Círculo Negro, de Catherine Fisher

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H.

BEITH:

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BE´ TULA

oma”, ele insistia em dizer.“Coma”, mas eu não vou comer. Se acaso o fizer, corro o risco de ficar presa aqui para sempre, e nem com fome estou. Ele me deixa em paz quando grito com ele; não gosta disso. Para além da porta do quarto,há corredores infindáveis. Já os explorei por quilômetros. Pelo menos, acho que sim.Todos eles são iguais — pavimentados com lajes e cobertos de teias de aranha. Vazios. Há sons no prédio. Ecoam ao longe, mas não sei que sons são esses. Às vezes, deparo com uma janela e tiro o pó de minúsculas vidraças a fim de visualizar o lado de fora. É difícil ter certeza, mas o céu aqui parece um crepúsculo soturno, indistinto. Nunca escurece ou clareia, mas há estrelas pouco cintilantes em constelações estranhas, bilhões delas. O que mais me assusta, porém, são as árvores. Há árvores por toda a parte. Entrelaçadas e verdes, forçando-se contra a parede, em ascensão, batendo nos vidros. Como se quisessem entrar.

“C

Primeira letra do alfabeto Ogham (pronuncia-se “ouam”), também denominado “alfabeto celta das árvores”. (N.E.)

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Uma das mãos tocava air guitar, simulando o manejo de uma guitarra, com todas as suas nuanças, em solos instrumentais inaudíveis. Rob deu uma olhada em volta. Havia alguns poucos arbustos espinhosos sob os quais se refugiar, não restando muitas alternativas. A trilha de calcário de Ridgeway margeava a exposta crista das colinas. Nos campos mais abaixo, acres de cevada ondulavam ao vento. Ele deu um pontapé no rapaz esparramado no chão; Daniel sentou-se, contrariado: — Que é? — perguntou bem alto, os fones de ouvido o ensurdeciam. Rob estendeu as mãos e os arrancou. — Levanta. Tô cheio de fome.Vamos nessa. — Bem no meio da melhor música. — Dan desligou o CD-player e esfregou as orelhas dormentes. — E aí, cadê a obra-prima? — Depois eu te mostro. Anda! — Vamos pra casa? — Não. Pra Avebury. Nos últimos dias, Rob estava evitando voltar para casa. Era terça-feira e Maria estaria lá. Ela o irritava enchendo os quartos lúgubres com aquele seu falatório italianado. Eles não saberiam se virar sem ela, mas Rob não precisava estar lá para aguentar tudo aquilo. Enfiou o caderno de desenhos na mochila e fechou o estojo de lápis com um clique. As bicicletas estavam enganchadas uma na outra sobre a extensa grama. Dan puxou a roda da frente da sua: — Só mais três aulas, no máximo. Depois, adeus, bike! Rob abriu um largo sorriso: — É isso aí. Danny já havia tentado tirar a carteira de motorista duas vezes. Sua mãe comunicara que, se ele fosse reprovado mais

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uma vez no teste, ela não pagaria mais aula nenhuma, e, caso ele passasse, não permitiria que se aproximasse de seu carro. De todo modo, ele estava otimista. Chuviscava. — Rua Green? — indagou Rob. — Muito longe. Vamos pegar a trilha sob as colinas. Descemos até a pista. Então ele partiu, pedalando em alta velocidade, os fones metidos novamente nos ouvidos, o heavy metal a todo o vapor. Rob o fitava por trás, aflito. Dan havia esquecido. Nos três meses que se seguiram ao acidente, eles nunca mais pegaram aquela trilha. Ou talvez ele não tivesse esquecido, talvez tivesse tomado uma atitude deliberada. Rob, mais cedo ou mais tarde, teria de enfrentar o local do acidente, e seria melhor enfrentá-lo agora, sem pensar muito. Montou na bicicleta e pedalou ladeira abaixo. Os campos estavam cobertos de papoula, como numa pintura de Monet, borrifos rubros.As papoulas na grama próxima à trilha estavam esbranquiçadas de calcário, pulverizadas pelas bicicletas que passavam e pelo pesado fluxo de botas de andarilhos. Nesse momento, uma grossa chuva açoitou-os de frente. Em toda a extensão dos campos, a safra dourada inclinava-se e tremulava, a tempestade que se aproximava lhe roubava a paz. A superfície de Ridgeway era irregular, as depressões e os rastros de pneu transformavam-se em obstáculos; as bicicletas trepidavam e perdiam o equilíbrio. Hoje, não havia vivalma lá além dos dois; erguendo a cabeça, Rob viu que o estacionamento de Overton Hill estava vazio, e, mais adiante, os caminhões rugiam ao descer a rodovia A4 em direção a Silbury, os

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para-brisas faiscando na luz sinistra. Todo o extenso pasto parecia curvar-se com a ventania, e, enquanto as bicicletas adentravam a plantação de cevada e trepidavam no declive das colinas, ele respirava o ar que esfriava rapidamente, os aromas mesclados e adocicados do verão, o azedume do esterco de cavalo, o salpico dos insetos. Dan seguia bem na frente. A trilha desembocou num trio de colinas, todas coroadas com bosques repletos de faias. Ao passar por baixo delas, ele avistou a elevação dos montes funerários e uma barreira desgastada onde algumas crianças haviam amarrado uma corda e arrastado os pés no calcário. Pedalava a favor do vento, e a chuva salpicava-lhe a face; mantinha a cabeça voltada para baixo, impressionado com a mudança tão brusca de tempo. Chovia intensamente, as gotas pareciam chumbo. A frente de sua camiseta estava toda ensopada. Dan guiava a bicicleta com imprudência. Odiava se molhar, e fazia pouco caso da trilha acidentada, lançando-se nas curvas a uma velocidade irresponsável. Rob era apenas um pouco mais prudente. Sua mochila, entupida de latas de giz pastel e um caderno de desenhos, ricocheteava em seus ombros; ele acelerava pelas colinas num ângulo enlouquecido, e não haveria abrigo para a tempestade no horizonte até chegarem à cerca viva coberta de mato na trilha que descia para Falkner’s Circle. A curva era muito fechada. Rob derrapou, o cascalho açoitando sua roda traseira. A bicicleta rodou, bateu numa pedra. Ele perdeu o equilíbrio e vivenciou aquele instante no qual você sabe que foi longe demais e não tem como voltar atrás. Encostou os pés no chão, mas o selim lhe escapou, e ele caiu estatelado.

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— Droga! Levantou-se, chutou a bicicleta e olhou para as mãos. Pedrinhas de calcário rolavam das escoriações na pele. A palma de uma das mãos estava esfolada; a mancha de lama, salpicada de gotículas de sangue. Rob estufou as bochechas e olhou para a trilha abaixo. Dan provavelmente estaria na estrada agora. Agachou-se, recolhendo os gizes espalhados pelo chão que haviam saltado da lata. Suaves e grossos, caros e farelentos, estavam agora jogados no vasto gramado molhado. Ele os recolheu, metendo-os de volta na lata: amarelo-ocre; castanho-avermelhado; verde-garança, todas as cores paisagísticas com as quais gastava sua mesada quase todos os sábados em Marlborough. Muitos gizes feitos em pedaços, o papel que os envolvia quase vazios. O marrom Van Dyke estava faltando; Rob foi procurá-lo, e soltou um palavrão ao vê-lo esmagado sob seu calcanhar. Um cavalo passou em disparada. Ele ficou alarmado. O cavalo branco havia surgido na trilha no maior silêncio, e, quando a atravessou a galope, quem o montava se abaixou sob os galhos da bétula e do pilriteiro. De costas, o cavalo parecia enorme, seu rabo chicoteava as moscas. A menina em cima dele usava vermelho; seu cabelo, louro e liso, estava cortado curtinho. Como o de Chloe. Rob afastou o olhar, esquivando-se das lembranças; juntou fragmentos do marrom Van Dyke, meteu-os na lata, jogou-a na mochila e carregou tudo nas costas. Agarrou sua bicicleta e a levantou. O cavalo cintilava. Fosse a tarde quente ou o brilho da chuva que caía, algo preenchia o ar com luz, uma centelha faiscante, e o cavalo seguia nessa direção.

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Rob deteve-se mais um pouco. Então, pedalando agilmente a bicicleta, apressou-se em segui-lo. O cavalo estava muito à frente. As rodas da bicicleta sacolejavam, mas a aparição se encontrava totalmente fora do campo de visão de Rob, atrás dos arbustos, completando uma curva. Angustiado, invadido por um terror inexplicável, Rob abria caminho por entre as folhas no encalço do animal, apertando com força o guidom de borracha da bicicleta. A tarde caía; os ruídos se tornavam mais fracos. Seus sentidos subitamente se agu-çaram, o cheiro de mato tornou-se pungente, um leve aroma de coco, doce e enjoativo, pairava no ar. Os fragmentos de calcário esmagados pelas rodas estalavam alto. Naquele calor abafado, ele chegou a Falkner’s Circle. O lugar mal existia. Uma pedra enorme, maior do que Rob, encontrava-se tombada no chão, e outra jazia semienterrada no solo. Mas o espaço era palpável, o vazio formigava em sua pele; Rob via, embora não houvesse nada lá para ver, o espaço que as pedras uma vez cercaram. E o cavalo estava entrando nele. Rob parou, esbaforido: — Chloe? — sussurrou ele. A garota olhou para trás.As grandes árvores faziam sombra em seu rosto, os galhos eram tão baixos que a obrigavam a baixar a cabeça. Os raios de sol invadiam a floresta. Verde Hooker, verde-salva, milhões de verdes. Um rosto estreito, um sorriso atrevido e malicioso igualzinho ao dela, que não era visto havia três meses, exceto em fotografias. E uma voz que dizia: — Olá, Robbie. Ele tremia. Suava frio, encharcado pela chuva.

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Não pode ser ela. Não havia círculo. Rob reparou, e, ao reparar, voltou a ouvir o canto dos pássaros, além dos respingos e estrondos da chuva; não havia nenhuma floresta ali ou a quilômetros de distância, e o cavalo havia descido demais a trilha para poder ser avistado. Rob ergueu a bicicleta, tomou impulso e começou a pedalar. Desceu correndo para se abrigar na sebe, metendo-se embaixo dos galhos, derrapando dentro do vazio da pista asfaltada, quase indo de encontro a um carro que buzinou feito louco e que teve de desviar bruscamente. Dan estava apoiado na cerca de madeira do lado oposto; nervoso, ele se endireitou: — Tenha cuidado! — disse, como se acabasse de lembrar que aquele era o local do acidente. — Onde ela está? — Rob ofegava. — Ela quem? — A garota no cavalo. Dan lançou-lhe um olhar incrédulo. Depois, disse: — Que cavalo? Não havia cavalo. Era bastante óbvio, e isso apavorou Rob. Nos dois lados, viam-se as colinas abertas e vazias, com a chuva raspando a plantação. A pista era visível por pelo menos um quilômetro. Mesmo os turistas haviam se dispersado com o aguaceiro. Rob podia ver o mundo inteiro. Não havia cavalo. Dan o olhava com tristeza: — Você está bem? — sua voz era contida. — Não devíamos ter vindo por este caminho. Eu devia ter pensado nisso. Me desculpe.

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Rob não sabia o que responder. Montou na bicicleta e pedalou rumo a Avebury, sacolejando um pouco de início, e depois acelerando de tal forma que Dan não o poderia alcançar. Não havia como não pensar naquilo. O espanto de o cavalo não estar ali teve nele o efeito de uma descarga elétrica; parecia fazer o mundo em pedaços, estilhaçar a tela no fundo de sua mente. Aquela visão havia sido real, o cavalo havia esmagado a grama, relinchado. E a garota o havia chamado pelo nome. Mas não era Chloe. Isso seria um terror a mais, visto que Chloe estava internada numa clínica caríssima, inconsciente, os braços entubados e os monitores eletrônicos soando a seu redor. E a mãe enxugando a baba que lhe escorria da boca. Dan alcançou Rob: — Eu sou um imbecil, Rob — murmurou. Pelo menos dessa vez, Avebury estava bem tranquila. Geralmente, nas tardes de verão, o gramado entre as antigas pedras era tomado por turistas fazendo piquenique, praticantes de Reiki: ou por grupos de percussionistas em torno do obelisco. Mas a chuva os havia levado a procurar ambientes fechados, como casas de chá, o museu ou até o solar Avebury para visitas guiadas. Chapinhando na avenida principal em meio ao fluxo constante de veículos que atravessavam a aldeia, Rob observou Dan entrar no estacionamento do pub, desviar-se de alguns viajantes e de seus cachorros e desaparecer pelos fundos. Ele o seguia lentamente. Apoiando a bicicleta no galpão repleto de toras de madeira, Rob também entrou no pub. Meio da tarde — o Red Lion estava movimentado. A mãe de Dan trabalhava lá. Ela se aproximou, deu uma olhada em Rob e perguntou:

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— Vocês dois já jantaram? — Fala sério! Com o Leonardo da Vinci aqui desenhando toda criatura que se mexe? — Dan surrupiou um pacote de batatas fritas de dentro de uma caixa. Habilmente, sua mãe lhe arrancou aquele salgadinho das mãos. — Vou preparar uma comidinha decente pra vocês. Entrem no salão de refeições e procurem uma mesa. A mãe de Dan era baixa e seu cabelo tinha mechas louras, de um amarelo artificial que irritava Rob toda vez que ele a via. Agora, desviava sua repugnância para a maneira como a mãe do amigo andava desgrenhada, para a maneira como havia falado jantar em vez de almoçar, para suas unhas pintadas de vermelho. Isso ajudava. Fazia com que ele se sentisse melhor, embora gostasse dela. Assim apagava da mente a lembrança da menina e do cavalo. Comeram lasanha com fritas; a comida estava quente e saborosa. Dan entupiu seu prato com ketchup. — Você é um tosco — resmungou Rob. — Infelizmente, sou mesmo. Nunca fui à Itália. Não sei o que é finesse. — Concordo em gênero e grau. Dan enfiou duas batatas fritas no lugar dos caninos superiores e fez cara de vampiro. Rob fez um esforço e riu, embora ambos soubessem que ele não estava para risos. Nenhum dos dois falou uma palavra a respeito de Falkner’s Circle. O salão estava apinhado de gente, um calor fumegante, aconchegante. Os lugares junto à janela estavam ocupados por americanos que vieram em um ônibus de turismo. Com sotaque forte e estranho, comiam e discutiam a respeito de mapas. À mesa seguinte, alguns estudantes de arqueologia; Rob conhecia-os de vista, estavam hospedados na pousada

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descendo a rua da casa de Dan. Uma das moças era bonita; Dan inclinou-se: — Dá uma espiada nela. — Ah, se eu pudesse fazer um retrato dela... Dan sorriu de orelha a orelha. Em seguida, soltou: — Vai lá e pergunta isso pra ela. — Não inventa, Dan. — Se você não for, eu vou. Antes que Rob pudesse detê-lo, Dan já havia se voltado para a moça: — Oi. Desculpe interromper. Meu amigo é pintor. Ele gostaria de saber se você topa posar pra ele. Todos olharam para Rob. — Cala a boca, Dan — ordenou Rob com os dentes cerrados, vermelho de raiva. A garota replicou: — Quanto você paga? — ela mantinha uma expressão séria no rosto, ao passo que os outros não se continham. Um homem pegou a conta da mesa e levantou-se; depois bufou e disparou: — Ela é velha demais pra você, guri. — Esqueça toda essa bobagem — murmurou Rob. — É invenção dele. Ele é um babaca.Vive aprontando dessas coisas. Ela esboçou um sorriso: — Eu me sentiria lisonjeada. Mas, que azar, amanhã entro de férias. Tem mesmo talento? Estava tentando ser simpática. Dan achou que a pergunta fora direcionada a ele. — Ele é o maior artista que conheço.Vai cursar Belas-Artes ano que vem.

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— Em qual faculdade? — Não sei... Tenho ainda que finalizar meu portfólio... — Rob resmungava estupidamente. Não queria falar sobre isso com ela, nem a conhecia... Todos os seus amigos de sorriso zombeteiro estavam indo embora, e ela também se pôs de pé. Então, voltou-se para ele e parou de sorrir: — Ouça. Falando sério. Estão precisando de um desenhista na nova escavação para registrar as descobertas. Nas férias, todos abandonam a cidade. — Que escavação? — indagou Dan. Ela franziu o cenho: — É uma escavação sigilosa. Um caso atípico. Num campo, na direção de East Kennet. Pergunte pelo dr. Kavanagh; você pode ser justamente o que eles estão precisando. Ela apanhou a jaqueta e virou-se novamente: — Ah, cuidado: não diga que fui eu que te indiquei. Ninguém deve sair por aí comentando. Mas eles não vão conseguir guardar segredo por muito tempo. — Guardar segredo do quê? — Dan reagia de maneira exagerada; os olhos arregalados. Ela sorriu e ergueu os ombros. Como se já tivesse se arrependido de ter tocado no assunto.

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