Tempos Modernos
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DIÁRIO REGIONAL
“Escrever para mim é como comer” Em entrevista exclusiva ao Tempos Modernos, a escritora chilena Isabel Allende fala de seu novo livro, da vida aos 70 anos e de sua luta em defesa das mulheres Fernando de Oliveira independentes no mundo Jornalista redacao@diarioregionalrs.com.br
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ideia partiu dos editores alemães Jurgen Dormagen e Corinna SantaCruz: fazer uma compilação das melhores cenas de amor de seus romances e contos. A premiada escritora chilena Isabel Allende gostou, fez a seleção e o resultado é o livro Amor, lançado pela editora Record e já à venda na Livraria Iluminura. Essa antologia reúne trechos de títulos consagrados da autora, como A Casa dos Espíritos, Inés da Minha Alma e A Ilha Sob o Mar, e na introdução ela tece revelações sobre sua vida, recorda as experiências amorosas, aborda a infidelidade, fala do feminismo e conta como conheceu o atual marido, o ficcionista norte-americano William Gordon. “Espero que esse livro inspire alguns leitores a amar mais e melhor”, diz Isabel Allende, que concedeu esta entrevista exclusiva ao Tempos Modernos. Tempos Modernos - Por que a senhora sentiu a necessidade de reunir em um livro as cenas de amor de seus romances e contos? Isabel Allende - Essa compilação foi ideia dos meus editores alemães. Eu pude participar pouco nessa edição, porque eu não falo alemão, mas quando Nuria Tey, minha editora espanhola, se entusiasmou com a ideia, eu pude selecionar as cenas dos meus livros que me pareciam mais apropriadas e escrever o prefácio e as introduções para cada capítulo. TM - Um dos temas que emerge de “Amor” é o feminismo. As mulheres são
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de hoje? Isabel - Algumas mulheres têm se beneficiado com a libertação feminina. Nos anos da minha vida eu tenho visto que as mulheres têm ganhado espaço considerável em quase todos os campos, mas ainda vivemos em um patriarcado e ainda existem milhões de mulheres e meninas em todo o mundo que vivem exploradas, abusadas, estupradas e torturadas. Meninas ainda são mutiladas, vendidas em casamenA escritora Isabel Allende com o marido, o também escritor William Gordon to precoce e submetidas ao Isabel - Porque na liteserviço doméstico, trabalho homens no poder, mas isso ratura o amor não sofre de forçado, prostituição e tráfi- seria uma generalização. tédio. Os amantes da liteco de seres humanos. ratura não terão que lidar TM - O que é o amor? TM - O relacionamento Isabel - Quando falamos com a rotina, os inconveentre o homem e a mulher de amor romântico, creio nientes, a deterioração do evoluiu? que a princípio é uma mag- tempo, o desgaste do entuIsabel - Sim, têm evoluí- nífica obsessão, uma alegre siasmo e do amor. do em países onde as mulhe- loucura, mas em seguida TM - O que escrever sigres têm acesso à educação, se transforma em um sensaúde e informação. Sob es- timento mais calmo e du- nifica para a senhora? Isabel - Escrever para sas condições, as mulheres radouro. Para mim, o amor sabem o que querem e como é sempre apaixonado e ro- mim é como comer: eu teobtê-lo. Mas não esqueça- mântico, mas não tem que nho que fazê-lo para sobremos que existem sociedades ser obsessivo. Eu e Willie viver, é uma necessidade que mantêm as mulheres estamos casados há 25 anos. biológica, e também me dá submetidas, sem liberdade Tivemos altos e baixos, mo- prazer. Escrever não é trabade movimento, dependentes mentos em que estávamos lho, é um vício. Cada livro é e ignorantes. Nesses lugares prestes a nos separar (quan- uma viagem para a alma. a relação entre o homem e a do minha filha morreu, TM - Seu próximo livro, mulher não evoluiu. quando morreu a dele, quando tivemos que enfrentar “Ripper”, é um romance TM - Qual a diferença os problemas de abuso de policial. Por que decidiu esentre o homem e a mulher drogas de seus filhos, etc.), trear nesse gênero? Isabel - Esse livro não no poder? mas em cada ocasião proIsabel - Depende da curamos ajuda psicológica foi ideia minha. No final pessoa mais que do gênero. porque ambos desejávamos de 2011, a minha agente, Carmen Balcells, teve a Margaret Thatcher exerceu salvar o relacionamento. o poder como o mais inEntendemo-nos muito ideia de que eu e meu matransigente dos homens, no bem, nossa vida familiar é rido poderíamos escrever entanto Michelle Bachelet muito confortável, cada um um romance juntos. Willie foi uma presidenta que deu tem o seu espaço, nos respei- só escreve histórias de deprioridade aos problemas tamos e amamos estar juntos. tetive, mas eu tenho excursociais, a família e às crian- Mas se não nos amassemos sionado em quase todos os ças. Por isso, foi conside- de paixão, eu acho que nós gêneros literários, então naturalmente eu teria que me rada uma grande mãe no não estaríamos juntos. ajustar a especialidade dele: Chile. Eu poderia dizer que as mulheres trabalham mais TM - A senhora já disse romance policial. Propusedemocraticamente e são que “o amor é mais fácil na mo-nos esta aventura em 8 de janeiro de 2012 (início menos corruptas do que os literatura”. Por quê?
todos os meus livros em 8 de janeiro), mas logo percebemos que não daria certo escrevermos juntos. Desistimos, senão teríamos nos divorciado. Mas era 8 de janeiro e eu não tinha outro tema, então eu decidi continuar escrevendo sozinha e assim nasceu Ripper. TM - Fale um pouco sobre a trama desse livro. Isabel - Tudo o que posso dizer é que é um romance contemporâneo, que acontece em 2012, em San Francisco. Não quero revelar mais nada, porque eu espero poder surpreender os meus leitores. TM - Como é sua vida aos 70 anos? Isabel - Minha vida não mudou muito, mas eu tenho menos energia e preciso de mais tempo para escrever. Eu decidi cortar ao máximo a vida social e de viagens. Além disso, a minha tribo foi dissolvida porque todos os meus netos estão na faculdade, longe de mim. Por um lado, isso me deixa triste, mas por outro me dá uma grande liberdade. Por sorte, em nossa idade Willie e eu estamos saudáveis, ativos e seguimos amantes. TM - A senhora é uma escritora famosa e premiada. O que ainda quer conquistar na vida? Isabel - Nada. Não desejo nada para mim nesta vida, mas eu gostaria de ver o fim do patriarcado. Eu lutei durante meio século pelos direitos das mulheres e vejo que ainda há muito a ser feito. Eu quero que meus netos vivam em uma cultura mais evoluída, onde prevaleça a paz, a justiça, o cuidado com o planeta e todas as suas criaturas, o amor.