O Livro Negro da Condição das Mulheres - Primeiro Capítulo

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O LIVRO NEGRO DA

CONDIÇÃO DAS MULHERES Direção Christine Ockrent Coordenação Sandrine Treiner Posfácio Françoise Gaspard Contribuíram

Fadela Amara • Li Ang • Isabelle Attané • Carole BelleminNoël • Sophie Bessis • Claire Brisset • Ellen Chesler • Ismahane Chouder • Kathleen Cravero • Christine Delphy • Esther Duflo • Marc Fernandez • René Frydman • Cécile Hennion • Françoise Héritier • Kareen Jabre • Maryse Jaspard • Irene Khan • Sona Khan • Farhad Khosrokhavar • Azadeh Kian-Thiébaut • Françoise Laurant • Claudine Legardinier • Béatrice Limare • Malka Marcovich • Catherine Marry • Margaret Maruani • Véronique Nahoum-Grappe • Maria Nowak • Peter Piot • Nadine Puechguirbal • JeanChristophe Rampal • Saveria Rojek • Ségolène Samouiller • Annie Sugier • Wassyla Tamzali • Pierre Tévanian • Sandrine Treiner • Odon Vallet • Georgina Vaz Cabral • Sophie Villette • Linda Weil-Curiel • Martin Winckler

Tradução Nícia Bonatti

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Prefácio Christine Ockrent

Nós, povos das Nações Unidas, resolvidos a proclamar mais uma vez nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos de homens e mulheres...

Tenho a convicção de que alguns princípios universais devem ser defendidos, proclamados e promovidos muito além das culturas e das crenças. Entre esses, a Carta dos Direitos Humanos é um texto fundador para toda a humanidade; e a humanidade inclui as mulheres — ou melhor, repousa sobre elas. Todos nós, colaboradores deste livro, pensamos que nenhuma religião e nenhum costume justificam que se assassine, que se queime, que se torture, que se apedreje, que se estupre uma mulher só porque ela é uma mulher. Nenhuma religião, nenhum costume justifica que se mutilem as meninas, que se as vendam ou as prostituam. Nenhuma religião e nenhum costume justificam que se subjuguem as mulheres, que se as humilhem, que se as privem dos direitos elementares do indivíduo. Na França, na Europa, nas sociedades ocidentais, a condição das mulheres progrediu espetacularmente no decorrer do século XX. As mulheres conquistaram seu lugar com obstinação e ainda não terminaram de fazê-lo. Há duas gerações, podem controlar sua vida e ser donas de seu corpo — o que é uma verdadeira revolução. Em todos os lugares, ou quase, a lei garante à mulher a liberdade de controlar sua procriação, em todos os lugares, ela proclama a igualdade.

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Não obstante, vemos claramente que, apesar de diplomas e competências comparáveis, a diferenciação das responsabilidades hierárquicas e das remunerações permanece. A escolha de trajetórias e de carreiras não é igualitária; as condições da vida cotidiana tais como são organizadas e financiadas por nossas sociedades também não o são. Aqui, os partidos políticos desdenham a paridade, preferindo pagar multas a conceder postos elegíveis a candidatas. Ali, redes e confrarias tecem com fios de vidro o telhado invisível que impede as mulheres de atingir os pontos mais altos. Assim que o poder se mostra, observem a foto: ele continua a usar gravata. A atenção dada à ascensão de uma Angela Merkel ou de uma Michelle Bachelet e os qualificativos usados para descrevê-las demonstram mais a exceção que a regra. Assim que se deixa a cena pública ou as páginas frias das revistas para observar nossas sociedades em seu cotidiano, a realidade obscurece. Humilhações, precariedade, violências conjugais, prostituição, criminalidade, desemprego, sexismo: as mulheres são sempre as primeiras vítimas. Pior: há entre nós zonas de sombra em que as mulheres vivem em estado de subordinação total, se não de escravidão, nos ambientes de imigrados em que os costumes desafiam a lei. De nada adianta que as jovens frequentem as escolas francesas: elas têm seu clitóris excisado, são obrigadas a usar véus, casadas à força, violentadas em suas escolhas mais íntimas. Para essas, como para as outras — o exemplo da França e dos países escandinavos prova isso —, somente a lei e sua incorporação no tecido social melhoram a condição das mulheres. Todavia, ainda resta muito a fazer, ainda que seja exigir a aplicação efetiva daquilo que foi conquistado.

Eis a situação do Ocidente. E em outros lugares? Em outros lugares, mais da metade da humanidade, homens e mulheres misturados, curva-se perante o sofrimento. O sofrimento de ser pobre, mal-alimentada, doente, iletrada, explorada. Em primeiro lugar, o sofrimento de ter nascido mulher, que agrava todos os outros. Em todos os lugares, a condição das mulheres nos mostra a face mais negra das realidades contemporâneas. Elas são inferiores, simplesmente. Impuras. Servem apenas para serem submetidas, exploradas, espancadas, violadas, compradas, repudiadas. Destinadas ao silêncio, ao esquecimento. Em suma, desprezíveis e indignas.

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Prefácio

Quisemos explorar, como a um continente desconhecido, essa condição de ter nascido mulher e de viver como tal. A ambição desta obra coletiva, para a qual contribuíram especialistas, escritores, jornalistas de todas as áreas e de todos os continentes, é trazer à luz, na diversidade dos costumes e das culturas, a condição das mulheres de hoje. Livro negro: esse rótulo, tornado genérico, encontra todo o seu sentido com a situação das mulheres. A engenhosidade das civilizações humanas em matéria de violências exercidas contra as mulheres não tem limites. Nós as percorremos em suas múltiplas dimensões: violências físicas, tanto em tempo de guerra quanto de paz, violências coletivas e individuais, violências econômicas, sociais, políticas, religiosas, bem como psicológicas. Seremos acusados de arrogância e de imperialismo cultural? Alguns, em nome da liberdade de pensar ou do respeito a todas as tradições, querem nos fazer admitir uma falta de respeito aos princípios universais que afirmam, especialmente, a igualdade do homem e da mulher. Conviria, para eles, em nossos próprios países, tolerar as infrações mais gritantes de nossas leis, quer se trate de excisão, quer de poligamia. Sob o pretexto de combater a globalização, seria preciso respeitar e promover o multiculturalismo, até em seus aspectos mais arcaicos e degradantes. Os puristas do etnicismo, que tremem ao descobrir relógios de pulso, celulares e preservativos femininos no coração da África, nada encontram para dizer sobre as práticas mais degradantes, desde que sejam ancestrais: entre os zulus, verificação pública da virgindade das meninas; no Kerala, queima ou imolação das mulheres que se tornaram inúteis... Certamente, convém proteger e promover a diversidade cultural que faz a riqueza do mundo, mas não ao preço dos direitos humanos mais elementares. O que conta mais: a cultura ou o indivíduo? Mais precisamente, o que deve prevalecer: a cultura ou a mulher? Promover as mulheres não é uma maneira de diminuir os homens: é, para nossas sociedades, a melhor garantia de equilíbrio e de progresso. Foram necessários três milênios para se chegar a essa constatação, compartilhada atualmente por todos os atores do desenvolvimento e aplicada — com maior ou menor constância ou hipocrisia — pelos diferentes líderes de nossos governos e de nossas sociedades.

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“Uma coisa é certa”, escreve Françoise Héritier, do Collège de France, “as gerações futuras ficarão chocadas com o fato de nunca termos tido realmente consciência de que o problema político maior fosse o da igualdade dos sexos. Essa consciência assinará o momento-chave da revolução.” As mulheres são sua própria esperança e não podem contar senão consigo mesmas para mudar a sociedade. Cada vez que fazemos progredir o direito de todas, a humanidade dá um passo para um mundo mais justo. Por meio deste livro, desta fotografia da condição das mulheres hoje, cada uma de nós tem a oportunidade de aprender aquilo que ignora, de descobrir aquilo que não pode ou não quer ver e de participar da luta para um mundo melhor.

Christine Ockrent, jornalista e escritora, primeira mulher a assumir na França a responsabilidade do jornal televisivo das 20h, ex-diretora-geral da AEF (Audiovisual Extérieur de la France), escreveu diversos livros (Françoise Giroud, une ambition française [Françoise Giroud, uma ambição francesa]; BushKerry: Les deux Amérique [Bush-Kerry: as duas Américas]; La Double vie d’Hillary Clinton [A dupla vida de Hillary Clinton]; entre outros). Atualmente dirige o programa político FranceEurope Express, no canal France 3, e um programa de atualidade internacional, Une fois par mois, no canal TV5Monde.

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Introdução Sandrine Treiner

O destino das mulheres e seu lugar na vida política, econômica e social constituem um tema que só há pouco emerge dentre as preocupações da comunidade internacional. Ele ainda não foi objeto de trabalhos nem de estudos verdadeiramente sistemáticos. Se o rigor foi nossa preocupação na escolha dos assuntos e na seleção dos autores, nossa ambição aqui é diferente de um compêndio científico: quisemos fazer deste livro um afresco do tempo presente. Por que as mulheres são as principais mercadorias nas guerras contemporâneas? Como e por que são mutiladas, enclausuradas, deslocadas, negociadas, barganhadas, e isso frequentemente com a cumplicidade tácita dos estados, mesmo democráticos? Quais serão as consequências econômicas e humanas do desequilíbrio demográfico de uma Ásia privada, em virtude da preferência por bebês do sexo masculino, de cerca de 90 milhões de mulheres? Será por acaso que na África a Aids mata atualmente mais mulheres do que homens? Por que se fala de profissionais do sexo, e não de prostitutas? Por que, em matéria de estupro e de violências conjugais, se privilegiam as explicações culturais ou religiosas nos países do Sul enquanto nos países do Norte as causas de ordem psicológica e individual são preferidas? Por que a liberdade das mulheres nos países muçulmanos continua a regredir com regularidade ou mesmo a não avançar no Magreb, doravante inserido na modernidade? Como garantir a segurança de todas, qualquer que seja a religião a que pertençam, na Índia multicomunitária? Por que as mulheres são

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mais agredidas quando são instruídas e acedem à autonomia? Quais são as formas de desenvolvimento que permitiriam evitar que, em todos os lugares, as mulheres continuem a ser as mais pobres entre os pobres?

Das violências universais e permanentes Durante muito tempo tentou-se reduzir essas questões a especificidades históricas, econômicas, sociais e religiosas. A avaliação que se faz atualmente é de que as violências cometidas contra mulheres são universais e permanentes. Doravante, é na escala da comunidade internacional e da ONU que se podem apreendê-las. Foi preciso esperar por dezembro de 1993 para que a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher tomasse por tarefa definir, pela primeira vez, a violência sexista: “A expressão ‘violência para com as mulheres’ designa todos os atos de violência dirigidos contra o sexo feminino, que causam ou que possam causar prejuízo ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos às mulheres, incluindo a ameaça de tais casos e a restrição ou a privação arbitrária de liberdade, seja na vida pública, seja na vida privada.” Alguns meses antes, em junho, a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, realizada em Viena, tinha contribuído de maneira decisiva para definir concretamente o conjunto das violências recenseadas no mundo. As duas declarações permitiam estabelecer o catálogo das sevícias comumente perpetradas, entre as quais: as violações dos direitos das mulheres em situação de conflito armado, incluindo o estupro sistemático, a escravidão sexual e a gravidez forçada; as violências físicas, sexuais e psicológicas exercidas no seio da família, como aquelas ligadas ao dote e ao estupro conjugal; as mutilações sexuais, os ataques sexuais reiterados, a exploração e o tráfico de mulheres. Por outro lado, o texto de dezembro de 1993 reconhecia as vulnerabilidades próprias das mulheres que pertencem às minorias: as mulheres idosas e deslocadas; as comunidades autóctones, refugiadas e migrantes; as mulheres que vivem em áreas rurais pobres ou zonas isoladas ou as que estão em detenção. Enfim, as declarações mostravam inquietação para com as dificuldades encontradas pelas mulheres em assegurar a igualdade jurídica, social, política e econômica em suas sociedades.

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Introdução

O projeto que define os objetivos do Milênio, tornado público pelas Nações Unidas em janeiro de 2005, afirma que “o direito de estar ao abrigo da violência, sobretudo para as jovens e para as mulheres”, é um direito fundamental e sem o qual elas não podem levar uma vida produtiva. Entre esses objetivos, a igualdade dos sexos, a educação, a saúde, a diminuição da mortalidade materna e infantil e a luta contra a Aids são os terrenos em que o lugar e o papel das mulheres aparecem doravante como sendo determinantes.

Segurança, integridade, liberdade, dignidade, igualdade para as mulheres Quando começamos a elaborar este Livro Negro da Condição das Mulheres, nossas primeiras fontes foram os textos fundamentais da Organização das Nações Unidas. No preâmbulo de sua Declaração de 1993, a ONU proclama a urgência da aplicação às mulheres dos direitos e princípios do gênero humano: segurança, integridade, liberdade, dignidade, igualdade. Cinco palavras fundamentais e universais para apontar tudo o que ainda falta a tantas mulheres neste início do Terceiro Milênio. Cinco palavras simples e magníficas em torno das quais organizamos, de modo transversal, o conjunto das contribuições. Para bem encaminharmos essa aventura editorial nos beneficiamos da preciosa presença de Françoise Gaspard, socióloga da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), que representa a França no Comitê CEDAW das Nações Unidas, cujo papel é assegurar-se da aplicação da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres. Com sua ajuda, selecionamos o conjunto dos assuntos tratados neste livro e escolhemos, para cada um deles, um autor pertinente. Foi assim que, durante dois anos, se constituiu em nosso núcleo uma comunidade calorosa, confiante e entusiasta. Sem preocupações de fronteiras culturais ou linguísticas, estivemos em contato eletrônico permanente com mais de 40 autores — especialistas mundialmente reconhecidos, pesquisadores, médicos, militantes, escritores, jornalistas provenientes de todos os horizontes e de todos os continentes. Alguns autores, que vivem em regiões do mundo onde falar dos sofrimentos das mulheres representa um risco maior de censura ou de punição, não hesitaram em nos enviar seus textos,

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sabendo que eles enfim seriam lidos. Outros aproveitaram nossas solicitações para empreender longas pesquisas no Irã, no Magreb ou na rota das prostitutas chinesas. A todas e a todos expressamos nossa gratidão e amizade. Segurança. Integridade. Liberdade. Dignidade. Igualdade. Esse é o roteiro que determinou o método deste livro. Esses também são os objetivos que deveriam guiar as ações de todos aqueles que se recusam a perder a esperança no homem — e na mulher. Este livro não é um caderno de lamentações, mas, ao contrário, a expressão de uma determinação. Em nosso caminho, cruzamos com inúmeras mulheres e homens que, por sua lucidez, coragem e espírito combativo, contribuem, a nosso ver, para melhorar o destino do mundo, mudando também aquele das mulheres. Suas histórias individuais e a narrativa de seus engajamentos são aqui relatadas como incitações a recusar qualquer fatalidade. Expedição às profundezas, aos vales perdidos, às zonas de sombra de nossas sociedades contemporâneas, essa viagem em volta do mundo poderia ser, para todas e todos, uma incitação ao rompimento do silêncio. De alguma forma, um engajamento.

Sandrine Treiner é historiadora de formação, jornalista e escritora. Escreveu o roteiro de diversos documentários e adaptou para a televisão o romance Inconnu à cette adresse [Desconhecido neste endereço] (Ed. Autrement). Publicou vários livros, entre os quais La Pilule et après? Deux générations face au contrôle des naissances [A pílula e depois? Duas gerações em face do controle de nascimento], em colaboração com Catherine Valabrègue (Stock, 1996). Sua última obra lançada foi Le goût d’Odessa [O gosto de Odessa] (Mercure de France, 2005). Atualmente é redatora-chefe do programa Un Livre un jour no canal France 3.

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