L i n d s ey B a rr a cl o u g h
a maldição de LO N G LAN K I N Tradução Maria de Fátima Oliva Do Coutto
Rio de Janeiro | 2012
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SEGUNDA-FEIRA, 4 DE AGOSTO DE 1958
Há muito céu, e, quanto mais nos afastamos de Londres, mais céu aparece. Reviro-me no assento e esfrego o vidro de trás com o dedo molhado até a pele ficar marrom. Volto a lamber o dedo e sinto um gosto amargo. Através da sujeira do vidro vejo a cidade se afastando. Sob a chuva acinzentada, os prédios amontoados, que preenchiam a paisagem da minha janela em casa, sobressaem como dentes podres. O sr. Bates não queria nos levar. Fez isso apenas para retribuir um favor a papai. Em algum lugar depois de Barking paramos para colocar gasolina. O sr. Bates começa a discutir com o frentista, dizendo que ele não completou o tanque e está trapaceando. O homem quer o seu dinheiro. O sr. Bates salta do carro e sua cabeça bate no nariz do homem. Uma rajada de vento úmido atinge o cabelo do sr. Bates e o joga de lado, exibindo sua careca. O frentista diz que o marcador de gasolina do sr. Bates não deve estar funcionando direito porque ele não consegue pôr mais uma gota e, se não acredita, que o próprio sr. Bates tente. 9
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O frentista nos olha e ergue as sobrancelhas. Acha que o sr. Bates é nosso pai. Mimi sorri. Eu escorrego no banco traseiro e olho a estrada. Nosso pai teria rido com o frentista — isso se tivéssemos um carro. Se tivéssemos um carro, não seria um Austin velho e sujo como o do sr. Bates, e sim um bem bonito, de duas cores, como aquele estacionado na frente da Farrows and Atkins todas as manhãs. De qualquer modo, nosso pai parece o Tyrone Power no Zorro, e não o sr. Bates, que usa um alfinete de segurança nos suspensórios para prender as calças e tem pelos na barriga — que eu posso ver porque dois dos botões da camisa arrebentaram. O frentista diz que vai chamar um policial. O sr. Bates emite um barulho sibilante entre os dentes, joga o dinheiro na mão do homem, volta para o carro e bate a porta com tanta força que a maçaneta da janela cai. Cada vez menos casas passam até praticamente não haver mais nenhuma. Os campos se estendem de ambos os lados da estrada, terrenos planos de um verde-acinzentado sombrio. Tento brincar com Mimi do jogo das letras, achando que isso a ajudará a aprender, mas logo desisto porque só vemos “g” de grama e “c” de chuva, e ela não demonstra muito interesse na brincadeira. Noto que o ponteiro menor do relógio do sr. Bates já deu duas voltas desde que saímos. Um pequeno bar caindo aos pedaços chamado The Thin Man aparece à esquerda, meio isolado e com um banco do lado de fora. O sr. Bates estaciona na frente e entra com seu pequeno
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pedaço de papel. Demora meia hora para pedir informações sobre o caminho enquanto eu e Mimi esperamos no carro. O motor estala ao esfriar. Respiramos o fedor das axilas do sr. Bates. As janelas embaçam. Estamos com fome. Papai nos deu uns sanduíches que ele havia preparado no sábado, quando devíamos ir, mas naquele dia usou a casca do queijo e hoje o pão estava todo torcido, duro demais para conseguirmos mordê-lo. Comemos os sanduíches há horas, enquanto passávamos por East Ham. Ainda estou com um pedaço de casca entalado na garganta. Pelo vidro embaçado vejo o sr. Bates sair de novo, afivelando o cinto. Arrota tão alto que dá para ouvir a três metros de distância mesmo com as janelas fechadas. Não trouxe nadinha para nós, nem um refrigerante com dois canudos, como papai teria feito. Quando abre a porta, sinto o cheiro de grama e terra molhadas. A chuva parou. O sr. Bates espreme seu barrigão atrás do volante e enxuga a boca com as costas da mão. — Ainda não chegamos? — pergunto. — Vá cuidar da sua vida — responde e um cuspe parecido com cerveja sai voando de sua boca e aterrissa no para-brisa. Ele enfia a mão no bolso em busca de sua latinha de Golden Virginia e enrola um cigarro fino, torto e amarrotado, com pedaços de tabaco espetados na ponta. Enquanto dirige, enrola o cigarro com uma das mãos, balançando a lata no joelho. A maioria dos cigarros dura umas duas tragadas. Quando ele começa a tragar com força já dá para saber que o cigarro acabou. Ele demora
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com esse, soltando a fumaça devagar até ela encher o carro e fazer nossos olhos lacrimejarem. — Que bando de malditos homens das cavernas — diz, abrindo o quebra-vento para desembaçar as janelas. Pegamos uma estrada quase do lado oposto ao bar. O nome está pintado num pedaço de madeira pregado numa vareta — . A estrada é estreita e esburacada, com cercas vivas desconjuntadas dos dois lados. Um muro alto e uns portões enormes de ferro fundido surgem à direita. Vejo de relance uma ampla clareira com grama recém-cortada e canteiros de flores compridos e sinuosos. O sr. Bates baixa a cabeça para olhar enquanto passamos. — E essa casa aí não é Guerdon Hall — diz —, caso vocês estejam achando que é. Logo depois o carro desacelera e espio por cima do ombro do sr. Bates para ver lá fora. Estamos no topo de uma colina íngreme. Abaixo, o campanário de uma igrejinha se destaca entre um aglomerado de árvores na borda de um extenso pântano. Grossos raios de sol pálidos perfuram as nuvens e se estendem até a terra, imergindo e emergindo nas esparsas poças e serpenteando em torno dos canaviais ao longo das faixas prateadas de água, até que o líquido reluzente se funde a distância numa linha trêmula esmaecida flutuando entre a terra e o céu. — Então o que é aquilo lá em cima? — pergunto. — Do que você está falando? — Lá em cima. — Estico o dedo perto de sua orelha apontando o horizonte.
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— O que você acha que é? É a droga do rio, não é? E lá adiante é a curva do mar! — Então, onde o rio deixa de ser rio e o mar começa a ser mar? — Mas que droga, como eu vou saber? Cale a boca e pare de fazer essas perguntas idiotas. Só estou dando uma carona na droga do meu carro. Isso não significa que tenho que conversar com você, entendeu? Descemos a colina aos solavancos. O sr. Bates desviava-se dos buracos grandes, resmungando droga isso e maldito aquilo. No fim, a pista bifurca, de um lado a igreja e as árvores; do outro uma trilha ainda mais irregular à direita. O sr. Bates para o carro e desliga o motor. Examina novamente o pedaço de papel emporcalhado. — A casa fica lá no final — diz, apontando a trilha lamacenta com o dedo amarelo. — Droga, se acham que vou dirigir até lá, devem acreditar em Papai Noel. E olha que o Natal ainda nem chegou! O sr. Bates sai e empurra o banco da frente para que eu e Mimi possamos nos espremer e saltar com nossas mochilas. — Aquela droga de colina ferrou com a suspensão do carro. Vão ter que andar o resto do caminho e sozinhas. — O senhor não vem com a gente? E se não for a casa certa? — grito, enquanto ele entra no carro e bate a porta com es trondo. — Não é contra a lei deixar crianças sozinhas num lugar estranho? Ele não dá a menor atenção e rapidamente liga o motor.
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— Ei! O senhor pode ser preso por isso! — grito em meio ao barulho. O sr. Bates engata a marcha a ré. O carro gira, guincha e atira blocos de terra molhada. Saímos da frente. Ele sobe a colina trovejando, o estrépito do exaustor cada vez mais baixo, até eu não ter certeza se ainda posso escutá-lo. O vento agita o capim. Um distante chamado de pássaro não encontra resposta. Mimi começa a fungar. — Pare com isso — aviso. Ela enxuga o nariz em Sid, seu bichinho de pelúcia, depois esfrega o dedo no pequeno remendo na cabeça, como sempre faz antes de dormir. Houve um tempo em que Sid era um gordo soldado azul, mas agora não passa de uma salsicha cinza de lã cheirando a vômito. Mimi o encontrou na gaveta da mamãe em casa. Mamãe disse que seu nome era Sid e que Mimi não podia pegá-lo porque ele era velho e sujo, mas Mimi vivia tirando-o da gaveta. Afinal, mamãe deu o boneco para ela, mas era evidente que não suportava ver Sid. Uma vez eu a vi chutando Sid para trás da poltrona. Não entendi por que então ela o havia guardado. Entrego a Mimi o lenço velho que tirei do bolso. Tem um pirulito de limão pela metade grudado nele. Ela tira o doce e o põe na boca. — O pirulito acabou — diz, chupando. Árvores finas alinham-se na margem da trilha, os troncos compridos e delgados curvados quase no meio, açoitadas durante anos pelo vento vindo do rio, que sopra através dos espaços vazios. 14
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Uma vala estreita, meio escondida no capim, ladeia a frente das árvores, perceptível apenas pelo som da água correndo. Penduro as duas mochilas em meus ombros. A trilha está coberta de lama e poças. As solas dos sapatos de Mimi abriram na frente. Tento mantê-la nos tufos de grama para que seus pés continuem secos. Minhas sandálias marrons gastas não estão em muito melhores condições. A água penetra pelos buraquinhos que formam um desenho na parte superior. Odeio as sandálias por fazerem flop flop flop no piso e sempre quis sapatos que fizessem clique clique clique, como os de Lana Turner nos filmes, mas preciso usar os sapatos velhos de Monica Horgan porque ela é mais velha do que eu. Os últimos eram pretos de amarrar, iguais aos dos meninos. Estão no armário, guardados para Mimi. Enquanto percorremos a trilha, ouço o constante som abafado da água corrente, como se riachos secretos descessem a colina por baixo da estrada alimentando e dilatando a vala sob as árvores. Em seu ponto mais largo, ela faz uma curva na direção da estrada e desaparece abaixo dela. Meu pescoço dói de tanto olhar para baixo para não pisar na lama. Olho para cima e vislumbro algumas chaminés vermelhas antigas sobre o topo das árvores. Alcançamos uma curva e lá está Guerdon Hall, quase afundada no terreno. Os tijolos da chaminé formam padrões de quadrados, diamantes e mesmo espirais retorcidas, como a bala para tosse que a sra. Prewitt guarda na loja em jarras grandes a três centavos
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cada cinquenta gramas. Vejo o telhado torto, salpicado de musgo verde preso às janelinhas escuras. A luz refletida do céu branco lá no alto está distorcida, ondulando de modo desigual no vidro velho. Um canal de água fundo e aberto, com pelo menos três metros de largura, cerca a casa e seu jardim como um fosso, sobre o qual se estende uma ponte larga e plana, coberta por uma camada de terra onde crescem moitas de grama e dentes-de-leão. No meio da ponte dá para ver as tábuas gastas de madeira. O jardim é uma imensidão de árvores retorcidas, quase mortas, sufocadas por trepadeiras curvadas sobre massas entrelaçadas de arbustos espinhosos, moitas de rosas selvagens, urtigas e grama amarela ressecada. Não posso imaginar como tia Ida pode morar num lugar desses. — Tem alguém olhando — sussurra Mimi. — Não seja idiota. Não tem ninguém aqui. — Olha. Ela aponta e vejo um menino sentado numa cerca de madeira quebrada, do outro lado da trilha, nos olhando fixamente. Acho que devo dizer algo, mas nem sei se falam inglês por aqui. — Oi. O que estão fazendo? — pergunta ele. — Ninguém te ensinou que é feio encarar os outros? — retruco. — Então o que estão fazendo? — Vamos passar um tempo aqui. Aquela é a casa da sra. Eastfield?
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— É sim. Por que vão para lá? — Porque ela é nossa tia. Ela é legal? — Vocês não conhecem a tia de vocês? — pergunta, descendo da cerca. Ouve-se um som de tecido rasgado. Ele hesita por um segundo apenas. — Nunca vimos nossa tia antes. — Ela não é velha demais para ser sua tia? — Ela não é esse tipo de tia — explico. — Ela é irmã de nossa avó Agnes, tia da nossa mãe, só que vovó morreu. Papai disse que tia Ida deve ter uns sessenta e qualquer coisa. — Então ela é sua tia-avó — diz ele, esfregando os fundilhos das calças. — Eu também tenho uma: tia Ethel. Ela mora à beiramar em Wrayness. Seu jardim fica pertinho da praia. Mantendo os olhos fixos todo o tempo, o garoto caminha de costas e entra na água lamacenta – ainda bem que ele usa botas de borracha. — Essa sra. Eastfield... — acrescenta, ainda se afastando. — Eu tomaria cuidado se fosse você. Ela é uma bruxa. O menino se vira rápido e corre, entrando e saindo das poças. Enquanto o observo, percebo pela primeira vez altas traves de madeira com arames esticados entre elas, espaçadas ao longo de toda a extensão da trilha. A última trave fica perto da ponte. O arame desce até a casa e desaparece debaixo do teto. — Talvez não seja tão ruim quanto parece — digo a Mimi. — Acho que na casa de tia Ida tem energia elétrica.
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