Catherine Lテゥpront
Traduテァテ」o Caio Meira
Rio de Janeiro | 2014
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O material histórico na narrativa de ficção*
A Moncef Khemiri Quando um romancista planeja não somente inscrever uma narrativa num contexto histórico que constituiria seu cenário intercambiável, mas ainda, ao contrário, escrever uma história da História, ele se choca contra três tipos de dificuldades, e elas, num primeiro tempo, parecem insuperáveis. A primeira dificuldade decorre de que, num sentido, o tempo calendário da História — suas datas, as durações mensuráveis e, portanto, quantificáveis dos acontecimentos — impõe repentinamente à narrativa de ficção uma restrição da qual, por definição, ela está emancipada. No sentido inverso, o tempo da narrativa de ficção — percebido, sentido, qualitativo, não mensurável — com seus hiatos, pausas e dilatação, e também com suas formidáveis intuições da incomensurável eternidade, introduz no tempo histórico do relógio um princípio de relativização que incorre no risco de afetar o próprio valor dos fatos, conforme sejam eles relatados, brevemente evocados
* Uma primeira versão deste texto, aqui modificado, foi tema de uma conferência na Faculdade de Letras de Manouba, em Túnis, em dezembro de 2000, e de uma publicação pelo Instituto Francês de Cooperação.
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ou silenciados, porque teriam mergulhado no abismo temporal dos saltos quantitativos, às vezes imensos, que se permite o romance. Se se considerar a relação do autor de ficção com o material que utiliza como uma confrontação com uma massa de modelar, coletando, trabalhando como a sovar a escrita, estruturando, dando forma, a segunda dessas dificuldades se torna evidente pelo fato de ele se encontrar diante da necessidade de misturar a História “verdadeira” e a ficção “imaginária”, isto é, de transformar numa só coisa duas substâncias heterogêneas, cujos elementos chegam até mesmo a ser incompatíveis, à primeira vista. Trataremos aqui do problema da integração do material histórico à narrativa, ao mesmo tempo que veremos que soluções propõe o romance para essa terceira dificuldade, que decorre evidentemente das duas primeiras, e que diz respeito ao próprio gênero. Irredutibilidade dos dois tempos — interior, não mensurável e incomensurável dos quais dá conta a ficção, e calendário mensurável no qual se inscreve necessariamente a História —, incompatibilidade dos materiais, é a própria narrativa, cuja ambição é ser ao mesmo tempo histórica e de ficção, que parece, de fato, não poder constituir um gênero, posto que o problema diante do qual é colocado o autor se apresenta inicialmente, para ele, em termos de alternativa, e das mais elementares: narrativa histórica ou narrativa de ficção. Assim chamaremos essa narrativa ainda improvável de “narrativa histórica de ficção”, devido a essa contradição nos termos que a fórmula comporta, e que temos a intenção de resolver do melhor modo, mas também porque essa apelação “romance histórico”, por um lado, é assimilada à tentativa de Georges Lukács* e, por outro
* Georges Lukács, Le Roman historique, Paris, Payot, 1977.
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lado, foi desgastada pela grande produção de intrigas romanescas inseridas num cenário qualificado de “histórico”, apenas com o pretexto de que a época evocada fazia parte do passado e, às vezes, de um contexto exótico. Esses produtos em série e feitos de acordo com os códigos folhetinescos não participam, em sua grande maioria, de modo algum, da literatura, uma vez entendido que a literatura é uma arte, e que a narrativa histórica de ficção que nos interessa aqui é um objeto de arte, ou um “objeto estético”, para retomar a expressão de Mikhail Bakhtin.* ••• Todos os testemunhos confirmam: a parte mais importante do material histórico é coletada e armazenada antes da redação propriamente dita do romance. Assim, no início dos anos 1860, temos de um lado Flaubert, acumulando, em Paris, uma incrível quantidade de documentos e testemunhos diretos sobre o reino de Luís Filipe até a revolução de 1848 e o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851, com vistas à criação de A educação sentimental; por outro lado, é Tolstói recolhendo, por sua vez, narrativas ouvidas dos protagonistas das guerras napoleônicas e da campanha da Rússia, e mergulhando, na biblioteca pública de Moscou, na história da rivalidade entre o czar Alexandre I e Napoleão, desde os fracassos de Austerlitz, em 1805, de Eylau e de Friedland, e desde a Paz de Tilsit, em 1807, até a retomada das hostilidades em 1812, famoso e glorioso ano do exército russo — isso para a criação de Guerra e paz.
* Mikhail Bakthin, Esthétique et Théorie du roman, Paris, Gallimard, col. “Tel”, nº. 120, 1972, tradução para o francês de D. Olivier, prefácio de M. Aucouturier.
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Por outro lado, não é raro que o romancista conduza sua pesquisa histórica para o romance a ser criado por meio da redação de uma narrativa completamente diferente; não porque hesite entre dois projetos, mas sim porque as duas atividades não são prejudiciais uma à outra, pela simples razão de que o trabalho de organizar e acumular conhecimentos não solicita nem as mesmas forças nem a mesma disposição de espírito que o trabalho de criação. Em Estética e teoria do romance, Mikhail Bakhtin distingue entre a “atitude criadora da consciência” e as “atitudes cognitiva e ética”, aquela se situando não ao lado destas, “sempre preexistentes, mas do lado de fora e acima das outras”. Assim o romancista pode se consagrar às duas tarefas alternadamente durante um mesmo período de atividade, sem que isso lhe traga o menor problema. No entanto, o próprio fato de essas tarefas serem diferentes, ainda que possibilite a facilidade com a qual o escritor as conduz, significa igualmente a que ponto os dados históricos e a matéria ficcional são, por sua vez, de natureza diferente, e isso constituirá a primeira dificuldade contra a qual o escritor esbarrará. Quando inicia a redação da narrativa de ficção, já relacionada à documentação e aos testemunhos históricos reunidos, isto é, quando ele se lança numa “atitude criadora”, o problema se lhe apresenta inicialmente em termos de irredutibilidade: como, de fato, o material histórico acumulado poderia ser tratado por essa consciência criadora “como se” fosse ela que estivesse na fonte do mesmo, e “como se” o material histórico fosse ficção, como “criar” e informar, quando a História é consubstancialmente estranha à ficção, e que tudo, na verdade, opõe a matéria fictícia e a histórica? O que incomoda o romancista, em primeiro lugar, quando ele se põe a trabalhar na criação propriamente dita, é que a matéria histórica já está lá, sob a forma de algo extremamente tangível: os documentos que ele acumulou, num maço de notas, em cadernos,
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fichas nos quais ele mesmo registrou acontecimentos reais, já ocorridos, datados, situados, realizados por pessoas reais. Além do mais, alguns desses acontecimentos fizeram época, sendo considerados como altos e exemplares feitos, outros são até objeto de comemo rações — assim, é no ano da celebração do quinquagésimo aniversário de 1852 que Tolstói decide escrever um romance sobre a campanha da Rússia, antes de estender, por mais quinze anos, o campo abarcado por sua narrativa histórica de ficção. E quanto a tais pessoas, protagonistas reais da História, por vezes algumas delas já chegaram a ser alçadas ao status de “personagem histórica”. Isso significa que, com o passar do tempo, tais fatos e pessoas já foram objeto de muitas narrativas, algumas oralmente contadas no âmbito privado da história familiar, outras escritas e difundidas no contexto público da história oficial. Significa também que tais narrativas, por outro lado, conferiram a tais acontecimentos e seus autores reais, com frequência heroicos ou, ao contrário, qualificados de “inumanos”, de “monstruosos”, uma rigidez marmórea que constitui o extremo oposto da flexibilidade, da maleabilidade ad libitum do material imaginário da ficção, mas também um caráter autoritário e impressionante; comparadas a tais qualidades, as intrigas e personagens propriamente romanescas podem aparecer a priori como irrisórias. É penetrado por esse sentimento que Flaubert escreve a Duplan em 14 de março de 1869: “Tenho muita dificuldade para encaixar minhas personagens nos acontecimentos de 1848. Tenho medo de que o fundo devore os primeiros planos: esse é o defeito do gênero histórico. As personagens da história são mais interessantes que as da ficção, sobretudo quando estas têm paixões moderadas.” Do mesmo modo, em História do cerco de Lisboa,* José Saramago determina que sua
* José Saramago, Histoire du siège de Lisbonne, op. cit.
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personagem Raimundo Silva, autor de uma histórica “retificada” do cerco, faça uma nítida distinção, irônica no caso, entre a narrativa histórica “difícil” e a narrativa de ficção “fútil”. Já ocorreu igualmente que elementos históricos e seus autores, sobre os quais o romancista se propõe a trabalhar, tenham assumido uma dimensão lendária, ou mesmo mítica, isto é, de certo modo fictícia, o que intimida o romancista a ponto de este ter a impressão de que, para ele, é “tarde demais” para tratar do assunto. Todavia, sabemos muito bem como a literatura austríaca do século XX respondeu, de maneira exemplar, à paralisante imagem mítica que o Império austro-húngaro, até o fim, modelou e veiculou de si mesmo: literatura de ficção, ela se apoderou dessa imagem dada pela versão oficial histórica, de certo modo a re-representou, mas para denunciar o fato de que o Império tinha de tal modo se identificado à representação fictícia que construíra de si mesmo, que acabara por se imobilizar, divorciado da realidade, conduzindo-se assim para sua própria derrocada. Uma vez definitivamente sepultada a era austro-húngara e, com isso, perdido o Império e o mundo que lhe estava associado, essa literatura terá finalmente sabido apoderar-se com sutileza do mito histórico em proveito do mito literário, sem dúvida nostálgico, porém — e eis aí o paradoxo da ficção — mimetizando muito bem o primeiro apenas para sublinhar seu caráter artificial e falacioso. Para dar um único exemplo, ao lado de Stephan Zweig, de Robert Musil e sua Kakânia, de Broch e, mais tarde, de von Doderer e von Rezzori com seu “império do Meio”, o Joseph Roth de A marcha de Radetsky, especialmente, metamorfoseou o imperador Francisco-José numa inesquecível figura literária, igual às grandes personagens romanescas que marcam a história da literatura, tendo-o submetido, sem sacrificar a verdade histórica factual, aos mesmos tratamentos literários, às mesmas operações de distorção, de estilização, de transfiguração e, nesse caso preciso, a uma petrificação
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que vai até a imutabilidade rígida que o caracteriza; isso foi feito de modo que é como se o autor tivesse utilizado algum próximo seu como modelo único, ou como se tivesse concebido uma espécie de colagem de traços, defeitos e características tomados de empréstimo a diversas pessoas. Quanto ao material da ficção, ele não é já dado. Seja qual for a importância das notas feitas sobre o conteúdo da narrativa de ficção antes do início da redação — retratos, esboços de cenas, pedaços de diálogos —, seja qual for a fidelidade com a qual o plano premeditado terá sido respeitado, e restituídas as lembranças conscientes, as personagens estabelecidas de acordo com seus modelos, o material de ficção, de fato, só está realmente presente quando tudo estiver escrito; o romancista só pode concebê-lo em sua totalidade in fine e a posteriori (e ainda assim com a condição de poder ser um leitor objetivo de sua própria obra). Pois a escrita que confere a esse material estilo, forma e sentido é não somente seu constituinte necessário, indissociável de seu conteúdo, mas também, para seu autor, elemento revelador. O material histórico, já presente, é além do mais já formulado. E, sobretudo, numa linguagem distinta da linguagem própria do escritor, que é sua escrita e, diferentemente ainda do material fictício, que pertence propriamente a seu autor e vem de dentro dele, é um material estranho e exterior a ele. Uma das soluções para dissolver o material histórico na narrativa de ficção histórica proposta pelo romance é deixar tal material em estado natural, representando-o como tal: documentos e testemunhos emanando de outrem, emitidos em linguagem de outrem, acontecimentos observados por outrem. Três possibilidades se oferecem então ao romancista: ou ele aposta que não somente o conteúdo, mas também o lugar desse material em dado ponto
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— em determinado momento da narrativa — terá sentido, ou então dá sua opinião, seja diretamente, caso tenha adotado a técnica do autor onisciente, que intervém enquanto tal na narrativa, ou indiretamente, por intermédio de seu narrador porta-voz, ou, ainda, por meio da personagem que, tratada em terceira pessoa, assume pontualmente esse papel; ou então, enfim, ele faz com que os acontecimentos sejam relatados por diversos protagonistas — pessoas reais ou personagens de ficção — de maneira mais ou menos contraditória, durante discussões, por exemplo. Com suas colagens de atualidades, especialmente sob o modo de artigos de jornais, procedimento que inaugura com Manhattan Transfer, em 1925, algo que o leva depois ao mesmo tempo à perfeição e ao impasse técnico, John Dos Passos ilustra de maneira exemplar o primeiro caso. Nenhum comentário sobre esses documentos é feito; trata-se de exposição pura e simples. Seu desígnio é, de fato, como notou Sartre, o de “mostrar esse mundo, o nosso mundo. Mostrá-lo, somente, sem explicações nem comentários”,* e fazer com que nele evoluam protagonistas que formulem pretensas opiniões ou pensamentos unicamente nos termos dos documentos colados, e que vivam acontecimentos após acontecimentos ou, mais precisamente, permaneçam hesitantes em relação a eles — inclusive em relação à guerra — sem que estes tenham para eles o menor sentido, acontecimentos que sequer pareçam ligados por alguma causalidade, e que sequer se organizem de acordo com qualquer escala de valores. A tragédia do homem na História, tal como exposta por John Dos Passos em toda a sua nudez, consiste em que a História deixa o homem de fora dela.
* Jean-Paul Sartre, Critiques littéraires, in: Situations I, Paris, Gallimard, 1947.
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O caso de Tolstói, em Guerra e Paz, parece-nos hoje bastante singular, do ponto de vista do direito de propriedade literária e da desenvoltura com a qual é tratada a verdade histórica. Quanto aos documentos consultados, acontece de fato que sejam citados in extenso, diretamente nos trechos narrativos, sob a forma de diálogos entre protagonistas da história, bem como nas considerações de Tolstói e em seus trechos doutrinais, quando então são retomados pelo escritor russo por sua própria conta, reescritos, ao passo que os autores dos propósitos citados figuram frequentemente como personagens de ficção. Com exceção dos propósitos de autor do próprio Tolstói (que no entanto são amplamente tomados de empréstimo a Proudhon, a Joseph de Maistre e a seus amigos historiadoresfilósofos, especialmente Pogodin), que são objeto de digressão ou que constituem longos trechos historiosóficos da segunda parte da obra, Tolstói trata todo o material histórico de modo a integrá-lo no contexto romanesco e lhe conferir um papel dramático na própria narrativa de ficção. Inspirado de muito perto pela técnica utilizada por Trollope em The Bertrams, seu procedimento consiste em fazer convergir umas em direção às outras as personagens reais da História e os protagonistas imaginários da ficção: por exemplo, Éric Radoitski, autor real de Lembranças de campo de um artilheiro de 1812 a 1865, que Tolstói cita abundantemente, perfila-se assim na ficção sob as aparências um tanto apagadas de Tuchin, e Bazdieev, autor real de escritos maçônicos — a partir do qual ele cria o fictício Pedro Bezukhov, seu adepto —, torna-se a personagem Pozdieev, por sinal bem mais humana que seu modelo. De modo inverso, Mikhailovski faz mais do que simplesmente lhe inspirar os relatos de Austerlitz e a discussão de Napoleão vencedor com os oficiais russos, mas é a Nicolas Rostov que Dolgorukov ordena um reconhecimento, e Bolkonski é testemunha do ferimento de Kutuzov, e, aliás, o príncipe
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André encontra-se presente na entrevista entre os protagonistas reais da História. Quanto ao relato feito — este também real — por Joseph de Maistre da batalha de Borodino, Tolstói “coloca-o na boca de”, para retomar aqui uma expressão do jargão teatral, transformando-o numa discussão ocorrida no salão de Anna Pavlovna. Seria possível, assim, multiplicar à vontade as ocorrências desses encontros entre pessoas e personagens na arena única do romance de Tolstói. Também eficazes e bem mais reveladores sobre o sentimento de Tolstói sobre os acontecimentos são, por um lado, sua maneira cada vez mais leve de tratar a verdade histórica na medida em que avança em seu relato e, por outro, a perspectiva de que considera os altos feitos da História. Que ele coloque no contexto de sua glória o ritual da toalete de Napoleão fazendo com que o mesmo apareça “gordo e nu” (sabe-se que tal episódio realmente ocorreu na ilha de Santa Helena), ou que considere os conselhos de guerra como propósitos mesquinhos trocados entre oficiais superiores, semirreais, semi-imaginários, ou ainda que descreva as grandes batalhas do ponto de vista de uma bateria, ou do civil Pedro Bezukhov, é sempre com a mesma intenção de agregar numa mesma humanidade as grandes personagens históricas e os atores ou meras testemunhas, imaginários ou, por vezes, também reais, mas que a crônica histórica terá relegado ao anonimato. Todavia, com Tolstói (Dostoiévski dizia que ele era o historiógrafo da nobreza russa) e até mesmo, mais tarde com Vassili Grossman de Vida e destino (ainda que este tenha dado a palavra, muito mais, aos simples soldados e às suas famílias, tendo assim, por conseguinte, aumentado o número de vozes com direito à História), com eles, pois, e apesar dessa relativa plurivocidade, estamos ainda, por um lado, diante de uma literatura heroica (vizinha do gênero épico), e, por outro, diante de um discurso do autor sobre a História que prevalece sobre as falas das personagens, contaminando-as. Seu ponto de vista permanece único, autoritário, predominante, estamos
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diante de uma pintura monoperspectivista, clássica, da História. Sem ser absolutamente maniqueísta, pode-se dizer que a visão do romancista é pelo menos unilateral e partidária, e esse ponto de vista pessoal não somente corresponde ao ponto de vista oficial, mas ainda contribui para alimentar o que constitui, com sua História, a memória oficial da coletividade representada na narrativa de ficção — são ainda romances de celebração de uma memória ainda gloriosa. O que ocorre em Flaubert já é totalmente diferente. Sobre esse autor, Pierre-Marc de Biasi escreveu: “no que diz respeito, por exemplo, à revolução de 1848, trata-se, para Flaubert, de checar as informações (em toda a imprensa da época, em memórias e estudos históricos, nas mais diversas publicações, testemunhos de sobreviventes etc.) até obter, sobre os acontecimentos de que ele queria falar, imagens incontestáveis, exaustivas, precisas, e politicamente não passíveis de ‘recuperação’ por nenhum dos partidos interessados [...]. Cabe ao estilo e à composição os papéis de evitar o parti pris e restituir a história naquilo que foi, na época, sua incapacidade de ‘Fazer sentido’”* — entre 1840 e 1851, que cobre a duração de A educação sentimental, Flaubert tinha entre dezenove e trinta anos e possuía, portanto, uma memória viva dos acontecimentos; assim o romance corresponde muito bem àquilo que Paul Ricœur chama “um espaço textual apropriado à correlação entre crise histórica e crise mnemônica”** (a propósito de Confissão de um filho do século, de Musset, e do poema “Le Cygne”, extraído da sessão “Quadros parisienses”, da coletânea As flores do mal, textos comentados por Richard Terdiman).
* Pierre-Marc de Biasi, “Introduction” aos Carnets de travail de Gustave Flaubert, op. cit. ** Paul Ricœur, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, Paris, Seuil, 2000, p. 508.
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••• Ora, é uma crise de alcance completamente diferente, e até mesmo de outra natureza, que terá vivido o romancista imediatamente contemporâneo: diferentemente dos que o antecederam, sua memória, individual, privada, quer seja a sua própria, quer ela tenha sido alimentada, às vezes, pelos relatos de seus próximos, testemunhas diretas dos acontecimentos relatados, é uma memória desestabilizada pelos documentos e discursos que construíram a memória coletiva do século XX. Isso o põe, de saída, numa postura inédita em relação ao material que terá coletado do mesmo modo que faziam os escritores seus antepassados, uma memória que lhe trará os mesmos problemas técnicos. Pois no caso dos escritores contemporâneos, ocorre que ele se encontra diante de documentos com frequência parciais, mais ainda muitas vezes parciais e contraditórios, que defendem teses opostas, que servem a causas inimigas; em alguns casos, o escritor contemporâneo se sentirá autorizado a contestar a veracidade de certos documentos. Esse ceticismo crítico é por ele adotado a partir de então diante de qualquer fonte histórica, referente a qualquer período. Em História do cerco de Lisboa, Saramago põe em cena uma personagem que escreve, nos dias de hoje, um relato do cerco, o que lhe permite criticar não só a maneira pela qual Portugal construiu o mito fundador de sua história, como, ainda, com o pretexto de falar de história antiga, a ficção de sua história moderna — colonial — e contemporânea, que começa com a ditadura de Salazar. Ele escreve, com o veio cômico que o caracteriza: “o mal das fontes, ainda que verazes de intenção, está na imprecisão dos dados, na propagação alucinada das notícias, agora nos referíamos a uma espécie de faculdade interna de germinação contraditória que opera no interior dos factos ou da versão que deles se oferece, propõe ou vende, e, decorrente desta como que multiplicação de esporos,
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dá-se a proliferação das próprias fontes segundas e terceiras, as que copiaram, as que o fizeram mal, as que repetiram por ouvir dizer, as que alteraram de boa-fé, as que de má-fé alteraram, as que interpretaram, as que rectificaram, as que tanto lhes fazia, e também as que se proclamaram única, eterna e insubstituível verdade, suspeitas, estas, acima de todas as outras.”* A história oficial, ou o que Paul Ricœur chama de “memória histórica doente”, engendrou essa crise de confiança do indivíduo por diversas razões, em diversos níveis — e a “transposição das categorias patológicas para o plano histórico, acrescenta Ricœur [é ainda mais pertinente por ser evocada] a relação fundamental da história com a violência”.** Adotando uma ordem crescente de malignidade, aquilo a que, inicialmente, por vezes desde a infância, a maior parte de nós — e portanto os romancistas contemporâneos — foi confrontada foi o hiato existente entre, por um lado, a celebração oficial dos heróis e, por outro, os relatos dos próximos que, se nem sempre foram os atores, pelo menos foram testemunhas diretas dos fatos narrados, e que bombardeavam esse culto. Foi assim que, de ambos os lados das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, vozes se elevaram para narrar a existência cotidiana dos soldados, o horror na realidade. Dessa maneira, os relatos dos próximos, atores ou testemunhas dos fatos, em lugar de erigir o homem ao status de herói — ao heroísmo congelado, estatuado, e que só era cultivado para camuflar o absurdo das decisões governamentais —, serviram mais para honrar sua memória com uma maior fidelidade do que fizeram, e ainda o fazem, as celebrações funerais oficiais: quer tenham feito justiça
* José Saramago, Histoire du siège de Lisbonne, op. cit. ** Paul Ricœur, La Mémoire, l’Histoire, l’Oubli, op. cit., p. 95.
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ao sofrimento vivido, ou quer ainda tenham mostrado de maneira pontual a covardia, a violência, o gosto sanguinário pela carnificina para alguns, a loucura, o que eles devolveram a esses homens foi sua dimensão humana. A primeira consequência é que, a partir de então, o relato fundado na memória privada — logo, pretensamente ameaçada a todo instante pela imaginação, o exagero, os sentimentos — que passa a prevalecer sobre o documento oficial (basta ler, a esse respeito, os edificantes volumes de A ilustração), isto é, sobre a História imediatamente escrita, da qual, porém, temos o direito de esperar que esteja imbuída de “ambição de fidelidade” e que preencha sua “função verificativa”.* Mais tarde, sempre pela via desses relatos diretos, os heróis estatuados pela História oficial fazem mais do que recuperar carne humana e rosto patético, ou lamentável, ou assustador: eles caem de seu pedestal (ainda que alguns nele permaneçam com toda a legitimidade) e o fazem coletivamente, em massa, pois foi exatamente sobre a coletividade que houve não apenas mistificação, mas dissimulação, dissimulação dos fatos e dos documentos que a concernem, denegação de verdade, silêncio — silêncio sobre a colaboração passiva e ativa dos dirigentes e das populações civis com a Alemanha nazista: os únicos colaboradores a terem sido supostamente castigados, e o compartilhamento era, portanto, claro entre o bem e o mal; silêncio sobre a Shoá: todos os deportados eram pretensos resistentes e cocelebrados com os prisioneiros de guerra; silêncio das grandes nações colonialistas sobre as verdadeiras condições de acesso a independência de seus protetorados, mandatos e colônias; silêncio, evidentemente, das próprias grandes ditaduras sobre as sevícias cometidas contra seus inimigos internos — * Ibid., p. 6.
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