Um chines de bicicleta - Resenha no Estado de Minas

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ESTADO DE MINAS//PENSAR

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Grande Muralha DE BUENOS AIRES

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Romance de Ariel Magnus, Um chinês de bicicleta é bom exemplo de humor em literatura. Trama passada na capital argentina surpreende o leitor pelo estilo livre e inventivo do autor

FOTOS: BERTRAND BRASIL/DIVULGAÇÃO

grande humor não é aquele que faz brotar o riso fácil (porque evidente e, assim, de superfície). O grande humor, como o grande drama, faz pensar. Embora, claro, sendo humor, com um sorriso enviesado entre uma reflexão e outra. E o grande humor, principalmente, é composto por elementos do inusitado. Desta forma, nos pega na contramão. E o mundo sai dos eixos. Se o mundo sai, imagine-se uma cidade (no caso Buenos Aires). É o que Ariel Magnus, um inclassificável ficcionista, consegue em seu premiado romance Um chinês de bicicleta. Pôr-nos, leitores, numa capital portenha que nunca sonhamos, nem nas mais delirantes fantasias. Até o prêmio que o romance de Magnus mereceu combina com a natureza de sua ficção. La outra orilla (A outra margem) é a reunião dos primeiros relatos de Julio Cortázar, publicados em 1945, quando o escritor ainda estava testando a mão, sem atingir a consistência e o equilíbrio do fantástico em Bestiário, que publicaria já morando em Paris, em 1951. Em homenagem a esse Cortázar desconhecido até mesmo de muitos cortazarianos, o prêmio adotou o nome da estreia do autor de Rayuela. Talvez porque a principal marca desse prêmio seja seu caráter singular, destinado, provavelmente, a trazer para o primeiro plano obras ameaçadas pela marginalidade devido exatamente a seu temperamento diferenciado. Ariel Magnus consegue, já nas primeiras páginas, penetrar como poucos penetraram em Buenos Aires. Paradoxalmente, nesse mergulho ele justamente se afasta da cidade de que nos acostumamos a ver referida. A capital argentina parece então converter-se numa espécie de Nova York latino-americana, com seu bairro de imigrantes chineses, uma cidade dentro de outra cidade, um mundo diferenciado. Outra cultura imersa na cultura que nos é familiar. Outro olhar sobre a realidade que muda o nosso olhar. Muda, fundamentalmente, a forma como o protagonista e narrador, Ramiro Valestra, vê as coisas.

ORELHA

FOSFORINHO O conflito começa com uma série de incêndios em lojas de móveis. Um piromaníaco ateia fogo em dezenas de lojas, de propriedade de judeus, e as perdas são totais. Perto de um dos sinistros, Li, um chinês, inábil no manejo de sua bicicleta, é pego com uma caixa grande de fósforos, uma pedra e o veículo, a bicicleta, insuficiente para garantir-lhe agilidade na fuga. Vai a julgamento. Arranjam-lhe uma testemunha que na verdade nada testemunhou, Ramiro. É sobre tais eventos e julgamento tão controverso que Ramiro conta em primeira pessoa. Não está convencido da culpa de Fosforinho. Tudo leva a crer que de fato foi ele, mas as razões do chinês são inócuas demais e Ramiro percebe que existem motivações mais amplas e possíveis culpados que não o frágil e – estamos imersos em uma comédia – ousado ratinho de olhos puxados. Em pleno tribunal, Fosforinho, ou Li, pega Ramiro como refém e se safa diante de policiais, advogados e juiz.

ANA RUTH/DIVULGAÇÃO

Vitor Ramil está lançando álbum duplo e songbook de suas canções

Estética do frio O escritor e compositor Vitor Ramil está lançando songbook com partitura de 60 canções e álbum duplo Foi no mês que vem, com 32 músicas. O songbook tem 310 páginas, biografia do compositor, análises técnicas e críticas, fotos, manuscritos e discografia. O trabalho foi realizado por Vagner Cunha e Fabricio Gambogi (partituras) e Luís Augusto Fischer, Juarez Fonseca e Celso Loureiro Chaves (textos). A editora é a Belas-Letras. Já o disco vem com 17 participações de músicos e intérpretes de Brasil, Argentina e Uruguai, entre eles, Jorge Drexler, Milton Nascimento, Fito Paez, Pedro Aznar, Ney Matogrosso, Kleiton e Kledir, Marcos Suzano, Santiago Vazquez e Carlos Moscardini (seu parceiro no disco anterior, Délibáb). Mais conhecido como músico, Vitor Ramil é autor de obra literária sofisticada, com ensaios e romances, entre eles Satolep, publicado pela Cosac Naify.

Ariel Magnus narra com eficiência uma história de mistério e fantasia, que diverte e faz pensar

Aí começa o romance propriamente dito: o sequestro de Ramiro, que é levado para o bairro chinês e ali passa a viver, longe de casa, onde mal dividia o espaço com a mãe alcoólatra e seu trabalho com computadores, no qual tem a habilidade de um hacker. O sequestro revela-se sui generis. Ramiro é deixado solto, no início eventualmente vigiado por algum conhecido de Li (que quase sempre está ausente), e a seguir solto de fato – livre para transitar pela comunidade oriental. O bairro é tão amplo, o que é tão real quanto metafórico, Buenos Aires parecendo nunca vir à tona de dentro desse território onde os costumes são outros. De tal forma que, se antes disso tudo o narrador fora traído pela namorada não só com o melhor amigo mas, segundo este, com vários outros, agora vai gradativamente tomando contato com um novo sentimento (o amor) por uma chinesa que ele supôs, primeiro, mulher de Li, depois, ex-mulher de Li, depois, irmã de Li. Ao sabê-lo sem parentes, simultaneamente a uma espécie de síndrome de Estocolmo, quando o argentino se apega ao sequestrador numa amizade que não admite traições, a experiência amorosa revela-se finalmente em sua vida eivada de improvisos e precariedades, e, como tudo que é novo e intenso, com rituais que ele não domina. A forma do enamoramento chinês, inevitavelmente diversa da nossa, serve sob medida como retrato da própria vivência do mais radical dos afetos. Ramiro tem de ir devagar. Tudo, vindo de Yintai, obedece com rigor a um jogo severo de lenta aproximação. Ela tem um filho de uma relação anterior acerca da qual não fala muito mas deixa claro que de amor jamais se tratou. Depois de algumas semanas em que os encontros entre ambos, inclusive já na fase das intimidades, se dão ao ar livre,

porém em ambientes ermos, clandestinos, Yintai apresenta aos familiares Ramiro como namorado. Na sequência, vem a gravidez, gravidez que, embora sem razões sustentáveis (Yintai deixa claro, com seu temperamento e sua cultura, que não haverá outro homem enquanto o argentino estiver com ela), Ramiro não tem certeza da própria paternidade. Mas só no começo. Como no caso do sequestro, pouco a pouco, vai se entregando à nova realidade como, no fundo, a sua primeira realidade na qual, apesar do estranhamento externo, a identificação pessoal o faz incorporar-se ao novo mundo – agora também seu.

ESTILO Os inúmeros capítulos em que Li se ausenta têm sua explicação mais tarde. O chinesinho investiga o incendiário, pelo qual ia pagar a culpa. Expõe sua tese a Ramiro, mostrando que são os próprios proprietários das lojas que as queimam para que, seguradas, o seguro lhes indenize ao ponto de poderem renovar-lhes instalação e estoque. Ariel Magnus escreve como Ramiro se move naquela comunidade. Solto, na verdade. Podendo sair de lá e retornar sempre, quando quiser. A sintaxe, intensamente virgulada, não prende as frases; BERTRAND BRASIL/REPRODUÇÃO antes as deixa libertas. E assim os parágrafos recebem a respiração ampla de quem conta tudo que tem de contar, quase sem pausas. O leitor que as faça. Difícil fazê-las numa leitura escorreita, estimulada por observações surpreendentemente engraçadas e capazes de instaurar um novo contexto. É preciso admitir: não estamos na China nem na Argentina. Estamos na confluência de duas civilizações. O protagonista, presa de seu iPod, quando sequestrado no início sentiu falta do carregador do aparelho, cuja bateria logo morreu. Mas as possibilidades de comunicações e linguagem mostram-se renovadas a seUM CHINÊS DE BICICLETA guir. Conforme o estilo diferenciado e ousadamente livre do autor mostra desde o ● De Ariel Magnus primeiro capítulo neste livro, sem ne● Editora: Bertrand Brasil, nhum exagero, inclassificável. 280 páginas, R$ 34 ● Paulo Bentancur é escritor e crítico.

Machado maduro

Amor às palavras

Uma nova abordagem para a chamada “crise dos 40” vivida por Machado de Assis é o que oferece João Cezar de Castro Rocha em seu livro Machado de Assis: por uma poética da emulação, no volume da Coleção Contemporânea, da Editora Civilização Brasileira. Entre 1878 e 1880, o romancista passou por conflitos existenciais e artísticos que culminaram com a escrita de Memórias póstumas de Brás Cubas, que inaugura a fase madura do escritor. João Cezar revela como a rivalidade de Machado de Assis com Eça de Queirós ocupa um lugar central neste conturbado período de sua vida e a relação desta turbulência com o resgate anacrônico da técnica clássica da emulação.

O húngaro Paulo Rónai chegou ao Brasil em 1941, fugindo do nazismo, e ficou no país até morrer, em 1992. Em mais de 50 anos, ajudou o Brasil a civilizarse e tomar conhecimento de autores que, sem ele, demorariam muito mais tempo para serem lidos. Tradutor de vários idiomas, foi responsável pela edição completa da Comédia humana, de Balzac, entre outros projetos. Rónai foi também crítico literário e ensaísta. Pela Casa da Palavra está sendo relançado o precioso Como aprendi português e outras aventuras, que narra as peripécias do intelectual no mar da literatura e da tradução.

Pequeno notável O novo título da série Filosofias: o prazer de pensar é O ser humano é um ser social, de Marilena Chauí (foto), que coordena a coleção ao lado de Juvenal Savian Filho. Mesmo num livro introdutório, a autora leva ao leitor reflexão filosófica de alto nível, como já havia feito no já clássico Ideologia, que integrou a série Primeiros Passos. No novo livro, destaque para a discussão sobre a democracia, definida pela pensadora como característica de uma sociedade fundada no conflito e que institui direitos. CAIO GUATELLI/FI

Oficina literária Um homem comum, com uma profissão meio sem graça, passa os dias em meio a ocupações banais. Este enredo aparentemente sem graça foi oferecido a candidatos a escritores, que se reuniram numa oficina literária comandada por Noemi Jaffe. Desafiados a escrever um conto longo sobre um corretor de seguros, 14 alunos responderam com trabalhos que a professora da USP julgou dignos de publicação. O resultado é o livro 336 horas, da Leya/Casa da Palavra, que acaba de chegar às livrarias. Com diferentes estilos narrativos, há espaço para tudo, do erotismo ao suspense.

Wilde sem censura

EDITORA GLOBO/REPRODUÇÃO

O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (foto), ganha edição sofisticada e “não censurada” pelo selo Biblioteca Azul. Com nova tradução de Jorio Dauster, sem cortes, traz o texto estabelecido por Nichols Frankel, que restaura o romance como foi concebido pelo autor, com passagens sobre o homossexualismo que foram retiradas de edições da época. O volume traz estudo introdutório e centenas de notas elucidativas elaboradas por Frankel, que relaciona o romance com a biografia de Oscar Wilde.

Erotismo e excesso AUTÊNTICA/REPRODUÇÃO

PAULO BENTANCUR

A Autêntica está lançando o segundo livro da série Filô Bataille, O erotismo (foto), em edição e projeto gráfico caprichados, com capa dura e duas sobrecapas distintas, com imagens de obras de arte dos artistas plásticos Hans Breder e André Masson, além de diversas ilustrações no miolo. A primeira obra da série foi A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”, em que Bataille apresenta ao leitor um ensaio sobre o comportamento social do homem e sua vocação para o excesso. As próximas obras de Georges Bataille a serem publicadas pela série são: A experiência interior, Teoria da religião e Sobre Nietzsche.

Vida militar A vida do coronel Antônio da Costa Dias Filho, comandante do 3º Batalhão da Polícia Militar em Diamantina de 1959 a 1961, acaba de ser contada no livro Um exemplo de oficial, organizado por sua filha, a historiadora Maria de Lourdes Reis. Lançado pela 3i Editora, a sessão de autógrafos será terça-feira, a partir das 20h, no Salão Rubi do Clube dos Oficiais da PM, Rua Diabase 200, Prado. Maria de Lourdes é autora de Poder e imprensa na Guerra do Paraguai e Imprensa em tempo de guerra: O jornal ‘O Jequitinhonha’ na Guerra do Paraguai, já na quinta edição.


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