Feia, de Constance Briscoe

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Feia A história real de uma infância sem amor

Tradução Caetano Waldrigues Galindo

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Prólogo

— Os seus pais sabem que você está aqui? — a moça do Serviço Social perguntou. — Não — eu disse —, mas eu quero saber de abrigos para crianças. — Eu tinha que ficar na ponta dos pés para enxergar por cima do balcão da recepção. — Quantos anos você tem? — a moça perguntou. — Onze. — A coisa está feia na sua casa, não é? — É — eu disse. — O que é que eu tenho que fazer para me registrar? — Eu preciso de umas informações — ela disse. Eu lhe dei o meu nome e o meu endereço, e disse que gostaria de me mudar naquele dia mesmo, se fosse possível. — Você não pode se inscrever sozinha em um abrigo para crianças, amorzinho. Você precisa primeiro conseguir uma autorização com seus pais. Por que é que você não vai para casa pensar no assunto? Você sempre pode aparecer de novo para me ver. — Mas eu não quero ir para casa. — É que eu não posso registrar você só porque você está com vontade de sair de casa. Você quer que a gente entre em contato com a sua mãe? — Não, obrigada — eu disse. — Eu me viro sozinha.

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Se a minha mãe descobrisse o que eu estava fazendo, eu ia levar uma surra. Subi de novo a rua Walworth na direção da nossa casa na praça Sutherland, no sul de Londres. Era um belo domingo ensolarado, mas eu estava muito triste. Nada que eu fazia dava certo e agora nem o abrigo para crianças me queria.Viver não valia mesmo a pena. Naquela noite decidi que ninguém ia sentir a minha falta se eu simplesmente sumisse. Antes de ir para a cama, escrevi uma carta para a minha mãe. Coloquei a carta na minha sacola de bordado da escola e entrei no banheiro. Tirei a tampa da garrafa de alvejante, misturei com água, bebi e voltei para a cama. Escolhi a marca Domestos porque ela mata todos os germes conhecidos e a minha mãe vivia dizendo que eu era um germe. Eu fiquei muito mal; alegre e triste. Estava feliz porque naquela noite, se o alvejante funcionasse, eu ia morrer. Chega de amanhãs. Oba! Eu também estava muito triste porque não ia mais ver as minhas irmãs, mas talvez isso não fosse ruim. Quanto à minha mãe, jurei por Deus que ia voltar para assombrá-la pelo resto de sua vida. Dar tapas na cabeça dela, fazê-la tropeçar nas escadas e puxar as suas cobertas enquanto dormia. Isso mesmo! Na manhã seguinte eu acordei e pensei que tinha morrido. O alarme que indicava que eu havia molhado a cama estava tocando bem longe. As luzes em cima da cama piscavam e eu ali entorpecida, incapaz de mover os pés ou os braços. A minha mãe, de pé, olhava para mim. — Sai da cama — ordenou. Fiquei imóvel. Eu não conseguia falar, a minha boca estava ferida por causa do alvejante. Em volta dos meus lábios, bolhas estouravam como sucrilhos. — Vamos... Sai da cama. — Puxou as cobertas. — Eu não vou dizer de novo. Sai. — Ela agarrou o meu braço e me levantou da cama. Então me soltou e eu caí de novo, mole, meio na cama, meio no chão.

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Comecei a vomitar. Foi aí que ela percebeu que alguma coisa estava errada. — Eastman! — ela gritou. Eastman era o novo homem dela. Ela chamou Pauline e Patsy, minhas duas irmãs mais velhas. — Santo Deus — disse minha mãe —, ela vai me arranjar problema. Eastman disse que a minha mãe devia chamar um médico e pedir uma ambulância para mim, mas ela disse que a Pauline tinha que ir pegar lençóis limpos, trocar a cama e colocar os lençóis sujos na lavadora. Ela então se ocupou da arrumação do meu quarto, abrindo as janelas para deixar o mau cheiro sair. Quando acabou, disse que era para me levarem para outro quarto. Qualquer médico que entrasse neste aqui poderia ficar com a impressão de que não cuidavam direito de mim. Pauline recebeu ordens de trocar a minha camisola. A minha mãe voltou com uma seca e, juntas, elas lutaram para me enfiar na roupa. Minha mãe deve ter percebido que a presença dela me deixava nauseada e disse para Pauline continuar o trabalho. Saiu do quarto, levando consigo a minha camisola. Ela estava constantemente molhada havia três dias. A outra, limpa, ia até os meus tornozelos e cobria um monte de feridas, cortes e marcas que, caso contrário, poderiam precisar ser explicados. — Vamos, Clare — disse a minha irmã. Ela estava me dando água com uma colher. — Vamos, abre a boca e bebe tudo. — Ela continuou colocando água às colheradas na minha boca. — Vamos, Clare, o que foi que você fez dessa vez? Eu devo ter apagado. Quando voltei a mim estava escuro e a minha irmã mais nova, Christine, estava ao lado da minha cama. — A mãe disse que você vai arranjar problema para ela — Christine me disse. — O que foi que você fez? Um pouco mais tarde Pauline voltou e me deu um pouco de caldo de rabada. Eu tomei a sopa e então vomitei na cama toda e no

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carpete. Eastman e a minha mãe ficaram longe do quarto. Eu ouvi a minha mãe do outro lado da porta. Ela estava falando com Eastman: — Ela deve melhorar — ela disse. — Espere para ver. Deixe a Pauline com ela, e se alguma coisa acontecer, nós chamamos o médico e a ambulância. — A minha mãe começou a se lamuriar diante da minha porta. — Querido Jesus do meu coração, o que foi que eu fiz para merecer essa menina? — Vamos, Clare — disse a minha irmã. — Acorda. Peguei no sono e a lembrança seguinte que tenho é de ter acordado no escuro. A minha irmã estava dormindo no pé da cama e assim que eu tentei levantar a cabeça ela acordou em um salto, correu para a porta e gritou pela minha mãe, que veio correndo com Eastman atrás dela. Ele ficou dizendo para ela chamar o médico: — Carmen, chama o médico antes que seja tarde. — Não — disse a minha mãe. — Esperem um pouco mais. — Carmen, cê vai acabar parando na cadeia. Cê acha que eu vou te fazer companhia? Não mesmo. Eu não. Chama o médico, Carmen, cê não sabe o que que a menina tem. — Eastman, se fosse para a Clare morrer ela já estava morta a essa hora. A cadeia te deixou burro! Quando eu acordei de novo era dia. A minha irmã ainda estava no quarto e, curiosamente, eu não tinha molhado a cama. Assim que me mexi, Pauline saiu correndo do quarto e voltou com a minha mãe e outra tigela de caldo de rabada. — Vamos, Clare, come — disse a minha irmã enquanto me dava a sopa com uma colher. — Ai, meu Deus, o Senhor teve um filho — dizia a minha mãe. — Diz pra mim, onde foi que eu errei? Jesus menino, que me ama, tire essa criança já da cama. Ai, Jesusinho, doce e contente, eu não sou uma filha obediente?

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A minha mãe estava de pé, ao pé da cama. — Você quer um médico? — ela interrogou. — Não. Não quero. — Vá embora, eu pensei. Se eu quero um médico? É claro que não. Eu não quero ser salva. Eu quero deixar de ser um germe. A minha mãe saiu do quarto. — Pauline! — ela gritou. — Se precisar, você me chama. A minha irmã me dava o caldo. — Que foi que você fez, Clare? Você pode me contar — ela disse. — Quatro-Olhos, você está de espiã da mamãe? — Não — ela disse. — Não. Por que você acha isso? — Bom, então não fique fazendo perguntas. Ela me dava comida quieta e eu acabei pegando de novo no sono.Acordei com uma ardência entre as pernas. Crostas haviam se formado e se emaranhado em meus pelos pubianos. A urina queimava a minha baratinha, e o alto das minhas pernas e a minha bunda estavam assados. Mas eu estava grata por várias coisas. Nenhum alarme disparou. Ninguém me arrancou da cama pela baratinha. Ninguém torceu os meus mamilos ou me socou na barriga. A minha irmã simplesmente reapareceu com roupa de cama nova e uma camisola limpa.

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