Frédéric Schiffter
Filosofia Sentimental
Tradução Nícia Adan Bonatti
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Prefácio
“A infelicidade é que, uma vez lúcido, a gente o fica cada vez mais: não há meio algum de burlar ou de recuar.” Cioran
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ierre Hadot distingue duas categorias de filósofos: os falsos e os verdadeiros. Ou melhor, os acadêmicos e os
práticos. Os primeiros: professores e pesquisadores; os se-
gundos: os mestres de vida. No fundamento dessa distinção, jaz a ideia segundo a qual a filosofia, como concebida pelos Antigos, consistia não em passar horas e horas com o nariz
nos textos e a perorar na cátedra, mas em “transformar a si
mesmo” graças a “exercícios espirituais”. Assim como o atleta 7
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treina, tonifica e aumenta sua massa muscular, segue uma
alimentação pobre em gordura e tem uma vida austera para enfrentar as competições, o filósofo forjaria para si uma alma
em todas as atribulações da existência, por menos que se de-
dicasse, todo dia, a uma ginástica do espírito — tendo em seu programa a concentração sobre o presente, a visualização
da totalidade do mundo, os exames de consciência, a triagem seletiva e refletida de seus desejos e a resistência fleumática às paixões hostis de seus semelhantes.
Da mesma forma como nada tenho a reprovar aos aca-
dêmicos que se contentam em ensinar com competência aquilo que sabem, faço pontaria contra alguns deles que se reciclam no comércio de sabedorias — falseando para um público semicultivado, em busca de suplemento de alma, que eles detêm as receitas de uma vida feliz e bem-sucedida.
Sem voltar aos argumentos que desenvolvi em Le Bluff
éthique [O blefe ético], lembrarei simplesmente que, se é certo que nosso corpo pode se esculpir e se fortificar por
meio de uma constante atividade esportiva, nosso psiquismo, amálgama de dramas, de remorsos, de lamentações, de temores, de decepções etc., permanece o mesmo. Nenhuma ascese, nenhum trabalho nosso sobre nós mesmos, como
dizem ainda os pregadores da vida boa, dará forma a essa pesada e inerte matéria-prima. Podemos nos instruir em tal
ou tal campo, elevar nosso nível em matemática, aperfeiçoar
nossa ortografia, ampliar nossos conhecimentos em física 8
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quântica ou em línguas orientais. Puramente intelectuais, essas formações nada mais demandam senão a compreensão, a memória, a obstinação. Puramente psicológicos, os
aprendizados da sabedoria deveriam repousar sobre a força conjunta da razão e da vontade. Ora, tal conjunção é uma
ficção, uma invenção de filósofos. Uma piada. Uma escroqueria. Sem dúvida, a razão nos ordena parar com o tabaco ou o álcool. Resta uma vontade de ferro para que nos mante-
nhamos firmes em nosso decreto. Ora, a vontade nada pode
contra a neurose que nos incita ao tabagismo e ao alcoolismo. Supondo que não fumássemos nem bebêssemos mais, isso se deveria unicamente à fobia de ficarmos doentes, e não
à nossa “firme resolução”, como diria Descartes, inspirada por nosso bom-senso — sem contar que nos sujeitaríamos
sem tardar a outro vício. De partida, não nos governamos. Nenhuma meditação acompanhada da decisão de nos transformar transfigurará nosso caráter, essas rugas tomadas por nossa alma desde nosso nascimento e nela inscritas como profundas escaras. Assim como em nós mesmos, a vida nos
petrifica e a idade nos ossifica. Quanto à felicidade, como a etimologia indica,* ela nos cai sobre a cabeça, bem como
* Em francês, bonheur (de bon e heur). O termo heur deriva foneticamente do latim augurium, “presságio”, e toma o sentido positivo de “sorte”, “ocasião feliz”, designando um estado durável, e não uma simples impressão agradável efêmera (que seria o prazer). O antônimo desse conceito é malheur. (N.T.)
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a infelicidade. Ela é factual. Nenhum mortal é uma providência para si mesmo. Estoicos, epicuristas, spinozistas
e outros se mostram mais supersticiosos que o homem
comum, o qual reprovam por fazer apelo aos deuses a fim de que estes lhe concedam a felicidade. Ao contrário do in-
fortúnio, a felicidade não deixa vestígios, mas lembranças dos bons momentos que se repetem infinitamente na can-
tilena das lamentações. A sabedoria diz respeito à crença. Os exercícios espirituais de que fala Pierre Hadot fazem pensar em gesticulações mágicas. No fundamento dessas
afetações, está o desejo de conjurar o medo invencível de morrer e de perder aqueles que amamos.
Frequentemente meus leitores me julgam não apenas
sombrio, mas também negativo. Suspeitam que eu encontre
um prazer vicioso em denegrir a vida — a qual, ouvindo-os, seria, apesar de tudo, bela e agradável. Um dia uma amiga me disse que eu lhe lembrava o marquês de Ximenez, evo-
cado por Chamfort por meio do testemunho do senhor d’Autrep: “É um homem que gosta mais da chuva do que
do bom tempo e que, ao ouvir cantar o rouxinol, diz: ‘Ah! Que passarinho chato!’” É verdade que há em mim um
descontentamento. Desde a infância, eu me mantenho à distância das pessoas de bom humor. Toda alegria transbor-
dante e coletiva me injuria. Vejo com desdém os entusiastas, os voluntários, os motivados. Com certo temor também. 10
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Os otimistas são excelentes para preencher as prisões e os
cemitérios. Isso significaria que não gosto das pessoas que
amam a vida? Fujo dos inconscientes que não querem ver que só desfrutam de uma existência condicional e que a morte é indiferente a seu amor pela vida.
Na universidade, meus professores me chamavam de
diletante, estimando ser prejudicial para minha inteligência
cultivar a preguiça. Eu me confessava culpado. Nunca tive
amor, mas simplesmente gosto pela filosofia. Prestei-me a ela sem jamais me entregar. Raramente estudava com ardor os autores oficiais, porém me deleitava com pensadores “fora
dos manuais”, aqueles que rompiam com ideais e valores, que frequentemente eram classificados na rubrica “litera-
tura” e a quem chamamos de “moralistas”. Tendo aprendido bem cedo a pensar com seus livros, acredito, desde então, que
filosofar não consiste em ensinar a viver ou a morrer, ainda
menos a nos consolar de nossa finitude, mas a examinar a
pertinência de noções tidas como evidentes, a desmistificar as futilidades grandiloquentes e vazias, a pôr um nariz ver-
melho nos ídolos. Entregando-me a esses exercícios de lucidez, não vivo melhor: eu me divirto um pouco.
A ideia sucinta, sob forma breve, agrada. Muita gente,
na adolescência e mesmo mais tarde, é atraída pelas má-
ximas, pelas sentenças, pelos pensamentos. Prova disso
é o sucesso das coletâneas de citações. Compreende-se 11
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facilmente a razão. Num mesmo volume, acotovelam-se di-
versos autores mais ou menos célebres que, em regra geral, não se leu, mas que ali, com uma palavra, um paradoxo, uma observação, um traço de humor, um sarcasmo, uma alusão
irônica tirada de suas respectivas obras, preenchem o espírito. Frequentemente o entusiasta constitui para o próprio uso, num caderno, uma antologia mais seletiva do que a
original. Copiando um ou outro fragmento, tudo se passa como se buscasse participar não tanto do pensamento daquele autor, mas de seu talento de expressão. Seduzido, o
“copista” reage muito mais como escritor do que como filósofo. Para o filósofo, dizia Jean-François Revel,* “uma ideia
vale a pena ser lida porque ela é boa”, enquanto para o escritor “uma ideia é boa porque vale a pena lê-la”. Revanche da fórmula sobre o tratado.
Nem coletânea de citações nem tratado, a presente
obra é um ensaio de reflexões, por vezes pessoais, por vezes “didáticas”, inspiradas por dez aforismos emprestados de
pensadores e escritores que me marcaram: o Eclesiastes, Montaigne, Chamfort, Schopenhauer, Nietzsche, Proust, Pessoa, Freud, Ortega y Gasset e Rosset. É claro que outros
nomes mereceriam figurar entre estas páginas — e alguns
deslizaram para dentro delas: Lucrécio, Maquiavel, Hobbes, * Ver http://chezrevel.net. (N.T.)
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Stendhal. Se preferi ater-me a essa dezena de autores foi porque há muito seus pensamentos me acompanham e me ocorre citá-los numa discussão ou num texto. Aqui, cada
uma de suas frases me levou a meditar, derivar ou divagar em torno do lazer, da melancolia e do luto, do tédio e do prazer estético, da admiração pelos mestres, do caos, da vida
social, da violência moral, da ilusão da sabedoria, do amor — temas próprios a um “voluptuoso inquieto”, segundo a
fórmula de Jean Salem.* Pode acontecer que, passando de
uma citação a outra, o leitor não veja uma real mudança de
capítulo. Isso não é surpreendente, dado que se trata de um decálogo sentimental.
* Professor de filosofia na Universidade de Paris I PanthéonSorbonne e diretor do Centro de História dos Sistemas de Pensamento Moderno. Um de seus temas principais é o pensamento do prazer. Ocupando-se de Epicuro e de Lucrécio, estudou os fundamentos da doutrina que era ensinada nos Jardins, dedicando-se, em especial, a restituir o sentido de uma ética que proclamou residir o soberano bem na voluptuosidade. Dessa forma, estudou o hedonismo bem menos sereno dos falsos epicuristas, que ele chama de voluptuosos inquietos, sobretudo aquele de um Maupassant. (N.T.)
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