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O Sopro dos Deuses
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Do Autor TRILOGIA O IMPÉRIO DAS FORMIGAS As Formigas Vol. 1 O Dia das Formigas Vol. 2 A Revolução das Formigas Vol. 3 TRILOGIA O CICLO DOS DEUSES Nós, os Deuses Vol. 1 O Sopro dos Deuses Vol. 2 O Mistério dos Deuses Vol. 3
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Bernard Werber
O Ciclo dos Deuses
O Sopro dos Deuses Volume 2
Tradução Jorge Bastos
Rio de Janeiro | 2014
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Preâmbulo
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você, se fosse deus, o que faria?” A ideia do “ciclo dos deuses” nasceu a partir dessa interrogação. Desde o surgimento das religiões, o homem associa a noção divina a duas opções: “Creio” e “Não creio”. Pareceu-me interessante colocar a questão de outra maneira, para encontrar outras respostas. Tomemos a hipótese de que Ele ou Eles existem e tentemos compreender que visão têm de nós, simples mortais. De qual margem de erro dispõem? Eles nos julgam? Ajudam-nos? Gostam de nós? Quais as suas intenções conosco? Para estudar tais hipóteses, imaginei uma escola de deuses, onde se aprende a se tornar um deus responsável e eficaz. Apresentando o ponto de vista dos deuses sobre os homens, e não o dos homens sobre os deuses, surgiu uma nova percepção de nossa história passada, de nossos futuros possíveis, de nossas expectativas como espécie, das expectativas deles. Em Nós, os deuses, seguimos o percurso de uma turma divina. Ela se compunha de 144 alunos e cada um estava encarregado
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de fazer evoluir um povo, num planeta de exercício, bastante semelhante ao nosso. Em cada rodada, os melhores eram premiados, e os piores, eliminados. Em O sopro dos deuses, quase a metade dos alunos-deuses inaptos foi despachada. Os sobreviventes começaram a compreender como se aperfeiçoar em sua arte. Gostaria que esse lugar privilegiado de observação dos nossos destinos permitisse ao leitor se projetar em Aeden, de forma que cada um tente encontrar suas próprias respostas. Se pudessem gerir os membros de uma humanidade semelhante à nossa, num mundo semelhante ao nosso, quais seriam suas escolhas, qual estilo de divindade? Fariam milagres? Utilizariam profetas? Incentivariam a guerra? Suas populações teriam o livre-arbítrio? Como gostariam que os seus mortais rezassem por vocês? Bernard Werber
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1. O OLHO NO CÉU
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LE nos olhava. Todos nos sentimos desnorteados, parvos, sem respiração. Era um Olho gigantesco, tão imenso que afastava as nuvens e encobria o sol. Ao redor, meus companheiros estavam paralisados. Meu coração batia forte. Seria possível que fosse... O olho gigante flutuou por alguns instantes no céu como se nos observasse e, de repente, desapareceu. Em volta, a vasta plataforma cheia de papoulas vermelhas pareceu, subitamente, órfã daquela esmagadora presença. Não nos atrevíamos a trocar sequer uma palavra ou olhar. E se fosse ELE? Há séculos e séculos, bilhões de humanos esperaram distinguir nem que fosse SUA sombra, a sombra de SUA sombra, o reflexo da sombra de SUA sombra. E a nós, nos fora concedido ver SEU Olho? Relembrando, inclusive, pareceu-me que o insondável túnel escuro da pupila tinha ligeiramente se contraído, como para focalizar melhor nossas minúsculas pessoas. Como um olho humano escrutando formigas.
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Marilyn Monroe se ajoelhou. Mata Hari foi tomada por um acesso de tosse. Freddy Meyer escorregou pouco a pouco na relva, como se as pernas não conseguissem mais sustentá-lo. Gustave Eiffel permaneceu imóvel, com o olhar perdido na distância. Georges Méliès piscava nervosamente as pálpebras. Em alguns de nós, escorreu uma lágrima. Silenciosamente. — Essa íris... Devia ter bem um quilômetro de diâmetro — murmurou Gustave Eiffel. — Só a pupila tinha pelo menos uns cem metros — completou Marilyn Monroe, impressionada. — É o olho de um ser muito gigantesco — continuou Mata Hari. — Zeus? — sugeriu Gustave Eiffel. — Zeus ou o Grande Arquiteto, ou o Deus dos Deuses — disse Freddy Meyer. — O Criador! — exclamou Georges Méliès. Eu me belisquei bem forte. Todos fizeram o mesmo. — Foi um sonho. De tanto imaginar o Grande Deus lá no alto da montanha, fomos vítimas de uma alucinação coletiva — resolveu meu amigo Raul Razorback. — Tem toda razão. Nada disso aconteceu — prosseguiu Gustave Eiffel, massageando as têmporas. Fechei os olhos para que o espetáculo se interrompesse por alguns segundos. Entreato. Deve-se dizer que desde que cheguei em Aeden, planeta nos confins do universo, era uma surpresa atrás da outra. Elas começaram assim que toquei no solo. Logo de início, encontrei um homem agonizando, que reconheci como sendo o escritor Júlio Verne. Com a voz aterrorizada, ele me avisou: “Não vá lá no alto de jeito algum.” E apontou com um dedo trêmulo
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a grande montanha no centro da ilha, cujo cume estava oculto por brumas opacas. Em seguida, apavorado, ele se jogou do alto do penhasco. Depois disso, tudo aconteceu muito rápido. Fui sequestrado por um centauro, levado a uma cidade que lembrava a Grécia antiga: Olímpia. Ali, soube ter passado do estágio de anjo — simbolizado pelo algarismo 6 — ao estágio seguinte da elevação de consciência, ou seja, o de aluno-deus — simbolizado pelo algarismo 7. E que seguiria um ensinamento especial, numa escola para deuses. As aulas eram ministradas pelos 12 deuses do panteão grego, cada um nos permitindo que nos aperfeiçoássemos em sua especialidade. Como campo de exercícios, concederam-nos um planeta semelhante em todos os pontos à nossa Terra de origem. Ele foi batizado “Terra 18”. Hefesto nos ensinou a fabricar a matéria mineral; Posídon, a vida vegetal; Ares, a vida animal. Até que, afinal, Hermes entregou, a cada um de nós, um povo de humanos, com a missão de fazê-lo evoluir e proliferar em “Terra 18”. “Vocês são como pastores, guiando o seu rebanho”, nos disse. “Como pastores”... mas com uma diferença apenas: se morrer o rebanho, o pastor é eliminado. Pois essa é a lei em Aeden: nós, os deuses, estamos irremediavelmente ligados ao destino dos povos dos quais estamos encarregados. Atena, deusa da Justiça, foi explícita: “De início, vocês são 144 alunos-deuses. No final, restará apenas um.” Para a identificação dos respectivos povos, cada um de nós associou a eles um animal-totem. Meu amigo Edmond Wells escolheu o povo das formigas; Marilyn Monroe, o povo das vespas; Raul, o povo das águias; e eu, o povo dos golfinhos.
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Ao estresse desses estranhos estudos e dessa esquisita competição, acrescentam-se duas outras “preocupações”. Um dos alunos, provavelmente ansioso pela vitória, começou a assassinar, um a um, seus concorrentes. Foi denominado deicida e, por enquanto, ninguém o conseguiu identificar. Além disso, Raul teve a mais estúpida das iniciativas: fazer o que foi estritamente proibido, sair de Olímpia depois das dez da noite e subir a montanha para ver que luz era aquela que brilhava às vezes no alto. Foi assim que nos transformamos em alpinistas. Até surgir esse olho gigante no céu... — Estamos perdidos — murmurei. — Não, nada aconteceu. Não houve olho gigante no céu. Sonhamos todos — repetiu Marilyn Monroe. Naquele momento, o som de cascos nos trouxe de volta à realidade e a seus perigos. Não havia tempo a perder. Agachamo-nos por trás das altas papoulas vermelhas.
2. ENCICLOPÉDIA: RECEBER
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egundo o filósofo Emmanuel Levinas, o trabalho de todo artista criativo consiste em três etapas: Receber. Celebrar. Transmitir. Edmond Wells, Enciclopédia dos saberes relativo e absoluto, tomo V.
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I. OBRA EM VERMELHO 3. OS NOVE TEMPLOS
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s centauros. Eles constituíam a força policial. Um bando de cerca de vinte daquelas quimeras com corpo de cavalo e torso de homem acabava de surgir à direita. Era provavelmente uma patrulha de reconhecimento. Desceram os rochedos em trote, com cascos febris, os braços cruzados diante do peitoral ou empunhando galhos compridos, para bater na mata em busca de alunos-deuses. Enfiaram-se pelo campo de flores, cujas pétalas púrpuras lhes chegavam ao alto das pernas. Nós os vigiamos de longe, com as cabeças ainda escondidas pelas papoulas. Vistos daquele ângulo, os centauros mais pareciam patos, nadando num lago vermelho-sangue. Aceleraram o trote e avançaram em nossa direção, com se tivessem farejado alguma presença. Mal tivemos tempo para nos esticar no chão. Por sorte, as papoulas eram densamente plantadas e as corolas formavam uma tela de anteparo. Os cascos dos centauros já resvalavam em nós quando, de repente, o céu pareceu se rasgar e uma chuva cerrada caiu. Sob a tempestade, os centauros ficam nervosos. Alguns corcovaram, como se a metade cavalo deles não suportasse a eletricidade do ar. Conversaram entre si, com a água escorrendo por suas barbas, e bruscamente resolveram abandonar as buscas.
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Permanecemos imóveis por muito tempo. As nuvens negras pouco a pouco se dissolveram, dando lugar a um sol que fez brilharem gotas de água nas folhas, como se fossem estrelinhas. Pusemo-nos de pé, os centauros tinham desaparecido. — Foi por pouco — suspirou Mata Hari. Marilyn Monroe sussurrou nosso grito de guerra, como para dar coragem a si mesma. — “O amor como espada, o humor como escudo.” Freddy Meyer tomou-a nos braços. Nesse momento, no meio do campo de papoulas flamejantes, apareceu uma jovem loura, esbelta e sorridente. Oito mocinhas iguais vieram se juntar a ela. Reuniram-se todas à nossa frente, com um olhar zombeteiro e, em seguida, explodiram de rir e correram, desaparecendo furtivamente ao longe. Olhamo-nos uns aos outros e, ao mesmo tempo, como se unanimemente quiséssemos esquecer o que acabara de acontecer, nos pusemos a correr em seu encalço. Galopamos entre as papoulas, tão altas e resistentes que nos chicoteavam os quadris. A imagem do olho gigantesco se esfumou em nossas memórias, como se informações desse tipo não pudessem ser digeridas e, menos ainda, guardadas. Nunca houve olho no céu. Aquilo não passara de uma alucinação coletiva. Distantes, as cabeças louras das jovens mal ultrapassavam as flores e suas cabeleiras pareciam deslizar no mar de papoulas. Desembocamos numa vasta clareira. À nossa frente havia nove pequenos templos em tom de vermelho-vivo. As mocinhas tinham desaparecido. — Aeden nos revela outro dos seus sortilégios — preocupou-se Freddy Meyer. Os templos vermelhos eram palácios em miniatura, com telhados em forma de cúpula. As fachadas, moldadas em
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mármore vermelho, eram ornadas por esculturas e afrescos. As portas estavam inteiramente abertas. Ficamos indecisos e depois, seguindo Mata Hari, penetrei no palácio mais próximo. O salão estava deserto, invadido por inconcebível desordem de objetos, todos ligados à arte da pintura. Misturavam-se de qualquer jeito cavaletes, telas inacabadas, quadros radiantes, sempre reproduzindo um campo de papoulas dominado por dois sóis, com uma montanha impondo-se no segundo plano. Interrogávamo-nos quanto ao interesse de visitar o restante do palácio quando, de outro, chegou até nós uma música suave, enfeitiçante. Dirigimo-nos à fonte daquelas harmonias, entramos juntos num segundo palácio e descobrimos uma quantidade de instrumentos de todas as épocas e de todos os países: cítara, tantã, órgão, violino e algumas partituras de solfejo. — Nas viagens tanatonáuticas — observou Freddy Meyer —, após a zona negra do medo, vinha a zona vermelha do prazer... Resolvemos visitar outro daqueles pequenos templos de mármore vermelha. Ultrapassada a entrada, descobrimos um telescópio, compassos, mapas, objetos servindo a mensuração do céu ou da Terra. De fora, vieram até nós novos risos das jovens. — Acho que sei na casa de quem estamos... — disse, então, Georges Méliès.
4. ENCICLOPÉDIA: AS MUSAS
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usa significa em grego: “turbilhão”. Filhas de Zeus e da ninfa Mnemósine, deusa da Memória, as nove jovens originalmente estavam destinadas a se tornarem
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ninfas de fontes, rios e córregos. Beber suas águas, ao que diziam, incitava os poetas a cantar. A função que tinham, no entanto, evoluiu. Tendo consolado os que sofriam, começaram a inspirar aqueles mais criativos, quaisquer que fossem os seus campos artísticos. Elas habitavam as montanhas do Hélicon, na Beócia. Músicos e escritores se habituaram, dessa forma, a vir às fontes próximas do santuário. As musas, então, repartiram entre si os papéis, dedicando-se, cada uma, a uma só arte. Calíope: a poesia épica. Clio: a história. Érato: a poesia. Euterpe: a música. Melpômene: o teatro trágico. Polímnia: o canto religioso. Terpsícore: a dança. Talia: o teatro cômico. Urânia: a astronomia e a geometria. Quando as nove filhas de Pieros, as piéridas, as desafiaram num concurso artístico, as musas ganharam e, para punir as concorrentes por sua audácia, as transformaram em nove corvos. Edmond Wells, Enciclopédia dos saberes relativo e absoluto, tomo V.
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5. OS NOVE PALÁCIOS
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ajadas de vento sopravam sobre a espuma vermelha formada pelas corolas das papoulas. A menor das mocinhas se aproximou de mim. Devia ter no máximo 18 anos. Ostentava uma coroa de hera nos cabelos compridos e, com a mão direita, segurava uma máscara, representando um rosto com expressão interrogativa. Lentamente retirou-a e revelou seus próprios traços. Uma fisionomia travessa, com dois olhos grandes e azuis. Fixou-me desafiadoramente e depois sorriu. Não tive sequer tempo para reagir e ela se aproximou, beijando-me na testa. Um clarão me projetou de imediato numa sala de teatro. Eu estava sentado na primeira fila, olhando o palco. A história da peça que me foi “inspirada” era a seguinte: dentro de uma jaula, um homem e uma mulher eram prisioneiros de extraterrestres. Pouco a pouco, descobriram onde e por qual razão estavam ali. Souberam que a Terra natal havia desaparecido e que, se eles não se acasalassem, seria o fim da humanidade inteira. A partir disso, eles se puseram a julgar os seus semelhantes, resolvendo se a experiência devia ou não ser levada adiante. Mas o homem e a mulher, cobaias por obrigação, compreenderam também que os extraterrestres os sequestraram para que dessem origem a uma pequena criação de humanos, que distrairia seus filhos. Dessa forma, outra questão se acrescentava: por que perpetuar a humanidade? Abri os olhos. Não era um sonho. A jovem sorria para mim, satisfeita. Era certamente a musa do teatro, mas seria Melpômene, a musa da tragédia, ou Talia, da comédia? A máscara interrogativa não me dava qualquer indicação. Pensando bem, achei que devia se tratar de Talia, pois a peça-julgamento
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da humanidade parecia mais engraçada do que triste. Além disso, ela terminava bem. Tirei de minha sacola a Enciclopédia dos saberes relativo e absoluto, legado de meu saudoso mestre Edmond Wells, e anotei minha ideia de espetáculo nas páginas em branco. A musa beijou-me novamente a testa. Três frases ressoaram, então, em minha cabeça, como conselhos para escrever: “Fala do que conheces. Melhor mostrar do que explicar. Melhor sugerir do que mostrar.” Compenetrei-me do conselho. Meus companheiros não ficaram para trás. Calíope, a musa da poesia épica, pegou Georges Méliès pela mão. Polímnia, a musa do canto religioso, atraiu Freddy Meyer. Terpsícore, musa da dança, abraçou Marilyn Monroe. Érato, musa da poesia, se aproximou carinhosamente de Mata Hari. Quanto a Raul, sua musa, justamente, era Melpômene, a do teatro trágico. Talia me puxou para sua morada de mármore vermelho. Segui-a até o quarto, com decoração de teatro. No centro, a imensa cama, com baldaquino de colunas douradas enfeitadas com máscaras italianas, parecia vir diretamente da commedia dell’arte. Sobre um estrado enquadrado por cortinas de veludo púrpura, ela improvisou, exclusivamente para mim, um espetáculo de mímica. Sugeriu a felicidade, a tristeza e depois a transformação do drama em júbilo. Seus olhos podiam se turvar, franzir e, enfim, brilhar de alegria. Eu aplaudi. Ela se curvou agradecendo, deixou o estrado, trancou a porta a chave, escondeu-a na cama e veio a mim.
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Em minha última vida de mortal, nunca realmente me interessei por teatro. Desanimava-me a necessidade de fazer a reserva dos lugares e também o preço dos ingressos; por isso, sempre frequentei mais o cinema. Outra vez ainda, Talia me beijou a testa e a peça se armou mais claramente em mim. Sentei-me à mesa e tomei notas com furor. Escrevi. Que prazer escrever diálogos! O enredo ia se armando. Ganhava consistência como quando se bate um molho de maionese. Talia me acariciou a mão e uma onda de frescor me acalmou. Tudo transcorria de forma tão natural. Meus personagens pareciam viver independentes de mim, dizendo suas falas próprias e não as minhas. Eu não inventava nada, apenas transpunha o que via. Nunca antes tivera a sensação de criar com tanta facilidade. Sentia-me, afinal, um pequeno deus com domínio sobre um mundo, do qual controlava bem as regras, pois ele próprio as criara. Outra ideia atravessou meu espírito. Podia dar um conselho: “Se você não quer ser vítima do futuro, crie-o você mesmo.” Tomei inclusive consciência de nunca, antes de escrever aquela peça, ter dominado qualquer situação entre seres humanos. Beijei minha musa no rosto, em agradecimento por sua contribuição... Talia acompanhava, por cima do meu ombro, o que eu escrevia. Ao dar-me sua aprovação, dirigiu meu olhar na direção de um teatro em miniatura, colocado sobre a cômoda. Em seguida, deslocou algumas estatuetas da maquete, sugerindo os movimentos dos atores. Fez-me compreender que eu devia também pensar na direção da peça. Em certo momento eles vão brigar, se abraçar, depois hão de perseguir um ao outro e, ali, girar numa roda do tamanho deles, como hamsters-cobaias.
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Talia balançou os cachos louros, seu perfume me invadindo. Depois, para ajudar a sustentar meu esforço, me serviu um copo de hidromel — vermelho, pois aromatizado com papoula. Eu tinha um único e surpreendente desejo: mudar-me em definitivo para aquele palácio vermelho e dedicar minha existência à criação teatral, na companhia de minha musa. Estar em contato com Talia, ouvir suas risadas e as de uma sala repleta de público, se tornaram, ali e naquele momento, minhas motivações. Teria passado de uma droga a outra, sem período de desintoxicação? Da gestão de mundos à direção de atores? De Afrodite a Talia? A musa do teatro tinha uma vantagem sobre a deusa do Amor: de nossa união nascia uma obra que nos ultrapassava. O famoso 1 + 1 = 3 de que tanto gostava meu mestre Edmond Wells. Continuei escrevendo, com a impressão de ouvir os risos de centenas de espectadores. Talia me beijou. Não foi, todavia, uma ovação que interrompeu nosso enlace, mas o fragor de uma porta sendo derrubada por pancadas de ombro, dadas por Freddy. Ele me agarrou, sacudiu e afinal me carregou, com força decuplicada, para fora do palácio. — Ei, me largue! O que está fazendo? O ex-rabino me sacudiu novamente: — Você não entendeu? É uma armadilha! Eu o olhava, incrédulo. — Lembre-se de quando atravessamos o território vermelho do continente dos mortos. Já ali a sedução era a prova. Se ficar mais tempo aqui, será o fim do seu povo dos golfinhos, o fim da ascensão do Olimpo. Você se tornará uma quimera, como todos os perdedores. Acorde, Michael! — Qual é o perigo? — O mesmo do papel cola-moscas para uma borboleta: ficar grudado. Eu ouvia a frase muito distante e, ao mesmo tempo, Talia reaparecia na porta do palácio, meiga e atraente.
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— Pense em Afrodite — acrescentou Raul. Como se um veneno curasse outro. Sem insistir, Talia me dirigiu um aceno de adeus. Eu disse a ela, simplesmente: — Obrigado. Um dia vou escrever a peça que você me inspirou. E outras mais. Os teonautas se reuniram diante dos palácios, e nossas musas desistiram de nos seduzir. Olhamos para nós mesmos. Que grupo esquisito formávamos! Mata Hari, a ex-espiã que me salvara; Marilyn Monroe, estrela do cinema americano; Freddy Meyer, o rabino cego que havia recuperado a visão; Georges Méliès, o mágico vanguardista, inventor dos efeitos especiais no cinema; Gustave Eiffel, arquiteto que dominou o ferro; e Raul Razorback, impetuoso explorador do continente dos mortos. — Muito bem, está feito — disse Mata Hari, dando por concluída nossa aventura com as musas. Afastamo-nos das construções esculpidas no mármore vermelho, finalizando nossas aspirações artísticas. Eu nunca tinha refletido sobre o poder da arte. Perceber meu potencial de criação teatral me abriu novos horizontes. Eu, então, era capaz de dar vida a um pequeno mundo artificial, criado com o material de que dispunha em meu interior.
6. ENCICLOPÉDIA: SAMADHI
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budismo evoca o conceito de Samadhi. Nossos pensamentos, habitualmente, vagueiam em todas as direções. Esquecemos o que fazemos para pensar em fatos ocorridos na véspera, ou em projetos para o dia seguinte.
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Em estado de Samadhi, completamente centrado na ação presente, alcança-se o controle da alma. A palavra sânscrita Samadhi pode se traduzir como: “estado do ser firmemente fixado”. Em estado de Samadhi, as experiências dos sentidos nada significam. Desconectamo-nos do mundo material e de todos os condicionamentos, com uma só motivação: o Despertar (Nirvana). Pode-se chegar a ele em três etapas. A primeira é o “Samadhi sem Imagem”. Deve-se visualizar o próprio espírito como um céu sem nuvens. As nuvens negras, cinzentas ou douradas são nossos pensamentos que perturbam o céu. Nós as afastamos uma a uma, à medida que aparecem, até termos um céu claro. A segunda etapa é o “Samadhi sem Direção”. É um estado em que não há um caminho particular que se deseje seguir, nenhuma preferência, em área alguma. Visualizamo-nos como uma esfera colocada num chão plano que, apesar de suas forma e função, não gira em direção alguma. A terceira etapa, enfim, é o “Samadhi da Vacuidade”. É uma experiência na qual percebemos tudo como igual. Não há bem e não há mal, não há coisas agradáveis e nem desagradáveis, nem passado e nem futuro, tampouco coisas próximas ou distantes. Tudo é igual. Sendo tudo similar, não há razão alguma para se adotar atitude diferente com relação ao que quer que seja. Edmond Wells, Enciclopédia dos saberes relativo e absoluto, tomo V.