COISAS QUE NINGUÉM SABE
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Do autor: BRANCA COMO O LEITE, VERMELHA COMO O SANGUE COISAS QUE NINGUÉM SABE
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Alessandro D’Avenia
COISAS QUE NINGUÉM SABE
Tradução Joana Angélica d’Avila Melo
Rio de Janeiro | 2013
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Prólogo
É seu aniversário de 14 anos e ela está sentada na proa. Os olhos verdes, risonhos e melancólicos estão magnetizados pelo horizonte: uma linha nítida demais para não meter medo. O mundo é uma concha. Faz eco à luz, reflete toda aquela que recebe, até sob a forma de sombras. E a luz é o único mandamento da alvorada. Um mandamento áspero, porque, quando se vem à luz, sente-se também vontade de chorar. — Você parece uma polena!* — grita-lhe o pai, tentando vencer o rumor do vento que impele a embarcação ao largo da baía do Silêncio. Gaivotas acariciam a água em busca de presas e, cansadas, pousam sobre o mar. O odor seco da costa já está distante. Pernas abandonadas ao vento e ao vazio, Margherita se volta, estende sobre a madeira do assoalho seus 14 anos novos em folha e o encara. Um sorriso esculpe o rosto do pai, que já chegou à idade em que cada vinco ou ruga está onde deve estar e o rosto revela com graça impudica quem você é, quem foi e quem será. Ele tem espessos cabelos negros, como Margherita, e olhos ainda mais
* Figura de proa, carranca. Como, adiante, há um jogo de palavras e uma explicação para esse termo, preferimos deixá-lo em italiano. (N.T.)
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negros que os cabelos, se isso é possível — os olhos dela, verdes e transparentes, Margherita roubou da mãe —, a pele recém-escanhoada, perfumada pela loção pós-barba com que a esposa lhe presenteia desde quando eram namorados. Eleonora ficou em casa com Andrea, o filho caçula, preparando o almoço da festa. Apoiando o queixo sobre as mãos unidas em forma de parapeito, Margherita, fingindo-se ofendida, indaga: — Uma falena?* — Não uma falena... Uma polena! — O que é polena? Deixando por um instante o timão e lançando um olhar às fitas indicadoras da direção do vento, bem aderentes à vela, o pai responde gesticulando, como se pintasse as palavras no ar: — Os antigos marinheiros esculpiam na proa dos navios uma figura humana, com a função de protegê-los. No início, eram apenas uns olhos enormes, que permitiam ao navio enxergar a rota. Depois, eles as transformaram em divindades femininas: mulheres belíssimas, de olhar hipnótico, capaz de encantar as ondas e intimidar os inimigos. Margherita sorri, estreitando as pálpebras. Contorce-se e volta à posição anterior. Os cabelos a seguem, uma cascata negra desarrumada pelo vento e banhada pela luz. Bela e imóvel como uma figura de proa, com seus olhos de mar: íris verdes úmidas de lágrimas, que o ar enxuga muito rapidamente para deixar somente um vago
* Falena: borboleta noturna, mariposa. Tanto quanto em português, em italiano o termo pode ser usado em sentido pejorativo, como sinônimo de “prostituta”. Daí Margherita se fingir de ofendida. (N.T.)
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indício delas. Aos 14 anos a gente chora com frequência, de alegria ou de dor, não importa. As lágrimas não se distinguem, e a vida é tão tenra que se dissolve como cera ao fogo, que descasca a menina para descobrir a mulher. Margherita balança as pernas no vazio, e o mar esguicha confetes de luz e água contra seus pés descalços, que escoiceiam a linha do horizonte na tentativa de quebrá-la. Mas a linha permanece intacta. A garota a observa: fio da vida, suspenso entre céu e terra, sobre o qual ela se imagina em equilíbrio. A vita è nu filu, diz sempre a vovó Teresa, na língua carnal de sua terra. E, aos 14 anos, você é um equilibrista descalço sobre seu fio, e o equilíbrio é um milagre. É o verão da vida dela. É a alvorada de uma idade nova. Seu pai e ela, sozinhos em um barco a vela, a poucos dias do início do liceu,* no dia de seu aniversário. Por um instante, Margherita fecha os olhos e distende a coluna sobre o assoalho do barco, alonga os braços. Depois, abre os olhos de novo, e uma força invisível inunda a vela. É o vento. A gente não o vê nem o sente enquanto ele não encontra um obstáculo, como todas as coisas que sempre existiram. Até o mar parece sem limites e, no entanto, canta sozinho quando encontra obstáculos: chocando-se contra a quilha, torna-se espuma; quebrando-se nos recifes, vapor; espalhando-se pelas praias, ressaca. A beleza nasce dos limites, sempre. *** * No sistema educacional italiano, o liceu corresponde aproximadamente ao nosso ensino médio, antigo segundo grau, mas com duração de cinco anos. O aluno pode optar entre liceo scientifico e liceo classico. (N.T.)
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O pai bloqueia o timão e se aproxima de Margherita por trás, surpreende-a com um abraço e a levanta. A luz entra em todas as coisas, atravessa a pele, chega dentro da carne. Cobertos por uma camisa branca arregaçada até os cotovelos, os braços fortes do pai a estreitam. O perfume quente e seco da loção pós-barba mistura-se ao do mar. Ele apoia o nariz sobre a nuca da filha e lhe dá um beijo. Fita o horizonte junto com Margherita, que experimenta o embaraço de seu corpo inquieto e novo, sentindo-o quase como uma culpa. Porém, com seu pai tão próximo, a linha que divide céu e mar em dois não inspira medo e é possível ir ao encontro dela, percorrê-la, explorá-la, furá-la com a proa, como se aquilo fosse um cenário de papel. — Você é a garota mais bonita do mundo. A minha pérola. Parabéns! — diz ele, beijando-a de novo. Chama-a assim porque o nome dela, Margherita, significa “pérola” em latim. Ele repete isso muitas vezes. “Eu era bom em latim”, acrescenta sempre. — Um dia, poderemos chegar à Sicília. Quero ver a casa amarela da qual a vovó sempre fala, e o jardim com a trepadeira de jasmins na fachada e as figueiras-da-índia — diz Margherita, imitando a voz da avó e imaginando que frutos como aqueles das narrativas de Teresa, tão rubros, amarelos e brancos, não podem existir na realidade. — Faremos isso. — Promete? — Prometo. As ondas lavam os flancos de Perla. Assim se chama também a embarcação.
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— Por que todos os nomes de embarcações são de mulher? O pai não responde logo, reflete em silêncio e extrai as palavras como se as encontrasse no fundo de um poço. Sempre sabe tudo, seu pai. — No navio de Ulisses, desenhado no livro de que eu mais gostava quando criança, estava escrito Penélope. Todo marinheiro tem um porto, uma casa à qual voltar, porque tem uma mulher que o espera ali, e o nome de sua embarcação lhe recorda o motivo pelo qual ele navega... Sabe se arranjar com as palavras, seu pai. É um poeta quando quer. — Como a mamãe para você? O pai acena que sim. — Papai, estou com medo... de começar o liceu. Não sei se estou à altura, se vou conseguir, se os colegas serão simpáticos... Se algum dia serei alguém... Se vou ter um namorado... Tenho medo do latim, não sou como você... — Pois eu também tenho medo do latim... Até hoje sonho que o professor está me perguntando sobre os paradigmas dos verbos e que não me lembro de nada... — Paradigmas? O que é isso? — Bom. Por exemplo... — O pai está para iniciar uma de suas explicações intermináveis, e Margherita o interrompe de repente: — Papai, estou com medo... — As lágrimas chegam aos olhos. — Aconteça o que acontecer, estou aqui. — Eu sei, mas isso não me tira o medo. — Então, você está vivendo. 15
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— Como assim? — Quando sentimos medo, é sinal de que a vida está começando a nos tratar com mais intimidade. Você está se tornando uma mulher, Margherita. Ela se cala, detendo-se para examinar aquela palavra, mulher. Que lhe dá medo. Tem luz demais. Seu pai a estreita com mais força. Atrás dos dois, o golfo de Gênova amplifica esse abraço sob a forma de recifes, costas, montanhas, continentes, multiplicando-o ao infinito, como se o universo inteiro a estivesse abraçando através de seu pai. Margherita inspira o fresco odor dele, capaz de acalmá-la e de convencê-la de que está no mundo para explorá-lo, como durante o curso de mergulho que fez naquele verão. Perla, silenciosa, fere o mar, que cicatriza em leve espuma. Lágrimas de alegria e de medo não se distinguem. No rosto de Margherita, as primeiras lavam as segundas, e o mundo inteiro é o presente de um pai à filha no dia de seu aniversário. O pai lhe enxuga as lágrimas com o indicador dobrado, semelhante a um caule sobre o qual se acomodou o orvalho. Mostra uma a Margherita: brilha como pérola. Ele explica: — Uma vez, sonhei com uma mulher lindíssima, vestida com um casaco branco. Ela me olhava e sorria. Perguntei: “De onde vem sua beleza?” E a mulher me respondeu: “Um dia, você estava chorando, e eu esfreguei meu rosto com suas lágrimas.” — O pai faz uma pausa e acrescenta: — Tudo vai correr bem, Margherita, tudo vai correr bem... 16
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Margherita confia naquelas palavras, confia-se àqueles braços. Não pode saber que nada vai correr bem, e, talvez por isso, continua a chorar, alegria e dor juntas, e não sabe qual das duas prevalece na composição química das pérolas geradas pelos olhos. Queria perguntar ao pai, mas se detém. São coisas que ninguém sabe.
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