As noites da glória: territorialidade travesti na avenida Augusto Severo, no bairro da Glória, na cidade do Rio de Janeiro Ivan Ignácio PIMENTEL Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF ivanpimentel22@yahoo.com.br Wilson Madeira FILHO Prof. Dr. Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da UFF wilsonmadeirafilho@hotmail.com
Resumo A identidade da travesti está relacionada à formação de territórios, gerador de raízes, onde é possível observar a interação entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. A construção de um espaço pela prostituição de travestis passa por um processo de construção marginalizado, mas ao mesmo tempo tido pelos travestis como um espaço “sagrado”, marcado por símbolos, considerado como um “espaço vivido”, marcado por signos que refletem um sentimento de pertencimento. Assim, as calçadas da Avenida Augusto Severo, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, representam o local onde se complementa a “transformação” da travesti, como também suas “zonas de batalha” no comércio da venda de sexo - o principal (e às vezes o único) ponto de encontro e convívio social. Palavras-chave: Prostituição, Travestis, Espaço público, Homofobia, Ocupação territorial.
Abstract The identity of the transvestite is reported to the formation of territories, creator of roots, where it is possible to observe the interaction between the individual and the society. Subject still has a nucleus or inner essence that is “real I”, but this one is formed and modified in a continuous dialog with the cultural exterior worlds and the identities what these worlds offer. The construction of a space for the prostitution of transvestites suffers a process of construction marginalized, but at the same time had as the transvestites like a "sacred" space, marked by symbols, thought how a “space experienced in life”, marked by signs that reflect a feeling of to belong to the territory. So, the sidewalks of the Avenue Augusto Severo, in the district of Glory, in Rio de Janeiro, represent place where the "transformation" of the transvestite is complemented, like also his “zones of battle” in the commerce of the sale of sex - the principal (and sometimes the only one) point of meeting and social familiarity. Keywords: Prostitution, Transvestites, Public space, Prejudice against homosexuals, Territorial occupation.
Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni! (Chico Buarque, Geni e o zepelim,)
Introdução
A
correlação entre território e identidade permite explicitar os conflitos que as travestis passam durante os diversos dias em que “batalham” na Avenida Augusto Severo. A cidade enquanto palco de conflitos e os conflitos enquanto modelo democrático por excelência são temas que perpassam a pós-modernidade. Múltiplas identidades dividem o espaço urbano e multiplicam a semântica da geografia cultural. Historicamente considerada o lugar da diversidade, a urbe vem se tornando menos “tolerante”, micropoliticamente repartida. Essa leitura pode ser feita mediante um olhar atento ao próprio comportamento dos cidadãos, em que a perda da capacidade de abrigar as diferenças fica evidente, materializada na forma da organização dos espaços urbanos. Para Guy Debord (1992), pelo desenho urbano, também é possível identificar um desenho antropológico e social, demarcando limites e estabelecendo a noção de pertencimento e não pertencimento, existência e coexistência. No caso do urbanismo, é a tomada de posse do ambiente natural e humano por todas as forças técnicas da economia capitalista que, ao desenvolver sua lógica de dominação absoluta, refaz a totalidade do espaço como seu próprio cenário, estratégias que podemos observar como técnica da separação. A cidade, desde seus primórdios, possui a inexorável ligação entre o seu espaço físico, as relações entre seus habitantes e a forma de controle dessas relações, para a manutenção da ordem entre os cidadãos. É preciso, portanto, tratar os discursos e representações sobre a cidade como construções simbólicas que estão plenas de valores sociais. Sabemos que o acontecimento do fenômeno urbano só será possível mediante ajustes entre aqueles que participam da vida de uma cidade. Quanto mais avançamos no tempo, mais a aceleração dos processos sociais e as modificações dos espaços urbanos tornam-se vertiginosas e mais complexas. Torna-se, portanto, necessário seu acompanhamento e o estabelecimento de normas de convivência. Percebemos, assim, que o poder não atua simplesmente oprimindo ou dominando as subjetividades, mas operando na sua construção. Desta forma, deve-se vincular o caráter formativo ou produtivo do poder, ao mecanismo de regulação e disciplina que ele instaura e procura conservar. Nas últimas décadas, os estudos que associam “cultura” e “meio urbano” ganharam novamente centralidade. São diversas obras que tocam em um ponto crucial para o estudo da cidade contemporânea, vindas da literatura, das artes plásticas e do cinema. Tratam dos perigos existenciais, em especial das dificuldades de conviver com o outro, de conseguir dividir o mesmo espaço, tendo em vista os interesses divergentes e conflitantes. O conflito é, inicialmente, fruto de uma hostilidade e de uma oposição de idéias ou de valores, mas, ao unir na mesma luta os seus opostos, ele evidencia que não há oposição sem adesão. O
conflito pressupõe, portanto, o reconhecimento da existência do inimigo e de seus interesses, já que, se não houvesse interesses comuns, a divergência não teria objeto para existir ou se fazer presente. A dificuldade de dividir o espaço com identidades “divergentes”, segundo a lógica moral vigente nos grandes centros, faz de homossexuais e travestis vítimas de atos de violência, que segundo Carrara e Vianna (2006), nas grandes metrópoles brasileiras, sujeitos cuja identidade não heterossexual (suposta ou certa) é mais evidente através da exibição ou incorporação de atributos de gênero não-conformes ao sexo designado no nascimento são proporcionalmente mais atingidos por diferentes modalidades de violência e discriminação. A desestabilização provocada por sua performance de gênero, constantemente associada a um conjunto de estereótipos negativos sobre a homossexualidade em geral, torna as travestis as vítimas preferenciais de violência homofóbica em diferentes contextos. Dessa forma, vemos nas grandes cidades, não apenas as modificações causadas pela urbanização crescente, mas as transformações que acontecem nas relações entre os agentes da dinâmica urbana, ou seja, a diminuição da solidariedade e, por conseqüência, o crescimento da intolerância. Isso reflete que a “cidade que explodiu”, devido ao seu grande crescimento populacional, tendo assim, vários fenômenos específicos do espaço urbano, passou a demonstrar que, ao contrário de uma ordenação racional, as grandes cidades podem ser encaradas como o espaço do caos e da desordem. Dentre os fenômenos desordenadores da metrópole se encontra a violência urbana, vez que esta reforça a idéia de que a vida na cidade é uma existência caótica em um lugar perigoso, embora, na medida em que o tecido urbano se expandia, o poder público tenha patrocinado a produção de planos de urbanização que pudessem controlar e ordenar o crescimento da cidade.
1. Territórios marginais Muitas travestis entrevistadas relataram que os conflitos no espaço, para elas, começa muito cedo. Podendo se dar em casa, na rua ou na escola, devido à repressão que sofre o jovem por ser gay, repressão tal que chega a ser tratado como alguém “sujo”, impuro por não seguir a cartilha sexual imposta para a maior parte dos meninos ainda na infância. Tratado como desviante por não ser tido como homem pelos colegas e pela família, termina por sofrer muitos conflitos para um jovem imaturo que mal começou a viver a vida e já começou a ser severamente reprimido por ter um comportamento diferente, sendo constantemente tratado como um “estrangeiro” em sua própria terra. Para Bauman (2009), viver numa cidade significa viver junto com estrangeiros, pois jamais deixaremos de ser estrangeiros, e não interessados em interagir. A partir do momento em que, no mesmo espaço físico – a cidade – as pessoas são amontoadas e obrigadas a conviver próximas, diversas “distâncias” aparecem – culturais, sociais, religiosas – e as pactuações para o convívio urbano precisam ser refeitas. Assiste-se aí à construção de fronteiras: física, econômica e social. Bauman evidencia que nas cidades é possível observar o que chama de “furiosa atividade de traçar fronteira entre as pessoas”, e quanto mais o espaço e a distância se reduzem, maior é a valorização dos limites sociais estabelecidos pelos seus habitantes.
As diferenças, em vez de transformarem-se em riquezas - do ponto de vista cultural e social são instrumentos de separação. A cidade transforma-se em espaço de exclusão. A distância em relação ao outro aumenta e fica evidente pela presença dos muros reais ou imaginários. Como mecanismo de defesa, observamos um distanciamento cada vez maior dos indivíduos, pessoas cada vez mais frias vivendo nas grandes cidades, que, segundo Simmel (2004), o cidadão para se proteger nas metrópoles é obrigado a mascarar seus sentimentos e, muitas vezes, a não reagir às solicitações exteriores, assumindo um certo ar blasé no cotidiano. Na verdade, nessa visão simmeliana, as pessoas blasés só existem nas grandes cidades, palcos do teatro do espetáculo social. Lugares de máscaras e de papéis sociais que se transformam em papéis de representação teatral. A incapacidade de reagir às novas estimulações com a energia necessária é uma das principais características desse comportamento blasé. Para Bauman (2009), as pessoas esqueceram ou negligenciaram o aprendizado das capacidades necessárias para conviver com a diferença. Não é surpreendente que elas experimentem uma crescente sensação de horror diante da idéia de se encontrar frente a frente com estrangeiros. Estes tendem a parecer cada vez mais assustadores, porque cada vez mais alheios, estranhos e incompreensíveis. Portanto podemos observar as travestis como estrangeiras em seu próprio “país”, pois a identidade que, construída, vai de encontro à base moral estabelecida e aos padrões que perduram por séculos e décadas, ser homossexual ainda está vinculado a ter atitudes de promiscuidade, de degradação da moral e dos bons costumes e incitadora de desvios. Embora a cidade permita a vivencia de uma construção social, na qual a diferença é marcada com intuito de hierarquizar grupos em detrimentos de outros, é possível transformar essa construção, gerando uma nova ordem de relações, nas quais as marcas corporais não sejam acionadas para sinalizar inferioridade e subalternidade de um grupo ao outro, mas sim para refletir a vocação humana para a diversidade. O corpo é o locus a partir do qual o indivíduo expõe publicamente sua intimidade, e também é nele que se exibe a transformação causada pelos signos do grupo social ao qual se pertence. Assim a reação social a essa afronta à “decência” e aos “bons costumes” pode ser observada no decorrer das diversas narrativas obtidas durante o trabalho de campo. A prostituição acaba se tornando opção de sobrevivência: a escola rejeita, a família expulsa de casa... Como diria uma das entrevistadas, as travestis são “expulsas da vida”. Sendo tratadas como estrangeiras no espaço urbano, a sociedade, através da família e da escola produzem dor, desrespeito e colaboram decisivamente para produção de representações sociais negativas que apenas reforçam a violência e hostilidade que as envolvem. Para Silva (2008), a cidade compõe suas narrativas que espelham as penas de exclusão espacial sofridas pelas travestis como muitas denunciam em suas fala: “Não tem lugar pra travesti, nós somos um grupo que não existe! Não existe espaço para travesti!”. O espaço por elas experienciado é composto de muitas feridas e rejeições. É comum que elas circulem pela cidade apenas no período da noite, mais associado às práticas sexuais comerciais, que a maioria delas está praticamente condenada socialmente a desempenhar.
As práticas sexuais comerciais levam a ocupação de uma determinada porção do espaço para a realização de tal atividade. A construção de um território é de vital importância para que um determinado grupo possa exercer um controle, de modo a permitir a manutenção da atividade e inevitavelmente realizar o exercício do poder e coesão interna, como forma de manter a ordem e a perpetuação da atividade, além de defender o território de possíveis “invasores”. Analisando a construção de territórios em espaços marginais, vemos que esses “territórios marginais”, construídos em espaços públicos “são locais em que atração e rejeição se desafiam (suas proporções são variáveis, sujeitas a mudanças rápidas, incessantes). Trata-se, portanto de locais vulneráveis, expostos a ataques maníaco-depressivos ou esquizofrênicos, mas são também os únicos lugares em que a atração tem alguma possibilidade de superar e neutralizar a rejeição. (Bauman: 2009, p. 76)”
2. A rua como vitrine A rua não é apenas local de convivência como espaço público de passagem e de circulação das pessoas. Opõe-se conceitualmente à casa, pois aqueles que nela permanecem são os chamados desclassificados e desocupados (ladrões, prostitutas, mendigos etc.). No espaço da rua, para a realização do prazer ou para a sobrevivência, podem ser identificadas práticas que, de uma forma ou de outra, transgridem as normas socialmente estabelecidas. Entre esses comportamentos, ressaltam-se a homossexualidade e trocas envolvendo favores sexuais. Para Ana Fani Carlos (2007), o tema da “rua” nos coloca diante do fato de que na análise do espaço urbano o lugar aparece com significados múltiplos. A cidade, em si, só pode ser determinada como lugar à medida que a análise incorpore as dimensões que se referem à constituição, de um lado, do espaço urbano, e de outro, aquela da sociedade urbana. Todavia a cidade é reproduzida a partir da articulação de áreas diferenciadas com temporalidades diferenciais que se produzem, fundamentalmente, da constituição de uma forma de apropriação para uso que envolve especialidades que dizem respeito à cultura e aos hábitos costumes que produzem singularidades espaciais, que criam lugares na cidade nos quais a rua aparece como elemento importante de análise. O contato inicial, em que o jovem gay entra em contato com travestis mais experientes é fundamental para a formação da sua identidade e para aprender todas as artimanhas do novo espaço ao qual ela se vinculará. Para as travestis que chegam à rua, estar com suas amigas e com sua “madrinha” é bem mais que uma mera diversão: ali as travestis encontraram espaço, não só para a prostituição, mas também um espaço de sociabilidade onde procuram se proteger da violência da rua, realizando trocas de experiências sobre os cuidados e descuidos de si. Além de ter contato com esse mundo que será responsável pela manutenção de suas vidas, “Desse modo o que era público, o que acontecia no ambiente da rua, se fecha ‘intramuros’. Desse modo os lugares da cidade se delimitam, se fecham, se tornam exclusivos.” (Carlos 2007:52).
Na vida prática de grande parte das travestis e no cotidiano das ruas, o principal palco são as calçadas onde expõem seus corpos como em vitrines para a prostituição (figura 1). Em trajes sumários e estratégicos, as “bonecas” fazem parte da paisagem noturna dos que trafegam pelas cidades na alta madrugada. Trata-se, portanto, de uma “cartografia” dessa “bonecolândia”, de acordo com o perfil de cada travesti, onde ocorre a construção de verdadeiras “lojas a céu aberto” onde exibirão seus corpos. Este ambiente, que os travestis denominam “a rua” pode ser considerado o lugar multifacetado. Pode ser o lugar da “ferveção”, da “batalha” ou da “boiação”. Ao primeiro termo entende-se como o lugar da diversão, onde se faz amigos – e inimigos – e desfruta-se coletivamente de determinados prazeres; lugar de socialização. Ao segundo, aplica-se a significação de prostituir-se. E o último refere-se às práticas sexuais sem compromisso financeiro ou afetivo. O que não significa que essas experiências aconteçam necessariamente separadamente. Figura 1. Exposição de Ivete (nome de “guerra”)
Fonte: Foto de Ivan Ignácio Pimentel
Para isso faz-se necessário a construção de uma vitrine marcada por microterriorialidades (figura 2), de acordo com o perfil de cada travesti, onde ocorre a construção de verdadeiras “lojas a céu aberto” onde as travestis exibirão seus corpos cheios de curvas, prontos a satisfazer os mais diversos tipos de desejos. Assim, o uso do território da cidade revela a segregação baseada nas desigualdades dos atos de uso e formas de apropriação. Aqui, o gueto pode significar a liberdade através da possibilidade de atuar e de reivindicar, pois são elementos de construção de identidades que lhe permite lutar contra o preconceito latente. Simmel (1971) propõe uma tipologia das relações na qual a prostituição é uma modalidade básica. O autor elabora um estudo sociológico esclarecedor sobre o sistema de trocas simbólicas que a prostituição envolve: a transferência da impessoalidade do dinheiro para o corpo feminino. A manutenção das relações de poder no universo da prostituição constantemente envolvem relações conflituosas, fazendo-se muitas vezes o uso da violência, podendo ela ser entre travestis ou envolvendo travestis e outros atores sociais. A implantação e a disseminação da prostituição na cidade dependem diretamente das
circunstâncias encontradas para o exercício das atividades, tanto no que se refere às relações das “trabalhadoras sexuais” com sua clientela, com a cafetina e com as autoridades policiais, quanto das relações que travestis estabelecem entre si no momento da ocupação e do uso dos territórios, pois mesmo sendo um território de prostituição de travestis, podemos observar que estas se categorizam de forma diferenciada. Esta territorialidade dividida em “trechos”, demarcada a partir de relações de força física e intimidação e do tempo em que cada travesti se prostitui na Avenida Augusto Severo, termina por se constituir num lugar onde as regulações se fazem pelas próprias travestis. Figura 2. Microterritórios da prostituição de travestis na Avenida Augusto Severo
Fonte: Elaborado por Ivan Ignácio Pimentel
A demarcação espacial é também moral e passa por jogos de poder pelos quais se determina quem pode ficar onde e os significados dessa fixação. Fixação que não pode ser confundida com imobilização/sedentarização, mas com aceitação e compartilhamentos de códigos que circulam e informam, mas que são fluidos. Não só porque a transformação é uma marca da travestilidade, fazendo do gayzinho de hoje a bela de amanhã que, por sua vez, pode ser, simultaneamente, a bandida e a européia; mas também pela reconfiguração permanente dos espaços, provocada pela dinâmica das relações entre poder público e espaço urbano. Dependendo da espacialidade vivida pela travesti, seus corpos podem ser aceitos, tolerados ou rejeitados. Dependendo do território onde o corpo se encontra, a travesti pode estar no centro, correspondendo ao padrão esperado de seu corpo, ou na periferia das relações de poder, sendo motivo de chacotas, gargalhadas, insultos e até atos violentos. Logo, os corpos
não correspondem com o que é esperado para o corpo no território, também sofre sanções como em qualquer outra espacialidade, pois da mesma forma que o espaço constitui relações de poder, é por ele composto, posicionando corpos em centro e margem, compondo e sendo composto por espaços paradoxais. O controle do território é visto com violência, pois além de estar relacionado ao uso e adoção de códigos, ações discursivas e corporais, esta se faz a partir da utilização da violência explícita, verbal ou física. No conjunto de evocações, a predominante se referia à utilização da violência como mecanismo de controle do território, como nos relatou Fabrícia (nome de”guerra”, assimcomotodas as travestis identificadas nesse trabalho): No meu pedaço só fica quem eu quero. As novinhas chegam aqui achando que são as donas da rua, até entendo a vontade de brilhar, mas se ficar de marra eu ponho pra correr. Quando eu cheguei aqui há mais de quinze anos eu tinha que respeitar as mais antigas. Porquê uma novinha vai chegar e me desrespeitar? Eu não deixo! Ponho logo pra correr, e se ficar de graça acaba saindo por mal.
A violência praticada entre as travestis sempre cumpre a função de reforçar a condição de abjeção, geralmente incidindo diretamente sobre os signos de sua diferença: as marcas corporais e subjetivas que atestam a recusa da norma. Assim, a garantia do controle e do ordenamento do espaço se dá pela eliminação das impurezas que o ocupam, “contaminando” a sua paisagem. A violência vem, aqui, restituir a pureza de um espaço maculado, assegurando seu valor (não apenas imobiliário, mas também simbólico). Hellen, entrevistada em junho de 2009, enxerga a rua de forma bem negativa, sem notar a constituição de um espaço simbólico. Segundo ela, é impossível estabelecer uma relação de amizade num local que tem como foco a sobrevivência através da disputa por clientes. Acredita que a competitividade do mundo contemporâneo não permite que haja uma relação de solidariedade, lealdade e compromisso mútuo. Em outras palavras, as relações entre os “operários” do sexo que trabalham no local deve ser baseada na “falsidade”, pois tudo não passa de um jogo de interesses. Para ela, cada travesti está sujeita a “tomar uma punhalada pelas costas”, ou seja, está constantemente sujeita a ser traída, de modo que se torna mais fácil ser falso com todos e esperar o pior. De acordo com a visão da entrevistada, ninguém possui vínculo com o local, sendo este encarado apenas como meio de sobrevivência, tendo em vista que este só lhe trouxe mágoa e decepção, mesmo estando somente há duas semanas na rua. As experiências anteriores não permitem que ela estabeleça vínculo com um local que por ela é considerado como sujo, imundo e hipócrita. Já as travestis mais antigas mantêm uma relação de amizade com a vizinhança. Fabrícia, uma das mais antigas, chegou a dizer que ganha presentes dos moradores e que estes reconhecem a importância das travestis para a segurança do local, haja vista que o nível de assaltos a transeuntes é bastante elevado no bairro, diferentemente da Avenida que possui um número de furtos reduzido devido à presença das travestis, que chegam a estimular o comércio “noturno”, como o funcionamento de bares. Ao mesmo tempo a travesti reconhece a importância de manter o diálogo e o respeito com a população que mora na região, para a manutenção dessa ordem. Fabrícia “permite” que apenas suas afilhadas e amigas “batalhem” no “seu” território. Para isso faz-se necessário que as travestis que estão nesse ponto da rua não fiquem nuas ou com os seios a amostra, pois tal fato resultaria em
conflitos com os síndicos e possivelmente numa intervenção policial, afetando o comércio local. Embora exista um domínio territorial noturno pelas travestis, como muitas alegaram, elas “pisam em ovos” a todo instante, pois embora não haja conflitos diretos no território da prostituição, este se caracteriza por possuir uma grande instabilidade, onde, a qualquer momento, tudo pode ficar tenso e ameaçar a tranqüilidade e o exercício do “ofício”. Sendo assim, até pegar a “manha” da rua, o medo e a insegurança são situações de ameaça enfrentadas pelas travestis que se prostituem. Mesmo as veteranas não estão isentas de sofrerem violência. Para Dos Santos (2009), face à cultura heteronormativa a vida da travesti e o seu entorno encontram-se na ilegalidade jurídica: prostituição, cafetinagem, drogradição e alteração do corpo masculino. Desta maneira, as travestis vivenciam cotidianamente formas variadas de constrangimentos e violências, pois não se sentem protegidas pela ordem pública. As violências sofridas estão intimamente ligadas ao lugar social em que se encontram os sujeitos envolvidos nas situações concretas. Por esta razão, a violência dirigida às travestis tem agressores difusos e são vivenciadas em situações também relativamente obscuras, sendo suas motivações e causas difíceis de serem apontadas.
3. A cafetina: “A dona da rua” Obter informações sobre a cafetina que “controla a prostituição” na Avenida Augusto Severo foi à maior dificuldade encontrada durante a realização do trabalho de campo. Muitas alegavam não existir tal atividade na rua, mas as reações das entrevistadas quando indagadas sobre tal questão refletia de imediato que essas informações não eram verdadeiras. Uma travesti resolveu falar sobre o assunto, sem identificar a cafetina e exigindo que não comentássemos com as outras que ela havia abordado o assunto, caso não cumpríssemos o acordo ela poderia sofrer algum ato de violência. No entanto, autorizou a descrição do relato no trabalho proposto. As cafetinas caracterizam-se pelo controle das ruas e por exercer influências sobre as travestis. Esse controle é realizado por uma travesti, transexual ou mulher que realiza a cobrança pela possibilidade de ficar na rua e se prostituir. Por essa cobrança é oferecido “segurança” para as “meninas” que trabalham na rua. De acordo com o relato, na Avenida Augusto Severo, o serviço de cafetinagem é realizado por um transexual (travesti que realizou mudança de sexo), que manda seus dois seguranças cobrarem a quantia de quarenta reais, equivalente à diária da rua. De modo, que as travestis que “batalham” têm que estar em dia com seus “impostos” para poderem exercer suas atividades. As travestis que estão na rua há muito tempo não pagam taxas para “batalhar”, pois estas estão na rua antes da implantação da cobrança, portanto não se enquadram no sistema de cobrança e tem o respeito da cafetina. Assim as travestis mais novas ficam na periferia das
relações de poder, podendo ter a atividade comprometida caso não cumpram suas obrigações financeiras. A cobrança dos “tributos” atrasados ocorre mediante a expulsão da rua ou por sofrerem atos de violência, realizados pela “dona da rua”. Tal serviço é realizado sob total sigilo de modo que não foi possível observá-lo nem ter qualquer tipo de contato com as pessoas que o realizam.
4. A polícia e a segurança da rua No caso da Avenida Augusto Severo, Fabrícia relata que, na década de 1990, ao verem um carro da polícia, as travestis eram obrigadas a se esconder, para fugir dos atos de violência. A prática da violência pelo Estado representado pela força policial, que tinha como objetivo a manutenção da “ordem” ainda é presente em diversas cidades do Brasil. Nesse período, as travestis eram responsáveis pela desordem, que era realizada através da territorialização de alguns locais para a realização da prostituição. A arbitrariedade e a violência que marcam essas ações, notadamente quando obrigam as travestis a se despirem diante da platéia policial na delegacia, exibindo as marcas que situam seus corpos em um lugar fora da norma, ou ainda quando insistem no uso de seus nomes de batismo masculinos, expõem o status de subumanidade que ocupam diante da ordem jurídica. A relação atual entre a força policial e os travestis em questão pode ser considerada bastante singular. De acordo com as travestis que “batalham” no espaço em destaque, a relação pode ser considerada amigável, de forma a não existirem conflitos diretos entre ambos. Apenas Sandra destacou já ter sido abordada pelos policiais de forma truculenta. Um cliente a abordara entre a Rua da Glória e a Avenida Augusto Severo e queria conferir o tamanho do seu pênis, pedindo que ela expusesse o instrumento de trabalho. Ao por o pênis a mostra uma viatura da polícia passou e parou. Convidaram-na para próximo da viatura e disseram que se isso acontecesse novamente a levariam para a delegacia. Além disso, disseram que a relação entre eles era de paz, que ela não tumultuasse o serviço. Prontamente a travesti acatou a ordem policial, pediu desculpas e disse que aquilo não voltaria a acontecer. Durante o trabalho de campo duas viaturas faziam ronda constante na Avenida Augusto Severo e no seu entorno, não atrapalhando a atividade exercida pelas meninas. Mas nem sempre foi assim, segundo Ivete, que batalha na Avenida há dezessete anos. No início, quando começou no “ponto”, quando via uma viatura da polícia tinha que se esconder, porque constantemente sofria atos de violência. Segundo ela, algumas travestis chegaram a ter o corpo deformado devido aos constantes espancamentos sofridos, pois, com as pancadas, o silicone aplicado descia e ia parar na barriga ou o silicone das nádegas ia parar nos joelhos. “Era um ó, uma relação muito complicada. O pior era quando éramos presas e obrigadas a transar com os policiais que após gozarem nos agrediam”. Segundo Ivete, quando vê os policias ela abaixa a cabeça e nem os olha, como forma de respeito e para evitar qualquer tipo de problema. Pois o passado ainda está muito vivo em sua memória, embora a situação presente tenha outra característica.
Os policiais eram vistos pelas travestis estudadas de uma forma matizada. Se em períodos históricos anteriores a relação deles para com elas era de repressão pura e simples, mais recentemente alguns policiais, denominados "do bem", em seus discursos, passaram a estabelecer outras modalidades de relações para com elas. Estes mantinham um relacionamento mais próximo, muitas vezes também sexual, e limitavam sua ação a coibir o que elas mesmas consideravam "abuso", como a nudez excessiva, a venda de drogas e os roubos e furtos. Muitos destes costumavam avisá-las se alguma "batida" fosse ocorrer em algum ponto de prostituição. Por outro lado, os policiais "do mal" eram descritos como aqueles que achacavam as travestis, com interesses econômicos, e associavam a ação policial à transfobia, se utilizando de métodos violentos de repressão. Muitas alegam fazer programas com policiais, que, nas horas em que não estão de serviço, vão à paisana à rua procurá-las. Alegaram que, atualmente, ocorre a predominância de policias “do bem”, que mantém um maior nível de intimidade, respeitando o espaço e “mantendo a ordem local”.
5. “Quanto custa o programa?” De acordo com as entrevistadas, os clientes que freqüentam a rua são casados e pertencentes à classe média. Isso foi observado devido aos carros que possuem e pelos valores pagos aos programas, que podem variar de R$ 50,00 a R$ 80,00, fora o pagamento do hotel, normalmente o Hotel Passeio, próximo a Avenida Augusto Severo, cujo quarto custa R$ 20,00 por duas horas. O programa é combinado quando a travesti é abordada pelo cliente. Os clientes, na maior parte das vezes, são passivos (de acordo com as entrevistadas, 90% dos clientes) e pedem para ver uma foto mostrando o tamanho do pênis da travesti antes de fechar negócio. Outra questão importante na hora de fechar o programa é a questão do uso da camisinha. Segundo a travesti Suzane, o programa sem camisinha costuma ser mais caro, embora, segundo ela, muitas se recusem a aceitar tal proposta devido à possibilidade de contrair uma “doce” (AIDS). Ela continua dizendo que a rua a ensinou a não aceitar tal proposta, pois já presenciou a morte de algumas “amigas” pelo Vírus HIV. Outro dado relevante foi o elevado consumo de drogas, principalmente cocaína, entre os clientes. Norma relatou que adorava “sair” com clientes viciados, porque o programa era mais demorado e o valor do programa era maior. O consumo de cocaína, segundo Sandra, também é realizado com freqüência pelos clientes que são passivos e querem manter relações com ela. Em seu relato ela aponta a cocaína como um mecanismo de relaxamento, que proporciona maior facilidade na hora da penetração, pois o estado de excitação causado pela droga distraia da dor. Entre as travestis o consumo também é alto, como muitas disseram: “É impossível encarar a noite na ‘pista’ de cara limpa”. Algumas já estavam fazendo uso do craque por ser uma droga mais barata. Essas aceitavam qualquer tipo de programa, inclusive sem preservativo e adoravam fazer programas com clientes viciados, porque era a garantia de obtenção da droga.
Na visão das travestis entrevistadas, bem como o discurso hegemônico sobre sexualidade, esses homens não seriam menos homens apenas por procurarem sexo com travestis, mas, sobretudo, por buscarem um determinado tipo de sexo.
6. O Hotel Passeio Combinado o programa entre TLovers e travestis, na maior parte das vezes eles vão para o Hotel Passeio (figura 3), atrás da Avenida Augusto Severo. Figura 3. Hotel Passeio
Fonte: Foto de Ivan Ignácio Pimentel
Nesse Hotel, além dos programas, as travestis que “batalham” na Avenida, trocam de roupa ao chegarem de suas casas. Segundo Ivete, a relação entre o gerente do Hotel e as travestis é bastante estreita, pois para ela a prostituição é responsável por movimentar o capital do Hotel. “Se não houvesse prostituição na Avenida Augusto Severo, o que seria desse hotel?”, ela pergunta. A proximidade entre o hotel e o ponto de “batalha” faz com que a maior parte dos programas sejam realizados ali. Durante o campo foi possível acompanhar a chegada de Ivete ao local, sua troca de roupa e a saída do Hotel já pronta para mais um dia de batalha (Figura 4). Figura 4. Ivete e o Hotel Passeio
Foto de Ivan Ignácio Pimentel
O Hotel Passeio é muito indicado no fórum na internet por ser próximo ao local de abordagem das travestis e por não apresentar riscos, tendo em vista que as travestis são responsáveis pela manutenção do ponto de “batalha”, onde não pode haver roubo nem nenhuma atividade que chame a atenção da polícia e dificulte a chegada de clientes ao local. Para Ivete, caso isso aconteça, a chegada da polícia dificultaria o exercício da prostituição ou então elas perderiam dinheiro para a polícia. Por isso o local tem que ser mantido seguro. Segundo a gerente do Hotel, o que rola dentro dos quartos é problema das travestis e dos clientes. Diz não se meter em nada, a única coisa que lhe interessa é receber os R$ 20,00 do pagamento do quarto utilizado e mais R$ 10,00 se manchar o lençol.
Considerações finais: o apedrejamento da vitrine Não é raro o caso de travestis que foram agredidas durante a realização de programas ou enquanto se encontravam “batalhando” em seus territórios. A questão da violência é, de fato, bastante presente no viver diário das áreas de prostituição, como dizem as travestis. Estar na “pista” e expor o corpo em uma vitrine significa se sujeitar a todas as intempéries das “noites sujas”. Conversando com uma travesti que não quis se identificar para preservar a sua imagem, foi possível perceber a mágoa que ela possuía em relação aos “campos de batalha”. Durante a conversa a mesma mostrou-se bastante à vontade para falar sobre prostituição, mas quando o assunto foi violência suas feições mudaram completamente, pois esta carregava algumas marcas de atos criminais. Tinha parte do corpo queimado por um vândalo que passou no ônibus e jogou ácido em seu corpo, queimando toda a parte esquerda do seu tronco. Ao ver as marcas provocadas pela violência a travesti relatou o quanto tinha lutado para construir o seu corpo, que era uma das mais belas da rua e que, em questão de segundos, um indivíduo havia destruído o que ela tinha demorado anos para construir. As travestis também apontam casos de roubos e desonestidade, mas não dos clientes, das próprias travestis. Enquanto algumas eram entrevistadas, apontavam para outra e diziam: “Aquela é desonesta, adora roubar e achacar seus clientes”. Como a maior parte dos homens que freqüentam a rua são casados, algumas costumam pegar o celular e pedir o pagamento de “resgate” pelo celular, ou então ameaçam ligar para as esposas e contar que eles saem com travestis. Outra forma de roubo é mexer na carteira dos homens enquanto esses se banham após a realização do programa. Ainda existem aquelas que combinam o programa e não cumprem o acordo, exigindo mais dinheiro do cliente para que suas vontades sejam feitas, entrando em conflito direto com cliente, o que não é bem visto pelas travestis mais antigas. A travesti Ivete em seu relato contou sobre um ato de agressão que marcou sua vida. Quando trabalhava em Copacabana, foi fazer um programa e foi agredida e torturada, além de sofrer com várias queimaduras de cigarro em seu corpo, desfalecendo e acordando no Município de Duque de Caxias. A mesma travesti confessa que já soube de vários assassinatos na Avenida, principalmente de travestis que realizam pequenos furtos na região.
Suzane confessou ter se jogado de um carro em alta velocidade devido a atos de violência que estava sofrendo. Para ela, parecia melhor jogar-se do carro, pois assim haveria a possibilidade de sobreviver, o que seria diferente se permanecesse diante do nível de tortura que estava sofrendo. Da mesma forma Daniele e Nelma declararam já terem apanhado de clientes. Essas relações, marcadas por forte assimetria, reiteram desigualdades e exclusão e geram pólos entre opressores e oprimidos, que se manifestam com maior visibilidade nas relações de gênero no espaço privado através da violência. Percebe-se que o recorrente uso da violência por travestis e contra estas aparece quando buscam resistir às condições desiguais a que são submetidas, aos preconceitos e aos descaminhos decorrentes da dialética exclusão/inclusão social, e quando aqueles que tratam destas com preconceitos calcados em estereótipos e estigmas, como se travestis fossem anomalias, homens desavergonhados, promíscuos e indignos da vida. Os atos de violência sofridos por elas e a exclusão vivenciada com base em uma percepção negativa da diferença funcionam como provocadores que legitimam outro tipo de violência: em linhas gerais, a violência como mecanismo de defesa, como mecanismo de resistência. Partilhar o espaço público com aqueles que são considerados marginais, desviantes, não é uma prática recorrente entre os indivíduos que compõem a maioria e que impõem códigos normativos da vida social. Como salienta Kulick, em estudo correlato: À noite, de todo modo, os perigos são maiores. Precisando atrair os clientes, travestis fazem pontos nas esquinas de ruas e avenidas e acabam se expondo publicamente de uma forma que, não fosse a situação, elas teriam preferido evitar. A exposição coloca as travestis em posição vulnerável, alvo fácil do assédio de policias, motoristas, transeuntes, gente que passa em automóveis e ônibus. Na maioria das vezes, a violência vem em forma de agressão verbal, mas não raro os casos de gangues de jovens espancam travestis. Também é comum ver gente que passa de carro lançar pedras e garrafas sobre elas. Algumas vezes chegam a disparar armas de fogo contra as travestis em plena rua. (Kulick 2008:47)
Dividir o espaço público com essas categorias passa a ser considerado inaceitável e a violência um recurso acionado, pois o poder do “grupo dominante” decide o que é justo ou não na sociedade. O uso da violência tanto simbólica quanto física como recurso de controle passa a ser legitimada sob a justificativa de que se deve manter a ordem moral que harmoniza a sociedade. Em busca de amenizar ou reduzir os atos de violência essas minorias constroem guetos que funcionam como espaços de solidariedade e de resistência. Além dos conflitos com os clientes, onde são inúmeros os casos de violência, como espancamento, abandono em locais desertos e até assassinatos, além da própria guerra travada pelos melhores pontos de prostituição e a violência policial, a homofobia está sempre presente no cotidiano das travestis. Nas grandes metrópoles brasileiras, sujeitos cuja identidade nãoheterossexual (suposta ou certa) é mais evidente através da exibição ou incorporação de atributos de gênero não-conformes ao sexo designado no nascimento são proporcionalmente mais atingidos por diferentes modalidades de violência e discriminação. A desestabilização provocada por sua performance de gênero, constantemente associada a um conjunto de estereótipos negativos sobre a homossexualidade em geral, torna as
travestis as vítimas preferenciais de violência homofóbica em diferentes contextos (Carrara e Viana 2006). Apesar de a violência fazer parte do cotidiano das travestis, na Avenida Augusto Severo, nos anos de 2009 e 2010 não foi registrado nenhum homicídio de travesti que “batalha” da região. Esse dado foi fornecido pelas travestis que fazem ponto no local e confirmado com a Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) do Rio de Janeiro. Sejam quais forem às violências sofridas, elas estão intimamente ligadas ao lugar social em que se encontram os sujeitos envolvidos nas situações concretas. Por esta razão, é bom lembrar que a violência dirigida às travestis tem agressores difusos e são vivenciadas em situações também relativamente obscuras, sendo suas motivações e causas difíceis de serem apontadas. Ao considerar que a violência praticada contra as travestis é uma violência de gênero, e é tão estrutural quanto à violência racial e de classe, necessário enfrentá-la como uma questão política, pois sempre aumenta e nunca diminui, como se fosse uma espécie de fenômeno fora do alcance da ação e dos interesses da sociedade e dos governos. Porém, quando se trata das formas mais graves de violência, como é o caso dos homicídios, as vítimas e os contextos de ocorrência desses crimes adquirem um perfil menos difuso e mais homogêneo: morrem desta maneira os sujeitos pobres, negros e jovens residentes nas periferias de grandes cidades brasileiras, em áreas onde são precárias as condições de vida e o acesso a direitos. Dessa forma, observamos que, ao longo do tempo, tornou-se inegável o crescimento de uma “desordem despolitizada”, observável na escala da cidade do Rio de Janeiro, por conta do aumento da criminalidade, da formação de enclaves territoriais controlados por poderes paralelos ao Estado e da deterioração do “clima social”. Nas palavras de Luis Carlos Fridman: Daí deriva uma concepção de política social em que a sociedade não deve ser onerada pelo amparo aos mais vulneráveis: todos devem ser estimulados a “mostrar o seu valor” mesmo nas condições mais adversas. Isso significa uma declaração política – encarnada no Estado e na administração dos negóciospúblicos – de que não se deve proteger aqueles que não contam com recursos e meios paraficar de pé. Propõe-se a inversão de “seres dependentes” em “seres ativos” impulsionados por uma cultura que alimenta o “ambiente interior” das pessoas através da convicção de não se precisar de ninguém. (Fridman: 2007, p. 155)
No entanto, a idéia de cidadania possui em sua base um componente espacial, onde, de acordo com o espaço estudado e com os atores que fazem desse espaço o local de suas práticas sociais, o execício da cidadania pode ou não ocorrer. Durante as entrevistas realizadas, as travestis alegaram que têm dificuldades de serem atendidas por serviços públicos como hospitais e delegacias, pois normalmente são tidas como prostitutas e tratadas como escória da sociedade. São tidas como “subintegradas”, não dispondo de acesso aos direitos, às vias e garantias jurídicas, embora permaneçam rigorosamente subordinadas aos deveres, às responsabilidades e às penas restritivas de liberdade. Os subcidadãos são os extremamente carentes de cidadania, como mecanismo jurídico de inclusão social. Cidadania pressupõe igualdade não apenas em relação aos direitos, mas
também a respeito dos deveres, envolvendo uma relação sinalagmática de direitos e deveres fundamentais generalizados. A rigidez sociopolítica, parcial e discriminatória, contraria à própria legalidade, implica generalização de conteúdos e procedimentos. Que concorrem para a marginalização.
Referências BAUMAN, Zygmunt (2009) Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. CARLOS, Ana Fani (2007) O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLHC. CARRARA, Sérgio e VIANNA, Adriana R. B. (2006) “Tá lá o corpo estendido no chão...”: a Violência Letal contra Travestis no Município do Rio de Janeiro. In: Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 16(2):233-249. DEBORD, Guy (1992) A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda. DOS SANTOS, Paulo Reis (2009) Ambiguidades no corpo e na alma: problematizando os limites dos gêneros. In: Revista de Psicologia da UNESP, 8(2). FRIDMAN, Luis Carlos (2007) O destino dos descartáveis na sociedade contemporânea. In: MELLO, Marcelo Pereira de. Sociologia e Direito: explorando as interseções. Niterói: PPGSDUFF. KULICK, Don (2008) Travestis: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. SILVA, Joseli Maria (2008) A cidade dos corpos transgressores da heteronormatividade. In: Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica: diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008., Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008. <http://www.ub.es/geocrit/-xcol/438.htm> SIMMEL, Georg (1971) On individuality and social forms. Selected writings. Edited by Donald N. Levine. Chicago/Londres, The Univerisity of Chicago Press. 1971. SIMMEL, Georg (2004) Philosophie de la modernité. Paris: Payot, 2004.