A lona: um espaço vivo Célida Salume MENDONÇA Doutora em Artes Cênicas Departamento de Técnicas do Espetáculo da Escola de Teatro Universidade Federal da Bahia - UFBA - BRASIL e-mail: celidasm@gmail.com
Resumo O texto reflete sobre a prática do professor de teatro inserido no contexto do sistema público de ensino. A experiência relatada é fruto de um processo de criação teatral desenvolvido com alunos da 4ª série, em uma escola pública da cidade de Salvador no ano de 2007, por ocasião de minha pesquisa de doutorado. Nas práticas teatrais instauradas, uma lona transforma a sala de aula em um espaço vivo, um lugar onde o corpo se descobre. A lona que atuava de certa forma, como o tapete utilizado pelo encenador Peter Brook, como um lugar de jogo, de ludicidade, redimensionou o espaço escolar, dispensando a utilização de carteiras. O processo teve início com propostas coletivas de dança e música que inauguravam um espaço poético. A chegada da lona convertia-se num momento cênico que preenchia a sala alterando a atmosfera habitual. Trabalhar com elementos concretos mobilizou os alunos, ajudando-os a reagir às experiências propostas, confirmando a função da materialidade no processo criativo. A pesquisa dialoga com o pensamento de Jean-Pierre Ryngaert, Peter Brook e Michel Maffesoli, apontando possibilidades concretas de democratização do acesso à arte. Palavras-chave: ensino de teatro, processo criativo, escola pública, espaço, materialidade.
Abstract This paper discusses the execise of drama teachers placed in the context of the public school. The reported experience is the result of a process of theatrical creation designed together with students in the 4th grade in a public school in Salvador-Brazil in 2007, subject of my doctoral research in the Theatre Graduate Program at the Federal University of Bahia. In the theatrical practices introduced, a large plastic mesh cover transforms the classroom into a living space, a place where the body is discovered. The cover that acted in a way, as the canvas used by director Peter Brook, as a place of play, playfulness, resized the school environment, eliminating the use of desks. The process began with collective proposals of dance and music inaugurating a poetic space. The introduction of the canvas was transformed into a scenic moment that filled the room by changing the usual atmosphere. Working with concrete elements mobilized the students, helping them to respond to the proposed experiments, confirming the role of materiality in the creative process. The research exchange ideas with the thoughts of Jean-Pierre Ryngaert, Peter Brook and Michel Maffesoli, pointing out concrete possibilities for democratizing access to art. Keywords: teaching theater, creative process, public school, space, materiality.
Dançar, cantar de alegria, representam condutas simbolicamente aproximativas, encantamentos. Através delas, o objeto – que não se poderia ter realmente senão por condutas prudentes e apesar de tudo difíceis – é possuído de uma só vez e simbolicamente. Jean-Paul Sartre
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ia chuvoso. Nenhuma área externa coberta. Uma turma de 4ª série do ensino fundamental: quarenta alunos1. A primeira aula de teatro era aguardada por todos. Na área interna da sala de aula mal havia espaço de circulação entre as carteiras. A saída seria então esvaziar a sala tirando tudo que obstruísse o espaço. Como em uma brincadeira, um grupo de alunos começa a retirar as carteiras da sala organizando-as no pátio. Em minutos, o espaço é transformado e devorado. A sala está finalmente vazia. Enquanto isso, outro aluno que me observa limpar a lona na área externa lança-se sobre ela deslizando com o pano umedecido, dando continuidade ao trabalho. Outros tentam unir-se a ele e são repreendidos pelos colegas com o alerta de que devem tirar antes os calçados. Instantes depois, a lona era erguida por vários corpos remetendo a imagem de uma enorme centopéia que invadia a sala. A entrada da lona convertia-se num momento cênico com o seu volume no ar, em movimento, preenchido pelos corpos livres dos alunos. O espaço estabelecido induzia ao jogo. Nesse sentido, Jean-Pierre Ryngaert fala sobre a possibilidade de recarregar os espaços: Por vezes, os espaços institucionais onde nos instalamos são excessivamente carregados de sentido pelos participantes que vivem e trabalham neles. É ainda mais apaixonante desconstruí-los e aproveitar todos os cruzamentos de sentidos que aparecem. O jogo é um meio de “recarregar” os espaços. (Ryngaert, 2009, p.128)
Instaurar um novo lugar, novo esteticamente e novo na relação desses corpos “soltos” no espaço – parecia emergente. A lona era deitada no chão da sala. O enquadramento desse espaço instigava os corpos a se situarem e se expandirem dentro dele. A lona atuava de certa forma, como o tapete utilizado por Peter Brook, como zona de ensaio, como espaço de jogo – um lugar inaugural para um grupo de alunos que, praticamente, nunca tinha tido semelhante oportunidade de transgredir o espaço da sala de aula. As primeiras imagens dos alunos sobre a lona se aproximam de um verdadeiro playground, expressão utilizada pelos críticos ao descreverem a zona de atuação proposta por Peter Brook (2000, p.101): Posteriormente, para grande alegria nossa, alguns críticos chamaram este espaço de playing field, expressão que se usa na Inglaterra somente para esportes, ou playground, nome que se dá ao pátio de recreio numa escola, dois termos que correspondem exatamente ao que pretendíamos desde o início – um lugar para o jogo cênico ou, em outras palavras, um lugar em que o teatro não pretendesse ser nada mais que teatro.
Mesmo que aparentemente caótico, o espaço instaurado pela lona passou a dar vida àquele lugar onde se iniciava uma nova maneira de lidar com o corpo. No princípio era apenas o êxtase: algumas meninas ficavam de lado, olhando desconfiadas, enquanto os meninos viravam cambalhotas, estrelas, saltavam, reproduziam golpes de luta, passos de capoeira. Ou ainda, atravessavam a lona carregando os colegas ou arrastando-os pelo espaço. As 1
A idade dos alunos envolvidos variou em torno de 10 e 15 anos, retratando, deste modo, o nível de repetência na turma. A carga horária disponibilizada foi de 1hora/aula semanal.
paredes da escola continuavam descascadas e mal pintadas, mas a sala era transformada em um espaço vivo. Para Peter Brook o que determina a diferença de um espaço vivo e um espaço morto é justamente a maneira como as pessoas que estão neste lugar se colocam um em relação ao outro. Mas o que efetivamente acontece nessa sala de aula? Uma aula de teatro demanda essa transformação do espaço? Não podemos pensar no ensino de Arte, sem pensar nas relações entre corpo e espaço na escola e na distribuição dos indivíduos nesse espaço. Nas aulas de Arte – Teatro, o corpo é chamado a atuar de maneira diferenciada ao que está acostumado em outras disciplinas. Cada corpo é provocado e tocado de infinitas maneiras, podendo expressar uma diversidade de pensamentos, sentimentos, sensações. A aula possibilita aos participantes ao mesmo tempo uma experiência sensível, uma experiência artística e uma nova relação com o mundo. Infelizmente o aluno não está habituado a lidar com essa liberdade, a sair da sala, a jogar com o espaço vazio, pois o que encontramos nas escolas públicas, em sua maioria, é a pedagogia tradicional das primeiras décadas do século XX (a metodologia do quadro e giz, aula expositiva e reprodução). Uma pedagogia que se concentra em questões técnicas e de organização. Muitas escolas vêm praticando ainda a subordinação em detrimento das atitudes de autonomia. Na escola, o corpo está disciplinado em relação ao espaço; e o prazer, muitas vezes, não faz parte da aprendizagem. Os estudantes têm a hora certa de falar durante a aula, tem a posição correta de sentar na cadeira, não devem sair do lugar, nem conversar. Iniciar um processo teatral na escola implica em trabalhar com alunos que não se olham, que não conhecem os colegas pelo nome, que não se tocam, que não saem de suas carteiras, e raríssimas vezes realizaram atividades em grupo. Mesmo antes de iniciar concretamente a aula, no que se refere às atividades planejadas, a maioria dos alunos encarava cada etapa como parte de um jogo de desconstrução desse espaço, o que possibilitou, de certa forma, destruir a estabilidade vigente. Entre as características fundamentais do jogo apontadas pelo sociólogo francês Roger Caillois (1990), identificamos em uma delas, o ilinx2, na reação desses alunos. Na movimentação já mencionada anteriormente onde os alunos viram estrelas, giram, correm em círculo, derrapam pela lona, a perturbação provocada pela vertigem não é gratuita, é procurada. Caillois sugere que essa vertigem está associada ao gosto, muitas vezes reprimido, pela desordem e pela destruição. Em todos os casos, trata-se de atingir uma espécie de espasmo, de transe ou de estonteamento que desvanece a realidade com uma imensa brusquidão. [...] Cada criança sabe também que, ao rodar rapidamente, atinge um estado centrífugo, estado de fuga e de evasão, em que, a custo, o corpo reencontra o seu equilíbrio e a percepção a sua nitidez. [...] Gritar até a exaustão, rolar por uma ladeira, o toboggan, o carrocel, se andar suficientemente depressa, e o baloiço, se for suficientemente alto, provocam sensações análogas. Há vários procedimentos físicos que as provocam: o volteio, a queda ou a projecção no espaço, a rotação rápida, a derrapagem, a velocidade, a aceleração de um 2
“(...) proponho o termo ilinx, nome grego para o turbilhão das águas e de que deriva precisamente, na mesma língua, o designativo de vertigem (ilingos).” (Caillois, 1990, p.45)
movimento rectilíneo ou a sua combinação com um movimento giratório. (Caillois, 1990, p.43-44)
Passada a novidade, a descoberta e o êxtase em dissipar aquele novo espaço, iniciamos a aula. Antes da primeira orientação, todos foram parabenizados pela organização da sala. Inicialmente pedi que tentassem ocupar o maior espaço possível com o corpo e depois o menor espaço possível, mostrando e fazendo junto com eles, o que é apontado como essencial pelas pesquisadoras: “Na nossa experiência como professoras, descobrimos que é muito necessária a participação plena do professor em aula. Ele deve tocar nas crianças, dançar e cantar com elas: ele, inclusive, é uma referência espacial para elas.” (Rengel e Mommensohn, 1992, p.108). O exercício de ocupação do espaço era feito primeiro com os alunos de pé e depois deitados. Considerando o tamanho da turma, antecipei que pudessem esbarrar um no outro, o que acabaria gerando brigas, mas a maioria do grupo realizou a atividade com absorção e comprometimento. O exercício é proposto no intuito de ajudar o atuante a perceber o espaço cênico, agir nele e assimilar o espaço circunvizinho. Na sequência, rolei por toda a extensão da lona e pedi que eles rolassem um por vez com os braços estendidos ao longo do corpo, esperando que o colega chegasse até o final do trajeto, antes de iniciar percurso. Segui orientando os movimentos e participando com o grupo. A entrada do professor no jogo é defendida também por Flávio Desgranges (2006, p.98): A sua participação, entrando vez ou outra no jogo, intensifica a relação com os demais integrantes do grupo, possibilitando que estes percebam e se contagiem com o seu prazer em participar das atividades. (...) Uma relação diferente se estabelece, pois desmistifica a figura do coordenador no grupo, aproximando-o dos demais integrantes, que se sentem mais à vontade para jogar.
Os alunos me olhavam como se não pudessem acreditar que tal atividade fizesse parte de uma aula. Por fim, sentaram-se ao redor da lona. Coloquei vários tecidos ao centro e expliquei que seriam entregues um a um, para que dançassem ao som das músicas do Cirque du Soleil. A condução da atividade em etapas e a mediação constante do professor contribuem para o estabelecimento de uma atmosfera favorável a proposta. Enquanto selecionava as músicas eles amarravam os tecidos no corpo, na cabeça, se escondiam embaixo deles ou, ainda, enfeitavam os colegas. Com o início da atividade eles brincavam, dançavam, desfilavam pela sala, vibravam com o corpo e o olhar. Lenira Rengel e Maria Mommensohn (1992) em O Corpo e o conhecimento: dança educativa falam sobre a função criativa e socializante da dança: A dança, enquanto processo de autoconhecimento (do corpo, de seus limites e de suas possibilidades) e instrumento de efetivação das relações sociais, leva o indivíduo a experimentar novas possibilidades no plano do exercício de criação e de integração de um grupo. Ela atua como elemento transformador, pois, sem dúvida, promove em quem dela participa a aceitação de si mesmo e uma maior receptividade nos relacionamentos com os outros, mediante o envolvimento que se estabelece num trabalho prático. (Rengel e Mommensohn, 1992, p.102)
Seus gestos concretizavam o conteúdo cultural de cada um. A dança traduzia a música em imagens, em movimento, tornando o som visível, palpável. Suas falas acompanhavam cada movimento. Seus corpos engoliam de uma só vez todo o espaço. A comunicação que surgia no momento de criação interagindo com o outro, gerava atrito. De repente, um dos alunos conclui: “- Agora já virou bagunça professora!” No pátio, o lanche já desfilava na mão das outras crianças e alguns começavam a ficar inquietos. Suspendi a música, congelei e pedi que ficassem paralisados até que ela recomeçasse. Com o movimento externo alguns haviam dispersado da atividade, mas considerei que seria importante continuar até concluir. Retomamos a dança com os tecidos e por fim, orientei para que os colocassem de volta no centro da lona, em câmera lenta, um por vez. Prosseguimos após o intervalo recuperando um exercício feito em outro encontro, no qual o pau de chuva tinha sido transformado em vários objetos com diferentes funções, como uma luneta, uma bengala, um violão. O mesmo jogo seria realizado agora com os tecidos, o que se converteria em desafio para o grupo, pois as imagens não deveriam remeter apenas a maleabilidade do material, podendo ser, por exemplo, um livro, uma janela, o mar ou um barco. A presença de tecidos em exercícios e no processo improvisacional, possibilita que este seja experimentado, trazendo a tona suas possibilidades como elemento cenográfico, adereço ou figurino. Para Renato Ferracini, ator/pesquisador do grupo Lume: “a dinâmica com objetos propõe uma nova forma de mergulho: a partir de estímulo externo” (Ferracini, 2003, p.197). Assim, a mobilização dos alunos no fazer teatral também é alimentada pela multiplicidade da materialidade, diversidade de signos e o cruzamento desses com o contexto dos alunos. É precisamente porque a imaginação inventa, constrói com materiais extraídos da realidade, que o aluno/atuante, para nutrir a sua imaginação e aplicá-la às situações propostas, deve poder experimentar um ambiente rico de impulsos e de estímulos, alargando assim seu repertório e um olhar estetizado. A riqueza desses elementos, o acúmulo de experiência, a capacidade de interagir com os outros e com o espaço, juntamente com o domínio das convenções teatrais, são alguns dos princípios necessários para que se possa revelar um processo criativo que viabilize uma aprendizagem teatral orgânica. Essa capacidade de interagir implica em considerar a experiência instaurada como positiva, independente dos riscos a que ela nos exponha. Diante das primeiras propostas orientadas sobre a lona, três movimentos se evidenciaram no grupo: um primeiro de querer fazer e abraçar a novidade, um segundo de se ver exposto e recuar e um terceiro de agitação geral, não sabendo o que fazer com tanta liberdade. A lona chegava à escola como possibilidade de transformar e redimensionar esse espaço. É evidente que quando os alunos se defrontam com esse novo signo, não reconhecem nele uma área delimitada para a prática teatral, mas sim um lugar em que as relações corpo X espaço e eu X outro, mostra-se extremamente diferenciada do que lhes é oferecido cotidianamente na escola. Um lugar onde, de certa forma, quase tudo é permitido. Um lugar onde o corpo se descobre, se expõe, como bem descreve a professora Carmela Soares (2006, p.98): “Corpos inertes na cadeira, tão jovens e tão sem esperança. A alegria das descobertas explode no prazer de jogar, na curiosidade e no desejo de fazer. Tantas subjetividades em jogo, tantos desejos ocultos, tantos medos, fantasmas e modelos incorporados”. No processo desenvolvido com os alunos dessa turma de 4ª série, imagens e músicas
serviram como ponto de partida para a definição da situação dramática. As atividades que recorreram à música como estímulo, sugerindo sensações, emoções e uma variedade de contextos contribuíram para criar uma atmosfera para a cena. Essa atmosfera viabilizada através do espaço instaurado pela lona tem o jogo como seu principal instrumento. O sociólogo francês Michel Maffesoli nos lembra que o jogo é totalmente efêmero e independe de julgamentos e hierarquias, podendo ser ao mesmo tempo sério e lúdico - é a expressão autêntica de um querer viver fundamental. Para Maffesoli, o jogo e a brincadeira são as coisas do mundo mais bem partilhadas – uma comunhão de emoções e sensações. Ele sugere ainda que a própria vida seja feita de jogo, de encenação, dos acontecimentos de cada dia, como a chegada desta lona na sala de aula. Esses acontecimentos, essas realizações é que ligam uns aos outros constituindo uma espécie de cimento social. O caráter lúdico sugerido por esse espaço renovado, o encontro que ele viabiliza sugere um lugar de troca, de circulação de afetos - uma ética da estética - o que nos permite estar juntos. Para Maffesoli, o lúdico é também uma maneira da sociedade se expressar: “O lúdico não é, portanto, um divertimento de uso privado, mas fundamentalmente o efeito e a consequência de toda socialidade em ato”. (20005, p.55) É, portanto, necessário. Quase todos os termos utilizados pelo autor remetem à comunicação e à estética como compartilhamento de uma emoção: socialidade, estar-junto, laço social, cultura do sentimento, cimento social. A comunicação, a cultura vivida no dia a dia também constitui esse cimento essencial. Comunicar é relacionar-se com o outro, é viver a cada dia a pluralidade de pessoas de que cada um é constituído. Comunicar é passar de identificação em identificação, fora da noção de identidade imutável. Durante os encontros com as crianças, o tema Identidade perpassava as atividades propostas, através das histórias contadas por seus familiares e recontadas por eles, através de uma fala musicada do poeta baiano Wally Salomão, de uma roda de samba com músicas do Bloco Afro Okanbi3 e através de minha própria identidade. Mostro inicialmente uma música com ritmo relacionado à cultura árabe e outra relacionada à cultura africana. Ao ouvirem a segunda música, um dos alunos a reconhece, mencionando o curso de dança afro oferecido pela Fundação Pierre Verger - instituição cultural do bairro. Músicas árabes, músicas africanas e músicas de diferentes etnias faziam transpirar na sala uma multiplicidade de imagens. A música sempre esteve presente no trabalho de encenadores contemporâneos. Para Peter Brook (2000, p.25), “na maioria das formas de teatro de rua e de teatro popular a música desempenha uma função essencial ao aumentar o nível de energia”. Os alunos dançavam e se movimentavam, cada um a seu modo, no ritmo da música e congelavam quando o silêncio gerado pela mudança de uma música para a outra, suspendia por segundos a ação. A participação do grupo crescia, conquistando os que ainda não haviam se exposto; mas em questão de minutos a coreografia transformava-se no empurra-
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O Bloco Afro Okanbi nasceu e tem sua sede no bairro em que se encontra a escola onde foi instaurada a experiência teatral.
empurra acompanhado de socos4 lembrando o Carnaval de Salvador, característico de quem segue os trios elétricos e alguns blocos de axé, samba reggae e pagode. Um dos alunos transitava entre permanecer e sair da atividade, provocando os colegas envolvidos. Os focos de briga eram considerados reflexo de uma vibração em comum, o que faz parte inicialmente do estabelecimento desse novo laço social. Nessas situações a mediação do professor é de extrema importância, retomando a atividade e seu objetivo, sem focar somente a atenção no aluno que tenta desconstruir a proposta. Para Madalena Freire (2008, p.113): “Em todos esses movimentos, a presença do educador é indispensável. Como mediador que instiga, limita e acompanha (intervindo, encaminhando, devolvendo) os passos desse processo”. A violência está presente no cotidiano dos alunos de diferentes formas. Em conversa com a professora da turma, fico sabendo que no ano anterior, por determinação da direção, os alunos não tinham um período para recreio. A iniciativa tinha o intuito equivocado de minimizar as agressões entre as crianças. A atmosfera de violência frequente no bairro era retratada no depoimento dos alunos: “Aqui no bairro tá tendo tiroteio no largo e já mataram dois. Ontem tinha sete viaturas aí. Pegaram um menino daqui da escola ali em cima e deram um baculejo nele. A polícia disse que depois de oito horas não quer ver nenhum menino lá em cima”. A situação de pobreza da maioria das famílias obrigava ainda as crianças a trabalharem no turno oposto as aulas, e muitas vezes, até nos finais de semana. Uma das alunas afirmava trabalhar todas as tardes de diarista, enquanto outros valavam carros ou auxiliavam os pais em trabalhos externos. Há um estranho contraste entre a suposta infância, período em que se encontram a maioria das crianças que frequentam o ensino fundamental e o amadurecimento precoce a que muitos são submetidos. A desigualdade frente ao acesso da produção cultural é resultado, também, da desigualdade frente à educação, frente a uma escola de qualidade, que crie a necessidade cultural, que desperte esse desejo, essa fome, apontando para os meios de satisfazê-la. Muitas vezes, a privação, no que diz respeito a cultura e a arte, não é necessariamente percebida como tal; assim, quanto mais estamos privados do acesso a cultura, menos temos consciência dessa privação. A pré-disposição à arte não é privilégio de alguns, mas hábito construído e possível a todos. Nesse sentido, a efetivação do ensino de arte, ainda inexistente em muitas escolas, poderia diminuir a distância entre aqueles que ainda não reconhecem em seu meio o desejo pela prática cultural e os que já desfrutam dela com conhecimento, criticidade e liberdade de escolha. A fome reconhecida nesses espaços não se refere à ausência de um único alimento. Nem simplesmente ao “corre corre” no horário da merenda. É fome de imagens, fome de ser bem tratado, fome de infância, fome de aulas planejadas, fome de reconhecimento, de socialização, de visibilidade, de valorização, de recursos tecnológicos. Fome simplesmente 4
Conforme o relato de um músico baiano, a movimentação agressiva nasceu (supostamente) nas multidões que acompanhavam a banda "Chiclete com Banana" na década de oitenta. A idéia revolucionária de fechar toda a lateral do trio com caixas de som e usar equipamentos de potência transistorizada, passando todos os músicos a tocarem na parte superior do trio, causou grande impacto na época. O evento coincidiu com o fenômeno Maguila, um dos poucos pesos pesados brasileiros e o ressurgimento do boxe, transformado em espetáculo de massa com grande investimento na época – o que estaria relacionado ao surgimento do gestual de socos e o empurra empurra na coreografia de massa. Enquanto outros afirmam ser apenas um gesto de proteção. (Informação verbal)
de aulas, considerando a frequente falta e ausência de professores nas escolas públicas. E, sobretudo, fome de cultura, fome de arte, fome de teatro. A metáfora aqui é tudo que subtraio da palavra fome. Essa existência faminta com que devoram a lona, esse desejo de sentir-se pleno, de vivenciar novas experiências, ter acesso a um conhecimento significativo, renovado, essa expectativa de vida que ainda é negada por muitas escolas públicas, está também, de certa forma, em nossas mãos. Essa fome pode ser amenizada, como confessa o escritor, poeta e roteirista Paulo Lins5 ao referir-se a um projeto comunitário de música coral que surge na favela Cidade de Deus determinando sua entrada para o trabalho cultural e para a vida escolar, destacando também a importância do acesso à cultura: “[...] E vieram passeios, apresentações, luzes, aplausos e vontade de mais teatro, mais cinema, mais biblioteca. Fora despertado em mim o amor pela criação artística, o gosto pelo estudo” (Campello, 2005, p.28). Através do ensino de Arte, ele conheceu a música, a poesia cantada, as artes plásticas de outras regiões, a literatura, enfim, sua cultura e a de outros países. As oportunidades que foram possibilitadas a esse escritor na infância despertaram seu amor pela criação artística, o gosto pelo conhecimento, pela cultura, definindo seu projeto profissional. Fica evidente em seu depoimento a importância dos educadores que por nós passam, nos influenciando com sua paixão pelo que fazem. Pensando no nosso olhar de educadores, de professores de teatro, de professores artistas, dentro das mais adversas condições de trabalho, é importante que tentemos de tempos em tempos nos distanciar de nossas ações, pois muitas vezes somos engolidos por elas. É inegável que o espaço escolar nos impõe algumas limitações, principalmente porque nas aulas de teatro, esse espaço é também ferramenta de trabalho. Nesse sentido, surge a necessidade de estabelecer uma relação renovada com o espaço e com o grupo envolvido no processo de aprendizagem. É essencial que o prazer esteja presente no ato de ensinar, que o professor também se divirta com as suas aulas, que novas descobertas sejam possíveis - compartilhar de um interesse comum, contagiá-los com um projeto desafiador.
Considerações finais Acredito que o ensino do teatro na escola pública precisa ser visto no campo das possibilidades, das viabilizações, propiciando o desenvolvimento da educação estética do aluno e de um olhar crítico através da formação de público. Não ignoro aqui todas as dificuldades materiais e de relação encontradas no espaço público, e já mencionadas, como: o excesso de alunos por turma, espaço inadequado, acústica precária, a limitação do horário, a dificuldade de relação entre direção e professores e professores e alunos, além é claro da pedagogia tradicional vigente; mas qual a outra forma de promover mudanças senão pela ação? Afinal, como podemos constatar, não é a falta de elementos materiais e uma sala própria o que impede o professor de desenvolver uma aula de teatro. É claro que, para a sua aplicação efetiva, o ensino de Teatro deveria poder contar com recursos materiais que
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Morador da favela Cidade de Deus, na periferia do Rio de Janeiro, dedicou-se ao magistério e à pesquisa antropológica sobre a criminalidade e as classes populares antes de escrever o livro que serviu de base para o filme “Cidade de Deus”, dirigido por Fernando Meirelles.
atendessem a singularidade de sua prática. Nesse caso, o recurso mínimo necessário seria um espaço físico adequado. A lona, como alternativa, produz este espaço e é antes de tudo, fator de agregação, modificando a relação entre os envolvidos. O fazer teatral, o produto criativo que dela resulta não acontece sozinho, acontece em cada um, nas relações estabelecidas, nos olhares, na escuta, no contato, nessa necessária presença do corpo que se modifica a todo instante. Instaurar um novo espaço é possibilitar que o teatro sobreviva nas escolas, através de um espaço virgem, livre, sinalizado aqui, como potente indutor para o jogo. Superando o imaginário caótico instalado inicialmente, a escola transforma-se em lugar de ludicidade, de relação, de saber e de democratização do acesso à estética teatral. Essa nova atmosfera é um “valor vivo” a ser construído. A lona entra aqui como possibilidade de transformar, transgredir, redimensionar esse espaço, e, acima de tudo, retomar esse laço social e afetivo, que vem mostrando-se enfraquecido. Tudo que interage com ela, como os tecidos, a música, cada gesto compõe a teatralidade efêmera que é produzida a todo instante. É dessa fricção entre o atuante e a materialidade oferecida nas aulas de teatro que surge o processo criativo. A materialidade aproxima, agrega, conecta. A aptidão pra jogar nesse espaço vivo, renovado, é uma forma de abertura e de capacidade para comunicar, para se colocar em relação ao outro, para renovar o sentimento de pertencimento desse lugar.
Referências BROOK, Peter (2000) A porta aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. Trad. Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. CAILLOIS, Roger (1990) Os Jogos e os Homens: A máscara e a vertigem. Trad. José Garcez Palha. Lisboa: Cotovia. CAMPELLO, Carmute (2005) (org.). Tenso equilíbrio na dança da sociedade. São Paulo, SESC. DESGRANGES, Flávio (2006) Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Editora Hucitec: Edições Mandacaru. FREIRE, Madalena (2008) Educador, educa a dor. São Paulo: Paz e Terra. MAFFESOLI, Michel (2005) O mistério da conjunção: ensaios sobre comunicação corpo e socialidade. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina. RENGEL, Lenira Peral e MOMMENSOHN, Maria (1992) O Corpo e o conhecimento: dança educativa. Publicação: Série Idéias n.10. São Paulo: FDE,. Disponível: <www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_10_p099-109_c.pdf>. RYNGAERT, Jean-Pierre (2009) Jogar, representar: práticas dramáticas e formação. Tradução: Cássia Raquel da Silveira. São Paulo: Cosac Naify.
SOARES, Carmela Correa (2006) “Teatro e Educação na Escola Pública: uma situação de jogo”. In: TAVARES, Renan (org.) Entre coxias e recreios: recortes da produção carioca sobre o ensino do teatro. São Caetano do Sul, SP: Yendis Editora.