "desviar” (gr. pararreô) era usada em referência a um rio que corria fora do seu leito. Podia ser usada também em referência a um a pessoa que perdia a memória ou, então, a um navio que estava à deriva.3 Franz Delitzsch (1813-1890) destaca que está presente o sentido de obter ou encontrar a si mesmo em um estado de fluxo ou de passagem, isto é, em referência a um objeto que requer muita atenção; perder a posse de qualquer coisa por não conseguir segurar.4 Essas observações fazem-nos ver que a apostasia — um ensino que o autor de Hebreus voltará a falar mais adiante — é um a realidade possível e real. Se decair da fé ou se desviar não fosse uma possibilidade, essas exortações perderiam o sentido.

“Porque, se a palavra falada pelos anjos permaneceu firme, e toda transgressão e desobediência recebeu a justa retribuição” (v. 2). Com o já havia assinalado no versículo anterior, o autor refere-se, aqui, à Lei mosaica entregue no Sinai. George Wesley Buchanan destaca que havia uma tradição judaica antiga na qual se afirmava que a Lei fora entregue pelos anjos (An!. XV. 136; G l 3.19; Atos 7.53; Targ. D t 33.2).5 Por haver sido mediada por an jos, a Lei era vista e observada meticulosamente pelos judeus. A conclusão a que o autor quer chegar é simples: ora, se a Lei, que fora entregue por anjos, merecia tanta atenção, então não m erecia atenção m aior ainda a palavra de Deus, que fora entregue por seu próprio Filho, o qual é infinitamente superior aos anjos? Se a palavra entregue por anjos provocou punição para quem a transgrediu, o que poderá acontecer com quem quebra a palavra falada pelo Filho?

“C om o escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação, a qual, começando a ser anunciada pelo Senhor, foi-nos, depois, confirmada pelos que a ouviram ” (v. 3). Valendo-se de um a pergunta retórica, o autor indaga a seus leitores se haveria algum a chance de escape para quem fosse negligente e não atentasse para essa tão grande salvação. A resposta, evidentemente, é que não haveria chance nenhuma. A palavra grega amelêsantes, traduzida como “atentar”, “negligenciar”, é um particípio que ocorre quatro vezes no Novo Testamento grego (Mt 22.5; 1 Tm 4.14; Hb 2.3; 8.9). Em Mateus, é usado no sentido de “não dar atenção”; em 1 Tm 4.14, é usado para exortar Timóteo a não "negligenciar” o dom de Deus; em Hebreus 8.9, é usado para dizer que Deus não “atentou” para os desobedientes.6 A salvação do cristão está condicionada à sua permanência em Cristo. Alguns creem que a salvação é dada por decreto. Nesse sentido, as pessoas eleitas serão salvas sem importar muito o que fazem ou deixam de fazer. No entanto, Richard Taylor destaca: "A Bíblia mostra que a prática do pecado e o Filho de Deus são totalmente incompatíveis; e que a apostasia é uma possibilidade, ainda que não seja normal nem o que se espera na experiência

II


A Supremacia de Cristo cristã. O Novo Testamento sublinha que a fé evangélica é como um tempo presente, um a atitude contínua de confiança e obe­ diência, ‘aquele que crê no Filho tem a vida eterna, mas aquele que não crê no Filho não verá a vida’ (Jo 3.36; Tg 2.14-26)".7

"Testificando também Deus com eles, p o r sinais, e milagres, e várias maravilhas, e dons do Espírito Santo, distribuídos p o r sua vontade?" (v. 4). O escritor F. Dattier destaca: “A insistência sobre os prodígios, Hb possui em comum com o 4° Evangelho onde tais fatos formam argumentos essenciais em abono da legitimidade de Jesus de Nazaré: Jo 1.14,51 ; 2.11,23; 3.2; 5.17-20,36; 6.14,26; 7 .2 1,3 1; 9.3,16; 10.32,37,41; 11.47; 12.18,37; 14.10; 15.24. Com a morte de Jesus, os milagres não desapareceram; os discípulos fariam maiores ainda (Jo 14.12); maiores se não em qualidade, pelo menos em quantidade, como se vê nos Atos dos Apóstolos e na variedade imensa de carismas descritos em Rm 12 e 1 Cor 12."8 A Igreja Primitiva, formada por crentes tanto da primeira com o da segunda geração, estavam familiarizados com os carismas do Espírito. Para o autor, a Salvação não ocorreu apenas no plano subjetivo e teó­ rico, mas também no objetivo e prático. O Espírito Santo, através dos discípulos, deu testemunho dessa salvação. Os termos gregos: semeiois (sinais), terasin (maravilhas) e dynamesin (poder, prodígios, milagres) são frequentemente usados nos Atos dos apóstolos (At 4.30,33; 5.12; 14.3,8-10). N o V elho Testam ento, o Espírito vinha sobre algum as pessoas especiais: o rei, o legislador, o profeta e o sacerdote. Todavia, na Nova Aliança, Ele foi derramado sobre toda a carne (At 2.17). Os crentes Hebreus possuíam consciência desses fatos, mas, mesmo assim, davam sinais de esquecimento. Com o de costume, o autor mais um a vez recorre a um a citação de um salmo (8.4-6) de natureza messiânica para validar sua argumenta­ ção. No judaísmo, esse salmo era um cântico que celebrava a criação, a tradição cristã; no entanto, devido à sua citação na carta aos Hebreus, associou-o à redenção. "Em vários períodos, o salmo foi usado para expressar o tema da imago dei no sentido de que a dignidade da hum a­ nidade é concedida e, em seguida, restaurada pela salvação/redenção”.9 C. S. Keener destaca que era uma crença do judaísm o antigo a de que Deus sujeitaria a seu povo o governo do mundo vindouro.10O judaísmo dos dias neotestamentários alimentava essa esperança.

“Porque não fo i aos anjos que sujeitou o m und o fu tu ro , de que falam os” (v. 5). O fato em destaque pelo autor é que o m undo será, com efeito, subm etido ao governo não an gélico, m as hum ano. O

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Uma Salvação Grandiosa autor afirma essa crença, porém destacando que essa promessa teve seu fiel cum primento no Messias, que era divino e humano. O autor passa a citar o Salm o 8.

"Mas, em certo lugar, testificou alguém, dizendo: Que é o homem, para que dele te lembres? Ou o filho do homem, para que o visites?" (v. 6). Valendo-se da expressão “em certo lugar”, o autor não demonstra imprecisão na sua citação, mas, sim, o uso do método hebraico de in­ terpretação conhecido como gezerah shavar, muito usado pelos escribas para unir duas porções das Escrituras.

“Tu o fizeste um p ouco m enor do que os anjos, de glória e de honra o coroaste e o constituíste sobre as obras de tuas m ãos" (v. 7). Essa citação não é feita para depreciar o homem; pelo contrário, é usada para mostrar sua grandeza.11 O autor avança para o desfecho do seu comentário. "Todas as coisas lhe sujeitaste debaixo dos pés" (v. 8). F. F. Bruce observa que “Quando o hom em falha no cum prim ento de seu propósito divino (como em algum a medida, todos o fizeram na época do Antigo Testamento), Deus levanta outro para que tome o seu lugar. Mas quem poderia tomar o lugar de Adão? Somente um que foi capaz de desfazer os efeitos da queda de Adão e, portanto, iniciar um a nova ordem do m undo”.12

“Vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora feito um pouco m enor do que os anjos, por causa da paixão da morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte p o r todos” (v. 9). A pa­ lavra grega brachy, traduzida como “menor”, é usada aqui em relação ao tem po e significa temporariamente. Portanto, o texto afirma que, devido à sua humilhação, Jesus temporariamente foi feito menor do que os anjos, e não que Ele tom ou-se menos digno do que os seres angélicos.13 Alguns autores interpretam esse texto no sentido de que a glória precedeu o sofrimento. Nesse aspecto, Jesus teria uma glorificação antecipada. Mas, como observa F. F. Bruce, essa não é a leitura natural do texto. O autor de Hebreus põe a glorificação como um evento que seguiu a hum ilhação de Cristo. Pela primeira vez, o autor cita aqui o nome "Jesus", o que é um a clara demonstração de sua humanização. "O Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1.14). O autor usa o term o grego "graça” (gr. Xaris) pela prim eira vez, e o seu sentido é de um a salvação para todos, universal e ilim itada.14 Ele sacrificou-se por todos e, com o resultado de sua paixão e exaltação, sua morte é extensiva a todos os hom ens.15 Adam Clarke (1760-1832), renomado teólogo britânico, vê aqui um paralelo com o cálice da salvação a qual o Senhor Jesus referiu-se em Mateus 26.39:

§S


A Supremacia de Cristo "Meu Pai, se és possível, passa de m im este cálice. Mas, sem bebê-lo, a salvação haveria sido impossível; portanto, com júbilo o bebeu em lugar de cada alma humana, fazendo desta maneira sacrifício por todo o pecado da totalidade do mundo; e isto Ele fez por graça, misericórdia ou infinita bondade de Deus”.16

"Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas e me­ diante quem tudo existe, trazendo m uitos filhos à glória, consagrasse, pelas aflições, o Príncipe da salvação deles" (v. 1 OJ. Esse versículo é uma referência à missão salvífica do Filho e faz um paralelo com 2 Coríntios 5.19. O escritor Neil R. Lightfoot observa que alguns comentaristas dizem que o texto quer dizer simplesmente que, através da sua morte, Jesus completou sua obra na terra e que, por isso, teria Ele superado todas as suas lim itações. Todavia, Lightfoot destaca que "a palavra aperfeiçoar (traduzida aqui com o consagrar), que, com seus cogna­ tos, é característica da epístola, exige mais do que isso. No geral, ela significa concretização ou inteireza; com pletar algo, pôr em efeito; acabar, por exemplo, um a torre ou obra de arte. M as o significado aqui é determinado pela Septuaginta, que usa regularmente o termo no Pentateuco para referir-se à consagração dos sacerdotes (Êx 29.9, 29.33,35, etc.). Da mesma forma que, no Velho Testamento, os sacer­ dotes eram aperfeiçoados ou consagrados por vários rituais, também Cristo, no Novo, foi aperfeiçoado, consagrado ou qualificado. A ideia é que, em separado do sofrimento, Cristo não poderia ter-se tom ado um Líder inteiramente eficaz, perfeito, do seu povo".17

"Porque, assim o que santifica com o os que são santificados, são todos de um ; p o r cuja causa não se envergonha de lhes chamar irmãos” (v. 11). Aqui, o autor mostra a fonte de santificação do crente: Cristo. É o sangue de Cristo que nos purifica de todo pecado. Posteriormente, ele vai afirmar que, sem a santificação, ninguém verá o Senhor.

“Dizendo: Anunciarei o teu nome a meus irmãos, cantar-te-ei louvores no m eio da congregação” (v. 12). O autor novamente recorre a textos m essiânicos para corroborar sua argumentação. No primeiro texto, ele usa o Salmo 22.22. Os evangelistas relacionaram esse salmo com os eventos da crucificação (M c 15.34). A identificação de Cristo com a raça humana está claramente demonstrada aqui na argumentação do autor de Hebreus. Jesus identifica-se com seus irmãos.

“E outra vez: Porei nele a minha confiança. E outra vez: Eis-me aqui a m im e aos filhos que Deus me deu” (v. 13). O versículo 13 é um a cita­ ção de Isaías 8.17. No contexto do livro de Isaías, o profeta demonstra confiança em Deus, m esm o o povo tendo perdido as esperanças. É exatam ente essa m esm a confiança que o Filho de Deus demonstra. Por outro lado, o versículo 14 é usado pelo autor para, de forma con­ tundente, demonstrar a plena natureza hum ana de Cristo.

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Uma Salvação Grandiosa “E, visto com o os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que, pela morte, aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo” (v. 14). Fritz Laubach destaca: "Cristo se tornou realmente humano. O Novo Testamento enfatiza: O Filho de Deus não permaneceu na glória eterna, mas de forma misteriosa unificou-se plenamente com nossa natureza humana. Cristo assumiu a nossa natureza, para que nós pudéssemos participar de sua natureza divina (2 Pe 1.4)”.18 A palavra "aniquilar" não tem o sentido de "destruir” no original grego, mas, sim, o de “tornar inoperante”, “anular”, "fazer como se não mais existisse”.19 Através da morte e ressurreição de Jesus, Satanás foi destronado (cf. Cl 2.15). A consequência imediata da vitória de Jesus está demonstrada no versículo 15.

“E livrasse todos os que, com medo da morte, estavam p or toda a vida sujeitos à servidão" (v. 15). O cristão não deve mais temer a morte, embora seja ainda necessário passar por ela. Não há mais insegurança e incerteza, já que Jesus, através de sua morte e ressurreição, destronou o poder que ela detinha (1 Co 15.55; 2 Tm 1.10). Cirilo de Alexandria (378-444 d.C.), em seu comentário de Hebreus, escreveu: “Existindo essencialmente com vida, o Logos Unigénito de Deus uniu-se Ele mesmo à carne terrena e mortal, para que a morte, que perseguia o homem como um animal feroz, soltasse a sua presa”.20

“Porque, na verdade, ele não tom ou os anjos, mas tom ou a descen­ dência de Abraão" (v. 16). A morte de Jesus foi pelos homens, e não pelos anjos caídos.

“Pelo que convinha que, em tudo, fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo" (v. 17). A identificação de Jesus com a humanidade é feita pelo autor através da expressão “em tudo, fosse semelhante aos irmãos”. Para salvar os homens, era necessário Jesus tornar-se como eles. Evidentemente, essas palavras do autor não devem ser tomadas em seu sentido literal, pois Jesus não cometeu pecados como os demais homens. Aqui, pela primeira vez nessa carta, o autor usa o termo “sumo sacerdote" em referência à pessoa de Jesus. Trata-se de uma prepara­ ção para o que ele tenciona dizer daqui para frente. Ao comentar esse texto, João Crisóstomo (347-407 d.C.) escreveu: “Não há nos honrado somente com a fraternidade, senão também de diversas maneiras; assim quis se fazer sumo sa­ cerdote ante o Pai, pois acrescenta: 'A fim ser misericordioso e sumo sacerdote fiel nas coisas que se referem a Deus’. Por isso, afirma — assumiu nossa carne não somente por beno-

n


A Supremacia de Cristo volência, senão para ter misericórdia de nós. Certamente, não existe outra causa da redenção; essa somente! Com efeito, nos vê abatidos na terra, pedidos, tiranizados pela morte, e tem m isericórdia”21.

“Porque, n a qu ilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode s ocorrer aos que são tentados” (v. 18). Aqui, o autor m ostra Jesus com o Sum o Sacerdote. M uito mais do que os sacerdotes no Antigo Testamento — que representavam os homens diante de Deus, fazendo intercessão e expiação por seus pecados — Jesus pode socorrer os crentes. Ele conhece nossas vidas e natureza e, por isso, está pronto a interceder por nós.

N otas ' BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon o f the New Testament and Other Early Christian Literature. The University of Chicago Press. EUA, 1979. 2 BUCHANAN, George Wesley. To The Hebrews - The A nchor Bible. Doubleday & Company, INC. Garden City, Nova York, EUA, 1972. 3 R IEN ECK ER, Fritz. Chave Linguistica do Novo Testamento Grego. Vida Nova. 4 DELITZSCH, Franz. Commentary on the Epistle to the Hebrews. Nova York, 1857. 5 BUCHANAN, George Wesley. To The Hebrews - The Anchor Bible. Op. cit. pp.24,25. 6 HUGO, M. Petter. Concordancia Greco-Espanola del Nuevo Testamento. Editorial CLIE, Barcelona, Espafta. 7 TAYLOR, Richards. Diccionario Teológico Beacon. Casa Nazarena de Publicaciones. Lenexa, Kansas, EUA, 1984. Taylor sublinha que a doutrina da segurança eterna, "uma vez salvo, salvo para sempre”, originou-se com João Calvino (Aí Instituías 3.21.5). Se a salvação é por decreto, como dizia Calvino, então os eleitos serão salvos sem importar o que façam ou deixem de fazer. Alguns textos, fora do contexto, são usados como prova: em João 10.27-29, o contexto deixa claro que é aplicado às ovelhas, que, de forma contínua e habitual, seguem o Senhor e são por Ele guardadas. Evidentemente, essa passagem não se aplica aos que, por vontade própria, desviaram-se; Rm 8.35-39 - nesse texto, é dito que nenhuma “criatura” pode nos separar do amor de Deus. Eviden­ temente que Paulo não estava referindo-se ao pecado, que a Escritura claramente declara que tem o poder de separar o homem de Deus (Is 59.1-2); Filipenses 1.6 - há dezenas de passagens que esclarecem o sentido dessas escrituras: (Ez 18.24; Mt 18.21-35; Lc 8.13; 12.42-47; Jo 15.2, 6; At 1.25; Rm 11.20-22; 1 Co 8.10-11; 9.27; 10.12; G1 5.1, 4; Ef 5.5-7; 1 Tm 4.1; Hb 6.4-6; 10.26-29; Tg 1.14-16; 2 Pe 2.18-22; 1 Jn 2.4; 3.8-9; 2 Jo 8-9; Jd 4-6; Ap 3.11; 218; 22.19).

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Uma Salvação Grandiosa 8 DATTLER, F. A Carta aos Hebreus. Edições Paulinas, São Paulo, 1980. 9 WALTKE, Bruce K. Os Salmos Como Adoração Cristã - um comentário histórico. Shedd Publicações, São Paulo. I0KEENER, C. S. Hebreos - Comentário dei Contexto Cultural de la Bíblia. Editora Mundo Hispano, Texas, USA. 11 MILLOS, Samuel Perez. Hebreos - Commentario Exegetico ao Texto Griego dei Nuevo Testamento. Editorial CLIE, Madrid, Espana. 12BRUCE, F.F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio, Grand Rapids, Michigan. Usa. 13BOYD, Ricardo Garrett. Hebreos, Santiago, 1 y 2 Pedro, Judas - comen­ tário bíblico mundo hispano. Editorial CLIE. El Paso, Texas, USA. 14O escritor John MacArthur, em seu comentário de Hebreus, força o texto a dizer o que ele evidentemente não está dizendo. Ao comentar o versículo 9, onde se refere à morte de Cristo, ele diz que esse sacrifício foi somente "por todos os que creem”. Com isso, ele quer dizer “todos os eleitos". Continuando, diz: “A morte de Cristo é aplicada eficazmente àqueles que vêm a Deus, de forma arrependida e com fé, pedindo a graça da salvação e o perdão dos pecados” (MacArthur, John. Hebreus - Cristo: Sacrifício perfeito, perfeito sacerdote. Editora Cultura Cristã). MacArthur acredita que a salvação é limitada, alcançando somente aqueles que são predestinados a serem salvos. Ninguém mais, mesmo se quisesse, não poderia ser salvo porque já estaria decretado a sua condenação desde a eternidade! Deus não amou a todos, mas somente àqueles a quem Ele escolheu, o que contraria as palavras do Evangelho (Jo 3.16). Ao contrário do que diz MacArthur, o Novo Testamento afirma que é, sim, a vontade de Deus salvar a todos o que vierem a Cristo arrependidos e com fé (Jo 1.12; 1 Tm 2.4). É lógico que o texto de Hebreus 2.9 não está dizendo que Cristo provou a morte somente pelos "que creem", isto é, os eleitos, como afirma MacArthur, mas por "todos” (gr. pantos), ou seja, todos os homens, numa clara referência à humanidade. A expressão "que creem” é um artifício criado e acrescentado ao texto. Não faz parte da redação original. Ao dizer que a morte de Cristo é aplicada eficazmente aos que vêm a Deus, apenas perpetua um artifício criado na teologia pós-reforma para dizer que a expiação é limitada e a graça é irresistível. Falta, portanto, responder: Se as pessoas não podem resistir à graça de Deus porque elas foram salvas por um decreto de Deus ainda na eternidade, então para que serve a morte de Cristo na cruz? Essas pessoas não estariam salvas da mesma forma desde a eternidade? Essa é uma aporia insuperável quando se tenta forçar a teologia bíblica se ajustar a esse tipo de raciocínio. 15Em seu comentário de Hebreus, Stuart Olyott, ao comentar Hebreus 2.9, observa que o autor dessa carta, quando diz que Jesus morreu por todo homem, "não é possível que esteja dizendo que Ele [Jesus] tenha morrido por cada indivíduo sobre a face da terra. Isso contraria o en­ sino claro da Escritura em outros lugares, significando que os pecados de todas as pessoas já foram expiados, resultando na salvação de cada

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A Supremacia de Cristo ser humano” (OLYOTT, Stuart. A Carta aos Hebreus Bem Explicadinha. Editora Cultura Cristã, pp. 26,27). Essas palavras de Olyott eviden­ temente não refletem a mensagem do Evangelho, mas apenas uma tradição teológica pós-reforma. Não há nada no Novo Testamento que diga que a salvação seja apenas para alguns. O testemunho bíblico é que a salvação é para todos. A graça de Deus é para todos, e a expiação é universal (Tt 2.11; Lc 10.19; Jo 5.24; 3.36). Limitar a salvação a uma meia dúzia de eleitos, como quer Elyott, pelo simples fato de que uma expiação ilimitada implicaria necessariamente em um universalismo, é um argumento fraco e sem contexto bíblico. A expiação de Cristo proveu a salvação para todos os homens, mas isso não significa que todos serão salvos, pelo simples fato de que nem todos aceitarão ou crerão na mensagem do evangelho. E não crerão, não pelo fato de já estarem predestinados para isso, mas, sim, pela incredulidade e dureza de seus corações (At 7.51). 1(1CLARKE, Adam. Hebreos - Comentário de la Santa Bíblia, tomo I I I Nuevo Testamento. Casa Nazarena de Publicaciones, Lenexa, Kansas, USA. l7LIGHTFOOT, Neil R. Hebreus - Comentário Vida Cristã, üp.cit. LAUBACH, Fritz. Carta aos Hebreus - Comentário Esperança. Editora Esperança. 14KITTEL, Gherard. Theological Dictionary oj the New Testament. Eerdmans, EUA. ’"ALEXANDRIA, Cirilo. Fragmentos a la Carta a los Hebreosde San Pablo. Im

Biblia Comentada por Los Padres de La Iglesia.

21 CRISÓSTOMO, Juan. Sobre la Carta a los Hebreos - La Biblia Comentada por Los Padres de La Iglesia. Editora Ciudad Nueva.

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Capítulo 3

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A Superioridade de Jesus em relação a Moisés \;s Comentário de Hebreus 3.1-19

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este capítulo, o autor de Hebreus faz um contraste entre JesuS e Moisés. O objetivo é cham ar a atenção dos leitores para a im­ portância e a urgência da mensagem cristã. Moisés era lembrado e reverenciado não apenas por ter sido um grande legislador hebí^efô, m as tam bém como um servo que se sacrificou em prol do seu povóí Ele foi um bom mordomo na casa de Deus. No Antigo Testamento, o povo de Israel era considerado a família de Deus e foi por essa famí­ lia que Moisés sacrificou-se. Mas o que representava os esforços de Moisés, que era um simples servo na casa de Deus, diante de Jesus, o bendito Filho de Deus, que voluntariamente deu sua própria vida em resgate do mundo? Como aconteceu na trajetória do êxodo, os cristãos hebreus estavam repetindo os mesmos erros cometidos pelos seus antepassados. Cari B. Gibbs destaca que "muitos dos leitores da Epístola aos Hebreus estavam em perigo de rejeitar a Cristo e voltar ao judaísm o. Sabendo disso, o autor que conhecia a história de Moisés muito bem fez um a com paração entre a decisão tomada no tempo de Moisés e um a decisão atual. Quis ele despertar a atenção dos seus leitores para o fato de que assim com o os filhos de Israel se revelaram contra Moisés, decidindo por voltar para o Egito, a m esm a coisa estaria acontecendo com os cristãos hebreus que estavam na iminência de abandonar a Cristo e voltar ao seu antigo m odo de vida (Hb 2.15). Assim com o os israelitas tiveram que peregrinar durante penosos quarenta anos, como paga da sua desobediência, os hebreus cristãos estavam correndo o perigo de serem cortados da videira verdadeira (Jesus Cristo) e serem lançados no fogo da perdição eterna”.1

"Pelo que, irmãos santos, participantes da vocação celestial, consi­ derai a Jesus Cristo, apóstolo e sum o sacerdote da nossa confissão" (v. 1). Tendo chegado à conclusão de seus argumentos no final do capi­ tulo 2 de sua epístola, o autor dirige-se a seus leitores chamando*©i


A Supremacia de Cristo de "irmãos santos". Os lexicógrafos Liddel e Scott destacam que, no grego clássico, esse vocábulo (santos, gr. hágios) possuía o sentido de algo devotado à divindade e era traduzido com o sagrado, santo. Era usado tanto em relação a coisas quanto a pessoas. Quando usado em referência a pessoas, possuía o sentido de santo, puro.2 No contexto do Novo Testamento, a palavra "santos” tem o sentido de algo ou alguém que foi separado para servir exclusivam ente a Deus. N ão pode ser usado ou estar a serviço de outra coisa. Essa santificação possui dois aspectos. Ela pode ser posicionai, aquilo que, no Novo Testamento, é descrito com o "estar em Cristo” (2 Co 5.17), e também progressiva, identificando aqueles que receberam Cristo com o Salvador e, a partir daí, passam a andar nE le (Cl 2.6). Na carta aos Hebreus, aparecem ambos os sentidos. Os crentes são exortados e lem brados que são participantes da vocação celestial. A palavra vocação traduz o termo grego klesis, que ocorre 11 vezes no Novo Testamento grego. Uma dessas ocorrências aparece na primeira carta de Pedro 1.10 com o sentido de chamada, vocação, e é usado em conjunto com ekloge, termo traduzido com o eleição. "Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a vossa vocação [ klesis] e eleição [ekloge]', porque, fazendo isto, nunca jam ais tropeçareis". Fomos chamados a participar da eleição em Cristo Jesus. Fomos eleitos em Cristo e, enquanto permanecermos nEle, estaremos seguros. Som os exortados a ser fiéis a esse cham ado, tendo sempre em mente que a necessidade de vigilância deve estar sempre presente para evitar o decair da fé. O autor destaca que Jesus Cristo é o Apóstolo e Sum o Sacerdote da nossa confissão. O apóstolo era alguém enviado em uma missão, enquanto o sacerdote atuava como um representante dos homens dian­ te de Deus. Jesus exerceu essas funções mais do que qualquer outra pessoa do antigo pacto. Na sua missão salvífica, Ele foi constituído por Deus com o o grande Apóstolo e Sum o Sacerdote da nossa salvação. A palavra “confissão” (gr. hom ologia) significa, também, concordância. Aqui, é usado no sentido da profissão de fé, isto é, a fé cristã abraçada pelos crentes hebreus.3 John Wesley (17 0 3 -179 1) traduziu a palavra apóstolo aqui com o “o m ensageiro de Deus, que pleiteia a causa de Deus conosco”, e o sumo sacerdote com o aquele que "defende nossa causa com Deus”. Wesley lembra que ambos estão contidos na palavra “mediador" e que o autor "compara Cristo, o Apóstolo, com Moisés; e o Sacerdote, com Arão. Ambos os ofícios que Moisés e Arão exerciam, e Cristo carregou-os juntos e de forma muito mais eficaz".4

“Sendo fiel ao que o constituiu, com o também o fo i Moisés em toda a sua casa” (v. 2). O versículo 2 é um a referência a Números 12.7. Nesse contexto, o termo "casa" também significa família e é aplicada em rela­ ção ao povo de Deus na antiga aliança. O autor lembra que Moisés foi

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A Superioridade de Jesus em relação a Moíses um mordomo fiel na casa de Deus durante a peregrinação no deserto e usa essa metáfora com o um a analogia da missão de Jesus, o Filho de Deus. Jesus, assim com o Moisés, também foi fiel sobre a casa de Deus — a Igreja — , mas as semelhanças entre Jesus e Moisés param por aí porque Jesus em tudo é superior ao grande legislador hebreu.

“Porque ele é tido p o r digno de tanto m aior glória do que Moisés, quanto m a ior honra do que a casa tem aquele que a edificou" (v. 3). Adam Clarke destaca que "não há dúvida de que um homem que constrói um a casa para sua comodidade é mais honrável que a casa mesma; mas a casa aqui se refere à Igreja de Deus. Essa igreja, aqui denom inada casa, ou "família", está edificada por Cristo; portanto, Ele deve ser maior que Moisés, que era somente um membro e oficial dessa igreja”.5

"Porque toda casa é edificada por alguém, mas o que edificou todas as coisas é D eus” (v. 4). Tom ando o term o “casa" com o sinônim o de "família", o autor mostra que o homem, na sua função gregária, constrói famílias, comunidades, etc., mas, na verdade, Deus que é o cabeça de toda a raça.

“E, na verdade, Moisés fo i fiel em toda a sua casa, com o servo, para testemunho das coisas que se haviam de anunciar” (v. 5). O autor no­ vamente volta à figura de Moisés. O argumento do autor é simples e objetivo: Moisés foi um servo dedicado na casa de Deus. Ele procurou seguir com diligência e fazer com que o povo seguisse as diretrizes da Lei de Deus. Todavia, Moisés era um coadjuvante onde Jesus seria o ator principal. Moisés era uma sombra, Jesus é a realidade. O versículo 6 mostra a Igreja com o a casa de Deus hoje.

"Mas Cristo, com o Filho, sobre a sua própria casa; a qual casa somos nós, se tão somente conservarmos firme a confiança e a glória da espe­ rança até ao fim ” (v. 6). Esse versículo é paralelo a 1 Tm 3.15: “Mas, se tardar, para que saibas com o convém andar na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, a coluna e firmeza da verdade”. A Igreja de Deus não é um prédio nem qualquer estrutura arquitetônica, mas, sim, o povo comprado com o sangue de Jesus Cristo. Quem faz parte da Igreja precisa demonstrar confiança a fim de poder ter esperança até o fim. O autor tem seu foco no futuro e, ao usar os termos parresia (confiança) e elpis (esperança), ele quer chamar a atenção para esse fato. Ele vê a vida cristã dentro de um contexto escatológico, não imediatista. Donald A. Hegner comenta que “a palavra co n fian ça (parresia) ocorre quatro vezes em Hebreus, duas vezes em referência ao culto (4.16; 10.19) e

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A Supremacia de Cristo outras duas vezes quanto ao modo de enfrentar as dificul­ dades na vida (aqui e em 10.35). A palavra esperança (elpis ) expressa a expectativa futura do autor em contraste com a ‘escatologia realizada’ em Cristo. Aqui, assim como em outras passagens do Novo Testamento, a palavra tem conotações de ‘expectativa confiante’”.6

"Portanto, com o diz o E spírito Santo, se ouvirdes hoje a sua voz” (v. 7). O versículo 7 introduz um a citação do Salm o 95.7. O autor toma essas palavras do salm ista não apenas com o um a advertência para os dias passados, m as tam bém para os seus dias. Isso só era possível graças à inspiração do Espírito Santo sobre as letras sagradas. O autor não queria que aquilo que aconteceu com a geração do êxodo fosse repetido com seus leitores. “Não endureçais o vosso coração, com o na provocação, no dia da tentação no deserto” (v. 8). Charles F. Pfeiffer destaca que “ainda que Moisés tenha sido fiel a Deus, a geração da qual ele formava parte pereceu no deserto. Esse fato serviu com o advertência à geração que escutou o evangelho de Cristo e esteve em perigo de rejeitá-lo”.7 O autor de Hebreus m ostra claramente nesse texto que é a própria pessoa que endurece (gr. sklerynÔ) o seu coração. Essa mesma pala­ vra ocorre em R om anos 9.18, dizendo que Deus “endurece a quem quer". Esse texto de Rom anos 9.18, juntam ente com o da carta aos Hebreus, forma um paralelo com os textos de Atos 19.9 e 7.51, onde os judeus “endureceram ” seus corações para não aceitar a Palavra de Deus. Em ambos os textos, a palavra "endurecer" procede da mesma raiz grega skleros (endurecer), que, por sua vez, dá origem à palavra portuguesa esclerose. O contexto deixa claro que Deus só endurece quem já está endurecido. Noutras palavras, quem resiste à sua Palavra será endurecido por ela.

"Onde vossos pais me tentaram, me provaram e viram, p o r quarenta anos, as minhas obras” (v. 9). O versículo 9 explica as razões desse endurecimento. O autor tem em mente a rota do êxodo, que cobriu um período de 40 anos. Nessa trajetória, os israelitas presenciaram milagres, sinais e maravilhas, mas não se sentiram convencidos por eles. A tradução do expositor Philip Edgcum be Hughes (19 15-199 0 ) expressa melhor o sentido do texto: “fui provocado durante quarenta anos”.8 Essa provocação produziu endurecimento, e a desobediência contum az provocou a ira de Deus.

"Por isso, me indignei contra esta geração e disse: Estes sempre erram em seu coração e não conheceram os meus cam inhos” (v. 10). Com o foi mostrado, essa desobediência repetitiva provocou a ira divina. A consequência dessa desobediência e rebeldia foi a privação de entrarem na Terra Prometida.

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A Superioridade de Jesus em relação a Moíses “Assim, jurei na minha ira que não entrarão no meu repouso” (v. 11). O autor faz um paralelo entre a desobediência dos antigos hebreus com aqueles seus dias. Adam Clarke destacou com muita propriedade: “Os desobedientes israelitas sirvam de advertência; foram resgatados do cativeiro e tiveram a mais completa promes­ sa de uma terra de prosperidade e descanso. Por causa da desobediência, não a obtiveram e caíram no deserto. Vocês foram resgatados da escravidão do pecado e tem a mais benévola esperança de herança entre os santos na luz. Pela incredulidade e desobediência, eles perderam o seu descan­ so; pelas mesmas coisas vocês também podem perdê-lo”.9

“Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo" (v. 12). A advertência é intensifi­ cada pela exortação do autor. Mais um a vez, ele lembra que a falta de vigilância somada com a negligência e desobediência pode conduzir ao fracasso espiritual. Ele adverte-os do perigo de apostatar e cair da fé.10 Grant R. O sbom e destaca que, no versículo 12, o autor começa com o verbo grego blepete ( “tome cuidado, cuide-se” ), que, no Novo Testam ento, é usado para dar o grito de alerta sobre a vigilância e obediência espiritual. Uma chamada à obediência aos mandamentos de Deus. Nesse contexto negativo, também significa “cuidado" com o mesmo coração “m al” e incrédulo que Israel mostrou no deserto. Ele observa que incredulidade e endurecimento são sinônimos aqui. "No versículo 12, é um genitivo descritivo que significa um

‘coração incrédulo’ que se tom a “mal" (poneria) ou cheio de iniquidade (v. 12,19), que é interpretado como 'seus corações estão sempre errados’ no versículo 10b. Essa incredulidade também os leva a se afastarem do Deus vivo’ (en to aposténai apo Theou zontos), estendendo a imagem até eles não conheceram os meus caminhos' no versículo 10b. Esse é o cerne da questão, preparando-se para o pleno uso dessa imagem da apostasia em Hb 6.6 (onde será discutido mais detalhadamente)”.11 O sbom e ainda observa que esse é um caminhar da incredulidade, do mal, da queda, e que isso é, obviamente, um aviso sério, com con­ sequências terríveis.12 O termo grego aposténai (apartar), usado aqui em Hebreus 3.12, é o infinitivo aoristo do verbo aphistemi, que ocorre 14 vezes no Novo Testamento grego, significando: cair, deixar, afastar.13 É desse verbo que se origina a palavra apostasia. A apostasia é definida como "a rejeição deliberada de Cristo e de seus ensinamentos por parte de um cristão


A Supremacia de Cristo (Hb 10.26-29; Jo 15.22)”.14 (Veja um estudo completo dessa palavra no Apêndice, posto logo após o capítulo 14 deste livro). A Bíblia de Estudo Harper Collins destaca que “a adm oestação para ser cuidadoso (ver tam bém 12.25) é com um no NT. Para o perigo de desviar-se, ou apostatar, veja Nm 14.9, que trata da geração do deserto, e Mt 24.10-12. Um jogo de palavras gregas ligando o desviar-se (apostenai) e o coração incrédulo (apistias)" .15 C o m o ficará dem onstrado posteriorm ente, há um a relação da queda da fé aqui retratada com aquela sobre a qual o autor voltará a tratar no capítulo 6.4-6 (veja apêndice no final deste livro). Adam Clarke observa oportunam ente que a nossa participação na glória depende de nossa firmeza na fé até o final de nossa carreira cristã.16 Jesus alertou que as coisas más procedem de dentro do coração do homem: “Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias” (Mt 15.19). É por isso que os cristãos necessitam de vigilância e também de estimular uns aos outros.

“Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado" (v. 13). Aqui, o sentido do texto é o de que os cristãos não permitam que seus corações sejam seduzidos pelo pecado. O autor usa o termo grego parakaleo, isto é, cham ar à parte para consolar, para se referir à necessidade do encorajamento contínuo. William Barclay (1907-1978) observa que esse mesmo termo era usado por um militar para estim ular as suas tropas.17 Joseph Benson observa que alguns passos devem ser tomados para se pôr em prática as palavras do autor de hebreus: (1) Um a profunda preocupação com a salvação de cada um e o crescimento na graça; (2) Sabedoria e entendimento sobre as coisas divinas; (3) Cuidado para que somente palavras de verdade e sobrie­ dade sejam ditas, pois somente essas palavras serão recebidas como tendo autoridade e alcançarão os fins desejados; (4) Evitar aquelas expressões rudes e severas que expressam indelicadeza; em vez disso, usar palavras com brandura, compaixão, ternura e amor, pelo menos para aqueles que estão dispostos a reconhecer a vontade de Deus; (5) Evitar falar com leviandade e sempre falar com seriedade; (6) Prestar atenção ao tempo, lugar, pessoas e ocasiões; (7) Ser exemplo para as pessoas exortadas; (8) Devemos ser incansáveis nesse dever e exortar um ao outro diariamente. Não somente em reuniões feitas para isso, m as tam bém em todo e qualquer lugar sempre que estiverm os em companhia um do outro.18

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A Superioridade de Jesus em relação a Moíses Essas exortações tomam-se relevantes porque, para o autor, o cristão tom ou-se um participante de Cristo.

“Porque nos tom am os participantes de Cristo, se retivermos firm e­ mente o princípio da nossa confiança até ao fim ” (v. 14). O termo grego gnomai, de onde deriva gegonamen, usado aqui pelo autor, ocorre 661 vezes no Novo Testamento grego. Aqui nesse texto, ele encontra-se no tempo perfeito, e o seu sentido é que os cristãos tornaram-se parti­ cipantes de Cristo no passado (quando o receberam como Salvador) e continuavam no presente tempo com o participantes dEle. Isso, no entanto, só teria valor se eles continuassem firmados em Cristo até o fim.19 O autor repete a exortação anteriormente lembrada por ele no versículo 8.

"Enquanto se diz: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração, com o na provocação" (v. 15). Samuel Pérez Millos observa que "com toda probabilidade, como se disse antes, na mente do salmista (SI 95.7) estava o sucesso ocorrido em Cades-Barneia, onde o povo não creu que Deus havia-o enviado para ocupar Canaã, duvidando de seu poder para dar-lhes vitória sobre os povos que ocupavam a terra (Nm 14.1ss). Deus es­ tabeleceu um a ação judicial sobre o povo rebelde, de modo que nenhum dos homens maiores de 20 anos entrariam na terra por haverem murmurado contra Deus (Nm 14.27,29). A advertência é solene, já que Deus pode aplicar aos crentes rebeldes uma disciplina similar a que aplicou aos israelitas que não quiseram obedecer a sua voz".20

"Porque, havendo-a alguns ouvido, o provocaram; mas não todos os que saíram do Egito por meio de Moisés" (v. 16). O versículo 16 distingue os desobedientes dos obedientes. O livro de Números narra que, quando chegou ao Sinai, Moisés precisou fazer a contagem dos israelitas de 20 anos de idade para cima (Nm 1.1 -3). Os dados, não incluindo os levitas, chegaram a 603.550 homens (Nm 1.46). O versículo 17 mostra que esses homens, excetuando Calebe e Josué, estavam incluídos na maldição de Deus, que os privava de entrar na Terra Prometida (Nm 14.29,30).

“Mas com quem se indignou p o r quarenta anos? Não foi, porventu­ ra, com os que pecaram, cujos corpos caíram no deserto?" (v. 17). Essa geração peregrinou pelo deserto até ser consumida (Nm 14.33,34).

“E a quem ju rou que não entrariam no seu repouso, senão aos que foram desobedientes?" (v. 18). Quando essa geração chegou à frontei­ ra da Terra Prometida, Moisés novamente fez a recontagem do povo (Nm 26.1,2,63). Fritz Laubach observa que ali foi colocado o ponto final nessa triste história do povo de Deus, concluída pelas palavras do cronista sagrado: "E entre estes nenhum houve dos que foram contados

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A Supremacia de Cristo por Moisés e Arão, o sacerdote, quando contaram aos filhos de Israel no deserto do Sinai. Porque o S e n h o r dissera deles que certamente morreriam no deserto; e nenhum deles ficou, senão Calebe, filho de Jefoné, e Josué, filho de Num" (Nm 26.64,65).21

"E vemos que não puderam entrar p o r causa da sua incredulidade” (v. 19). A advertência encerra-se neste capítulo com as palavras desse versículo. O autor mostra o perigo da desobediência e rebelião contra Deus. Se não puderam entrar na Terra Prometida, no descanso que Deus preparou, a culpa não era do Senhor. Os cristãos hebreus deve­ riam tomar isso definitivamente como exemplo — o pecado pode, sim, impedir o cristão de entrar no repouso de Deus. Adam Clarke destaca que não foi um decreto de Deus que os impediu; não foi porque lhes faltavam as forças para fazê-lo; não foi porque lhes faltou o conselho divino instruindo-os como deveriam fazer. Tudo isso eles tinham em abundância; pelo que escolheram pecar e não crer. A incredulidade produz desobediência, e essa, por sua vez, dureza de coração e cegueira mental; tudo isso lhes atraiu o juízo de Deus, e a ira caiu sobre todos eles até o último.22

N otas 1 GIBBS, Cari B. O Livro de Hebreus - a supremacia de Cristo. Escola de Educação Teológica das Assembleias de Deus (EETAD), Campinas, SP. 2 LIDDELL, H.G & SCOTT, R. Greek - English Lexicon - with a Revised Supplment. Claredon Press, Oxford. Inglaterra, Reino Unido 1996. 3 Esse termo está muito em voga hoje nos círculos da Teologia da Prosperi­ dade. Dentro desse modismo evangélico, significa “confessar”, “afirmar" e "determinar” algo com o sentido de tomar posse dele. Nesse sentido, ganhou apenas uma conotação consumista e mercantilista. Trata-se de uma distorção do sentido original, que era o de uma afirmação daquilo que estava em consonância com a Palavra de Deus, e não com caprichos pessoais. 4 WESLEY, John. Hebrews - Explanatory notes and Commentary. Bristol-HotWells, Januaiy, Inglaterra, 1754. 5 CLARKE, Adam. Hebreos - Comentário de La Santa Bíbia, tomo III, Nuevo Testamento. Casa Nazarena de Publicaciones. Lenexa, Kansas, EUA. 6 HEGNER, Donald A. Hebreus- Novo Comentário Bíblico Contemporâneo. Editora Vida, São Paulo. 7 PFEIFFER, Charles F. Hebreos - Comentário Biblico Portavoz. Editorial PortaVoz, Grand Rapids, Michigan, EUA. 8 HUGHES, Philip Edgcumb. A Commentary on the Epistle to the Hebrews. Grand Rapids, Eerdmans, EUA, 1977. 9 CLARKE, Adam. Hebreos: Comentário de La Santa Bíblia - Nuevo Tes­

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A Superioridade de Jesus em relação a Moíses tamento, Tomo III. Casa Nazarena de Publicaciones, Lenexa, Kansas, EUA. 10A obra The New Strong’s Exhaustive Concordance o f The Bible observa que a palavra apostasia, em suas diferentes formas, tem como radical comum o verbo grego aphistemi e ocorre nos textos de At 21.21; 2 Ts 2.3; Hb 3.12 e 1 Tm 4.1. Assim sendo, Strong traduz aphistemi "propria­ mente, partida (implicando deserção); Apostasia - uma saída, de uma posição anterior”. Por outro lado, o termo grego parapsontas, derivado deparapipto (cair, desviar), que ocorre em Hb 6.6, é tido pelos eruditos como sendo sinônimo de apostasia (veja um estudo completo sobre esses termos no Apêndice, posto no final deste livro). 11 OSBORNE, Grant. Four Views on the Warning Passages in Hebrews. Kregel Acadmic & Profession. Grand Rapids, Michigan. 12OSBORNE, Grant. Four Views on the Warning Passages in Hebrews. Kregel Acadmic & Profession. Grand Rapids, Michigan. 13CLAPP, Philip S & FRIBERG, Barbara. Analytical Concordance o f the Greek New Testament, volume I, Lexical Focus. Baker Book House. Grand Rapids, Michigan, U.S.A. 14YOUNGBLOOD, Ronald F; BRUCE. F. F. & HARRISON, R. K. Dicio­ nário Ilustrado da Bíblia. Editora Vida Nova, São Paulo. 15The Harper Collins Study Bible. Harper Collins Publishers. Londres, Reino Unido. 16Idem. pp. 589. 17BARCLAY, William. Hebreos - Comentário al Nuevo Testamento. Edi­ torial CLIE, Barcelona, Espanha. 18BENSON, Joseph. Hebrews: The New Testament-A Critical, Explanatory and Praticai Notes. Lane & Tippett, Nova York, EUA, 1847. 19Aqui, mais uma vez, como ocorre por toda essa carta, observa-se um chamado à vigilância frente aos perigos espirituais. 20MILLOS, Samuel Perez. Hebreos - Comentário Exegético al Texto Griego Del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 21LAUBACH, Fritz. Carta aos Hebreus - comentário esperança. Editora Esperança. 22CLARKE, Adam. Op.cit. p. 590.

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Capítulo 4

.1.'

Jesus É Superior a Josué: 0 Meio de entrar no Repouso de Deus Comentário de Hebreus 4.1-16

0

autor já havia feito um a serie de exortações, tomando a rota do Êxodo sob a liderança de Moisés com o ponto de partida. Tendo o grande legislador hebreu morrido, coube a Josué, um dos seus auxiliares mais próximos, a missão de levar o povo a entrar na Terra Prometida (Js 1.1). Para o antigo povo de Deus, a entrada em Canaã significava o descanso da jornada e o cum prim ento da promessa de Deus, só que o autor de Hebreus destaca que esse descanso, de fato, nunca ocorreu em sua plenitude. E não ocorreu porque assim teria de ser, mas, sim, porque a incredulidade e a rebeldia não permitiram. Deus não decretara nada daquilo que negativam ente m arcara seu antigo povo. Da mesma forma, os destinatários da carta aos Hebreus não podiam responsabilizá-lo pelo fracasso daqueles que ficariam para trás. O autor alerta que a coisa parecia repetir-se, não mais rumo à conquista da terra, mas, agora, na trajetória rumo ao Céu. Esse descanso é entendido pelos intérpretes com o a entrada na nova aliança. Nesse aspecto, o autor mostra que alguns se excluíram dele porque não receberam com fé a mensagem do evangelho (4.1,2). Essa falta de compromisso com a mensagem da cruz colocava-os numa posição de perigo. George Howard Guthrie (nascido em 1959) observa que é um descanso no qual todos devem esforçar-se para entrar (4.11) — já que a entrada na nova aliança exige um posicionamento corajoso ao lado de Cristo e de sua Igreja — mas, por outro lado, implica no des­ canso das próprias obras (4.10). Guthrie ainda destaca que a carta aos hebreus deixa claro que isso exige uma fé obediente que está disposta a afastar-se do erro para abraçar a Palavra de Deus. Esse descanso possui uma dimensão presente, no qual se participa agora pela fé (4.3) e que terá sua consum ação no fim dos tem pos.1

“Temamos, pois, que, porventura, deixada a promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fique para trás" (v. 1). De uma forma recorrente, como o faz em vários pontos dessa carta, o autor usa outra vez de um contundente tom exortativo. Temamos é a tradução do grego phobethomen, derivado de phobeomai, que ocorre 95 vezes no Novo Testamento. Joseph Henry Thayer (1828-1901) traduz como: temor, medo, ser atingido pelo medo, ficar alarmado.2Nessa carta, esse termo aparece novamente nos capítulos 11.23,27 e 13.6. O sentido é de alguém que sente receio, temor ou medo diante de alguma situação


Jesus É Superior a Josué: o Meio de Entrar no Repouso de Deus que inspira cuidados. Dessa forma, é traduzido para descrever o temor que o apóstolo Paulo demonstrou diante de um a real possibilidade de dano que Satanás poderia causar aos crentes de Corinto. "Mas temo que, assim com o a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também sejam de algum a sorte corrompidos os vossos sentidos e se apartem da simplicidade que há em Cristo” (2 Co 11.3). F. F. Bruce destaca que a intenção do autor é mostrar que os crentes "farão bem em tem er a possibilidade de perder a grande bênção que nos está prometida, da mesma maneira que a geração de israelitas que morreu no deserto perdeu a Canaã terrestre, embora fosse o objetivo que tinham diante de si quando saíram do Egito”.3 Esse sentido é obtido a partir da expressão “pareça que algum de

vós fique para trás”. Guthrie destaca que o que suscitava temor no autor é que alguns dos membros da com unidade pareciam não ter alcançado o prometido descanso. Guthrie observa que o autor não está afirmando categoricamente que alguns deles deixaram de alcançar o prometido descanso, mas que é necessário exercer a prudência já que essa possibilidade é real.4

“Porque também a nós foram pregadas as boas-novas, com o a eles, mas a palavra da pregação nada lhes aproveitou, porquanto não esta­ va misturada com a fé naqueles que a ouviram " (v. 2). Ao referir-se à

"palavra da pregação”, o autor destaca o m odo com o Deus com uni­ cou-se e revelou-se a seu povo no antigo pacto, e não exatamente ao conteúdo da m ensagem pregada, que, evidentemente, era diferente das Boas-Novas anunciadas no Novo Testamento.5 Ali, a revelação era parcial; aqui, total. Deus revelara-se aos antigos hebreus, mas eles não quiseram escutar. Da mesma forma, os novos hebreus, que receberam uma revelação em tudo superior, não estavam também atentando ao que fora dito. A razão foi a incredulidade que não permitiu a palavra produzir efeitos naqueles que a ouviram.

"Porque nós, os que temos crido, entramos no repouso, tal com o disse: Assim, jurei na minha ira que não entrarão no meu repouso" (v. 3). A expressão "os que temos crido” é um particípio aoristo e tem o sentido de "nós que nos tomamos crentes”.6 Os cristãos que perseveram e não recuam ganham o direito de entrar no descanso de Deus. A. T. Robertson destaca que o verbo “entramos" está no presente futurista e, nesse texto, tem o sentido de “nós temos a segurança de entrar [no descanso], os que cremos”.7 O descanso de Deus é um a realidade já presente, mas a sua plenitude só terá efeito no futuro. Deus proveu um descanso para seu povo, mas esse repouso não é para os indolen­ tes, negligentes e descrentes, e sim para os que fazem a jornada até o

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A Supremacia de Cristo fim. Richard S. Taylor (1912-2006) destaca acertadamente que esse descanso provido por Deus não deve ser interpretado com o garantia de que “não importa o que façamos, Ele vai dar um jeito de levar-nos até lá”. Pelo contrário, essa evidência da grandeza de Deus deixa-nos com pletam ente indesculpáveis em nossa descrença temerosa. Esses parágrafos intensos são um a forte tentativa de chacoalhar os cristãos hebreus em sua falsa segurança, ao m ostrar-lhes que não possuem imunidade contra os perigos da cerca espiritual.8 Neste capítulo, observamos que o autor refere-se a três tipos de descan­ sos: (1) A entrada do povo de Deus na Terra Prometida sob a liderança de Josué; (2) O descanso sabático — quando Deus acabou a obra da Criação; e (3) O descanso trazido por Cristo. A patrística também via a obra de Cristo como o ponto culminante desse descanso. Dessa forma, João Crisóstomo (347-407 d.C) destacava que havia três descansos: um do sábado, em que Deus descansou de suas obras; um segundo, da Palestina, quando entra­ ram os judeus nela e descansaram das muitas triangulações e fadigas; e o terceiro, que é o verdadeiro descanso: o Reino dos céus, onde quem o obtiver descansará realmente das fadigas e dos sofrimentos. Aqui, ele faz menção aos três. E por que ao falar de um rememora os três? Para mos­ trar que o profeta fala deste último. Ele não se referia ao primeiro, pois diz: não sucedeu isso nos tempos antigos? Nem tampouco ao segundo, o que teve lugar na Palestina; como iria referir-se a este se já houvesse tido lugar também? Só resta o que se refere ao terceiro.9 J. Wesley Adams resume o pensamento do autor sobre a tipificação desse descanso: 1.

O descanso em Canaã é um tipo ou símbolo do repouso es­ piritual que Deus promete a seu povo, em Cristo;

2.

Esse repouso espiritual é prefigurado pelo descanso sabático de Deus;

3.

Esse descanso espiritual — como outros aspectos do Reino de Deus — envolve tanto a realidade presente quanto a esperança futura do povo de fé.10

“Porque, em certo lugar, disse assim do dia sétimo: E repousou Deus de todas as suas obras no sétimo dia" (v. 4). Recorrendo ao método ju ­ daico de fazer hermenêutica, o autor remete a Gênesis 2.2. Já vimos que essa forma de citar as Escrituras não demonstra imprecisão por parte do autor; apenas expõe o seu estilo literário. Os intérpretes destacam que o "repouso” de Deus não significa ociosidade da parte dEle, mas, sim, que não há nada mais a acrescentar àquilo que Ele fez.11 Após concluir sua obra no sétimo dia da criação, Deus descansou de sua obra e continua ainda nesse descanso.

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Jesus É Superior a Josué: o Meio de Entrar no Repouso de Deus “E outra vez neste lugar: Não entrarão no meu repouso" (v. 5). Mes­ mo estando esse descanso disponível para todos os homens, o autor mostra que alguns se excluíram dele. A razão foi a dureza de coração, a desobediência e a incredulidade. Todavia, esse descanso continua acessível para aqueles que creem. "Visto, pois, que resta que alguns entrem nele e que aqueles a quem p rim e iro foram pregadas as boas-novas não entraram p o r causa da desobediência” (v. 6). Aqui, o autor explica o versículo anterior. A ge­ ração do êxodo não pode entrar no descanso de Deus, mas a promessa do descanso continua de pé. Cabe aos crentes da nova aliança entrar nessa promessa.

“Determina, outra vez, um certo dia, Hoje, dizendo p o r Davi, m uito tempo depois, com o está dito: Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endu­ reçais o vosso coração” (v. 7). O versículo 7 volta à citação do Salmo 95. Para o autor, a promessa do descanso divino não havia cessado com a entrada do povo na Terra Santa, visto que, aproximadamente 500 anos depois, Davi faz uma atualização dessa promessa no Salmo 95. Se não mais houvesse a promessa de um descanso para o povo de Deus ao longo de sua história, o Espírito Santo não teria inspirado o rei-poeta a fazer a atualização dessa mesma promessa. Os profetas da Antiga Aliança m antinham a expectativa de dias de paz e descanso para o povo de Deus, que ocorreria com a vinda do Messias. O autor de Hebreus já havia lembrado que, antigamente, Deus falara aos pais pelos profetas e que, naqueles dias, Ele falava pelo Filho. A chegada da nova aliança significava a entrada nesse des­ canso. Para o autor, a expressão "um certo dia, Hoje...”, dita por Davi de forma profética, não se restringia aos dias daquele monarca, mas, sobretudo, à chegada da Nova Aliança. Nem Josué — nem tampouco nenhum outro líder hebreu — foi capaz de conduzir o povo de Deus a um descanso pleno.

"Porque, se Josué lhes houvesse dado repouso, não falaria, depois disso, de outro dia” (v. 8). O livro de Josué mostra as grandes conquistas efetuadas por ele, mas destaca que “ainda muitíssima terra ficou para possuir” (Js 13.1). Josué, sem dúvida, proveu uma forma de “descanso” físico, político e social, mas o verdadeiro descanso era uma promessa para o povo da nova aliança. "Portanto, resta ainda um repouso para o povo de Deus” (v. 9). Aqui no versículo 9, o autor usa a palavra sabbatismos, derivada de sabbath (Sábado) para referir-se ao descanso ou repouso em vez de katapausis, usada nos demais versículos desse capítulo, que mantém o mesmo sig­ nificado.12 Fica evidente que o autor não se refere ao repouso sabático semanal, o que contrariaria todo o seu argumento nessa carta, que é um alerta aos seus leitores a não retom arem às práticas ju daizan tti (Cl 2.16). Por outro lado, se o autor estivesse se referindo ao descftMO M


A Supremacia de Cristo sabático semanal, não haveria necessidade alguma de dizer que esse descanso era algo ainda a ser alcançado (resta um repouso (sabbatismos) para o povo de Deus), visto que o Sábado era uma prática rigorosamente observada no judaísm o dos dias de Jesus.

“Porque aquele que entrou no seu repouso, ele próprio repousou de suas obras, com o Deus das suas” (v. 10). Esse repouso é uma referência ao dia anelado pelos profetas e que agora se cum pria com a vinda do Filho de Deus. Da mesma forma que Deus descansou de suas obras, não tendo m ais necessidade de acrescentar nada às coisas que Ele criara, os crentes que entraram na nova aliança também não precisam mais de mérito pessoal ou hum ano para entrar no descanso provido por Jesus Cristo, o Filho de Deus. O versículo 11 é encerrado com uma advertência.

“Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência" (v. 11). Adam Clarke com enta in loco: "A palavra indica todo esforço físico e mental com referência ao assunto. Para que não caia da graça de Deus, do evangelho e suas bênçãos e pereça para sempre”.13

“Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até à divisão da alma, e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração" (v. 12). Na sua exposição, o autor faz uma das maiores declarações sobre a palavra de Deus. Alguns comentaristas não conseguiram ver o elo existente entre o versículo 12 e os demais versículos deste capítulo, mas o melhor entendim ento desse texto é aquele que encontramos nas notas de John Wesley sobre a carta aos Hebreus. Wesley observa que a palavra de Deus pregada no versículo 2 e reforçada com advertências no versículo 3 é viva e eficaz', é acom pa­ nhada pelo poder do Deus vivente e comunica vida ou morte àqueles que a ouvem; é mais cortante do que espada de dois gumes e penetra o coração mais do que a espada pode penetrar o corpo; que penetra totalmente e deixa aberto; a alma e o espírito, as juntas e medulas — os lugares mais escondidos da m ente.14 Nada pode ficar fora do alcance da Palavra de Deus.

“E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes, todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem temos de tratar” (v.

13). O autor usa três termos gregos para mostrar o poder revelador da palavra de Deus: aphanes (oculto, não manifesto, escondido); gymnós (nu, aberto, às claras) e trachelizo (expor, descobrir). Aqui, o sentido é de deixar algo totalmente exposto, sem nada a esconder. Para o expositor bíblico A. T. Robertson, significa que o microscópio de Deus pode pôr em evidência o mais diminuto micróbio de dúvida e pecado.15 Tendo em vista que a palavra trachelos significa "pescoço” e é usada, nesse contexto, com o algo que está desnudo, descoberto, a metáfora pode

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Jesus É Superior a Josué: o Meio de Entrar no Repouso de Deus referir-se a um animal que tinha seu pescoço exposto para o sacrifício ou a um lutador que era dominado pelo pescoço.16 Em ambos os casos, a metáfora expõe o domínio e o poder revelador da Palavra de Deus.

“Visto que temos um grande sum o sacerdote, Jesus, Filho de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão” (v.

14). O versículo 14 introduz o assunto sobre o qual o autor devotará maior atenção: a doutrina do sacerdócio de Cristo. Essa seção inicia-se aqui e estende-se até o capítulo 10 e versículo 18. O descanso do qual o autor acabara de falar e do qual todos os cristãos participam por direito da aliança só se tom ou possível porque Jesus, como sumo sacerdote, adentrou os céus. O termo grego dielelythota, derivado de dierxomai, ocorre 42 vezes no N ovo Testam ento G rego.17 Esse term o verbal é usado para retratar um fato que ocorreu no passado, mas que tem seus efeitos no presente. Aqui, o sentido é que Jesus penetrou os céus, por ocasião de sua morte e ressurreição, e ainda está lá.18 No passado, Jesus levou vicariamente a pena de nossos pecados; no presente, Ele é o nosso grande sumo sacerdote que continua a interceder por nós. Esse sumo sacerdote está nos céus, porém não distante do povo. Os cristãos são exortados a manterem-se firme na sua confissão, que aqui mantém o sentido de profissão de fé.

“Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, com o nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (v. 15). O autor reconhece a fragilidade humana e sua vul­ nerabilidade diante das tentações. Aqui, o verbo grego peirazo, traduzido como "testar”, "tentar”, deve manter esse último sentido por estar asso­ ciado à hamartia (pecado) no final do versículo. O autor faz referência a Jesus nos dias de sua humilhação e também às tentações as quais esteve sujeito. Tendo Ele sido tentado em tudo, pode socorrer os que também são tentados. A imagem aqui é extraída do sistema sacerdotal no qual o sacerdote intercedia pelas fraquezas do povo. Richard S. Taylor observa oportunamente que Jesus não foi tentado em todas as particularidades ou em cada situação possível. Por exemplo, Ele não foi tentado como marido, ou pai, ou dono de uma propriedade, ou empregador, ou soldado porque não exerceu nenhuma dessas funções. Taylor observa que Jesus foi tentado nas três áreas básicas da suscetibilidade humana: corpo, alma e espírito. Dessa forma, Jesus conhecia a tentação no campo do apetite do corpo, no campo dos relacionamentos humanos e no campo dos relacionamentos espirituais. Eu - os outros - Deus: Ele foi tentado nesses três pontos. O que deveria govemá-lo? Seu desejo por pão? Seu desejo por aceitação? Seu desejo por poder? Ou a sua lealdade a Deus?19 É exatamente nessas áreas onde ocorre o campo de batalha de todo cristão. Como nós, Jesus foi tentado, porém não sucumbiu à tentação!

“Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possa’ m os alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados $m

H


A Supremacia de Cristo tempo oportu no" (v. 16). Tendo, pois, Jesus com o esse grande Sum o Sacerdote misericordioso, o cristão é convidado para que, com ousadia, chegue-se ao trono da graça. A palavra "cheguemos” traduz o termo grego proserxhometha, derivado de proserchomai, que ocorre 87 vezes no Novo Testamento grego, sendo sete vezes em Hebreus. É usado em Mateus 9.20 para descrever a ação da mulher hemorrágica quando se aproxim ou de Jesus: “E eis que uma mulher que havia já doze anos padecia de um fluxo de sangue, chegando por detrás dele, tocou a orla da sua veste”. Na Septuaginta, é usado para descrever a aproximação que o sacerdote mantinha com Deus durante o culto.20Da mesma forma que o sacerdote levita adentrava no santuário para ministrar a Deus e da mesma forma que a mulher hemorrágica demonstrou coragem, ousadia e fé para aproximar-se do trono da graça, o cristão também deve aproximar-se de Deus através da mediação de Jesus Cristo.

N otas 1 GUTHRIE, George H. Hebreus - Comentário do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento. Editora Vida Nova. 2 THAYER, Joseph. Greek - English Lexicon of the New Testament. Baker Book House, Grand Rapids, Michigan, USA, 1977. 3 BRUCE, F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio. Grand Rapids, Michigan. EE.UU, 2002. 4 GUTHRIE, George H. Hebreos - del texto bíblico a uma aplicación con­ temporânea. Editorial Vida, Miami, Flórida, EUA, 2014. 5 GUTHRIE, Donald. Hebreus - introdução e comentário. Editora Vida Nova, São Paulo. 6 Veja uma exposição completa na obra: Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego - Mateus a Apocalipse. Editora Targumim/Hagnus, São Paulo, 2009. 7 ROBERTSON, A. T. Comentário al Texto Griego del Nuevo Testamento. Editorial CLIE, Barcelona, Espanha. 8 TAYLOR, Richard S. Hebreus - Comentário Bíblico Beacon. Casa Publicadora das Assembleias de Deus, Rio de Janeiro, 2014. 9 CRISÓSTOMO, João. Hebreos - La Biblia Comentada por Los Padres de La Iglesia. Editora Ciudad Nueva. 10ADAMS, J. Wesley. Comentário Bíblico Pentecostal. CPAD. " ADAMS, J. Wesley. Op.cit. pp. 1564. 12A palavra descanso, repouso, ocorre 9 vezes nesse capítulo, sendo 8 ocorrências como katapausis e uma vez como sabbatismos. Enquanto katapausis mantém sentido de uma paz estabelecida ou um estado de descanso, a palavra sabbatismos significa "repouso sabático” (Comen­ tário Bíblico Beacon, CPAD). 13CLARKE, Adam. Hebreos - Comentário de la Santa Biblia, tomo I I I Nuevo Testamento. Editora Casa Nazarena de Publicaciones. Lenexa, Kansas, EUA.

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Jesus É Superior a Josué: o Meio de Entrar no Repouso de Deus 14WESLEY, John. Hebrews - Explanatory Notes & Commentary. Bristol Hotwells, Reino Unido, 1754. 15ROBERTSON, A. T. Hebreos - Comentário al Texto Griego del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. Barcelona, Espanha. 16Veja uma exposição detalhada na obra: Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Editora Vida Nova. 17 HUGO, M. Petter. Concordancia Greco-Espanola dei Nuevo Testamento. CLIE. ,8HAUBECK, Wilfrid & SIEBENTHAL, Heinrich Von. Nova Chave Lin­ guística do Novo Testamento Grego. Editora Targumin. 19TAYLOR, Richard S. Hebreus - Comentário Bíblico Beacon. Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Rio de Janeiro. 20TAYLOR, Benhard A. The Analytical Lexicon to the Septuagint - a complete parsing guide. Zondervan Publishing House. Grand Rapids, Michigan, EUA, 1994.

fl


Capítulo 5

Cristo É Superior a Arão e à Ordem Levítica

N

Comentário de Hebreus 5.1 *14

o capítulo 4.14-16, o autor introduziu o assunto da doutrina do sacerdócio. Aqui, ele tecerá mais detalhes da ordem sacerdotal levítica para contrastar posteriormente com o sacerdócio de Cristo, que é de outra ordem e superior ao levítico. A ideia do autor ao detalhar as qualificações exigidas do Sacerdócio Aarônico tem o propósito de mostrar, em primeiro lugar, que Jesus preenchera esses qualitativos. É bom ter sempre em mente que o autor já havia mostrado Jesus como sendo o Filho de Deus, fato esse que o identifica com a raça humana e o qualificaria para ministrar com o Sum o Sacerdote.

“Porque todo sumo sacerdote, tomado dentre os homens, é constituído a favor dos homens nas coisas concernentes a Deus, para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados" (v. 1). O autor de Hebreus revela que a

primeira condição para alguém exercer o sacerdócio é que esse alguém tenha sido tomado dentre os homens. Somente um homem que possui a mesma natureza de outro homem poderia oficiar como sacerdote. Nos primeiros capítulos de sua carta, o autor expusera uma farta ar­ gum entação em favor da humanidade de Jesus. Esses fatos agora se tom am de grande relevância quando ele apresenta-o como um Sum o Sacerdote constituído em favor dos homens. O sacerdote tinha como dever apresentar dons e sacrifícios. Alguns comentaristas, como, por exemplo, Robert Gundry (nascido em 1932), entendem que a expressão “dons e sacrifícios” é usada com o sinônim o.1 Por outro lado, muitos outros eruditos, como Donald Guthrie (1916-1992), entendem que os sentidos desses termos devem ser mantidos distintos. Guthrie observa, por exemplo, que, nesse caso, os dons (dôra ) são um a referência às ofertas de cereais, e os sacrifícios (thysias) às ofertas de sangue.2 Isso parece ser confirmado pelo uso do verbo grego prosphero (oferecer), que ocorre 19 vezes nessa carta e que mantém esse sentido de apresentar ofertas e sacrifícios diante de Deus. O sacerdote, portanto, deveria ser alguém que se identificasse com seus semelhantes.

“E possa compadecer-se ternamente dos ignorantes e errados, pois também ele mesmo está rodeado de fraqueza" (v. 2). O termo grego metriopathein, traduzido com o "compadecer", tem o sentido de alguém que consegue moderar suas paixões e sentimentos. Alexander Balmain Bruce (1831-1899) destaca que esse vocábulo "Significa sentir-se com outro, mas sem abster-se de sentir contra ele; ser capaz de ter antipatia. Foi usado por Philo


Cristo É Superior a Arão e à Ordem Levítica para descrever o sofrimento sóbrio de Abraão sobre a perda de Sara e a paciência de Jacó sob aflição. Aqui, parece ser empregado para denotar um estado de sentimento em relação ao ignorante e errado, com equilíbrio entre a severidade e indulgência excessiva".3 O sacerdote lidava com todos os tipos de desvios, erros e pecados cometidos pelo povo. Nessa teia de relacionamentos, ele via a fragilida­ de humana, o fracasso e o desespero. Sendo um homem colocado por Deus para representar os homens, o sacerdote sentia na sua própria alma o peso da miséria humana. Por outro lado, ele tinha diante de si a palavra de Deus, que o instruía a dar ao pecado o tratamento ade­ quado, mesmo que o remédio fosse amargo. Era nesse momento que ele precisava agir com metripatheia, isto é, com compaixãol

“E, p o r esta causa, deve ele, tanto pelo povo com o também p o r si mesmo, fazer oferta pelos pecados" (v. 3). O sacerdote da antiga aliança

vivia um dilema: ele necessitava fazer expiação não apenas pelos erros dos outros, mas também pelos seus. O sumo sacerdote deveria oferecer sacrifício prim eiram ente por si e, depois, pelo povo. "Depois, Arão oferecerá o novilho da oferta pela expiação, que será para ele; e fará expiação por si e pela sua casa” (Lv 16.6). Samuel Pérez Millos destaca que, na cerimônia da expiação dos sacerdotes e do povo, observam-se dois aspectos: primeiramente, o sacerdote, por uma questão do direito divino natural que lhe competia, deveria purificar-se de toda imundície pessoal, uma vez que isso tom ava a oferta imunda e impossibilitava-o de ministrar diante de Deus. Por outro lado, o direito positivo pres­ crevia-lhe essa obrigação (Lv 4.3; 9,7; Hb 7.27; 9.7). Essa limitação, observa Millos, não é vista em Jesus Cristo, o Etert-O Sumo Sacerdote, que não teve necessidade de purificar-se, visto ser imaculado e santo.4

“E ninguém tom a para si essa honra, senão o que é chamado p o r Deus, com o Arão" (v. 4). O autor usa a palavra grega timê, traduzida aqui com o honra, para destacar a natureza do sacerdócio.5 O sacer­ dote era alguém cham ado por Deus, e não pelos homens. Nos dias do Novo Testamento, o sistema sacerdotal corrompeu-se e tom ou-se um cargo político, não mais sendo observadas as prescrições divinas para o exercício desse ofício (Êx 28.1; Lv 8.1; Nm 16.5; Sl 105.26). Todavia, com o observa Craig S. Keener (nascido em 1960), o texto sugere que o autor refere-se ao sistema sacerdotal veterotestamentário, onde as exigências da Lei acerca do sacerdócio eram cumpridas, para contrastar com o sacerdócio de Jesus Cristo.6

“Assim, também Cristo não se glorificou a si mesmo, para se fazer sum o sacerdote, mas glorificou aquele que lhe disse: Tu és meu Filho, hoje te gerei” (v. 5). O autor mostra que Jesus cumpriu completamente todas as prescrições exigidas para o exercício do sacerdócio. Ele nAo

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A Supremacia de Cristo se autoglorificou, constituindo-se a si mesmo como sacerdote. O léxico grego de Walter Bauer expressa bem o sentido do texto: "Ele não se elevou à glória do sumo sacerdócio”.7 No versículo 4, o autor fala da honra que Arão teve ao ser escolhido como sumo sacerdote; todavia, quando ele fala do sacerdócio de Jesus, mostra que o sacerdócio era algo inseparável de sua natureza. Deus dá testemunho de Jesus dizendo: "Tu és meu Filho”.8 Essa atribuição foi-lhe dada por Deus. Embora o autor não entre em de­ talhes sobre o momento no qual Jesus teria sido constituído sacerdote, os comentaristas destacam que a cristologia de Hebreus revela que Jesus é o Filho de Deus desde a eternidade (Hb 1.1,2; 5.8) e que foi vocacionado pelo Pai para ser Sumo Sacerdote. Nesse aspecto, a vocação aconteceu antes da encarnação, entrando, contudo, em vigor na paixão e morte, obtendo sua confirmação na ressurreição e ascensão.9

"C om o também diz noutro lugar: Tu és sacerdote eternamente, se­ gundo a ordem de Melquisedeque" (v. 6). É no capítulo 7 que a relação entre o sacerdócio de Jesus e Melquisedeque será explorada com maior profundidade pelo autor.10 Aqui, o comentarista bíblico Henry Orton W iley mostra o que a analogia do sacerdócio de Melquisedeque revela em relação ao de Cristo. 1.

Melquisedeque era sacerdote por seu próprio direito, e não em virtude de sua relação com os outros;

2.

Era sacerdote para sempre, sem substitutos, sem sucessor;

3.

Ele não foi ungido com óleo, mas com o Espírito Santo, como sacerdote do Altíssimo;

4.

Não ofereceu sacrifícios de animais, mas pão e vinho, símbolos da Ceia, que, depois, Cristo instituiu;

5.

E (talvez o principal pensam ento na m ente do escritor da Epístola) ele uniu as funções sacerdotais e reais, coisa estri­ tamente proibida em Israel, mas a ser manifesta em Cristo, Sacerdote no seu trono (Zc 6.13).11

“O qual, nos dias da sua carne, oferecendo, com grande cla m o r e lágrimas, orações e súplicas ao que o podia livrar da morte, fo i ouvido quanto ao que temia" (v. 7). A intercessão, característica de todo sumo sacerdote legitimam ente constituído por Deus, é aplicada a Jesus de um a forma vívida e dramática pelo autor. A expressão "nos dias de sua carne" é uma referência à vida humana de Jesus. A humanidade de Jesus é sempre lembrada pelo autor de Hebreus com o algo imprescindível para o exercício do sacerdócio. A expressão “grande clamor e lágrimas, orações e súplicas” não é encontrada nos evangelhos, mas aproxima-se dos acontecimentos que narram a agonia de Jesus no Getsêmani.

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Cristo É Superior a Arão e à Ordem Levítica “E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, co­ m eçou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então, lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte; ficai aqui e vigiai comigo. E, indo um pouco adiante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passa de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres” (Mt 26.37-39). A tradução "tendo sido ouvido por causa da sua piedade” (ARA) é preferível a "foi ouvido quanto ao que temia" (ARC), já que o termo grego eulabeia mantém o sentido no Novo Testamento de “temor de Deus" e "reverência", destacando o aspecto da vida piedosa.12 Em que sentido Jesus teria sido ouvido? Ao longo da história da interpretação, pelo menos três formas de entendimentos desse texto têm-se destacado. Uma interpretação é que Jesus teria sido ouvido com base na sua piedade. Nesse aspecto, Jesus orou ao Pai para que este o livrasse da morte; todavia, orou também para que a vontade do Pai prevalecesse. Essa era a opinião de João Crisóstomo, de vários escritores medievais e dos comentaristas protestantes James Moffat, Franz Delitzsch e Wescott. Esses autores observam que a oração de Jesus foi ouvida por ter sido feita com temor reverente, e, assim, a vontade do Pai efetivou-se. Uma segunda interpretação é que Jesus teria orado para livrar-se do medo da morte. Essa interpretação foi seguida por João Calvino, Teodoro de Beza, Hugo Grócio, Johann Albrecht Bengel, Milligan e Mi­ chel. Trata-se de uma interpretação inusitada, mas não parece natural e nem de acordo com o contexto desse capítulo. Uma terceira interpretação entende que Jesus foi ouvido e foi libertado da morte através da ressur­ reição.” Esse entendimento segue a antiga tradução dada pela Peshitta, que data do segundo século. A tradução da Peshitta diz: “E quando este estava vestido de carne, ofereceu petição e súplica com intenso clamor e lágrimas àquEle que podia ressuscitá-lo da morte, e foi ouvido”.14Em uma nota de rodapé da versão em espanhol da Peshitta, está a explicação: “Essa expressão é fiel ao cumprimento de que o Pai não o abandonaria no Seol, aparte de que o Senhor sabia de antemão que havia vindo para morrer na cruz. O texto grego diz livrá-lo da morte ".15 O erudito W. F. Mouton, um dos defensores dessa interpretação, destaca: “Estamos convencidos de que a oração não foi para que a morte fosse evitada, mas que houvesse segurança de libertação da mesma”.16F. F. Bruce argumenta que o contexto de Hebreus 5, que é Salmos 22, favorece esse entendimento. “M as enquanto o Getsêmani provê a 'ilustração mais vívida’ das palavras de nosso autor, elas têm uma referência mais geral ao curso da hum ilhação e paixão de nosso Senhor. Mais ainda: Foram influen­ ciadas pela linguagem do Salmo 22, um salmo cuja frequência como testemunium cristão já temos assinalado. 'Grande clamor e lágrimas’ é a súplica e queixa da primeira parte do salmo , enquanto a afirmação

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A Supremacia de Cristo de que Cristo foi ‘ouvido por causa de seu temor reverente’ faz eco do Salmo 22.24: ‘Quando ele clamou, o ouviu’. Na interpretação cristológica desse salmo, essas palavras entendem-se como uma referência a ressurreição de Cristo".17

"Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, p or aquilo que pade­ ceu” (v. 8). Sendo o verbo de Deus encarnado, Jesus viveu nas mesmas condições nas quais viveram os demais homens, exceto o pecado. Na sua humanidade, Ele também precisou exercitar a vida de obediência. O sentido dado pela tradução americana New English Bible (NEB) é que Jesus aprendeu na escola do sofrimento.

“E, sendo ele consumado, veio a ser a causa de eterna salvação para todos os que lhe obedecem" (v. 9). A expressão “sendo ele consumado" é traduzido na Almeida Revista e Atualizada como “tendo sido aperfeiçoa­ do". Esse vocábulo é o particípio aoristo passivo de teleioô, significando: executar plenamente, consumar, acabar, aperfeiçoar.18 Adam Clarke traduz como “havendo terminado tudo’’, significando “havendo m orto e ressuscitado” .'9 O texto, portanto, não está sendo usado no sentido de que Jesus era imperfeito e precisava aperfeiçoar-se, mas, sim, no sentido de completude, isto é, que Ele completou a obra da Salvação. Em seu antigo comentário à carta aos Hebreus, Teodoreto de Cirro (393—457 d.C) destacou este sentido: “Com a expressão 'chegou à perfei­ ção’ refere-se à ressurreição e à imortalidade, que são o cumprimento da economia da salvação”.20 O texto mostra que o plano da Salvação é para todos os homens (Jo 1.29; 3.16; 2 Pe 3.9; 1 Jo 2.2), mas ela só se efetiva naqueles que a recebem. Somente aqueles que recebem a Cristo e obedecem a Ele serão salvos. O autor conclui seu raciocínio dizendo que, tendo terminado o sacrifício do Calvário, Deus proclamou a Jesus Cristo, na sua ressurreição, Sumo Sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque.

“Chamado por Deus sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque’’ (v. 10). Ele voltará a tratar esse assunto com profundidade no capítulo 7; todavia, aqui, o autor introduz um parêntese exortativo, como ele já fizera em outros lugares.

“Do qual m uito temos que dizer, de difícil interpretação, porquanto vos fizestes negligentes para o u v ir" (v. 11). A doutrina do sacerdócio de Cristo é de suma importância para a vida cristã; o autor, todavia, observou que seus leitores davam sinais de arrefecimento na fé. Eles negligenciaram o aprendizado, sendo tardios para ouvir, e, como consequência, não estavam crescendo em maturidade espiritual. O autor tem consciência de que, quando voltar a tratar do assunto do sacerdócio de Cristo (no capítulo 7), seus leitores terão dificuldades de assimilar o seu ensino. O perfeito do indicativo ativo do verbo grego ginom ai mostra que seus leitores nem sempre foram assim. Era hora de acordá-los novamente!

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Cristo É Superior a Arão e à Ordem Levítica “Porque, devendo já ser mestres pelo tempo, ainda necessitais de que se vos tome a ensinar quais sejam os primeiros rudimentos das palavras de Deus; e vos haveis feito tais que necessitais de leite e não de sólido man­ timento” (v. 12). A censura do autor é forte: eles deveriam ser mestres; no entanto, ainda se encontravam no jardim de infância da fé. Eles estavam atrasados na escola da fé e necessitavam refazer novamente as lições que já deveriam ter aprendido. O crescimento espiritual tem sua analogia no crescimento natural. A criança ainda não tem seus órgãos plenamente desenvolvidos; por isso, ela deve sofrer restrições quanto a determinados tipos de alimentos. Ela necessita de leite, que é necessário e adequado para esse estágio da vida. Para um adulto, porém, somente esse tipo de alimento não é suficiente. Os hebreus ainda estavam bebendo leite!

"Porque qualquer que ainda se alimenta de leite não está experimentado na palavra da justiça, porque é menino" (v. 13). A criança alimenta-se

de leite, e o adulto de comida sólida. O autor sabe que a doutrina do sacerdócio exige uma maior dificuldade de compreensão — ela é para os que já são graduados.

“Mas o mantimento sólido é para os perfeitos, os quais, em razão do costume, têm os sentidos exercitados para discernir tanto o bem com o o mal" (v. 14). Os cristãos maduros, que cresceram na fé, são aqueles aos quais o autor tem como "adequadamente treinados".21

N otas 1 GUNDRY, Robert. Commentary on Hebrews. Baker Academic, Grand Rapids, Michigan. EUA, 2010. 2 GUTHRIE, Donald. Hebreus - introdução e comentário. Editora Vida Nova, São Paulo. 3 BRUCE, Alexander Balmain. To The Epistle to Hebrews - the first apo­ logy o f Christianity: An exegetical study. Charles Scribner’s Sons. Fifth Avenue, Nova York City, 1899. 4 MILLOS, Samuel Perez. Hebreos - comentário exegético al texto griego del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 5 Esse termo ocorre 41 vezes no Novo Testamento e 4 em Hebreus. Josefo usa essa palavra para referir-se à honra do ofício do sumo sacerdote (Josefo, Antiguidades HI, 188). 6 KEENER, C. S. Comentário del Contexto Cultural de la Biblia - Nuevo Testamento. Editorial Mundo Hispano, El Paso, Texas, EUA. 7 BAUER, Walter. A Greek-English Lexico o f the New Testament and Other Early Christian Literature. The University of Chicago Press, EUA, 1979. 8 Veja a exposição de Thomas C. Edwards no seu Comentário Bíblico do Expositor - Carta aos Hebreus. Editora Koilas, Florianópolis, Santa Catarina, 2014. Edwards observa que o autor usa a palavra time {honra) para referir-se a chamada de Arão. Todavia, em relação a Jesus, ele usa

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A Supremacia de Cristo o term o doksa, m o stran do que o sacerdócio de Jesus era algo que fazia parte de sua p ersonalid ad e, e não a lg u m a coisa que foi acrescentada, com o no caso de Arão. 9 F R IT Z , L au b ach . C o m e n tá rio a os H eb reu s. E d ito ra E sperança. 10"O sacerdócio de M elq u ised eq u e foi u m a fonte de nu m erosas especu­ lações p ós-b íb licas que foi intensificada p ela dificuldade do versículo do S alm o 110.4: "O Sen h o r ju ro u e não se arrependerá/Tu és sacerdote p a r a sem pre/ s e g u n d o a o rd e m de M e lq u is e d e q u e ” . G e ra lm e n te , é acreditado que o M elq u ised eq ue m en cio n ad o aqui e o de G ên esis são o m esm o” (E n c ic lo p a e d ia Judaica, 22 v o lu m e s . S e co n d E d itio n , vol. 14. P p . 11. M acm illan Reference, F arm in gto n H ills, M I, E U A , 2007. 11W I L E Y , O rton. A E x c e lê n c ia da N o v a A lia n ça em C ris to - c o m e n tá r io e x a u s tiv o da ca rta a os H ebreus. E d ito ra Central Gospel. ‘-A d a m C lark e fez u m a p a rá fra s e de H e b r e u s 5.7: "Jesus Cristo, nos dias de sua carn e (p o rq u e E le foi en c arn a d o para re d im ir a sem ente de A b raã o, a raça h u m an a caíd a) e, em seus sofrim entos expiatórios, q u an d o representava a raça hum ana, o ferecia orações e súplicas com forte cla m o r e lágrim as à q u E le que p o d ia salvá-lo d a morte. A inter­ cessão prevaleceu, a p aixão e o sacrifício foram aceitos, o agu ilh ão da m orte foi tom ado, e Satanás d e stro n a d o ” (C L A R K E , A dam . H ebreos - C o m e n tá rio de La San ta B iblia , t o m o I I I , p p 594, N u e v o T e sta m en to. C asa N a z a re n a de Publicaciones, Lenexa, E U A ). 11Veja um a análise detalhada no comentário: E pístola aos H ebreus - Jesus C risto, H o je. N eil R. Lightfoot. E d ito ra V id a Cristã. 14B ib lia Peshita - T ra d u cck m de Los A n tigos M a n u scrito s Aram eos. H olm an B ib le Publishers. N ashville, Tennessee, E U A . 15 Idem . I6E L L I C 0 T T , C h arles John. A B ib le C o m m e n ta ry F o r E n g lis h R eaders. Cassell and C om pany, Londres, 1905. 17B R U C E , F. F. La E p is to la a L o s H ebreos. L ibro s Desafio. G ra n d R apids, M ichigan, E U A . '“ M O U C E , W illia m D. L é x ic o G rego A n a lític o . E d ito ra V id a Nova. 19C L A R K E , A d a m . H e b re o s - c o m e n t á r io de la S a n ta B ib lia , t o m o I I I . E d ito ra N azaren a, Lenexa, E U A . 20C IR O , Teodoreto. In te rp re ta c io n S o b re La C arta a L o s H eb reos. L a B i­ blia C om entada p o r L o s Padres de L a Iglesia. C iud ad N ueva, M ad rid , E span a. 21 B U C H A N A N , G eo rge W esley. T o The H ebrew s - The A n c h o r B ib le . D o u ­ bleday & C om pany, IN C . G ard e n City, N o v a York, E U A , 1972.

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nça e Fé em Tempo de Apostasia Comentário de Hebreus 6.1 -20

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s versículos 11 -1 4 do capítulo 5 retratam os cristãos hefcVéai como estando ainda na infância da fé. Aqui, o autor vê a urgência Jfc^ de fazê-los avançar nesse processo, pois ele quer tratar sobre a âôutrina do sacerdócio de Cristo no capítulo 7. Ele tem consciência de que não será uma tarefa fácil fazer com que seus leitores assimilem o que ele está prestes a ensinar. O autor tem plena convicção de que a doutrina do sacerdócio de Jesus Cristo é de suma importância para O viver vitorioso. Todavia, para que os seus pressupostos e princípios fossem apreendidos, seria necessário ir além dos rudimentos da fé.

“Pelo que, deixando os rudimentos da doutrina de Cristo, prossigamos até a perfeição, não lançando de novo o fundamento do arrependimento de obras mortas e de fé em Deus" (v. 1). A expressão “deixando os rudimentos da doutrina de Cristo’’ não é um convite ao desprezo dos fundamentos da

fé. As bases da fé são necessárias; são, porém, os primeiros degraus a serem escalados numa longa escada da vida cristã. Não devem ser o ponto final, mas, sim, o ponto de partida. Esse fato fica demonstrado com o intenso desejo que o autor tem em conduzir seus leitores à perfeição cristã. A pa­ lavra grega teleiotês (perfeição) é descrita no léxico de Bauer com o sentido de “maturidade em contraste com o estágio do conhecimento elementar".' Embora o teólogo Henry Orton Wiley veja, nessa palavra, uma referência à doutrina da perfeição cristã ensinada por John Wesley, o contexto favo­ rece o alcance de uma maturidade espiritual em Cristo nesta vida, e não que possamos chegar à perfeição completa que é reservada para o outro lado da eternidade.2 O sentido de obras mortas (v.l) deve ser o mesmo de Hebreus 9.14, que é o de uma consciência limpa e que é alcançada através do arrependimento, enquanto a fé em Deus é uma referência à fé cristã como o ingresso na comunidade dos salvos.3

“E da doutrina dos batismos, e da imposição das mãos, e da ressur­ reição dos mortos, e do juízo eterno" (v. 2). Em vez de terem crescido em conhecimento espiritual, os crentes hebreus estacionaram. Eles não passaram nem mesmo dos primeiros passos da iniciação à vida cristã. O conhecimento deles limitava-se a um entendimento básico de algumas doutrinas elementares da fé. O autor tinha por certo que seus leitores estavam completamente familiarizados com os rituais por ele descritos. A palavra "batismo” está no plural; sendo assim, é possível que o autor tivesse em mente os vários rituais judaicos de lavamento cerimonial, e não apenas a prática do batismo cristão.4 Tratando-se de uma comunidade formada por judeus cristãos, não seria incomum


A Supremacia de Cristo haver entre eles quem estivesse disposto a querer saber mais sobre esses rituais. O teólogo britânico F. F. Bruce, por exemplo, observa que, em vez de usar o termo grego baptisma, comumente usado para referir-se ao batismo cristão, o autor optou por usar o termo grego baptismos .5 O léxico grego de Bullinger traduz o termo baptismos como o ato de lavar, ablução, com. especial referência à purificação.6 Esse mesmo termo aparece em Hebreus 9.10 e é traduzido pela Nova Versão Inter­ nacional como “cerimônias de purificação com água" e “lavar as mãos cerimonialmente" em Marcos 7.4. No contexto do Novo Testamento, a referência à imposição das mãos está associada ao recebimento do Espírito Santo (At 19.6) e à ordenação de obreiros (1 Tm 4.14). Por outro lado, a ressurreição de mortos e o juízo vindouro são doutrinas de natureza escatológica e, por certo, cridas e aceitas por seus leitores. “E isso faremos, se Deus o perm itir" (v. 3). O autor não nega a im­ portância desses ensinos, e sim os vê como os "fundamentos”, e não como todo o edifício doutrinário. Era, portanto, mister avançar no seu doutrinamento.

"Porque é impossível que os que já uma vez foram iluminados, e prova­ ram o dom celestial, e se fizeram participantes do Espírito Santo” (v. 4). O tom exortativo da carta aos Hebreus chega a seu ápice aqui, no versículo quatro deste capítulo. Com a palavra "impossível” (gr. adynatos), o autor dá início a uma argumentação que culmina no versículo 6. Dentro desse contexto, o termo “impossível” é usado em relação àqueles que caíram e não mais podem ser restaurados ao arrependimento. Mas que tipo de queda o autor está-se referindo? Não há dúvida de que não se trata de um desvio qualquer, mas, sim, daquilo que o próprio autor já se referira em Hebreus 3.12 — o pecado da apostasia. A interpretação que afirma que, aqui, o autor se estaria referindo a uma mera hipótese, sem possi­ bilidade de realização, não consegue ser convincente. Da mesma forma, a interpretação que tenta transformar "os iluminados" que "provaram o dom celestial" e que se "tomaram participantes do Espírito Santo” em descrentes ou crentes salvos, porém não regenerados, não se sustenta por razões contextuais, gramaticais e léxicas!

64

1.

O termo "iluminado” é usado tanto no contexto do Novo Tes­ tamento como aqui em Hebreus como se referindo a pessoas salvas (Hb 10.32; Jo 8.12; 2 Pe 1.19).

2.

A palavra grega dorea, traduzida aqui como "dom”, é usada em outras passagens no Novo Testamento. É usada em referência a Cristo, o Espírito Santo ou alguma coisa dada por Cristo. Esse texto, portanto, fala daqueles que experimentam o dom do Filho (Jo4.10; Rm 5.15,17; 2 Co 9.15; E f 4.7) e do Santo Espírito (At 2.28; 8.20; 10.45; 11.17) e que posteriormente caíram.


Perseverança e Fé em Tempo de Apostasia 3.

A expressão “participantes do Espírito Santo” só tem sentido em relação a crentes (Rm 8.9). Hal Harless destaca que os que caíram foram, de uma vez por todas, feitos participantes (metochous genêthentas) do Espírito Santo (Hb 6.4). Esse particípio passivo mostra que Deus fez que eles participassem do Espírito Santo e que isso não partiu deles mesmos. O termo grego metochos significa: (1) "compartilhando/participando". (2) "negócios”, “parceiro”, "companheiro”. O particípio acom­ panhante favorece o primeiro. Eles participam do Espírito Santo, então eles são regenerados (Rm 8.9, Tt 3.5-7).7 (veja um estudo detalhado sobre esse assunto no Apêndice)

“E provaram a boa palavra de Deus e as virtudes do século futuro” (v. 5). Os crentes a quem o autor fez referência no versículo 4 também provaram "a boa palavra de Deus” e os "poderes do século vindouro". Esse versículo também só tem sentido quando visto em referência a crentes. Eles já haviam sido iluminados, provado do dom celestial e participado do Espírito Santo. Agora, é mostrado que eles também provaram da palavra de Deus e conheceram as virtudes do século vindouro. Eram, portanto, crentes de verdade.

“E recaíram sejam outra vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo crucificam o Filho de Deus e o expõem ao vitupério” (v. 6). O autor alertará que a queda na fé é uma possibilidade real e que, nesse aspecto, a apostasia é um caminho sem volta. Aqui, ele mostra a causa dessa tragédia espiritual. Tanto Bruce como Hughes destacam que o particípio anastaurountas (crucificar de novo) aqui é causal, indicando a impossibilidade de o apóstata arrepender-se e recomeçar de novo.8 Fritz Rienecker (1897-1965) destaca que o particípioparadeigmatizontas (expor à desgraça) soa como um alerta aos leitores para que o mesmo apóstata não volte ao judaísmo, pois, se ele assim o fizesse, não haveria mais condições de refazer sua vida espiritual. Esse fato requereria uma re-crucificação de Cristo e a exposição dEle à vergonha pública.9William Barclay vê a apostasia aqui como um fato concreto, porém entende que a mesma acontecia no contexto de uma perseguição onde o cristão era desafiado a negar sua fé. Ainda segundo Barclay, o autor queria mostrar que “era a terrível seriedade de escolher a sobrevivência neste mundo à custa da lealdade a cristo. O autor de Hebreus, na continuação, diz uma coisa terrível. Os que cometem apostasia crucificam a Cristo outra vez”.10 (veja o Apêndice, posto logo após o capítulo 14 deste livro).

“Porque a terra que embebe a chuva que muitas vezes cai sobre ela e produz erva proveitosa para aqueles por quem é lavrada recebe a bênção de Deus” (v. 7). O versículo 7 ilustra a vida frutífera do cristão que cresce diariamente na graça e no conhecimento do Senhor.

tff


A Supremacia de Cristo “Mas a que produz espinhos e abrolhos é reprovada e perto está da maldição; o seu fim é ser queimada” (v. 8). Entretanto, por outro lado, o versículo 8 representa a vida do apóstata que produz mau fruto.

“Mas de vós, ó amados, esperamos coisas melhores e coisas que acompanham a salvação, ainda que assim falamos” (v. 9). Alguns co­ mentaristas usam esse versículo para tentar provar que a apostasia não passa de uma mera possibilidade e que nunca ocorrerá, de fato, com um cristão. Isso, no entanto, é ir além do que o texto está afirmando. Para o expositor bíblico Charles A. Trenthan, o autor precisou usar um tom duro, dando uma sacudida nas convicções de seus leitores, pois observou que eles estavam considerando consigo a possibilidade de apostatar. Trenthan observa que o autor "acrescenta uma palavra de certeza confortante. Ele usa um termo de carinho e encorajamento e chama-os de amados. Essa é a única vez que ele usa esse termo. Não há romantis­ mo sentimental neste escritor. Contudo, as fortes palavras de advertência agora são suavizadas pela certeza de que, embora eles estivessem pensando em afastar-se de Jesus, na verdade não o fizeram. Não caíram, embora tivessem se demorado demais na cartilha cristã."11

“Porque Deus não é injusto para se esquecer da vossa obra e do tra­ balho de am or que, para com o seu nome, mostrastes, enquanto servistes aos santos e ainda servis" (v. 10). O autor reconhece que esses crentes tinham serviços prestados na comunidade e envia-lhes uma palavra pastoral ao mostrar o cuidado que Deus tinha por eles. Entretanto, a vida cristã é uma caminhada que requer perseverança; por isso, são encorajados a irem até o fim.

“Mas desejamos que cada um de vós mostre o mesmo cuidado até ao fim, para completa certeza da esperança” (v. 11). Essa perseverança tem em vista a promessa da vida eterna, que é herdada por aqueles que imitam quem andou na senda da fé.

“Para que vos não façais negligentes, mas sejais imitadores dos que, pela fé e paciência, herdam as promessas” (v. 12). O autor lembra o testem unho de Abraão, conforme registrado em Gênesis 22.16 -17, quando este ofertou seu filho a Deus.

“Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, com o não tinha outro m aior p o r quem jurasse, ju rou p o r si mesmo” (v. 13). Sabendo que os juramentos são importantes para os homens, Deus, por meio de juramento, garantiu a Abraão que ele herdaria as promessas. Essa promessa envolvia a bênção da multiplicação.

“Dizendo: Certamente, abençoando, te abençoarei e, multiplicando, te multiplicarei" (v. 14). Nesse contexto, essa promessa transcende o aspecto

66


Perseverança e Fé em Tempo de Apostasia físico e alcança todos aqueles que são descendentes de Abraão pela fé. Quando as promessas foram feitas a Abraão, ele teve que esperar com paciência. Quando Deus fez a promessa de uma grande posteridade a Abraão, este estava com 75 anos. Vinte e quatro anos depois, veio-lhe a promessa de um filho, que foi cumprida um ano depois. “E assim, esperando com paciência, alcançou a promessa" (v. 15). O hebreu Abraão era um exemplo de ânimo, fé e esperança para os crentes hebreus. Pela fé, ele alcançou a promessa e viveu na expectativa daquelas que ficaram para serem realizadas.

“Porque os homens certamente juram por alguém superior a eles, e o juramento para confirmação é, para eles, o fim de toda contenda" (v. 16). Deus deu a Abraão uma garantia legal de que sua palavra seria cumprida.

“Pelo que, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do seu conselho aos herdeiros da promessa, se interpôs com juram ento” (v. 17). Neil R. Lightfoot observa que a intenção do autor é mostrar que a promessa de Deus não vacila. Ela é sólida, irrevogável. Mas, para mostrar a Abraão que, de fato, a sua promessa seria cumprida, deu a sua palavra como garantia.12

“Para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação, nós, os que pomos o nosso refúgio em reter a esperança proposta” (v. 18). Se Deus prometera, Ele cumpriria. Se Ele jurara, seu juramento seria mantido. Esse era o fundamento de quem firma sua esperança em Deus.

“A qual temos com o âncora da alma segura e firme e que penetra até ao interior do véu" (v. 19). A esperança do cristão é como uma âncora que está aportada no interior do santuário celestial, isto é, além do véu onde Jesus encontra-se.

“Onde Jesus, nosso precursor, entrou por nós, feito eternamente sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque” (v. 20). Cristo adentrou primeiramente nesse santuário celestial porque ele é o Sumo Sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque.

N otas 1 BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon o f the New Testament and other Early Christian Literature. The University of Chicago Press, Chicago, EUA. 2 GUZIK, David. Hebrews - Verse by Verse Commentary. Enduring Word Media, Santa Barbara, CA, EUA. O próprio John Wesley não queria que seu ensino sobre a perfeição cristã fosse mal compreendido: “Não é que hajam alcançado de todo o que alcançariam, nem que neste sentido sejam perfeitos. Senão que diariamente vão de poder em poder; 'mi­ rando’ agora ‘como um espelho a glória do Senhor', são ‘transformados de glória em glória, como pelo Espírito do Senhor” (WESLEY, John.

Works, 11:379).

67


A Supremacia de Cristo 3 B R U C E , F. F. La M ic h ig a n E U A .

Epistola a Los Hebreos. L ib ro s Desafio, G ran d R apids,

4 H ip ó lito de R o m a (17 0-2 35 d .C ) o bservo u q u e algu m a s co m u n id ad es p rim itiv a s p ra tic a v a m o b a tis m o n o d o m in g o , m as e x ig ia m q u e os b a tiz a n d o s to m a sse m u m b a n h o n a q u in ta -fe ira an terio r. (R O M A , H ip ó lito . Tradição Apostólica de Hipólito de Roma. E d it o r a V o z e s , Petrópolis, R io de Janeiro). E ssa p rática d escrita p o r H ip ó lito revela que, desde m uito cedo, algun s gru p os afastaram -se d o m o d e lo b íb lic o en sin ad o no N o v o Testam ento so bre a p rática d o batism o. E sse fato é

claram ente percebid o na Didache o u o Ensino dos Doze Apóstolos, u m a o b ra não canônica e datada do I século. E ssa o b ra revela o afastam ento

d o ensino neotestam entário so bre a fo rm a batism al q u a n d o instrui a sua prática p o r aspersão: "Q u an to ao batism o, faça assim : d epois de ditas todas essas coisas, batize em águ a corrente, em nom e d o Pai, e d o Filho, e d o E spírito Santo. Se você n ão tiver á g u a corrente, batize em outra água. Se n ão p u d er batizar com águ a fria, faça com águ a quente. N a falta de u m a o u outra, derrame água três vezes sobre a cabeça, em nom e d o Pai, e d o Filho, e do E spírito Santo". (DIDACHE - Ensino dos

Doze Apóstolos. E d ito ra V o zes, Petrópolis, R io de Janeiro). 5 B R U C E , F. F. B R U C E , F. F. La Epistola a Los Hebreos. L ib ro s Desafio, G ra n d R ap id s, M ich igan , E U A . 6 B U L L I N G E R , E thelbert W . A Critical

Lexicon and Concordance to the English and Greek New Testament. Zon dervan Pu blishing H ouse, G ran d R ap id s, M ich igan , E U A , 1975.

7 H A R L E S S , Hal. Fallen Away or Fallen 6.1 -9 . C h afer T h eo lo gical Sem inary. 8 R IE N E C K E R , Fritz. 9 Idem . pp. 506.

Down? - The meaning o f Hebrews

Chave Linguística do Novo Testamento Grego.

10 B A R C L A Y , W illia m . Hebreos - Comentário torial C L IE , B arcelo n a, E span ha. " T R E N T H A N , C h a rle s A. J U E R P , R io de Janeiro. 12 L IG H T F O O T , N e il R. Cristã.

08

al Nuevo Testamento. E d i­

Hebreus - Comentário Bíblico Broadman.

Hebreus - comentário vida cristã. E d ito ra V id a


Jesus: Sumo Sacerdote de uma Ordem Superior Comentário de Hebreus 7.1 -28

T

endo terminado a sua seção parentética no capítulo 6, que havia introduzido no final do capítulo 5, o autor volta a tratar do assunto que ele acha central em sua argumentação — a doutrina do sacer­ dócio de Cristo. Para tal, ele principia resgatando sua fundamentação histórica e profética.

“Porque este Melquisedeque, que era rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo, e que saiu ao encontro de Abraão quando ele regressava da matan­ ça dos reis, e o abençoou” (v. 1). O autor já afirmara (Hb 5.4-6) que Jesus havia sido constituído por Deus como Sumo Sacerdote de uma ordem superior a de Melquisedeque. Aqui, ele vai mostrar a importância que teve essa figura enigmática dentro do plano divino. Ele chama a atenção para o fato de que Melquisedeque fora rei e sacerdote. Melquisedeque, portanto, é o único personagem na história do Velho Testamento que fora rei e sacerdote ao mesmo tempo. Donald Hegner observa que, no judaísmo primitivo, prevalecia a crença de que o Messias acumularia essas duas funções.1 A intenção do autor é mostrar, não pelo simples fato de que essa era uma expectativa judaica, mas, sobretudo, porque era um fato profético, que Jesus era Sumo Sacerdote dessa mesma ordem. Foi esse sacerdote-rei que abençoou o patriarca Abraão.

“A quem também Abraão deu o dízim o de tudo, e primeiramente é, p o r interpretação, rei de justiça e depois também rei de Salém, que é rei de paz” (v. 2). De acordo com a Enciclopaedia Judaica, o nome Melquisedeque é interpretado pelo autor de Hebreus como sendo “rei de justiça" e “paz" com o propósito de associá-lo à pessoa de Jesus. “Na epístola aos Hebreus (7.1-7), Melquisedeque (rei de jus­ tiça - Zedek; de paz - Salém) é descrito como único, sendo ambos um sacerdote e rei, e porque ele é ‘sem pai, sem mãe, sem genealogia’; ele é eterno, ‘não tendo começo de dias e nem fim da vida’. Nesse sentido, Melquisedeque assemelha-se a Jesus, o Filho de Deus, e, assim, é um tipo do Salvador".2

“Sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem f m de vida, mas, sendo feito semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (v. 3). Esse versículo forneceu combustível para muitos debates em tom o da figura enigmática de Melquisedeque.' To­


A Supremacia de Cristo davia, a interpretação mais natural, como descreveu a Enciclopaedia Judaica, é aquela que a tradição cristã tem-lhe atribuído — um tipo de Cristo.4 O vocábulo grego aphomoioo, traduzido como semelhante, só aparece aqui no Novo Testamento. A. T. Robertson destaca “que essa semelhança está na figura tirada do Gênesis, e não na própria pessoa".5 Melquisedeque é um tipo do qual Jesus é o antítipo. A ordem sacerdotal, e não simplesmente a pessoa de Melquisedeque, está no foco da argumentação do autor. De forma análoga, Richard Taylor observa que as descrições dadas sobre a pessoa de Melquisedeque no versículo 3 (sem pai, sem mãe e sem genealogia) devem referir-se à sua ordem sacerdotal, e não à sua pessoa.6 Esse entendimento é confirma­ do no fato de que, para um judeu conhecedor do sistema levítico, era totalmente inconcebível alguém reivindicar o sacerdócio sem que seus pais fossem sacerdotes. John Nelson Darby (1800-1882) destaca que "como sacerdote, Cristo era sem genealogia, não como homem. Sua mãe era conhecida. Uma vez feito sacerdote, não podia ser descartado ao chegar a uma certa idade, como aqueles sacerdotes. Ele permanece para sempre. ‘Feito semelhante ao filho de Deus’ — somente como sacerdote. A realeza está vinculada com o sacerdócio".7 Melquisedeque foi uma pessoa física, histórica, mas o seu sistema sacerdotal era atemporal, eterno.8 M uito barulho tem sido feito em torno da figura enigm ática de Melquisedeque porque é desconhecida a forma como a hermenêutica judaica interpretava o silêncio de determinado texto. Na interpretação rabínica dos textos sagrados, até mesmo o silencio falava alto. Filo, um judeu de Alexandria, por exemplo, utilizou-se muito desse recurso.9 Donald Hegner destaca: "Do ponto de vista rabínico, o silencio é tido como verdadeira­ mente significativo, em vez de apenas fortuito, de modo especial em se tratando de uma pessoa tão importante, rei e sacerdote ao mesmo tempo. Visto não ter registro da morte de Melqui­ sedeque, nem do término do seu sacerdócio, pode se concluir que ele permanece sacerdote para sempre. Considerando-se, pois, o que as Escrituras dizem e o que silenciam a respeito de Melquisedeque, toma-se evidente que ele é semelhante ao filho de Deus, que também jamais teve início de dias, nem fim de vida, com um sacerdócio de validade eterna”.10

"Considerai, pois, quão grande era este, a quem até o patriarca Abraão deu os dízimos dos despojos" (v. 4). Há um jargão popular que diz: “Na 70


Jesus: Sumo Sacerdote de uma Ordem Superior terra de Melquisedeque, Abraão só paga o dízimo”. Nesse versículo 4, o autor mostra a superioridade de Melquisedeque em relação a Abraão. Todos os judeus, incluindo os cristãos provenientes do judaísm o, tinham consciência da grandeza do patriarca Abraão para a história hebraica. Todavia, o autor de Hebreus está mostrando a seus leitores que Abraão foi grande sim, mas que Melquisedeque fora ainda maior do que ele, visto Abraão ter reconhecido como legítimo o sacerdócio de Melquisedeque através da devolução dos dízimos. É exatamente dessa ordem sacerdotal muito superior à Ievítica que advém o sacerdócio do Filho de Deus.

“E os que dentre os filhos de Levi recebem o sacerdócio têm ordem, segundo a lei, de tomar o dízimo do povo, isto é, de seus irmãos, ainda que tenham descendido de Abraão" (v. 5). O autor tem em mente mos­ trar a seus leitores que, no contexto do Antigo Testamento, há duas linhas sacerdotais. Uma delas começa com Abraão, passando por Levi e seus descendentes, e a outra tem início com Melquisedeque, o sacerdote-rei. Essa ordem sacerdotal, que começou com Melquisedeque, vai até o Messias, Jesus Cristo (SI 110.4). Dessa forma, o autor prova que, embora o sacerdócio levítico tenha recebido dízimos, assim como Melquisedeque recebeu do patriarca Abraão, nem mesmo assim eles podem equiparar-se em grandeza ao rei-sacerdote de Salém.11

"Mas aquele cuja genealogia não é contada entre eles tomou dízimos de Abraão e abençoou o que tinha as promessas” (v. 6). Esse sacerdócio de Melquisedeque, que nem mesmo registro possuía entre eles, tinha mais realeza do que o sistema levítico. A ordem sacerdotal Ievítica era humana, terrena; já a ordem de Melquisedeque era divina, celestial. “Ora, sem contradição alguma, o menor é abençoado pelo maior" (v.7). O fato relevante mostrando que Abraão devolveu o dízimo a Melquisede­ que e que ele fora abençoado pelo mesmo demonstra a superioridade de Melquisedeque sobre o patriarca hebreu. O rei deve abençoar o súdito; o soldado presta continência para o oficial; o filho subordina-se ao pai. Da mesma forma, foi Abraão em relação a Melquisedeque.

“E aqui certamente tomam dízimos homens que morrem; ali, porém, aquele de quem se testifica que vive" (v. 8). Simon Kistemaker observa, como já foi destacado neste livro, que o autor de Hebreus segue uma lógica diferente da nossa porque emprega uma metodologia rabínica adotada no primeiro século. Dentro dessa metodologia interpretativa, o autor declara que o testemunho sobre Melquisedeque é que ele "vive”. Estaria ele querendo dizer com isso que Melquisedeque jamais morreu? Se a lógica fosse essa, ele seria um ser sobrenatural, o próprio Filho de Deus, fato esse que o autor já descartou quando disse que o sacerdote de Salém era “semelhante” ao Filho de Deus, e não o próprio Jesus (Hb 7.3). Kistemaker destaca que "nos lugares onde seu nome é mencionado (Gn 14.18-20; SI 110.4), Melquisedeque (quanto a seu

71


A Supremacia de Cristo sacerdócio) é descrito como uma pessoa que ‘vive’. Isso significa que a ordem sacerdotal de Melquisedeque é permanente’’.12 Entendimento semelhante é dado pelo expositor Donald Hegner: "O argum ento do v. 8 tem caráter rabínico, pois atribui grande significado ao silêncio do texto (cf. v.3). A referência àquele de quem se testifica que vive, no entanto, encontra paralelismo nas referências a Cristo nos w . 15, 16 e 24, em que a referência à vida eterna sem fim é absolutamente verdadeira".13 Dentro da tradição cristã, portanto, esse versículo ganha o sentido de que, aqui, a ordem levítica, constituída por homens mortais, toma dízimos; ali, isto é, na ordem sacerdotal de Melquisedeque, personificada em Jesus Cristo, o Sacerdote Eterno, recolhia dízimos porque é superior à ordem levítica e continuará sempre existindo. Melquisedeque não era eterno, mas a sua ordem sacerdotal sim. A ordem sacerdotal levítica, encarregada de tomar os dízimos, era temporal, passageira, pois era constituída de homens mortais. Essa ordem sacerdotal tomou-se ob­ soleta e caducou. A ordem de Melquisedeque, porém, jamais acabará porque é eterna. É dessa mesma ordem que Cristo, o Sacerdote-Rei, exerce o seu sacerdócio para todo o sempre!14

“E, para assim dizer, p o r meio de Abraão, até Levi, que recebe dízi­ mos, pagou dízim os" (v. 9). A ordem sacerdotal de Melquisedeque é superior à levítica, visto que todo o sistema levítico, representado na pessoa de Abraão, pagou dízimos a Melquisedeque. Esse fato é usado para mostrar a superioridade e relevância da ordem do sacerdote-rei de Salém. Mesmo que ainda não tenha sido gerado, Levi, tribo da qual seriam escolhidos os sacerdotes, pagou dízimos na pessoa de Abraão.

"Porque ainda ele estava nos lombos de seu pai, quando Melquisedeque lhe saiu ao encontro” (v. 10). O fato está estabelecido — há mais de uma ordem sacerdotal: Melquisedeque e Levi. Todavia, a ordem sacerdotal de Melquisedeque é superior à levítica. O sistema levítico de sacerdotes era imperfeito, mas o melquisedequiano, perfeito.

“De sorte que, se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico (porque sob ele o povo recebeu a lei), que necessidade havia logo de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e não fosse chamado segundo a ordem de Arão?” (v. 11). Se o sistema levítico fosse perfeito e, logo, não sujeito à substituição, então por que a profecia prenunciou o surgimento de outra ordem sacerdotal superior e mais perfeita (SI 110.4)?

“Porque, mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz também mudança da lei” (v. 12). O autor fala da necessidade da mudança do “sacerdócio” enquanto sistema legal e vigente, e não apenas do “sacer­

72


Jesus: Sumo Sacerdote de uma Ordem Superior dote” enquanto pessoa. Neil R. Lightfoot observa que o autor refere-se a toda ordem mosaica concebida como sacrificial em sua essência. A Lei e o sacerdócio eram entidades inseparáveis dentro do sistema mo­ saico, sendo que a própria Lei fora dada com base no sacerdócio. Nesse aspecto, observa Lightfoot, “a lei dependia do sistema sacrificial e não podia funcionar sem ele. O sacerdócio era para a Lei o que o alicerce era para o edifício”.15 Noutras palavras, caindo um, o outro vai junto.

“Porque aquele de quem essas coisas se dizem pertence a outra tribo, da qual ninguém serviu ao altar” (v. 13). Tendo provado que todo o sistema mosaico, com o sacrifício e a Lei, tomara-se obsoleto, o autor chama a atenção para quem o Espírito profético do Salmo 110.4 está mostrando — “de quem essas coisas se dizem" — uma referência ao Messias.

“Visto ser manifesto que nosso Senhor procedeu de Judá, e concernente a essa tribo nunca Moisés falou de sacerdócio” (v. 14). De acordo com o Pentateuco, a quem o autor denomina aqui de “Moisés", somente da tribo de Levi é que sacerdotes poderiam ser levantados. Jesus Cristo, entretanto, era da tribo de Judá, que, de acordo com o antigo sistema sacerdotal, jam ais poderia possuir sacerdotes. Mas o autor já havia mostrado que justamente aqui se encontra a profecia — Jesus era sa­ cerdote de uma ordem superior e que substituíra a antiga — a ordem de Melquisedeque. Como poderia, pois, os seus leitores estarem voltando para um sistema que havia sido substituído por outro muito melhor?

“E muito mais manifesto é ainda se, à semelhança de Melquisedeque, se levantar outro sacerdote" (v. 15). O autor chegou onde queria: mostrar a necessidade de outro sacerdócio plenamente cumprido em Jesus. O sacerdócio de Cristo possui semelhança com o de Melquisedeque, ou seja, é superior ao levítico e é eterno. A palavra semelhança usada aqui aparece anteriormente na carta aos Hebreus no capítulo 4.15, onde está dito que Jesus foi feito semelhante a nós. Naquele contexto, significa que Jesus identificou-se com a raça humana e, por isso, pode representá-la diante de Deus.

“Que não foi feito segundo a lei do mandamento camal, mas segundo a virtude da vida incorruptível" (v. 16) A palavra grega sarkinos, tra­ duzida aqui como camal, tem o sentido, nesse contexto, de algo que está relacionado com aquilo que é humano. “A ordenação foi cam al no sentido de que tinha a ver apenas com a carne. Fazia com que o sacerdócio estivesse implicado com/e dependente da descendência cam al”.16 Ao contrário do sistema sacerdotal levítico, o sacerdócio de Jesus estava fundamentado no princípio de uma vida "incorruptível”, isto é, indestrutível. Essa indestrutibilidade está fundamentada nas palavras do salmista.

“Porque dele assim se testifica: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque" (v. 17). Para o autor, somente Jesus pode

cumprir essa profecia porque, como Messias e Filho de Deus, Ele as-

n


A Supremacia de Cristo sentou-se à direita do Pai. "Disse o S e n h o r ao meu Senhor: Assenta-te minha mão direita, até que ponha os teus inimigos por escabelo dos teus pés (SI 110.1).

à

“Porque o precedente mandamento é ab-rogado por causa da sua fraqueza e inutilidade" (v. 18). A antiga ordem sacerdotal e também as leis que o re­ giam foram substituídas por uma nova que havia chegado. A razão é que esse sistema tomara-se inadequado em razão de sua fraqueza e inutilidade. A ideia do autor é mostrar que o antigo sistema só tinha valor antes da manifestação de Cristo, para quem a antiga ordem apontava.

“(pois a lei nenhuma coisa aperfeiçoou), e desta sorte é introduzida uma melhor esperança, pela qual chegamos a Deus" (v. 19). A palavra grega eteleiosin, aoristo de teleioô, tem o sentido de conduzir ao alvo.

James Moffatt (1870-1944) observou que, em Josefo, esse termo ganha o sentido de substituição.'7A Lei tomou-se antiquada, e sua substituição tornou-se necessária porque jamais pôde chegar ao alvo tencionado por Deus. Em Cristo, esse alvo havia sido alcançado, e essa é a razão de nossa esperança.

“E, visto com o não é sem prestar juramento (porque certamente aque­ les, sem juramento, foram feitos sacerdotes" (v. 20). A superioridade do

sacerdócio de Cristo está também evidenciada pela palavra empenhada por Deus (juramento) de que Ele é para sempre. O sistema levítico não teve tal garantia.

"Mas este, com juramento, p or aquele que lhe disse: Jurou o Senhor e não se arrependerá: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedeque.)" (v. 21). O comentarista C. S. Keener observa que esse juramento de Deus estabelecendo uma nova ordem sacerdotal desfaz por inteiro qualquer pretensão de perpetuação do antigo sistema sacerdotal. Deus empenhara a sua palavra de que o mesmo seria substituído. "Este ponto constitui uma resposta parcial para qualquer possível apelação ou reivindicação ao Antigo Testamento de que as prescrições levíticas eram ordenanças eternas”.18 "De tanto melhor concerto Jesus foi feito fiador" (v. 22). O termo grego engyos, traduzido como fiador, só aparece aqui no Novo Testamento. O lexicógrafo Celas Spicq mostra que esse termo tem o sentido de uma "promessa colocada na mão de alguém ”. A ideia é a de segurança. Spicq destaca: "Uma pessoa é fiadora de outra, comprometendo-se com um credor dando-lhe uma garantia para a execução de uma obrigação no caso de inadimplência do devedor. Um fiador é, portanto, aquele que é responsável pela dívida de outra pessoa; sua responsabilidade tom a-se operacional quando o devedor declara-se insolvente com relação aos termos do contrato”.19 74


Jesus: Sumo Sacerdote de uma Ordem Superior A garantia do cristão é total, pois Jesus já pagou o preço.

“E, na verdade, aqueles foram feitos sacerdotes em grande número, porque, pela morte, foram impedidos de permanecer” (v. 23). O sacerdócio levítico possuía a necessidade de ser renovado constantemente, visto que seus oficiantes eram impedidos de continuar em razão da morte. Todavia, o sacerdócio de Cristo não estava sujeito a essa limitação.

"Mas este, porque permanece eternamente, tem um sacerdócio perpétuo"

(v. 24). O infinitivo presente menein, traduzido como permanecer, continuar, tem ação contínua e interminável.20 O seu sacerdócio é para sempre ou perpétuo, assim como vaticinou o oráculo divino no Salmo 110.

“Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (v. 25). A expressão grega eis to pantelés, traduzida aqui como “perfeitamente” em virtude

do contexto, mantém o sentido temporal que lhe dá a versão america­ na R SV e significa "em todas as épocas”. Ao contrário do sacerdócio levítico, o ministério de Cristo não é prejudicado pelo tempo. Em qual­ quer época, Ele continua sendo sacerdote. Ele salva aqueles, conforme observou Adam Clarke, que, mediante a graça de Deus, através de seu sacrifício e propiciação, achegam-se a Ele implorando misericórdia.21 Cristo é o intercessor de todos os salvos.

“Porque nos convinha tal sumo sacerdote, santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores e feito mais sublime do que os céus" (v. 26). Cinco coisas são afirmadas aqui sobre Jesus: (1). Ele é santo. Aqui, no texto grego, temos a palavra hosios em vez de hagios (separado). O termo grego hosios ocorre oito vezes no NT e tem o sentido de “santo, piedoso, misericordioso". Aqui, a ideia é a mesma encontrada na palavra hebraica

chasid, "misericordioso”; (2) Ele é inocente. Aqui, a ideia é de alguém que não tem maldade. A sua santidade não é apenas externa, mas também interna. Ele é santo por dentro e por fora;22 (3). Ele é imaculado. A ideia aqui é extraída dos princípios exigidos na consagração dos sacerdotes. O sacerdote na antiga aliança não poderia ter defeito corporal algum. O autor mostra que Jesus possui um caráter imaculado. O seu sentido vai muito além da pureza ritual, mostrando a natureza ética do sacer­ dócio de Jesus; (4) separado dos pecadores. Ao fazer essa declaração, o autor usa o tempo perfeito, que mantém a ideia de algo que começou no passado, mas cujos efeitos continuam no presente. Nesse aspecto, Jesus foi separado dos pecadores, isto é, pertence a uma classe distinta deles e continua dessa forma. Ele não pode ser alcançado pelo pecado. Não há pecado nEle; (5) mais sublime do que os céus. Ele está acima de tudo, até mesmo das mais altas hostes angelicais.

“Que não necessitasse, com o os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios, primeiramente, p o r seus próprios pecados e, depois, pe­ los do povo; porque isso fez ele, uma vez, oferecendo-se a si mesmo" (v. 27). A Almeida Revista e Corrigida (ARC) enfraqueceu o sentido da

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A Supremacia de Cristo palavra grega ephapaks ao traduzi-la simplesmente como "uma vez”. O seu sentido está melhor demonstrado na versão Almeida Revista e Atualizada (ARA) como “uma vez por todas". O sacrifício de Cristo foi perfeito e completo. Não há, pois, necessidade, em tempo algum, de sua repetição.

“Porque a lei constitui sumos sacerdotes a homens fracos, mas a palavra do juramento, que veio depois da lei, constitui ao Filho, perfeito para sempre" (v. 28). A “perfeição” aludida pelo autor tem um sentido de "obra cumprida integralmente”, isto é, “completada”. Esse fim jamais poderia ser alcançado pelo sacerdócio levítico, devido a seu caráter transitório e imperfeito.

N otas 1 HEGNER, Donald. Hebreus — comentário bíblico contemporâneo. Edi­ tora Vida, São Paulo. 2 SCOLNICK, Fred & BERENBAU, Michael. Enciclopaedia Judaica, second edtion, volume 14. P p .ll. Macmillan Reference. Nova York, EUA, 2007. 3 O profícuo escritor e teólogo Pedro Cardoso Lindoso, em seu livro Melquisedeque, o Sacerdote Cristofânico, desenvolveu uma tese muito interessante, porém diametralmente oposta daquela defendida aqui, sobre o sacerdócio de Melquisedeque. Nisso está a beleza da vida cristã: em pensarmos diferentes sem, contudo, tornarmo-nos adversários. 4 "E que reside a semelhança? Naquilo que não conhecemos nem o princípio nem o fim de nenhum dos dois; de Melquisedeque, porque não foi registrado, e de Cristo, porque não tem [nem princípio nem fim]. Essa é a semelhança! Se a semelhança fosse estabelecida em ab­ solutamente tudo, não haveria figura nem realidade, senão que ambas seriam figuras" (CRISÓSTOMO, João. Sobre La Carta a Los Hebreos, 12, l-2)\ "Portanto temos aprendido que aquele famoso Melquisedeque é sacerdote de Deus na figura de Cristo; pelo que aquele era a figura, este é a realidade (a figura é a sombra da realidade); aquele era em nome de uma só cidade, este é rei na reconciliação de todo o mundo, como está escrito: "Porque em Cristo, Deus estava reconciliando consigo o mundo” (AMBRÓSIO. Sobre La Fé, 3,11, 88-89)-, "Também comentou a expressão ‘sem genealogia’. Afirmou que Melquisedeque não pertencia à sua árvore genealógica, pelo qual é evidente que não estava privado de uma árvore genealógica, senão que se trata de uma figura” (DE CIRO, Teodoreto. Interpretacion Sobre La Carta a Los Hebreos, 7); "En­ quanto a Escritura que diz: ‘Tu és sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedeque’, nosso mistério está revelado na palavra ‘ordem’” (JERÔNIMO, Libro de Cuestiones Hebreas Sobre el Gênesis, 14,18-19). 5 ROBERTSON, A. T. Comentário Al Texto Griego Del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 6 TAYLOR, Richard. Comentário Bíblico Beacon. CPAD. Ao longo da história, não tem faltado interpretações fantasiosas sobre a pessoa de 76


Jesus: Sumo Sacerdote de uma Ordem Superior Melquisedeque. De acordo com a Enciclopaedia Judaica, Melquisedeque é identificado nos textos de Qumran como sendo um "anjo de luz” e também “o arcanjo Miguel”. Na tradição rabínica, é identificado como sendo Sem, filho de Noé. Por outro lado, o livro apócrifo de Enoque faz Melquisedeque tomar-se filho de Nir, irmão de Noé (Enciclopaedia Judaica, second edition, volume 14. Macmillan Reference. Nova York, EUA, 2007). 7 DARBY, John N. La Espistola a los Hebreus. Verdades Bíblicas. Addison, IL, EUA. 8 Donald Carson observa que há quem pense que Jesus de Nazaré, o Filho eterno, apareceu em forma corpórea em Gênesis 14.18-20 — uma encar­ nação antes da Encarnação. Carson acertadamente argumenta que dois textos bíblicos depõem contra essa interpretação. O primeiro é o Salmo 110, usado pelo autor de Hebreus. O Salmo 110 diz: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”. Carson pergunta: "Por que não diz simplesmente que o "Senhor” é Melquisedeque? Por que não diz: "Tu és sacerdote para sempre. Tu és Melquisedeque”? Isso resolveria o problema. Mas ele é um sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque. Melquisedeque é um modelo”. O segundo texto é Hebreus 7.2b-3. Nesse texto, o autor de Hebreus repete o Salmo 110, mostrando a relação profética de Melquisedeque com Jesus, onde aquele é "feito semelhante ao filho de Deus” (Hb 7.3). “Se Melquisedeque fosse o Filho de Deus”, argumenta Carson, "a razão pela qual 'permanece sacerdote para sempre’ é que ele é o filho eterno de Deus. Mas o autor de Hebreus diz outra coisa. Ele afirma que Melquisedeque se parece com o Filho de Deus, é semelhante ao filho de Deus” (CARSON, Donald. Aí Escrituras Dão Testemunho de Mim - Jesus e o evangelho no Antigo Testamento, pp. 190-193. Editora Vida Nova, São Paulo). Outro fato relevante, não abordado por Carson, que mostra que Melquisedeque não é Jesus pré-encamado, está no texto de João 8.56: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se”. Se Melquisedeque fosse, de fato, uma manifestação cristofânica, o texto seria: “Abraão, vosso pai, exultou por ver-me quando eu era ainda Melquisedeque; viu-me e alegrou-se”. Mas não é isso o que o texto diz nem dá a entender. 9 ROBERTSON, A. T. Comentário Al Texto Griego Del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 10HEGNER, Donald. Hebreus — Novo Comentário Bíblico Contemporâneo. Editora Vida, São Paulo. 11 LAUBACH, Fritz. Hebreus — Comentário Esperança. Editora Esperança. 12KITESMARKER, Simon. Hebreos — Comentário Al Nuevo Testamento. Libros Desafio, 1991. 13HEGNER, Donald. Hebreos — comentário bíblico contemporâneo. Edi­ tora Vida. 14O autor de Hebreus não tem a intenção de tratar aqui do dízimo como uma prática válida ou não para os seus dias. A sua intenção é moslrar que a ordem sacerdotal levítica passara e que agora outra tomou o

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A Supremacia de Cristo seu lugar — a ordem de Melquisedeque, representada aqui por Jesus Cristo, o Sacerdote-Rei. Todavia, em relação à pratica do dízimo na Nova Aliança, em contraste com a Antiga Aliança, escrevi em meu livro A Prosperidade à Luz da Bíblia: "Mudou apenas a forma do culto, mas não a sua função! O culto levítico com seus milhares de rituais já não existe, todavia, o princípio do sacerdócio continua ainda hoje (1 Pe 2.9; Ap 1.6). Passou o sacerdócio de Arão, ficou o sacerdócio do cristão (Hb 4.14-16; 10.11,12; 1 Pe 2.5,9; Ap 1.6). A justificativa que alega que o cristão não está mais debaixo do preceito legal do dízimo mosaico é falha por não levar em conta que o cristão permanece ligado ao princípio moral do dízimo abraâmico! Abraão, o pai dos que crêem, devolveu o seu dízimo de forma espontânea e voluntária antes do preceito legal (Gn 14.20), o que deve servir de modelo para todos os crentes. A Bíblia mostra claramente que a ordem sacerdotal a quem Abraão pagou seu dízimo é eterna, ao contrário da ordem do sacerdócio levítico, que era transitória! (Hb 5.10; 7.1-10; Sl 110.4). Portanto, aqueles que não reconhecem mais o preceito da obrigatoriedade concernente ao dízimo, como ensinou Moisés, deveriam submeter-se ao princípio da voluntariedade, como exemplificou Abraão (GONÇALVES, José. A Prosperidade à Luz da Bíblia. CPAD). 15LIGHTFOOT, Neil R. Hebreos — Comentário Vida Cristã. Editora Cultura Cristã. I6RIENECKER, Fritz. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Editora Vida Nova. l7MOFFATT, James. A Criticai and Exegetical Commetary on the Epistle to the Hebrews. T & T Clark, 1963. 18KEENER, C. S. Comentário dei Contexto Cultural de La Biblia. Editora Mundo Hispano, Texas, EUA. 19SPICQ, Ceslas. Theological Lexicon o f the New Testament, vol 1, pp 390391. Hendrickson Publishers. Peabody, Massachusetts, EUA, 2012. 2uROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. 21 CLARKE, Adam. Hebreos - Comentário de la Santa Biblia. Nuevo Testa­ mento, vol. III. Casa Nazarena de Publicaciones, Lenexa, Texas, EUA. 22 Idem.

7H


Capítulo 8

Uma Aliança Superior Comentário de Hebreus 8.1 -13

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*B í M

M i i o capítulo sete, o autor detalhou a relação entre a ordem sacérdot§| ■pLlde Melquisedeque e o sacerdócio de Jesus, sempre contrastando f M com o sacerdócio levítico. Ele tem consciência de que o assunto parecia envolto em abstrações, razão essa que, neste capítulo, elé começará a mostrar as implicações práticas do sacerdócio de Jesus.

“Ora, a suma do que temos dito é que temos um sumo sacerdote tal, que está assentado nos céus à destra do trono da Majestade” (v. 1). Em

primeiro lugar, destaca o autor, nosso Sumo Sacerdote está assentado à destra do "trono da Majestade". Na cultura judaica, essa era outra íorm a de dizer que o sacerdócio de Jesus possuía realeza. Essa é a mesma linguagem usada no Salmo 110, que é uma poesia profética sobre o sacerdócio do Messias. A expressão “assentado nos céus” é outra forma de dizer que Cristo terminou, de fato, a obra da redenção e que estava de vez qualificado para ser Sumo Sacerdote.

“M inistro do santuário e do verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e não o hom em " (v. 2). F. F. Bruce observa que, daqui para frente, o autor passa a discorrer sobre os temas da aliança, santuário e sacrifício, que estavam intimamente ligados ao sacerdócio arônico. Dessa forma, o sacerdócio arônico dá lugar àquele que é segundo a ordem de Melquisedeque; o antigo pacto dá lugar ao novo, e o santuário terrestre é substituído pelo celeste.1 Esse novo santuário, que é parte do verdadeiro tabernáculo, é obra de Deus, e não do homem. Embora esse novo santuário não seja revestido de materialidade, como era o santuário terrestre, ele é muito mais real e glorioso. Richard Taylor destaca que "o tabernáculo celestial está em contraste com o terreno, como o espiritual está em contraste com o material, o ta­ bernáculo terreno era rico em seu apelo material, mas pobre em sua habilidade de mudar ou satisfazer a alma em seu relacionamento pessoal com Deus. O tabernáculo celestial, em contraste, é privado de esplendor terreno e materialidade, mas completo em sua substância espiritual”.2 É nesse tabernáculo celeste que os cristãos podem agora ser apre­ sentados diante de Deus pelo Sumo Sacerdote, Jesus. Ele, portanto, é o ministro desse verdadeiro santuário celestial. A palavra grega


A Supremacia de Cristo leitourgos, traduzida aqui como ministro, ocorre cinco vezes no texto grego.3 Na Septuaginta, versão que o autor recorre com frequência, era usada para referir-se ao serviço sacerdotal. No Novo Testamento, a sua forma verbal foi usada no contexto da adoração cristã: “Enquanto eles ministravam (leitourgeo ) perante o Senhor e jejuavam, disse o Espírito Santo: Separai-me a Bam abé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado" (At 13.2). Esse fato revela que Jesus, ao contrário do sistema sacerdotal levítico, que se tomara obsoleto, continua seu serviço em favor dos filhos de Deus.

"Porque todo sumo sacerdote é constituído para oferecer dons e sa­ crifícios; pelo que era necessário que este também tivesse alguma coisa que oferecer” (v. 3). O autor já havia discorrido sobre dons e sacrifícios

em Hebreus 5.1. Aqui, ele aponta em que sentido a sua argumentação avançara daqui para frente. O sacerdote levita oferecia as ofertas de cereais no santuário, as quais eram usadas como uma forma de agra­ decimento e consagração a Deus. Por outro lado, os sacrifícios são uma referência às ofertas de sangue, que fazia expiação pelo pecado. No capítulo 7.27, o autor já havia falado que a oferta oferecida por Jesus fora sua própria vida.

“Ora, se ele estivesse na terra, nem tampouco sacerdote seria, havendo ainda sacerdotes que oferecem dons segundo a lei" (v. 4). A construção verbal usada aqui (imperfeito do indicativo ativo ) demonstra que o sis­ tema sacerdotal levítico ainda estava em vigor quando o autor redigiu sua carta.4 Por outro lado, esse versículo mostra a incompatibilidade existente entre as duas ordens sacerdotais — Levi e Melquisedeque. Ambas não podiam coexistir uma ao lado da outra. Embora se tenha tom ado obsoleta — pois uma nova ordem sacerdotal havia sido esta­ belecida — , o sistema sacerdotal levítico ainda continuava em vigor nos dias em que o autor redigia sua carta. A lógica é simples: se Jesus não podia oficiar como sacerdote aqui na terra, visto não ser Ele da tribo de Levi, e havia ainda os que exerciam esse ministério, o seu oficio só poderia ser exercido no tabernáculo celestial. Logo, isso tornava totalmente antiquado todo o sistema sacerdotal levítico.

“Os quais servem de exemplar e sombra das coisas celestiais, com o Moisés divinamente fo i avisado, estando já para acabar o tabernáculo; porque fo i dito: Olha, faze tudo conform e o modelo que, no monte, se te m ostrou” (v. 5). O autor usa os termos gregos hypodeigma e skia, traduzidas aqui como exemplo e sombra respectivamente. Mas os ter­ mos figura e sombra refletem melhor o original. Alguns intérpretes têm argumentado que o autor de Hebreus tomou emprestado do platonismo judaico alexandrino as figuras de um santuário celeste, onde o terrestre é apenas uma sombra. Nos seus diálogos, Platão descreve um mundo ideal do qual o mundo físico seria apenas um a cópia imperfeita, o que ele denominava de sim ulacro. Todavia, é possível percebermos

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Uma Aliança Superior claramente na argumentação do autor de Hebreus que há um pano de fundo cultural hebraico, e não grego. Isso é perfeitamente visto quando vemos Deus dizer a Moisés para fazer o Tabernáculo de acordo com o modelo (gr. typos) que o profeta vira no monte (Êx 25.40). Moisés, e não Platão, serviu de inspiração para o autor dessa carta. Donald Guthrie observa acertadamente que cada detalhe exposto na sombra, que era um tipo, tinha o propósito de aproximar-se da realidade, isto é, do antítipo. Nesse aspecto, o autor tencionava mostrar por contraste a maior excelência com que o santuário celeste revestia-se.5

“Mas agora alcançou ele ministério tanto mais excelente, quanto é mediador de um m elhor concerto, que está confirm ado em melhores promessas" (v. 6). O autor continua fazendo o contraste entre o sa­ cerdócio levítico e o de Cristo. Não sendo apenas uma sombra, mas a própria realidade, o ministério de Cristo é mais excelente do que o levítico em tudo. A palavra “alcançou” traduz o termo grego tynkánô, que mantém o sentido de obter, receber e conseguir. Ao usar esse verbo no tempo perfeito, que é uma referência a uma ação passada com efeitos no presente, o autor tenciona mostrar que o ministério de Jesus continuava em pleno exercício quando ele redigia seu texto. Mais uma vez aqui, como fizera em 8.2, o autor usa a palavra leitourgia (liturgia) em referência ao serviço, ministério e serviço sagrado.6 Nesse ministério sagrado, Cristo é o mediador de uma melhor aliança. Ele é a ponte entre o homem e Deus, tomando desnecessária a existência de intermediários. A superioridade das promessas da Nova Aliança em relação à antiga não são em relação à garantia de cumprimento, mas, sim, ao conteúdo. Deus sempre cumpriu suas promessas, tanto na Antiga Aliança como na nova. Todavia, na cruz do Calvário, Ele proveu uma aliança substancialmente superior à antiga.

“Porque, se aquele primeiro fora irrepreensível, nunca se teria buscado lugar para o segundo" (v. 7). O contexto do cristianismo primitivo mostra

o conflito entre judaizantes e cristãos. Os primeiros, como demonstra o livro de Atos dos Apóstolos no capítulo 15, insistiam em manter de pé as crenças e práticas do antigo judaísmo. Por outro lado, o segundo grupo, representado pelos apóstolos, via que algumas práticas existentes dentro dessas duas tradições eram mutuamente excludentes. O autor tem consciência do peso que essa tradição judaica possuía dentro da comunidade judaico-cristã para a qual ele endereçaria sua carta. Ele não procura desvalorizar a Antiga Aliança, pois sabe que a mesma teve sua finalidade; todavia, ela era imperfeita e incompleta, possuindo um papel transitório. Esse fato já havia sido revelado pelos profetas quan­ do Deus disse que substituiria o primeiro concerto por um segundo.

“Porque, repreendendo-os, lhes diz: Eis que virão dias, diz o Senhor, em que com a casa de Israel e com a casa de Judá estabelecerei um novo concerto” (v. 8). A promessa do estabelecimento de um novo concerto

•1


A Supremacia de Cristo fora feita pelo Senhor ao profeta Jeremias (Jrí31.31-34). A partir das Escrituras do Antigo Testamento, o autor detnonstra que esse novo pacto havia sido estabelecido com Cristo. A expressão grega syntelesô epi ton oikon Israel, traduzida aqui como "estabelecerei minha aliança com a casa de Israel”, demonstra a disposição de Deus em cumprir o seu plano salvífico em favor de seu povo.7

“Não segundo o concerto que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; com o não permaneceram naquele meu concerto, eu para eles não atentei, diz o Senhor” (v. 9). Orton Wiley põe em evidência a superioridade da Mova Aliança em relação à Antiga. 1.

A primeira Aliança era falha; a nova é perfeita. A primeira era temporária e feita com vistas a Outro que havia de vir; a segunda é a expressão final e duradoura da graça de Deus.

2.

A Antiga Aliança era e tratava com os homens coletivamente; a segunda trata com o indivíduo e fundamenta-se, afinal, na promessa feita a Abraão pessoalmente e à sua semente, como indivíduos.

3.

A aliança anterior relacionava-se às coisas materiais e ba­ seava-se em promessas seculares. Devia haver uma herança material, a terra de Canaã. O Senhor entregaria os inimigos do seu povo na mão deste e alargaria as suas fronteiras. A nova aliança é espiritual, pois as coisas materiais não podem satisfazer a alma do homem.

4.

A aliança mosaica estabeleceu um padrão ou regra de vida, mas não podia dar o poder nem a disposição para obedecer aos mandamentos que Deus impunha ao Seu povo. Pela nova aliança, a Lei de Deus é escrita interiormente no coração do homem; assim, não apenas ilumina a mente com a possibili­ dade de conhecer ao Senhor, mas proporciona a disposição para a obediência interior.

5.

A antiga aliança não podia, com suas ofertas contínuas, remover o pecado. Os sacerdotes ofereciam o que nada lhes custara. A nova aliança foi estabelecida por Cristo, que se

manifestou uma vez p o r todas, para aniquilar, pelo sacrifício de si mesmo, o pecado (Hb 9.26 - ARA). 6.

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A antiga aliança se limitava aos filhos de Abraão segundo a carne; a nova é universal em seu escopo, pois os que são de são descendência de Abraão e herdeiros conforme a promessa (Gl 3.29). Visto que a fé real era a única condição da aceitação de Abraão, é, portanto, a única condição exigida dos filhos


Uma Aliança Superior espirituais desse patriarca. A aliança m osaica, com suas obras, é posta de lado para sempre como condição básica de aceitação da parte de Deus: Essa é a razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça (Rm 4.16a - ARA).8

“Porque este é o concerto que, depois daqueles dias, farei com a casa de Israel, diz o Senhor: porei as minhas leis no seu entendimento e em seu coração as escreverei; e eu lhes serei por Deus, e eles me serão por povo” (v. 10). A promessa de uma aliança superior, onde a Lei de Deus seria gravada por dentro, e não por fora, encontra eco em outras partes do Antigo Testamento: “E vos darei um coração novo a porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei o coração de pedra da vossa carne e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o meu espírito e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juizes, e os observeis” (Ez 36.26,27). Fritz Laubach observa que "a inacreditável novidade desta aliança reside em que a obe­ diência à Palavra de Deus será concretizada integralmente, porque todos os membros do povo de Deus sem exceção possuirão o entendimento correto de Deus. A antiga lei de Moisés estava escrita em tábuas (Êx 31.18; 34.27,28) ou num livro (Êx 24.7). Ela se contrapunha ao povo como um poder que demandava. Agora, porém, todos os membros desse povo de Deus trazem essa lei no coração, estão interiormente unificados com ela, de maneira que coincidem num só ato o conhecimento da lei e o seu cumprimento”.9

“E não ensinará cada um a seu próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece o Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao m aior” (v. 11). A Antiga Aliança, rica em símbolos, porém pobre em produzir relacionamento com Deus, é substituída pela Nova Aliança. Na Nova Aliança, todos têm a oportunidade de conhecer o Senhor. Esse fato tom a-se possível porque o Espírito Santo, que, na Antiga Aliança, se manifestava sobre pessoas especiais — profetas, sacerdotes e reis — viria sobre toda carne. "E nos últimos dias acon­ tecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos” (At 2.17). O apóstolo Paulo escreveu uma longa exposição à igreja de Corinto, mostrando como se davam essas manifestações espirituais no contexto da igreja (1 Co 12-14). Se, na Antiga Aliança, somente o profeta falava em nome de Deus, na Nova Aliança, embora existindo ainda o ministério profético (Ef 4.11), o dom da profecia estava disponível a todos os crentes (1 Co

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A Supremacia de Cristo 14.31). O apóstolo João afirma essa mesma verdade quando diz: "E a unção que vós recebestes dele fica em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina todas as coisas, e é verdadeira, e não é mentira, como ela vos ensinou, assim nele permanecereis” (1 Jo 2.27).

“Porque serei misericordioso para com as suas iniquidades e de seus peca­ dos e de suas prevaricações não me lembrarei mais" (v. 12). A Antiga Aliança sobrevivia de sombras. Dessa forma, o problema do pecado jamais fora tratado de uma forma completa. Na Nova Aliança, por estar fundamentado em um superior sacrifício, o de Cristo, o problema do pecado é totalmente tratado. Esse versículo mostra a grandeza da graça e a misericórdia divina em tratar com o problema do pecador, mesmo esse não sendo merecedor de coisa alguma nem tampouco capaz de alguma coisa por si mesmo. Paulo afirma essa mesma verdade: “E, quando vós estáveis mortos nos pecados e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, per­ doando-vos todas as ofensas, havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz” (Cl 2.13,14).

“Dizendo novo concerto, envelheceu o primeiro. Ora, o que foi tomado velho e se envelhece perto está de acabar" (v. 13). O sistema de sacrifí­ cios ainda continuava em vigor quando o autor de Hebreus escreveu essas palavras. Todavia, como um autor inspirado, ele sabia que, espi­ ritualmente, tudo aquilo já havia sido destituído de valor. Uma Nova Aliança, que era a própria realidade e cumprimento das promessas e da qual a Antiga Aliança era apenas um tipo, havia sido estabelecida uma vez por todas.

N otas ' BRUCE, F. F. La Epistola a Los Hebreos. Libros Desafio. Grand Rapids, Michigan, USA. 2 TAYLOR, Richard. Hebreus — comentário bíblico Beacon, vol. 10 - He­ breus a Apocalipse. CPAD. 3 HUGO, M. Petter. Concordancia Greco-Espanola Del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 4 Esse fato é usado por alguns autores (veja MACARTHUR, John — He­ breus — Cristo: sacrifício perfeito, perfeito sacerdote, Cultura Cristã) para demonstrar que Hebreus foi redigida antes de 70 d.C, ano em que o Templo de Jerusalém foi destruído. 5 GUTHRIE, Donald. Hebreus — introdução e comentário. Vida Nova, São Paulo. 6 CLEON, Rogers. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Editorial CLIE. 7 “No Antigo Testamento, a expressão hebraica para fazer uma aliança era karat berit, que significava "cortar ou dividir uma aliança” (veja Gn

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Uma Aliança Superior 15.10; Jr 34.18,19). Isso se referia ao corte de animais sacrificiais. As duas partes do berit andavam por entre aqueles pedaços ensanguenta­ dos de carne. Contudo, no relato de Gênesis 15, Deus colocou Abraão para dormir e andou [entre os pedaços dos animais] sozinho, querendo dizer com isso que aquele berit em particular era incondicional. Essa cerimônia também era conhecida como aliança de sangue. No Novo Testamento, esse conceito do Antigo Testamento é apresentado pela palavra grega diatheke. Um diatheke é um tratado entre duas partes, mas que obriga somente uma dêlas a cumprir os termos fixados pela outra. Essa palavra importante aparece nada menos que 22 vezes no livro de Hebreus. Ela também é traduzida pelos termos aliança e testamento (veja também Lc 22.20; 1 Co 11.25; 2 Co 3,6 - WILLMINGTON, Harold L. Guia de Willmington para a Bíblia - um ensino bíblico completo). WILEY, Orton. Hebreus - a excelência da Nova Aliança em Cristo. Central Gospel. LAUBACH, Fritz. Hebreus - Comentário Esperança. Editora Esperança.


Contrastes na Adoração da Antiga e Nova Aliança

N

Comentário de Hebreus 9.1-28

'

este capítulo, o autor continua sua argumentação acerca da su­ perioridade de Jesus sobre o antigo sistema levítico, pondo aqüi em destaque o santuário terrestre em contraste com o celestial. Nesta seção, que tem início aqui e estende-se até Hebreus 10.28, o autor contrastará a adoração levítica com a adoração cristã.

"Ora, também o prim eiro tinha ordenanças de culto divino e um santuário terrestre" (v. 1). Visto o autor já ter discorrido sobre o antigo

pacto na seção anterior, o termo “aliança” ou "pacto” está subentendido nesse versículo, embora não conste no texto grego. O seu argumento põe em relevo a superioridade de Cristo, ministro da Nova Aliança, com o antigo sistema levítico, pertencente à Antiga Aliança. Tanto na Antiga como na Nova, o alvo do culto é a adoração. Isso é percebido na expressão dikaiomata latreias (culto divino), onde o termo latreo é frequentemente usado nas Escrituras com referência à adoração. A intenção do autor é chamar a atenção para a natureza dessas duas alianças — uma com seu sistema de adoração terrena, e a outra com uma adoração espiritual. A palavra grega kosmikon, traduzida como “deste mundo" ou “terrestre”, não tem conotação moral aqui, mantendo o sentido daquilo que pertence a esta esfera física.1 O antigo Taber­ náculo, mesmo com toda a sua estrutura, pertencia a essa dimensão.

"Porque um tabernáculo estava preparado, o primeiro, em que ha­ via o candeeiro, e a mesa, e os pães da proposição; ao que se chama o Santuário" (v. 2). A Antiga Aliança possuía seu santuário terrestre e

seu ritual litúrgico com os elementos formadores do culto e da adora­ ção. Aqui, o autor usa o termo grego skené {tenda) para referir-se aos dois compartimentos do Tabernáculo — o santo lugar e o Santo dos Santos. O expositor Neil R. Lightfoot observa que "desde que os dois compartimentos eram separados por um a cortina, o autor fala deles como de duas tendas distintas”.2 Na descrição do autor, no primeiro compartimento, estava o candeeiro, também conhecido como menorah, e a mesa, onde ficavam os pães da proposição (Êx 25-26). O candeeiro era feito de ouro, possuía sete braços e era posto junto à parede do lado sul. O candeeiro era a única fonte de iluminação do santuário e devia permanecer sempre com suas lâmpadas acesas, o que é visto como um símbolo da iluminação do Espírito Santo. Do lado oposto, ficava a mesa com os 12 pães da proposição, que era uma alusão às 12


Contrastes na Adoração da Antiga e Nova Aliança tribos de Israel e representava a divina provisão de Deus. Esses pães eram trocados aos sábados, sendo os antigos comidos pelos sacerdotes, e, em seu lugar, recebiam a reposição dos novos pães. Esses pães são tidos pelos estudiosos como um tipo de Cristo e a provisão que Ele trouxe para seu povo.

“Mas, depois do segundo véu, estava o tabernáculo que se chama o Santo dos Santos” (v. 3). O autor prossegue com sua descrição do

Tabernáculo. Vimos que ele usa a palavra “tabernáculo" para refe­ rir-se tanto ao "santo lugar”, como sendo o primeiro Tabernáculo, e ao "Santo dos Santos", como sendo o segundo Tabernáculo. Na sua descrição, o "Santo dos Santos”, ou o segundo Tabernáculo, estava depois do segundo véu. O Santo dos Santos era o local mais sagrado do Tabernáculo. Aqui, ele fala do "segundo véu” porque havia um "primeiro véu" na entrada do Tabernáculo. É esse segundo véu, um símbolo da separação entre o homem e Deus, que se rasgou quando Jesus morreu na cruz do Calvário.

"Que tinha o incensário de ouro e a arca do concerto, coberta de ouro toda em redor, em que estava um vaso de ouro, que continha o maná, e a vara de Arão, que tinha florescido, e as tábuas do concerto" (v. 4). Na descrição dos utensílios que faziam parte do segundo Tabernáculo (ou Santo dos Santos), o autor põe o incensário de ouro e a arca do concerto. Uma das coisas de fácil percepção para um leitor atento é que o autor parece não seguir a descrição veterotestamentária quando descreve os utensílios que faziam parte do Santo dos Santos. Por exemplo, ele põe o altar do incenso como sendo um dos utensílios do Santo dos Santos. A meu ver, um a das melhores explicações desse texto foi dada pelo erudito Neil R. Lightfoot. Primeiramente, a confusão existe por causa de uma má interpre­ tação da palavra grega thymiaterion, que passou a ser traduzida como "incensário”, em vez de “altar do incenso".3 Desde que a vulgata latina e a peshitta, antiga tradução siríaca, traduziram thymiaterion como sendo uma referência ao incensário, muitas outras traduções fizeram o mesmo. Alguns intérpretes tentam justificar essa aparente discre­ pância argumentando que o autor referia-se ao incensário usado por Arão no dia da Expiação (Lv 16.12-13). Todavia, esse incensário não fazia parte dos utensílios do Santo dos Santos e nem era guardado lá, visto que o sumo sacerdote precisava usá-lo para levar brasas do altar para o Santo dos Santos. Em segundo lugar, o equívoco ocorre por causa da localização im­ precisa desse altar dentro do Tabernáculo. Como vimos, na descrição do autor, o altar do incenso parece ser posto como sendo utensílio do Santo dos Santos. Entretanto, segundo o relato de Êxodo 30.6, o altar do incenso estava posto “diante do véu que está diante da arca do Testem unho”. Dessa forma, a descrição do Êxodo põe o altar do

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A Supremacia de Cristo incenso no "santo lugar” em vez de no “Santo dos Santos", como faz o autor de Hebreus. É improvável e até mesmo impossível o autor não ter consciência desse fato, pois ele sabia que, se o altar do incenso es­ tivesse dentro do Santo dos Santos, os sacerdotes comuns teriam que entrar repetidamente nesse recinto para oferecer sacrifícios, o que não era permitido (Lv 16.2). De acordo com o livro de Êxodo, o altar do incenso ficava estrategicamente diante do véu para que sua fumaça penetrasse no Santo dos Santos. A aparente discrepância desaparece quando somos informados pelo relato bíblico de que o sumo sacerdote, no dia da Expiação, fazia uma expiação anual sobre o altar do incenso (Êx 30.10). Esse fato fazia que o altar do incenso e o Santo dos Santos ficassem ligados por esse importante rito. Isso justifica a explicação do autor, que, ao referir-se ao segundo Tabernáculo (ou Santo dos Santos), disse que ao mesmo "pertencia o altar de ouro para incenso", em vez de ter dito "no qual estava o altar de ouro do incenso e a arca do concerto". Noutras palavras, devido à sua proximidade com o Santo dos Santos, separado deste apenas por uma cortina, o altar do incenso, que não estava no interior do mesmo, passava a pertencer ao santuário mais interior pelo vínculo estabelecido pelo ritual da expiação anual. Os expositores A. B. Bruce, A. B. Davidson, Wescoot, dentre muitos outros, veem apoio léxico para essa explicação. A expressão "tinha", usada no versículo 4, traduz o termo grego echousa e é melhor traduzida como “pertencia”. Por outro lado, no versículo 2, a expressão "em que havia", que traduz os termos gregos era he, é melhor traduzida como "onde estavam". Em palavras mais simples, o autor afirma categoricamente no versículo 2 que determinados utensílios fazem parte do primeiro compartimento do Tabernáculo, isto é, o santo lugar. Por outro lado, quando se refere ao altar do incenso, o autor não afirma isso, mas, sim, que o mesmo passava a pertencer, devido à importância do ritual da expiação ao segundo Tabernáculo, isto é, o Santo dos Santos.4

“E sobre a arca, os querubins da glória, que faziam sombra no pro­ p iciatório; das quais coisas não falaremos agora particularmente" (v.

5). Esse versículo é uma continuação da exposição que o autor fez no versículo 4. Esse termo é frequentemente usado no contexto da Bíblia para fazer referência à expiação em prol do pecado. O propiciatório era a tampa da Arca da Aliança. A palavra "propiciatório” é a tradu­ ção da palavra grega hilasterion, que ocorre aqui e em Romanos 3.25. Essa palavra (que tam bém ocorre em Hebreus 2.17) é derivada do verbo grego hilaskomai, que, em Lucas 18.13, é usada pelo publicano para pedir “misericórdia” (hilaskomai) a Deus. Devido a esse fato, as antigas versões em inglês traduziram hilasterion como "assento da misericórdia". Sobre o propiciatório, eram colocados os querubins, seres que, na sua representatividade, apareciam de forma composta,

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Contrastes na Adoração da Antiga e Nova Aliança tendo a face humana, corpo e animal e asas de pássaro (Êx 25.18-20). Esses querubins eram uma representação da glória de Deus.

“Ora, estando essas coisas assim preparadas, a todo o tempo entra­ vam os sacerdotes no prim eiro tabernáculo, cumprindo os serviços” (v. 6). Tendo descrito os utensílios do Tabernáculo, o autor volta-se para os oficiantes do culto. M uitas vezes, pensa-se que esses sacerdotes estavam presos apenas a uma infinidade de práticas rituais. Todavia, para o autor, eles estavam prestando adoração a Deus no culto do qual participavam, mesmo que essa adoração fosse imperfeita, limitada e temporal. Isso é mostrado pelo uso do vocábulo grego latreia (adora­ ção), traduzida aqui como "serviços”.

“Mas, no segundo, só o sumo sacerdote, uma vez no ano, não sem sangue, que oferecia por si mesmo e pelas culpas do povo” (v. 7). Nesse contexto, a palavra “segundo” é uma referência ao segundo compartimento do Tabernáculo, denominado de “Santo dos Santos”. Nessa parte do santuário, os sacerdotes comuns não podiam entrar. Somente o sumo sacerdote, uma vez no ano, no Dia da Expiação, entrava no Santo dos Santos com o sangue de um animal inocente para oferecer sacrifícios por ele mesmo e pelo povo. O autor usa a palavra grega agnoema, que ocorre somente aqui no Novo Testamento para referir-se aos pecados cometidos por ignorância. São faltas cometidas devido à fragilidade humana, e não aos erros que são praticados intencionalmente.

“Dando nisso a entender o Espírito Santo que ainda o cam inho do Santuário não estava descoberto, enquanto se conservava em pé o p ri­ meiro tabernáculo” (v. 8). O expositor Donald Hegner entende que o autor referia-se às duas partes principais do Tabernáculo — o santo lugar e o Santo dos Santos, como vinha fazendo até aqui. Dessa forma, a expressão "santuário”, do grego tôn hagion, seria uma referência à parte mais interior, isto é, o Santo dos Santos, enquanto a expressão "primeiro tabernáculo” seria uma referência ao lugar mais externo, isto é, o santo lugar. Esse fato ficaria demonstrado quando o autor, no versículo 12, afirma que Cristo entrou no "santuário”, o que é uma referência clara ao "Santo dos Santos”.5 Hegner não está errado. De fato, esse é o argumento exposto pelo autor até aqui. Todavia, especi­ ficamente nesse versículo, o contexto favorece uma referência a todo o santuário da Antiga Aliança, como acertadamente expõe F. F. Bruce. O fato é que, enquanto o sistema sacerdotal levítico fosse mantido de pé, o acesso à presença de Deus, representada aqui pelo “Santo dos Santos”, não estaria ainda disponível.6

“Que é uma alegoria para o tempo presente, em que se oferecem dons e sacrifícios que, quanto à consciência, não podem aperfeiçoar aquele que faz o serviço” (v. 9). Para o autor, toda a estrutura do Tabernáculo,

bem como todo o sistema sacerdotal levítico, funcionavam como uma figura ou parábola de um a realidade muito maior — o sacrifício de

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A Supremacia de Cristo Cristo. Ambas eram uma sombra de uma realidade superior que agora havia chegado. O verbo grego prospherontai, que aqui está no presente do indicativo passivo, também ocorre no versículo 7. Esse verbo, que é traduzido como "trazer", “oferecer", "apresentar” e "sacrificar", tem o sentido de "aquele que presta culto", um adorador. Na antiga alian­ ça, a adoração era imperfeita e incompleta, visto que todo o sistema levítico também o era.

“Consistindo somente em manjares, e bebidas, e várias abluções e justificações da carne, impostas até ao tempo da correção” (v. 10). Esses elementos do antigo culto, juntam ente com sua simbologia, eram ineficazes porque não tratavam do interior do homem, mas somente do seu aspecto externo. É nesse aspecto que o autor refere-se aos mesmos como sendo uma "parábola”, isto é, uma figura que tratava com a "carne", mas que nada podiam fazer para resolver o problema espiritual das pessoas. Cleon Rogers observa que os dons e sacrifícios oferecidos no antigo culto só podiam purgar a carne, não a consciência.7

"Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, p or um maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação” (v. 11). A expressão grega tôn genomenôn agathon foi traduzida como

"bens já realizados" na Almeida Revista e Atualizada (ARA); é preferível "bens futuros”, da Almeida Revista e Corrigida (ARC). A intenção do autor é mostrar que Cristo é a realização daquilo que o sistema levítico simbolizava, ou era apenas uma sombra. Longe de ser apenas uma figura, o santuário celeste é mais perfeito (gr. meizon teleioteros) do que o terreno. "No típico pensamento do primeiro século, os céus eram puros, perfeitos e imutáveis; o tabernáculo celestial, então, seria o pro­ tótipo perfeito para o terreno e o único que finalmente era necessário.”8

“Nem p o r sangue de bodes e bezerros, mas p o r seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma etema redenção" (v.

12). Esse versículo mostra a radical diferença entre o sistema levítico de sacrifício e aquele realizado por Cristo. Os sacerdotes na Antiga Aliança ofereciam sacrifícios com sangue de animais; Cristo, porém, entrou no santuário com seu próprio sangue. Ele foi a oferta. Em vez de entrar repetidas vezes, como fazia os antigos oficiantes, Cristo entrou no Tabernáculo celeste uma vez para sempre.

“Porque, se o sangue dos touros e bodes e a cinza de uma novilha, esparzida sobre os imundos, os santificam, quanto à purificação da carne” (v. 13). O autor tem em mente os textos de Levítico 16.15-16 e Números 19.9 e 17.9 quando descreve os rituais envolvendo animais na Antiga Aliança. Esses rituais visavam qualificar as pessoas que se lomaram cerimonialmente impuras pelas práticas descritas nesses tex­ tos a terem um relacionamento entre elas e Deus. Era, todavia, apenas uma purificação externa. E m vez de "purificação da carne”, a Nova

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Contrastes na Adoração da Antiga e Nova Aliança Versão Internacional traduz como “se tom am exteriormente puros”. O altar e o livro aqui mencionados são símbolos do pacto divino que Deus estabeleceu com os homens. O expositor Julio Montalvo faz uma importante distinção entre o sacrifício de Cristo e aqueles realizados na Antiga Aliança. 1. O sangue de Cristo tem muito mais poder para limpar o pecado que o sangue de sacrifícios de animais. 2. O sangue de Cristo restaura a aliança entre Deus e os homens. 3. Por­ que Ele veio diante de Deus para interceder um a vez por nossos pecados (w . 23-28). Cristo veio à presença de Deus no santuário do céu para representar-nos. 4. O sacrifício de Cristo não é repetido como o levítico; Cristo ofereceu um único sacrifício, perfeito e espiritual, que previa o perdão completo e purificação. 5. A morte de Cristo não se repete, porque Cristo tomou a natureza humana para morrer, e é estabelecido que os homens devem morrer uma só vez. 6. A aparição de Cristo pela segunda vez neste mundo confirmará a salvação que Ele nos comprou com o seu sangue.9

“Quanto mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará a vossa consciência das obras mortas, para servirdes ao Deus vivo?" (v. 14). O ritual levítico tratava com o aspecto externo; o sacrifício de Cristo trata com o interior do homem. A expressão "Espírito eterno” é uma clara alusão ao Espírito Santo e sua relação com o ministério de Cristo (Is 42.1). O ministério de Cristo foi autenticado pelo Espírito Santo (At 10.38). Aqui, ele é associado à redenção (E f 4.30). O sangue de Cristo purifica o mais interior da alma, limpando a consciência daquilo que é pecaminoso.

“E, por isso, é Mediador de um novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam a promessa da herança eterna” (v. 15). O expositor F. F. Bruce observou que Cristo é, ao mesmo tempo, mediador e fiador dessa Nova Aliança.10 A eficácia do sacrifício de Cristo está no fato de que sua morte remiu não somente os crentes da Nova Aliança, mas também todos os que estavam debaixo da Antiga. A. T. Robertson comenta: “Aqui, há um a declaração definitiva de que o valor real dos sacrifícios típicos, debaixo do sistema do AT, estava na sim realização na morte de Cristo. É a morte de Cristo que dá valor aos tipos que apontavam para Ele. Assim, o sacrifício expiatório de Cristo é a base da salvação de todos que são salvos antes da cruz e desde então”.11

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A Supremacia de Cristo “Porque, onde há testamento, necessário é que intervenha a morte do testador" (v. 16). O Testamento era um documento selado, aberto e que entrava em vigor com a morte do testador. C. S. Keener destaca que os antigos pactos eram selados com sangue.12

“Porque um testamento tem força onde houve m orte; ou terá ele algum valor enquanto o testador vive?" (v. 17). A pergunta retórica do autor requer um "não” como resposta. Tanto na lei romana como nos preceitos estabelecidos na Antiga Aliança, estipulava-se que um testa­ mento entrava em vigor somente após a morte do testador. A ideia do autor é reforçar o argumento da necessidade da morte de Cristo para que a Nova Aliança tivesse valor legal. “Pelo que também o primeiro não foi consagrado sem sangue” (v. 18). Até mesmo a Antiga Aliança necessitou ser selada com sangue para ter valor. Esse versículo mostra que o sangue derramado de animais deu legalidade ao Antigo Testamento. Esse fato é corroborado no versículo 19.

“Porque, havendo Moisés anunciado a todo o povo todos os man­ damentos segundo a lei, tom ou o sangue dos bezerros e dos bodes, com água, lã purpúrea e hissopo, e aspergiu tanto o mesmo livro com o todo o p ovo” (v. 19). Esse versículo aponta para Êxodo 24.3-8, mesmo que

alguns elementos citados pelo autor não se encontrem na passagem do segundo livro de Moisés. É possível que, além do texto bíblico, o autor seguisse uma antiga tradição judaica a qual não conhecemos. O autor detalha que não somente o livro da aliança, mas também "todo o povo” foram aspergidos também. Donald Guthrie destaca que “o fato de que não só o próprio livro, como também todo o povo foram aspergidos demonstra que a aliança envolvia a cooperação dos parceiros humanos, que precisavam de um a purificação especial para serem tomados dignos de participar”.13

“Dizendo: Este é o sangue do testamento que Deus vos tem mandado" (v. 20). É possível que esse versículo faça um paralelo com o ritual da Ceia do Senhor, conforme descrita em 1 Coríntios 11.25 e também com as palavras do apóstolo Pedro (1 Pe 1.2). Tanto o antigo pacto como o novo foram ratificados com sangue.

“E semelhantemente aspergiu com sangue o tabernáculo e todos os vasos do ministério” (v. 21). O terceiro livro de Moisés, Levítico, mostra que o Tabernáculo foi ungido com óleo, porém omite qualquer refe­ rência ao sangue. Todavia, Flávio Josefo (37 d.C.-10 0 d.C.), em seu livro Antiguidades Judaicas, diz que o Tabernáculo foi aspergido tanto com sangue como com óleo. Josefo, inclusive, afirma que até mesmo ;is vestim entas dos sacerdotes, os utensílios sagrados e as demais coisas eram purificados com sangue. A intenção do autor é mostrar a

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Contrastes na Adoração da Antiga e Nova Aliança importância que o sangue possuía dentro do ritual da antiga aliança e como ele apontava para o sangue de Cristo.14

“E quase todas as coisas, segundo a lei, se purificam com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão” (v. 22). Esse é um versículo chave em Hebreus. Na Antiga Aliança, o sangue era necessário para fazer expiação (Lv 17.11), e o autor extrai dessa verdade a necessidade da expiação dos pecados pelo sangue de Cristo. Na Antiga Aliança, o autor fala de "coisas” que eram purificadas; todavia, na Nova Aliança, essa purificação não acontece com coisas, mas, sim, com pessoas. São as pessoas, que estão debaixo do jugo do pecado e da condenação, que necessitam do perdão de Deus. Cristo veio purificar o pecador por seu próprio sangue. A palavra "purificar”, do grego katharizetai, ocorre 31 vezes no Novo Testamento grego. No Novo Testamento, ela aparece com os sentidos de ritual, cerimonial, ético-moral e espiritual (Mt 8.2; Lc 11.39; At 10.15; 15.9). Nesse texto, o seu sentido é espiritual, mostrando a eficácia do sangue de Cristo na purificação e perdão dos pecados (2 Co 7.1; Tt 2.14; Hb 9.14; 1 Jo 1.7).

"De sorte que era bem necessário que as figuras das coisas que estão no céu assim se purificassem; mas as próprias coisas celestiais, com sacrifícios melhores do que estes" (v. 23). Em sua H om ilia Sobre el Levítico, Orígenes (185 d.C.-254 d.C.) observa que aquilo que é "des­

crito na Lei não é mais do que ‘cópia’ e ‘tipo’ de uma realidade viva e verdadeira”.15 É exatamente isso o que o autor está afirmando aqui. Todo o sistema sacrificial do antigo pacto não passava de uma sombra da qual Cristo é a realidade. Os sacrifícios de animais tinham valor cerimonial, transitório e externo; todavia, o sacrifício de Cristo possui valor eterno e espiritual. Ele era em tudo superior ao sistema levítico. O expositor Fritz Laubach entende que, aqui, as "coisas celestes” são usadas no sentido literal: "A queda pelo pecado humano, a rebelião do ser humano contra Deus, não somente teve efeito sobre a criatura na criação visível (Rm 8.20-22), mas também turbou a ordem do mundo celestial. O santuário celestial carece igualmente da força purificadora do sangue. Para isso, sacrifícios de animais da terra são insuficientes”.16 Todavia, é melhor entendermos esse texto não no mesmo sentido que Laubach, que afirma haver uma suposta imperfeição no céu, mas, sim, como uma metáfora das coisas espirituais. F. F. Bruce expôs desta forma: “O que necessitava de limpeza era a consciência contaminada de homens e mulheres. Essa é a purificação que corresponde à esfera espiritual. O argumento do v. 23 pode ser parafraseado

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A Supremacia de Cristo dizendo que, enquanto o ritual de purificação é adequado para a ordem material, que não é senão uma figura terrena da ordem espiritual, necessita-se de uma classe melhor de sacrifício para realizar uma purificação na ordem espiritual”.17 No contexto da Nova Aliança, são os homens e mulheres, agora templos do Espírito Santo, que necessitam de purificação.

"Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer, p or nós, pe­ rante a face de Deus" (v. 24). O santuário terrestre foi feito conforme o modelo que Moisés recebera no monte; todavia, ele fora confeccionado por mãos humanas. Cristo, ao contrário, entrou no santuário celeste, do qual o terrestre era apenas uma figura. Nesse santuário celeste, Ele oficia como Sumo Sacerdote em favor da Igreja (Rm 8.34).

“Nem também para a si mesmo se oferecer muitas vezes, com o o sum o sacerdote cada ano entra no Santuário com sangue alheio” (v.

25). O sistema sacerdotal da Antiga Aliança exigia que, ano após ano, o sumo sacerdote entrasse no santuário para apresentar o sacrifício da expiação. O sacerdócio de Cristo, visto ser de natureza eterna e definitiva, não apresenta essa imperfeição.

“Doutra maneira, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo; mas, agora, na consumação dos séculos, uma vez se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (v. 26). O problema do pecado, que entrou no mundo através de Adão, nunca havia sido tratado de forma definitiva até à vinda de Cristo. Desde a instituição do sistema sacerdotal levítico, os sacerdotes no santo lugar e o sumo sacerdote no Santo dos Santos necessitavam oferecer seus sacrifícios ano após ano. Tudo isso terminou quando Cristo entrou no santuário celeste.

"E, com o aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo, depois disso, o ju ízo" (v. 27). Há uma analogia entre a morte dos homens e a morte de Cristo; todavia, há uma diferença abissal entre ambas. A morte dos homens foi "ordenada”, ou seja, não tem como escapar e fugir dela! Entretanto, a morte de Cristo foi voluntária, uma entrega a favor dos homens. "Ninguém está isento desta experiência. A diferença entre a morte de Cristo e todas as demais é que a dEle foi voluntária, ao passo que para todos os demais é ordenada (apokeitai), isto é, armazenada para eles. A expectativa de que alguns escaparão à morte (cf. 1 Ts 4.15ss.) é uma exceção à regra geral declarada, ocasionada pelo evento especial da vinda de Cristo. Não está, portanto, em conflito com esta declaração em Hebreus”.18

‘M


Contrastes na Adoração da Antiga e Nova Aliança “Assim também Cristo, oferecendo-se uma vez, para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para a salvação” (v. 28). O autor ressalta o caráter voluntário do sacrifício de Cristo, colocando-o, porém, dentro da esfera escatológica. A figura é tirada da redação da Septuaginta, Isaías 53.12. Quando Cristo veio pela primeira vez, veio para fazer expiação pelo pecado. Mas, agora, o autor diz que Ele voltará uma segunda vez, não mais para tratar do problema do pecado, mas, sim, para aqueles que o esperam para a salvação. Donald Guthrie comentou oportunamente que "as palavras sem pecado (chòris hamartias — "não para tra­ tar dos pecados” — RSV) rapidamente colocam um aspecto diferente na analogia. O pecado não precisa de mais expia­ ção. Tudo quanto é necessário é a apropriação da salvação que a oferta que Cristo fez de si mesmo obteve por nós. O verbo traduzido “aguardam” (apekdechomenois) ocorre em 1 Coríntios 1.7, Filipenses 3.20 e Romanos 8.19,23,25 e em cada caso a respeito da grande expectativa dos crentes que aguardam as glórias do porvir”.19

N otas 1 GUTHRIE, Donald. Hebreus - introdução e comentário. Editora Vida Nova. 2 LIGHTFOOT, Neil R. Hebreus - comentário vida cristã. Editora Vida Cristã, São Paulo. 3 Tanto Josefo (História dos Hebreus, CPAD) como Filo de Alexandria (The Works o f Philo, traduzido por C. D. Yonge. Hendrickson Publishers, EUA) usam o termo grego thymiaterion com referência ao altar de incenso. Semelhantemente o faz o Talmude Babilónico (NEUSNER, Jacob. The Babylonian Talmud - a translation and commentary, 22 vol. Hendrickson Publisher, 2011. Peabody, Massachsetts, USA). 4 Veja uma exposição completa em Hebreus - comentário vida cristã. Editora Vida Cristã. 5 HEGNER, Donald. Hebreus - comentário bíblico contemporâneo. Editora Vida. 6 BRUCE, F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio. 7 ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Editora Vida Nova. 8 KEENER, C. S. Hebreos - comentário dei contexto cultural dei Nuevo Testamento. Editorial Mundo Hispano. 9 MONTALVO, Julio. Hebreos - Comentário Biblico Mundo Hispano: Santiago, 1 y 2 Piedro, Judas. Editorial Mundo Hispano. Texas, EUA. 10BRUCE, F. F. La Epistola a Los Hebreos. Libros Desafio. Grand Rapids, Michigan, EUA.

n


A Supremacia de Cristo 11 ROBERTSON, A. T. Comentário Al Texto Griego Del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 12KEENER, C. S. Hebreos - Comentário del Contexto Cultura del Nuevo Testamento. Mundo Hispano. 13GUTRHIE, Donald. Hebreus - introdução e comentário. Vida Nova, São Paulo. 14KEENER, C. S. op.cit. pp. 661. 15Orígenes. Homilia Sobre El Levtiico. Hebreos - La Biblia Comentada Por Los Padres de La Iglesia. Ciudad Nueva. Op.cit. I6LAUBACH, Fritz. Hebreus - comentário bíblico esperança. Editora Es­ perança. 17BRUCE, F. F. La Epistola a Los Hebreos. Libros Desafio. Grand Rapids, Michigan, EUA. I8GUTHRE, Donald. Hebreus - introdução e comentário. Editora Vida Nova. 19Idem. pp. 189.

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Capítulo 10

, Privilégios e Responsabilidades na Nova Aliança Comentário de Hebreus 10.1-39

' •. v<

le s te capítulo, o autor continua sua exposição para consolidar q ■IVI que iniciara nos capítulos anteriores acerca da superioridade do ■ sacerdócio de Cristo em relação ao levítico. Essa argumentação estende-se até 10.18. Neste capítulo, há muitos pontos que atuam como um a espécie de recapitulação do que fora dito anteriormente. Há, todavia, a presença de elementos novos quando o autor introduz no texto o Salmo 40 e faz uma nova aplicação da profecia de Jeremias 31.

I

"Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros e não a imagem exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os que a eles se chegam" (v. 1). O autor começa esse versículo com uma declaração que deve ter provocado espanto em seus leitores — a Lei é uma sombra da realidade, e não a própria realidade. A palavra grega skian mostra que a Lei é uma sombra ou projeção de um objeto que é a realidade. Em contraste com a sombra, o autor coloca a imagem, do grego eikôn, que é o próprio objeto que projeta a sombra que a Lei representa. A referência, aqui, é ao sacerdócio de Cristo como a realidade da qual a Lei era apenas uma sombra.

“Doutra maneira, teriam deixado de se oferecer, porque, purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam consciência de pecado" (v.

2). Se, de fato, o sistema levítico fosse eficaz, não haveria necessidade da repetição contínua de ofertas e sacrifícios. Ele, porém, demonstrava-se ineficaz porque não conseguia penetrar dentro do homem, permanecendo apenas uma limpeza ritual.

“Nesses sacrifícios, porém, cada ano, se faz comemoração dos pecados”

(v. 3). É exatamente isso o que o autor diz que acontecia anualmente no ritual da expiação. Os pecados eram relembrados ou trazidos à mente outra vez em um a espécie de rememoração. Aqui, o termo "comemoração” (ARC) não consegue expressar o sentido do original, anamnesis, que é o de "recordação” e “lembrança”, com o traduz a Almeida Revista e Atualizada.

“Porque é impossível que o sangue dos touros e dos bodes tire pecados"

(v. 4). F. F. Bruce, comentando in loco esse versículo, diz:

"A contaminação moral não pode ser removida por meios materiais. O valor espiritual que o ritual sacrificial podia ter tido residida no fato que era uma prefiguração material ou uma lição objetiva de uma realidade moral e espiritual”.1


A Supremacia de Cristo “Pelo que, entrando no mundo, diz: Sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me preparaste" (v. 5). Aqui, o autor cita o Salmo 40.68 e se­ gue a Septuaginta para referir-se à pré-existência de Cristo. Deus não estava satisfeito com o culto apenas formalista na Antiga Aliança e, por isso, mostra aqui a necessidade de um sacrifício superior em tudo. Cristo daria seu corpo em sacrifício a Deus. Artur Weiser observa que "A rejeição radical de todo o culto sacrificial explica-se, como no caso dos profetas, pela supracitada percepção da falsa atitude fundamental em relação a Deus, que encontra sua expressão no culto sacrificial e, pela sua origem e natureza, nasceu de outra área cultual. O homem não pode, por seus sacrifícios, situar-se no mesmo plano de Deus, nem ‘colocar em ordem’, pelos próprios esforços, o seu relacionamento com Deus’’.2

“Holocaustos e oblações pelo pecado não te agradaram" (v. 6). As palavras olokautôma ("holocausto", "oferta queimada”) e peri hamartias ("oferta pelo pecado”) são uma referência ao cerimonial levítico.

“Então, disse: Eis aqui venho (no princípio do livro está escrito de m im ), para fazer, ó Deus, a tua vontade" (v. 7). No contexto do Salmo 40, o poeta anseia por uma vida piedosa e autêntica. Inspirado pelo Espírito Santo, o autor de Hebreus vê nas palavras do salmista uma referência clara à pessoa de Cristo. É dEle que as Escrituras fazem referência como aquEle que havia de vir.

"Com o acima diz: Sacrifício, e oferta, e holocaustos, e oblações pelo pecado não quiseste, nem te agradaram (os quais se oferecem segundo a lei) (v. 8). Mesmo sabendo que o sistema sacrificial levítico fora insti­ tuído por Deus, uma exigência da Lei, o autor mostra que tal sistema não era a instância final. Se o antigo sistema tinha caráter transitório, isso significa que Deus havia providenciado algo muito melhor — o sacrifício de Cristo.

"Então, disse: Eis aqui venho, para fazer, ó Deus, a tua vontade. Tira o primeiro, para estabelecer o segundo" (v. 9). O expositor Fritz Laubach comenta com maestria esse texto: "A trajetória do Messias a que se alude profeticamente na palavra do Sl 40.7-9, a saber, que o Cristo haveria de entregar a Deus o seu próprio corpo como oferenda para sacrifício, levou Jesus Cristo, de acordo com a vontade de Deus, à cruz. Dessa maneira, a revelação da vontade de Deus no AT, ‘o obe­ decer é melhor do que o sacrificar’ (1 Sm 15.22), obteve sua potenciação e último aprofundamento. Cristo foi ‘obediente até à morte’ (Fp 2.8) e entregou-se a si próprio como sacrifí­

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Dádiva, Privilégios e Responsabilidades na Nova Aliança cio. Nessa obediência extrema de Jesus à vontade de seu Pai, explica-se também o mistério de sua autoridade na oração. Somente porque Jesus cumpriu integralmente a vontade de Deus, ele também possui agora plenos poderes ilimitados, a fim de, como nosso eterno Sumo Sacerdote, intervir perante Deus em nosso favor, pela intercessão, sem cessar”.3

"Na qual vontade temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez” (v. 10). Um dos aspectos da vida de Cristo que o autor de Hebreus põe em relevo é o da sua obediência, como Filho, à vontade de Deus. Esse texto faz eco com Filipenses, onde Paulo diz que a obediência de Cristo levou-o à morte e morte de cruz (Fp 2.6-8). Essa obediência levou-o a sacrificar-se pelo pecador. A palavra grega prosphora, traduzida aqui como oblação, tem o sentido de oferta. Foi por meio da oferta ou sacrifício de Cristo que nós fomos santificados. A palavra egiasmenoi é um particípio perfeito no texto grego, que mostra essa santificação como sendo posicionai. Esse fato é demonstrado pelo uso da palavra ephapaks, que tem o sentido de de uma vez p or todas. Em palavras mais simples, Cristo santificou-nos quando cremos nEle e continua santificando-nos ainda hoje quando permanecemos nEle.

“E assim todo sacerdote aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar pecados" (v. 11). Donald Guthrie comenta esse versículo, pondo em destaque que "A continuidade interminável dos sacrifícios inadequados segundo a velha ordem está em contraste marcante com a nova ordem. Os aspectos principais de interesse no presente versículo são: (i) a posição dos sacerdotes (todo sacerdote se apresenta — lit. "fica de pé”), (ii) a continuidade dos sacrifícios (a oferecer muitas vezes) e (iii) sua ineficácia de realizar o seu propósito (i.e, para remover pecados). O primeiro aspecto tem contraste marcante no versículo seguinte com a posição de Cristo: assentou-se. Estes sacerdotes nunca poderiam sentar-se porque sua obra nunca era completa. Em segundo lugar, muitas vezes (pollakis) está em direto contraste com uma vez por todas (ephapax). E em terceiro lugar, a incapacidade das antigas ofertas removerem os pecados é contrastada no v. 12 com a única oferta de Cristo pelos pecados. Mais uma vez, a fraqueza da velha ordem fica sendo o pano de fundo para a demonstração da maior glória da nova”.4

“Mas este, havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à destra de Deus" (v. 12). O antigo sistema sa­ cerdotal levítico chegara ao fim quando Cristo, de uma vez por todas e como Sumo Sacerdote da Nova Aliança, fez a purificação dos pecados.

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A Supremacia de Cristo “Daqui em diante esperando até que os seus inimigos sejam postos por escabelo de seus pés” (v. 13). O autor volta novamente a citar o Salmo 110.1 para pôr em destaque a obra de Jesus Cristo. F. F. Bruce vê aqui uma advertência do autor a seus leitores para não serem contados entre os inimigos de Cristo, mas, sim, entre aqueles que são seus amigos.5 É possível ver aqui também uma citação de cunho escatológico quando Cristo, na consumação final, porá todos os seus inimigos debaixo de seus pés (1 Co 15.24-28).

“Porque, com uma só oblação, aperfeiçoou para sempre os que são santificados" (v. 14). Mais uma vez, o autor volta a falar do aspecto definitivo da obra de Cristo e, dessa vez, ele usa o tempo perfeito do verbo teleioô para destacar a natureza desse sacrifício. Cristo comple­ tou a obra da salvação no passado, mas seus efeitos sobre os crentes continuam no presente. Fomos santificados nEle e continuamos em processo de santificação diária, também nEle.

“E também o Espírito Santo no-lo testifica, porque, depois de haver dito" (v. 15). O autor fará uma citação do profeta Jeremias no versículo

16, mas, antes, ele põe em realce que a profecia foi dada por inspiração do Espírito Santo. Com essa observação, o autor consolida sua argu­ mentação de que ele não está falando nada fora da autoridade divina. O que ele argumentou tem o selo do Espírito Santo.

"Este é o concerto que farei com eles depois daqueles dias, diz o Senhor: Porei as minhas leis em seu coração e as escreverei em seus entendimen­ tos, acrescenta’’ (v. 16). Como já havia feito anteriormente (Hb 8.8-12), o autor volta a citar a profecia de Jeremias (Jr 31.31-34). É posto em destaque o contraste interno da Nova Aliança com o externo da Antiga. “E jamais me lembrarei de seus pecados e de suas iniquidades” (v. 17). Na Antiga Aliança, o antigo sistema de sacrifícios jamais podia tratar de forma definitiva com o pecado. Sempre havia lembrança deles, o que era feito anualmente no dia da expiação. Todavia, na Nova Alian­ ça, o sangue de Cristo tratou de forma definitiva com o problema do pecado, de modo que não há mais necessidade da repetição contínua dos sacrifícios. “Ora, onde há remissão destes, não há mais oblação pelo pecado’’ (v. 18). Aqui, o argumento do autor é conclusivo: Cristo tratou do problema do pecado de forma definitiva. Não havia mais necessidade de a sombra representar a realidade porque a realidade havia chegado. O sistema sacerdotal levítico tomara-se obsoleto e chegara a seu fim. A obra de Cristo foi perfeita e conclusiva. Nesse versículo, o autor encerra a longa discussão que havia começado sobre o sacerdócio de Cristo. Agora, ele partirá para as implicações práticas que essa doutrina conduz.

“Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus” (v. 19). Aqui, o autor tem em mente o santuário interior, o Santo dos Santos, que não era permitido entrada ao povo e nem mes­ 100


Dádiva, Privilégios e Responsabilidades na Nova Aliança mo aos sacerdotes, mas somente ao sumo sacerdote, de ano em ano, para fazer expiação. O autor mostra que, agora, todos os crentes têm acesso ao Santo dos Santos pelo sacrifício de Jesus. Essa entrada deve ser feita com ousadia e confiança nEle.

“Pelo novo e vivo cam inho que ele nos consagrou, pelo véu, isto é, pela sua carne” (v. 20). Jesus Cristo inaugurou um novo caminho para

a presença de Deus. Não mais o antigo caminho, já trilhado pelos su­ mos sacerdotes judeus, mas um novo e vivo caminho. Esse caminho anteriormente desconhecido está agora disponível a todos aqueles que foram chamados. A expressão kata-petasma, traduzida aqui como “véu”, corresponde à segunda cortina, a que separava o santo lugar do Santo dos Santos. É essa cortina que foi rasgada quando Cristo deu o brado na cruz do Calvário (Mt 27.51). Estava aberto, portanto, o acesso à presença de Deus. Os intérpretes entendem que a expressão “pela sua carne” é uma referência à vida humana de Jesus quando Ele apresentou-se a Deus. “E tendo um grande sacerdote sobre a casa de Deus" (v. 21). Aqui, a referência ao "grande sacerdote” remete ao texto de Levítico 21.10, onde está em vista o sumo sacerdote. Ele era o grande sacerdote. No entanto, aqui o autor mostra que, no santuário celeste, no qual os crentes agora têm acesso pelo sacrifício de Cristo, Jesus é esse “grande sacerdote” sobre a família de Deus.

“Cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé; tendo o coração purificado da má consciência e o corpo lavado com água limpa" (v. 22). O autor tem sempre em mente a purificação interior que

o sangue de Jesus proporciona. A referência ao corpo lavado com água limpa pode ser uma alusão a Lv 16.4, onde o texto mostra que, no dia da expiação, o sacerdote “lavava seu corpo com água". Nesse sentido, o autor estaria dizendo que o cristão já está limpo diante de Deus pelo sacrifício de Cristo. Por outro lado, alguns intérpretes acreditam que a referência aqui é ao batismo cristão (1 Pe 3.21).6 De qualquer forma, o que está em destaque aqui é que o crente está interiormente limpo para entrar na presença de Deus.

“Retenhamos firmes a confissão da nossa esperança, porque fiel é o que prometeu" (v. 23). Aqui, os crentes são exortados a manter firme

a confissão ou profissão de fé que haviam feito. A palavra “confissão”, do grego hom ologia, aparece outras duas vezes nesta carta (Hb 3.1; 4.14). Em 2 Coríntios 9.13, é traduzida como sendo a obediência ao evangelho que os crentes haviam professado. Da mesma forma, em 1 Timóteo 6.12,13, é usada primeiramente em relação a Timóteo, que havia feito a boa confissão diante de várias testemunhas e de Jesus Cristo, que, diante de Pôncio Pilatos, fez a boa confissão.

“E consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras" (v. 24). Na caminhada da vida cristã, o autor lembra

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A Supremacia de Cristo que os cristãos precisam considerar uns aos outros. Esse "considerar” é tido como uma ponderação ou meditação. É algo no qual se deve pensar. O tempo presente significa que essa deve ser uma prática, um hábito, e não algo esporádico. No que, portanto, devemos considerar quando o assunto for as relações interpessoais? Devemos "estimular” uns aos outros na prática do amor e das boas obras. A palavra "estimular” no texto grego tem o sentido de “incitar”, “provocar”. Quantos cristãos desanimam por falta de estímulos!

“Não deixando a nossa congregação, com o é costume de alguns; antes, admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais quanto vedes que se vai aproximando aquele D ia” (v. 25). A palavra grega episynagogé, tradu­ zida como “congregação”, é a junção da preposição grega epi (sobre, em adição) com a palavra synagogé (Sinagoga). No contexto do Novo Testamento, essa palavra ocorre aqui e em 2 Tessalonicenses 2.1 com o sentido de reunião. O abandono da congregação e o consequente afastamento dos demais irmãos de fé é um sinal de enfraquecimento espiritual. O autor exorta seus leitores porque observou que alguns já estavam com esse mau costume, e isso era extremamente nocivo à comunhão cristã. É um alerta que ecoa forte nestes dias onde aumenta assustadoramente o número de desigrejados.

“Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o co­ nhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados” (v. 26). Nesse versículo, o autor novamente volta à sua exortação sobre o perigo da apostasia sobre a qual ele já advertira nos capítulos 2, 3 e 6. Donald Hegner destaca que “as palavras se voluntariamente continuarmos no pecado não se referem a pecados comuns, mas ao pecado mais grave, o pecado final: apostasia (...) Esse é o pecado que, pela sua natureza, coloca o ofensor fora do alcance do perdão de Deus e, portanto, é pecado do qual não se encontra retomo".7 Aqui, como fizera em Hb 6.4-6, o autor mostra tratar-se de cristãos verdadeiros, pois somente cristãos salvos "receberam o conhecimento da verdade”. Se o cristão verdadeiro não pode abandonar a fé, essas palavras não passariam de uma advertência vazia, totalmente destituída de sentido.8John Wesley acreditava que, nessa passagem, o autor estaria se referindo não a um pecado qualquer, mas à apostasia, e ele aplicou isso a cristãos. Wesley entendia que o texto estava se referindo a “qualquer um de nós cristãos" que pecamos contra Deus por uma apos­ tasia total e voluntaria. Segundo ele, isso acontecia depois de havermos “recebido o conhecimento experimental da verdade do Evangelho", e, nesse caso, “não resta mais sacrifício pelos pecados”.9

"Mas uma certa expectação horrível de juízo e ardor de fogo, que há de devorar os adversários" (v. 27). Para o apóstata, que voltou atrás, não resta mais nada a fazer, apenas esperar o juízo (Is 26.11).

"Quebrantando alguém a lei de Moisés, m orre sem misericórdia, só pela palavra de duas ou três testemunhas” (v. 28). O autor tem em

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Dádiva, Privilégios e Responsabilidades na Nova Aliança mente as testemunhas descritas em Deuteronômio 17.6,7 e 19.15. Em Deuteronômio 13.6-11 e 17.2-7, estão as referências àqueles que se afastavam de Deus por quebrarem a sua Palavra. O expositor C. S. Keener observa que “os mestres judeus reconheciam que todo mundo pecava de um a form a ou de outra; m as um pecado com o qual uma pessoa declarava: 'eu rejeito parte da palavra de Deus’, se considerava com o equivalente rechaçar toda a Lei e se reconhecia como apostasia’’.10

"De quanto m aior castigo cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver p o r profano o sangue do testamento, com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça?” (v. 29). Esse versículo detalha de forma específica o que é o pecado de apostasia. Em primeiro lugar, é um “pisar” no Filho de Deus. O vocábulo katapateô tem o sentido de "pisar”, "pisotear”. É o mesmo termo usado em Mt 5.13 para descrever o sal que foi pisado pelos homens por haver perdido o sabor. Lucas, no terceiro evangelho, usa esse vocábulo para descrever a semente que caiu à beira do caminho e foi pisada (Lc 8.5). Hughes diz que essa palavra indica tratar algo com o maior desprezo. Haubeck traduz como “fazer pouco caso”.11 Semelhantemente, Robertson destaca que se trata de uma “negligência cheia de escárnio, como em Zacarias 12.3. Veja a mesma ideia em Hb 6.6”.12 Em segundo lugar, o apóstata é alguém que "profanou” o sangue da aliança.13 O termo grego usado aqui é koinos, que tem o sentido de “tom ar comum” ou "imundo". É a mesma palavra usada por Pedro quando teve a visão dos animais limpos e imundos (koinos ) em Atos 10.14. Essa palavra também é usada em Apocalipse 21.27 para afirmar que nada "imundo’ entrará na Nova Jerusalém. O sentido, portanto, é o de alguém que desprezou o sangue de Cristo, não vendo na expiação, como diz Robertson, nada mais do que “uma religião de carnificina’’.14 O comentarista carismático C. S. Keener destaca que o autor tem em mente aqui o sangue de Cristo que santifica os cristãos (Hb 9.19-22) e, por outro lado, a concepção judaica que considerava o corpo de Cristo morto como um cadáver imundo (Dt 21.23).IS Em terceiro lugar, o apóstata é alguém que "ultrajou o Espí­ rito da graça”. O verbo grego enybrizo (ultrajou) só ocorre aqui e tem o sentido de “tratar com muito desprezo, insultar arrogantemente".16 Robertson comenta dizendo que “é uma palavra forte para expressar o insulto ao Espírito Santo depois de ter recebido suas bênçãos (Hb 6.4)”.17 De forma semelhante, Adam Clarke comenta: "O assunto refere-se a um apóstata deliberado — alguém que rejeita completamente a Jesus e seu sacrifício e renun­

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A Supremacia de Cristo cia a todo o sistema evangélico. Isso nada tem a ver com os desviados no uso comum do nosso termo. Um homem pode cair repentinamente em uma falta ou ainda deliberadamente andar em pecado e, porém, não rejeitar o evangelho nem negar ao Senhor que lhe comprou. Sua situação é temerá­ ria e perigosa, mas não sem esperança. O único caso sem esperança é do apóstata deliberado, que rejeita o evangelho, depois de haver sido salvo pela graça ou convencido da ver­ dade do evangelho. Para o tal, já não resta mais sacrifício pelo pecado, porque já houve um, o de Jesus, e ele rejeitou-o por completo’’.18 (veja um estudo completo dessa passagem no Apêndice).

"Porque bem conhecemos aquele que disse: Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o seu p ovo’’ (v. 30). Esse versículo mostra a severidade do juízo divino para as pessoas descritas no versículo 29.

"Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo" (v. 31). Aqui, o autor cita Deuteronômio 32.35,36, onde Deus fala de vingar-se contra seu próprio povo. "Lembrai-vos, porém, dos dias passados, em que, depois de serdes ilu­ minados, suportastes grande combate de aflições” (v. 32). Esses crentes, que haviam sido iluminados (Hb 6.4-6), são novamente advertidos a fazer um retrospecto das suas vidas na fé. No início de suas caminha­ das, eles suportaram lutas e tribulações por amor a Cristo, e esse fato deveria motivá-los a prosseguir.

"E m parte, fostes feitos espetáculo com vitupérios e tribulações e, em parte, fostes participantes com os que assim foram tratados” (v. 33). Não era possível esquecer a abnegação que demonstraram quando foram submetidos à prova. Eles foram expostos com o espetáculo, vituperados e atribulados, mas, mesmo assim, permaneceram fieis. Por que retroceder agora?

“Porque também vos compadecestes dos que estavam nas prisões e com gozo permitistes a espoliação dos vossos bens, sabendo que, em vós mesmos, tendes nos céus uma possessão melhor e permanente” (v. 34). O autor faz um elogio ao lembrá-los de que, enquanto ele estivera preso, os hebreus demonstraram cuidado com ele. E mais: eles haviam suportado com alegria o espólio de seus bens por acreditarem que possuíam um melhor tesouro no céu. O que estava acontecendo com essa fé que fora ousada?

“Não rejeiteis, pois, a vossa confiança, que tem grande e avultado galardão” (v. 35). Toda aquela ousadia, fé e confiança demonstradas no início da carreira cristã não deveriam, de forma alguma, ser aban­ donadas. Elas seriam recompensadas pelo Senhor.

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Dádiva, Privilégios e Responsabilidades na Nova Aliança “Porque necessitais de paciência, para que, depois de haverdes feito a vontade de Deus, possais alcançar a promessa" (v. 36). A promessa da Terra Prometida, a Canaã celeste, existe. Ela, porém, só é alcançada por aqueles que estão dispostos a fazer a vontade de Deus, demonstrando ser pacientes. A jornada é longa, e o cansaço e a fadiga podem deixar muitos pelo caminho.

“Porque ainda um poucochinho de tempo, e o que há de vir virá e não tardará” (v. 37). A expectativa do autor — e também de todo cristão — é que o Senhor retome logo. O tempo não existe para Deus, pois Ele é o Pai da eternidade; todavia, existe para os homens e, às vezes, devido às circunstâncias desfavoráveis, ele parece demasiadamente longo. Urge aguardar nas promessas de Deus.

“Mas o justo viverá da fé; e, se ele recuar, a minha alma não tem pra­ zer nele” (v. 38). Nessa passagem, o autor já sinaliza do que irá tratar daqui para frente — a fé. Ele sabe que a fé é o elemento necessário para permanecermos caminhando na estrada da vida. Deus não demonstra prazer nos que recuam.

“Nós, porém, não somos daqueles que se retiram para a perdição, mas daqueles que creem para a conservação da alma" (v. 39). Como havia

feito em Hebreus 6.9, o autor traz uma palavra de ânimo e consolação a seus leitores. O perigo de recuar, de cair da fé, é real, e não uma hi­ pótese; ele, todavia, demonstrou como evitar isso. Os que continuam perseverando com ânimo e fé conservarão as suas almas.

N otas 1 BRUCE, F. F. La Epistola a Los Hebreos. Libros Desafio, Grand Rapids, Michigan, EUA. 2 WEISER, Artur. Os Salmos - Grande Comentário Bíblico. Editora Paulus, São Paulo, 1994. 1 LAUBACH, Fritz. Hebreus - comentário bíblico Esperança. Editora Esperança. 4 GUTHRIE, Donald. Hebreus - introdução e comentário. Editora Vida Nova, São Paulo. 5 BRUCE, F. F. La Epistola a Los Hebreos. Libros Desafio, Grand Rapids, Michigan, EUA. 6 BRUCE, F. F. op.cit. 7 HEGNER, Donald. Hebreus - Comentário Bíblico Contemporâneo. Edi­ tora Vida, São Paulo. 8 O expositor Donald Hegner tem muita dificuldade em conciliar Hebreus 6.4-6 com Hebreus 10.26-29. Respondendo à pergunta se um cristão verdadeiro pode voltar atrás e perder a salvação, ele responde: "sim” e “não”. Ele admite que o texto de Hebreus 6.4-6 trata de cristãos autên­ ticos ("é certo que as pessoas descritas nos versículos 4-5 são cristãs”, pp 109), mas, mesmo assim, transforma esse assunto num “paradoxo".

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A Supremacia de Cristo Comentando Hebreus 6.4-6, ele admite que "os cristãos podem apostatar (cf. 2 Pe 2.20-22)”, mas diz que essas pessoas, as quais ele acabou de admitir serem cristãs, se caírem da fé é porque "nunca foram cristãos autênticos". Mas, novamente, ao comentar Hebreus 10.26, ele sugere que o texto refere-se a cristãos autênticos: "que esse pecado envolve o abandono total da fé, sabemo-ío pelas palavras depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade”. Em outras palavras, os cristãos autênticos, isto é, os que receberam o pleno conhecimento da verdade, podem cair da fé, mas, se caírem da fé, nunca foram cristãos autênticos! Não vejo argumento desse tipo como um paradoxo, mas, antes, como uma aporia. Uma contradição. Uma coisa ou "é” ou "não é", não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo. 9 WESLEY, Jonh. Hebrews - Explanatory Notes & Commentary. Bristol Hot-Wells, January, 1754. I0KEENER, C. S. Comentário dei Contexto Cultural de la Biblia. Editora Mundo Hispano. 11 Veja Chave Linguística do Novo Testamento (Vida Nova) e a Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego (Hagnos) 12ROBERTSON, A. T. Comentário al Texto Griego Del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 13A referência, aqui, é claramente aplicada a pessoas crentes, regeneradas e salvas, pois essas pessoas foram santificadas pelo sangue da aliança. Nenhum pecador é santificado pelo sangue de Jesus. 14Idem. 15KEENER, C. S. Comentário dei Contexto Cultural de la Biblia. Editora Mundo Hispano. 16ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento. Vida Nova. 17ROBERTSON, A. T. Comentário Al Texto Griego Del Nuevo Testamento. Editorial CLIE. 18CLARKE, Adam. Hebreos - Comentário de la Santa Biblia - Nuevo Tes­ tamento, tomo III. Casa Nazarena, Lenexa, EUA.

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Capítulo 11

■■ s s é ítt í,. ;.i..

Os Gigantes da Fé e o seu Legado para a Igreja ..

Com entário de Hebreus 11.1 -40

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leitura do capítulo 11 de Hebreus deve ser feita à luz do que foi dito no capítulo 10. Ali, o autor completou o seu longo argumen­ to sobre o sacerdócio de Cristo (Hb 10.18) e, parenteticamente, como de costume, usou um tom exortativo para alertar seus leitores sobre o perigo de voltar atrás. O capítulo 11 traz a galeria dos heróis da fé, com o uma forma de exemplificar como viveram e agiram os grandes homens e mulheres de Deus do passado. O objetivo é que seus exemplos sejam seguidos pelos cristãos hebreus que davam sinais de desesperança e falta de fé.

“Ora, a f é é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que se não veem" (v. 1). Mais do que um conceito, o autor faz

aqui uma afirmação sobre a fé que é oposta àquela que estava sendo demonstrada por seus leitores. Os Hebreus davam sinal de fraqueza es­ piritual justamente porque estava faltando-lhes a fé. O substantivo grego pistis, traduzido aqui como "fé”, ocorre 243 vezes no Novo Testamento; 30 vezes somente em Hebreus, sendo que, somente no capítulo 11, há o registro dessa palavra 24 vezes.1 A palavra grega hypostasis, traduzida aqui como "fundamento", tem, no texto grego, o sentido de certeza, garantia, segurança} Nesse sentido, era usada como atestação ou garantia de uma propriedade. Para o autor, a fé era como ter em mãos um documento que atestava a posse de determinado objeto. E mais: a fé é a convicção das coisas que não se viam. O termo grego elenkos, traduzido aqui como "prova”, mantém o sentido de "evidência”.3 “Porque, por ela, os antigos alcançaram testemunho” (v. 2). Nesse ver­ sículo, a construção en tauté gar emartyrethesan presbyteroi ("pois nela, isto é, na fé, os antigos obtiveram testemunho"). Aqui, é o próprio Deus quem dá testemunho dos feitos que a fé realizou na vida dos antigos.

“Pela fé, entendemos que os mundos, pela palavra de Deus, foram criados; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente"

(v. 3). Aqui, a fé é usada no sentido instrumental. É por meio da fé que temos a percepção das coisas espirituais. Mediante a fé, sabemos que o universo foi criado pela palavra de Deus. Os expositores veem aqui um contraste entre a percepção mental e sensitiva, quando o autor usa o termo grego noeo (aquilo que está relacionado ao conhecimento intelectual). A fé vai além do conhecimento sensorial e empírico para acreditar que o mundo visível não tenha existido a partir das coisas que são visíveis.4


A Supremacia de Cristo “Pela fé, Abel ofereceu a Deus m aior sacrifício do que Caim, pelo qual alcançou testemunho de que era justo, dando Deus testemunho dos seus dons, e, p o r ela, depois de morto, ainda fala" (v. 4). Abel abre a galeria dos heróis da fé. O texto de Gênesis 4.2-16 silencia sobre o que teria distinguido o sacrifício de Abel daquele oferecido por Caim. Todavia, o autor de Hebreus diz que a oferta (gr. propheró) de Abel foi melhor (gr. pleion). Donald Hegner observa que “a entrega sem reservas à realidade de Deus e ao caráter absoluto das vindicações de Deus sobre nós — fez uma diferença decisiva. De certa forma, Caim retraiu-se em relação a Deus, quer na própria oferta, quer em seu coração”.5 "Peia fé, Enoque foi trasladado para não ver a morte e não foi achado,

porque Deus o trasladara, visto como, antes da sua trasladação, alcançou testemunho de que agradara a Deus” (v. 5). A palavra grega metatithemi,

usada três vezes em Hebreus e outras três vezes no Novo Testamento, significa "mudar”, “transpor", "transferir”, "remover” e “trasladar”.6 Na interpretação do autor, Enoque, tendo obtido o testemunho de haver agradado a Deus, foi trasladado ao céu e não passou pela morte.

“Ora, sem fé é impossível agradar-lhe, porque é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que é galardoador dos que o bus­ cam" (v. 6). De forma parentética, como costumeiramente vinha fazendo, o autor aproveita o espaço para fazer uma exortação sobre a necessidade de se exercer a fé na caminhada cristã. Aqueles que creem precisam saber que Deus existe e está pronto a premiar aqueles que o buscam, não os que desistem pelo caminho. Quem não tem fé não segue avante.

"Pela fé, Noé, divinamente avisado das coisas que ainda não se viam, temeu, e, para salvação da sua família, preparou a arca, pela qual con­ denou o mundo, e fo i feito herdeiro da justiça que é segundo a fé” (v.

7). Nessa passagem, o autor tem em mente o relato de Gênesis 6.8,9, 13-22; 7.1. Aqui, o particípio aoristo krematistheis (avisar, advertir, instruir) antecede a ação do verbo principal. Primeiramente, o Senhor avisou a Noé sobre o Dilúvio que viria, e, a partir daí, Noé começou a trabalhar no projeto da Arca. Não havia nada além da palavra de Deus, nenhuma prova material ou física, para Noé saber que aquilo que lhe fora dito iria cumprir-se. Noé, porém, ousou crer naquilo que o Senhor dissera a ele. O texto destaca que a iniciativa para livrar Noé e sua família teve início em Deus.

“Pela fé, Abraão, sendo chamado, obedeceu, indo para um lugar que havia de receber p o r herança; e saiu, sem saber para onde ia” (v. 8). Agora, o autor entra no universo dos patriarcas. O particípio presente

kaloumenos (gr. kaléô, chamar) tem o sentido temporal aqui. Quando Deus cham ou a Abraão, este não vacilou, mas obedeceu sem fazer perguntas. À semelhança de Noé, Abraão não tinha nenhuma prova, além da palavra de Deus, que, de fato, chegaria a essa terra que a ele foi prometida. Ele não sabia onde era essa terra, muito menos seu caminho. 108


Os Gigantes da Fé e o seu Legado para a Igreja O texto diz que o patriarca saiu “sem saber para onde ia”. Somente a palavra de Deus serviu-lhe de bússola e guia naquela longa jornada.

“Pela fé, habitou na terra da promessa, com o em terra alheia, morando em cabanas com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa"

(v. 9). A fé fez Abraão sair do seu mundo conhecido, e a mesma fé fê-lo chegar ao mundo até então desconhecido para ele. A fé leva-nos a fazer coisas incríveis. Todavia, essa terra ainda não era dele, mas apenas uma promessa. Na verdade, Abraão morava nas promessas de Deus e vivia em Canaã. Ali, ele não passava de um estrangeiro. A fé dizia que essa terra, embora não lhe pertencesse fisicamente, era dele por herança divina. A fé era o único documento que ele tinha de propriedade daquela terra.

“Porque esperava a cidade que tem fundamentos, da qual o artífice e construtor é Deus” (v. 10). Abraão descansava na fé, mesmo habitando em tendas. O autor põe em relevo a fé de Abraão, que, mesmo sabendo que aquela terra era sua pela promessa de Deus, continuou morando em tendas. E assim o fazia porque sabia que era um nômade e que a sua verdadeira morada era a celeste. A fé tirava seus olhos da terra e colocava-os no céu. Quando a fé não está presente, facilmente miramos para baixo ou para os lados, mas nunca para cima.

“Pela fé, também a mesma Sara recebeu a virtude de conceber e deu à luz já fora da idade; porquanto teve por fiel aquele que lho tinha prome­ tido” (v. 11). O autor sagrado põe Sara na lista da fé, embora o relato

de Gênesis 18.12 mostre Sara rindo quando recebeu a promessa de gerar um filho. Ela sabia que já havia passado da idade de tê-lo. Que­ rendo retirar essa aparente dificuldade do texto, alguns comentaristas entendem que o sujeito da frase é Abraão, e não Sara. Dessa forma, o autor estaria se referindo primeiramente ao patriarca, e não a sua esposa, Sara. A Nova Versão Internacional traduziu desta forma: “Pela fé Abraão — e também a própria Sara, apesar de estéril e avançada em idade — recebeu poder para gerar um filho”. Fritz Laubach destaca que o autor, com seus olhos espirituais, "tem capacidade para constatar fé no lugar em que outras pessoas não notam nada. Além disso, temos de considerar ainda outro aspecto: as dificuldades do texto se dissolvem quando entendemos o matrimônio de Abraão com Sara no sentido original conforme a criação, como a união total de duas pessoas segundo corpo, alma e espírito. O que é afirmado sobre Sara vale de modo idêntico para Abraão. Na fé, Abraão e Sara obtiveram a força para gerar descendência, apesar de que isso era humanamente impossível (cf. Rm 4.18-21). Sua fé se atém exclusivamente à promessa e à fidelidade de Deus, não às possibilidades imanentes”.7

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A Supremacia de Cristo “Pelo que também de um, e esse já amortecido, descenderam tantos, em multidão, com o as estrelas do céu, e com o a areia inumerável que está na praia do mar" (v. 12). A palavra "amortecido" traduz o grego “nekrów e tem o sentido de “considerado como morto”. Paulo usa essa palavra em Colossenses 3.5 no sentido de mortificação da natureza adâmica. Abraão, mesmo amortecido pela idade avançada, foi, pela fé, capaz de gerar descendência. Essa descendência não era apenas física, mas, sobretudo, espiritual (Gl. 3.7-9).

"Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas, mas, vendo-as de longe, e crendo nelas, e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra" (v. 13). Um fato descrito aqui pelo

autor e que vai contra a crença popular é que quem tem promessas morre! Abraão, por exemplo, viu o nascimento de Isaque, mas não viu a promessa da posse da terra de Canaã concretizada. As pessoas as quais o autor acabou de referir-se morreram na fé, sem, contudo, obterem a plenitude das promessas. Deve ser sublinhado que o texto está falando de promessas não apenas no sentido físico, mas, sobretudo, espiritual.

"Porque os que isso dizem claramente mostram que buscam uma pátria” (v. 14). Aqui, o autor demonstra que não estava se referindo

apenas às promessas materiais no versículo 13. Ao aceitar serem pe­ regrinos e estrangeiros em terra alheia, os patriarcas comportaram-se como quem de fato acredita em outra pátria, a Canaã celestial.

“E se, na verdade, se lembrassem daquela de onde haviam saído, teriam oportunidade de tornar” (v. 15) O expositor Richard Taylor traduziu esse versículo assim: “E se eles realmente tivessem lembrado daquela (terra) de onde tinham saído, eles teriam tido continuamente a oportunidade de voltar”.8

“Mas, agora, desejam uma melhor, isto é, a celestial. Pelo que também Deus não se envergonha deles, de se chamar seu Deus, porque já lhes preparou uma cidade ” (v. 16). Abraão teve a oportunidade de voltar atrás, mas não voltou. O contraste com a geração do êxodo a qual se refere o autor fica evidente. Os israelitas que peregrinaram no deserto tentaram voltar para o Egito por inúmeras vezes. O autor mostra que, da mesma forma que os patriarcas agiram, indo sempre para frente em direção às promessas de Deus, os seus leitores deveriam fazer o mesmo. Eles deveriam também ansiar a pátria melhor, a Canaã celeste, e nunca pensar em voltar atrás.

"Pela fé, ofereceu Abraão a Isaque, quando foi provado, sim, aquele que recebera as promessas ofereceu o seu unigénito" (v. 17). O verbo grego prosphero, “oferecer”, é um dos termos preferidos do autor de

hebreus, ocorrendo 20 vezes no texto. O seu sentido é o de "sacrificar”, “oferecer sacrifícios”. A palavra "testou” (ARA) em vez de “tentou (ARC) traduz melhor o termo grego peirasmos. Aqui, o seu sentido é determinado pelo contexto, que é claramente de uma prova. A fé de 210


Os Gigantes da Fé e o seu Legado para a Igreja Abraão é demonstrada no fato de que o cumprimento das promessas de Deus feitas a ele dependia de um Isaque vivo, e não morto. Muitas vezes, é preciso matar, mesmo simbolicamente, o "Isaque” para que as promessas de Deus sejam cumpridas. Isaque não era filho único de Abraão (havia também Ismael). Todavia, a palavra monogenes, tradu­ zida aqui como “unigénito", quer dizer “único do gênero". Isaque era o filho da promessa, Ismael não.

“Sendo-lhe dito: Em Isaque será chamada a tua descendência, consi­ derou que Deus era poderoso para até dos mortos o ressuscitar” (v. 18).

Todas as promessas de Deus a Abraão estavam em Isaque: “Em Isaque será chamada a tua descendência [...]". A fé de Abraão acreditava que Deus era poderoso para ressuscitar uma promessa, mesmo que esta tivesse morrido. "E daí também, em figura, ele o recobrou” (v. 19). Abraão não chegou a sacrificar Isaque, mas, figuradamente, isso aconteceu! Na mente de Abraão, quando Deus pediu Isaque, ele considerou a possibilidade de perdê-lo, mesmo que momentaneamente. Abraão acreditava que, de alguma forma, as promessas de Deus relativas a Isaque seriam cumpri­ das, mesmo que o Senhor tivesse que o ressuscitar dentre os mortos.

“Pela fé, Isaque abençoou Jacó e Esaú, no tocante às coisas futuras" (v. 20), O autor tem o olhar sempre no horizonte quando descreve a fé. Aqui, Isaque — e não Abraão — é o personagem principal. A fé conduziu-o a abençoar seus filhos, Jacó e Esaú, com relação a coisas que só o tempo poderia comprovar sua veracidade. Como abençoou, assim aconteceu. A fé não é míope; ela enxerga longe.

“Pela fé, Jacó, próximo da morte, abençoou cada um dos filhos de José e adorou encostado à ponta do seu bordão" (v. 21). O autor sublinha o fato de Jacó estar para morrer quando abençoou os filhos de José. M esmo acamado, o velho patriarca, em adoração a Deus, proferia uma benção profética. Sem dúvidas, muitas profecias modernas não se cumprem porque são dadas por quem não adora.

“Pela fé, José, próxim o da morte, fez menção da saída dos filhos de Israel e deu ordem acerca de seus ossos" (v. 22). José não é conhecido apenas por sua fidelidade, mas tam bém por sua fé. Pela fé, ele faz menção do êxodo quando deu instruções sobre os seus ossos. O que José viu pela fé foi cumprido à risca (Êx 13.19; Js 24.32). A fé enxerga longe e costum a honrar aquele que a exercita.

“Pela fé, Moisés, já nascido, fo i escondido três meses p or seus pais, porque viram que era um menino formoso; e não temeram o mandamento do rei" (v. 23). Uma análise simples do relato de Êxodo não permite enxergar unais do que o cuidado de pais zelosos pelo filho que tinham gerado (Êx 2.2). O autor usa a palavra asteios, traduzido aqui como “formoso”, para justificar esse instinto de proteção materno e paterno. Essa mesma construção grega é usada por Estevão em Atos 7.20, onde 111


A Supremacia de Cristo significa “agradável a Deus”. F. F. Bruce destaca que “formoso" “signi­ fica algo mais que sua condição de beleza. Havia algo na aparência do menino que indicava que não era um menino comum, senão alguém destinado por Deus para fazer grandes coisas".9

"Pela fé, Moisés, sendo já grande, recusou ser chamado filho da filha de Faraó" (v. 24). A Bíblia não identifica quem era essa princesa que era filha de Faraó. M uitas conjecturas são levantadas, mas não há certeza em nenhuma delas.10 O fato relevante aqui é apontado para a fé de Moisés, que escolheu sofrer como um peregrino do que viver na luxuosa vida dos faraós. A fé tirou-o do palácio para colocá-lo no deserto. Todavia, essa mesma fé não o deixou lá. Ela levou Moisés para o centro da vontade de Deus, que era livrar o seu povo da escravidão do Egito.

“Escolhendo, antes, ser maltratado com o povo de Deus do que por, um p ouco de tempo, ter o gozo do pecado" (v. 25). O autor sublinha o fato da escolha feita por Moisés. Nesse texto, o termo helomenos tem o

sentido de “tendo escolhido”. Esse mesmo vocábulo é usado por Paulo para retratar seu dilema de escolher entre partir para estar com Cristo na eternidade ou ficar na igreja (Fp 1.22). O autor quer sublinhar o dilema que Moisés tinha diante de si — duas opções, mas ele teria somente uma para escolher. Aparentemente, a mais vantajosa seria aquela que o faria permanecer no palácio em vez da outra, que o expulsava de lá. A fé fez Moisés escolher a que contemplava a eternidade.

"Tendo, por maiores riquezas, o vitupério de Cristo do que os tesouros do Egito; porque tinha em vista a recompensa" (v. 26). Nessa passagem,

o contraste é entre "riquezas" e "vitupério". Moisés fez uma escolha entre viver "honrado” ou "desonrado”. Viver no palácio era viver no luxo, no glamour. Em contrapartida, ficar do lado dos cativos era ser exposto ao desprezo. Mas a fé não vê o que é imediato; ela vê o longe. Aqui, Moisés não viu os luxuosos palácios faraônicos, mas, sim, o rude monte Calvário.

“Pela fé, deixou o Egito, não temendo a ira do rei; porque ficou firme, com o vendo o invisível” (v. 27). Viver pela fé envolve desafios. Muitas vezes, significa remar contra a correnteza. Outras vezes, significa con­ quistar muitos inimigos. No entanto, nada disso abalou Moisés — ele lançou-se nos braços da fé porque conseguia ver o que ninguém via. Ele via a Cristo.

"Pela fé, celebrou a Páscoa e a aspersão do sangue, para que o destrui­ dor dos primogênitos lhes não tocasse" (v. 28). O ritual da Páscoa está registrado em Êxodo 12. A Páscoa apontava para Cristo. O cordeiro deveria ser sem defeito (Êx 12.5); o sangue deveria ser posto do lado de fora, nas umbreiras, para proteger quem estivesse dentro, só há segu­ rança para quem está na Igreja, em Cristo (Êx 12.7). A Páscoa deveria ser realizada com pães ázimos, isto é, sem fermento (Êx 12.8), pois o fermento incha! A vida cristã não pode ter inchaços. Fazia parte do

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Os Gigantes da Fé e o seu Legado para a Igreja ritual da Páscoa a presença de ervas amargas (Êx 12.8). A vida cristã não é só prosperidade, mas também adversidades. Em muitos momen­ tos da vida, para manter-se o testemunho cristão, é necessário comer ervas amargas. O cordeiro deveria ser comido assado (Êx 12.9-10). A vida do cristão não pode ser “cozinhada”, nem tampouco “crua”, mas queimada com fogo (Mt 3.11; At 2.3). Nada da Páscoa podia ser usado para outros fins (Êx 12.10). A vida do crente é consagrada a Cristo e não deve ser usada para fins profanos.

"Pela fé, passaram o mar Vermelho, com o por terra seca; o que inten­ tando os egípcios, se afogaram" (v. 29). A fé cria desertos dentro d agua. Às vezes, constrói pontes onde não há nenhuma (Mt 14.29).

"Pela fé, caíram os muros de Jericó, sendo rodeados durante sete dias” (v. 30). Aqui, o autor põe em destaque a fé de Josué. Os capítulos 1 a 7 do livro de Josué revelam essa grande façanha conquistada pela fé. Primeiramente, vemos que os homens passam, mas Deus continua o mesmo (Js 1.1,2); conquistas futuras são determinadas por decisões tomadas no passado (Js 1.2-7); mais importante do que manusear uma espada é o manuseio da Palavra (Js 1.7-9); conflitos e guerras não são para amadores, mas para pessoas treinadas, habilitadas (Js 1.14); nenhuma fortaleza é conquistada sem antes ser conhecida (Js 2.1); se Deus estiver atrás, não importa quem está na frente (Js 3.1-3); antes da bênção, deve vir a consagração (Js 3.5, 15,16); devemos levar sobre os ombros somente "pedras” de gratidão (Js 5.5-7); se não cortarmos a própria carne, não há livramento completo (Js 5.1 -9); devemos manter nossos olhos no céu, mas sem esquecer que temos nossa missão aqui na terra (Js 5.11-12); quando Deus está no comando, ganha-se até no "grito” (Js 6.1-6); devemos aprender que não há explicação para o inexplicável (Js 6.14-16); quem se cobre com o manto do pecado ficará descoberto depois (Js 6.17; 7.21).

“Pela fé, Raabe, a meretriz, não pereceu com os incrédulos, acolhen­ do em paz os espias” (v. 31). A fé transformou Raabe, a meretriz, em uma filha de Deus. E mais: de Raabe, vem a linhagem do Messias. Ela casou-se com Salmom e deu à luz Boaz, bisavô de Davi. Dessa forma, Raabe tornou-se da linhagem de Jesus.

“E que mais direi? Faltar-me-ia o tempo contando de Gideão, e de Baraque, e de Sansão, e de Jefté, e de Davi, e de Samuel, e dos profetas" (v.

32). O autor coloca outros homens do Antigo Testamento na galeria da fé: Gideão, que, com seus 300 homens, derrotou os midianitas; Baraque, que, juntamente com Débora, deu grande livramento a Israel; Sansão, que, com sua força extraordinária, proveu grandes livramentos a seu povo; Jefté, que, mesmo tendo feito um voto precipitado, transformou-se num hábil guerreiro; Davi, o estrategista militar por excelência e o homem segundo o coração de Deus; Samuel, o último dos juizes e um profeta respeitado entre seu povo. Por fim, o autor cita os profetas nessa galeria que fizeram coisas estrondosas por meio da fé.

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A Supremacia de Cristo “Os quais, pela fé, venceram reinos, praticaram a justiça, alcançaram promessas, fecharam as bocas dos leões" (v. 33). Aqui, o autor não é específico em sua citação. A vitória sobre reinos pode ser a conquista da terra de Canaã sob a liderança de Josué ou as muitas vitórias de Davi. A prática da justiça é muito comum nos profetas que exigiam dos reis uma maior atenção ao desamparado. Alguém observou que 60% das profecias do Antigo Testamento estão relacionadas com a justiça social. Eles também alcançaram as promessas.

“Apagaram a força do fogo, escaparam do fio da espada, da fraqueza tiraram forças, na batalha se esforçaram, puseram em fugida os exér­ citos dos estranhos" (v. 34). A citação sobre o fogo é, provavelmente, extraída de Daniel 3.1-30. A referência à espada não é tão especifica. Pode ser uma referência ao profeta Elias, que escapou da espada de Jezabel (1 Rs 19.2-8), ou ao profeta Jeremias (Jr 36,19,26). As vitórias nas batalhas não são fáceis de precisar. Há muitos eventos no Antigo Testamento que podem ser identificados dentro da descrição do autor.

“As mulheres receberam, pela ressurreição, os seus mortos; uns foram torturados, não aceitando o seu livramento, para alcançarem uma me­ lhor ressurreição" (v. 35). A referência à ressurreição é perfeitamente identificada com a viúva de Sarepta (1 Rs 17.17-24) e a Sunamita (2 Rs 4.25-37). Outros foram torturados por sua fé.

“E outros experimentaram escámios e açoites, e até cadeias e prisões" (v. 36). Bruce vê aqui uma referência ao profeta Jeremias (Jr 20.2; 20.7; 37.15). O homem que viu a promessa da chegada da Nova Aliança (Jr 31) deve servir de exemplo àqueles que agora viviam esse novo pacto.

“Foram apedrejados, serrados, tentados, mortos a f o da espada; an­ daram vestidos de peles de ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados” (v. 37). As citações são genéricas, mas é possível identifi­ car aqui o apedrejamento de Zacarias (2 Cr 24.20,22; Mt 23.35). C. S. Keener entende que o autor está aludindo aqui a tradição na qual se afirma que o profeta Isaías fora cerrado ao meio.11 É possível associar os vestidos de pelo de cabra ao profeta Elias. O expositor Richard Taylor observou que "a fé em tempos prósperos logo desaparece diante do assalto violento das tempestades que abalam a alma. Se a fé é re­ levante somente para ser feliz e próspera neste mundo, ela não passa de uma muleta débil e inútil de um mundanismo egoísta. A verdadeira fé cristã, por outro lado, encontra seu maior triunfo, não nos feitos visíveis, mas numa confiança e equilíbrio interior quando não existem circunstâncias encorajadoras. A fé mais brilhante é uma fé que é brilhante quando o certo é derrotado e o errado está no trono, quando a vida parece completamente irracional".12 114


Os Gigantes da Fé e o seu Legado para a Igreja “(homens dos quais o mundo não era digno), errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da terra” (v. 38). Esses heróis, dos quais o mundo não era merecedor, que deveriam ser honrados, reco­ nhecidos, viveram como errantes no mundo. Todavia, aceitaram viver uma vida à margem da sociedade do que perder as promessas de Deus.

“E todos estes, tendo tido testemunho pela fé, não alcançaram a promessa" (v. 39). A promessa não alcançada aqui é a mesma que os

crentes judeus deveriam aguardar. Os crentes da Antiga Aliança mor­ reram por ela, e os da Nova devem fazer o mesmo.

"Provendo Deus alguma coisa m elhor a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados" (v. 40). Eles viveram na fé, porém na sombra das promessas. Os crentes da Nova Aliança vivem já a realidade dessa promessa com a morte, ressurreição, glorificação de Cristo e o consequente derramamento do Espírito Santo. O termo grego teleioô, traduzido aqui como aperfeiçoar, tem o sentido de al­ cançar o alvo ou objetivo. Para o autor, só existe um povo de Deus ou igreja, constituída pelos santos da Antiga e Nova aliança. Quando todo o povo de Deus estiver junto, então o alvo foi alcançado. Adam Clarke comenta: "Posto que o evangelho é a última dispensação, os fiéis das dispensações anteriores não podem ser concluídos (aperfeiçoados), mesmo na glória, senão até que a igreja chegue aos céus dos céus”.13

N otas 1 Na carta aos Hebreus, ao contrário do que afirmam muitos mestres modernos, a fé não aparece como uma lei a ser aprendida ou domina­ da. Antes, a fé é vista na esfera relacional entre Deus e os homens que ousaram acreditar nEle e em sua Palavra, e, dessa forma, obtiveram a concretização das suas promessas. 2 RIENECKER, Fritz. Chave Linguística do Novo Testamento. Editora Vida Nova, São Paulo. 3 Uma tradução livre mostra que a fé é a certeza, a garantia das coisas que estamos esperando e a evidência, a prova concreta que teremos aquilo que não estamos vendo. 4 ROGERS, Cleon. Chave Linguística do Novo Testamento. Vida Nova. 5 HEGNER, Donald. Hebreus - novo comentário bíblico contemporâneo. Editora Vida. 6 RIENECKER, Fritz. Chave Linguística do Novo Testamento. Editora Vida Nova, São Paulo. 7 LAUBACH, Fritz. Hebreus - comentário bíblico esperança. Editora Es­ perança. 8 TAYLOR, Richard. Hebreus - comentário bíblico Beacon. CPAD, Rio de Janeiro. 9 BRUCE. F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio. Grand Rapids, Michigan, EUA.

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A Supremacia de Cristo 10F. F. Bruce destaca que "não temos nenhum meio de identificar esta princesa. Uma tradição encontrada no livro dos Jubileus 47.5 e em Josefo (Antiguidades II. 224ss, a chama de Tharmuth ou Thermuthis (uma filha de Ramsés II, cerca de 1290-1225 a.C. Outra atestada por Arabanus (Eusébio, Preparação IX 27) chama-a Merris (de Meri, uma filha de Ramsés II e sua esposa hitita, que, sem dúvida, com toda pro­ babilidade, era mais jovem que o mesmo Moisés). Alguns escritores de épocas mais recentes têm julgado, com a ideia improvável, de que poderia ser Hatshepsut (Cerca de 1500 a.C), princesa e rainha regente da décima oitava Dinastia, filha de Tutmosis I (assim J. Feather, "A Princesa que resgatou Moisés: quem era ela?" ExT xliii (1931-32), pp. 423ss., C. Marston, A Disse a Verdade, [Londres, 1934], pp. L 79s.). É provável que seu pai foi um rei primitivo da décima nona Dinastia (cerca de 1300 a.C.); mais que isso não podermos dizer” (BRUCE, F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio). 11KEENER, C. S. Comentário dei Contexto Cultural de la Biblia. Editora Mundo Hispano. u TAYLOR, Richard. Comentário Bilbico Beacon. CPAD. 13CLARKE, Adam. Hebreos - Comentário de la Santa Biblia. Tomo 111. Casa Nazarena de Publicaciones, Lenexa, Kansas, EUA.

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Exortações Finais na Grande Maratona da Fé

Ir

Com entário de Hebreus 12.1-29 e 13.1-25 icapítulo 12 de Hebreus continua com o tom exortativo caràctep Irístico do autor. Neil R. Lightfoot observa que o capítulo li? não»'e stá isolado dessa seção. Ele destaca que o autor tA i « "combinando fervor e o discernimento religiosos, trata-se de uma brilhante exortação colocada em meio a duas grandes seções apelatórias (10.19-39 e cap. 12) com respeito ao empreendimento cristão. Este capítulo então com eça ou continua um desafio aos leitores para que perseverem na fé até o fim”.1

'

“Portanto, nós também, pois, que estamos rodeados de uma tão gran­ de nuvem de testemunhas, deixemos todo embaraço e o pecado que tão de perto nos rodeia e corramos, com paciência, a carreira que nos está proposta" (v. 1). Tendo discorrido sobre a odisseia dos heróis da fé, o autor introduz um elemento de conclusão de sua longa dissertação sobre o valor da fé na vida do crente. Estamos cercados de todos os lados pelo testemunho daqueles que ousaram acreditar nas promessas de Deus e viver à altura delas. Ele exorta seus leitores a deixar todo embaraço. A palavra grega usada aqui para “embaraço” é onkos, que significa peso, massa, e só aparece aqui no Novo Testamento. Philip E. Hughes destaca que esse termo é usado em relação a um atleta que se despirá para a ação, tanto pela remoção do peso supérfluo — mediante rigoroso treinamento — como pela remoção de todas as suas roupas.2 Muitas coisas à nossa volta não são pecados, mas podem tomar-se um peso do qual precisamos nos livrar.

"olhando para Jesus, autor e consumador da fé, o qual, pelo gozo que lhe estava proposto, suportou a cruz, desprezando a afronta, e assentou-se à destra do trono de Deus" (v. 2). O autor encoraja seus leitores

a olharem para Jesus, e não para as circunstâncias ao redor. Ele é o autor e consumador da nossa fé. O termo grego teleiotés, traduzido aqui como consumador, tem o sentido de “aquilo que é conduzido até o fim”. A ideia é do alvo que foi alcançado. O autor destaca que, a favor da igreja, Cristo trocou a alegria pelo desprezo. Ele suportou a cruz. A palavra "cruz” traduz o termo grego stauros, traduzido como cruz e madeiro.3 A palavra grega kekathiken, traduzido "sentar”, está


A Supremacia de Cristo no perfeito. Esse tempo verbal mostra uma ação feita no passado, mas cujos efeitos continuam no presente. Nesse aspecto, o autor destaca que Cristo, tendo concluído a obra da redenção, assentou-se à destra de Deus e ainda continua lá assentado (Ef 1.20). E mais: no Reino espiritual, nós também estamos assentados com Ele acima de todo principado, potestades, poder, domínios e qualquer nome que se possa referir não só no presente século, mas também no vindouro (Ef 2.6).

"Considerai, pois, aquele que suportou tais contradições dos pecadores contra si mesmo, para que não enfraqueçais, desfalecendo em vossos ânim os" (v. 3). Os crentes hebreus estavam desfalecendo. Deveriam,

portanto, tomar como exemplo Jesus Cristo, que, mesmo sendo ino­ cente, suportou a afronta dos pecadores. “Ainda não resististes até ao sangue, combatendo contra o pecado" (v. 4). Jesus Cristo não apenas suportou o escárnio, o desprezo e a oposição dos pecadores; muito mais do que isso: Ele derramou seu sangue pela humanidade. Era verdade que os cristãos hebreus haviam passado por certas provas e sofrimentos, mas não ao ponto de derramar sangue. Não havia, portanto, razão para recuar. Donald Hegner destaca que "como indica o contexto, não a batalha do crente que evita o pecado (cf. o v. 1), mas a luta para vencer a apostasia. Pode referir-se também ao pecado dos inimigos de Deus que per­ seguem o povo do Senhor, tanto quanto pode relacionar-se ao pecado potencial da apostasia que aflige os leitores. E contra a apostasia que estes devem lutar”.4

“E já vos esquecestes da exortação que argumenta convosco como filhos: Filho meu, não desprezes a correção do Senhor e não desmaies quando, por ele, fores repreendido" (v. 5). Citando Provérbios 3.11, o autor mostra que a prova da fé cristã, longe de sinalizar um abandono de Deus, é uma clara demonstração do seu amor. Aqui, o autor vê o sofrimento que vem como consequência da oposição desse mundo hostil como algo positivo que vai acrescer maturidade à vida do crente. É evidente que o autor não se refere aqui ao sofrimento que foi provocado pelo próprio crente em virtude de seu pecado ou desobediência, nem tampouco naquele que é claramente visto como uma ação de Satanás. Aqui, tem-se em vista o sofrimento de quem vive de forma justa e piedosa e, por causa disso, entra em rota de colisão com o mundo, a carne e o diabo.

“Pois o Senhor corrige ao que ama, e açoita a todo o que recebe p o r filho” (v. 6). Longe de apresentar Deus como um ser sádico, que tem prazer em ver o sofrimento dos outros, o autor continua com sua citação do Antigo Testamento, onde mostra que, muitas vezes, o sofrimento i xerce um papel disciplinador na formação do caráter e identidade do crente. Se sofremos, e Deus se faz presente nesse sofrimento, então o sofrimento é para nosso próprio bem.

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Exortações Finais na Grande Maratona da Fé “É para disciplina que sofreis; Deus vos trata com o a filhos; pois qual é o filho a quem o pai não corrija?” (v. 7). O apóstolo Paulo lembrou que, quando não nos disciplinamos, Deus, então, exerce o seu papel de Pai quando nos disciplina (1 Co 11.31,32). O autor mostra que, se alguma coisa extraordinária estivesse acontecendo entre os hebreus, eles deveriam ver isso não de forma negativa, mas como um agir de Deus para o bem deles. Nem sempre é fácil ver Deus na adversidade. Como Gideão, dizemos: "O S e n h o r nos desamparou" (Jz 6.13). “Mas, se estais sem disciplina , da qual todos são feitos participantes, sois, então, bastardos e não filhos" (v. 8). O filho legítimo necessitava de disciplina e devia ser disciplinado para que tivesse seu caráter bem formado. Todavia, no mundo antigo, o filho ilegítimo não recebia tra­ tamento igual. A palavra grega nothos, “ilegítimo”, não indica apenas “que o pai não está suficientemente interessado neles para lhes infligir o castigo apropriado a seus filhos legítimos, mas, também, deve ser entendida no sentido legal de que um filho ilegítimo não desfruta dos direitos de herança e do direito de participação no culto familiar".5

“Além do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos?" (v. 9). Nesse versículo, a palavra “pais” traduz o grego “paideutes”, de onde se origina a palavra “paideia” e a portuguesa pedagogia. A lógica do autor é bastante simples e prática: se nossos pais terrenos possuem o direito de educar-nos, às vezes tendo que corrigir comportamentos errados, da mesma forma Deus não pode fazer o mesmo conosco? Se respeitamos nossos pais, que nos disciplinam, e não os abandonamos de forma alguma, então por que vamos desistir da fé quando alguma situação adversa surge na nossa caminhada espiritual? O contraste é feito entre “pais segundo a carne”, que tem o sentido de “pais terrenos”, com "Pai dos espíritos", que tem o sentido de “Pai celeste” ou “Pai espiritual".

“Porque aqueles, na verdade, p o r um pouco de tempo, nos corrigiam com o bem lhes parecia; mas este, para nosso proveito, para sermos par­ ticipantes da sua santidade” (v. 10). Visando um bem maior, nossos

pais nos corrigiam conforme melhor lhes parecia. Às vezes, as suas intenções eram boas, mas a forma como faziam poderia não ser ade­ quada. Por outro lado, Deus, como nosso Pai, corrige-nos visando um bem maior e da forma correta. O alvo da correção ou prova espiritual é a nossa participação na santidade de Deus. Não podemos servir a Deus de qualquer forma, visto ser Ele um Deus santo; precisamos nos manter separados daquilo que ofende a sua santidade.

“E, na verdade, toda correção, ao presente, não parece ser de gozo, senão de tristeza, mas, depois, produz um fruto pacífico de justiça nos

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A Supremacia de Cristo exercitados por ela" (v. 11). Nenhuma criança (e adulto também) gosta de ser repreendido ou corrigido. A repreensão mostra-se desconfortável principalmente no momento em que é feita. Todavia, o autor mostra que o Pai celeste sabe que ela é necessária e, por isso, corrige-nos segundo melhor lhe parece. Há muitas famílias e até mesmo igrejas destroçadas por omissão e descaso na aplicação da disciplina bíblica. Se praticarmos a disciplina, ou, como diz o autor, nela nos exercitarmos, seremos cristãos bem formados espiritualmente. "Portanto, tom ai a levantar as mãos cansadas e os joelhos descon­ juntados” (v. 12). Como faz com frequência, o autor fundamenta suas exortações com passagens da Bíblia. Aqui, ele recorre a Isaías 35.3 da tradução dos LXX. Há muitas semelhanças entre o que Isaías diz para o antigo Israel com aquilo que o autor vem falando para seus leitores hebreus. A linguagem figurada mostra que é preciso vencer o cansaço e a fadiga que surge na caminhada.

“E fazei veredas direitas para os vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente; antes, seja sarado” (v. 13). A metáfora é a de um atleta em plena corrida que poderia “desviar-se” da rota que lhe foi traçada. O termo "desviar" usado pelo autor ocorre outras quatro vezes no texto grego (ektrapé) e, em todas as vezes, são de uso paulino. Duas dessas ocorrências paulinas mantêm o mesmo sentido que o au­ tor demonstra aqui. Em 1 Timóteo 1.6, é usado para referir-se àqueles que se haviam desviado da sã doutrina para seguir as fábulas. Em 1 Timóteo 5.15, o apóstolo usa em referência às viúvas que se haviam desviado seguindo a Satanás. O perigo de perder o rumo existe, e é por isso que é preciso vigilância e cuidado.

“Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor" (v. 14). O autor volta à santidade sobre a qual já se havia refe­ rido em Hebreus 12.10. O termo "santidade” traduz o grego hagiasmós, que, nesse contexto, tem um sentido mais relacional do que cerimonial. Aqui, o autor usa "santidade” para referir-se ao relacionamento do crente com Deus. Não se trata de uma forma de prática legalista, mas, sim, da intimidade do cristão com o Senhor.

“Tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e p o r ela m uitos se contam inem " (v. 15). O autor mantém seu tom exortativo. Aqui, ele exige cuidado e supervisão (gr. episkopeo) de seus ouvintes para não se privarem da graça de Deus. Os expositores Wilfrid Haubeck e Heinrich Von Siebenthal destacam que a expressão “hysteron apo charitos (privar da graça de Deus) tem o sentido de "ficar para trás / não chegar ao destino (na competição) e, assim, perder a graça”.6 O expositor George Wesley Buchanan observa que, aqui, o autor tenha ainda em mente a m etáfora da corrida atlética e adapta à corrida c ristã. Buchanan destaca que o autor tem em mente alguma coisa que

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Exortações Finais na Grande Maratona da Fé pode conduzir à idolatria e à apostasia.7 Para Richard Taylor, essas palavras do autor de Hebreus também realçam o aspecto metafórico por ele descrito, só que em referência aos aspectos da vida cristã, e não propriamente às pessoas. “Como as mãos são uma metáfora de serviço, e joelhos são uma figura de atitude (quer corajosa ou ansiosa), assim os pés são uma figura do caminhar cristão diário. Se este ca­ minhar é cambaleante e tortuoso, nossa fraqueza se tomará pior, e nossa influência sobre os outros será prejudicada. Deus deseja a cura; mas nem as nossas próprias almas nem a nossa influência serão curadas a não ser que estejamos dispostos a corrigir o que está errado em nossas vidas. O arrependimento é o pré-requisito para a cura da alma".8

"E ninguém seja devasso, ou profano com o Esaú, que por uma sim­ ples refeição vendeu o seu direito de primogenitura” (v. 16). A palavra “devasso" usada aqui traduz o termo grego pom ôs, da mesma raiz de pornográfico, prostituição e imoralidade. No Antigo Testamento, é bastante comum esse vocábulo ser usado em relação à idolatria como uma forma de prostituição. Aqui, o contexto sugere o uso desse sentido, pois, ao vender o seu direito de primogenitura, Esaú agiu com uma mentalidade materialista e avarenta. Ele valorizou mais o seu desejo que as bênçãos espirituais. Paulo afirma que a avareza é uma forma de idolatria (Cl 3.5). Por outro lado, o termo “profano”, do grego bébelos, está relacionado à falta de religiosidade de Esaú, que o fez perder a sua bênção.

“Porque bem sabeis que, querendo ele ainda depois herdar a bênção, fo i rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, ainda que, com lágrimas o buscou” (v. 17). O autor usa o exemplo de Esaú como

uma metáfora de como devem ser tratadas as coisas espirituais. Esaú serve para exemplificar que há casos em que o arrependimento pode ser tardio.9 O expositor Richard Taylor comenta que “Esaú pode ter alcançado arrependimento para a salvação eterna, mas não readquiriu seu direito de primogenitura (...). Persistir em vender santidade, que é o nosso direito de primogenitura, pelo prato de lentilhas que este mundo oferece vai finalmente selar nossa condenação. Há esperança para o relapso, mas não há esperança para o apóstata absoluto, e não haverá uma 'segunda chance’ após a morte”10. No caso de Esaú, foi a bênção da primogenitura; no caso dos He­ breus, era a promessa da salvação. 121


A Supremacia de Cristo “Porque não chegastes ao monte palpável, aceso em fogo, e à escuridão, e às trevas, e à tempestade" (v. 18). Aqui, o autor usa os textos da Septuaginta de Deuteronômio 4.11; 5.22-25 e Êxodo 19.12-19. Os eventos do Sinai, onde houve manifestações físicas da presença divina, servem para mostrar como o povo da Antiga Aliança comportou-se diante dessas manifestações. Adam Clarke destaca que o propósito do escritor era "demonstrar que a dispensação da lei gera terror; que era terrível e exclusiva; que pertencia somente ao povo judeu".11 Por outro lado, Bruce vê aqui uma advertência dada pelo autor de Hebreus àqueles que começaram, mas estavam voltando atrás. Aqueles que são fiéis não devem temer nada.12

“E ao sonido da trombeta, e à voz das palavras, a qual, os que a ou ­ viram pediram que se lhes não falasse mais” (v. 19). Êxodo 19 mostra a sequência de eventos quando Deus revelou-se. A santidade de Deus é demonstrada aos israelitas de uma forma imponente em Êxodo 20.1821. C. S. Keener destaca que, naquela ocasião. Deus quis provocar no povo o temor a fim de que eles parassem de pecar.13

"Porque não podiam suportar o que se lhes mandava: Se até um animal tocar o monte, será apedrejado” (v. 20). Deus é tremendamente santo e, aqui, os parâmetros sobre a sua santidade atingiam até os animais (Nm 17.3).

“E tão terrível era a visão, que Moisés disse: Estou todo assombrado e tremendo” (v. 21). Diante da manifestação da glória de Deus, até mesmo Moisés ficou assustado. No livro de Deuteronômio, ele diz: "Porque temi por causa da ira e do furor com que o S e n h o r tanto estava irado contra vós, para vos destruir; porém, ainda por esta vez, o S e n h o r me ouviu" (Dt 9.19). Donald Guthrie destaca que: "Não há nenhum registro específico no Antigo Testamento de que Moisés tenha dito: Sinto-me aterrado e trêmulo na ocasião da outorga da lei, mas a ocorrência da tremedeira não é difícil de se imaginar nessas circunstâncias. A declaração mais próxima é Deuteronômio 9.19, que registra que Moisés relembra o temor que sentira. Além disso, há referência ao seu temor diante da sarça ardente (Êx 3.6), fato este que Estêvão nota em Atos 7.32. Este terror da parte de Moisés termina abruptamente o comentário do escritor sobre a velha ordem. Seu interesse centraliza-se na nova ordem”.14

“Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos" (v. 22). O cenário muda do monte Sinai para o monte Sião; da Jerusalém terrena para a Jerusalém celestial; das figuras humanas para as figuras angélicas. Aqui, os anjos aparecem não como seres a serem adorados, mas como adoradores de Deus juntamente com os remidos. 122


Exortações Finais na Grande Maratona da Fé “Á universal assembleia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados" (v. 23). Esse versículo é mais bem traduzido na Bíblia de Jerusalém: “com a igreja toda, na qual todos são ‘primogênitos’ e cidadãos do céu.” A expressão "espíritos dos justos aperfeiçoados” é uma referência a todos os crentes que completaram suas carreiras, que chegaram ao alvo desejado. É o mesmo termo grego que o autor usou em Hebreus 5.9.

"E a Jesus, o Mediador de uma nova aliança, e ao sangue da asper­ são, que fala melhor do que o de Abel” (v. 24). O relato de Gênesis 4.10 mostra que o sangue de Abel clama justiça. Na tradição rabínica, ele continuava clamando contra Caim. Esse conceito do “sangue que clama” também é lembrado por Jesus: “para que sobre vós caia todo o sangue justo, que foi derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo, até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o santuário e o altar” (Mt 23.35). Aqui, o contraste é entre o sangue do justo Abel, assassinado injustamente, e o sangue de Cristo, o Cordeiro de Deus imaculado e Mediador de um novo pacto, que foi entregue e morto por todos os homens. F. F. Bruce destaca que "O sangue de Abel clamou a Deus desde a terra, ele está protes­ tando contra o seu assassinato e reivindicando vingança; mas o sangue de Cristo traz uma mensagem de limpeza, perdão e paz com Deus para todos os que depositam sua fé nele".15

"Vede que não rejeiteis ao que fala; porque, se não escaparam aqueles que rejeitaram o que na terra os advertia, m uito menos nós, se nos des­ viarmos daquele que é dos céus" (v. 25). Com Êxodo 20.19 em mente, o autor volta ao seu característico tom exortativo. Se a quebra da Lei, que foi outorgada na terra, no Sinai, trouxe consequências para os desobe­ dientes, muito mais responsabilidade tem aqueles que são advertidos e que participam de uma aliança superior, que vem diretamente do céu.

“A voz do qual moveu, então, a terra, mas, agora, anunciou, dizendo: Ainda uma vez comoverei, não só a terra, senão também o céu” (v. 26). Esse versículo remete a Êxodo 19.18 e Salmos 68.8. No passado, na outorga da Lei, a voz de Deus foi ouvida como um estrondo. Na Nova Aliança, essa voz será ouvida no futuro, cumprindo a profecia de Ageu 2.6: “Porque assim diz o S e n h o r dos Exércitos: Ainda uma vez, daqui a pouco, e farei tremer os céus, e a terra, e o mar, e a terra seca”. O autor de Hebreus usa esse texto como uma referência aos eventos escatológicos finais.

“E esta palavra: Ainda uma vez, mostra a mudança das coisas móveis, com o coisas feitas, para que as imóveis permaneçam" (v. 27). A velha ordem dará lugar a uma nova ordem. A ideia aqui é que tudo o que existe será “sacudido” e só as coisas que são inabaláveis permanecerão.

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A Supremacia de Cristo Donald Hegner sublinha que: “As palavras ainda uma vez, extraídas da citação, explicam-se como referência ao julgamento escatológico (diferentemente do abalamento’ ou ‘sacudidela’ anterior); este abalar envolve purificação das coisas criadas (lit., como de coisas feitas’) para que (ou a fim de que’) só as (coisas) inabaláveis per­ maneçam, e mais nada. Mas as coisas que são abaláveis de fato serão abaladas; e isto é o que faz que a perspectiva do julgamento escatológico seja uma coisa terrível, (cf. v. 29)”.16

"Pelo que, tendo recebido um Reino que não pode ser abalado, retenha­ mos a graça, pela qual sirvamos a Deus agradavelmente com reverência e piedade” (v. 28). Aqui, o contraste é feito entre o mutável e o imutável; entre o que é abalável e o inabalável. A natureza do reino espiritual do qual todos os crentes fazem parte não sofre desgastes pelo tempo nem tampouco poderá ser substituído. Como participantes desse reino, a atitude do adorador é de um coração reverente e cheio de temor. “Porque o nosso Deus é um fogo consum idor” (v. 29). Aqui, o autor tem em mente Deuteronômio 4.24, que fala de um "Deus zeloso”. Diante de um Deus tão grande e de uma revelação tão completa, o crente não pode agir com indiferença.17 A conclusão da carta aos Hebreus no capítulo 13 segue o modelo das demais cartas neotestamentárias. Tendo terminado a sua longa exposição teológica, o autor conclui sua redação com alguns conselhos e recomendações práticas. Na verdade, essa conclusão apresenta-se como uma forma de "complemento”, onde algumas exortações já feitas no corpo da carta são trazidas à tona, porém de uma forma menos complexa. Muito da identidade do autor é revelada aqui. Um homem humilde, piedoso, compromissado e cheio de amor por seus irmãos aos quais ele queria ver com animo, fé e esperança em tempos de apostasia. “Permaneça o amor fraternal" (v. 1). O verbo grego usado aqui, menô, está no presente imperativo. O presente contínuo indica um a ação habitual ou contínua. O autor começa a conclusão de sua carta com uma ordem ou mandamento. O sentido é: “continuem permanecendo no amor fraternal’’. “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque, por ela, alguns, não o sabendo, hospedaram anjos” (v. 2). O autor lembra seus leitores de serem hospitaleiros. Essa palavra (philonexenia ) é também usada por Paulo em Romanos 12.13. Visto os constantes deslocamentos e as precárias acomodações existentes, a hospitalidade era algo extremamente neces­ sário. Aqui, ela surge como uma demonstração de amor, comunhão e uma troca de bênçãos recíprocas. Como hospedeiro, Abraão acolheu a anjos (Gn 18.1-8).

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Exortações Finais na Grande Maratona da Fé “Lembrai-vos dos presos, com o se estivésseis presos com eles, e dos maltratados, com o sendo-o vós mesmos também no corpo" (v. 3). É possível que, nessa passagem, o autor esteja se referindo aos cristãos encarcerados por causa de sua fé. No primeiro século, os presos, em alguns casos, não possuíam nem mesmo direito à alimentação. Eles dependiam de terceiros para prover-lhes o necessário.

“Venerado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula; porém aos que se dão à prostituição e aos adúlteros Deus os julgará" (v. 4). A visão sobre

a relação sexual entre os gregos e romanos era muito diferente daquela que existia entre os hebreus. No mundo greco-romano, a prática sexual não possuía os limites que a cultura judaica estabelecia. A pederastia, relação sexual entre uma pessoa mais velha e uma mais jovem, era uma prática que tinha amparo legal. Foi dito que Nero, o impiedoso imperador romano, era o homem de toda mulher e a mulher de todo homem. Sabendo que a prática sexual era vista de forma distorcida nos seus dias, o autor exorta os seus leitores a manterem a pureza sexual. A forma estabelecida por Deus era a prática do sexo dentro da esfera matrimonial.

“Sejam vossos costumes sem avareza, contentando-vos com o que tendes; porque ele disse: Não te deixarei, nem te desampararei" (v. 5). Aqui, a exortação do autor direciona-se contra a avareza. A palavra grega aphilargyros, usada no versículo como "avareza", tem o sentido

de “sem amor ao dinheiro”. Esse mesmo termo grego é usado em 1 Timóteo 3.3. Possuir dinheiro não é pecado, mas amar o dinheiro é. O conselho do autor é buscar o contentamento. Aqui, ele lembra as promessas de Deus a Josué, onde o Senhor mostra seu cuidado com o grande comandante de Israel (Js 1.5).

“E, assim, com confiança, ousemos dizer: O Senhor é o meu ajudador, e não temerei o que me possa fazer o hom em" (v. 6). Tendo em mente

o Salmo 118.6, o autor lembra os seus leitores da fidelidade de Deus. Esse versículo é bem significativo quando o contemplamos dentro da exortação que o autor vem fazendo. Numa época de perseguição, espólio, sofrimento e até mesmo morte, o crente necessita descansar nas promessas de Deus.

“Lembrai-vos dos vossos pastores, que vos falaram a palavra de Deus, a fé dos quais imitai, atentando para a sua maneira de viver" (v. 7). A palavra "pastores” traduz o vocábulo grego hégeomai, que aparece 20 vezes no Novo Testamento. O autor de hebreus utiliza esse termo seis vezes, sendo três delas neste capítulo.18 Na maioria das vezes, esse termo é aplicar a um "líder”. Dessa forma, Paulo exorta aos Tessalonicenses (1 Ts 5.13); Estevão usa essa palavra para referir-se a José como “governador" do Egito (At 7.10); em Hebreus 13.17, o autor usa essa palavra para exortar seus leitores a serem obedientes a seus pastores. O sentido aqui, portanto, é o de submissão, e não o de subserviência, dos liderados frente a seus líderes ou pastores.

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A Supremacia de Cristo “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e eternamente" (v. 8). O expositor bíblico Donald Hegner expôs com precisão esse versículo: “A ênfase maior desse versículo é que Jesus Cristo, por causa de sua obra do passado e do presente, é infinitamente capaz de satisfazer todas as necessidades de todos os cristãos. Isto se tom a aparente não só a partir do contexto, mas também pela estrutura do próprio versículo que diz, literalmente: ‘Jesus Cristo ontem e hoje é o mesmo, e até as eras.’ Sua obra de ontem, a obra sacrificial e expiatória como sumo sacerdote, foi exposta pelo autor de Hebreus com profun­ didade. É a própria base do cristianismo. Hoje a obra de Cristo prossegue, na intercessão que ele faz pear nós, à mão direita do Pai (7.25; cf. 4.14-16)”.19

“Não vos deixeis levar em redor por doutrinas várias e estranhas, porque bom é que o coração se fortifique com graça e não com manjares, que de nada aproveitaram aos que a eles se entregaram" (v. 9). Durante sua exposição sobre a doutrina do sacerdócio, o autor havia deixado bem claro que a Antiga Aliança, com todo o cerimonialismo levítico, havia sido substituída por uma Nova Aliança e um novo sacerdócio. Dentro da velha ordem, havia leis minuciosas sobre o que era considerado limpo e imundo (Dt 4.3-20). Ao acharem que essas regras tornavam Israel melhor do que os outros povos, eles acabaram desenvolvendo uma atitude legalista em relação às mesmas. Para o autor, essas prá­ ticas não foram capazes de justificar ninguém diante de Deus. O que importava, portanto, não era a observância meticulosa dessas leis, mas, sim, um coração limpo e cheio da graça de Deus.

“Temos um altar de que não têm direito de com er os que servem ao tabernáculo” (v. 10). Usando uma linguagem metafórica, o autor usa a cruz como sendo o altar do cristão. Os judeus que insistiam em cultuar a Deus valendo-se do antigo cerimonial levítico estavam excluídos da verdadeira adoração cristã. Era uma coisa ou outra. Quem insistisse em participar do velho sistema estava excluído do novo.

“Porque os corpos dos animais cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo sumo sacerdote para o Santuário, são queimados fora do arraial” (v. 11). Levítico 9.11 e Números 9.13 descrevem os vários rituais de sacrifícios que eram realizados fora do acampamento. O expositor C. S. Keener observa acertadamente que a referência, nesse versículo, é ao dia da expiação, quando o sumo sacerdote entrava no Santo dos Santos com o sangue do sacrifício (Lv 16.27). Jesus cumpriu esse sa­ crifício no altar celestial.20

“E, p o r isso, também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta” (v. 12). Nessa passagem, o autor esta­ is


Exortações Finais na Grande Maratona da Fé belece um paralelo entre os sacrifícios realizados no dia da expiação e o sacrifício de Jesus. Naquela ocasião, os corpos dos animais sacrifi­ cados eram queimados fora do acampamento. O relato em João 19.20 demonstra o fato de Jesus ter sido crucificado fora da cidade. O sumo sacerdote entrava no santuário com o sangue de animais para fazer o ritual da purificação; Jesus, todavia, com seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos para santificar o povo. “Saiamos, pois , a ele fora do arraial, levando o seu vitu pério" (v. 13). Esse versículo dá sequência à argumentação do autor no verso anterior. Aqui, o convite é para os crentes deixarem o velho sistema e abraçarem o novo. Seguir a Jesus significa tomar a sua cruz e levar o seu vitupério. O termo grego oneidismos (vitupério) ocorre cinco vezes no Novo Testamento e significa "insulto”, "opróbrio". Esse termo já havia sido usado pelo autor de Hebreus no capítulo 11.26 para referir-se à "desonra" (NVI) que Moisés sofreu por ter abandonado as glórias do Egito. Seguir a Cristo é recompensador, mas quem o segue de verdade não terá os aplausos do mundo.

"Porque não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a futura"

(v. 14). A cultura judaica antiga alimentava a esperança numa Jerusalém vindoura, que não podia ser encontrada aqui na terra. Para o autor de Hebreus, essa Jerusalém já existe e é para lá que os cristãos devem ansiar ir. Aqui, o contexto sugere que o autor tem consciência da luta dos cristãos primitivos e não quer vê-los alimentando expectativas com o velho sistema, simbolizado aqui pela Jerusalém terrena.

“Portanto, ofereçamos sempre, p o r ele, a Deus sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o seu nome” (v. 15). Seguindo

o texto de Oseias 14.3 da Septuaginta, o autor entra na dinâmica do culto cristão. O sacrifício do cristão é feito através da adoração e lou­ vor que ele presta a Deus. Cristo ofereceu-se a si mesmo a Deus, e o cristão, por meio de Cristo, deve render sacrifícios espirituais. Uma tradição judaica afirmava que todos os sacrifícios mosaicos teriam um fim, exceto a gratidão, e todas as orações encerrariam, exceto a de ações de graças.21

“E não vos esqueçais da beneficência e comunicação, porque, com tais sacrifícios, Deus se agrada" (v. 16). Aqui, há um paralelo entre Atos

4.32-33, onde é descrito como vivia a comunidade primitiva. A exorta­ ção é para que os crentes não negligenciem práticas que são saudáveis e necessárias na vida cristã. As palavras “beneficência" e "comunhão" traduzem os termos gregos eupoiia e koinonia, respectivamente, que, neste contexto, significam "prática do bem” e "mútua cooperação”.

"Obedecei a vossos pastores e sujeitai-vos a eles; porque velam por vossa alma, com o aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria ú til" (v. 17). Mais uma vez, como já havia feito (v. 7), o autor chama a atenção para a

ta?


A Supremacia de Cristo relação líder-liderado. Aqui, o contexto sugere que o termo egoumenois (pastor) tem o sentido de alguém que supervisiona ou pastoreia uma comunidade. Eles devem ser objeto de respeito, amor e consideração devido à obra que realizam (1 Ts 5.13). O trabalho pastoral transcende em muito o aspecto material ou físico. Aqui, o autor diz que o super­ visor ou pastor tem a missão de “vigiar”, “estar alerta e vigilante” pela congregação, porque, segundo o autor de Hebreus, ele está consciente que prestará contas sobre a mesma. Tendo sobre seus ombros tão grande responsabilidade, seria um fardo a mais suportar a indiferença de seus liderados.

“Orai por nós, porque confiamos que temos boa consciência, com o aqueles que em tudo querem portar-se honestamente" (v. 18). Embora não saibamos quem escreveu esta carta, suas palavras revelam o caráter de um homem de Deus. Com humildade, ele pede oração a seus leitores, mostrando que a sua obra foi feita com a consciência de quem quer agradar a Deus, e não a si mesmo.

“E rogo-vos, com instância, que assim o façais para que eu mais de­ pressa vos seja restituído" (v. 19). Nesse versículo, alguns argumentam que o autor revela estar encarcerado, mas F. F. Bruce, tendo em vista o versículo 23, discorda dessa opinião. O fato é que o autor acredita fortemente no poder da oração e pede todo o empenho da comunidade em favor dele.

“Ora, o Deus de paz, que pelo sangue do concerto eterno tomou a trazer dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande Pastor das ovelhas" (v. 20). Esse versículo é mais bem compreendido dentro da tipologia do Êxodo: “Todavia, se lembrou dos dias da antiguidade, de Moisés e do seu povo, dizendo: Onde está aquele que os fez subir do mar com os pastores do seu rebanho? Onde está aquele que pôs no meio deles o seu Espírito Santo?" (Is 63.11). A imagem é aquela de Moisés como o pastor do povo de Deus na travessia do mar (Sl 77.20). Aqui, a metáfora, como observa Bruce, é que Jesus, o grande Pastor, assim como Moisés, foi trazido não do mar, mas do domínio da morte.22

“Vos aperfeiçoe em toda a boa obra, para fazerdes a sua vontade, operando em vós o que perante ele é agradável p o r Cristo Jesus, ao qual seja glória para todo o sempre. Am ém !” (v. 21). Aqui, o autor expressa o seu desejo de ver seus leitores sendo capacitados e aperfeiçoados no servir a Deus. O Senhor é a fonte dessa graça que habilita os crentes a realizarem sua vontade.

“Rogo-vos, porém, irmãos, que suporteis a palavra desta exortação; porque abreviadamente vos escrevi" (v. 22). O autor tem consciência de que foi incisivo em muitos pontos de sua argumentação e que fora duro em muitos deles. Todavia, isso não era tudo. Ele poderia ter dito muito mais, porém o que fora apresentado era suficiente. Agora, ele rogava-os que essa palavra de exortação deveria ser acolhida. 128


Exortações Finais na Grande Maratona da Fé “Sabei que já está solto o irmão Timóteo, com o qual (se vier depressa) vos verei" (v. 23). Aqui, é dada um a informação sobre Tim óteo que não aparece nos demais escritos neotestamentários — a libertação de Timóteo da prisão. Essa era uma boa notícia para todos os crentes, já que Timóteo, um discípulo de Paulo, era querido por toda a igreja.

“Saudai todos os vossos chefes e todos os santos. Os da Itália vos saúdam” (v. 24). Mais uma vez, como já havia feito, o autor demonstra

um carinho e um respeito muito grande pelos supervisores da obra de Deus. Ele recomenda saudações a todos, juntamente com todos os crentes. “A graça seja com todos vós. Am ém !” (v. 25). O autor termina sua carta como o faz os demais escritores do Novo Testamento: recomen­ dando a todos a graça de Deus. Uma carta que começou com a graça, agora termina também com a graça. Amém.

N otas 1 LIGHTFOOT, Neil R. Hebreus - comentário vida cristã. Editora Vida Cristã. 2 FRITZ, Rienecker. Chave Linguística do Novo Testamento. Vida Nova. 3 Stauros, tanto no Antigo com o n o N o v o Testamento, recebe vários significados quando é traduzida. O seu significado, portanto, não pode ser dado isolado do seu contexto (para um estudo exaustivo sobre essa palavra, veja: GONÇALVES, José. Defendendo o Verdadeiro Evangelho. CPAD, Rio de Janeiro, 2009). 4 HEGNER, Donald. Hebreus - comentário bíblico contemporâneo. Editora Vida. 5 RIENECKER, Fritz. Chave Linguística do Novo Testamento. Vida Nova. 6 HAUBECK, Wilfrid e SIEBENTHAL, Heinrich Von. Nova Chave Lin­ guística do Novo Testamento Grego. Hagnus. 7 BUCHANAN, George Wesley. To The Hebrews - The Anchor Bible. Doubleday & Company, INC. Garden City, Nova York, EUA, 1972. 8 TAYLOR, Richard. Hebreus - comentário bíblico Beacon. CPAD, Rio de Janeiro. 9 A mesma palavra arrependimento usada aqui, metanoia, também é usada em Hebreus 6.4-6. 10TAYLOR, Richard. Hebreus - comentário bíblico Beacon. CPAD, Rio de Janeiro. 11CLARKE, Adam. Hebreus - comentário de la Santa Biblia - Novo Testa­ mento, Tomo III. Casa Nazarena de Publicaciones. 12BRUCE, F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio. 13KEENER, C. S. Comentário al Contexto Cultural dei Nuevo Testamento. Mundo Hispano. 14GUTRHIE, Donald. Hebreus - introdução e comentário. Editora Vida Nova. 15BRUCE, F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio.

m


A Supremacia de Cristo 16HEGNER, Donald. Hebreos - novo comentário contemporâneo. Editora Vida. 17 KEENER, C. S. Comentário al Contexto Cultural del Nuevo Testamento. Mundo Hispano. 18 FRIBERG, Timothy e FRIBERG, Barbara. Analytical Concordance o f the Greek New Testament, vol. 1, lexical focus. Baker Book House, Grand Rapids, Michigan, EUA. 19 HEGNER, Donald. Hebreus - novo comentário bíblico contemporâneo. Editora Vida. 20 KEENER, C. S. Hebreos - comentário al contexto cultural de la Biblia. Mundo Hispano. 21 RIENECKER, Fritz. Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Vida Nova. 22 BRUCE, F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio.

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Apêndice

A Segurança Condicional do Crente uma Análise da Apostasia na Carta aos Hebreus fj £ “ T "e n d e cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de I vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo” (Hb 3.12, ARA). "É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tomaram participantes do Espírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb 6.4-6, ARA). "Porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certeza expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os adversários. Sem misericórdia morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado a lei de Moisés. De quanto mais severo castigo julgais vós será considerado digno aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança com o qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da Graça? (Hb 10.26-29, ARA).

I

F é , esperança e  nimo em T empo de A postasia Longe de querer provocar insegurança nos seus leitores, o autor de Hebreus tenciona conduzi-los à maturidade cristã. O seu desejo é produzir ânimo, esperança e fé em tempos de apostasia: “Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma di­ ligência para a plena certeza da esperança” (Hb 6.11, ARA). Todavia, sem ignorar os perigos da caminhada, ele faz severas advertências. Os perigos existem: "Tende cuidado, irmãos, jamais aconteça haver em qualquer de vós perverso coração de incredulidade que vos afaste do Deus vivo" (Hb 3.12). Os exemplos dos crentes da Antiga Aliança que morreram no deserto e que por isso foram impedidos de entrar na Terra Prometida são usados por ele para dar o sinal de alerta: "Mas com quem se indignou por quarenta anos? Não foi, porventura, com os que pecaram, cujos corpos caíram no deserto?” (Hb 3.17). Se aqueles crentes tombaram no deserto porque permitiram que seus corações fossem endurecidos pelo engano do pecado, da mesma forma os crenta» •é


A Supremacia de Cristo da Nova Aliança também poderiam cometer o mesmo erro e ficar pelo caminho “Antes, exortai-vos uns aos outros todos os dias, durante o tempo que se chama Hoje, para que nenhum de vós se endureça pelo engano do pecado” (Hb 3.13). Um coração incrédulo e endurecido pelo pecado foi a causa que impediu os crentes do antigo concerto de entrar no descanso provido por Deus: “E vemos que não puderam entrar por causa da sua incredulidade” (Hb 3.19). Todavia, o autor de Hebreus lembra seus leitores de que aquele não havia sido, de fato, o descanso verdadeiro. Havia sido apenas um tipo daquele que Cristo veio prover: "Procuremos, pois, entrar naquele repouso, para que ninguém caia no mesmo exemplo de desobediência” (Hb 4.11). Aquele fora um descanso terreno; aqui, o celestial: "Porque, se Josué lhes houvesse dado repouso, não falaria, depois disso, de outro dia. Portanto, resta ainda um repouso para o povo de Deus (Hb 4.8,9).

U m a A liança S uperior , um S acerdote S uperior , um S acrifício S uperior Dentro da temática abordada, o autor traz à tona o assunto do sa­ cerdócio e, parenteticamente, continua com sua exortação. Todo o sistema sacerdotal levítico, com seu complexo sistema ritualístico, era apenas uma sombra do qual Cristo era a realidade (Hb 8.5). Com a manifestação de Cristo, tudo aquilo ficara antiquado, obsoleto e sem valor. Voltar atrás, portanto, era perder a realidade para mergulhar nas sombras! A antiga ordem sacerdotal passara e, em seu lugar, outra se havia estabelecido: uma ordem sacerdotal superior a de Melquisedeque, da qual Cristo tornara-se sumo sacerdote (Hb 5.10). Uma verdade chocante — que, com toda a segurança, provocaria espanto nos judeus piedosos — estava sendo demonstrada pelo autor: Toda a lei, bem como o sistema de sacrifícios levítico, havia sido abolida! Não havia como tentar viver por eles novamente. Chamando “Nova" essa aliança, ele tom ou antiquada a primeira; e "o que foi tom ado velho e se envelhece perto está de acabar” (Hb 8.13). A Nova Aliança havia sido implantada e não fora estabelecida com base em sangue de animais, mas no sangue de Cristo (Hb 9.12). Voltar ao velho sistema era negar a eficácia desse sangue, era negar a Cristo. O autor alerta que quem agisse dessa maneira estaria renegando de vez o Filho de Deus (Hb 6.4-6) e, por isso, seria objeto de um juízo severo (Hb 10.29). Quem agisse dessa forma estaria cometendo apostasia, e, para o apóstata, o autor alerta que “é impossível que os que já uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se fizeram participantes do E s­ pírito Santo, e provaram a boa palavra de Deus e as virtudes

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Apêndice do século futuro, e recaíram sejam outra vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo crucifi­ caram o Filho de Deus e o expõem ao vitupério" (Hb 6.4-6).

A postasia , D esvio e T ropeço É praticamente um consenso entre a erudição bíblica que os textos acima citados referem-se à apostasia ou queda da fé. Porém, antes de analisar essas passagens bíblicas, algumas definições são necessárias. Para a Enciclopédia Judaica, o term o apostasia é aplicado às pessoas que desertaram da fé, trocando a sua adoração por outra.1 De acordo com Katharine Doob Sakenfeld, "A palavra apostasia deriva do grego apostasia, que significa ‘um afastar-se de’ ou 'rebelar-se'. Em bora originalmente essa palavra se referia a uma rebelião política ou militar, durante o império greco-romano também veio a significar rebelião religiosa”.2 O substantivo apostasia aparece em Atos 21.21 e em 2 Tessalonicenses 2.3. Já o verbo aphistemi, de onde se originou apostasia, é traduzido pelo léxico de Thayer como cair, tomar-se infiel a Deus.3 Nesse senti­ do, é usado em 1 Timóteo 4.1 como referência àqueles que haveriam de apostatar da fé.4 Em Hebreus 3.12, o verbo aphistemi aparece no infinitivo aoristo com o sentido de cair, deixar, afastar, 5 O léxico de Kittel destaca que, em Hebreus 3.12, é usado expressamente acerca do declínio religioso em relação a Deus. Nesse aspecto, o oposto de apostasia é dado pelo autor de Hebreus em 3.14: "Porque nos tornamos participantes de Cristo, se retivermos firmemente o princípio da nossa confiança até ao fim”.6 O léxico de Bauer destaca que o termo aphistemi é muitas vezes usado na LXX, principalmente com o sentido de “cair diante de Deus", destacando que, em Hebreus 3.12, seu sentido é o de "cair” e "apostatar”.7 Das mais de 160 ocorrências de aphistemi na Septuaginta, 28 delas são claramente associadas à apostasia religiosa promovida por Jeroboão, filho de Nebate, e os reis que o seguiram.8 No Novo Testamento, o termo ocorre 14 vezes, sendo um deles de uso paulino (1 Tm 4.1), e o outro do autor de Hebreus (Hb 3.12). Nessas duas últimas referências, o contexto sugere um sentido de uma apos­ tasia religiosa nos moldes do Antigo Testamento. Não exatamente na forma, mas, sim, nos princípios que a motivaram.9Além desse vocábulo grego, há muitos outros usados na Bíblia para referir-se à apostasia. A obra The New Interpreters Dictionary ofth e Bible destaca que a apos­ tasia, descrita comumente pelos termos hebraico (meshuvah) e grego (apostasia), é descrita de várias formas nas Escrituras:

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A Supremacia de Cristo “A Bíblia relata numerosos casos de apostasia, embora sem usar o vocabulário hebraico e grego acima mencionado; por exemplo, a ‘rebelião’ de Saul (1 Sm 15.22-23) e aqueles que foram ‘iluminados’, mas que ‘caíram’ (Hb 6.4-6)".'° De início, é bom lembrar que a apostasia não é um pecado qualquer, nem tampouco um tropeço que o cristão teve na sua caminhada. Não é um mero desvio moral ou acidente espiritual. Fritz Laubach define como "uma ruptura completa da vida com Jesus, o abandono da verdade divina experimentada”.110 expositor I. Howard Marshall define como: "Negação da fé por aqueles que antes a sustentavam”.12 De forma seme­ lhante, o expositor Merril F. Unger define a apostasia como "um ato de um cristão, que, consciente e deliberadamente, rejeita a verdade revelada da divindade de Cristo (1 Jo 4.1-3) e a redenção mediante seu sacrifício expiatório” (Fp 3.18; 2 Pe 2.1)." Em seu comentário sobre Hebreus, o expositor Adam Clarke, quando comenta sobre o apóstata, diz que ele é "alguém que rejeita completamente a Jesus e seu sacrifício e renuncia a todo o sistema evangélico. Isso nada tem a ver com os desviados no uso comum do nosso termo. Um homem pode cair repentinamente em uma falta ou ainda deliberadamente andar em pecado e, porém, não rejeitar o evangelho nem negar ao Senhor que lhe comprou. Sua situação é temerária e perigosa, mas não sem esperança. O único caso sem esperança é o do apóstata deliberado, que rejeita o evangelho depois de haver sido salvo pela graça ou convencido da verdade do evangelho. Para o tal, já não resta mais sacrifício pelo pecado, porque já houve um, o de Jesus, e ele o rejeitou por completo”.14

A postasia , um a P ossibilidade R eal Ao longo da História da Igreja, algumas formas de interpretar a apos­ tasia relatada na carta aos Hebreus têm-se sobressaído. I. Howard Marshal observa que “muitos estudiosos restringem a apostasia ao abandono temporário manifestado pelos verdadeiros crentes e ao des­ vio dos crentes nominais de uma profissão de fé superficial e aparência exterior, mas outros afirmam que, juntamente com as declarações da eterna segurança do crente, devem ser colocadas outras explicações que alertam aos verdadei­ ros crentes sobre a apostasia e sobre a possibilidade de não conseguirem encontrar a entrada para o reino de Deus (Hb 6; 10.26-29)".15 l.V i


Apêndice

A A postasia em H ebreus V ista por D iferentes P erspectivas 1.

O texto realmente se refere a cristãos que perdem a salvação;

2.

O texto é um argumento hipotético para advertir os cristãos imaturos que eles devem progredir rumo à maturidade. Nesse aspecto, experimentariam a disciplina ou juízo divino se não ouvissem a exortação;

3.

O texto refere-se a cristãos professos, cuja apostasia comprova que não tinham fé suficiente. Eram crentes, mas não eram regenerados;

4.

O texto é uma referência aos réprobos, aqueles a quem Deus não havia escolhido para estar entre os eleitos.

5.

O texto não se refere a uma queda hipotética nem tampouco à apostasia, mas apenas ao pecado ou tropeço cometido por pessoas imaturas.16

Uma análise do capítulo 6.4-6 de Hebreus, onde está a declaração mais severa sobre a apostasia, deve levar em conta as advertências que, desde o início, o autor de sua carta vinha fazendo (capítulos 2 e 3). Essa ênfase já era forte, mas não de forma tão enfática como aqui. Havia chegado o momento de ele adverti-los sobre o que realmente estava em jogo: a real possibilidade de se decair da fé.

U m a H ipótese I mprovável Os argumentos em favor de uma "apostasia hipotética" não conseguem ser convincentes. Os que argumentam que o autor estaria tratando apenas de um "juízo” ou “disciplina” de advertência esquecem que ele fala de uma total exclusão sem possibilidade de retomo. O comentarista bíblico Donald Guthrie, por exemplo, insiste na tese de que Hebreus 6.4-6 trata de um “caso hipotético”, e não da real possibilidade de se decair da graça.17 O expositor Millard J. Erickson, um teólogo de tra­ dição batista, tenta achar um meio-termo para solucionar o problema do caso hipotético. Ele argumenta que Hebreus 6.4-6 realmente admite a possibilidade da queda na fé, mas defende que Deus não permitiria que isso acontecesse.18 No entanto, como destaca o expositor Leon Morris, "a menos que o autor de Hebreus esteja falando de algo que realmente pudesse acontecer, não seria uma advertência sobre nada”.19 Morris acredita que algumas pessoas podem ter ido longe o suficiente na experiência cristã para saber do que se trata e, então, desviam-se. Nesse caso, elas estão crucificando Cristo novamente. Morris admite que o autor de Hebreus via a apostasia como uma possibilidade real que o autor de Hebreus não queria ver acontecer com seus leitores,

119


A Supremacia de Cristo

M uitas C onjecturas , nenhum C onsenso Mesmo sendo mais uma aporia do que propriamente um paradoxo, a tese que nega uma apostasia real entre crentes tem vários defensores e desdobramentos. Há uma extensa lista de comentaristas de renome que tentam buscar outro sentido que vai além daquele que naturalmente é exposto no capítulo 6.4-6 de Hebreus. O escritor Gleason L. Archer, por exemplo, afirma que as pessoas descritas nessa passagem não eram cristãs, mas pessoas que haviam chegado ao conhecimento do evangelho por meio da experiência dos outros. William R. Newell tenta desqualificar essas pessoas dizendo que elas haviam "provado”, mas não tinham "bebido” da salvação. R. A. Torrey falou da "animação" dos Hebreus, mas que isso não era "regeneração”. John Owen, antigo teólogo puritano, disse que "as pessoas de quem se fala aqui não são crentes sinceros e de verdade”. B. F. Wescott argumentou que o "impossível”, aqui, significa “impossível para o homem, mas não para Deus”. Delitzsch e Lenski argumentam que o pecado de Hebreus 6.4-6 é semelhante à blasfêmia contra o Espírito Santo (Mt 12.31), embora o texto citado, segundo eles, revele que quem blasfemou não eram crentes. G. H. Lang argumenta que o texto fala de crentes verdadeiros; todavia, o julgamento ao qual o autor de Hebreus refere-se não é a morte eterna, mas a física.20 Todo esse leque de interpretações conflitando entre si mostra a dificul­ dade que há quando se tenta atribuir um sentido diferente daquele que o texto claramente revela: a possibilidade de cair da fé. Se partirmos do pressuposto de que o texto de Hebreus 6.4-6 está, de fato, referindo-se a uma situação hipotética e que não acontece entre cristãos, então por que o autor de Hebreus iria advertir seus leitores so­ bre algo que jamais poderia acontecer? Eles já não estariam seguros da mesma forma? Se o autor já sabia que Deus não permitiria que isso viesse a acontecer entre os cristãos, então por que ficaria fazendo esse jogo de cena? No caso de uma apostasia hipotética, Albert Bames, por exemplo, tenta defendê-la com duas ilustrações. Para ele, era como se alguém fi­ zesse uma suposição: "Se um homem tivesse caído num precipício, seria impossível salvá-lo, ou tivesse uma criança caído no córrego, certamente teria sido afogada”.21 O problema com essas ilustrações de Bames é que tanto o "precipício" como o “córrego” existem. Se não existissem, não haveria razão para que se tentasse evitá-los.

A postasia , S alvaçAo e R egeneração Se, por um lado, a teoria do “caso hipotético” não pode ser defendida biblicamente, por outro, é biblicamente inconcebível alguém ser crente e, ainda assim, não ser regenerado, como defende Wayne Grudem.22 O escritor John MacArthur debate-se em contorções teológicas tentando 136


Apêndice provar que essas pessoas as quais o autor de Hebreus refere-se não eram crentes de verdade. Todavia, ele mesmo demonstra não ter cer­ teza se o texto de Hebreus 6.4-6 exclui os verdadeiros crentes.23 Essa também parece ser a opinião de Judith M. Gundry-Volf, que explica o abandono da fé em termo de "uma falsa profissão”.24 De forma se­ melhante, o teólogo Kenneth S. Wuest, por exemplo, esforça-se para tentar provar que o autor de Hebreus estaria se referindo ao "judeu não-salvo".25 Se esse fosse o caso, restaria explicar por que o autor de Hebreus demonstrou tanta preocupação com esse "não-salvo” perder algo que ele nem mesmo tinha: a salvação.26 Deve ser ressaltado aqui que o apóstolo Paulo fala da apostasia no contexto da parousia (2 Ts 2.3), que precede o aparecimento do Anticristo. O mesmo fato é aludido no contexto da igreja em 1 Tm 4.1: "Mas o Espírito expressamente diz que, nos últimos tempos, apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores e a doutrinas de demônios”. Nesse último texto, fica claro que a apostasia é algo que acontece dentro do contexto da igreja.

S entindo o G osto do Céu, porém P roibido de E ntrar nele A posição do reformador francês, João Calvino, é a mais radical e a mais difícil de enquadrar-se no contexto de Hebreus 6. Calvino cria que esse texto estaria se referindo aos réprobos, aqueles que, mesmo não tendo direito à vida eterna, Deus tocava-os com "o sabor de sua graça”, "iluminava suas mentes com lampejos de sua luz” e, em alguma medida, "gravava a sua palavra" em seus corações. A fé deles, portanto, era apenas temporária e desvanecente.27 Mas como explicar por que Deus, sendo amor e querendo salvar a todos (Jo 3.16; 1.29; 1 Tm 2.4; 1 Jo 2.2), permitiu a esse “réprobo”, já condenado ao Inferno, experimentar o sabor da salvação se Ele não ten­ cionava salvá-lo? Deus não seria acusado de injusto se assim procedesse? Os que acreditam na segurança condicional do crente argumentam que esse pensamento, longe de ser uma defesa de soberania de Deus, soa mais como uma distorção do seu caráter e uma negação explícita do seu amor. Em virtude daquilo que explicitamente ensina o contexto dessa passagem, essa interpretação há muito vem perdendo fôlego entre os intérpretes.

E xaminando o texto — H ebreus

6 .4-6

A palavra grega adynatos (impossível), usada em Hebreus 6.4-6 como referência à impossibilidade de o apóstata arrepender-se novamente, ocorre dez vezes no Novo Testamento. Esse termo depõe contra a teoria de uma apostasia hipotética. O autor de Hebreus usa esse termo outras três vezes em sua carta. Em Hebreus 6.18, é usada para dizer que é impossível que Deus minta. A palavra aparece novamente em rs» ferência ao sistema levítico, descrevendo a impossibilidade de o stangUC

llf


A Supremacia de Cristo de animais remover os pecados (Hb 10.4). Finalmente, o autor ainda descreve como impossível alguém agradar a Deus sem o concurso da fé (Hb 11.6).28 Em todos esses textos, essa impossibilidade aparece de forma absoluta, como algo real, e não como uma mera hipótese. A lógica é simples: Seria possível Deus mentir? Não. Seria possível alcançar a libertação do pecado por meio do sacrifício de animais? Não. Seria possível um crente que, consciente e deliberadamente, renegou sua fé, tomando-se um apóstata, ultrajando o Espírito da Graça e crucificando novamente o Filho de Deus, expondo-o à vergonha, continuar sendo salvo? Não. O teólogo Richard S. Taylor observa que “muitas páginas foram escritas na tentativa de abrandar a severidade dessa passagem ao minimizar e enfraquecer a experiência anterior destes apóstatas, fazendo parecer que foram apenas simpatizantes do evangelho sem, na verdade, terem se tom ado pessoas regeneradas. Mas esse mero jogo de palavras não merece a atenção de um exegeta sério das santas Escrituras de Deus, e torna suspeita a premissa dou­ trinária que aceita tal desvio”.29

M ais do que uma M era S uposição O contexto da carta aos Hebreus mostra, de forma inequívoca, que o autor está descrevendo uma realidade factível e experimental. Reconhe­ cidos expositores da Bíblia acreditam que o autor está retratando uma realidade possível, e não apenas uma situação hipotética. Comentando Hebreus 6.4-6, John Wesley escreveu: "Aqui não é uma suposição, mas uma simples relação de fato. O apóstolo descreve o caso daqueles que lançaram fora tanto o poder como a forma da piedade; que perderam tanto a fé como a esperança e amor, Hebreus 6.10, etc., e isso intencionalmente, Hebreus 10.26. Desses que voluntaria­ mente apostataram, ele declara que é impossível renová-los novamente ao arrependimento”.30 O teólogo I. Howard M arshal observa que “um estudo das des­ crições oferecidas aqui em um a série de quatro particípios (aoristo grego) sugere, de modo conclusivo, que um a experiência genuína está sendo descrita”31. Da mesma forma, A. T. Robertson destaca que “todos estes extremos são apresentados como verdadeiras experiências espirituais”.32 O autor, portanto, não estava supondo um a situação inexistente, irreal e que existia apenas subjetivamente sem qualquer implicação objetiva. 138


Apêndice

P rovou , E xperimentou e P articipou Os particípios gregos presentes em Hebreus 6.4-6 e que serão analisados a seguir mostram que o autor de Hebreus via esse perigo como algo real e sobre o qual se deveria tomar todos os cuidados.

U m I luminado não P ode E star nas T revas í ° - Tendo sido ilum inado (particípio grego: photisthentas). Primei­ ramente, o autor de Hebreus mostra que o apóstata é alguém que anteriormente foi iluminado, mas renegou a sua nova vida em Cristo. O expositor Neil R. Lightfoot observa que essa ilum inação é uma referência à conversão.33 De fato, o autor novamente usa esse mesmo termo em Hebreus 10.32 para referir-se à experiência da conversão: "Lembrai-vos, porém, dos dias anteriores, em que, depois de iluminados, sustentastes grande luta e sofrimentos” (ARA).34Aqui, o iluminado era alguém que se convertera e que, portanto, fazia parte da igreja. Por outro lado, o escritor Gerald F. Hawthome busca na patrística, e não no contexto imediato de Hebreus, que “iluminados” seria uma referência ao sacramento do batismo, e não à conversão. Do mesmo modo, ele defende que a expressão "provaram o dom celestial” significaria que os crentes sobre os quais o autor de Hebreus refere-se teriam participado da ceia.35 A fraqueza dessa tese é que ela exporta para dentro do texto sentidos que são estranhos ao mesmo. O expositor Leon Morris destaca que, embora o termo “iluminado” seja usado neste sentido no segundo século, esse é, todavia, um uso tardio. Segundo Morris, o termo é mais bem interpretado “à luz do uso geral pelo qual aqueles admitidos à fé cristã são trazidos para aquela luz que é 'a luz do mundo’ (Jo 8; 12; ver 2 Co 4.6, 2 Pe 1.19)”.36 Assim como Morris, o Comentário Bíblico São Jerônimo destaca que o entendimento mais natural é ver “ilumi­ nados” como uma referência à iluminação dada pela fé em Cristo (2 Co.4.6) e “provaram o dom celestial” como uma metáfora de provar a salvação trazida por Jesus (Rm 5.15; 2 Co 9.15).37 Esse sentido é visto também pelo expositor William Lane, que destaca: “essas pessoas [Hb 6.4-6] haviam testemunhado ‘o fato de que a salvação era a realidade inquestionável em suas vidas”’.38

P rovou, mas não E xperimentou ? 2o- Tendo provado do dom celestial (particípio grego: geusamenous). Em segundo lugar, o apóstata é alguém que renunciou a salvação e todas as bênçãos advindas dela.39 Essa expressão é tida pelos intérpretes como uma referência ao ingresso no corpo de Cristo, à igreja e à sua parti­ cipação nela. Alguns expositores, na tentativa de negar a possibilidadi do fracasso na fé mostrada nesse texto, procuram fazer uma ditetença

Ml


A Supremacia de Cristo entre "provar” e "experimentar”. A ideia por trás é que essas pessoas des­ critas pelo autor de Hebreus, como já foi exposto anteriormente, não eram, de fato, crentes genuínos. Elas teriam tido alguma forma de experiência, mas não uma autêntica transformação. Alguns expositores argumentam que a palavra geusamenous (provado) é usada em Mateus 27.34 para mos­ trar que Jesus "provou" o vinagre, mas não o “bebeu”. Dessa forma, esses "crentes" também teriam "provado” a salvação, mas não se haviam tomado participantes dela. Todavia, essa exegese não fica de pé diante de Atos 20.11 e Hebreus 2.9, onde esses mesmos termos gregos revelam que "comer”, "provar” e "experimentar" são usados de forma intercambiável de acordo com a conveniência do contexto. Em Atos 20.11, por exemplo, lemos: "E, subindo, e partindo o pão, e comendo, ainda lhes falou largamente até à alvorada; e, assim, partiu”.40Aqui, evidentemente, o pão foi "comido”, não apenas provado. De forma análoga, o texto de Hebreus 2.9 diz: "Vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora feito um pouco menor do que os anjos, por causa da paixão da morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos”. Seria um contrassenso dizer que Jesus "provou”, mas não "experimentou" a morte.

R uach H a K odesh — um a B ênção somente para C rentes 3o - Tendo se tomado participante do Espírito Santo (particípio grego: genethentas). Em terceiro lugar, os que podem cair da graça são aqueles que renunciaram a esse dom. É evidente que essa advertência só tem validade para os crentes regenerados, visto que ninguém pode tomar-se participante do Espírito Santo sem que antes nasça de novo (Jo 14.17; Rm 8.9). O expositor David H. Stem, na obra Comentário Judaico do N ovo Testamento, destaca que “essa terminologia faz com que seja impossível que o autor esteja falando de pseudocrentes, porque apenas verdadeiros crentes se tom am participantes no Ruach HaKodesh" ,41

Eusébio de Cesareia x Lucas O biblista F. F. Bruce fez uma longa exegese procurando o real sentido da expressão “tendo se tomado participantes do Espírito Santo”.42 Como um exegeta competente e conservador, Bruce sabe que esse texto não pode ser visto apenas como um caso hipotético. Ele comenta: “tem sido questionado se é possível que alguém — que tenha sido, em qualquer sentido real, um participante do Espírito Santo — cometa apostasia, mas nosso autor não tem nenhu­ m a dúvida de que isso é possível”.43 A meu ver, Bruce acertou quanto ao sentido desse texto, não vendo no mesmo apenas um sentido hipotético. Todavia, ele usou um exem140


Apêndice pio inadequado na sua aplicação. Bruce toma Simão, o M ago (At 8), como exemplo de alguém que apostatou. Ao tomar Sim ão como um exemplo de um cristão apóstata, Bruce nivela-o com os falsos pro­ fetas citados por Jesus em Mateus 7.22, sobre os quais Jesus dissera nunca os ter conhecido. A dificuldade com essa tese é que ela choca-se com o argumento do autor da carta aos Hebreus, que afirma ser impossível renovar o apóstata para arrependimento (Hb 6.6), e Lucas diz que o apóstolo Pedro mandou Simão arrepender-se, que seria uma solicitação absur­ da se ele tivesse apostatado (At 8.22). De fato, o texto diz que Simão demonstrou disposição para corrigir seu erro quando foi repreendido por Pedro (At 8.24). Em palavras mais simples, o testemunho que ficou no Novo Testamento é do pedido de perdão de Simão, o que seria impossível para um apóstata fazer. Por outro lado, mesmo que Simão tivesse apostatado (como afirma Eusébio de Cesareia; Lucas nada diz sobre isso), esse fato não depõe contra a autenticidade de sua conversão.44 Lucas diz que "o próprio Sim ão abraçou a fé” (At 8.13, ARA), um a expressão que deve ser entendida como sinônima de conversão (no grego, o mesmo verbo para “crer”, pisteuô, é usado em relação a Sim ão e aos demais samaritanos (At 8.12,13)). Menge traduz como “assim igualmente Simão se tornou crente".45 Esse fato, portanto, demonstraria, sim, que um crente, mesmo tendo sido rege­ nerado, pode vir a naufragar na fé, como atesta o autor de Hebreus. De fato, a palavra grega apôleia (destruição), que ocorre em Atos 8.20, é usada por Pedro antes que este exorte Simão ao arrependimento, o que demonstra que, se permanecesse nessa condição pecaminosa, Sim ão naufragaria na fé. Isso mostra que Simão enquadra-se mais no exemplo de um crente imaturo, até mesmo carnal, do que no perfil de um apóstata.

S imão x D emas A meu ver, Bruce teria sido mais feliz se, em vez de Simão, tivesse posto Demas como um exemplo de crente que apostatou da fé. Em Colossenses 4.14, Paulo saúda calorosamente a todos os cristãos em nome de Demas. Em Filemom 24, Demas é identificado como cooperador de Paulo. Em 2 Timóteo 4.10, Paulo diz: “Demas me desamparou, amando o presente século [...]”. Mais uma vez, o contexto é determinante para o sentido de um vocábulo bíblico ser estabelecido. O termo "abando­ nar” (gr. enkataleipo) tem sua significação de acordo com o contexto. Tanto o léxico grego de Bauer como o de Thayer citam como exemplo de enkataleipo (“abandonar, desertar”) a passagem de 2 Timóteo 4.10, O sentido mais natural desse texto é o de que Demas desertou du fé porque amou a presente era. Ele apostatou!

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A Supremacia de Cristo

U m a B ênção A ntecipada 4o - Tendo provado a boa palavra de Deus e as virtudes do século futuro (particípio grego: geusamenos). Em quarto lugar, o apóstata é alguém que não apenas provou do dom celestial (v. 4), mas também provou da Palavra de Deus e das virtudes do século vindouro. O mesmo termo grego usado no versículo 4 para “provar”, “experimentar”, também é usado aqui no versículo 5. Eles não apenas “experimentaram", observa Charles Trenthan, mas também “descobriram a verdade da palavra de Deus. Eles experimentaram um antegozo do que era viver na eterni­ dade".46 Mesmo assim, renegaram tudo isso. Essa sequência de particípios gregos demonstra, de forma inequí­ voca, como afirmou Adam Clarke, que “qualquer que seja a opinião que prevaleça, existe uma terrível possibilidade de afastar-se da graça de Deus”.47

I ndo até R a iz : a V oz dos L éxicos O expositor W. W. Wiersbe, autor de um dos melhores comentários expositivos do Novo Testamento, argumenta contra os que creem na segurança condicional do crente, afirmando que a palavra grega apos­ tasia não está presente no texto de Hebreus 6.4-6. Ele limita-se a dar uma breve descrição etimológica do verbo grego parapipto, que aparece nessa passagem, como sendo o de "cair ao lado”.48 Uma exegese mais aprofundada desse texto não pode limitar-se apenas a questões léxicas, como o faz Wiersbe, mas também procurar entender essa passagem no seu contexto etimológico, gramatical e contextuai. O verbo grego para­ pipto, usado nessa passagem, está no particípio aoristo, parapesontas. O léxico de Moulton deu como tradução para esse verbo em Hebreus 6.6 os sentidos de: cair, desertar.49G. Abbott-Smith também traduz como cair .50 Bullinger, em seu léxico, também destacou esse sentido de "queda” como uma deserção.5' Dentre outros sentidos, Liddell e Scott destacam que esse verbo tem o sentido de “queda" e era usado também em referência a algo que foi perdido ou alguém que estava numa “situação de infortúnio".52 A Nova Chave Linguística do N ovo Testamento Grego destaca que seu sentido, dentre outros, é o de renegar.53 Esse sentido de "queda", como um desvio e abandono de um relacionamento antes estabelecido, é visto no léxico grego de Friberg.54 Friberg destaca que esse sentido passa a ser usado figurativamente no Novo Testamento como sendo: “afastar-se, cometer apostasia" 55 Semelhantemente, os léxicos de Gingrich, Barclay e Newman traduzem, respectivamente, esse "cair” como um "apostatar.56 O clássico léxico de Bauer, dentre outros significados, também define parapipto como "apostatar” 57 De forma análoga, o léxico analítico de Mounce traduziu parapipto como “rebelar-se contra, apostatar”.58 142


Apêndice Toda essa variação léxica mostra que essa palavra possui um peso semântico muito mais amplo do que lhe atribui Wiersbe. Parapipto, portanto, não é apenas um “cair ao lado”, mas também um desvio,

uma quebra de relacionamento, uma deserção, uma rebelião, uma queda; enfim, uma apostasia.

E scribas e M assoretas Os fatos mostram, portanto, que o entendimento do vocábulo parapipto passa necessariamente por uma análise léxica, mas não pode limitar-se a isso. O contexto no qual ele é usado em Hebreus é determinante. 0 pano de fundo contextuai do autor de Hebreus é a Septuaginta grega.59 É um consenso entre os eruditos que é dessa tradução que o autor ex­ trai a maior parte de suas citações. A obra Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Commentary destaca que “o verbo usado em Hebreus 6.6, usado somente aqui no Novo Testamento, ocorre em contexto na Sep­ tuaginta nos quais a infidelidade está em vista (e.g. Ez 14.13; 15.8)".60De fato, na tradução dos LXX, parapipto é usado no contexto onde o seu sentido é o de “cair em transgressão” (parapeseinparaptoma, Ez 14.13) e (parapesonparaptomati, E z 15.8).61 No contexto dessas passagens bíblicas, Deus promete “eliminar” e "consumir” os que cometeram graves transgressões contra Ele.62 O julgamento seria dado de forma tão dura que nem mesmo a intercessão de Noé, Daniel e Jó, homens reconhecidos pela sua piedade, poderia reverter a sentença divina (Ez 14.14;20).63 Os lexicógrafos Jenni e Westermann destacam os vários usos desses termos na versão dos LXX, especialmente o seu equivalente hebraico mais comum, m aal. De acordo com Jenni e Westermann, "a Septuaginta emprega mais de uma dúzia de palavras gregas para traduzir m aal, destacando que os tradutores são consistentes no uso de suas traduções. Ezequiel normalmente usa m aal com o sentido de transgredir” . 6 4 Esse “transgredir" ou “cair em transgressão" de Ezequiel 14.13, onde parapipto é usado, recebe o sentido de apostatar no léxico grego da Septuaginta de Lust-Eynikel-Hauspie . 65 Esse significado de apostasia para o verbo grego parapipto fica mais claro no clássico léxico de Thayer, que o traduziu com o sentido de "cair da verdadeira fé”.66 Thayer destacou ainda o fato de que, em Ezequiel 14.13 e 15.8, a versão dos LXX usou parapipto para traduzir o hebraico m a‘al. No texto massorético, o vocábulo hebraico m aal aparece em vários contextos.67 O linguista judeu Em est Klein destacou que, etimologicamente, esse termo vem de uma raiz hebraica cujo sentido é o de "cobrir" e passou a significar "agir infielmente, comportar-se traiçoeiramente”.'’* O léxico hebraico de Schokel destaca os vários sentidos que esse termo assume; por exemplo, traição, infidelidade, deslealdade, felonia, aleivosia, perfídia, rebeldia, delito.69 O léxico de Koehler & Baumgartner d sttM I

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A Supremacia de Cristo as três dimensões nas quais esse vocábulo é usado: coisas, pessoas e Deus.70 Robin W akely observa que, “na m aioria esmagadora dos casos, o objeto de m a‘al é Deus. Josué 7.1 é a única passagem em que a referência linguística não é a pessoas ou a Deus (diretamente), mas alguma coisa (proibição), embora essa coisa represente o relaciona­ mento divino-humano”.71 O sentido de m aal, portanto, é usado para especificar os aspectos de uma relação que foi quebrada entre Deus e o homem. Dessa forma, o léxico de hebraico bíblico de A. B. Davidson traz como significados os termos “perversidade, traição, pecado contra Deus”.11A natureza negativa desse relacionamento, observa o hebraísta R. Laird Harris, é evidenciada quando o homem comete ofensa contra o Senhor.73 O Dicionário Vine destaca esse aspecto, que são revelados tanto pelo verbo como pelo substantivo hebraico. "O verbo e o subs­ tantivo têm implicações fortemente negativas que o tradutor tem de transmitir (Ez 14.13)’’.74 O exemplo que demonstra isso é a morte de Saul, quando este caiu em transgressão contra Deus (1 Cr 10.13). Por outro lado, o hebraísta William Gesenius e os lexicógrafos F. Brown, S. Driver e C. Briggs destacam as consequências desse agir negativo: um julgamento severo para aqueles que agiram infiel e traiçoeiramente nas coisas que deveriam ser devotadas a Deus.7,5 Observa-se, portanto, que os termos “cair”, “desviar”, "afastar”, “renegar”, “desertar”, “pecar” e as expressões “cair em transgressão", “cometer ofensa contra Deus” e “cair da verdadeira fé", etc., dentro dos seus respectivos contextos, são perfeitamente entendidas como referências a uma queda ou apostasia, tanto no texto hebraico como no grego do Antigo Testamento.

A T erceira V ia As evidências demonstram inquestionavelmente que o texto de Hebreus descreve uma situação de afastamento, de abandono e queda da fé. Todavia, alguns autores não se dão por satisfeitos com essa direção que o texto conduz. Eles têm procurado uma rota alternativa. O es­ critor Hal Harless, por exemplo, não crê que o autor esteja falando de um a situação hipotética nem tampouco sobre uma apostasia entre crentes. Harless, que, a meu ver, produziu uma excelente pesquisa e argum entação sobre o tema, procura evitar a polarização que esse assunto ganhou dentro das duas principais escolas teológicas do protestantismo histórico. Harless, portanto, é um daqueles que está à procura de uma terceira via. A análise de Harless mostra que o texto está, de fato, referindo-se a um a situação real e de verdade entre crentes; todavia, não estaria falando de uma apostasia. Segundo ele, o pecado dos hebreus revela­ ria mais uma situação pecaminosa temporária cometida por crentes 144


Apêndice imaturos do que uma apostasia — algo como um tropeço apenas. Ele argumenta que o texto estaria dizendo que, enquanto os crentes he­ breus continuassem praticando ou participando do sistema levítico de sacrifícios, eles estariam pecando e, nessa condição, estariam sujeitos à disciplina divina.76 Harless argumenta: “Hebreus 6.1-9 refere-se aos cristãos que pecam, não que apostatam, ensinando o perigo da imaturidade contínua. De­ vemos avançar para a maturidade, uma vez que a renovação ao arrependimento é impossível enquanto re-crucificarmos Cristo por retornarmos ao sistema sacrificial do Antigo Testamento. Além disso, o texto ensina um perigo real de disciplina divina para corrigir o nosso pecado e preparar-nos para boas obras. Contudo, Hebreus nunca ameaça os crentes com a ausência ou perda da salvação”.77 De acordo com Harless, essa situação mudaria se eles abandonassem aquela prática e voltassem a Cristo. Ele argumenta que, tanto no grego clássico como na Septuaginta e também no koiné, o termo parapipto não significaria apostatar, mas somente pecar, no sentido de desvio ou tropeço. Ele cita alguns exemplos, tanto da literatura bíblica como secular, onde supostamente ficaria demonstrado esse uso (por exem­ plo: E t 6.10; 1 Clemente; Josefo e muitos comentaristas modernos). Entretanto, Harless pareceu-me seletivo, pois ignorou ou desqualificou obras léxicas de peso que possuem argumentação diferente da que ele adota, como, por exemplo, os clássicos léxicos de Walter Bauer e Joseph Thayer.78 Harless argumenta que algumas dessas obras, supostamente sem justificativa alguma, traduziram as ocorrências de parapipto na Septuaginta como tendo o sentido de uma apostasia. Segundo ele, o sentido de “pecar” deveria prevalecer. De fato, Harless tem razão quando diz que as ocorrências de parapipto na Septuaginta possuem primeiramente, como vimos, o sentido de cometer transgressão, pecar, falhar ou desviar.19 Esse fato é facilmente perceptível no léxico de T. Muraoka, que se limita ao uso do vocábulo parapipto na versão dos Setenta.80 Nesse aspecto, parapipto nem sempre possui o sentido de apostasia. Mesmo assim, o contexto nunca deve ser perdido de vista. Isso pode ser percebido no léxico grego de Liddell e Scott, que tradu­ ziu parapipto em Hebreus 6.6 como “cair” (fallaway), e o termo grego apostasia, em 2 Ts 2.3, com o sentido de uma rebelião contra Deus, uma apostasia. 81 Já ficou demonstrado aqui que apostasia (2 Ts 2.3) deriva de aphistemi, sendo também traduzido como "cair” (fallaway) em Hebreus 3.12 (veja Bauer). Em outras palavras, parapipto (Hb 6t#)

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A Supremacia de Cristo e apostasia (Hb 3.12) são termos que aparecem como sinônimos no contexto neotestamentário de Hebreus.82 Dentro da hermenêutica bíblica, as análises léxico-gramaticais são fundamentais; todavia, o juiz de qualquer princípio léxico-gramatical é o contexto.83 O expositor John B. Taylor, com entando Ezequiel 14.13, destaca que o significado do verbo hebraico usado aqui é "agir traiçoeiramente” na quebra de uma aliança solene. Nesse aspecto, ele lembra que “é empregado para o pecado de Acã com relação às coisas condenadas (o herem, Js 7.1) e ao ato adúltero de uma esposa (Nm 5.12), sendo que os dois incorriam na pena de morte. O signifi­ cado, aqui, diz respeito, de modo semelhante, a um pai que, pela sua infidelidade, merece o castigo máximo”.84 Que ‘‘grave transgressão” era essa que merecia a pena máxima? Os hebraístas Keil e Delitzsch, no clássico Commentary on the Old Testament, afirmam tratar-se da apostasia. Esses autores destacam que, em Ezequiel 14.13, o vocábulo hebraico m a‘al, que, nessa passagem, foi traduzido por parapipto na Septuaginta, possui inquestionavelmente o sentido de apostasia. Eles observam que, ali, esse termo significa literalmente "cobrir, significando agir de maneira secreta ou traiçoeira, ou reter o que lhe é devido. Na passagem diante de nós, é a traição da apostasia contra Deus através da idolatria praticada”.85 O contexto, portanto, é determinante para que se tenha uma tradu­ ção apropriada e também se a referência é usada em relação a Deus. Mesmo sendo usada em relação a Deus, o contexto é o que determinará se se trata de uma apostasia ou não.86 Quando me refiro ao contexto aqui, não o limito apenas ao Antigo Testamento, mas também ao Novo Testamento, que é uma interpretação fidedigna daquele. Quando se observa os contextos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, fica bastante claro que as expressões cometer transgressão, cair em trans­ gressão (que ocorrem em Ezequiel 14.13, 15.8) e caíram (em Hebreus 6.6) possuem o sentido de cair da verdadeira fé. Os léxicos, portanto, corretamente traduziram parapipto como apostasia e associaram-na a Hebreus 6.6, onde esse vocábulo possui o mesmo sentido.87 Em Hebreus, sem sombra de dúvida, o seu sentido é de uma queda da fé sem, contudo, oportunidade de retorno! De fato, o Léxico Grego-Português do Novo Testamento - Baseado em D om ínios Semânticos, dos autores Johannes Louw e Eugene Nida, deu a seguinte definição para parapipto : "Abandonar um relacionamento ou uma associação que se tinha anteriormente ou dissociar-se (um tipo de reversão do ato de começar a associar-se) - “afastar-se, cair, abandonar”. Parapesontas, paíinanakainizein eis metanoian, “depois que caíram, (é impossível) trazê-los de volta a um novo arrependimento (Hb 6.6)”.88 Etimologicamente, portanto, as evidências semânticas e contextuais demonstram uma queda da fé sem oportunidade de arrependimento.

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Apêndice Esses fatos acabam implodindo a tese de uma "queda temporária", como quer Harless, e, sem dúvida alguma, também desestrutura o “pecar sem apostatar”, como sugere Michaelis. De acordo com Michaelis, de quem Harless aproxima-se muito, os exemplos da ocorrência de parapipto, tanto na LXX como no NT, mostrariam que o que está em questão é a culpa de um erro ou pecado, e não de uma apostasia. Segundo ele, embora o significado d eparapipto tenha sido traduzido como "cair”, no sentido de apostatar, como indica Hebreus 3.12, onde o verbo apostenai é tomado como sinônimo, todavia argumenta ser mais apropriado traduzi-lo como "ofender”, “pecar”, em vez de “apostatar", como o faz a Septuaginta.89 Em palavras mais simples, o que o autor de Hebreus estaria descrevendo é um “pecar sem apostatar”. A suposta razão que justificaria esse entendimento, argumenta Michaelis, é que não há uma referência clara a uma ofensa específica em Hebreus. A fraqueza dessa tese, como já ficou demonstrada, é que ela é se­ manticamente imprecisa e vai em direção contrária àquilo que diz o contexto de Hebreus. A exortação do autor é exatamente no sentido de que quem voltasse atrás naquilo que o autor estava advertindo não teria mais como voltar. “O autor de Hebreus”, destaca o D icionário Bíblico Tyndale, “referiu-se aos que haviam crido e então abandonado a fé como estando em uma situação sem esperança — sem nenhuma possibilidade de arrependimento futuro (6.1-6)”.90Aqui, não há uma ideia de alguém “pecar sem apostatar” e nem tampouco de uma "queda temporária”. Deve-se observar ainda que a argumentação de Michaelis, à semelhança de Harless, esbarra no contexto da tradução dos LXX em Ezequiel 14.13 e 15.8 e de Hebreus 6.4-6 e 10.29. O contexto dessas passagens mostra que, mesmo trocando ''apostasia" por "pecado", o sentido é o de um "voltar atrás" ou de uma queda. À luz do contexto de Hebreus, tanto faz "pecar" como "apostatar”, quando o que de fato está em relevo é o perigo de cair da graça de uma forma definitiva, e não apenas temporária. Observa-se também que a tese do "pecar sem apostatar” é falha por subjetivar demasiadamente os pecados citados, tanto na versão dos LXX como na carta aos Hebreus. O autor de Hebreus mostra uma exortação específica, objetiva e enfática, não somente nos textos de Hebreus 3.12 e 6.6, mas também em 10.29: “De quanto maior castigo cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver por profano o sangue do testamento, com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça?". Nesses textos, portanto, o pecado é tratado de forma concreta, e não subjetivamente. À luz do contexto de Hebreus, especialmente em relação às refe­ rências do profeta Ezequiel, é sensato concluir que a apostasia, como uma queda da verdadeira fé, era a imagem que o autor de Hebreus tinha em mente quando redigiu seu texto.91 O uso do mesmo termo grego ,parapipto, tanto pelo profeta Ezequiel (14.13; 15.8) quanto pilo

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A Supremacia de Cristo autor de Hebreus (6.6), postos em contextos onde a falta de fidelida­ de está em evidência, deixa esse fato em relevo. Ezequiel denuncia a idolatria como um cair em pecado, um abandono de Deus e uma grave transgressão contra o Senhor. Enfim, uma queda da fé e, sem dúvida alguma, como observaram Keil e Delitzsch, uma apostasia. É exatamente sobre o perigo da apostasia que o autor de Hebreus tam­ bém está preocupado. Ele adverte seus leitores sobre os perigos de afastar-se do Deus vivo (Hb 3.12); de cair da fé verdadeira (Hb 6.6) e de ser submetido a um juízo severo (Hb 10.26-29). É relevante o fato de que, em Hebreus 3.12, o autor usa a palavra grega apostasia para advertir seus leitores sobre o perigo da queda da fé. Seria ilógico ima­ ginar que, em Hebreus 3.12, o autor estivesse se referindo à apostasia, como, de fato, está, e, em Hebreus 6.4-6 e 10.29, onde a exortação é, sem sombra de dúvidas, muito mais severa que em Hebreus 3.12, ele estivesse tratando de algo menos grave.

D ando V oz à G ramática Gramaticalmente, com o particípio aoristo, parapipto (parapesontas), que ocorre em Hebreus 6.6, mantém o sentido de: tendo caído de uma forma completa ou definitiva.92 R. T. Kendall, mesmo crendo na perseverança dos santos, foi fiel ao texto e deu tradução semelhante, justificando: “parapesontas é um particípio aoristo, que é traduzido como ‘caíram’ ou 'tendo caído’. Sua queda foi um fato".93 Grant Osborne destaca que "praticamente todos os comentaristas recentes admitem que isto deve ser apostasia final, a rejeição absoluta de cris­ to”.94 O biblista F. F. Bruce, ao comentar Hebreus 6.4-6, destaca que o contexto é determinante para uma compreensão correta do sentido de parapesontas nessa passagem bíblica. Em posição oposta à que é defendida por Wiersbe, Bruce observa que "não é o seu significado radical, senão seu contexto o que indica que se refere aqui a apostasia — o mesmo pecado expressado por apostenai (apostasia) no capítulo 3.12”.95 Esse também é o entendimento que se observa na redação da obra A Readers Greek New Testament, que traduziu apostenai (Hb 3.12) como "desviar”, "cair", "rebelar", e parapesontas (Hb 6.6) como "cair", "apostatar".96

0 “ S e ” A usente Esse tom exortativo e vigoroso de Hebreus 6, como vimos, tem soado demasiadamente forte para alguns intérpretes. Isso tem feito alguns deles tentarem suavizá-lo de todas as formas. Uma dessas tentativas é achar um sentido condicional para o particípio grego parapesontas e também a inserção da partícula condicional "se" (se caírem ) no tex­ to, para amenizar o sentido desse verbo.97 O escritor Kenneth Wuest 148


Apêndice argumenta, sem evidência textual nenhuma, que, no texto, existe “um particípio condicional, um caso hipotético apresentado”.98Essa, porém, é uma excrescência que não conta com o apoio da crítica textual. O aparato crítico de Bruce M. Metzger não traz variante textual alguma sobre esse suposto “se”.99 A The NKJVStudy Bible, editada por Earl D. Radmacher, destaca que "alguns traduzem este verbo na condicional. A ausência da forma condicional no texto grego constitui um argumento contra a interpretação ‘hipotética’ desta passagem (v. 4). Recair se refere aqui a um a apostasia deliberada (3.12), uma deserção da fé’’.100 O reformador Teodoro de Beza (15 19 -16 0 5), sucessor de João Calvino, introduziu arbitrariamente no texto a condicional “se”, que não aparece no original, para tentar forçar o texto a ajustar-se à sua forma de crer. Na sua versão do Novo Testamento em latim, lemos:

“S i prolabantur, denuorenoventur ad resipiscentiam; ut quirursum crucifigantsibi Filium Dei, et ignominiae exponant" . 101 Posteriormente,

tanto Adam Clarke como Mcnight, teólogo reformado, criticaram Beza por essa interpolação.102 Mcnight destacou que "os tradutores para a língua inglesa, seguindo Beza, o qual, sem autoridade nenhuma de manuscritos antigos, inseriu em sua versão a partícula se, traduziram essa expressão como se eles caírem, para não parecer que o texto contra­ dizia a doutrina da perseverança dos santos. Como, porém, nenhum tradutor deveria tomar a si o adicionar ou alterar as Escrituras, por causa de qualquer doutrina predileta, traduzi parapesontas no passado, tendo caído, segundo o verdadeiro significado da palavra”.103 Os anos passaram, e Charles Spurgeon (1834-1892), o príncipe dos pregadores, foi induzido ao erro ao valer-se desse “se” para justificar que o texto falava de uma situação hipotética.104O escritor R. T. Kendall destacou que “Charles. H. Spurgeon acreditava que aqueles descritos em Hebreus 6.4-6 eram obviamente salvos, mas a situação apre­ sentada era hipotética. Spurgeon construiu toda a sua tese na pequena palavra ‘se’ - ‘se eles caírem’ (Hb 6.6). Spurgeon afirmou que isso ainda não tinha acontecido. Infelizmente, Spurgeon não conhecia grego e ele não sabia que não hâ ‘se’ no grego, em absoluto”.105

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A Supremacia de Cristo

U m a T radução E quivocada Essa interpolação, que tem gerado esse equívoco exegético, ainda hoje está presente em algumas traduções da Bíblia. A conceituada Bíblia Nova Versão Internacional, em sua edição em inglês, colocou esse “se” inexistente no texto de Hebreus 6.6: “Ifthey fallaway, to be brought back

to repentance, becouse to their loss they are crucifying the Son o f God ali over again and subjecting him public disgrace".106Em tempo mais recen­

te, Dave Hunt (1926-2013), considerado um dos maiores apologistas evangélicos, também à semelhança de Spurgeon, valeu-se desse "se”, que nunca existiu, para justificar uma suposta segurança incondicional do crente.107 Hunt escreveu: “Claramente aqueles a quem esta passa­ gem se refere são crentes genuínos. Além disso, não diz ‘quando eles caírem’, mas ‘se eles caírem”’.108 O biblista Grant Osbome, respeitado hermeneuta contemporâneo, criticou a Nova Versão Internacional por fazer essa interpolação da partícula "se” no texto, forçando o versículo a possuir um sentido condicionante (Se eles caírem). Osbome observa que: "A NVI está errada em traduzir o particípio paralelo final como ‘se eles caírem '".m Osbome ainda observa que, posteriormente, os revisores americanos (não aparece na NVI em português) retiraram do texto essa partícula, mas colocaram-na estrategicamente em uma nota de rodapé. Seguindo a análise de J. A. Sproule e Daniel B. Wallace sobre o uso do particípio aoristo parapesontas em Hebreus 6.6, Hal Harless observa, acertadamente, que: "Uma condicional de segunda classe tomaria isso claro, mas no grego não há nenhuma condição em absoluto. O texto tem um particípio adjetival de parapiptõ (“caíram, Hebreus 6:6). Este particípio não pode ser condicional, já que seu artigo de controle o tom a adjetival ao invés de adverbial”.110 De fato, o gramático Daniel B. Wallace argumenta contra a condicionalidade do particípio grego parapesontas em Hebreus 6.6, destacando que essa suposta condicionalidade é uma suposição sem provas. Dessa forma, Wallace observa que Hebreus 6.6 deve ser traduzido como: “É

impossível restabelecer novamente ao arrependimento esses que foram uma vez iluminados... e caíram ”.111

F irm es em C risto , porém S empre A lerta ! Como foi dito no início deste texto, o autor de Hebreus quer ver em seus leitores ânimo, esperança e fé em tempos de apostasia. Ele tem convicções espirituais fortes, mas não via essa mesma convicção em seus leitores. Foi preciso ele dar um tratamento de choque, um grito

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Apêndice de alerta, para acordar seus leitores. Porém, quando fez isso, ele não estava encenando. A queda da fé era uma possibilidade a ser conside­ rada com toda a seriedade. Consciente de que fora duro em sua exortação, o autor dá a eles uma palavra de ânimo: "Mas de vós, ó amados, esperamos coisas melhores e coisas que acompanham a salvação, ainda que assim falamos” (Hb 6.9). Alguns comentaristas apegam-se ferrenhamente a esse texto como uma última tentativa para negar a possibilidade do fracasso espiritual relatado em Hebreus 6.4-6. Eles argumentam que, nessa passagem, estaria a prova de que tudo o que o autor descreveu sobre a queda na fé não passa de mera suposição. No entanto, se esse fosse o caso, como já destacou Leon Morris em outros termos, tudo o que o autor usou como alerta para seus leitores até aqui não passaria de encenação, e todas as advertências seriam resumidas a uma farsa. O texto, porém, está longe disso. O autor não está levantando hipótese alguma, mas, sim, tratando de uma realidade extremamente séria: o perigo de cair da graça. Grant Osbome, irt loco, observa que essas palavras do autor de Hebreus "não justificam uma visão hipotética da apostasia, como se o perigo fosse afirmado apenas como um meio de estimulá-los a perseverar, mas que nunca poderia acontecer. O perigo é muito real, mas o autor encoraja-os com uma declaração positiva sobre a sua verdadeira posição em relação a Cristo”.112

A S alvação É pela G raça , m as não É C ompulsória Depois dessa análise exegética, duas coisas ficam em relevo. Em pri­ meiro lugar, a teoria que tentou converter o texto de Hebreus 6.4-6 em um caso meramente "hipotético” não se sustenta. Para firmar-se, essa teoria passou a depender de uma obra de engenharia teológica muito grande, edificando-se sobre fundamentos léxicos e gramaticais inexistentes no texto. Sua principal coluna de sustentação, uma suposta condicionalidade do texto, foi demolida pela redação original do Novo Testamento. Por outro lado, aqueles que defendem que o texto refe­ re-se a "réprobos" não conseguem explicar por que esse "não-salvo”, que nunca foi regenerado e que permanece nos seus delitos e pecados tenha tido os mesmos privilégios que são reservados exclusivamente aos salvos. Por que Deus permitiria a esse “não-salvo” receber da parte dEle “iluminação”, “provar do dom celestial”, “participar do Espírito Santo” e "experimentar a Palavra de Deus e os poderes do mundo viu douro" para, logo em seguida, ter que jogá-lo no Inferno? Da mesm» forma, a tese que tenta “retirar" a apostasia do texto de Hebreus 6.4-i enfrenta problemas contextuais e semânticos insuperáveis. A própria

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A Supremacia de Cristo carta aos Hebreus usa esse termo apostasia em Hebreus 3.12, e os eruditos destacam que o termo grego parapipto usado em Hebreus 6.46 deve ser visto como sinônimo de apostasia que ocorre em Hebreus 3.12 (veja Bruce). Da mesma forma, não há como negar que Hebreus 10.26-29 é uma referência clara àquilo que o autor descreveu em He­ breus 3.12 e 6.4-6, isto é, a queda da fé. De fato, Richard C. Trench, em seu clássico Synonyms o f the New Testament, destaca que Hebreus 6.6 "é equivalente ao ekousiôshamartánein de 10.26, ao apostenai apo Theouzontos de 3.12”.113 Em segundo lugar, convém destacar que a linguagem sobre a segu­ rança do crente encontrada em Hebreus não destoa daquela encontrada em outras Escrituras do Novo Testamento. A salvação é pela graça, mas não é compulsória. Somos eleitos no Filho de Deus, mas cabe a nós respondermos à obra santificadora do Espírito Santo (E f 4.30). Nossa salvação está condicionada a nossa obediência e permanência em Cristo (Cl 2.6). Quem está em Cristo está seguro da vida eterna (1 Jo 1.7; 2.24,28), mas não há segurança alguma para quem se afasta dEle. Esse é o testemunho do autor de Hebreus e dos apóstolos em Gálatas 5.4 e também em 2 Pedro 2.20-22. Esses fatos estão sintetizados na Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil, que diz: “Rejeitam os a afirmação segundo a qual 'uma vez salvo, salvo para sempre’, pois entendemos à luz das Sagradas Escrituras que, depois de experimentar o milagre do novo nascimento, o crente tem a responsabilidade de zelar pela m anutenção da salvação a ele oferecida gratuitam ente: 'Vede, irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um co­ ração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo’ (Hb 3.12). Não há dúvidas quanto à possibilidade do salvo perder a salvação, seja temporariamente ou eternamente. Mediante o mau uso do livre arbítrio, o crente pode apostatar da fé, perdendo, então, a sua salvação: ‘Mas, desviando-se o justo da sua justiça, e cometendo a iniquidade, fazendo conforme todas as abominações que faz o ímpio, porventura viverá? De todas as justiças que tiver feito não se fará memória; na sua transgressão com que transgrediu, e no seu pecado com que pecou, neles morrerá’ (Ez 18.24). Finalmente, temos a advertência de Paulo aos coríntios: 'Aquele, pois, que cuida estar em pé, olhe não caia’ (1 Co 10, 12). Aqui, temos men­ cionada a real possibilidade de uma queda da graça. Assim, cremos que, embora a salvação seja oferecida gratuitamente a todos os homens, um a vez adquirida, deve ser zelada e confirmada”.114

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Apêndice

N otas 1 SCOLNIK, Fred. Enciclopaedia Judaica, vol.2,.p.269. macmillan Refe­ rence, Nova York, EUA, 2007. 2 SAKENFELD, Katharine Doob. The New Interpreter’s Dictionary o f the Bible, vol.I. Abingdon Press, Nashville, EUA. 3 THAYER, Joseph. Greek-English Lexicon on the New Testament. Bake Baker House. Grand Rapids, Michigan, EUA, 1984. 4 CLAPP, Philip S. Analytical Concordance o f the Greek New Testament, vol. 1 - Lexical Focus. Baker Book House, Grand Rapids, Michigan, EUA. 5 RIENECKER, Fritz. Chave Linguística do Novo Testamento. Ed. Vida Nova. 6 KITTEL, Gerhard. Theological Dictionary o f the New Testament, vol. I, pp. 512,513. Eerdmans, Grand Rapids, Michigan, EUA, 2006. 7 BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon O f The New Testament And Other Early Christian Literature. The University of Chicago Press, Chi­ cago. EUA. 8 MORRISH, George. Concordance o f the Septuagint. Regency Library. Grand Rapids, Michigan, EUA. 9 PETTER, Hugo M. Concordancia Greco-Espanola del Nuevo Testamento. CLIE, Barcelona, Espana. '“PETERSEN, David. The New Interpreter’s Dictionary o f the Bible, vol.l. Abingdon Press, Nashville, EUA, 2006. 1‘LAUBACH, Fritz. Hebreus - comentário esperança. Editora Esperança, pp. 101 12 MARSHAL, I. Howard. Novo Dicionário de Teologia. Ed. Hagnos. 13Dicionário Teológico Beacon. Casa Nazarena de Publicaciones. Lenexa, Kansas, EUA. 14 CLARKE, Adam. Hebreos - Comentário de la Santa Biblia - Nuevo Tes­ tamento, tomo III. Casa Nazarena, Lenexa, EUA. 15 MARSHAL, I. Howard. Enciclopédia da Bíblia Cultura Cristã. Editora Cultura Cristã. Cambuci, São Paulo, 2008. 16Variantes dessas interpretações são apresentadas no Dicionário Interna­ cional de Teologia do Novo Testamento. !. É uma hipótese que os autores bíblicos levantaram, mas não uma real possibilidade; 2. "cair" implica numa perda de galardão (cf. 1 Co 3.12-15), e não na perda da salvação; 3. Os que caem nunca foram cristãos realmente, eram apenas "crentes nominais"; 4. Tais passagens sobre o "cair” devem ser vistas à luz de duas perspectivas: a divina e a humana. Do lado divino, “uma vez salvo, sempre salvo”, do lado humano, porém, a "salvação" pode ser apenas aparente, apesar da sinceridade e consagração anteriores daqueles que um dia caíram. E uma quinta interpretação que é defendida pelos edi­ tores dessa obra: 5. "Cair” [é] a negação deliberada do evangelho, com n consequente perda da salvação, (p.265. Editora Vida Nova, São Paulo). 17 GUTRHIE, Donald. Teologia do Novo Testamento. Cultura Crista, 2011. 18 ERICKSON, Milard J. Teologia Sistemática. Vida Nova, 2015. 19 MORRIS, Leon. The Expositor’s Bible Commentary - Hebrews through Revelation, vol. 12. Zondervan, Grand Rapids, EUA, 1981.

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A Supremacia de Cristo 20 PFEIFFER, Charles F. Hebreos. Editorial Porta Voz. Grand Rapids, Michigan. EUA). 21 BARNES, Albert. Bame's Notes on the New Testament - complete in one volume. Kregel Publications. Grand Rapids, Michigan, EUA. 22 GRUDEM, Wayne. Perseverance o f the Saintes - a case study from He­

brews 6.4-6 and the other warning passages o f Hebrews. Vol. I, pp. 133182. Baker, Grand Rapids, 1995. 23 MACARTHUR, John. Hebreus - Cristo, sacrifício perfeito, perfeito sacer­ dote. Editora Cultura Cristã. Grifo meu). 24 VOLF-GUNDRY, J. M. in APOSTASIA - Dicionário de Paulo e Suas Cartas, pp. 114-120. Editora Paulus. 25 WUEST, Kenneth. Joias do Novo Testamento Grego. Ed. Imprensa Batista Regular e Hebrews Six in the Greek Testament. BilbSac 119).

26 O apologista norte-americano Dave Hunt é dogmático em afirmar que Armínio negava a possibilidade de "que a salvação pode ser perdida” (HUNT, Dave. Que Amor é Este? - a falsa representação de Deus no Calvinismo. Editora Reflexão). Por outro lado, o teólogo e historiador, Roger Olson, destaca que tanto Jacó Armínio como seus sucessores, os Remonstrantes, “deixaram em aberto a questão da segurança eterna dos santos. Ou seja, eles deixaram em aberto a questão se uma pessoa verdadeiramente salva poderia cair ou não da graça” (OSLSON, Roger E. Teologia Arminiana - Mitos e Realidades. Editora Reflexão). Essa am­ biguidade deriva do pensamento de Armínio não ser conclusivo sobre esse assunto (Ele morreu muito jovem, aos 49 anos; portanto, antes de ter sistematizado seu pensamento). Suas palavras foram: "Embora eu afirme aberta e francamente aqui que eu nunca ensinei que o verdadeiro crente pode, seja total ou finalmente apostatar da fé e perecer, não quero ocultar que existem passagens da Escritura que me parecem apoiar esse aspecto" (ARMÍNIO, Jacó. As Obras de Armínio. CPAD, Rio de Janeiro). Em relação a Hebreus 6.4,5, Armínio cria tratar-se de não regenerados (.Obras, p.245). Essa mesma ambiguidade também pode ser vista em Adam Clarke, que também acreditava que a passagem de Hebreus 6.4-6 não se aplicava às pessoas que haviam professado o cristianismo nem tampouco aos desviados, mas aos apóstatas. Todavia, no texto paralelo de Hebreus 10.26-29, Clarke admite que esse apóstata é alguém que “depois de haver sido salvo pela graça ou convencido da verdade do evangelho", delibera­ damente apostatou (CLARKE, Adam. Hebreos: Comentário de La Santa Bíblia - Nuevo Testamento, tomo III. Casa Nazarena de Publicaciones). 27 CALVINO, John. Hebreus - série comentários bíblicos. Editora Fiel. São José dos Campos, São Paulo. 28PARKER, Jorge. Lexico-Concordancia Del Nuevo testamento em Griego y Espaüol. Editorial Mundo Hispano, El Paso, Texas, EUA. 29 TAYLOR, Richard S. Hebreus — Comentário Bíblico Beacon. Casa Publicadora das Assembleias de Deus. Rio de Janeiro, RJ. 30 WESLEY, John. Hebrews - Explanatory Notes & Commentary. Bristol Hot-Wells, 1754.

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Apêndice 31 MARSHAL, I. Howard. K ept by the P o w er o f G od : A Study o f Perseverance and F a llin g Away. Wipif & Stock Publisher. Eugene, Óregon, EUA, 2007. 32 ROBERTSON, A. T. H ebreos - C o m e n tá rio a l T e x to G rie g o D e l N u e v o T esta m en to. Editorial CLIE. 33 LIGHTFOOT, Neil R. H ebreu s - Jesus C risto H o je . Editora Vida Cristã. Rio de Janeiro. 34 KENDRICK, A. C. E p is tle to H ebrew s. American Baptist Publication Society. Filadélfia, EUA. 35 HAWTHORNE, Gerald F. C o m e n tá rio B íb lic o N V I . Editora Vida. 36 MORRIS, Leon. The E x p o s ito r ’s B ib lie C om m en ta ry, 12 v o l. Zondervan, Grand Rapids, Michigan, EUA. 37 C o m e n tá rio B íb lic o S ã o J e rô n im o : N o v o T e s ta m e n to . Editora Paulus. 38LANE, William. Hebrew s, 2 vols., W o rld B ib lic a l C o m m e n ta ry , Thomas Nelson, 1991. 39C. Spiq definiu os apóstatas como sendo pessoas que “crucificam o Filho de Deus por sua própria conta e ridicularizam-no publicamente" (Theological L e xicon o f the N ew Testament. Vol.3. Zondervan Publishers, EUA, 2012). 40CLAPP, Philip S. Analytical C oncordance o f the Greek N ew Testament, vol. 1 - L e x ic a l F o c u s . Baker Book House, Grand Rapids, Michigan, EUA. 41 STERN, David H. C om en tá rio Judaico do N o v o Testam ento. Editora Atos. 42 Bruce argumenta que a ausência do artigo grego, aqui, faz com que a referência seja aos “dons do Espírito” em vez de ser à própria pessoa do Espírito Santo. Muitos intérpretes usam essa regra para dizer que o apóstata teve apenas uma "influência do Espírito” em vez de participar do Espírito mesmo. Essa é uma falácia gramatical, inclusive muito usada pelas Testemunhas de Jeová para dizerem que o Espírito Santo é apenas uma força de Deus. Os nomes próprios podem vir acompanhados ou não do artigo. Sendo um nome próprio, como o é o nome “Deus”, “João”, “Paulo”, etc., a palavra “Espírito Santo” pode vir com ou sem artigo (Jo 1.6; 1.15; Rm 1.1). Veja uma exposição completa no livro de minha autoria: D efend end o o Verdadeiro E v a n g elh o (CPAD, 2009) e na obra de W. E. Vine: D ic io n á r io E x p o s itiv o de Palabras del N u e v o T e s ta m e n to , 4 tomos, edição em espanhol. Editorial CLIE, Barcelona, Espanha. 43BRUCE, F. F. L a E p is to la a los H ebreos. Libros Desafio, Grand Rapids, Michigan, EUA. 44Eusébio de Cesareia diz em sua H istória Eclesiástica que Simão, o Mago, foi para Roma e lá teria pervertido a fé de muitos (CESAREIA, Eusébio. H is tó r ia E cle s iá s tica . Casa Publicadora das Assembleias de Deus). O testemunho de Eusébio é tardio e sujeito a questionamento, da mesma forma que o é também seu registro de que Pedro foi martirizado cm Roma, sendo sucedido no episcopado por Lino. 45 RIENECKER, Fritz. C h ave L in g u ís tic a d o N o v o T e s ta m e n to G iv ^ o . Editora Vida Nova. 46TRENTHAN, Charles A. Hebreus - co m e n tá rio b íb lico B road m aii. JUERP, 47 CLARKE, Adam. C om m en ta ry o n the E p istle to the Hebrew s. t'oniurm* citado por Orton Wiley.

Ill


A Supremacia de Cristo 48WIERSBE, W. W. Hebreus - comentário expositivo do Novo Testamento. Editora Central Gospel. Rio de Janeiro, RJ. 49 MOULTON, Harold K. The Analytical Greek Lexicon Revised. Regency Library. Grand Rapids, Michigan, EUA. 50 SMITH-ABBOTT, G. A Manual Greek Lexicon o f The Greek New Testa­ ment. Charles Scribner’s Sons. Nova York, EUA, 1922. 51 BULLINGER, Ethelbert W. A Critical Lexicon and Conccordance to the English and Greek New Testament. Zondervan Publishing House. Grand Rapids, Michigan, EUA, 1975. 52 LIDDELL, Henry George & SCOTT, Robert. A Greek-English Lexicon. Claredon Press, Oxford, Inglaterra, 1996. 53 HUABECK, Wilfrid. Nova Chave Linguística do Novo Testamento Grego. Ed. Hagnos. 54 FRIBERG, Timothy & FRIBERG, Barbara. Analytical Greek Lexixon. Bible Works, Norfolk, VA, EUA. 55 Idem. 5hBible Works, Norfolk, VA, EUA. S1BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon o f the New Testament and Other Early Christian Literature. The University of Chicago, EUA. 58 MOUNCE, William D. Léxico Analítico do Novo Testamento Grego. Editora Vida Nova). 59Septuaginta - Duo Volumina in uno. Deutsche Bibelgesellschaft Stutgart, Alemanha, 1979. 60ARNOLD, Clinton E. Zondervan Illustrated Bible Backgrounds Com­ mentary. Zondervan, Grand Rapids, Michigan., EUA. 61 TAYLOR, Bernhard. The Analytical Lexicon to the Septuagint. Zondervan Publishing House, Grand Rapids, Michigan, EUA. O Segundo termo, paraptoma, que ocorre nesses versículos, também ocorre 19 vezes no NT e, de acordo com R. C. Trench, pode ser traduzido como "ignorância do que deveria ser conhecido”. Todavia, os léxicos geralmente traduzem como "pecado, passo em falso e transgressão” (veja TRENCH, R.C. Synonymus o f The New Testament. Kegan Paul & Co. London, 1894; GINGRICH, F. Wilbur & DANKER, Frederick. Léxico do Novo Testa­ mento Grego/Português. Editora Vida Nova, São Paulo). 62 Na Septuaginta (285 a.C), além das duas passagens citadas aqui, esse vocábulo ocorre outras quatros vezes. Uma vez em Ester 6.10 e ou­ tras três vezes em Ezequiel 18.24; 20.27 e 22.4 (MORRISH, George. A Concordance o f the Septuagint, p. 185. Regency Library. Zondervan Publishing House, Grand Rapids, Michigan, EUA, 1976). 63HATCH, Edwin & REDPTH, Henry A. A Concordance To The Septuagint - And the Others Greek o f the Old Testament Versions, vol. 2. Claredon Press, Oxford, Reino Unido, 1897. 64JENNI, Ernest & WESTERMANN, Claus. Theological Lexicon o f the Old Tes­ tament, vol. 2. Hendrickson Publishers. Peabody, Massachssetts, EUA, 2004. 65 LUST-EINIKEL-HAUSPIE. A Greek-English Lexicon o f the Septuagint. Bible Works. Norfolk, VA, EUA.

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Apêndice 66THAYER, Joseph. G re e k -E n g lis h L e x ic o n o f the N e w T esta m en t. Baker Book House. Grand Rapids, Michigan, EUA. 67 WINGRAM, George. The Englishman's Hebrew Concordance o f the Old Testament. Hendrickson Publishers. Peabody, Massachusetts, EUA, 2009. 68KLEIN, Ernest. A Compreensive Etymological Dictionary o f the Hebrew Language for Readers o f English. CARTA, Jerusalém, Israel, 1987. 69SCHOKEL, Alonso Luis. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. Editora Paulus, São Paulo, 1997. 70 KOEHLER, Ludwig & BAUMGARRTNER, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon o f the Old Testament. 2 vol. Brill, Leiden, 2001. 71 WAKELY, Robin in Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, vol. 2. Editora Cultura Cristã, São Paulo, 2011. 72 DAVIDSON, A. B. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon. Regency Reference Library. Grand Rapids, Michigan, EUA. 73 HARRIS, R. Laird. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Tes­ tamento. Vida Nova. 74VINE, W. E; UNGER, Merril F; WHITE JR, William. Dicionário Vine - o

significado exegético e expositivo das palavras do Antigo e Novo Testa­ mento. CPAD, 2009. 75 GESENIUS, William. Hebrew and Chaldee Lexicon to the Old Testament.

Baker Book House. Grand Rapids, Michigan, EUA, 1993; BROWN, F & DRIVE, S. The Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon. Hendrickson Publishers. Peabody, Massachusetts, EUA, 2010. 76De certa forma, nesse aspecto, o argumento de Harless aproxima-se aqui de Kenneth Wuest, que argumenta que ninguém hoje pode apostatar porque não existe mais templo nem sacrifícios. F. F. Bruce, argumen­ tando contra Wuest, demonstrou em seu comentário de Hebreus que essa é uma tese inconsistente (BRUCE, F. F. La Epistola a los Hebreos. Libros Desafio). 77 HARLESS, Hal. Fallen Awayor Fallen Down? - Themeaning o f Hebrews 6.1-9. Chafer Theological Seminary. 78Não são apenas os léxicos de Bauer e Thayer que traduzem parapipto com o sentido de apostasia; outros léxicos também o fazem, como exemplo, Friberg-, Rusconv, Gingrich; Barclay e Newman e Lust-Eynikel-Hauspie. 79 A linguística mostra-nos que as palavras não possuem sentido fora dos seus contextos e que elas podem assumir, num momento posterior, outro significado diferentemente daquele que possuía originalmente. Exemplos são vistos no Novo Testamento. No grego clássico, a palavra daimonion era usada em relação aos espíritos dos mortos. Todavia, no Novo Testamento, tem o sentido de um ser espiritual maligno. A palavru grega apóstolos deriva etimologicamente de apostéllô, com o sentido de envio. Nos papiros antigos, apóstolos era usado em referência a um "navio graneleiro” enviado em uma viagem comercial. Todavia, no Novo Testamento, é usada para referir-se a uma pessoa enviada em uma inliilã (CHAMBERLAIN, William. Gramática Exegética do Novo TestatHíHlê Grego. Cultura Cristãs, São Paulo, 1989). É temerário, portanto, m


A Supremacia de Cristo ou forçar o uso de p a ra p ip to somente ao seu sentido do grego clássico e ignorar aquilo que o contexto do Novo Testamento atribui-lhe. 80 MURAOKA, T. A G re e k -E n g lis h L e x ic o n o f th e S e p tu a g in t. Walpole, MA, EUA, 2009. 81 LIDDELL, Henry George & SCOTT, Robert. A G re e k -E n g lis h L e x ic o n . Claredon Press, Oxford, Inglaterra, 1996. 82 Esse fato é claramente perceptível quando observamos o uso de a p h is te m i tanto na Septuaginta como no Novo Testamento. Na versão dos LXX, a grande maioria das ocorrências de a p h is te m i não tem relação com a a postasia. Em muitos casos, porém, o sentido de apostasia fica evidente como, por exemplo, em Dt 7.4; Jz 2.19; 2 Rs 10.29,31; Ez 6.9; 20.8; 23.17. Da mesma forma, o termo a p h is te m i, usado no Novo Tes­ tamento com o sentido claro de apostasia em 1 Timóteo 4.1 e Hebreus 3.12, não possui essa significação na grande maioria dos textos. Em palavras mais simples, as palavras não possuem significação indepen­ dente do contexto em que se encontram (para um estudo da ocorrência dessa palavra tanto no AT como no NT, veja a obra de George Morrish, A C o n co rd a n ce o f the S e p tu a g in t, e a C o n co rd a n cia G re co -E s p a n o la dei N u e v o T e sta m en to, de Hugo M. Petter). 81 HANA, Roberto. Ayda G ra m a tica l Para E l E s tú d io D e l N u e v o Testam ento G riego.

84TAYLOR, John B. Ezequiel - introdução e com entário. Editora Cultura Cristã. 85 KEIL, C. F. & DELITZSCH, F. C om m en ta ry o n the O ld Testam ent, vol. 9. Hendrickson Publishers. Peabody, Massachusetts, EUA, 2006. 86M a 'a l, por exemplo, é usado com o sentido de p e ca r c o n tra o S e n h o r em Deuteronômio 32.51. Essa passagem é uma referência ao incidente de Cades, no deserto de Zim, quando Moisés feriu a Rocha. M a 'a l, nessa passagem, possui o sentido de peca do, transgressão ou mesmo rebeliã o, mas não está em vista uma a postasia. 87 O léxico de Robinson deu como sentidos de p a ra p ip to : “apartar-se, apostatar (H b 6 .6 )” . Robinson destaca que esse termo traduz o hebraico m a ’a l em Ezequiel 18.24 e 20.27. (ROBINSON, Edward. L é x ic o G rego d o N o v o Testam ento. Editora CPAD. Por outro lado, James Hope Mouton e George Milligan destacam que o uso desse verbo no P O X Y I . 95, aproximada­ mente 129 d.C., usado em referência a um contrato que deve ser anulado por haver sido quebrado, dá sustentação ao sinistro sentido encontrado em Hebreus 6.6 (MOUTON, James Hope & MILLIGAN, George. The V o ca b u la ry o f the Greek Testa m en t - ilu stra ted f r o m the pa pyri a n d o th e r the n on -lite ra ry sources. Hodderand Stoughton, Londres, Inglaterra).

88 LOUW, Johannes & NIDA, Eugene. L é x ic o G re g o -P o rtu g u ê s d o N o v o T e s ta m e n to - baseado e m d o m ín io s s e m â n tico s . Sociedade Bíblica do Brasil. 89 j q T T E L , Gerhard. T h e o lo g ic a l D ic tio n a ry o f the N e w Testam ent, vol. VI, pp.170,171. Eerdmans Publishing Company. Grand Rapids, Michigan, EUA. 90 COMFORT, Philip W. & Elwell, Walter. D ic io n á r io B íb lic o Tyn da le. Geográfica Editora, Santo André, São Paulo, 2015. 158


Apêndice 91 RUSCONI, Carlo, Dicionário do Grego do Novo Testamento. Editora Paulus, São Paulo, 2005. 92 A afirmação de Norman Geisler de que parapesontas não indica uma ação sem retomo em Hebreus 6.6, mas, sim, um "desviar-se do rumo”, no sentido de que o autor de Hebreus não estaria se referindo a uma situação desesperadora, é carente de fundamentação léxica e semân­ tica. Além desse fato, o contexto mostra claramente que o autor de Hebreus vincula o "cair" (Parapsontas) à "impossibilidade de um novo arrependimento”, o que acaba por esvaziar o argumento de Geisler (veja GEISLER, Norman & HOWE, Thomas. Bíblia de Estudo Perguntas e Respostas. Editora Mundo Cristão. São Paulo, 2016). 93KENDALL, R.T. Once Saved, Always Saved. Moody Press, Chicago, 1985. 94 OSBORNE, Grant. Four Views on the Warning Passages in Hebrews. Kregel Publications. Grand Rapids, Michigan, EUA. 95 BRUCE, F. F. La Epistola a Los Hebreos. Libros Desafio, Grand Rapids, Michigan EUA. 96 GOODRICH, Richard J. & LUKASZEWSKI, Albert L. A Reader’s Greek New Testament. Zondervan. Grand Rapids, Michigan, EUA, 2007. 97 Sobre o particípio condicional grego, a obra Syntax o f New Testament Greek diz: "Este tipo de particípio funciona como a prótase de uma sentença condicional. É traduzido pela palavra ‘se’. O particípio indica uma condição que deve ser cumprida antes que a ação do verbo principal possa ocorrer” (BROOKS, James A. & WINBERY, Carlton L. SyntaxofNew TestamentGreek. University Press ofAmerica. Lanham, Maryland, EUA, 1998). Essa mesma obra cita como exemplos: Hebreus 2.3; Filipenses 1.27; Gálatas 6.9; Lucas 9.25; 1 Timóteo 4.4, mas não Hebreus 6.6. Veja um estudo detalhado sobre o uso do aoristo e do particípio aoristo nas obras de A. T. Robertson e H. E Dana e Julius Mantey. Esses autores citam alguns casos onde o contexto permite ver condicionalidade no uso do particípio grego e mostram como exemplos Lc 19.23 e At 15.29 (e ambos citam Hebreus 2.3). Robertson diz que, em alguns textos, é difícil precisar essa condicionalidade e cita Mouton, que nega, por exemplo, a existência no Novo Testamento de particípio condicional de segunda classe (condição irreal). Todavia, nenhum desses gramáticos cita nessas obras, como exemplo de particípio condicional, o texto de Hebreus 6.6 (ROBERTOSN, A. T. A Grammar o f the Greek New Testament in the Light o f Historical Research, pp.824; 1129. Broadman Press, Nashville, Tenessee, EUA e Gramática Griega Del Nuevo Testamento, pp 221. H. E. DANA e Julius R. Mantey. Casa Bautista de Publicaciones, El Paso, Texas, EUA). Da mesma forma, o gramático de grego bíblico W. C. Taylor também cita, em sua clássica gramática, vários particípios condi­ cionais: Romanos 2.27; Gálatas 6.9; 1 Timóteo 4.4; Hebreus 7.1, im luslve Hebreus 2.3. No entanto, Taylor destaca: “mas não Heb 6.6." (TAYLOR, W.C. Introdução ao Estudo do Novo Testamento - Gramática. EdttõPB Batista Regular, São Paulo). 98WUEST, Kenneth. Wuest's Word Studies from the Greek New TtiUUtttnU 4 vol. Eerdmans, Grand Rapids, Michigan, EUA, 2002.


A Supremacia de Cristo 99 METZGER, Bruce M. Un Comentário Textual al Nuevo Testamento Griego. Sociedade Bíblica Unidas, 2006. 100 The NKJV Study Bible. Grupo Nelson, Nashville, Tennessee, Estados Unidos, 2014. 101 BEZA, Theodora. Novum Testamentum D om ini Nostri Jesu Christi Interprete Theodoro Beza. D. Appleton & Company. Nova York, 1850. 102Adam Clark Commetaries in the Whole Bible. Grace Works Multimedia, EUA. 103Adam Clark Commetaries in the Whole Bible. Grace Works Multime­ dia, EUA. 104SPURGEON, Charles. Hebrews - The Expansive Commentary Collection. Amazon Digital Service LLC, EUA, Janeiro, 2017. 105KENDALL, R. T. Once Saved, Always Saved, pp. 176,177. Moody Press, Chicago, 1985. 106 The Holy Bible - New International Version. Zondervan Publishing House. Grand Rapids, Michigan. EUA, 1984. 107 Dave Hunt recentemente fez uma crítica ácida à teologia reformada e uma defesa acalorada dos principais pontos do arminianismo (HUNT, Dave. Que Amor é Este? - a falsa representação de Deus no calvinismo. Editora Reflexão). 108 CORNER, Daniel D. The Believer's Conditional Security. Evangelical Outreach. Washington Outreach, PA, EUA. 109 OSBORNE, Grant. Four Views on the Warning Passages in Hebrews. Kregel Publications. Grand Rapids, Michigan, EUA. 110HARLESS, Hal. Fallen Awayor Fallen Down? - Themeaning o f Hebrews 6.1-9. Chafer Theological Seminary. 111 WALLACE, Daniel B. Gramática Grega - uma sintaxe exegética do Novo Testamento. Editora Batista Regular do Brasil, São Paulo, 2009. 112 OSBORNE, Grant. Four Views on the Warning Passages in Hebrews. Kregel Publications. Grand Rapids, Michigan, EUA. 113 TRENCH, Richard C. Synonyms o f the New Testament. Cosimo Classics, Nova York, EUA, 2007. 114Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil. Casa Publicadora das Assembleias de Deus.

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k w p tm m iÊ

Cristo

Fé, esperança e ânimo na carta aos Hebreus

A carta aos Hebreus recebeu os mais diversos predica­ dos ao longo dos tempos. Para muitos, por ser um com ­ pilado de todas as doutrinas do evangelho, é a epístola mais importante. Em um período em que a igreja brasileira sofre uma profunda transformação negativa, o pastor José Gonçalves debruça-se sobre os ensinamentos das cartas aos He­ breus para trazer-nos uma reflexão teológica que prome­ te ser um importante aliado contra a ameaça que ronda de perto a vida de todo verdadeiro cristão: A apostasia. Em A supremacia de Cristo, o autor busca fomentar a nossa fé, esperança e ânimo para que nos levantemos e vençamos a cultura secular que tanto prejudica a igreja brasileira. José Gonçalves é pastor, graduado em Teologia pelo Seminário Batista de Teresina e em Filosofia pela Universidade Fede­ ral do Piauí. E presidente do Conselho de Doutrina da Convenção Estadual das As­ sembleias de Deus no Piauí e vice-presiden­ te da Comissão de Apologética da CGADB. Além de comentarista das revistas de Escola Dominical da CPAD, é também articulista e autor dos livros: As Ove­ lhas também Gemem, Porção Dobrada, Por que Caem os Valentes, A Prosperidade à Luz da Bíblia e Defendendo o Verdadeiro Evangelho, todos editados pela CPAD. ISBN 9 7 8 -8 5 -2 6 3 -1 4 7 6 -4

788526 314764

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