Parte XVII
Lengua Portuguesa y Espa単ola en Debate
Estrutura sintático-semântica de expressões (semi)fixas com o verbo “meter”
Isabella FORTUNATO Doutoranda Universidade de Coimbra, Portugal Bolseira do Instituto de Investigação Interdisciplinar isabella.fortunato@student.fl.uc.pt
Resumo Utilizando teorias sobre combinações lexicais como construções com verbo-suporte e fraseologias, bem como as teorias semânticas que procuram explicar as extensões de significado ocorridas nestas formações tão peculiares, temos o objetivo de analisar expressões formadas com o verbo “meter” + expressões ligadas ao corpo humano para ver (i) como nomes de partes do corpo humano são produtivos para a formação de expressões fixas e semifixas; (ii) a constituição sintática destas expressões que podem ter fixos tanto o sintagma nominal como o sintagma preposicional tendo o outro argumento em aberto ou ainda ter os dois argumentos fixos, que é o grau máximo de lexicalização da expressão; (iii) como ocorrem os processos de metaforização e metonímia, corroborando com a hipótese do embodiment, que se insere na semântica cognitiva e segundo a qual o falante constrói conceitos mais abstratos a partir das experiências concretas que vivencia, e sobretudo aquelas que envolvem o próprio corpo, já que é o primeiro “instrumento” que tem à disposição. Tudo isso, a fixação semântica e a sintática e os processos advindos desta fixação, tem consequências tanto na estrutura argumental da construção formada, em relação à original com o verbo prototípico, bem como acarreta mudanças aspectuais não previsíveis para o verbo “meter”. Palavras-chave: semântica verbal, semântica cognitiva, lexicalização, embodiment, fraseologia.
Abstract Using theories about lexical combinations such as constructions with light verbs and phraseology, as well as semantic theories that seek to explain the significance extensions occurring in these so peculiar formations, we have the objective of analyzing expressions composed with the verb “meter” + expressions connected with the human body to see (i) how names of human body parts are productive to form fixed and semi fixed expressions; (ii) the syntactic constitution of these expressions that may have fixed the noun phrase as the prepositional phrase with the argument still open or still have the two arguments fixed, that is the maximum degree of lexicalization of the expression; (iii) how the metaphors and metonymy processes occur, corroborating with the hypothesis of embodiment, that falls within cognitive semantics and according to which the speaker constructs more abstract
concepts from concrete experiences he experiences, especially those that involve his body, since it is the first “instrument” available. All of this, the semantic and syntactic fixation and the processes coming from this fixation, have consequences both in argument structure of the construction formed, as related to the original with the prototypical verb, and in bringing aspectual changes that are not predictable to the verb “meter”. Keywords: verbal semantics, cognitive semantics, lexicalization, embodiement, phraseology.
1.
Introdução
O
presente trabalho faz parte de uma pesquisa maior, objeto da minha tese de doutorado, que tem como tema a descrição da estrutura argumental do verbo “meter” desde o seu uso prototípico até a formação de fraseologias verbais, passando por um continuum de fixidez em que a predicação é “construída” por diferentes recursos: como o seu deslocamento do verbo para a parte nominal (processo típico das construções com verbo-suporte), adição de traços semânticos, metaforização, entre outros. Utilizamos como embasamento teórico a Semântica Cognitiva, apoiada em outras perspectivas de estudo como a Sintaxe Gerativa, a Psicolinguística, a Antropologia e outras teorias que possam ser úteis na definição/construção/discussão de alguns conceitos primordiais. O trabalho propõe-se realizar também uma comparação entre Português do Brasil e Português Europeu, dadas as evidentes diferenças nas combinações entre o verbo e seus complementos nas duas variedades. Estamos partindo do pressuposto que o verbo escolhido para estudo, como item lexical e, portanto, argumental, apresenta traços semânticos que selecionam determinados complementos em uma variedade e não o fazem na outra, levando a diferenças sintáticosemânticas bem mais profundas do que podemos pensar. Com a constatação dessas diferenças, questionamo-nos se elas são de natureza cultural ou cognitiva, se é que é possível traçar uma linha que separe essas duas áreas. O evento representado pelo verbo “meter” é, na língua portuguesa, um verbo causativo de movimento com deslocamento de um objeto para uma posição final (alvo) que tenha uma cavidade interior (marcada prototipicamente pela presença da preposição “em”). Auxiliando-nos com a teoria da Semântica dos Sub-eventos de Parsons, podemos dizer que, por ser causativo, o evento representado por este verbo, é composto pelo subevento causador e o subevento causado: o primeiro é o movimento em que o objeto é deslocado pela entidade causadora de um lugar-fonte para um lugar-alvo através de um percurso x, embora o trato deste movimento enfocado pelo item lexical seja somente o momento final deste deslocamento. O segundo subevento é o estado final em que o objeto se encontra e permanece alocado no seu destino final. Lembrando que o objeto deve ser compatível em tamanho tanto com o causador, como com esse espaço. A indicação da estrutura argumental no próprio item lexical (seleção semântica e categorial) é compatível com o princípio da parcimônia somente se se pensar no léxico como um
“reflexo” ou uma “imagem” da eventualidade na língua como uma série de características associadas a uma palavra ou a um radical de maneira idiossincrática. Sintaticamente falando, o item lexical “meter” organiza-se selecionando um objeto/tema, representado por um sintagma nominal, como argumento interno, um sintagma preposicional para a expressão do locativo introduzido normalmente pela preposição “em”, e o sintagma nominal do agente-causador na posição de argumento externo. Uma diferença que chama a atenção no verbo “meter” é que, ao contrário do que acontece no Português Europeu (PE), no Português do Brasil (PB) ele lexicaliza nos seus traços o elemento “manner” (modo de movimento), que denota como o evento é realizado, neste caso, o falante de PB, dentre os verbos sinônimos que denotam o mesmo evento, a saber, pôr, colocar, botar e o próprio meter, selecionará o último somente quando precisar designar que o movimento é feito com algum tipo de impacto, ou de qualquer jeito, ou com pressa, ou com violência. No PE este é um verbo neutro quanto à propriedade “modo de ação”, sendo marcado somente quanto ao seu registro no discurso *±formal+. Essa diferença gera uma série de restrições nas combinações semântico-lexicais o que traz como consequência diferenças sintáticas no momento da formação de construções que se afastam da estrutura prototípica do verbo, ou seja, no continuum que leva à formação de fraseologias verbais com o “meter”. Por exemplo, as expressões com o verbo meter que apresentam traços de agressividade são mais comuns no PB e são evidenciadas com a presença de nomes que contêm este traço: meter pau, meter porrada, meter pé ou pelo menos expressões com algum grau de intensidade na ação (meter os peitos, meter as caras). Os dados coletados são ocorrências dos Jornais Público e Folha de São Paulo, digitalizados e disponibilizados no site da Linguateca, o qual apresenta uma ferramenta de busca que, através de uma sintaxe própria, tem a capacidade de procurar as frases que aparecem, por exemplo com o verbo objeto do nosso estudo presente em determinadas estruturas gramaticais como [verbo + sintagma nominal] ou [verbo + sintagma preposicional], bem como disponibiliza a busca do verbo conjugado em qualquer tempo ou modo. Em outros pontos da escala de fixidez construções semifixas também as que apresentam pelo menos um de seus argumentos de maneira fixa formando uma expressão como um todo denotando um evento único que pode se relacionar com o evento original apresentando uma adição de traços (como no caso de meter um projeto na agenda política, meter o dedo no nariz que denota sim o movimento, mas também a finalidade da ação, ou meter um chocolate na boca que, embora pareça um evento pontual, denota, na verdade, todo o processo de ingestão do alimento). Esse grau de fixidez das expressões foi “medido” em razão da freqüência de uso do sintagma nominal que aparece na posição de argumento interno (meter cunha), como do sintagma preposicional que funciona como locativo (meter algo na cabeça, meter algo no bolso). Nas expressões mais fixas os dois estão fixos (meter a pata na poça, meter os pés pelas mãos). Em um caso em particular temos a fixação do argumento externo (O barco meteu água). Essa expressão é também peculiar por ser a única em que o evento denotado deixa de ser causativo, marcando a profundidade a que pode chegar a diferença de recorte da realidade
feita pelo PE e pelo PB, já que ela só é produzida na primeira variedade. Ela sofre também metaforização quando é usada de maneira mais abstrata em (O evento meteu água) Mas como dissemos este trabalho analisará dados que contenham informações sobre partes do corpo humano para que possamos, além de fazer uma análise sintático-semântica das expressões, observar como o ser humano usa o próprio corpo como base para a construção das suas idéias, que serão verbalizadas através de linguagem, principalmente as mais abstratas e, logo, cognitivamente mais complexas e marcadas.
2.
Teoria temática
A Teoria Temática é um método de estudo que faz um elo entre a sintaxe e a semântica/cognição atribuindo a cada posição sintática um “participante” do evento descrito na sua manifestação real. Algumas generalizações básicas: o papel do agente normalmente está na posição de sujeito, que sintaticamente é à esquerda do verbo nas línguas com ordem sujeito-verbo-objeto (SVO), já o paciente está na posição do objeto, à direita do verbo. Obviamente há exceções, alternâncias, estruturas em que estes padrões não se aplicam, mas o objetivo é buscar alguns universais para se chegar, quem sabe, a descobrir o funcionamento da linguagem no cérebro, através de “fórmulas” que parecem se manter nas línguas em geral. Para se falar nos papéis temáticos dos sintagmas nominais que aparecem na posição de argumento, é necessário, primeiro, definir semanticamente aquele que é o centro da predicação e que vai “ditar” e limitar os traços semânticos de tudo o que a ele se acopla visando a formação da sentença e a transmissão da mensagem com todas as informações necessárias para que esta seja interpretada à perfeição. Se o verbo for, como já assumimos aqui, o centro da predicação, sua relação com os argumentos será definida diretamente pelo seu conteúdo semântico. Essa combinação é feita de dois em dois, ou seja, o verbo se junta a um argumento, argumento interno, e os dois, juntos unir-se-ão ao argumento externo. Lembramos que é impossível se fazer uma classificação exaustiva da semântica dos verbos, já que a predicação são se resume ao conteúdo do item lexical, mas à combinação dos traços deste com o dos seus argumentos. Mas é possível, assim como acontece com os sintagmas nominais, identificar alguns traços verbais que podem servir como restrição para determinados tipos de argumento, traçando, desta maneira, grades argumentais previsíveis. Cançado (2003) nos traz exemplos que se encaixam perfeitamente nos propósitos deste estudo que é estabelecer a mudança da grade temática de um verbo à medida que a sua estrutura passa de pleno a fraseologia. Observemos: (a) Paulo quebrou o vaso com um martelo (b) Paulo quebrou o vaso com o empurrão que levou (c) Paulo quebrou a cabeça no acidente (d) Paulo quebrou a cabeça com aquele problema (Cançado, 2003, p. 100) O fato de o tema mudar de objeto para parte do corpo muda a estrutura da oração como um todo, pois o sujeito deixa de ser causativo e o instrumento deixa de fazer parte da estrutura.
Além do mais, nas sentenças (c) e (d) a abstratização de “cabeça” faz com que o verbo também sofra uma abstratização e passe a dar uma contribuição lexical em diferentes níveis: na primeira mantém o seu significado de romper, fragmentar, mas, em se tratando de uma parte de próprio corpo do sujeito, assume o traço “machucar”; na segunda, por causa da sua relação com o substantivo “cabeça”, o significado do verbo se abstratiza, sofrendo uma idiomatização parcial, (já que ainda se pode entrever a idéia de “romper” a própria cabeça em uma ação muito complexa) e formando, assim, uma expressão semifixa. É justamente isso que vai acontecer com o verbo “meter”, sendo que, ao meu ver, o verbo “quebrar” e o “meter”, ruma a essa possível gramaticalização, sofrem um “esvaziamento semântico” em diverso grau, pois, de partida, seus traços exercem uma seleção semântica em seus argumentos, sendo o “quebrar” mais seletivo do que o “meter”1. Mas isso é só uma hipótese que deverá ser comprovada com estudos mais acurados. Os estudos semânticos que visam a formulação de uma teoria temática procuraram reconhecer os papéis temáticos relevantes para o estabelecimento de regularidades gramaticais, visando dar contribuições importantes na compilação de um possível sistema lingüístico universal, a Gramática Universal. Procuraremos, a seguir, mostrar os estudos já feitos, os papéis identificados, como são caracterizados e refletir sobre como seria possível completar sua descrição para adaptá-la da melhor forma ao nosso estudo sobre a estrutura argumental do verbo “meter”. Parece ser uma tendência das línguas naturais que os falantes prefiram atribuir o papel de agente ao sintagma que se encontra à esquerda do predicado, ou seja, o argumento externo. Jackendoff (1987, p. 378) destaca o papel tanto pela sua posição sintática em relação ao item lexical que exerce a função de “evento” (ou seja, o verbo), assim como quanto à sua informação semântica de executor da ação. Podemos claramente observar que definir este papel quanto à sua posição pode ser questionado, primeiramente porque a posição é um critério estritamente sintático e segundo porque temos inúmeros exemplos de agentes que não aparecem na primeira posição. Segundo Gruber, que é um dos precursores da teoria temática, o tema é o papel central (observe-se que é ele a dar o nome à própria teoria) na sentença e está sempre presente, independente da posição que ele ocupe (JACKENDOFF, 1972, p. 29). Para Jackendoff (1987), o tema é um papel definido na dependência da presença do movimento: “object in motion or being located” (p. 377-378). E o paciente, normalmente associado à posição de objeto, deve apresentar o traço [afetação]. É pouco produtivo e talvez pretensioso tentar elaborar uma lista de papéis temáticos que seja ao mesmo tempo pequena e homogênea, pois acaba se caindo no erro de se utilizar a mesma nomenclatura para papéis com diferentes características, contribuindo ainda mais para os equívocos que impedem a teoria de ganhar status nos estudos linguísticos. Primeiramente é necessário fazer um estudo semântico relativamente exaustivo dos verbos das línguas naturais. Segundo considerar a diferença entre os elementos a que damos o 1
O verbo “meter” (como sinônimo de “pôr”, verbo-suporte por excelência) tem uma grande tendência a formar fraseologia, enquanto o “quebrar” não tem tanta.
nome de papéis temáticos. Como já dissemos anteriormente, tempos os participantes do evento descrito pelo verbo, mas temos também locativo e modo de ação que fazem parte do evento, mas se apresentam com natureza diferente dos participantes, não obstante isso, não podem ser considerados secundários por serem componentes inerentes à ação ou evento descrito. O locativo é o espaço necessário para que qualquer evento tenha lugar no mundo, seja ele concreto ou abstrato, esteja ele expresso linguisticamente ou não. O modo da ação também é uma propriedade inerente ao evento em si, mas de natureza completamente diferente do locativo. Se por um lado, o locativo partilha propriedades estativas com o tema, por exemplo, é distinto deste por inúmeras razões que dizem respeito à natureza de cada um desses papéis e do evento descrito. Por isso insisto na necessidade de se descrever os eventos antes de se falar nos papéis em si. Outra questão importante a ser levada em consideração no momento da identificação de papéis temáticos é o fato de que o processo de asbtratização de um item lexical é diferente do item que já é abstrato por si só. Consideremos os verbos “chegar” e “amar”. O primeiro denota um movimento concreto “O Paulo chegou em Lisboa”. Esse evento, a depender das suas combinações lexicais, pode sofrer abstratização temporal como em: “A mulher chegou à maturidade” e uma abstratização do tipo: “A Luciana chegou à conclusão de que não havia mais nada a fazer”. Com o verbo “amar”, sendo um verbo psicológico, não tem essa contrapartida concreta, ele já parte como um evento cognitivamente abstrato, por se tratar de um sentimento. “O Eduardo ama a Mônica”, “a Mônica ama os seus ursinhos de pelúcia” “O Eduardo ama surfar”, embora mude o objeto de *+ animado+, *-animado] e [+evento] não há uma continuo de abstratização como no verbo “chegar” no qual a abstratização era acompanhada por uma certa idiomatização, ou pelo menos uma fixação.
3.
“Embodiment”
Depois destas reflexões sobre a estrutura do evento e de como ele se manifesta linguisticamente, relacionando elementos formais a elementos das situações no mundo, fazemo-nos alguns questionamentos: (i) é possível prever exatamente a estrutura argumental (ou seja, o número, o tipo e a posição dos papéis temáticos) de um determinado item lexical? (ii) caso isso seja possível, o que acontece quando um mesmo item lexical aparece no discurso com uma estrutura argumental diferente desta, considerada como original? Colocamos aqui como hipótese que cada elemento linguístico dotado de estrutura argumental tem uma configuração primeira, original, que é a mais concreta e a mais antiga na língua. A partir desta, através de uma série de processos de extensão semântica, como a metáfora e a metonímia, entre outros, nascem novas estruturas, que recobrem outros domínios cognitivos que não o original, mas que se relacionam com o significado primeiro das maneiras mais criativas que podemos imaginar. Afinal quem faz a língua são os falantes e o que de fato nos separa dos animais é essa criatividade, tanto na maneira de estruturar o pensamento como a linguagem. Por isso, estudar esses aspectos da língua mexe não só com
a estrutura do pensamento, mas também com os elementos culturais, que são peculiares a cada comunidade e que constituem sua identidade. Como seres humanos, conforme já dissemos anteriormente, tendemos a construir o pensamento a partir do nosso próprio corpo que é o primeiro instrumento que temos à mão2. Esse fenômeno é chamado na Linguistica Cognitiva de embodiment: “Thought is embodied, that is, the structures to put together our conceptual systems grow out of bodily experience and make sense in terms of it; moreover, the core of our conceptual systems is directly grounded in perception, body movement, and experience is a physical and social character”. (Lakoff, 1987, apud, Silva, 1999, p. 18) O que observamos na análise dos dados e veremos logo a seguir é que a estrutura argumental original do verbo “meter” recobre eventualidades no mundo que retratem o movimento concreto em que um objeto é deslocado de um ponto de partida, por um ser humano agindo intencionalmente, para um ponto final que represente um lugar qualquer que disponha de uma parte interior. Nesse movimento o objeto deslocado normalmente tem que ser compatível em tamanho tanto com a mão humana (que é o verdadeiro meio através do queal o deslocamento ocorre) como com o locativo que funciona como ponto final. O desafio, portanto, é descobrir como as expressões com o verbo “meter” partem dessa configuração prototípica para estenderam o seu significado chegando até a designações mais abstratas, em que, tanto sintaticamente como semanticamente, esse sentido se perde.
4.
Análise dos dados
Partindo, portanto, da estrutura SUJ + V + SN + SP, onde SUJ é o sujeito [+humano] e [+agente], o SN é o sintagma nominal na posição de objeto direto e SP o preposicional na posição de objeto indireto, mas com papel temático de locativo, selecionamos as ocorrências que continham lexemas denotando partes do corpo tanto no SN como no SP e procuramos interpretar como o movimento rumo à abstratização acontece. As partes do corpo encontradas são: cabeça/consciência, cara, nariz, boca, peito, mão/ombro/braço, dedo, pé/pata/perna e veremos o interessante percurso da acepção concreta para a abstrata nestas expressões e quais os domínios que o verbo “meter” combinado com as partes do corpo pode recobrir.
4.1
Cabeça/Consciência
A cabeça é considerada como o centro do raciocínio, graças a essa extensão metafórica, temos a expressão a seguir: (1) F951221-134: Foi ele quem me meteu na cabeça essa história toda de Eco e Narciso. que pode aparecer também na seguinte estrutura sintática: (2) F940306-023: O PT tem que meter na cabeça que a tarefa de transformação da sociedade não é exclusiva de nenhum partido. 2
Se pensarmos bem as onomatopeias são as formas linguísticas mais instintivas e provavelmente resquícios de uma forma primeira de comunicação, já que são uma reprodução da experiência humana viva.
Centro do raciocínio e da consciência, como no exemplo a seguir. O que acontece aqui não é a abstratização por metáfora da cabeça, mas uma concretização da consciência, observável pela natureza do movimento que envolve, inclusive, a mão. Fica claro, porém que o significado global, continua sendo abstrato: o “susto” por ter “perdido a consciência” representa justamente o momento de a retomar: (3) P940729-044: Os trunfos que esgrime contra as pessoas que deviam meter a mão na consciência radicam basicamente no papel que representou no Governo, onde representou o ministro da Agricultura na Comissão Interministerial para a Promoção do Sucesso Educativo, na Comissão de Prevenção Anti-Tabagismo e em assuntos relacionados Com o queijos regionais portugueses. Temos, a seguir, duas expressões com SN e SP fixos que, hipoteticamente deveriam ter o seu significado idiomatizado, o que, como veremos, não necessariamente acontece: Embora areia – nome incontável – não apresente cavidade interna, podemos bem entender como é possível introduzir a cabeça na areia, bem como é fácil entender como esta cena pode nos remeter à configuração cognitiva denotada pela expressão inteira: recusar-se a confrontar ou tomar conhecimento de um problema. (4) F950416-057: Mas a equipe econômica meteu a cabeça na areia e proclamou que o Brasil não é o México, na vã esperança de convencer os investidores a manter seus capitais aqui e trazer mais. O significado de meter a cabeça no cepo também pode ser entrevisto pelo evento invocado: prejudicar-se ou criar uma situação que sabe que vai prejudicar o próprio sujeito. (5) P951215-096: Pacheco fez com os ex-ministros como a prudência recomenda que se faça: não meteu a cabeça no cepo.
4.2
Cara
Meter as caras é uma expressão tipicamente brasileira na qual observamos uma metonímia: a “cara” representa a parte mais exposta do corpo humano, por isso a expressão tem esse significado de expor-se, sem medo, sem receios, para a realização de alguma atividade. Formalmente ela pode ser intransitiva ou ter um sintagma preposicional representando o evento alvo, no qual esta “coragem” será depositada. (6) F951204-071: É só meter as caras, Corinthians. F950209-087: Jovens e bonitos, que metem as caras em qualquer desafio e, claro, em romances inesperados. F950305-134: Meteu a cara na direção de comerciais lá — enfrentando com piadinhas destruidoras a arrogância de algum técnico local — para montar uma estrutura de realização.
4.3
Nariz
O nariz é a parte do rosto mais protuberante, adquirindo, através de um processo metonímico, um significado de intrometimento. Mas antes de falar deste significado já
abstratizado, daremos um exemplo de expressão com o significado prototípico, embora apresente, no global, um traço de “falta de educação”: (7) P940522-042: Este, que vai a meter o dedo no nariz, é giro, dizia para a mulher, eventualmente uma avó, ou uma professora. No seu uso brasileiro, além deste traço, que se aplica somente no significado concreto e prototípico, temos, também acompanhado de um traço negativo, mas, desta vez, denotando raiva, arrogância, (como pode-se facilmente concluir pelos outros lexemas presentes na frase), ao dizer algo abruptamente e ofendendo alguém. (8) F951106-090: O jogo começou quente e uma série de cartões amarelos bem distribuídos amansou as feras sem que fosse necessário meter o dedo no nariz de nenhum jogador ou distribuir sopapos para conquistar respeito. Aqui temos o significado de “intrometer-se”, como dissemos anteriormente, o nariz, sendo a parte mais protuberante do rosto, ao olhar algo (que normalmente não nos diz respeito) muito de perto, automaticamente o nariz toca esse “alguma coisa” de maneira invasiva. Metaforicamente, podemos transpor uma situação parecida com esta para o domínio mais abstrato do discurso e dos eventos, em que faria sentido alguém se intrometer. (9) F941121-039: Seria a melhor forma de o sistema se auto-regulamentar, reduzindo a alegada necessidade do Poder Legislativo meter o nariz em negócios dos quais não entende patavina. P941013-121: Se o assunto que levou ali o actor foi a publicação da sua autobiografia, poderá pensar-se que está a dizer ao Larry King para ele não meter o nariz onde não é chamado.
4.4
Boca
Metonimicamente falando, a boca é, de um lado, o lugar pela qual a voz sai, portanto, digamos que seja o “centro” da fala, pelo outro, é o trato inicial do aparelho digestivo e, portanto, pode ser tomado também como esse significado. Á medida que a abstratização cresce, adquire ulteriores traços. Nos primeiros dois exemplos, temos objetos que são inseridos na cavidade bucal, aproximado-se muito do significado prototípico do verbo “meter” como verbo pleno. Nas outras duas, podemos acrescentar o traço [+INGESTÃO] que envolve “subprocessos” como mastigar, engolir, processar, entre outros. (10) P940107-065: A existência de paredes degradadas nas habitações e com pinturas em mau 'tado é apontada como uma das principais causas da ingestão de quantidades daquele produto, visto que é normal as crianças gostarem de descascar a tinta das paredes e meter pequenos pedaços na boca. P940526-128: Para ver concorrentes a meter cobras na boca, levarem carecadas ou abrir cofres debaixo de água, basta sintonizar a TVI, aos sábados à noite, com o aliciante de, a partir de agora, se poder contar com a presença de concorrentes portugueses. P950802-034: Por isso, uma parte importante da formação do ciclista é saber os momentos em que deve meter comida ou água à boca. P940220-056: A condutora argumentava que a água e os refrigerantes não embebedam, o guarda apresentava como prova os valores do balão, o comandante apoiava o
subordinado e já falava em análises ao sangue a realizar no hospital, quando viu a senhora meter à boca um chocolate. Uma expressão como a seguinte tem peculiaridades: reconhecemos que a boca aqui é o centro da fala, como definimos antes, mas como temos uma especificação do “possuidor” da boca, indica que, embora alguém profira o discurso ou trato da fala, este indivíduo não o faz voluntária e intencionalmente: o evento é causado pelo sujeito, mas o evento é realizado pela pessoa que utiliza a boca. Neste caso específico não é alguém que faz com que o Moisés fala, mas uma entidade, como a Bíblia, cujo autor, é quem vai fazer com que coisas sejam ditas. (11) P950608-006: Quando a Bíblia mete na boca de Moisés qualquer coisa como esta, ela indica um itinerário, uma direcção. No caso de instrumentos de sopro, a boca é a fonte deste sopro e, consequentemente, do som. Temos aqui, portanto, também por metonímia: meter um instrumento à boca = tocar um instrumento (de sopro). Lembremos que, por ser a boca o locativo, o tipo de instrumento fica condicionado e restrito semanticamente. (12) P950531-155: -- Está bem abelha metia o saxofone à boca e esquecia-me de abrir a porta, esquecia-me de atender os telefones, a apurar o Viva Dolores para não estragar a partitura ao trombone de varas. O PB variante na qual o verbo “meter” tem esse lado “agressivo” mais aguçado, temos uma variação do “falar”: meter a boca em algum assunto ou em alguém é falar mal, contanto que podemos observar a expressão sendo usada perto de outras expressões com traço negativo como “nariz empinado”, “cabeça-de-bagre”, “xingar”. (13) F950206-105: Sempre que leio alguém falando com o narizinho empinado de cultura de videogames ou metendo a boca em filmes inspiradas em videogames, fico superfeliz. F950626-084: Falem para os jovens que escrevem para o Folhateen não ficarem metendo tanto a boca nas coisas. F951015-100: Claro que o torcedor lê jornais, dá audiência às TVs, discute o jogo da véspera no botequim, no escritório, na fábrica, elege seus ídolos, mete a boca no cabeça-de-bagre de plantão e xinga o técnico que não escalou o time ao gosto da galera. Meter a boca no trombone, seguindo a mesma lógica, e misturando um pouco os domínios da fala e do som, em um jogo de metáforas, metonímias e contribuição semântica com os traços mais relevantes de cada um, temos a formação desta expressão fixa que, globalmente, significa “externalizar uma notícia/informação que vá gerar algum tipo de choque a quem a recebe”. Temos aqui várias extensões semânticas: uma é a da boca como fonte do sopro, sopro este que, por sua vez, aciona o instrumento musical. A segunda extensão é a que liga a ação de tocar o instrumento (de preferência de forma pouco harmônica e agradável aos ouvidos) com um tipo de fala que chama a atenção, ou pelo seu conteúdo ou pela maneira como esse conteúdo é expresso pelo sujeito. (14) P940129-085: Uma funcionária recentemente despedida do Zoológico decidiu meter a boca no trombone e disparou uma lista infindável de graves acusações à administração e assistência veterinária do Jardim.
E uma única ocorrência ele é um dos lugares d corpo para os quais vale a pena apontar uma arma, a fim de matar a si ou a alguém, já que um tiro nesse lugares seria fatal (um tiro no braço, por exemplo, culturalmente se sabe, que não mata ninguém, fazendo com que a expressão deoxe de ter o significado global de matar) (15) F940412-099: Novoselic Não gostei desta frase e disse a Kurt: Kurt, o que faremos se um garoto de 12 anos mete uma bala na cabeça, em uma granja em Nebraska, depois de ouvir nosso disco? " F940629-004: O mesmo vale para quem desejar cheirar cocaína, fumar maconha ou meter um tiro na cabeça. F951224-108: Júlio -- A verdade é que Diaz quer fechar o congresso, dar um golpe pessoal, meter uma granada na boca dos poetas, amordaçar a imprensa, oprimir os operários, frustrar os camponeses...
4.5
Peito
Essa é uma variação de meter as caras na qual podemos acrescentar um traço de força, além da coragem e da exposição da expressão anterior. (16) F950109-063: Com a experiência bem-sucedido como empresário na área do marketing esportivo, Kleber mete os peitos na construção de um Flamengo poderoso dentro das quatro linhas. Formalmente encontramos ocorrências com uma oração encaixada dando a finalidade, aquele “evento alvo” mencionado anteriomente. (17) F940102-009: Meu otimismo retornou numa reflexão: se um administrador consegue realizar uma obra dessas, quem sabe muitos outros se habilitem a seguir seu exemplo, meter os peitos para restaurar o Brasil ?
4.6
Mão/Ombro/Braço
A ocorrência a seguir (3), do português brasileiro, tem uma parte do corpo do sujeito na posição de objeto direto e um objeto sem cavidade interna no sintagma preposicional. A expressão como um todo representa uma ação em que o sujeito agarra bruscamente este objeto. Percebe-se que, embora continue se tratando de um movimento concreto, com deslocamento, a configuração cognitiva não é mais a mesma da original. (18) F940701-106: Ele vem aqui e mete a mão no microfone assim, tum, abre e fala. Meter a mão no bolso parece-nos uma variante de meter no bolso com objeto direto “a mão” fixo. Essa fixidez é comprovada pelo acoplamento de outros complementos que podem fazer com que a estrutura temática da expressão mude, assim como a sua configuração cognitiva. Como sempre, temos primeiro um exemplo que mais se aproxima do significado original para mostrar a diferença entre este e a extensão de sentido posterior: no caso específico da expressão meter a mão no bolso, podemos até ter esta ação em si, mas o que se quer pôr em evidência é a ação seguinte, que justifica o movimento, ou seja, a sua finalidade que é a de pegar o dinheiro para “pagar”:
(19) P941104-118: Confirmou ter-lhe dado um pontapé quando ele meteu a mão no bolso e depois, quando ele estava caído, mais uns biqueiros e pronto. F940325-010: Mas quando a Petrobrás investe, nós é que metemos a mão no bolso. " A especificação do “possuidor” do bolso dá-nos indícios e a consequente configuração do novo evento que está sendo verbalizado: se o possuidor é o próprio bolso (como no exemplo (19)), a ação é a de “pagar”, caso o possuidor seja outro que não o sujeito, o significado muda para “roubar”. Esse novo possuidor normalmente apresenta a característica *+HUMANO+, mas principalmente traços de “vulnerabilidade”, sendo o elo mais fraco entre as duas partes, o ladrão e a vítima. (20) F940303-042: O presidente da Força Sindical repetiu várias vezes que não é contra o ministro da Fazenda, mas atacou-o indiretamente, ao afirmar que quem mete a mão no bolso do trabalhador, faz pior do que os deputados que roubaram na Comissão de Orçamento. Se o sintagma preposicional não trouxer o locativo, no caso o “bolso”, mas os objetos de valor que hipoteticamente estão dentro dele, como dinheiro, carteira ou outros objetos de valor quaisquer, continuamos a obter o significado de “roubar”. Não podemos afirmar com segurança se uma expressão veio da outra, mas podemos claramente perceber a ligação semântico-cognitiva entre elas. (21) F941109-017: Não meti a mão em dinheiro de ninguém para estar sendo exposto dessa maneira, como se estivesse na época da Inquisição, disse o dono da Constran. P941202-109: Mas na Espanha de Filipe Gonzalez, o comandante da Guarda Fiscal fugiu para Angola depois de meter a mão no cofre. E mais uma vez, de uma maneira muito semelhante à expressão meter no bolso no sentido de “ganhar”, “faturar”, mas com um quê de “garra” a mais. (22) F941010-057: E assim segue o Palestra: com um certo tédio, vai somando as vitórias necessárias, mesmo que seja de 1 a 0, à espera da hora de meter a mão na taça. Nas três expressões a seguir temos as mãos como símbolo de execução de um trabalho, enquanto “tarefa”, “massa” e “obra”, que representam, respectivamente, um evento, um objeto concreto e o resultado de um trabalho, mas os três são a imagem da realização de algum evento que requer [+ESFORÇO]. De fato, a expressão como um todo significa começar um trabalho com afinco, tomar a iniciativa para executar uma ação que exija esforço. Sublinhemos o traço de incoatividade trazido pelo verbo: meter a mão na massa/obra/à tarefa é dar início a essa ação. (23) P950526-012: Desafiando a cólera dos duros do regime, a televisão iraniana meteu mãos à tarefa de ganhar uma nova vida que preencha o vazio criado pela interdição das antenas parabólicas no país, em vigor desde 21 de Abril. P940424-064: Bem poderiam, seguindo a mesma linha e os mesmos objectivos, as hostes da cultura portuguesa adendar a tal trabalho o nosso contributo, desenvolvendo do lado de cá uma equipa capaz de meter ombros à tarefa. (24) F940519-005: Politicamente correto, ele quer meter a mão na massa já no primeiro turno e, para isso, está armando aquilo que o PT costuma chamar de arco.
(25) F950409-074: A questão não se resume em a equipe de governo, influenciada por tal exortação, meter mãos à obra, e, por sua vez, produzir a proposta tão prometida e esperada.
4.7
Dedo
Meter o dedo na cara, assim como vimos anteriormente com meter o dedo no nariz (uso aparentemente exclusivo no português do Brasil), temos o traço negativo de *+ARROGÂNCIA+, confirmado pelos elementos “traidor” e “distribuir sopapos”. (26) F940503-081: Cacá Diegues me conta que, em 89, viu o Theo Angeloupolos meter o dedo na cara do Bernardo e chamá-lo de traidor. F951106-090: O jogo começou quente e uma série de cartões amarelos bem distribuídos amansou as feras sem que fosse necessário meter o dedo no nariz de nenhum jogador ou distribuir sopapos para conquistar respeito. A extensão semântica aqui é dada por um “zoom” no evento representado: com o significado de “mudar” alguma coisa (podemos pensar em alguém mudando, com o dedo, as peças de um jogo): (27) F951113-070: Mas bastou Luxemburgo meter o dedo no time, trocando o estabanado Alex por Nílson e pronto: um passe rolado sobre fita métrica de Rivaldo para Nílson foi o suficiente para o Palmeiras relaxar. Nesta expressão também podemos imaginar, através da ação concreta o significado abstrato da expressão fixa: “piorar uma situação” pode vir da dor e do “atraso” na cicatrização de uma ferida na qual alguém pôs o dedo. O que é interessante nessa expressão tão comum como meter o dedo na ferida nas duas variantes, mas sobretudo com os verbos “pôr” e “colocar” é o fato de variações dela aparecerem no corpus com o verbo “meter”. Meter o dedo (ou qualquer outro objeto) em uma ferida, é decerto, piorá-la e impedir que ela cicatrize, portanto, piorar uma situação. Quanto maior esse objeto, pior ficará a ferida e, consequentemente, a situação: (28) F950308-107: E que a Copa João Jorge Saad, patrocinada pela TV Bandeirantes, que é, em última análise o nosso campeonato de aspirantes, consegue meter o bisturi na ferida, ao colocar em prática uma tese que defendo há quase um quarto de século: a partir de mais de dez faltas coletivas cometidas, o time é punido com tiros livres diretos, sem barreira, da altura da meia-lua. F950512-010: Apesar de não concordar com a greve, Janio de Freitas, em seu artigo de 11/5, mete o dedão na ferida: foi uma decisão política.
4.8
Pé/Pata/Perna
As duas expressões a seguir (que só aparecem no português europeu) têm basicamente o mesmo significado e apresentam uma complexa estrutura conceitual em que a ação é, na verdade, a causa e o significado da expressão fixa é a consequência, ou seja, quem mete o pé/pata na poça ou na argola está “fadado” a se molhar ou se machucar, logo, essa
consequência é uma situação negativa em que a pessoas pode se colocar, ridicularizando-se ou cometendo um erro, respectivamente. (29) P940306-019: E também sabem quando metemos o pé na argola, quando noutras cidades não sabem, continua Starks. P951223-050: Pouco ou nada se falou da zona ribeirinha, mas ficou-se a saber que o social-democrata Flores Morim não gosta que os socialistas digam que ele meteu a pata na poça, nem tão-pouco que se refiram a Cavaco Silva sem lhe colocar antes o senhor professor doutor. P951227-062: Mas o que dizer quando uma srª ministra, Maria João Rodrigues, mete o pé na poça ? O correspondente brasileiro para essas expressões seria meter o pé na cuia. (30) F940211-037: Aí vem alguém e mete o pé na cuia, diz o deputado Roberto Rollemberg, presidente do PMDB paulista, sobre o lançamento da candidatura. Observemos o jogo de causa e consequência presente nestas expressões entre o movimento que está no significado da expressão transparente e o significado final da expressão. A partir deste ponto, o locativo deixa de ter a cavidade interna e passa a ser superficial e/ou um locativo externo, como podemos ver a seguir, embora continue sendo possível “resgatar” o significado original. No caso da expressão (24) meter o pé na Europa (sendo o locativo aberto para qualquer localização geográfica) é acabar de chegar em algum lugar. Evidenciemos a forte marca aspectual do verbo nesse tipo de construção: (31) P951210-047: A capoeira -- arte do ritmo e da ginga afro-brasileira, que nasceu na Bahia no tempo da escravidão, mete o pé na Europa e afirma-se em Lisboa com a presença de mestres brasileiros, empenhados em projectos culturais e sociais nas comunidades. Meter o pé na tábua, à diferença da anterior, é uma expressão fixa, sendo que tábua (somente no interior desta expressão, por um processo metafórico) indica o acelerador de um veículo, ou seja, um lugar sem cavidade interna, mas ao mesmo tempo, um objeto concreto com uma função específica. O significado global é, portanto, o de acelerar muito, com esse traço de intensificação já embutido. (32) F950709-136: [...] levantando poeira as árvores passando de lado zunindo os campos de trigo ficando amarelos para trás o Miranda no outro pára-lama do jipe e o Pereira motorista metendo o pé na tábua de repente um via, mal via, gritava, o Pereira brecava as rodas guinchavam na estrada a gente pulava no chão, o tenente também, depressadepressa de descobrir as minas.a maioria era telermina 42. Expressão tipicamente brasileira, “resgata” o traço “violência/agressividade” típica desta variedade. O locativo não é interno e representa um objeto concreto. O evento também é concreto, mas o que contribui de maneira relevante para a significação final é a junção deste traço + o objeto direto “pé” que nos diz com que parte do corpo foi feito o movimento. A ação é equivalente à de “chutar”, dando a expressão uma intensidade maior do que o verbo correspondendo, informação esta que só pode ser apreendida contextualmente. O “objeto do chute” será representado no sintagma preposicional, onde usualmente, como vimos até aqui, é expresso o locativo. (33) F941021-064: Ninguém meteu o pé na porta das casas e foi atirando.
Como aconteceu nos exemplo (23, 24 e 25 “meter mão na massa, tarefa e obra”), o sintagma preposicional que, originalmente era o locativo, agora passa a ser um evento/processo: estrada e caminho, que podem ser considerados como nome concretos, especificamente neste caso, são tomados como o processo de fazer o percurso representado pelos nomes. O nome pés/pernas (que sempre aparecem no plural) também é entendido metaforicamente como o meio para que o percurso por ser realizado. (34) P940823-090: Também ele meteu os pés à estrada, para entrevistar e gravar nomes esquecidos ou ignorados, e para produzir discos que a história agradece (casos de Furry Lewis, Homesick James, Junior Wells e o rei do cajun, Clifton Chenier; da fabulosa trilogia Chicago: the Blues Today; ou da redescoberta, em 59, de um homem chamado Lightnin'Hopkins). P940520-112: -- Se pode meter pés ao caminho e os investimentos são fundamentais, compre os equipamentos e mande vir os técnicos, nacionais ou estrangeiros, para formar o seu pessoal. P950421-172: Quem estiver interessado em apreciar qual o estado da arte vinícola cartaxense não tem mais que meter pernas ao caminho e ir provar. Afastando-nos bastante da construção original SUJ-V-SN-SP temos uma expressão fixa e culturalmente já bem cristalizada e muito produtiva é meter os pés pelas mãos (ou meter as mãos pelos pés). Ao imaginarmos a cena, podemos logo deduzir o traço [+CONFUSÃO], mas mais do que confundir, a expressão como um todo significa precipitar-se, sobretudo numa ação em que não sabemos o que fazer nem como agir. (35) F950604-113: Se eu ` perdi as estribeiras ao fundamentar-me em fontes tão fidedignas para afirmar que quimbanda na língua dos jagas de Angola era sinônimo de homossexual, FC meteu as mãos pelos pés ao afirmar que ` deturpei os fatos. P940630-092: Incoerente, vaidoso, superficial, sem o mínimo de rigor, meteu os pés pelas mãos relativamente a quase todas as perguntas Com o que o entrevistador o confrontou. Meter o rabo entre as pernas é uma reação típica dos cachorros em sinal de humildade talvez, “humanizado” o gesto é a reação em conseqüência de recuo, rendição, diante de uma situação em que não adianta avançar. Nessa expressão a construção, do ponto de vista formal, também se afasta bastante da original com o verbo “meter” prototípico. (36) P940604-139: Em face da ameaça, os homens da banca raparam da máquina de calcular e concluíram que o melhor seria meter o rabo entre as pernas e fazer um gentlemen agreement com o secretário de Estado. Mesmo não tendo encontrado no corpus nenhuma ocorrência com o sentido concreta de “arranhar”, essa expressão do português europeu, com um locativo semanticamente menos restrito, podendo denotar objeto, evento ou um conceito abstrato, tem o significado de “pegar”, “agarrar”, “tomar para si”. O traço *+POSSE+ fica evidente e é reforçado pela escolha da unha, em vez da mão. (37) P940426-157: Há os que -- a vasta maioria -- se adaptaram humildemente às vantagens económicas do apartheid e nunca meteram uma unha na politica, nem sequer em anteriores votações reservadas a brancos.
P941201-095: Localizado mesmo na franja direita do Storting, o Parlamento norueguês, numa das extremidades da Avenida Karl Johan, é lugar privilegiado para encontros despretensiosos entre jovens jornalistas de cabelo desalinhado ou falas mais reservadas entre políticos, advogados famosos e homens de negócios sempre preocupados em meter a unha nos processos de decisão da democracia norueguesa.
5.
Conclusão
Mostramos aqui o quanto é comum e produtivo esse tipo de extensão semântica com lexemas do campo semântico do corpo humano e com que facilidade os papéis temáticos da estrutura original se “transmutam” em outros papéis, contribuindo semanticamente para que toda a expressão passe a representar novos domínios cognitivos. O núcleo da predicação parece (pelo menos na maioria das expressões isso de fato acontece) deslocar-se do verbo para os nomes que constam nos argumentos internos. Como consequência disso, o sujeito também deixa de ter as características da estrutura argumental prototípica. As expressões formadas sofrem diferentes tipos de extensão semântica, desde uma abstratização os itens lexicais isolados, até a completa idiomatização da expressão, passando por aquisição de traços e mudança do centro da predicação.
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