Eberson Theodoro
UMA CAMA PRA TRÊS
Mas compreendi, que além de dois existem mais. Da música “A Maçã”, cantada por Raul Seixas.
São as primeiras noites em que a nossa cama passou a ficar mais apertada, e está bom assim. E olha que eu sou o mais espaçoso! Mas sentir o meu corpo aninhado entre outros dois me aproxima muito mais daquilo que penso ser o paraíso. Ainda que para muitos viver isso sem a mínima culpa seja a materialização mais profana do pecado.
Capítulo 1 – O disco da Cindi Lauper
Uma pausa depois do almoço e de horas intermináveis de provas na faculdade. Ricardo estava jogado no sofá, apenas de cueca e o ventilador de teto girava freneticamente, trazendo um mínimo de conforto para aquele início de tarde calorento de outubro. Quando o sono finalmente começa a surgir , logo se vai embora por completo com um toque de telefone, que insiste em ser atendido . Ricardo tenta encontrar o aparelho, perdido em meio a tantas almofadas jogadas de qualquer jeito no sofá. - Desse jeito a ligação vai cair, droga – resmunga Ricardo. Pronto! Ele olha o display do telefone e descobre quem tinha ousado interromper sua sesta. - Oi mãe. - Filho, boa tarde. Que voz é essa? - Tava quase dormindo. -Te acordei... - Não, eu disse que estava quase dormindo. Logo, não tinha como me acordar – diz ele, com o tom carinhoso que ele reservava somente para duas pessoas: Teresa, sua mãe, e Paulo, seu namorado. -Então parece que adivinhei. Se demorasse mais uns cinco minutos, iria interromper os sonhos do meu menino. Mesmo tendo 21 anos, morando na capital e cursando faculdade, Ricardo ainda é visto pela mãe como uma criança do pré-escolar. - Filho, como estão as coisas por aí? - Indo daquele jeito, mãe... Teresa, mesmo à distância, podia perceber, somente pelo tom de voz do filho, que as coisas não estavam muito bem entre Ricardo e Paulo. - Tô esperando que as coisas possam melhorar, mãe. Um dia, quem sabe, eu esqueço o de verdade o que ele me fez e as coisas mudam de vez entre nós. Sei que o Paulo tem se esforçado, mas... - Ou você esquece aquela traição, ou acho que você devia tentar viver sozinho nesse apartamento e focar nos seus estudos. Bem, não vou falar nisso mais uma vez, é uma decisão sua, né?
Teresa, apesar de ser uma mãe protetora, sabe a hora de sair de cena como ninguém. Talvez seja por isso que a relação entre ela e Ricardo seja tão próxima, como se fossem amigos de infância. Ela sabe mostrar o caminho que acha certo, ao mesmo tempo que tem consciência do momento em que seu filho deve escolher os caminhos dele... - Bem, meu filho. Eu te liguei pra falar sobre um assunto e gostaria muito que você me ajudasse a resolver isso. Ricardo brinca que está fazendo pouco caso com a solicitação de sua mãe, como se não se importasse com ela. - Vamos ver seu estarei a fim, dona Teresa. Fala aí que eu penso no seu caso. -Para de ser irônico, Ricardo. Mas eu sei que você poderia me ajudar sim. Olha, lembra do filho da dona Laura, que estava morando fora do país? - O Jonas? Bem, faz tanto tempo que não o vejo, desde que eu tinha uns 15 anos. Ele deve estar sete anos fora. Mas o que tem ele? - É que ele voltou a morar aqui na nossa cidade e vai começar a faculdade no início do ano que vem. Mas aí na capital. Inclusive é perto de onde vocês moram. Você sabe que devo muito à dona Laura, que me ajudou a cuidar de ti quando o seu pai morreu. Ela queria saber se você poderia recebê-lo. É só por uns dias, até o rapaz encontrar um apartamento para alugar. Eu não saberia dizer não, meu filho. Posso contar com vocês? - Tudo bem, eu acho. Mas ele teria de dormir na sala. - Ai, filho. Que bom! Ela disse que vai fazer um depósito na sua conta, pra ajudar nas despesas. - Que isso, mãe. Estamos bem aqui. Só o apartamento que é pequeno pra mais de duas pessoas, mas vamos recebê-lo bem, sim. - Bem, vou avisar nossa vizinha então. Ele acabou de passar no vestibular e no final de janeiro estará indo morar aí. - Eu vou conversar com o Paulo, mas sei que não terá problema. E tem dois meses ainda até lá. Teresa desliga tão animada e aliviada que parece ter salvado o mundo de um ataque nuclear. Ricardo se levanta do sofá, vai até a mesa de centro da sala, põe de lado algumas revistas que estavam em cima da base do telefone e conecta o aparelho, que estava quase sem bateria. Ele dá um leve sorriso ao lembrar de como sua mãe, sempre preocupada com os problemas do mundo, vive correndo de um lado para o outro na cidade natal dele, em meio a tantos compromissos voltados aos mais necessitados, seja de comida, de dinheiro ou qualquer que seja a carência
Já fazia meia hora que Ricardo estava no escritório que ele e Paulo improvisaram num quartinho pequeno para estudar e fazer projetos da faculdade. Um livro sobre arquitetura, que
ele estava achando chato e ainda tinha que ser traduzido do inglês, tomava toda sua atenção naquele momento. Nem mesmo o disco da Cindi Lauper, que ele tanto gosta de ouvir e estava tocando na sala, conseguia disputar a atenção dele com aquele livro. E olha que o livro era chato e o disco, ele ganhou de presente de Paulo no dia em que ele pediu Ricardo em namoro. De repente, com o silêncio que durava uns minutos, ele se levanta, vai até a sala e troca o lado do disco, colocando na quarta faixa do lado A. Logo vem um sentimento de tristeza, de uma perda iminente, pois Ricardo não sabe quanto tempo sua relação vai durar. Resta apenas uma sensação de que pode não durar muito. “Depois que o Jonas for embora eu vou me separar do Paulo. Não posso insistir nisso vivendo dessa forma. Vai ser melhor eu ficar sozinho aqui e ver o que faço da minha vida”, conclui Ricardo, em sua mania de falar sozinho quando não há ninguém por perto. Enquanto toca “True Colors”, ele pega a capa do LP e suas lembranças o levam para a noite em que conheceu Paulo, um ano e meio atrás. ** Uma das primeiras coisas que chamou a atenção de Ricardo em Paulo era o gosto pelo mesmo tipo de música: qualquer coisa que tocasse em inglês e que tivesse sido lançada há pelo menos 15 ou 20 anos antes. Cindi Lauper era a preferida de Ricardo e Paulo usava uma camisa dela no dia em que se conheceram, na primeira vez em que ele pisou em uma boate gay de Florianópolis. Foi a deixa para que Ricardo se aproximasse daquele rapaz moreno, baixinho, mas encorpado, que estava de olho nele fazia meia hora. Ricardo não sabia se deveria se aproximar, pois não tinha certeza de que aquele moreno olhava mesmo pra ele – e não pra qualquer outro das dezenas de caras que estava ali na fila do bar. Aliás, foi um aborto da natureza Ricardo ser visto numa fila de bar de uma boate. Ele, que no máximo bebe uma dose ou outra de vinho, não tinha nada ali pra fazer a não ser pedir uma garrafa de água mineral. Mas se não fosse estar naquela fila, talvez demoraria mais para ser percebido por aquele moreno, com uma barba que o deixava ainda mais atraente. Mas quando aquele rapaz se vira e Ricardo vê que ele estava vestindo uma camisa da cantora Cindi Lauper, muito famosa nos anos de 1980, ele não pensou duas vezes em largar aquela fila interminável e ir abordar o moço. - Desculpe chegar assim, mas poxa, a Cindi é minha cantora preferida! - Bacana, também gosto muito dela. Tanto que vim com ela no meu peito. Pronto, aquele rapaz que antes era uma dúvida pra ele, estava ali, na sua frente, conversando sobre uma das coisas que Ricardo mais gosta. O momento seria mais perfeito ainda para Ricardo caso ele soubesse o que dizer. Ficar em silêncio, na concepção dele, demonstraria falta de conteúdo ou insegurança. Não que alguém pudesse julgá-lo de ser uma pessoa vazia, mas que ele não era um poço de segurança, isso nem ele mesmo poderia negar.
O rapaz moreno olha sério, levanta os óculos de Ricardo e olha bem fundo em seus olhos. O coração de Ricardo passa a bater ainda mais rápido. - Você abandona uma fila de bar, vem reparar na minha camisa, fica me olhando dessa forma e eu não tenho nem o direito de saber como se chama esse loiro de olhos azuis? O rapaz demonstra firmeza e um certo tom de sarcasmo na voz. Mas de alguma forma, que Ricardo não sabia explicar como, ele estava se sentindo muito à vontade com o gatinho moreno que acaba de conhecer. - Ricardo. E você...será que também tenho o direito de saber seu nome? - Você tem todo o direito do mundo, claro. Era a primeira vez que Ricardo se encanta com um sorriso como o que o rapaz acaba de abrir no rosto. - Paulo, muito prazer. Ainda consternado com a beleza de Paulo, Ricardo recebe um abraço e um beijo no pescoço. Ricardo sentiu esse beijo seguido por um frio na espinha, que foi o suficiente para Ricardo perceber que aquele rapaz que ele acaba de conhecer na balada não seria apenas um rapaz que ele acaba de conhecer na balada. E a confirmação viria pouco mais de uma hora depois. ** Paulo está sentado no chão do apartamento de Ricardo, em meio a dezenas de discos de vinil que ele coleciona desde que sua mãe lhe deu um toca discos de presente, para inaugurar o apartamento que Teresa tinha comprado pra ele. Teresa resolveu comprar o imóvel assim que recebeu a notícia de que o filho passou no vestibular para a federal, dois anos atrás. Ela não queria que o filho morasse na capital pagando aluguel todos os anos que Ricardo passaria estudando. - Nossa, Ricardo, onde você achou tudo isso? Paulo parecia uma criança de 5 anos sozinha em uma loja de brinquedos, tamanho o entusiasmo que ele demonstrava diante da quantidade de discos de bandas que ele também gosta. - É fácil! Aqui na cidade tem alguns sebos, aquelas livrarias que vendem livros, revistas, discos. Você nunca foi? - Eu sei o que é um sebo, ta me chamando de burro? Os dois riem. Ricardo às vezes tem uma tendência de explicar as coisas com tantos detalhes que vez ou outra passa a impressão de que a pessoa que ouve é 100 vezes menos inteligente que ele. - Tá bem, desculpe. Mas você nunca foi em sebo?
- Sim, mas faz tempo que não entro em um. - O que você acha de ir comigo qualquer dia desses então? - “Qualquer dia desses” pra mim significa “nunca”. Gosto de marcar com a pessoa e dizer data, horário e local, responde Paulo, em um tom forçado de autoridade. Ricardo abre um sorriso e lembra que domingo de manhã tem uma feirinha na praça no Centro da cidade. - Lá sempre vendem LP´s. Mas temos que acordar cedo pra pegar alguma coisa que preste. Paulo olha no celular. São quase 4h da manhã. - Puxa, como passou rápido o horário. E meu carro tá na lá na rua, perigoso isso. - Você não trancou o carro? - Sim – Paulo responde, mas com um tom preocupado. – Só que não fico muito tranqüilo em deixar ele assim, acabei de comprar, sabe como é? Ricardo coça a nuca e pensa em dizer uma coisa, mas desiste. Paulo percebe que ele quer dizer algo e já imagina o que é. Na verdade, se Paulo estiver certo, é isso que ele está esperando ouvir – um convite de Ricardo para dormirem juntos. - Eu, é.... bem, Paulo, eu não ficaria seguro em saber que você vai atravessar a cidade no meio da madrugada, com tanta gente louca por aí. Você....quer dormir aqui comigo? Daí a gente acorda, toma um café e vai na feirinha. Paulo vira a cabeça pro lado, como quem vai falar uma besteira. - Olha Ricardo, acho que só tem um problema nisso tudo. Ele solta uma pequena gargalhada e continua. - Eu tenho certeza de que a última coisa que a gente vai fazer esta noite é dormir. Paulo abraça Ricardo com bastante força, iniciando o primeiro beijo entre os dois. Ricardo não podia imaginar como seria bom o beijo desse rapaz. Os dois corpos passam a ficar tão juntos que até uma caixa de papelão seria grande o suficiente para abrigar os dois. Mas eles tinham o apartamento e a noite inteira para fazerem o que desejassem. Um quase desconhecido acaba de entrar em sua casa, lhe roubando um beijo, tirando sua roupa e agora Ricardo divide com ele a mesma cama. Tudo muito rápido, mas intenso o suficiente para que ele sonhasse com essa noite pelo resto de seus dias ou até que outra ainda mais intensa chegasse. **
São oito da manhã e um barulho chato do despertador começa a ecoar por todo aquele quarto. Ricardo levanta e procura algo pra vestir. Mas antes ele olha para o lado. Ele mal pode acreditar no que aconteceu e em como tudo o que aconteceu foi tão mágico pra ele. Ricardo dá um beijo no pescoço de Paulo e segue beijando todo o seu peito. Ele também acorda e o primeiro sorriso de Paulo daquele domingo, o mais lindo de todos os sorrisos, era exclusivamente para Ricardo. Definitivamente ele não precisava de mais nada pra estar feliz naquele momento. O café da manhã foi rápido e logo ambos estavam dentro do carro de Paulo, que olha em volta do veículo para ver se estava tudo bem. - Não disse que seu carro estaria seguro aqui, seu bobo? Ricardo entra no carro e repara como o interior do automóvel era cheio de elementos diferentes do que estava acostumado a ver. Na volta da balada ele não tinha reparado que havia um desenho de uma banana pendurado no espelho. - O que é essa banana? – pergunta. - Foi desenhada pelo Andy Warhol. Ricardo faz um “ahan” e Paulo percebe que ele nunca tinha ouvido falar dele. - Andy Warhol, pop art. - Pra ser sincero, não conheço. -Foi ele quem fez aquela serigrafia em quatro cores diferentes da Marylin Monroe e também foi ele quem disse que um dia todo mundo teria 15 minutos de fama. - Ah, sim. Agora lembrei. A pintura da lata de sopa Campbell´s é dele, né? Eu só não tinha ligado o nome à pessoa. A conversa sobe arte durou pouco e Paulo não teve muita dificuldade para encontrar uma vaga de estacionamento, afinal não eram nem nove horas e o trânsito numa manhã de domingo nunca é intenso. A feirinha da praça estava há poucos passos dos dois. Telefones antigos, selos, moedas e cédulas das mais variadas partes do mundo, cristais, poltronas, enfim, aquela praça mais parecia um antiquário. Paulo olha o movimento de pessoas chegando e se espanta ao se certificar que havia muita gente disposta a acordar cedo num fim de semana para comprar coisas antigas. Ricardo estava entretido com algumas revistas velhas quando sente um abraço de Paulo, que tinha sumido no meio das barraquinhas. Ele estava com um embrulho e um cartão na mão. - O que significa isso? – pergunta Ricardo, com ar de surpresa. Não, ele não poderia esperar um presente assim de alguém que ele não conhece não tem nem dez horas. - Significa exatamente isso, um presente, seu lorinho!
Era a primeira vez que Paulo chamava Ricardo assim. Ricardo, por sua vez, parecia estar derretendo por dentro. Era muita coisa bonita acontecendo em pouco tempo. Paulo começa a descrever o produto como se estivesse vendendo uma campanha de marketing da agência de publicidade onde trabalha. - Comprei uma coisinha pra você e essa coisinha foi o tempo quem me trouxe. Uns quase trinta anos, pra ser mais exato. Mas vamos no meu carro. Lá dentro te digo o que é. Ricardo não podia conter a ansiedade. Poucos segundos demoraram pra eles entrarem no carro. Paulo olha bem sério nos olhos dele e Ricardo retribui o olhar. Os olhos castanhos de Paulo estavam fazendo Ricardo esquecer por alguns segundos do mistério que envolvia o presente. - Olha, loirinho. Achei uma coisa que quero dar pra você, mas logo vou avisando que se trata de um presente que eu também vou querer usar, pois gosto muito. Tinha três iguais na barraquinha onde comprei, mas peguei apenas um porque sei que vamos usar ele juntos por muito tempo. Era a primeira vez que Paulo demonstrava certa insegurança na voz. Ricardo pega o embrulho, abre devagar e logo se dá conta do que se trata. Um disco da Cindi Lauper. Justo o disco que ele emprestou pra alguém que não lembrava quem era e já tinha dado como perdido. Paulo não podia ser mais assertivo. - Que lindo, obrigado mesmo. Eu tinha ele, foi um dos primeiros que comprei quando vim morar aqui. Mas alguém pegou emprestado e nem faço idéia de onde esteja. Nossa....obrigado mesmo! - Só isso que mereço? Ricardo joga o disco no banco de trás do carro e beija Paulo, que interrompe o beijo logo em seguida. - Não sei se você percebeu Ricardo, mas eu disse que comprei só um exemplar desse disco. - Posso emprestar pra você quando quiser ouvir. Paulo diz que não com a cabeça. - Estamos em 2013. Ninguém mais tem doca discos em casa. Você é o único, eu acho. Isso quer dizer que, se eu quiser ouvir este disco, você vai ter de me receber mais vezes na sua casa. - E por que eu deveria te convidar pra subir no meu apartamento mais vezes? Paulo se aproxima ainda mais de Ricardo, que a essa altura já estava quase sentado no colo dele. - Porque eu quero que você seja meu namorado. E nosso namoro não vai dar certo se a gente ficar se encontrando somente dentro do meu carro.
Ricardo não disfarça seu espanto. Mas um sorriso no rosto dele anuncia a resposta que Paulo queria ouvir. - Se você disser que não, pego o disco de volta pra mim. O rapaz loiro arruma os óculos, olha pro chão do carro, com a intenção de fazer certo suspense.E ele percebe a expectativa de Paulo, que balançava o pé direito, como se estivesse há 5 horas numa fila de banco. Era a hora de acabar com o suspense e garantir que não perderia o vinil da Cindi Lauper pela segunda vez. - Então acho que vou levar o disco e você pra morar comigo.