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Religião e Magia no ANTIGo eGITo
Tradução Angela Machado
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CAPÍTULO 1
A Criação da Civilização Egípcia
p O MEIO AMBIENTE
O Egito é uma terra de contrastes marcantes, e o ambiente e as forças naturais sempre exerceram um forte impacto sobre a vida e as crenças do povo. Todos os dias, ele observava o ciclo imutável da passagem do sol: a cada noite o sol morria, porém renascia no horizonte ao amanhecer e prosseguia em seu curso celeste durante o dia, criando e sustentando a vida na terra. Da mesma maneira, no ciclo anual das estações, observavam-se a morte e a destruição regulares da vegetação em virtude do ressecamento da terra, o que, por sua vez, era seguido pela inundação do rio Nilo, que revivia e fazia renascer as plantas e as sementes. Essas duas grandes forças de vida — o sol e o rio — seguiam os padrões de vida, morte e renascimento que provavelmente inspiraram nos egípcios a crença muito clara de que a existência humana de cada indivíduo refletia esses mesmos ciclos naturais envolvendo a vida, a morte e a continuação da vida após a morte.
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Religião e Magia no Antigo Egito
Os antigos egípcios acreditavam que o Nilo — sua fonte de vida — tinha origem no outro mundo. A inundação do rio era considerada também um presente divino, pois o nível não podia ser controlado artificialmente, e cada subida era esperada com ansiedade: se o rio não subisse (embora isso nunca tenha acontecido), eles temiam que houvesse fome e morte generalizadas, e certamente aconteciam inundações excessivas que varriam casas e plantações, assim como níveis baixos que resultavam em seca, fome e desastres. A bênção do Nilo era caprichosa e não controlável, situação somente retificada nos tempos modernos por meio da construção de uma série de barragens ao longo do rio, culminando com a Represa de Assuã. Isso permite que um grande volume de água fique retido no lago Nasser, atrás da represa, e que depois seja liberado, quando necessário, para a irrigação da terra e para o suprimento da eletricidade das cidades e aldeias no Vale. Na Antiguidade, é evidente que as crenças religiosas das pessoas eram profundamente influenciadas não somente pela natureza mutável desse ambiente mas também pela previsibilidade geral do clima. Existe também a luz solar quase perpétua no sul, com praticamente nenhuma chuva (sem contar com algumas tempestades inesperadas que podem causar destruição), e temperaturas mais brandas no norte, acompanhadas de algumas chuvas de inverno no Delta setentrional. Mesmo quando as altas temperaturas do verão atingem o sul, o clima é suportável por causa da secura da atmosfera. Entre março e maio, os ventos do sul ou do sudoeste (o cansim) podem trazer tempestades de areia. Evidentemente, esse clima geralmente agradável e que trazia poucas surpresas, junto com a regularidade da inundação do Nilo e suas consequências, influenciaram fortemente o tipo de religião que emergiu ali: um padrão estruturado de ideias que foi projetado para perpetuar o princípio de Ma’at, a deusa da ordem e do equilíbrio no universo, e desafiar e subverter continuamente as forças do caos. 22
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Damieta
MAR MEDITERRÂNEO
Roseta Buto
Alexandria
DELTA Tânis
BAIXO EGITO
Tell Basta
Tell el-Yahudiyah Gizé Abusir Saqqara
Mênfis
O Faium Meidum GOLF
Lahun
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Beni Hasan el-Ashmunein Tuna el-Gebel Meir
Tell el-Amarna Deir el-Gebrawi MAR VERMELHO
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DESERTO OCIDENTAL
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ALTO EGITO
Kom Ombo
Elefantina Primeira Catarata
Assuã
Egito
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A primeira evidência da religião ocorreu entre as comunidades neolíticas (c. 5000 a c. 4000 a.C.), que se estabeleceram, desenvolveram assentamentos e se sustentaram cultivando grãos e domesticando animais. A área tinha sido habitada anteriormente, durante o período Paleolítico (antes de c. 5000 a.C.), e evidências arqueológicas indicam que, na época, o povo ocupou os contrafortes na periferia do Vale do Nilo, onde caçavam. Entretanto, não podemos tirar conclusões sobre a sua organização ou crenças religiosas e costumes nesse período. Provavelmente, o fator único mais importante do desenvolvimento do Egito foi o Nilo, o grande rio que nasce bem ao sul do país, três graus ao sul do Equador, na região dos Grandes Lagos. Atualmente, em seu curso superior, é chamado de Nilo da Montanha; porém, quando se junta com o Bahr el-Ghazel, ele é conhecido como Nilo Branco. O Nilo Azul, que nasce no lago Tara, nas terras altas da Etiópia, une-se ao Nilo Branco em Cartum, no Sudão. Entre Cartum, que é a capital moderna do Sudão, e Assuã, a cidade mais meridional do Egito, o curso do rio é interrompido por seis cataratas. Elas não são cachoeiras ou quedas-d’água, mas locais onde o rio não cavou um canal definido na pedra, e aglomerados de rochas ficam espalhados na largura do rio, diminuindo a correnteza, e na Quarta, Segunda e Primeira Catarata, impedindo seriamente o fluxo do tráfego no rio. Na época histórica, a fronteira meridional original do Egito foi fixada na Primeira Catarata, que fica logo ao sul da cidade de Elefantina (onde se encontra agora Assuã). Tempos mais tarde (no Médio e no Novo Impérios), os egípcios a empurraram para o sul e subjugaram a população local para assegurar o acesso ao granito e ao ouro da Núbia (uma área que atualmente forma a parte setentrional do Sudão e o distrito meridional do Egito). Ao norte de Assuã, o rio flui ininterrupto em seu curso (cerca de 1.130 km) para a costa do Mediterrâneo, embora atualmente seja interceptado por uma série de represas e eclusas. O território pelo qual ele 24
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MAR MEDITERRÂNEO Damieta s orullu a el-B Bahar
Roseta
Ba ha ra elMa nz ala
Buto Xois Busíris
Tânis
Saís
Qantir DELTA DO NILO
Tell el-Dab’a
Tell Basta
Tell el-Maskhuta
Tell el-Yahudiyah Heliópolis Cairo Gizé Zawiyet el-’Aryan Abu Ghurab Abusir Saqqara Dahshur
Oásis do Faium
Tura Mênfis
el-Lisht
Birket Qarun Meidum Hawara Lahun Kahun
Beni Suef
Baixo Egito
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passa consiste em duas regiões distintas — o Vale e o Delta. O Vale é a passagem através da qual o rio forçou o seu caminho da África Central para o norte. No Egito, esse corredor tem cerca de 800 km de comprimento e geralmente varia de 9 a 20 km de largura, embora, em algumas partes, haja penhascos rochosos escarpados em ambos os lados que descem abruptamente para a margem do rio. Em outras partes, ele passa por uma planície de campos e pastos que fornece uma rica faixa de terra cultivada que pode ser lavrada até uma distância máxima de aproximadamente 20 km. Essa planície finalmente atinge o deserto em ambos os lados, onde existe uma linha fina e clara de demarcação: ali é possível ficar com um pé no deserto e outro na terra cultivada. No vértice do Delta, onde os conquistadores árabes fundaram posteriormente a cidade do Cairo, no século VII a.C., os antigos egípcios estabeleceram a sua primeira capital na cidade de Mênfis (“Paredes Brancas”) em c. 3100 a.C. A necessidade de controlar o Vale do Nilo, no sul, e o Delta, no norte, foi, sem dúvida, o fator principal por trás da escolha dessa localização para as duas capitais.
Pintura em tumba mostra o cultivo das sementes: arar, cavar, semear e cobrir com a terra. Um homem sedento bebe da pele de um animal suspensa em uma árvore.
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No norte, o Delta (um triângulo invertido de terra cultivada) apresenta uma perspectiva totalmente diferente. Ali, a zona rural se desdobra em leque sobre uma área de aproximadamente 160 km de comprimento e 320 km de largura em seu perímetro mais setentrional, no Mediterrâneo. Essa área plana e baixa inclui terra, lagunas, canais e praias, mas, como grande parte é composta de pântano inundado, somente algumas áreas podem ser cultivadas. Ali, atualmente, crescem frutas e plantações de algodão, em particular. Nesse ponto, o Nilo se abre em dois braços principais e em vários outros menores e finalmente encontra o Mediterrâneo em Roseta, no Delta ocidental, e em Damieta, no leste. O Vale e o Delta são, portanto, distintos, mas interdependentes, e um não pode sobreviver sem o outro. O Nilo é a grande força unificadora, e, na verdade, sem a existência desse rio, o Egito seria simplesmente um deserto. As fronteiras políticas do Egito moderno formam uma grande área retangular, porém, sem contar com a parte do Delta e da terra cultivada em ambos os lados do Nilo, o restante é deserto. A chuva no Egito sempre foi insignificante: as chuvas de inverno do Mediterrâneo atingem a parte norte do Delta, mas, no sul do país, a chuva é uma ocorrência excepcional.
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Na Antiguidade, a agricultura dependia da inundação anual do Nilo; essa enchente tornava o Egito habitável e possibilitava que as plantações crescessem e os animais fossem criados ao longo das margens e em partes do Delta. Nessas regiões, foram estabelecidos os primeiros centros de habitação. Na verdade, a situação do Egito foi mais bem descrita nas palavras do antigo escritor Hecateu, que sustentou que o país era literalmente “uma dádiva do Nilo”. Como um rio, o Nilo sempre intrigou historiadores e geógrafos. Sendo o rio mais longo na África, ele corre de sul para norte, e a localização da sua nascente e a causa das suas inundações intrigaram vários escritores e exploradores antigos. Quando gregos e romanos começaram a visitar o Egito como turistas e exploradores, eles especularam sobre a nascente do rio e a causa da inundação. O mais famoso entre esses escritores, Heródoto, expressou a sua ignorância dos fatos: “Não consegui informação alguma dos sacerdotes nem de outras pessoas sobre a razão pela qual o Nilo se comporta precisamente dessa maneira. O que desejei particularmente saber era por que as águas começam a subir no solstício do verão, continuam por cerca de cem dias e depois retroagem no final desse período, permanecendo baixas durante o inverno até o retorno do solstício do verão no ano seguinte.” Mas ele foi informado pelos sacerdotes egípcios (e suas próprias observações o levaram a concordar com essa conclusão) sobre a maior parte do país ter sido construída com o lodo do rio. Atualmente, sabe-se que a inundação tem sido causada pelas chuvas que caem nas terras altas da Etiópia e que alimentam o Nilo, ocasionando a elevação e o aumento de volume. Até este século, a subsequente inundação das margens do rio depositava um lodo escuro e rico sobre o solo ressecado, o que criava condições excelentes de fertilidade para a semeadura dos grãos. Esse milagre anual se inicia com as chuvas pesadas de junho a setembro na Etiópia; até a última parte do século XX, quando 28
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Pintura em tumba mostra um homem e sua família em uma caçada a aves selvagens nos pântanos. Áreas do Egito alimentadas pelos canais possuíam densa vegetação, onde as pessoas ricas podiam caçar e pescar.
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a inundação avançava para o norte, ela atingia a Primeira Catarata na quarta semana de junho. A altura total da água era visível no ápice do Delta no final de setembro e, duas semanas depois, a inundação começava a recuar. Por volta do final de outubro, o rio tinha retornado aos limites das suas próprias margens e, no abril seguinte, atingiria o seu nível mais baixo. A zona rural novamente se tornava ressequida até a repetição do ciclo. Na Antiguidade, acreditava-se que a enchente do Nilo era controlada por duas “cavernas” ou “fontes”, e dois nilômetros (dispositivos para medir e registrar os níveis da inundação) eram posicionados nas duas nascentes, em Assuã e ao sul do Cairo. Outros nilômetros eram posicionados ao longo do Nilo. Em alguns desses locais, era realizado um ritual anual para assegurar uma inundação satisfatória, quando alimentos, joias e animais para o sacrifício eram lançados ao rio. Além disso, para assegurar a fertilidade do país, “bonecas” eram atiradas ao Nilo. Embora o Nilo fosse o meio que trazia vida para o Egito, os egípcios não parecem ter deificado o rio em qualquer momento da sua história. O deus Hapi era uma personificação da inundação e não do Nilo. As figuras obesas da fecundidade, que sobreviveram sob a forma de estátuas e como deidades esculpidas em mesas de oferendas e em relevos murais nos templos durante o período do Antigo Império até o período Romano, representam os portadores de oferendas que trazem os produtos da terra.1 Em contraste, a outra grande força de vida — o sol — tornou-se uma das maiores deidades do Egito. Entretanto, os egípcios estavam profundamente cientes de que uma colheita bem-sucedida dependia inteiramente da beneficência divina, e Hapi e Osíris (o deus da vegetação e do renascimento) eram adorados e solicitados para se obter uma inundação favorável. O Nilo e a inundação exerceram um efeito profundo sobre a história, a organização política e a religião do Egito. Bem no início da sua história, as 30
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O Faium Birket Qarun
Hawara
Beni Suef
Bah r Yu sef
Sedment Heracleópolis
Lahun Kahun
oN ilo
Oxirrinco
Ri
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Médio Egito
el-Ashmunein Tuna el-Gebel
Beni Hasan Speos Artemidos Deir el-Bersha Tell el-Amarna
Meir Deir el-Gebrawi
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comunidades espalhadas compreenderam que deveriam agir juntas e tomar medidas que controlassem e regulassem a enchente. Para conseguir benefícios para todos os assentamentos no Delta e no Vale do Nilo, era essencial que se ajudassem entre si para organizar um sistema de irrigação eficiente. Embora a geografia do Egito ditasse que as comunidades ficassem espalhadas ao longo da extensão do rio, o objetivo comum da irrigação forneceu uma força unificadora e certamente contribuiu para a criação final de um estado político em c. 3100 a.C. A data exata em que a irrigação se tornou uma característica central da agricultura do Nilo não é certa, porém o rei Escorpião, que precedeu Menés, o unificador do Egito, é mostrado em cenas esculpidas em uma cabeça de maça de Hieracômpolis, realizando e talvez iniciando o processo de irrigação. Os egípcios gradualmente desenvolveram um sistema complexo e eficaz de irrigação que buscava utilizar a água e seus depósitos decorrentes do lodo negro para cultivar a terra tanto quanto possível em ambos os lados do rio. Conhecido como sistema “de bacia”, foi utilizado continuamente até cerca da metade do século XIX d.C. Diques de terra eram construídos para dividir a terra em compartimentos ou “bacias” de tamanhos diferentes. Quando o rio subia, uma série de canais direcionava a água para essas bacias, de modo que a terra ficava inundada. Então, a água era retida ali para que o lodo que carregava consigo ficasse depositado na terra. Quando o rio recuava novamente, qualquer água remanescente era drenada, e os fazendeiros podiam, então, arar a terra e plantar seus grãos. Era necessária uma organização complexa de mão de obra e dos recursos para construir e manter esse sistema, e os reis devotaram um esforço considerável para assegurar que as represas e os diques fossem construídos, que os canais fossem cavados e que o sistema fosse devidamente mantido. Períodos de colapso político e econômico foram sempre acompanhados da negligência do sistema de irrigação. 32
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