César - Trecho

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CÉSAR


Da mesma autora: Tim Uma Obsessão Indecente Pássaros Feridos A Paixão do Dr. Christian A Canção de Troia SÉRIE O PRIMEIRO HOMEM DE ROMA

O Primeiro Homem de Roma (Vol. 1) A Coroa de Ervas (Vol. 2) Os Favoritos de Fortuna (Vol. 3) As Mulheres de César (Vol. 4) César (Vol. 5) SÉRIE CARMINE DELMONICO

Liga, Desliga Assassinatos Demais


COLLEEN McCULLOUGH

CÉSAR Tradução Maria D. Alexandre

Rio de Janeiro | 2013


BRETANHA NOVEMBRO de 54 a.C.



As ordens eram muito claras: enquanto César e a maior parte do seu exército estivessem na Bretanha, só lhe deveriam ser enviadas as mensagens mais urgentes; mesmo as diretivas do Senado teriam de esperar em Porto Ício, na Gália, até que César regressasse da sua segunda expedição à ilha que ficava no extremo ocidental do mundo, um lugar quase tão misterioso como Serica. No entanto, aquela era uma carta de Pompeu, o Grande, que era o Primeiro Homem em Roma — além de ser genro de César. Por isso, quando recebeu o pequeno cilindro de couro vermelho contendo o selo de Pompeu, Caio Trebácio, encarregado das comunicações entre Roma e César, não o guardou num dos escaninhos, onde ficaria um tempo infindável aguardando por esse regresso da Bretanha. Em vez disso, suspirou e levantou-se; passava a maior parte da sua vida sentado ou comendo, o que resultava num inchaço quase permanente nos pés e tornozelos. Saiu porta afora e avançou pelos caminhos da aldeia que havia sido erigida sobre as ruínas do acampamento do exército do ano anterior, acampamento este que era menor. Não era propriamente um local agradável. Filas e mais filas de casas de madeira, caminhos de terra batida e até mesmo uma ou outra loja. Um lugar sem uma única árvore, despojado, uniforme. Ah, se estivesse em Roma, iria no conforto de uma liteira!, pensou Caio Trebácio, avançando pela longa Via Principalis. Mas não havia liteiras nos acampamentos de César e, por isso, Caio Trebácio, uma jovem promessa da advocacia, não tinha outra alternativa senão andar. Odiava ter de andar a pé e odiava o sistema que dizia que, do ponto de vista da sua carreira, era mais importante trabalhar para um militar no campo do que dar uns passeios — a pé ou de liteira — pelo Fórum Romano. Não se atrevia sequer a chamar alguém de patente inferior para realizar aquela missão. César era extremamente rigoroso quanto à necessidade de um homem fazer o trabalho de que estava

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incumbido; delegar uma missão a uma outra pessoa — para usar o linguajar grosseiro do exército — poderia ferrar tudo. Que fartura! Que fartura!, disse Trebácio para si mesmo, e quase que voltava para trás; contudo, enfiou a mão esquerda por entre as dobras da toga que desciam do ombro esquerdo, ostentou um ar imponente e avançou com o seu andar gingado. Tito Labieno, com as rédeas de um cavalo paciente enlaçadas no cotovelo, estava descontraidamente encostado ao muro da sua residência, enquanto conversava com um gaulês corpulento, cheio de ouro e com um traje berrante. Era Litavico, o recém-nomeado chefe da cavalaria dos éduos. Provavelmente, lastimavam ainda o destino do último chefe da cavalaria édua, que preferira fugir a ter de atravessar aquelas águas violentas até a Bretanha. Fugira em vão, pois acabara nas mãos de Tito Labieno. Como é que ele se chamava? Tinha um belo nome, belo e estranho… como é que era? Dumnórige. Dumnórige… Por que associava esse nome a um escândalo envolvendo César e uma mulher? Não estivera na Gália tempo suficiente para ter tudo claro em sua mente. O problema era esse. Aquilo era típico de Labieno: gostar de conversar com gauleses. Um verdadeiro bárbaro! Que tinha aquele homem de romano? Nada! Cabelo negro encaracolado. Pele escura, com uns poros enormes, oleosos. Uns olhos negros simultaneamente ferozes e frios. E um nariz de semita, adunco, com umas narinas que pareciam ter sido abertas com uma faca. Uma águia. Labieno era uma águia. Ficava muito bem debaixo dos estandartes. — Caminhando, a fim de queimar gordura, Trebácio? — perguntou o bárbaro romano, sorrindo de orelha a orelha, mostrando seus dentes, grandes como os do seu cavalo. —Vou ao cais — replicou Trebácio, com um ar digno. — Por quê? Trebácio estava com uma imensa vontade de responder que o assunto não lhe dizia respeito. No entanto, Labieno era o general na ausência do General; por isso, com um sor riso amarelo, Trebácio retorquiu: — Espero pegar a pinaça dos pregos. Levo uma carta para César. — De quem? O gaulês Litavico seguia atentamente a conversa, com um brilho nos olhos. Portanto, falava latim, o que não era incomum entre os éduos, pois estavam há muitas gerações sob o domínio dos romanos. — Cneu Pompeu Magno. — Ah! — Labieno pigarreou e cuspiu, um hábito que adquirira após muitos anos de amizade com os gauleses. Algo repugnante.

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Contudo, Labieno desinteressou-se do caso logo que ouviu o nome de Pompeu. Virou-se para Litavico dando de ombros. Ah, claro! Labieno tivera um caso com Múcia Tércia, que fora mulher de Pompeu! Bem, pelo menos era o que Cícero assegurava (com um risinho malicioso). Mas Múcia Tércia não se casara com Labieno depois do divórcio. Não, Labieno não era suficientemente bom para ela. Casara-se com o jovem Escauro. Bom, pelo menos à época era jovem. Ofegante, Trebácio continuou a sua caminhada. Percorreu toda a Via Principalis, que conduzia ao portão do acampamento, e finalmente penetrou na aldeia de Porto Ício. Um nome pomposo para uma simples aldeia de pescadores. Que nome lhe dariam os morinos, os gauleses, em cujo território se situava? Nos documentos do exército, César referia-se àquela aldeia simplesmente como Fim de Jor nada — ou Início de Jor nada. Quem quisesse que escolhesse. O suor escorria-lhe pelas costas, empapando a delicada lã da sua túnica; tinham-lhe dito que o tempo na Gália-dos-Longos-Cabelos, localizada na Gália Ulterior, era fresco e ameno — mas não naquele ano! Fazia muito calor e o ar estava muito úmido. De modo que Porto Ício estava com um cheiro horrível de peixe. E de gauleses. Odiava-os. Odiava aquele trabalho. E, se não odiava César (não, de fato, odiar, não odiava), aquilo que sentia por Cícero aproximava-se muito do ódio — porque Cícero usara de toda a sua influência para que o seu caro amigo Caio Trebácio Testa, essa grande promessa da advocacia, ficasse com aquele tão disputado cargo. Porto Ício não tinha nada de parecido com aquelas deliciosas aldeias de pescadores que havia nas praias do Mar Toscano — aldeias com sombrias latadas do lado de fora das tabernas e que pareciam estar lá desde que o rei Eneias descera do seu navio troiano um milênio antes. As canções, os risos, a intimidade! Ao passo que ali só havia vento e a areia que este levantava, e aquelas ervas que mais pareciam chicotes, presas às dunas, e aqueles lamentos agudos, desvairados, de milhares e milhares de gaivotas. Mas ali, ainda amarrada, estava a pinaça a remo, de formas suaves, que esperava encontrar antes de ela partir. A tripulação romana se encontrava ocupada, carregando uma dúzia de barriletes de pregos, tudo que a pinaça levaria para o outro lado do mar; aliás, já era carga bastante para uma embarcação tão pequena. No que dizia respeito à Bretanha, a lendária sorte de César parecia tê-lo abandonado; pelo segundo ano consecutivo, os seus navios haviam sido destruídos por tempestades mais ter ríveis do que todas as que var riam o

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Mare Nostrum de uma ponta à outra. E a verdade é que, da segunda vez, César ficara convencido de que havia deixado aquelas oitocentas embarcações em completa segurança… Mas os ventos e as marés — o que uma pessoa podia fazer perante fenômenos tão estranhos como as marés? — tinham feito os barcos parecerem simples brinquedos. Foram destroçados. Mesmo assim, continuavam pertencendo a César, que não perdeu tempo amaldiçoando ventos e marés. Em vez disso, decidiu juntar todos os destroços e dar vida nova às embarcações: daí os pregos. Milhões de pregos. Não havia tempo nem pessoal para sofisticadas obras de construção naval; o exército tinha de regressar à Gália antes do inver no. — Usem pregos! — ordenou César. — Tudo que estes barcos têm de fazer é atravessar trinta e tantas milhas de oceano Atlântico. Depois podem afundar à vontade; pouco me importa. A pinaça que fazia a ligação entre Porto Ício e a Bretanha, com uma dúzia de barriletes cheios de pregos e as mensagens que era indispensável transmitir, era o meio ideal para as comunicações romanas de que Trebácio estava encarregado. E pensar que poderia estar lá!, disse Trebácio para si mesmo, tremendo apesar do calor, da umidade e do peso da toga. Precisando de um especialista em papelada, César escolhera-o para integrar a expedição. Porém, no último momento, Aulo Hírcio manifestara o desejo de atravessar o mar — que todos os deuses o protegessem por toda a vida! Porto Ício podia ser o fim da jor nada para Caio Trebácio, mas antes isso do que o início de uma outra jornada. Naquele dia, tinham um passageiro; enquanto organizava a viagem com Trogo (com a rapidez extrema que César sempre exigia), Trebácio ficou sabendo de quem se tratava o gaulês, ou melhor, o bretão. Mandubrácio, o rei dos trinobantes da Bretanha, que César devolvia ao seu povo, como recompensa pela ajuda que este havia prestado aos romanos. Um belga azul, absolutamente hor rendo. O seu vestuário era um xadrez verde-musgo e azul-escuro; a sua pele, pintada de forma complexa, com ísatis azul, parecia confundir-se com o vestuário. Segundo César, os habitantes da Bretanha usavam aquelas pinturas para que, no meio das suas imensas florestas, os inimigos não conseguissem distingui-los; uma pessoa podia estar a poucos metros de um daqueles guer reiros e não conseguia vê-lo. Por outro lado, as pinturas também ser viam para assustar o inimigo durante as batalhas. Trebácio entregou o pequeno cilindro vermelho ao capitão — capitão? Seria este o termo correto? — e seguiu na direção do escritório. Pensava, salivando, já no ganso assado que ia comer no jantar. Não havia muito o que se

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pudesse dizer de bom a respeito dos mornos, exceto que os seus gansos eram os melhores do mundo. Além de empanturrarem os gansos com caracóis, lesmas e pão, obrigavam os pobres animais a andar — que horror, andar! — até que a sua carne ficasse tão macia, tão tenra que parecia desfazer-se na boca! Os incansáveis tripulantes da pinaça, oito de cada lado, remavam como se fossem um só, apesar de não haver nenhum hortator para marcar as remadas. Descansavam e bebiam água de hora em hora; depois, voltavam a curvar as costas e a apoiar os pés em saliências que havia no fundo lodoso da embarcação. O capitão estava sentado na popa, atento tanto ao leme como ao balde usado para despejar a água que entrava no barco. Com a aproximação dos imensos e impressionantes rochedos brancos da Bretanha, o rei Mandubrácio, orgulhosamente sentado na proa, foi ganhando um ar cada vez mais orgulhoso. Regressava finalmente à sua pátria, embora não tivesse ido mais longe do que a cidade belga de Samarobriva, onde, com muitos outros reféns, estivera detido até César decidir para onde iria enviá-lo. A força expedicionária romana ocupara uma longa faixa de areia além de onde se estendiam os pântanos de Câncio;* os navios destruídos — tantos! — encontravam-se além da areia, montados sobre escoras e rodeados por todas as extraordinárias defesas de um acampamento militar romano. Valas, muros, paliçadas, parapeitos baixos, torres, redutos que pareciam se estender por muitos quilômetros. O comandante do acampamento, Quinto Átrio, esperava o barco para receber os pregos, o pequeno cilindro vermelho de Pompeu e o rei Mandubrácio. Ainda estava longe de anoitecer; a carruagem do sol, naquela zona do mundo, era muito mais lenta do que na Itália. Alguns trinobantes estavam também à espera do barco; exultantes por voltarem a ver o seu rei, davam-lhe agora palmadas nas costas e beijavam-no na boca, como era seu hábito. Ele e o pequeno cilindro vermelho de Pompeu partiriam imediatamente, pois precisariam ainda de vários dias para alcançar César. Os cavalos foram levados; os trinobantes e um prefeito romano de cavalaria montaram e saíram pelo portão norte, onde quinhentos soldados de cavalaria éduos os integraram no meio de uma coluna com uma largura de cinco cavalos e um comprimento de cem. O prefeito romano fez avançar o seu cavalo até a dianteira da coluna, deixando o rei e os seus nobres à vontade para conversarem. * Em latim, Cantium; em inglês, Kent. (N.T.)

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— Não sabemos se eles falam alguma língua parecida com a nossa e possam entender o que dizemos — disse Mandubrácio, aspirando com extremo prazer aquele ar quente e úmido. Cheirava-lhe à sua terra, à sua pátria. — César e Trogo entendem, mas, quanto aos outros, creio que não — retrucou o primo do rei, Trinobeluno. — Não podemos ter certeza — insistiu o rei. — Os romanos encontram-se na Gália há quase cinco anos. E passaram a maior parte desse tempo entre os belgas. Eles têm mulheres. — Prostitutas! Mulheres que vão para onde vão os soldados! — Mulheres são mulheres: falam pelos cotovelos, e os homens acabam por entender o que elas dizem. A grande floresta de carvalhos e faias que ficava a norte dos pântanos de Câncio tornou-se mais cer rada; quem olhasse para trás já não veria o caminho por onde seguia a coluna da cavalaria; os militares éduos ergueram as suas lanças, tocaram nos sabres, puseram a postos os pequenos escudos redondos. Porém, pouco tempo depois, surgiu uma grande clareira coberta de restolho — uma paisagem de tons fulvos, onde sobressaíam as estruturas carbonizadas de duas ou três casas. — Os romanos ficaram com os cereais? — perguntou Mandubrácio. — Na região de Câncio, sim — ficaram com tudo. — E Cassivelauno? — Queimou tudo que não pôde levar. A norte do Tâmisa, os romanos têm passado fome. — Como nós estamos de provisões? — As que temos chegam. Os romanos pagaram por tudo que levaram. — Nesse caso, será melhor que, da próxima vez, comam aquilo que Cassivelauno guardou. Tirnobeluno virou a cabeça; à luz dourada da clareira, os torvelinhos e espirais de tinta azul que havia no seu rosto e no seu torso ganharam um brilho sobrenatural. — Demos a nossa palavra que ajudaríamos César se ele trouxesse você de volta, mas é desonroso ajudar um inimigo. Entre nós, acertamos que você é quem deveria tomar uma decisão, Mandubrácio. O rei dos trinobantes riu. — Está claro que ajudaremos César! Muitas terras e muito gado dos cassos virão parar em nossas mãos quando Cassivelauno cair. Tiraremos o máximo proveito dos romanos. O prefeito romano regressou para junto deles; o seu cavalo dançava um pouco, pois o ritmo era lento e o cavalo, vigoroso. — César deixou um bom

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acampamento não muito longe daqui — disse o prefeito na língua dos atrébates belgas, embora com alguma dificuldade. Mandubrácio ergueu as sobrancelhas para o primo. — O que eu lhe disse? — perguntou-lhe. E, virando-se para o prefeito, inquiriu: — Está intacto? — Perfeitamente intacto entre esta região e o Tâmisa. O Tâmisa era o grande rio da Bretanha, profundo, largo e violento, mas havia um local onde era possível atravessá-lo. Na margem norte do rio, começavam as terras dos cassos, mas não havia cassos para se oporem à passagem daqueles homens, nem para defenderem os campos calcinados. Depois de ter atravessado o Tâmisa ao alvorecer, a coluna avançou por colinas embelezadas por pequenos bosques; as terras mais baixas, porém, eram cultivadas ou usadas como pasto. A coluna seguia agora para o nordeste e, desse modo, a cerca de sessenta quilômetros do rio, penetrou nas terras dos trinobantes. No cume de uma vasta colina, na fronteira entre os cassos e os trinobantes, erguia-se o acampamento de César, o último baluarte de Roma em terra estrangeira. Mandubrácio nunca vira o Grande Homem; fora mandado como refém por exigência de César, mas, ao chegar a Samarobriva, descobrira que César se encontrava na longínqua Gália Italiana, do outro lado dos Alpes. Depois, César fora diretamente para Porto Ício, com a intenção de zarpar logo. O verão prometera ser muito quente, um bom presságio para a travessia daquele estreito traiçoeiro. Mas as coisas não tinham corrido como previsto. Os tréveros tinham feito propostas aos germânicos que viviam além do Reno e os dois magistrados tréveros — a quem chamavam vergóbretos — tinham posições diametralmente opostas. Um deles, Cingetórige, achava melhor acatar as ordens de Roma, ao passo que Induciómaro considerava que uma revolta apoiada pelos germânicos seria a melhor solução num momento em que César deveria estar longe, mais exatamente na Bretanha. No entanto, César tinha aparecido com quatro legiões e, apesar de o ritmo de marcha não ser muito rápido, César era sempre mais rápido do que supunham os gauleses. A revolta nunca eclodiu; os vergóbretos foram obrigados a fazer as pazes; César fez mais reféns, incluindo o filho de Induciómaro, e voltou para Porto Ício com uma ventania que soprava do noroeste e durou 25 dias. Dumnórige, dos éduos, criou problemas, razão pela qual foi morto. Portanto, devido a tudo isso, o Grande Homem ficou muito mal-humorado quando a sua frota finalmente zarpou, dois meses após o que estava previsto.

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Continuava mal-humorado, como os seus legados sabiam muito bem; entretanto, quando avançou para saudar Mandubrácio, só quem mantivesse com ele um contato diário suspeitaria desse mau humor. Muito alto para um romano, César não precisava erguer a cabeça para olhar Mandubrácio nos olhos. Tinham a mesma estatura, mas César era mais esguio; era de fato um homem com um físico muito bem proporcionado e, como parecia acontecer com todos os romanos, ele também possuía pantur rilhas rígidas; segundo os romanos, isso se devia a muito caminhar e marchar. Vestia uma couraça de couro, igual à dos trabalhadores, e uma espécie de saiote de tiras de couro e não tinha espada, nem adaga, mas sim a faixa escarlate que era o símbolo do seu elevado imperium, ritualmente amarrada e enrolada por sobre a couraça. Tão claro e louro como qualquer gaulês! Tinha um cabelo louro pálido pouco denso e penteado para a frente a partir do cocuruto; as sobrancelhas eram também claras, e a pele exibia as marcas de uma longa exposição ao sol e aos ventos, e ganhara a cor e os vincos de um velho pergaminho. A boca era perfeita, sensual e sorridente, o nariz, comprido e protuberante. Mas tudo que uma pessoa precisava saber acerca de César estava nos seus olhos, pensou Mandubrácio — uns olhos de um azul muito pálido, um azul rodeado por um fino anel de azeviche; uns olhos penetrantes. Uns olhos, mais do que imperturbáveis, oniscientes. Ele conhecia — concluiu o rei — as razões exatas por que os trinobantes estavam dispostos a ajudá-lo. — Não vou lhe dar as boas-vindas no teu próprio país, Mandubrácio — disse César, expressando-se fluentemente na língua dos atrébates. — Mas espero que me dê boas-vindas. — Com todo o prazer, Caio Júlio. O Grande Homem começou a rir, exibindo os seus belos dentes. — Caio Júlio, não! Trate-me por César — disse. — Todos me tratam por César. E, de repente, ali estava Cômio ao lado de César, com um largo sorriso para Mandubrácio, avançando para o saudar com um afago no ombro. Entretanto, quando Cômio se preparava para o beijar nos lábios, Mandubrácio desviou a cara o suficiente para evitar tal saudação. Verme! Um fantoche dos romanos! O cãozinho de estimação de César! Rei dos atrébates, mas um traidor da Gália. Sempre pronto para cumprir as ordens de César, para agradar a César: fora Cômio que o recomendara como um bom refém, fora Cômio que fizera intrigas junto de todos os reis da Bretanha para semear a discórdia e dar a César a preciosa posição de que agora dispunha. O prefeito de cavalaria aproximou-se, empunhando o pequeno círculo de couro vermelho que o capitão da pinaça tratara com tanta reverência como

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se fosse uma prenda dos deuses romanos. — Foi Caio Trebácio quem mandou — anunciou o prefeito, após o que recuou com uma reverência, sem jamais desviar os olhos do rosto de César. Por Dagda, os homens de César adoram-no!, pensou Mandubrácio. Era verdade o que diziam em Samarobriva. Morreriam por ele. E ele sabe disso — e aproveita-se disso. De fato, César sorria agora para o prefeito — e unicamente para ele — e tratava-o pelo seu nome. O prefeito jamais se esqueceria daquele momento e com certeza contaria aquela cena aos seus netos, quando os tivesse. No entanto, Cômio não amava César, porque nenhum gaulês de cabelos compridos poderia amar César. O único homem que Cômio amava era a si mesmo. Mas quais seriam os verdadeiros objetivos de Cômio? Tornar-se o rei da Gália a partir do momento em que César regressasse a Roma para nunca mais voltar? — Vamos nos encontrar mais tarde para jantar e conversar, Mandubrácio — disse César, erguendo o pequeno cilindro vermelho num gesto de despedida; depois, afastou-se na direção da rígida tenda de couro que se erguia sobre um montículo artificial no interior do acampamento, onde tremulava a bandeira escarlate do general. As comodidades no interior da tenda não eram muito diferentes das que era possível encontrar nas instalações de um jovem tribuno militar: alguns bancos de desarmar, várias mesas de desarmar, uma estante com escaninhos para rolos que podia ser desarmada numa questão de segundos. A uma das mesas estava sentado o secretário-geral do general, Caio Fabério, curvado sobre um códice; César cansara-se de usar as mãos ou alguns pesos de papel para manter um rolo aberto e tratara de usar folhas únicas de papel de Fano que depois eram costuradas umas às outras na margem esquerda; as folhas assim reunidas podiam conter uma obra completa que podia ser consultada facilmente. Era isso que César chamava de códice e jurava que esse processo atrairia muito mais leitores do que os rolos habitualmente usados. Depois, para que a leitura se tornasse ainda mais fácil, dividiu cada folha em três colunas, em vez de escrever ao longo de toda a folha. Concebera esse processo unicamente para as suas mensagens ao Senado, pois considerava essa instituição um ninho de semiletrados preguiçosos; porém, aos poucos, o códice acabara por ser usado para todo tipo de escritos de César. Contudo, apresentava um grave inconveniente, que contrariava todas as suas potencialidades para substituir os rolos: ao fim de muito uso, as costuras cediam, e as folhas rasgavam-se, razão pela qual era fácil perdê-las.

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A uma outra mesa, estava sentado o seu mais leal cliente, Aulo Hírcio. De nascimento humilde, mas dotado de capacidades consideráveis, Hírcio agarrara-se com unhas e dentes à estrela de César. Era um homem de baixa estatura e muito ágil e combinava o gosto de lidar com pilhas de papéis com uma atração idêntica pela guerra e pelas suas exigências. Dirigia a seção de comunicações romanas de César e mantinha o general a par de tudo que se passava em Roma — mesmo quando o general estava 65 quilômetros ao norte do rio Tâmisa, na extremidade mais ocidental do mundo. Os dois homens ergueram os olhos quando o general entrou, embora nenhum deles ensaiasse sequer um sorriso. O general estava muito mal-humorado. Estranhamente, porém, sor riu para os dois e mostrou-lhes o pequeno cilindro de couro vermelho. — Uma carta de Pompeu — disse César, avançando na direção do único móvel verdadeiramente belo daquela tenda, a cadeira curul de marfim, adequada à sua elevada posição no mundo romano. — Já sabe o que ela diz… — observou Hírcio, descontraído o suficiente para mostrar um sorriso. — É verdade — disse César, quebrando o selo e forçando a tampa. — Mas Pompeu tem um estilo muito pessoal e gosto das cartas dele. Já não é tão impetuoso e inculto como antes de se casar com a minha filha, mas o seu estilo continua sendo muito pessoal. — Inseriu dois dedos no cilindro e retirou o rolo de Pompeu. — Por todos os deuses, é imensa! — exclamou, cur vando-se depois para apanhar do chão um outro rolo. — Não, são duas cartas… — Examinou as primeiras linhas de ambas, resmungou qualquer coisa. — Uma delas foi escrita em sextilis, a outra em setembro — disse. Colocou a carta de setembro na mesa ao lado da cadeira curul, mas não desenrolou a de sextilis; em vez de lê-la, ergueu o queixo e olhou através da porta da tenda, completamente aberta para que entrasse o máximo de luz possível. O que estou fazendo aqui, lutando pela posse de alguns campos de trigo e de meia dúzia de cabeças de gado, com uma relíquia pintada de azul que parece saída dos versos de Homero? Quem ainda corre para o campo de batalha numa carroça, com os seus mastins latindo e os seus harpistas cantando louvores? Pois é, eu sei qual é a razão. Eu estou aqui porque foi isso que a minha dignitas me ordenou que fizesse, porque, no ano passado, esta terra incivilizada e o seu incivilizado povo pensaram que estavam livres de Caio Júlio César para sempre. Pensaram que tinham derrotado César. Voltei por uma única razão:

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mostrar-lhes que ninguém derrota César. E, assim que conseguir submeter Cassivelauno, abandonarei esta terra incivilizada e nunca mais voltarei. Mas eles se lembrarão de mim. Dei ao harpista de Cassivelauno temas novos para os seus louvores. A chegada de Roma, o fim das car roças no lendário oeste druídico. Assim como permanecerei na Gália-dos-Longos-Cabelos até que todos os seus homens me reconheçam — e a Roma — como o seu senhor. Porque eu sou Roma. E isso é algo que o meu genro, seis anos mais velho do que eu, nunca será. Prepare-se para o embate, meu bom Pompeu Magno. Não será o Primeiro Homem de Roma por muito mais tempo. César está prestes a chegar. Sentou-se, com a coluna completamente reta, o pé direito esticado e o esquerdo sob o X da cadeira curul, e abriu a carta de Pompeu, o Grande, datada de sextilis. Odeio ter de lhe dizer isto, César, mas ainda não há qualquer certeza quanto à realização das eleições curuis. Ah, sim, claro que Roma continuará existindo e terá mesmo uma espécie de governo, visto que conseguimos eleger alguns tribunos da plebe. Aquilo foi um circo! Catão envolveu-se diretamente na coisa. Primeiro, usou a sua posição como membro pretor da plebe para bloquear as eleições plebeias; depois, com aquela voz que ele tem (parece um burro zurrando, coitado), e com um ar muito, muito sério, anunciou que iria examinar todas as tábuas que os eleitores deitassem nas urnas — e se encontrasse um candidato que fraudasse os resultados, iria processá-lo! Deixou os candidatos aterrorizados! Está claro que tudo isso resultou do pacto que o idiota do meu sobrinho Mêmio fez com Aenobarbo. Nunca na história das nossas eleições consulares — recheada de subornos — houve tanta gente subornada! Cícero diz de forma jocosa que o total de dinheiro que mudou de mãos é tão elevado que foi por isso que os juros subiram de quatro para oito por cento. E não está longe da verdade, embora Cícero o diga apenas para fazer piada. Creio que Aenobarbo, que é o cônsul que supervisiona as eleições — claro que Ápio Cláudio não o pode fazer, porque é um patrício —, pensou que poderia fazer o que muito bem lhe aprouvesse. E o que ele queria era que o meu sobrinho Mêmio e Domício Calvino fossem os cônsules do próximo ano. Todos aqueles — Aenobarbo, Catão, Bíbulo — não param de farejar à sua volta, como cães num campo cheio de excrementos, sempre à procura de um pretexto qualquer para o processarem e arrancarem as suas províncias e o seu comando. Será muito mais fácil se os cônsules estiverem do lado deles, bem como alguns tribunos militantes da plebe .

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Mas será melhor concluir primeiro a história de Catão. Bom, à medida que o tempo foi passando e que se foi percebendo que não teríamos cônsules ou pretores no próximo ano, tornou-se vital que tivéssemos pelo menos tribunos da plebe. Quer dizer, Roma consegue aguentar-se sem os magistrados seniores. Enquanto o Senado estiver lá e controlar os gastos e houver tribunos da plebe para aprovarem as leis necessárias, quem poderá sentir a falta dos cônsules e dos pretores? Exceto quando os cônsules são você e eu. Isso é óbvio. Os candidatos ao tribunato da plebe foram em massa falar com Catão, a quem pediram que renunciasse à sua posição. Como é que Catão ia sair dessa? Mas os candidatos não se limitaram a pedir. Fizeram-lhe uma oferta: cada candidato depositaria meio milhão de sestércios (que ficariam sob aguarda de Catão) se Catão aceitasse a realização de eleições e se as supervisionasse pessoalmente! Se Catão descobrisse algum homem culpado por manipular o processo eleitoral, aplicar-lhe-ia uma multa de meio milhão de sestércios. Todo satisfeito consigo mesmo, Catão concordou. Embora se recusasse a ficar com o dinheiro deles, porque Catão não é tolo. Obrigou-os a emitir notas promissórias para que eles não pudessem acusá-lo de peculato. Esperto, hein? O dia das eleições finalmente chegou, com um atraso de apenas três nundinae, e lá estava Catão inspecionando todas as atividades como uma águia. Você tem de admitir que, com o nariz que ele tem, a comparação não é descabida! Descobriu um candidato em falta e ordenou-lhe que pagasse a multa. Provavelmente, pensava que toda Roma iria desmoronar ante o espetáculo da sua incorruptibilidade. Mas as coisas não foram bem assim. Os dirigentes da plebe estão perplexos. Dizem que é inconstitucional e intolerável que um pretor se arvore não em juiz do seu próprio tribunal, mas em inspetor eleitoral não nomeado. Os cavaleiros, esses esteios do mundo dos negócios, nem querem ouvir o nome de Catão, enquanto que as conturbadas hordas de Roma consideram-no simplesmente um louco varrido, um louco que é capaz de andar seminu e que está sempre de ressaca. No fim das contas, ele é pretor no tribunal que julga casos de concussão! Ele julga pessoas com uma carreira firmada, incluindo governadores de províncias — pessoas como Escauro, o atual marido da minha ex-mulher! Um patrício da mais antiga linhagem! Mas que faz Catão? Arrasta indefinidamente o julgamento de Escauro, pois está demasiado bêbado para presidir o tribunal (a verdade tem de ser dita), e, quando aparece, está sem sandálias e sem a túnica debaixo da toga, mas com olheiras que dizem tudo. Eu sei que, no alvorecer da República, os homens não usavam sandálias nem túnicas, mas não me parece que esses modelos de virtude fizessem carreira bêbados. Pedi a Públio Clódio que transformasse a vida de Catão num inferno, e Clódio tentou satisfazer o meu pedido. Mas acabou desistindo e me disse que se eu quisesse realmente irritar Catão, teria de pedir a César que voltasse da Gália.

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Em abril último, pouco depois de ter voltado a Roma (no seguimento da sua viagem à Galácia, onde foi cobrar impostos), Públio Clódio comprou a casa de Escauro por quatorze milhões e meio! Os preços das propriedades estão tão loucos como as fantasias de uma vestal que se ponha a imaginar como seria a coisa se a pudesse fazer… Há quem dê meio milhão por um armário com um penico. Mas Escauro precisava desesperadamente do dinheiro. Os jogos que organizou quando foi edil deixaram-no quase na miséria — e, quando tentou engordar a sua bolsa com a província que governou o ano passado, acabou no tribunal de Catão. E é muito provável que continue no tribunal até que Catão deixe de ser pretor — porque tudo é muitíssimo lento no tribunal de Catão. Por outro lado, Públio Clódio está nadando em dinheiro. Claro que tinha de arranjar outra casa, conforme percebo. Quando Cícero reconstruiu a casa dele, ela ficou tão alta que obstruiu a visão de Públio Clódio. É sempre uma vingança, hein? Bom, a verdade é que o palácio de Cícero é um monumento ao mau gosto. E pensar que ele teve o descaramento de comparar aquela pequena e bela villa que eu construí nas costas do meu complexo teatral a um bote atrás de um iate! O que isso mostra é que Públio Clódio arrecadou muito dinheiro graças ao príncipe Brogítaro. Não há nada como cobrar impostos pessoalmente. Nunca pensei que sobrevivesse naqueles tempos (após a sua partida para a Gália) em que Clódio e os seus bandos de arruaceiros não me deixavam em paz. Quase não me atrevia a sair de casa. Embora fosse um erro contratar Milão para organizar bandos que se opusessem aos de Clódio. Milão sentiu-se importante. Sim, eu sei que ele é um Ânio — por adoção, está claro. Mas a verdade é que, nesse caso, o nome diz tudo sobre o homem, pois o homem é mesmo um gigante tonto, bom para erguer bigornas e pouco mais. Sabe o que ele fez? Veio pedir-me que o apoiasse quando disputasse o cargo de cônsul! “Meu caro Milão”, retruquei, “eu não posso fazer uma coisa dessas! Equivaleria a admitir que você e os seus bandos trabalharam para mim!”. Respondeu-me que ele e os seus bandos tinham trabalhado para mim, e qual era o problema? Tive de lhe dizer algumas coisas desagradáveis para que ele me deixasse em paz. Estou contente por Cícero ter livrado o seu partidário Vatínio. Catão deve ter ficado com um ódio! Acredito que Catão era capaz de ir ao Hades e de cortar uma das cabeças de Cérbero se achasse que isso contribuiria para acabar com você. O que houve de estranho no julgamento de Vatínio é que Cícero detestava o seu partidário — ah, deveria estar aqui para ouvir o Grande Advogado queixar-se das muitas dívidas que tem com você e de se ver obrigado a defender os seus partidários! Contudo, ao longo do julgamento, aconteceu qualquer coisa. Cícero e Vatínio acabaram como duas meninas que tivessem feito amizade nos primeiros dias de escola e que nunca mais tivessem se separado. Fazem um duo estranho, é certo, mas é muito agradável vê-los juntos e

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bem-dispostos. São muitíssimo espirituosos, de maneira que, quando se juntam, passam o tempo a aguçar o humor um do outro. O verão deste ano é o mais quente de que se tem notícia — e sem chuva. Os agricultores estão em maus lençóis. E aqueles sem-vergonha egoístas de Interamna decidiram abrir um canal para escoar as águas do lago Velino para o rio Nar e ter assim água suficiente para ir rigar os seus campos. O problema é que, quando o lago Velino esvaziou, a Rosea Rura ficou seca — imagina só! Os pastos mais ricos da Itália completamente devastados! O velho Áxio, de Reate, veio falar comigo; pediu que o Senado ordenasse aos cidadãos de Interamna que devolvessem as águas ao lago, de modo que vou levar o caso ao Senado e, se necessário, farei com que um dos meus tribunos da plebe faça uma lei nesse sentido. Quer dizer, nós somos militares — percebemos a importância da Rósea para os exércitos de Roma. Haverá outro lugar capaz de criar mulas tão perfeitas — e em tamanha quantidade? A seca é uma coisa, mas a Rósea é outra, completamente diferente. Roma precisa de mulas. Mas Interamna está cheia de burros. Agora, chego a um ponto muito delicado. Catulo acaba de morrer. César soltou uma exclamação abafada; Hírcio e Fabério olharam de relance para ele, mas, quando viram a sua expressão, baixaram imediatamente a cabeça. Quando a névoa se dissipou nos seus olhos, César voltou à carta. Talvez você já saiba do sucedido, pois o pai dele está à sua espera em Porto Ício; no entanto, pensei que seria melhor informar-lhe. Julgo que Catulo nunca mais foi o mesmo desde que Clódia o rejeitou. Como é que Cícero lhe chamou no julgamento de Célio? A Medeia do Palatino. Nada mal. Mas prefiro Clitemnestra de liquidação. Será verdade que ela matou Célere no banho? Pelo menos é o que todos dizem… Sei que ficou furioso quando Catulo começou a escrever aquelas sátiras violentas a seu respeito, depois de ter nomeado Mamurra como seu praefectus fabrum — até Júlia riu quando as leu, e você não tem partidário mais leal do que Júlia. A sua filha disse que Catulo não lhe perdoava o fato de ter contribuído para a elevação social de um péssimo poeta. E que as funções de Catulo, como uma espécie de legado, ao lado do meu sobrinho Mêmio, quando este foi governar a Bitínia, o tinham deixado mais empobrecido do que quando ainda nem sonhava com grandes riquezas. Eu o teria avisado de que Mêmio, quando o assunto é dinheiro, está sempre mais apertado do que o ânus de um peixe. Ao passo que mesmo os mais juniores dos seus tribunos militares são regiamente recompensados. Sei que lidou bem com a situação — mas você lida bem com todas as situações. Felizmente que o tata de Catulo é muito seu amigo. Ele chamou Catulo, Catulo foi a

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Verona, o tata disse-lhe que não importunasse seu amigo César, Catulo pediu desculpas e depois você meio que enfeitiçou o pobre rapaz. Não sei como é que consegue fazer isso. Júlia diz que é uma coisa que nasceu com você. Seja como for, Catulo regressou a Roma e acabaram-se as sátiras a César. Mas Catulo tinha mudado. Vi essa mudança com os meus próprios olhos, porque Júlia gosta de estar rodeada de poetas e dramaturgos e devo dizer que são uma excelente companhia. Parecia tão cansado, tão triste, tão sem vida. Não se suicidou. Apagou-se como uma lamparina cujo azeite fora completamente consumido. Como uma lamparina cujo azeite fora completamente consumido… As palavras na carta ficaram novamente embaralhadas. César teve de esperar até que seus olhos parassem de lacrimejar. Não deveria ter feito aquilo. Ele era tão vulnerável, e aproveitei-me disso. Adorava o pai, era um ótimo filho. Obedeceu. Pensava que ia diminuir a ferida convidando-o para jantar e demonstrando não só que conhecia amplamente a sua obra, mas também que sentia uma profunda admiração por ela. Foi um jantar tão agradável! Ele era inteligentíssimo, e eu adorava a sua inteligência. Contudo, não deveria ter feito aquilo. Matei o seu animus, a sua razão de viver. Como não ter reagido assim? Ele não me deixou escolha. César não pode ser ridicularizado, nem mesmo pelo melhor poeta da história de Roma. Ele depreciou a minha dignitas, parte que me cabe pela glória de Roma. Porque a sua obra perdurará. Teria sido preferível que não se referisse nunca à minha pessoa. Antes isso que ridicularizar-me em público. E tudo por causa de um miserável como Mamurra. Um poeta horrendo, um homem detestável. Mas será um excelente fornecedor de suprimentos para o meu exército, e Ventídio, o encarregado dos animais, andará de olho nele. As lágrimas tinham desaparecido; a razão prevalecera. Podia agora voltar à leitura. Gostaria muito de lhe dizer que Júlia está bem, mas a verdade é que tem andado doente. Disse-lhe que não era preciso termos filhos — Múcia deu-me dois belos rapazes e uma bela moça, que não podia estar melhor, agora que está casada com Fausto Sila, um bom rapaz que acabou de entrar para o Senado. Não há nele nada que faça lembrar Sila, o que provavelmente já é uma boa coisa. Mas as mulheres dão uma imensa importância a essa história de ter filhos. Portanto, Júlia já está com mais ou menos seis meses de gravidez. Nunca mais passou bem desde aquele horrível aborto espontâneo que sofreu quando eu disputava o cargo de cônsul. A minha querida menina, a minha Júlia! Que tesouro que você me deu, César!

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Nunca deixarei de me sentir grato. E é claro que foi por causa da saúde de Júlia que troquei de províncias com Crasso. Teria de ir para a Síria, ao passo que, por intermédio de meus legados, posso governar as Hispânias estando em Roma e ao lado de Júlia. Afrânio e Petreio são dignos da máxima confiança: não dão um passo sem antes me pedir permissão. A propósito do meu prezado colega consular (embora tenha de admitir que me dei muito melhor com ele durante o nosso segundo consulado do que durante o primeiro), como Crasso estará se saindo na Síria? Ouvi dizer que tinha surrupiado dois mil talentos de ouro do grande templo dos judeus, em Jerusalém. Mas o que há de se fazer com um homem cujo nariz é capaz de farejar ouro? Eu também estive nesse grande templo. Fiquei aterrorizado! Não teria mexido num único talento, nem mesmo que o templo tivesse todo o ouro do mundo! Os judeus amaldiçoaram-no. E ele já tinha sido amaldiçoado, no meio da Porta Capena, quando deixou Roma, nos idos de novembro passado. Foi amaldiçoado por Ateio Capitão, o tribuno da plebe. Capitão sentou-se no chão, na frente de Crasso, e recusou-se a se mover, dizendo pragas capazes de pôr qualquer um de cabelos em pé. Tive de ordenar aos meus lictores que o tirassem dali. Tudo que posso dizer é que Crasso está atraindo muita animosidade. Por outro lado, creio que ele não faz a mínima ideia dos problemas que vai ter com os partos. Crasso ainda pensa que um catafracto parto é o mesmo que um catafracto armênio. Apesar de só ter visto um desenho de um catafracto. Homem e cavalo, os dois envergando cota de malha da cabeça aos pés. Brrrr! Vi a sua mãe um dia desses. Veio jantar aqui em casa. Uma mulher maravilhosa! Em particular, porque é extremamente sensata. E continua extremamente bela, apesar de já ter passado dos setenta, segundo me disse. Não parece ter mais de 45 anos. Vê-se logo onde é que Júlia foi buscar a sua beleza. Aurélia também está preocupada com Júlia, e a sua mãe não tem nada de avó-coruja. Nem de mãe, como você sabe muito bem. De súbito, César começou a rir. Hírcio e Fabério deram um salto, espantados; há muito que não ouviam o seu mal-humorado general rindo com tanta vontade. — Ouçam isto! — exclamou, erguendo os olhos do rolo. — Ninguém jamais lhe enviou algo assim numa correspondência, Hírcio! Baixou a cabeça e começou a ler em voz alta, um pequeno milagre para os seus ouvintes, pois César era o único homem que conheciam que conseguia ler um texto sem qualquer pausa durante a leitura. — “E agora” — disse ele, com a voz agitada pelo contentamento — “tenho de lhe contar a história de Catão e Hortênsio. Bem, Hortênsio já não é propriamente um jovem e está ficando parecido com Lúculo, pouco antes da sua

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