A Divina Adoradora - Trecho

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A vinganรงa dos deuses

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Do Autor: As Egípcias A Rainha Sol A Sabedoria Viva do Antigo Egito Mundo Mágico do Antigo Egito Nefertiti e Akhenaton O Egito dos Grandes Faraós Filae — O Último Templo Pagão Tutancâmon — O Último Segredo O Faraó Negro A Viagem Iniciática

Séries r a m sés

m o za rt

O Filho da Luz (Vol. 1) O Templo de Milhões de Anos (Vol. 2) A Batalha de Kadesh (Vol. 3) A Dama de Abu-Simbel (Vol. 4) Sob a Acácia do Ocidente (Vol. 5)

O Grande Mago (Vol. 1) O Filho da Luz (Vol. 2) O Irmão do Fogo (Vol. 3) O Amado de Ísis (Vol. 4)

a pedr a da luz

o s m i s t é r io s de o sír i s

Nefer, o Silencioso (Vol. 1) A Mulher Sábia (Vol. 2) Paneb, o Ardoroso (Vol. 3) O Lugar da Verdade (Vol. 4)

A Árvore da Vida (Vol. 1) A Conspiração do Mal (Vol. 2) O Caminho de Fogo (Vol. 3) O Grande Segredo (Vol. 4)

a r ainha liberdade O Império das Trevas (Vol. 1) A Guerra das Coroas (Vol. 2) A Espada Flamejante (Vol. 3)

a v ing a nça d o s de use s

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Caça ao Homem (Vol. 1) A Divina Adoradora (Vol. 2)

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Christian Jacq

A vingança dos deuses

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Tradução Jorge Bastos

Rio de Janeiro | 2015

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1. Por ordem do juiz Gem, velho autoritário e incansável, os policiais se espalharam sem fazer barulho. Armados com cassetetes e pequenas espadas, preparavam-se para prender o criminoso procurado há várias semanas. Um monstro acusado de haver exterminado seus colegas do escritório de intérpretes, eliminado cúmplices e organizado um complô contra o faraó Amásis.* Impossível de ser pego, o escriba Kel, de inteligência considerada superdotada e com futuro que se previa até então brilhante, conseguia escapar entre as malhas da rede lançada pelas forças policiais. Ao longo de sua extensa carreira, nunca o chefe da magistratura egípcia havia enfrentado assassino igual. Implacável e engenhoso, o erudito escriba se transformara em besta feroz. Os arqueiros de elite tinham autorização para eliminá-lo sumariamente, caso ameaçasse a existência dos homens encarregados da prisão. Mas o juiz esperava poder interrogá-lo

* Alçado ao trono em 570 a.C.

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e descobrir os verdadeiros motivos daqueles atos. No entanto, mesmo que o criminoso falasse, diria a verdade? Em tal ponto de barbárie, o indivíduo não conta mais com sua plena razão. A aurora não demoraria a raiar. Invadido por uma vegetação agreste e com relvas que cortavam a pele como lâminas, o terreno em volta da fábrica abandonada apresentava vários obstáculos: antigas formas quebradas de tijolo, cacos de cerâmica, escorpiões... Devia-se avançar devagar sem acordar quem dormia. — Tem certeza de que ele se esconde aqui? — perguntou mais uma vez o juiz ao alcaguete, um encarregado de armazenagem do templo de Ptah que servia de informante para a polícia. — Certeza absoluta! Identifiquei-o nas proximidades do san­tuário graças ao retrato espalhado por todo lugar e depois o segui. — Ele não notou? — Não. Felizmente para mim! Assim que ele entrou na fábrica, desapareci e corri para a cidade. O tempo todo tinha medo de estar sendo seguido e ser massacrado! Levei muito tempo para retomar o fôlego no quartel principal e acabei dando expli­cações muito confusas, de tanto que o medo me fechou a garganta. Quando recebo a recompensa? — Assim que ele for preso — prometeu o juiz. — Viu cúmplices? — Apenas o assassino — disse o informante —, mas não me atrevi a chegar muito perto. Se tivesse alguém de tocaia, eu não estaria mais neste mundo! Riscos assim não merecem uma recompensa extra? — Veremos. Por agora, mantenha-se afastado e de forma alguma se aproxime. — Prometo! 6

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O homem se protegeu atrás de uma moita espinhosa. Assistir à execução do monstro dava-lhe água na boca. O juiz, por sua vez, temia a presença de um ou mais membros da quadrilha comandada por Kel. Aniquilar o serviço de intérpretes, vital para a diplomacia egípcia, roubar o lendário capacete do general Amásis, que serviu de coroa no momento em que os soldados o proclamaram faraó, e sempre driblar todas as tentativas de perseguição implicava a existência de um grupo de terroristas aguerridos e determinados. Mas não era essa a opinião do chefe do serviço secreto, Henat. Para essa figura das sombras, homem de métodos discutíveis, um solitário tinha como escapar por muito tempo das investigações mais bem-feitas. Mas um dia, certamente, cometeria um erro fatal. E Kel cometeu o erro de passar pelos arredores do templo de Ptah. Estaria tentando conseguir novos aliados? Fazia contatos para um eventual abrigo? Ou simplesmente procurava comida? Muitos aspectos daquele caso assustador permaneciam obscuros. Prestes a, finalmente, conseguir a prisão de Kel, o magistrado não esquecia as infelicidades e fracassos que o haviam levado a inclusive apresentar sua demissão ao rei. O monarca, porém, lhe confirmara sua confiança. Fiel servidor do Estado, íntegro, apaixonado pela justiça, Gem era também um investigador persistente. Nunca largava uma presa. — Meus homens estão a postos — informou o chefe dos arqueiros. — O criminoso não tem como escapar. — Se tentar, mirem de preferência nas pernas. — E se nos atacar? — Matem-no. Eram essas as ordens do faraó. Já havia cadáveres demais naquela história, e policial nenhum deveria ser vitimado pela 7

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fera enraivecida. Uma fera que o juiz Gem havia encontrado no decorrer dos trâmites legais. É claro, o escriba havia afirmado sua perfeita e total inocência, apesar das provas contrárias acumuladas. Como acreditar em semelhante fábula? Inteligente, bom orador, de espírito vivo, Kel se mostrara quase convincente. Mas o magistrado tinha expe­ riência suficiente para evitar o equívoco. Nem um sopro de vento, nem um canto de pássaro. Tensos ao extremo, os membros do grupo de ataque esperavam a ordem para investir. — Vamos — decidiu o juiz. O assalto foi perfeitamente coordenado. Dois homens penetraram na fábrica abandonada, se­guidos por mais cinco que se dispersaram no interior. — Ali! — gritou um deles. Identificando uma forma humana armada com uma lança, um arqueiro atirou. Apesar da escuridão, não errou o alvo, atingido bem no coração. Nenhuma reação de eventuais cúmplices. Kel estava sozinho. A tropa de elite se imobilizou. Não esperava um sucesso tão rápido e fácil. O juiz finalmente pôde entrar na fábrica. Era o único a ser capaz de formalmente identificar o escriba assassino e dar por encerrada a investigação. — Ele nos ameaçou — explicou o chefe do grupo de assalto. Com dois arqueiros à frente, o alto magistrado se aproximou do cadáver estendido sobre um monte de tijolos quebrados. Apesar da penumbra, não havia dúvida: era um manequim! 8

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Um manequim feito de trapos e palha, segurando um bastão pontudo. — Além de tudo, o maldito ainda zomba de nós! — resmungou Gem. Ao sair da fábrica, o alcaguete foi falar com o juiz. — Mataram? Posso buscar minha recompensa? — Prendam esse sujeito — ordenou Gem aos policiais. — Preciso interrogá-lo para ter certeza, mas pode ser um cúmplice do assassino foragido.

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2. Lábios de Mel era uma mulher de formas plenas e espírito autoritário. Na flor dos 30 anos, dirigia uma das mais importantes padarias-cervejarias de Mênfis, a capital econômica do Egito. Já de pé ao amanhecer, reunia seu pessoal e dava ordens precisas. No primeiro erro, uma advertência; no segundo, redução de salário; no terceiro, rua! E ninguém protestava, pois Lábios de Mel era justa e pagava bem. Nunca deixava de assistir diariamente a entrega de cereais, verificando qualidade e quantidade. Se algum fornecedor tentasse lhe enganar, recebia uma lição tão violenta que dificilmente se animava a trapacear de novo. Depois disso vinha a moedura, o pilão, a amassadura e a peneiração. Bons empregados especializados se encarregavam dessas etapas da fabricação dos pães, dando-lhes variadas formas. E Lábios de Mel pessoalmente se encarregava de uma operação delicada, que era a fermentação. Depois disso, restava o controle do cozimento naqueles que eram os melhores fornos da cidade. Ver pães quentes e crocantes recém-fabricados enchia Lábios de Mel de legítimo orgulho. Os clientes acorriam, seu negócio era 10

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próspero e ela havia adquirido uma belíssima casa nas proximidades do centro da grande cidade em que se viam, lado a lado, egípcios, gregos, sírios, líbios, núbios e outros estrangeiros. Enquanto os entregadores se sucediam levando pães, a patroa passava à cervejaria. Não era ela quem produzia uma cerveja suave por um preço imbatível? Chave do sucesso: trabalho incansável e permanente vigilância. Homens fortes amassavam demoradamente a massa com os pés; mulheres resistentes no serviço filtravam e peneiravam. As cubas de fermentação acabavam de ser reformadas, e Lábios de Mel comprava inúmeras jarras de fundo pontudo, revestidas de argila corretamente batida, para filtrar e clarear a cerveja. Com a demanda crescendo, não parava de desenvolver os serviços comerciais e contábeis com escribas que precisavam ser mantidos sob constante vigilância. Ela gostava, por isso, de empregar jovens que eram formados à sua maneira e segundo suas exi­gências. No final de uma manhã exaustiva, Lábios de Mel foi para casa almoçar. Há alguns dias uma nova e maravilhosa sobremesa lhe aguardava: seu mais recente amante, um ator capaz de infinitas surpresas! Depois de se separar de um marido molenga e reclamão, a padeira tinha resolvido usufruir sozinha dos frutos do seu trabalho. Entusiasta do sexo, sem querer filhos, ela apreciava os parceiros ocasionais sem se prender. Mas o atual era realmente apetitoso! — Minha querida! — exclamou Bébon recebendo a amante e beijando-a com carinho. — Foi boa a manhã? Lábios de Mel fazia jus ao nome. O beijo foi interminável e saboroso. — Foi tão intensa que nem vi o tempo passar! E a sua, meu tesouro? 11

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— Fiz tudo o que pediu e me dediquei a casa! Faxina completa, defumação, perfumes, flores cheirosas. Também comprei a carne e o peixe, arrumei a roupa trazida da lavanderia, preparei o almoço... Satisfeita? — É um perfeito dono de casa! Nenhum dos dois tinha ilusões: a relação não duraria muito tempo. Procuravam ter o máximo de prazer até o momento em que Lábios de Mel se cansasse do arranjo. Enquanto isso, o ator devia procurar ser útil. Bébon cumpria de bom grado as tarefas domésticas em agradecimento aos deuses que lhe haviam proporcionado o inesperado abrigo, tanto para ele quanto para o amigo Kel — cumprindo o papel de seu empregado — e o jumento Vento do Norte. Confiando em seu instinto, Bébon pressentira que o refúgio na fábrica abandonada de tijolos não oferecia mais a segurança necessária. Algum curioso poderia apontar a presença deles à polícia, que não deixaria de averiguar. Era melhor voltar a Mênfis e se misturar com a população. Comprando pão, o olhar do ator encontrou o da patroa. Houve imediata atração entre a mulher de formas sensuais e o sedutor de sorriso devastador. Primeiro uma banal troca de palavras, depois uma conversa mais íntima, e então passaram aos prazeres, que se revelaram alegres e criativos. Convidado a passar alguns dias com a nova amante, Bébon hesitou. Convincentes afagos deram cabo de suas reticências, e ele mencionou uma viagem em breve, pois sua função era a de representar, no adro dos templos, a parte pública dos mistérios, usando sucessivamente as máscaras de Hórus, Seth, Anúbis ou Thot. Reduzido ao status de objeto de consumo da voraz Lábios de Mel, Bébon usufruía de uma casa confortável: ampla entrada, sala de recepção, quatro quartos, dois banheiros, cozinha, adega e terraço; ao todo, 150 metros quadrados decorados com bom gosto. 12

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Mas devia, seguindo ordens da padeira, manter permanente e impecável limpeza. Não era a higiene o segredo da boa saúde? E Lábios de Mel fazia questão de se manter em excelente saúde. Ao despir o amante, ele não opôs resistência. — Hoje estou faminta demais para esperar a sobremesa — confessou. Momentaneamente satisfeita a gulodice, a padeira pediu que Bébon enchesse duas taças de vinho branco do Delta. — Bebamos ao nosso prazer, meu querido! Para o ator, não foi preciso insistir. Mas seu rosto permaneceu grave. — Parece contrariado — observou ela. — Mênfis está se tornando uma cidade perigosa. — O que aconteceu? — A mim, nada, mas sua cozinheira me contou que uma jovem foi sequestrada. — Onde? — No porto. — Impossível! — Pergunte a ela. As pessoas só falam desse drama assustador, e a polícia não parece muito interessada. É de dar medo, não acha? Gosto mais dos lugares tranquilos. — Minha casa é um deles — sussurrou Lábios de Mel. — Concordo, mas gosto de passear pelo porto e frequentar a pequena feira que se organiza junto às passarelas. Temendo que o amante a deixasse mais rapidamente do que o previsto, a padeira achou que devia tomar alguma iniciativa. — Mênfis é a minha cidade — afirmou. — Sei de tudo que se trama por aqui. Rapidamente descobrirei a verdade e você irá se sentir mais seguro. Muitas vezes os boatos se fabricam sem que se saiba de onde vêm! Mas, por enquanto, vamos almoçar. 13

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3. Kel morava no estábulo, na companhia de Vento do Norte, burro muito forte e esperto, respeitado por seus congêneres, que viam nele um líder nato e lhe cediam o melhor lugar. Desde o desaparecimento da sacerdotisa Nitis, com quem o jovem escriba acabara de se unir para a eternidade, ele não con­ seguia mais dormir. Quem a sequestrara? Estaria ainda viva? Louco de preocupação, Kel se esquecia do seu próprio caso. Injustamente acusado de assassinar os colegas do escritório de intérpretes e seu pseudocúmplice, o grego Demos, além de suspeito de fomentar um complô contra o rei Amásis, ele teria que ir imediatamente a Tebas solicitar a ajuda da Divina Adoradora, única personalidade capaz, se acreditasse nele, de tomar sua defesa. Mas ele nunca abandonaria Nitis. Era ali mesmo, em Mênfis, que poderia encontrar a sua pista. E ninguém o impediria de libertá-la. Vento do Norte ternamente lambeu a face de Kel. Do brilhante escriba com expectativas de vir a ocupar altas funções restava apenas um rapaz malbarbeado, precocemente envelhecido. 14

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A atenção do asno o reconfortou. Lembrou-se do papiro em código, que estava na origem de todas as suas desgraças e cuja segunda parte continuava indecifrável. De acordo com uma voz do além, apenas os ancestrais tinham a chave. Mas onde estariam? Talvez a Divina Adoradora tivesse a resposta... Segundo o texto descoberto por Kel numa capela do tempo das pirâmides, conjurados renegavam os valores tradicionais, querendo modificar o exercício do poder e favorecer o progresso técnico. Último obstáculo a ser afastado: a Divina Adoradora, suprema sacerdotisa que reinava em Tebas e preservava os rituais antigos. Impossível, infelizmente, decifrar o nome dos conspiradores e saber quais seriam exatamente os seus planos. A única certeza era que, para disfarçar os abomináveis crimes cometidos, a quadrilha assassina escolhera como culpado ideal um jovem escriba recémrecrutado pelo prestigioso serviço de intérpretes. Não haviam, contudo, previsto sua capacidade de resistência à adversidade e vontade de restabelecer a verdade. O amor de Nitis dera a Kel ainda mais força, e a amizade de Bébon o ajudara a escapar dos perseguidores. Injustiça, corrupção, complô criminoso... Sozinhos, os três conseguiriam realmente vencer tais monstruosidades? O desaparecimento da jovem sacerdotisa reduzia a nada as frágeis esperanças. Vento do Norte esticou as orelhas e se manteve em silêncio. Quem chegava não os ameaçava. — Jantar — anunciou Bébon. — Estou sem fome. — Sopa de lentilhas, purê de cebola e alho-poró, tudo perfumado a alho, aneto e coriandro. Uma primeira colherada vai trazer de volta o apetite. O asno, por sua vez, não bancou o difícil e mastigou a alfafa fresquinha. 15

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— Faça como ele — aconselhou o ator. — Levar adiante o combate exige forças. — Nitis não foi ao templo de Ptah — relembrou Kel. — O capitão do Íbis mentiu e fugiu. Ele obedecia aos conspiradores, e nós caímos na armadilha. — Não adianta ficar revivendo o passado! O essencial consiste em descobrir a pista que vai nos levar ao lugar em que Nitis se encontra presa. — E se a tiverem matado? Bébon pegou o amigo pelos ombros. — Você a ama? — Como pode ainda perguntar? — Então é capaz de sentir a sua presença. Se estivesse morta, você saberia. Kel fechou os olhos. — Ela está viva. — Tem certeza? — Tenho! — Então pare de choramingar e vamos continuar com as investigações. Antes de tudo, coma. A cozinheira de nossa protetora é ótima. Aproveite antes de retomar a estrada. Amanhã provavelmente terá que se contentar com pão seco e cebola. — Quero voltar ao porto e interrogar todos os capitães! Um deles tem que conhecer o do Íbis para nos dizer o seu destino. — É a melhor maneira de ser preso! Com a ajuda involuntária de Lábios de Mel, a polícia perdeu nossa pista. Deve achar que tentamos ir a Tebas e certamente irá vasculhar todos os navios. — Imagine o desespero de Nitis. — Ela tem mais força na alma do que nós dois juntos! Nunca perderá a confiança que tem em você. E conseguirei as infor­ mações que nos interessam. 16

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O olhar do escriba ganhou vigor. — Como? — Lábios de Mel conhece bem a cidade e nada que tenha alguma importância lhe passa despercebido. E ela não ouviu falar sobre o sequestro de nenhuma jovem, que é crime raríssimo! Ou seja, as autoridades estão tentando silenciar o incômodo caso. — Ela tem amigos na polícia? — Em todo lugar, sobretudo entre as pessoas simples. Alguém tem que ter visto alguma coisa. Até mesmo à noite os cais estão completamente desertos. Eu lhe disse que quero ir embora, por medo da falta de segurança. Mas Lábios de Mel ainda aprecia meus encantos, vai querer descobrir a verdade para que eu não vá embora. — Não creio que consiga! — Também acho pouco provável, mas pode localizar alguma testemunha. E teremos um caminho a seguir. Vento do Norte concordou com um olhar confiante. A capacidade de persuasão do ator era tamanha que o escriba começou a acreditar no sucesso do improvável plano. — Você tem notado gente curiosa ao seu redor? — preocupou-se Bébon. — Os outros tropeiros me veem como seu empregado. Vento do Norte e eu fazemos as compras de acordo com o que você pede e passamos o restante do tempo dormindo. Olhando a minha atual aparência, ninguém imagina que sou um escriba. — Melhor assim! Sinto muito, Lábios de Mel está esperando. Sentado e de olhos semicerrados, Kel pensou no tempo feliz em que almejava uma bela carreira de escriba-intérprete a serviço do faraó. Tudo indicava que a existência seria tranquila, agradável e interessante. Mas a cólera dos deuses o atropelou, estilhaçando o seu futuro, ao mergulhá-lo num caso de interesse do Estado. 17

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A ira dos deuses... Que, no entanto, pareciam protegê-lo! Para começar, estavam fazendo com que escapasse dos perseguidores, agora decididos a matá-lo, já que o próprio juiz Gem não acreditava em sua inocência. Depois, ajudaram para que conhecesse Nitis! Viver um grande amor não é um presente inestimável? Mesmo nas profundezas da desgraça, uma felicidade assim se impunha. E essa minúscula luz continuaria a guiá-lo.

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