Imortal - Primeiro Capítulo

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Capítulo 1 Meu nome é Luca e estou morrendo. É verdade que todos os homens morrem, cidades desaparecem, principados declinam e magníficas civilizações vão terminar em diáfanas espirais de fumaça cinzenta. Mas eu era diferente — a bênção e a maldição de um Deus Zombeteiro. Durante os últimos 180 anos fui Luca Bastardo, e, embora pouco soubesse acerca de minhas origens, sabia estar isento do chamado da morte. Não foi opção minha; minha vida simplesmente fluiu pela luminosa cidade de Florença, como o inconstante rio Arno. O grande Leonardo da Vinci uma vez me disse que a natureza caprichosa encontrou prazer em criar um homem com minha eterna juventude, para observar o espírito aprisionado em meu corpo lutar contra o desejo de retornar à sua fonte. Não tenho a inteligência do mestre, mas, em minha modesta opinião, minha vida divertiu o Senhor. Se não fosse


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pela mão do inquisidor que alega desempenhar o Seu trabalho, a vida ainda poderia me usar. Mas agora as queimaduras e os ossos quebrados, a gangrena fazendo apodrecer minha perna e nauseando-me com seu fedor abreviam meu tempo. Melhor assim. Não tenho vontade de andar a esmo como um fanfarrão a vangloriar-se dos homens poderosos de quem foi amigo, das lindas mulheres que tocou, das batalhas que pôde lutar, das maravilhas de que foi testemunha e do seu incomparável amor. Essas coisas são verdadeiras, marcaram minha vida, assim como a riqueza e a fome, a doença e a guerra, o triunfo e a vergonha, a magia e a profecia. Mas elas não são o motivo de contar minha história. Ela deve ser contada com outro propósito. Eu a ofereço àqueles cujas almas anseiam por conhecer a alma do mundo. Com quase dois séculos de existência, é possível aprender sobre o que importa na vida, o que é realmente precioso na Terra e em que música a voz do Deus Zombeteiro abandona a ironia e se torna canção imortal.

Nunca soube de onde vim. Foi como se eu tivesse acordado nas ruas de Florença em 1330, um menino já crescido de 9 anos. Eu era menor do que a maioria, talvez por nunca ter o bastante para comer, mas esperto por brutal necessidade. Naquela época, dormia pelos cantos ou debaixo de pontes e catava soldi caídos durante o dia. Implorava esmola a mulheres ricas e enfiava os dedos nos bolsos de homens bem-vestidos. Estendia um trapo aos pés dos anciãos que apeavam das carruagens em dias chuvosos. Esvaziava urinóis no rio Arno e limpava escovas para cavalariços e limpadores de chaminés. Subia em telhados altos e consertava telhas de terracota. Fazia entregas para um mascate que sabia que eu era rápido e confiável. Por vezes acompanhei um padre, cantando ave-marias e longos trechos do missal em latim, pois era um


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imitador por natureza, capaz de repetir o que quer que ouvisse, e isso divertia o padre, despertando-lhe rara caridade cristã. Até mesmo deixei homens mais velhos me arrastarem para debaixo da ponte e me bolinarem, prendendo a respiração enquanto mãos ávidas apalpavam minhas costas e nádegas. Qualquer coisa por uma moeda com que pagar a refeição.Vivia faminto. Uma de minhas atividades favoritas era explorar o chão do mercado em busca de frutas caídas das carroças e barracas. Normalmente abandonavam as amassadas, as sujas e estragadas, mas nunca fui muito enjoado para comer; sempre achei que algumas manchas escuras tornavam qualquer coisa mais interessante.Algumas vezes encontrava moedas no chão e, uma vez, uma pulseira enfeitada com pérolas que me manteve a pão e carne salgada por um mês. Não podia ir sempre ao mesmo mercado porque os ufficiali della guardia estavam permanentemente atentos a moleques como eu e nos espancavam ou até pior, se nos pegassem. Mas quase toda semana eu ia cedo a um entre as dúzias de mercados que serviam aos 100 mil habitantes de Florença e me deixava fascinar pelas mercadorias. Os mercados eram voluptuosos tanto no odor quanto na aparência: maçãs vermelhas de cheiro adocicado e damascos picantes; fileiras douradas de pães com grossas crostas exalando uma cálida fragrância de fermento; lombo de porco conservado em ervas; costelas rosadas de boi; pálidos e macios cortes de carneiro, perfumados como alfazema do campo; espessas cunhas de queijos aromáticos e pedaços de manteiga amarelada. Eu fartava meu olhar e meu nariz, prometendo a mim mesmo que um dia me banquetearia até saciar todo o meu ser. Também calculava como obter preciosos bocados imediatamente. Mesmo umas poucas migalhas de pão manteriam à distância a noite insone de uma barriga roncando. Cada mordida contava. Minha família, naquele tempo, consistia de dois outros moleques de rua de quem eu gostava, Massimo e Paolo. Massimo tinha um pé


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torto, orelhas de abano e um olho embaciado que girava em todas as direções; Paolo era amorenado, tinha a aparência de cigano, motivos suficientes para terem sido postos na rua. Florença nunca tolerou imperfeições. Eu mesmo nunca soube o motivo de ter sido abandonado. Massimo, inteligente, alegava que eu devia ser filho da mulher de um nobre com o frade da família, um infortúnio não incomum. Foi ele quem, às gargalhadas, apelidou-me de Luca Bastardo. “Pelo menos eles não asfixiaram você!”, provocava; e nós já víramos bastantes bebês mortos jogados nas sarjetas para saber como eram verdadeiras suas palavras. Não importava a minha história; tinha sorte de estar vivo. Fisicamente, nada de errado havia comigo, exceto ser baixinho e mirrado. Eu era todo bem formado. Minha aparência era mesmo agradável. Várias vezes me disseram que meu cabelo louro acobreado e a pele de pêssego eram lindos, e atraente o contraste com meus olhos escuros. Não era nisso que prestava atenção quando os velhos me acariciavam. Eu me mantinha ocupado sonhando com comida; depois, com o dinheiro deles comprava pãezinhos quentes e nacos de peixe em conserva para matar minha fome e meu desconforto. Aqueles primeiros tempos eram repletos de intenções simples: alimentar-me, manter-me aquecido e seco, rir e brincar sempre que surgia a oportunidade. Havia uma pureza em minha vida que eu só voltaria a experimentar outra vez mais de um século depois, e eu viria a estimar muito aqueles velhos anos, por saber como a vida podia ser cruel. Frequentemente me divertia em jogos de tabuleiro com o inteligente Massimo ou lutando com o forte Paolo, dono de temperamento violento, condizente com sua origem cigana. Eu sempre perdia para meus irmãos adotivos, até o dia em que nós três brincávamos no gramado da Piazza Santa Maria Novella, no extremo oeste da cidade. Era um dia lindo de primavera, com uma leve brisa soprando sob um infi-


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nito céu azul e encrespando o azul prateado do Arno. A tarde antes da festa da Anunciação. Os poderosos e zelosos dominicanos gostavam de pregar ali, mas naquele dia a praça fora invadida por uma multidão: meninos correndo e brincando; soldados mercenários, chamados de condottieri, jogando por dinheiro e berrando; grupos de mulheres tagarelando, as filhas penduradas em suas saias largas de brocado; tecelões de lã e donos de lojas a caminho do almoço; tabeliães e funcionários de banco saindo a qualquer pretexto para também poderem aproveitar o raro dia ensolarado e quente durante Marzo pazzo, março louco. Um grupo de filhos de nobres corria, praticando esgrima com a prerrogativa de sua posição. Não pude evitar a inveja. Eles tinham o que todo florentino desejava: boa comida e roupas bem-feitas, habilidade com espadas e cavalos e a certeza de um bom casamento para fortalecer sua posição na sociedade. Os meninos usavam mantelli de lã fina e treinavam investidas com espadas de madeira sem corte sob o olhar vigilante do mestre, famoso em Florença por sua estratégia na esgrima.Aproximei-me de mansinho para ouvir melhor suas instruções — tinha sede de aprendizado e gravava tudo que ouvia. Paolo tinha outras ideias. Pegou um galho de árvore da grama e investiu às gargalhadas contra mim, imitando os garotos. — Bastardo, defenda-se! — gritou Massimo a curta distância, arremessando outro galho para mim. Eu o peguei e girei a tempo de desviar do golpe de Paolo. Escapei por pouco. Paolo não tinha intenção de me machucar, mas era estúpido e em geral deixava contusões. Ele riu e eu compreendi que pretendia divertir-se à custa dos meninos ricos, então fiz uma reverência, que ele retribuiu. Erguemos nossas espadas falsas e dançamos em torno um do outro, fingindo ser jovens fidalgos, debochando deles com exagerados floreios e gestos afetados. Um grupo de condottieri achou graça, um riso grosseiro coberto de desprezo, e os meninos nobres enfureceram-se.


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— Vamos ensinar a esses bastardos da rua uma lição — ordenou aos gritos o menino mais alto. Imediatamente, Paolo e eu fomos cercados por cinco espadas de madeira golpeando nossos toscos pedaços de pau. Os condottieri torciam. Paolo tinha a força de um touro e derrubou dois dos meninos. Eu não tinha seu vigor, então desviei dos golpes, mantendo-me fora de alcance. Paolo caiu, o sangue escorrendo-lhe pelo nariz, e a raiva me invadiu. Brandi minha arma improvisada para os meninos à minha frente, golpeando em vão, e ela partiu-se em duas. Gargalhadas ecoaram. Agora os mercenários riam de mim. Isso me enfureceu ainda mais e eu ataquei bravamente com o que me sobrara do pedaço de pau. Foi uma ação idiota. Dois meninos me espetaram ao mesmo tempo, dos dois lados.Vi-me atirado ao chão, de costas; doíam-me as costelas e a respiração congelou em meu peito. Os condottieri gargalharam. — Garoto, você assim acaba morto — disse um homem idoso, debruçando-se sobre mim. A essa altura, uma considerável multidão se reunira. Nada agradava mais aos florentinos do que uma briga desigual. — Esses garotos machucaram meu amigo — gritei. — E eles estão rindo de mim — disse apontando os condottieri. O homem idoso era baixo, corpulento e feio, mas tinha olhos joviais que pareciam captar tudo ao mesmo tempo e tudo compreender de pronto. — Os homens riem porque Deus ri e, neste exato momento, Deus está rindo de você — disse, com simpatia e perspicácia nos olhos. Nunca eu recebera tal olhar, um olhar que me fez quase sentir-me como uma pessoa de verdade. Suas palavras ficaram gravadas em meu coração. Deus ri, pensei com assombro. Sim, isso combina com o que já vi nas ruas. De fato, essas palavras, ditas há muito, deram sentido a toda a minha vida.


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— Não gosto quando alguém ri — choraminguei — e quero fazê-los parar de me machucarem e ao meu amigo. — Esse seu galho de árvore quebrado é deplorável. — O homem deu de ombros. — É tudo o que tenho. Ele balançou a cabeça e agachou-se ao meu lado. — Garoto, as coisas sólidas que você segura com as mãos nunca são tudo o que você tem. São a menor parte do que lhe pertence. As qualidades dentro de você são o que realmente possui para se defender. — Tudo que tenho dentro de mim é a rua. — Se isso é verdade, é uma rua florentina. Nós, florentinos, temos almas notáveis. Somos imaginativos, criativos, espirituosos; os melhores artistas e comerciantes. Por isso somos famosos por nossa sagacidade e inteligência aguçada, nosso ingegno.Você também tem, ou não sobreviveria nas ruas. — Os olhos cintilaram, enxergando além de meus trapos e imundície. — Quando você confronta adversário superior em força e número, quando se depara com um desafio, deve mergulhar dentro de si, encontrar esse ingegno e usá-lo. — Como? — perguntei desconfiando, envolvendo os braços em torno do tórax dolorido. — Eu vi você ouvindo o que o mestre de esgrima dizia, antes de essa rixa começar. Você é inteligente. Caso preste atenção às pessoas que sabem mais do que você, pode sair-se com uma estratégia paralela, algo inesperado, para se defender. Surpresa, estratégia e tática, estas são suas armas. — Ele apertou meu ombro, encorajando-me. — Anda, garotinha bastarda — zombou um dos nobres que tinha me derrubado. — Vamos ver você empunhar sua vareta quebrada. — Contra três deles? — disse em voz baixa ao homem. O medo revirou minhas entranhas, precisei lutar para controlar o tremor do meu queixo. — Eles são grandes e bem-nutridos.


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— Ingegno. — Ele encolheu os ombros. Eu assenti e me pus de pé. Ele deu-me um tapinha no ombro. — Lá vem a mulherzinha. — Um dos meninos chutou o graveto quebrado para mim. Eu o olhei, e em vez de pegá-lo simulei pânico. Não era exagero; eu estava aterrorizado. Os três garotos acabariam comigo se me pegassem. Uma multidão nos cercou e aos condottieri, enfileirados. Gritando como uma menina, contornei os garotos e fui para trás dos condottieri como se escapulisse.A multidão, às gargalhadas, gritava insultos ao me ver fugir.Aproveitei a oportunidade para privar um condottiere distraído da sua adaga, arrancando-a do seu cinto num movimento rápido e habilidoso. Depois, irrompi de detrás dos soldados com a adaga levantada. — Olhe só, o pequeno bastardo pegou uma minúscula espada bastarda — gracejou um dos condottieri. A adaga que segurava era semelhante à imponente spada da una mano e mezzo, a espada larga também conhecida como espada bastarda. Os outros mercenários rolaram de rir da sua sagacidade. Os três nobres simplesmente olharam para a adaga enquanto eu corria para junto do ensanguentado Paolo, que gemia ainda estirado no chão. — Venham! — desafiei-os, gesticulando com a ponta afiada da lâmina. — Quem quer sentir meu graveto quebrado agora? Cautelosos e de repente inseguros, os meninos ficaram imóveis e mudos. Nenhum quis sentir a ponta da adaga. Estávamos empatados. — Venham, meninos, vocês já se divertiram; voltemos às lições — chamou o velho, secamente, permitindo aos nobres retirarem-se com dignidade. Estes resmungaram, mas baixaram as espadas e ajoelharam-se para ajudar os colegas. O mestre de esgrima, um homem grande e barbudo de braços e pernas musculosos, aproximou-se e me bateu no peito com tanta força que eu me desequilibrei.


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— Esperto. — Ele sorriu. — Você pode assistir sempre que eu estiver treinando esses imbecis. Mas à distância. — Ele inclinou a cabeça na direção do homem idoso e murmurou: — Mestre. — O homem idoso inclinou a cabeça e voltou-se para mim. — O que há dentro de você é a chave para todo o resto. — O homem idoso sorriu. — Lembre-se disso. — Talvez Deus não ria tanto de mim se eu usar meu ingegno — disse encabulado, ciente da atenção daquele estranho que merecia mesmo o respeito de um famoso mestre de esgrima. — Deus apenas riu, garoto, e não foi de você.Tem a ver com o fato de a vida ser uma divina comédia. — Ele esfregou a barba. — Agora devolva a adaga ao soldado ou seu ingegno vai lhe render uns bons tapas na cabeça. — Eu ri e corri até o desafortunado condottiere que nem me sentira tirar-lhe a adaga. Ofereci-lhe o punho da adaga e ele a pegou com uma mesura, a mão no coração e a cabeça curvada. Imitei-lhe o cumprimento e todos eles riram, desta vez em aprovação. Quase bêbado de orgulho, voltei para ajudar Paolo que tentava se sentar. Estendi-lhe a mão e ele se ergueu sorrindo. — Espada bastarda, essa é boa — disse ele, só então entendendo o trocadilho.Troquei um olhar com Massimo que, ainda agora, continuava parado ao lado, alheio à briga. — Vamos até o rio jogar dados — disse Massimo. — Eu tirei uns de um dos condottieri enquanto olhavam você. Ele não sentirá falta deles por um bom tempo. — Ah não! — Paolo resmungou. — Odeio jogar contra você, Massimo, eu jamais ganho. — O lábio inferior esticou-se num muxoxo e a sobrancelha escura franziu-se. — É, mas você sempre ganha na luta. — Massimo deu um sorrisinho forçado. Era verdade e imaginei que as vitórias de Paolo seriam mais difíceis de agora em diante. Eu gravara em minha mente o aviso do


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homem idoso sobre ingegno. Então, percebi que poderia usar o conselho do velho contra Massimo também; ingegno era uma ferramenta adequada para muitas ocasiões. Olhei à volta para agradecer ao homem, mas ele estava longe, tendo já atravessado os bonitos arcos verdes e brancos de marchetaria da inacabada Santa Maria Novella. Ele deve ter sentido meu olhar, pois se virou e ergueu a mão em sinal de despedida. Retribuí o cumprimento e ele desapareceu dentro da igreja. Massimo inclinou-se para a frente, as orelhas balançando. — E eu roubei algumas moedas, então podemos comprar comida para comer enquanto jogamos. — Claro, já que você está pagando — disse eu encabulado, e Paolo voltou a rir. — Claro, hoje eu pago — concordou Massimo. Ele era generoso quando de bom humor, conquanto se mostrasse avaro quando descontente. Hoje, daria mostras de sua generosidade, desde que jogássemos um dos jogos de tabuleiro que ele adorava. Havia achado o tabuleiro de damas e várias peças de alquerque e de xadrez no lixo dos palazzi e nos ensinara a jogar, embora Paolo não fosse muito inteligente e eu preferisse trabalhar para ganhar dinheiro e comer. Massimo aprendera a jogar com os ciganos, que se encantaram com a combinação entre o disforme de suas feições e a agudeza do seu espírito. Adotaram-no durante uma estação, objeto de fascínio; depois, ciganos que eram, partiram, deixando-o para trás. Massimo gostava de contar histórias sobre o tempo em que convivera com eles e assimilara seus hábitos, que ainda conservava. Nos dias bonitos, nos agachávamos em frente à bottega de um negociante de seda e passávamos algum tempo jogando. Depois que procurei agir conforme me aconselhara o velho, naquele dia na piazza, tornei-me um oponente respeitável, graças a uma cuidadosa estratégia. À sucessão de jogadas estúpidas subitamente seguiam-se reviravoltas arrojadas que o confundiam e o deixavam queixoso da derrota. Inteligente que fosse,


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nunca pôde perceber corretamente o valor do inesperado. Assim como Paolo nas lutas. Ele me prendia com força, mas bastava eu gritar “Ecco, ufficiale!” para que ele se voltasse, assustado, e afrouxasse o aperto. Eu me esquivava e o atacava. E corria como um cachorro a fugir do dono rabugento de botas pesadas. Como Massimo, Paolo queria vencer, e ao contrário daquele, desferia golpes quando perdia. Com a chegada do inverno, os três dividíamos a comida e os trapos e nos aconchegávamos para nos aquecermos. Quando particularmente famintos e, portanto, audaciosos em nossa busca por comida, atuávamos juntos para obtê-la. Eu entabulava conversa com alguma senhora idosa, bem-vestida, alongando uma história qualquer para mantê-la ocupada, enquanto Massimo, com dedos leves e ágeis, esvaziava-lhe a bolsa de algumas moedas. Ou então Paolo se atirava sob uma carruagem e fingia ter sido atropelado. Massimo e eu ameaçávamos o condutor com um escândalo para atrair os ufficiali, padres e espectadores, caso não nos calasse com alguns soldi. Tínhamos muitos desses métodos para garantir uma refeição. O tempo, como um rio ligeiro, transcorria em meio a essas engenhosas atividades, até o dia em que um golpe do acaso alterou para sempre o rumo da minha vida. Naquele dia decisivo de outono, depois de uma semana de chuvas, tempestades e relâmpagos a cortarem o ar frio, eu me sentia mais voraz do que de hábito. Havíamos passado a semana encolhidos sob o brasão dos Guelfos, na igreja de San Barnaba, no populoso quarteirão de San Giovanni, no coração de Florença. Fui sozinho ao Mercato Vecchio, à tardinha, quando os ufficiali normalmente enfiavam-se nas tavernas para tomar vinho. Sequer parei para cobiçar as mercadorias; não tinha cabeça para sonhar naquela tarde, apenas a barriga vazia de quatro dias. Circundei o pavilhão dos açougueiros, ao centro, procurando com os olhos, por cima do ombro, algum sinal da polícia. Contudo, os aromas misturados de comida, frutas, vinhos e óleos


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despertaram-me a audácia. Um bom azeite exala um aroma picante, sabendo a nozes amargas; os figos secos cheiram a carne adocicada. Zanzei entre as barracas, os olhos varrendo o chão lamacento à procura de qualquer coisa que pudesse ter caído. Ao mesmo tempo, farejava a oportunidade de algum ganho em meio à agitação dos fregueses encapotados por causa da inconstância do outono. Logo avistei uma velha trêmula e sua netinha, modestamente vestida, mas não pobre, sem criada atrás para carregar as compras. Absortas uma com a outra e com as mercadorias, ocupadas nas compras, apertando legumes, cheirando melões e contando dinari, não haveriam de perceber a mão deslizando com uma paniota. Segui-as a certa distância; depois, mais de perto. A menina teria mais ou menos a minha idade, uns 9 anos, embora mais rechonchuda e muito mais inocente. Trazia os cabelos castanhos ondulados presos com uma fita vermelha; o rosto comprido e oval era igual ao da avó. Até o andar era parecido, o mesmo inclinar de cabeça, os mesmos gestos. Por um momento invejei aquela intimidade despreocupada. Como eu ansiava por uma família! O mais próximo que eu tinha disso eram Massimo e Paolo, que me roubariam no instante em que me pegassem com qualquer coisa apetecível. Então vi a avó regateando o preço de uns doces e o sentimento foi abandonado como uma casca. Nada como a fome para clarear o espírito. Totalmente concentrado nelas, senti que esbarravam em meu ombro. Era Massimo. Reclamei. Ele ia querer a velha e a menina. Como não estava disposto a abrir mão delas, voltei-me para enfrentar meu amigo. Ele me lançou um olhar esquisito, de desculpas, o olho azul entortado para o alto, as orelhas de abano se mexendo.Apontou-me, então, e berrou: — Ladrão. Este menino é um ladrão! Meus pés eram bem treinados na fuga, essa a educação que eu recebera, até então, mas o choque daquela acusação paralisou-me.


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A menina voltou-se e me olhou, os lábios rosados entreabrindo-se de surpresa. Ergui as mãos para acalmar Massimo, cujos gritos atraíam a atenção. — Ladrão, ladrão! — gritou mais alto ainda.Tropecei ao recuar e caí — bem nos braços de um ufficiale della guardia. — Peguei você, ladrãzinho sujo — grunhiu. — Não sou ladrão! — gritei. — Olhe na camisa dele — encorajou-o Massimo. — Eu vi quando ele enfiou uma coisa lá dentro. — Não tenho nada comigo — argumentei. Senti um leve roçar sobre a costela quando Massimo inclinou-se, apontando e golpeando-me. Meu coração ficou frio e quieto. Agora havia alguma coisa. O ufficiale enfiou a mão na faixa esfarrapada que prendia minha camisa. — Um anel com sinete — gritou. Agitou-o no alto, o ouro brilhando entre os dedos grossos. — Onde conseguiu isso, patife? — Eu não peguei. — É meu — disse uma voz fria, desdenhosa. A multidão à minha volta mergulhou num silêncio que cheirava a aversão. A avó puxou a menina para trás dela. As pessoas recuaram como se tivessem visto uma víbora, quando um homem magro e bem-vestido aproximou-se. — Estava em minha algibeira há pouco. Esse ladrãozinho o roubou. — Eu nunca vi o senhor — protestei, mas o ufficiale aplicou-me um sonoro tapa na orelha, que estalou. Minha cabeça foi tomada pela dor e por um insistente zunido. O homem acusador aproximou-se. Recuei amedrontado. Numa lufada de perfume, inclinou o rosto perto do meu. Então vi as marcas de acne nas faces magras e os fios brancos pontilhando a barba escura, cuidada; o queixo pontudo, protuberante, e um nariz afilado como lâmina. Nauseado, virei a cara e tentei desvencilhar-me da mão do ufficiale. — Olhe para mim, ladrão — sussurrou ele. Ergui os olhos. Um lado de sua boca erguia-se num esgar. — Você vai ficar bem, meu belo


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menino perdido. — Moveu a cabeça em assentimento e depois se empertigou.— Ele roubou algo mais valioso do que sua vida miserável — disse Bernardo Silvano. — Agora ele me pertence. Pode trabalhar para pagar sua dívida. A punição servirá de exemplo para gente como ele. — A multidão recuou em silêncio e Silvano cravou os dedos em meus ombros. — Amarre-o — ordenou ao guarda, que fez surgir uma corda grossa e amarrou meus punhos atrás das costas. Protestei e o ufficiale estapeou novamente meus ouvidos. Um filete de sangue aqueceu a cartilagem da minha orelha direita. Olhei incrédulo e horrorizado para Massimo, a quem tinha como irmão. Ele recusou-se a erguer os olhos estrábicos. Os espectadores se afastavam, dando a contragosto o assunto por encerrado. Silvano inclinou-se e pegou a mão de Massimo. Com a outra, quase numa carícia, deixou cair ali alguma coisa. O metal reluziu e Massimo rapidamente apertou o florim junto ao peito, com força. Um florim. Isso o alimentaria por um mês. Era isso que eu valia? Um mês de refeições? — Não, Massimo — implorei. Massimo ergueu o olhar para mim e sussurrou: — Eu venci! — Então desapareceu. O guarda empurrou-me para Silvano. — Tome — resmungou. — Assim ele vai ficar longe de confusão. — Confusão não me interessa. Tenho outros planos para ele — disse Silvano friamente. A bile amargava minha boca. Nunca me sentira tão sozinho e amedrontado. Tentava desesperadamente livrar-me de Silvano, mas seus dedos compridos escondiam uma força incomum; segurou-me pelas cordas em torno de meus punhos. Torceu-as para cima, forçando meus braços a uma posição anormal. A dor espalhou-se por meu ombro e eu berrei, caindo de joelhos. Procurei ajuda ao redor, um meio de escapar, mas em vão.Todos haviam retomado seus afazeres. Uma velha esmolava numa voz lamuriosa. Eu a conhecia do


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vão da Ponte Vecchio, havia mesmo compartilhado com ela algumas migalhas. Agora nem me olhava. Massimo tinha partido. Paolo não estava à vista. Pensei com amargura que o velho da Piazza Santa Maria Novella tinha razão, que Deus ria. E Seu riso era cruel e cheio da pior espécie de escárnio. Silvano levantou-me pelos pulsos, obrigando-me a andar. — Não é uma longa caminhada. Fica pertinho dos muros da cidade. Aposto que sabe onde fica meu lindo estabelecimento. Todo mundo sabe. Pensei nos corpos descartados, alguns mutilados, sempre jovens, arrastados de sua casa pelas correntes do Arno. — Não é de lindo que as pessoas chamam seu estabelecimento. — O que elas sabem? A beleza está em toda parte, em todas as coisas, se expressa de diversas formas — respondeu alegremente. Começou a assoviar uma canção enquanto caminhava pelas ruas. Por duas vezes debati-me violentamente na tentativa de escapar; por duas vezes ele deu um puxão nas cordas em torno dos meus pulsos. Uma vez atirei-me no chão e ele esmurrou minha orelha machucada. O sangue escorreu-me pelo pescoço. Cambaleei. A Ponte Vecchio, com suas casinhas aglomeradas como ninhos, barrava o céu noturno como uma fita negra esticada sobre seda amarela.A cidade estendia-se ao nosso redor numa combinação de cinza e ocre. Atrás, as colinas de Fiesole já se cobriam dos tons azul-escuros da noite. Sua beleza contrastava com a agonia do destino que, eu sabia, me aguardava. Meu estômago revirava de terror. Apesar da dor, tropeçava e deixava-me cair o quanto ousava, desesperado por prolongar a caminhada. Silvano mostrou-se paciente, torcendo habilmente a corda para machucar meus pulsos e mãos. Em seguida, empurrava-me para a frente quando eu gritava. Em pouco tempo chegamos aos muros da cidade, a um


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palazzo cuja imaculada fachada branca camuflava tudo o que lá dentro acontecia. Eu não conhecia com exatidão os detalhes, nem nunca desejara conhecer. Presenciara, é claro, as diversas formas de fornicação nas ruas, mas aquele lugar representava um estágio de pecado carnal mais sombrio, oculto. Sabia, por conversas sussurradas com Paolo e Massimo, que a porta que agora se abria para me tragar pertencia ao mais famoso e depravado prostíbulo de toda a Toscana.


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