A criação da política brasileira de saúde integral da população negra: uma análise da dicotomia Estado – sociedade civil
Gilza das MERCÊS SILVA Bacharela em Fonoaudiologia Centro Estadual de Educação Profissional em Saúde Anísio Teixeira gilza15@msn.com
Resumo No Brasil, com o estabelecimento das bases do moderno Estado Democrático de Direito, cresceram também a liberdade de expressão e a democracia das massas, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988. Assim, surgiu no país um novo paradigma, segundo o qual o Estado deve atuar enquanto um promotor da equidade, catalisando demandas e potencialidades sociais diversas. Este estudo visa analisar a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no Brasil, enfocando a ação influenciadora do Movimento Negro para o seu advento. A relação entre Estado e sociedade civil, tradicionalmente caracterizada pela subordinação entre governantes e governados, ganha, nessa análise, um novo enfoque, que identifica as organizações sociais como importantes agentes na elaboração de políticas públicas no campo da saúde, e cujas reivindicações contribuem para desnaturalizar posições de subordinação de determinados grupos sociais e melhorar as condições de vida das populações. Palavras-chave: Saúde da População Negra. Políticas de Saúde. Estado – Sociedade Civil.
Abstract In Brazil, establishing the foundations of Modern Democratic State, also increased the freedom of expression and democracy of the masses, especially after the promulgation of the 1988 Constitution. Thus emerged a new paradigm in the country, according to which the state must act as a promoter of equality, catalyzing various demands and social potential. This study aims to examine the creation of the brazilian health policy for the black population, focusing the action off the Black Movement for its advent. The relationship between state and civil society, traditionally characterized by subordination between rulers and ruled, wins in this analysis, a new approach, which identifies civil society as an important agent in the formulation of public policies on the issue of health, and whose claims contribute denaturalize to positions of subordination of certain groups in society and improve the living conditions of populations. Keywords: Black People Health. Health Politics.
Introdução
O
uso do termo “Estado” foi difundido através da clássica obra de Maquiavel O Príncipe (Bobbio, 1987), e, segundo uma óptica weberiana, pode ser definido como uma organização que exerce o poder supremo sobre o conjunto de indivíduos que ocupam um determinado território, tendo capacidade de influenciar decisivamente a ação e o comportamento das pessoas (sociedade civil) através do monopólio do uso legítimo da força (Coelho, 2009a). A clara separação entre esfera pública (Estado) e esfera privada (sociedade civil) é a marca distintiva das relações das sociedades capitalistas contemporâneas, caracterizada pela subordinação entre governantes e governados, entre detentores do poder de comando e destinatários do dever de obediência (Bobbio, 1987). As prerrogativas das instituições públicas em relação aos agentes privados derivam da assimetria Estado - sociedade civil, pois enquanto aquele representa o todo, esta representa as partes (Coelho, 2009b). Mas, se é verdade que Estado e sociedade civil representam uma díade caracterizada pela assimetria e prerrogativas do primeiro sobre o segundo, também é verdade que a sociedade civil (e, portanto, a esfera privada), pode e influencia a organização do Estado. Assim, a relação do poder público com o privado possui fronteiras móveis: se o primeiro influencia o segundo, o segundo pode e influencia o primeiro (Coelho, 2009b), num processo aparentemente contraditório que Bobbio (1987) chama de estatalização da sociedade e socialização do Estado. Esse processo pode ser claramente observado no Brasil, a partir da década de 80, com o advento das bases do moderno Estado Democrático de Direito e com o desenvolvimento, nesse período, da liberdade de expressão e da democracia das massas, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988 (Leite Júnior, 2009). Assim, emergiu um novo paradigma na Administração Pública brasileira segundo o qual o Estado é um catalisador de potencialidades governamentais e comunitárias, e cuja presença da sociedade civil na gestão pública é fundamental (Keinert, 1994). É dentro desse contexto de intervenção da sociedade civil no Estado que devemos entender a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra de 2007. Trata-se, antes de mais nada, de uma conquista do Movimento Negro, numa luta política que ganha corpo a partir da década de 1930 com a Frente Negra Brasileira (Ministério da Saúde, 2007). O objetivo geral deste trabalho é discutir a criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra brasileira enfocando a ação influenciadora da sociedade civil organizada (Movimento Negro) para a sua implementação. São objetivos específicos: - fazer uma breve análise das condições sociais e de saúde da população negra no Brasil;
- analisar o percurso histórico do surgimento do Movimento Negro e da criação das políticas afirmativas no Brasil; - discutir a Política Nacional de Saúde Integral para a População Negra brasileira enquanto política afirmativa no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Breve análise das condições sociais e de saúde da população negra brasileira A política de escravização da população negra marcou um longo período da história brasileira: desde o Período Colonial iniciado, em 1530, até às vésperas da Proclamação da República, em 1889. Como consequência, cento e vinte e três anos após à abolição da escravatura, grandes diferenças raciais ainda marcam praticamente todos os campos da vida social no país (Jaccoud, 2008). Seja no que diz respeito à educação, saúde, renda, acesso a empregos estáveis, violência ou expectativa de vida, os negros estão submetidos às piores condições, constatação feita por órgãos reconhecidamente importantes no Brasil, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Albuquerque e Fraga Filho, 2006; Jaccoud, 2008). Os negros dos dois sexos adoecem e morrem mais do que os brancos pois o meio em que vivem aliado a seu baixo nível de renda, tando individual quanto familiar, determinam maior vulnerabilidade (Lopes, 2005). Representam 66% da população pobre e 70% da população extremamente pobre. Em média, estudam 4,7 anos, enquanto a média de estudos da população branca é de 6,9 anos. (IPEA, 2000). O risco de uma criança negra morrer antes dos 5 anos por causa das doenças infecciosas ou parasitárias é 60% maior do que uma criança branca, e o risco de uma pessoa negra morrer por causa externa é 56% maior do que o de uma pessoa branca. As pessoas de cor preta ou parda têm, ainda, 70% mais risco de morrer por tuberculose, por exemplo (Ministério da Saúde, 2005). Algumas doenças têm maior prevalência nessa população devido às suas condições sociais desfavoráveis, como a desnutrição, a anemia ferropriva, doenças do trabalho e DST/HIV/AIDS. Outras afecções têm uma evolução agravada ou tratamento dificultado especialmente nesse grupo, como diabetes melito tipo II, hipertensão arterial, miomas, coronariopatias, insuficiência renal e câncer (Ministério da Saúde, 2007). Ademais, os indivíduos de cor preta e parda têm, ainda, que lutar contra a invisibilidade de suas doenças geneticamente determinadas, como a anemia falciforme e deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase (Kalckmann et al., 2007; Ministério da Saúde, 2007) O racismo institucional em saúde afeta preponderantemente as populações preta, parda e indígena, aumentando ainda mais a vulnerabilidade desses grupos populacionais e ampliando as barreiras para o acesso à saúde. A não inclusão do quesito “cor” nos aparelhos de informação, a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a baixa qualidade da atenção, assim como o restrito acesso aos insumos, determinam diferenças importantes nos perfis de adoecimento e morte entre brancos e negros no Brasil. Estudos nacionais e internacionais evidenciam, ainda, interações entre desigualdades raciais, sociais e de gênero que complexificam ainda mais o tema (Kalckmann et al., 2007).
História do Movimento Negro no Brasil No Brasil, as demandas de raça e classe ganharam projeção na arena política nacional a partir de 1931, com a criação, em São Paulo, da Frente Negra Brasileira (FNB), uma das maiores entidades não governamentais do Movimento Negro, e o primeiro grande marco de participação do negro na vida política do país (Ministério da Saúde, 2007; Velasco, 2009). A partir de 1902, já era possível encontrar associações, grêmios e clubes de negros nas principais cidades do Brasil, mas suas ações eram de cunho assistencialista, recreativo e cultural e, em muitos casos, sequer discutiam questões raciais. Em 1926, porém, foi criado o Centro Cívico Palmares (CCP) idealizado por Antônio Carlos, um sargento da Força Pública de Campinas. O CCP pode ser visto como um precursor da Frente Negra Brasileira, pois propunha, para além de ações recreativas, a consciência política e a auto valorização dos negros. Esta organização foi extinta em 1929 , porém seus princípios não foram esquecidos. Alguns de seus membros levaram a frente as ideias de Antônio Carlos e, em 1931, criaram a Frente Negra Brasileira, sob a presidência de Arlindo Veiga dos Santos. Essa entidade acabou se constituindo como um movimento de caráter nacional com repercussão internacional (Domingues, 2007; Domingues, 2008; Velasco, 2009). Com o amadurecimento dos seus militantes, a FNB se transformou num forte instrumento de combate ao racismo no começo do século XX, e seus núcleos podiam ser encontrados em diversos estados. A organização foi transformada, em 1936, numa legenda partidária de grandes ambições políticas, e a tática era a tomada do poder pela via eleitoral. Os militantes pensavam em lançar, inclusive, candidatos a presidente que representassem o interesse da comunidade negra, mas, quando as ações iriam ser colocadas em prática, a FNB foi extinta por um decreto de 1937, no qual Getúlio Vargas, então presidente do Brasil, colocou na ilegalidade todos os partidos políticos do país, alegando a possibilidade de um golpe de Estado e instaurando, assim, uma ditadura que durou 8 anos (Domingues, 2007; Gomes, 2007). Durante os anos de vigência da ditadura varguista (1937-1945), a forte repressão do Estado inviabilizou o sucesso de qualquer movimento contestatório. No final deste período surge em Porto Alegre, porém, uma entidade cujas reivindicações eram muito próximas às da FNB, a União dos Homens de Cor (UHC). De caráter claramente expansionista, a UHC era dotada de uma complexa estrutura organizativa, atingindo, na segunda metade da década de 40, dez estados brasileiros (Domingues, 2008; Gomes, 2007). Mas, outra ditadura instaurada no país em 1964, dessa vez sob a égide dos militares, desarticulou a luta política do Movimento Social Negro. Sob forte repressão do Estado, a discussão racial foi praticamente banida no país e seus líderes lançados na clandestinidade. Seus militantes eram estigmatizados e acusados pelos militares de criar um problema que supostamente não existia, o racismo no Brasil. Nesse período, o Estado ultranacionalista e conservador propagava o mito da democracia racial, segundo o qual discriminação, preconceito e racismo eram práticas desconhecidas no país (Domingues, 2007).
A luta política do Movimento Negro brasileiro só voltou a vigorar no final da década de 70, quando outros movimentos sociais como o feminista e o LGBT entram em cena no país (Domingues, 2008) e no mundo (Albuquerque e Fraga Filho, 2006). Nesse período, surge inúmeros movimentos sociais que lutavam pela melhoria da qualidade de vida da população negra e pelo fim das políticas de segregação racial em âmbito internacional, com destaques para a África do Sul e os Estados Unidos da América (Albuquerque e Fraga Filho, 2006; Ministério da Saúde, 2007). Fortemente influenciados pela militância negra norte-americana, por movimentos de libertação dos países africanos, especialmente os de língua portuguesa, e por uma ideologia marxista de orientação trotskista, a luta política brasileira durante a Ditadura Militar ganha novos rumos com a criação, em 1978, do Movimento Negro Unificado (MNU) (Albuquerque e Fraga Filho, 2006; Domingues, 2007). Trata-se da mais importante organização negra da década, e, dentre as suas reivindicações estavam a introdução dos temas “história da África” e “história do negro no Brasil” nos currículos escolares, enfrentamento da violência policial e a busca de apoio internacional (Domingues, 2008). A partir da década de 80, e, principalmente com a redemocratização do país, iniciou-se uma tendência de atomização e regionalização que implicou na dissolução do MNU e na multiplicação de vários grupos de atuação local. Na década de 90, observamos uma nova tendência no Movimento Negro brasileiro: a especialização em áreas como educação, saúde reprodutiva e empresariado e, na atual conjuntura, a principal tendência é impulsionar a campanha por ações afirmativas (Domingues, 2008).
A origem do atual sistema de saúde brasileiro O Sistema Único de Saúde (SUS), atual sistema de saúde brasileiro, começou a ser modelado num processo iniciado nos anos 70 que se acelerou na década seguinte, adquirindo status constitucional em 5 de outubro de 1988 e regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde em 1990. Ele é resultado de um processo interno que envolve forte densidade política e social, realizado em meio a amplos debates envolvendo a imprensa, sindicados, instituições de ensino e pesquisa e movimentos sociais, mas também sofreu influência do modelo internacional que ficou conhecido como welfare state (Carvalho e Barbosa, 2010). Até o final da década de 1980, a definição de direitos sociais estava restrita à sua vinculação ao sistema previdenciário, sendo definidos como cidadãos brasileiros somente aqueles indivíduos pertencentes às categorias ocupacionais reconhecidas pelo Estado e que contribuíam para a Previdência Social. O modelo de saúde vigente no país era, pois, o de seguro social, com ênfase na atenção médica curativa e no hospitalocentrismo (Carvalho e Barbosa, 2010). Por ter priorizado a medicina curativa, os seguros de saúde presentes no país a partir de 1919 foram incapazes de solucionar os principais problemas de saúde coletiva, como as endemias, as epidemias, e os indicadores de saúde (mortalidade infantil, por exemplo), principalmente na população mais carente. Os aumentos constantes dos custos da medicina centrada na atenção médica-hospitalar e a incapacidade do sistema em atender a uma
população cada vez maior de marginalizados, sem carteira assinada e sem contribuição previdenciária e que se via excluída do direito à saúde, provocaram uma grave crise no setor saúde brasileiro (Carvalho e Barbosa, 2010; Polignano, 2011). A luta pela redemocratização e a promulgação de uma nova Constituição em 1988 permitiu, pois, a criação de um modelo de saúde descentralizado e com participação popular, que inaugura, então, o paradigma da seguridade social. Trata-se, antes de mais nada, de um modelo inovador, com a proposta de lançar novas bases institucionais, gerenciais e assistenciais para o provimento das ações e serviços de saúde no país (Carvalho e Barbosa, 2009), que enfatiza a prevenção e a promoção da saúde sem prejuízo das ações assistenciais e no qual a saúde é vista como um direito de todo e qualquer cidadão e um dever do Estado (Brasil, 1988).
Movimento Negro e saúde A nova institucionalidade do setor saúde brasileiro começou a ser desenhada em 1986, por ocasião da VIII Conferência de Saúde. Nessa conferência foram estabelecidos os fundamentos e diretrizes do futuro SUS, e todo o processo que a envolveu possibilitou mudanças profundas no setor de saúde no Brasil (Carvalho e Barbosa, 2010). O Movimento Negro participou ativamente ao lado de outros movimentos, em especial o Movimento pela Reforma Sanitária, do processo de elaboração de propostas em saúde pública e, em 1988, garantiu o acesso universal à saúde no texto constitucional (Ministério da Saúde, 2007) sendo, portanto, corresponsável pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Até então, grande parte da população negra brasileira estava privada do acesso à saúde graças à sua atuação marginal no mercado de trabalho. Na década de 90, o governo federal passou a se ocupar do tema “saúde da população negra” após as reivindicações da Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em 20 de novembro de 1995, o que resultou na criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra (GTI), e do Subgrupo Saúde. Em 1991, o GTI organizou a mesa redonda que obteve como resultados a introdução do quesito ''cor'' no Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC), a elaboração da Resolução 196/96 que introduziu o recorte racial em todas as pesquisas com seres humanos, e a recomendação de implantação de uma política nacional de saúde para as pessoas com anemia falciforme (Ministério da Saúde, 2007). Graças à atuação do Movimento Negro brasileiro nas Conferências Nacionais de Saúde de 2000 e 2003, foram aprovadas propostas para o estabelecimento de padrões étnico-raciais e de gênero na política de saúde no Brasil. Em 2003, é criada a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), com status de ministério. Em 2004, foi criado o Comitê de Trabalho Saúde da População Negra (CTSPN) após o I Seminário Nacional de Saúde da População Negra. Entre 2005 e 2006, após diversos encontros, debates e reuniões, foi aprovada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e, em 2006, a realização do II Seminário Nacional de Saúde da População Negra, no qual o Ministério da
Saúde reconheceu a existência de racismo institucional nas instâncias do SUS (Ministério da Saúde, 2007).
Ações afirmativas e saúde:debates e tendências A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, criada em 2007, tem como objetivo geral promover a saúde integral da população negra, priorizando a redução das desigualdades étnico-raciais, o combate ao racismo e à discriminação nas instituições e serviços do SUS, possuindo como marca o reconhecimento destes como determinantes das condições de saúde com vistas à promoção da equidade em saúde (Ministério da Saúde, 2007). O advento de políticas compensatórias para a população negra no Brasil só se tornou possível porque o Movimento Negro abandonou sua perspectiva culturalista e passou a adotar a esfera política como espaço de ação (Domingues, 2008). Analisando a dicotomia instituição – organização derivada da díade setor público – setor privado, constatamos que o Movimento Negro tem caráter de organização. Trata-se, assim, de um movimento auto referenciado, que possui missão e objetivos auto atribuídos por seus membros. Possui inteira autonomia (respeitando, claro, os limites legais) e liberdade para expandir, retrair, diversificar e reorientar suas atividades, ou até mesmo se dissolver. Tem interesses próprios que podem variar com o tempo e metas a serem perseguidas para benefício dos seus próprios membros (Coelho, 2009b). Os direitos sociais no Brasil, em todos os campos e esferas, tem sido sempre uma resultante do poder de luta e reivindicação populares, e nunca uma dádiva do Estado (Polignano, 2011). Assim, podemos, ainda, caracterizar o Movimento Negro enquanto ator político não governamental que, a partir de inputs ativos de demanda (manifestações, abaixo-assinados, marchas, eleições de representantes, etc) conseguiu transformar demandas reprimidas (''estados de coisas'' ou, ainda, ''não decisões'') relativas às condições de vida e saúde da população negra, em um problema político a ser incluído na agenda governamental. Em geral, só a percepção de um ''mal público'' desencadeia a ação política (Rua, 2009) e a percepção por parte do Estado brasileiro das iniquidades raciais em saúde só foi possível graças a essa militância. Mas, a inclusão de um tema na agenda governamental não quer dizer que vá se tornar uma política pública, e a probabilidade disso acontecer depende de withinputs favoráveis dentro do sistema político (Rua, 2009). Até o início da década de 80 as políticas públicas no Brasil se caracterizaram pela centralização na esfera federal, com poucos mecanismos de articulação Estado - sociedade. Com a democratização do país a agenda de reforma definiu como eixos a descentralização e a participação dos cidadãos na formulação e implementação das políticas (Farah, 2001, apud Rua, 2009). Assim, se por um lado tivemos a influência de organizações negras no advento dessa política de saúde, por outro, os withinputs e outputs positivos de um Estado agora democrático permitiram o seu advento. Logo, concluímos que a democracia teve um papel chave nesse processo. Como as políticas universais têm se revelado insuficientes frente ao enfrentamento da discriminação e desigualdade raciais, a implantação de políticas específicas apresenta-se
como uma exigência incontornável na construção de um país com justiça social (Jaccoud, 2008). Elas advém da necessidade de promover a representação de grupos inferiorizados na sociedade e conferir-lhes uma preferência a fim de assegurar seu acesso a determinados bens, econômicos ou não (Moehlecke, 2002). Visam tanto a igualdade de oportunidades como o combate às desigualdades não justificáveis, denunciando e desnaturalizando a posição subordinada de determinados grupos sociais (Gomes apud Jaccoud, 2008). Mas, com o nascimento das políticas de promoção da igualdade racial, se intensificaram também os debates acerca da sua constitucionalidade e legalidade. Aqueles que percebem tais políticas como privilégios atribuem-lhes um caráter inconstitucional, uma espécie de discriminação ao avesso, o que também contribuiria para a inferiorização do grupo supostamente beneficiado. Para os que as entendem como um direito, entretanto, esse tipo de política compensatória estaria de acordo com os preceitos constitucionais, à medida que procura corrigir uma situação real de discriminação. Não constituiriam uma discriminação porque seu objetivo é justamente atingir uma igualdade real e não fictícia. A convicção que se estabelece na Filosofia do Direito, de que tratar pessoas desiguais como iguais amplia a desigualdade entre elas, expressa uma crítica ao formalismo legal e também tem fundamentado juridicamente as políticas de ação afirmativa em âmbitos nacional e internacional (Moehlecke, 2002).
Conclusões Para além da díade esfera pública - esfera privada, o paradigma atual da administração pública brasileira e internacional exige dos gestores a capacidade de gerenciar democraticamente a participação da sociedade civil no Estado, numa busca incessante pelo bem comum através da inclusão de partes historicamente invisíveis. Diversos atores sociais com interesses muitas vezes conflitantes estão envolvidos no processo de elaboração de políticas públicas, mas a inclusão de demandas provenientes de minorias éticas, sexuais e de gênero na agenda governamental representa uma mudança tanto na atuação do Estado enquanto detentor supremo do poder de comando, quanto uma redução no seu papel enquanto legitimador da classe dominante. A luta travada pelo Movimento Negro no Brasil a partir da década de 30 representa, assim, a socialização do aparelho estatal frente às demandas de cor e raça, num país que se intitulava como racialmente democrático. Seu papel foi escancarar a existência do racismo e de disparidades étnico-raciais gritantes, e mostrar que uma política que se baseia em critérios unicamente sociais para responder a disparidades de ordens racial e social é incapaz de solucionar de modo eficiente a discriminação racial na sociedade. A criação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no Brasil é, assim, a culminância de uma luta permeada por vários avanços e retrocessos históricos e que triunfou mesmo o Movimento Negro tendo se formulado, reformulado, se diluído, ressurgido e se atomizado. A institucionalização das demandas de raça vem contribuindo para melhorar a qualidade de vida e saúde das populações afro-descendentes no Brasil, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido para a efetivação da Reforma Sanitária Brasileira e para
implantação de um Sistema Único de Saúde verdadeiramente universal, integral e equânime. É apenas o começo, mas vários passos já foram dados. A luta continua.
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