O direito penal tem gênero? A mulher em situação de violência doméstica e familiar e o sistema de justiça
Luanna Tomaz de SOUZA Doutoranda em Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI Universidade de Coimbra/Portugal Professora da Universidade Federal do Pará/ Brasil luannatomaz@hotmail.com Resumo Este artigo pretende analisar as inter-relações que se estabelecem entre o Direito Penal e as questões de gênero com o advento da Lei 11.340/06. Em realidade, ao pensarmos como se desenvolveu esta inter-relação ao longo da historia perceberemos que o Direito tem contribuído significativamente para a definição do “masculino” e “feminino” na sociedade, reproduzindo papéis que a sociedade estabelece para homens e mulheres e produzindo novas formas de desigualdades, muitas vezes sem um olhar atento aos sujeitos envolvidos no processo judicial e como estes se inserem nele. O Sistema de Justiça Criminal deixa muito patente a relação ao compor a mecânica de controle social. O advento da Lei Maria da Penha traz novos elementos para esta relação, contudo, alcançar um novo paradigma significa não apenas compor uma estrutura judiciária e um aparato legal que se volte as desigualdades de gênero, mas se apresenta necessário estabelecer uma cultura diferente, que respeite os direitos humanos das mulheres e fortaleça o reconhecimento da cidadania feminina e incorpore os estudos de gênero à aplicação da lei. Palavras-chave: Gênero, Lei Maria da Penha, Sistema de Justiça Criminal.
Abstract This article will analyze the interrelationships established between criminal law and gender issues with the advent of Law 11.340/06. In fact, to think how it developed this interrelationship throughout history we find that the law has contributed significantly to the definition of "male" and "feminine" in society, playing roles that society sets for men and women and producing new forms of inequality, often without a watchful eye on subjects involved in the judicial process and how they fit into it. The criminal justice system makes it very clear the relationship to make the mechanics of social control. The advent of Maria da Penha Law brings new elements to this relationship, however, achieve a new paradigm means not only compose a judicial structure and a legal apparatus that turns gender inequalities, but it proves necessary to establish a different culture that respects human rights of women and strengthen the recognition of women's citizenship and incorporate gender studies to law enforcement. Keywords: Gender, Maria da Penha Law, Criminal Justice System.
1. Para a efetividade dos direitos das mulheres
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o Brasil, o advento da Lei 11.340, de 22 de agosto de 2006, que dispõe sobre a violência doméstica e familiar cometida contra a mulher, recolocou no cenário público o debate acerca das relações entre o direito e as desigualdades de gênero. Esta Lei, conhecida como “Lei Maria da Penha”1, incorpora ao ordenamento jurídico nacional a categoria gênero, dispondo em seu artigo 5° que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto. Esta Lei não disciplina, portanto, o tratamento de qualquer conduta lesiva contra uma mulher, mas é necessário que esta conduta seja baseada no gênero, conforme os próprios instrumentos internacionais passam a abordar a questão. O uso desta categoria, contudo, trouxe certo estranhamento àqueles que se debruçaram sobre a interpretação e sobre a aplicação da nova Lei, por ser uma categoria nova dentro do ordenamento jurídico brasileiro, teorizada tradicionalmente por outras áreas de conhecimento, como a Antropologia, a Sociologia e a Psicologia. Desde os anos 80, é mister uma referência crescente a gênero na literatura especializada. De uma expressão pouco usual, ela se tornou quase freqüente, sendo que diversas tramas teóricas foram sendo articuladas nesse conceito. Isto permite que o mesmo adquira certa instabilidade (já que sempre envolve um terreno contestado, não fixo), quanto um fator de vitalidade, que estimula e incita a um constante questionamento e autocrítica (Louro, 1996). De acordo com Saffioti (2004), o primeiro estudioso a mencionar e a conceituar gênero foi Robert Stoller em 19682. Tais estudos carregavam marcas da militância feminista, que contribuíram para que emergisse nas ciências humanas a preocupação em se denunciar o processo de opressão que subordinava as mulheres a estereótipos e justificava desigualdades sociais sofridas, milenarmente. No Brasil tal conceito irá se alastrar rapidamente nos anos 90, a partir da circulação do artigo da historiadora Joan Scott (1989)3. O uso do conceito de gênero traz, contudo, certo estranhamento àqueles que se debruçam sobre a interpretação e sobre a aplicação do direito, sendo uma categoria nova dentro do ordenamento jurídico brasileiro, re-inserida pela Lei Maria da Penha. A Lei 11.340/06 sobrepõe a prerrogativa jurídica, pois obriga os agentes do direito a se basear em uma perspectiva multidisciplinar que objetive não somente a punição dos agentes da violência doméstica e familiar cometida contra a mulher, mas a assistência à mulher em situação de violência e a prevenção deste fenômeno, o que envolve efetivas mudanças políticas, sociais e culturais.
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Seu nome foi dado em homenagem a uma farmacêutica brasileira que sofreu por duas vezes tentativas de homicídio, esperando por 20 anos uma decisão definitiva. Sem um processo justo num tempo razoável, acionou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos que responsabilizou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica cometida contra a mulher. 2 A rigor, embora não tenha formulado o conceito de gênero, Simone de Beauvoir (1980) formulou os fundamentos do conceito de gênero, na sua famosa frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. 3 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. New York: Columbia University Press, 1989. (mimeo).
Como viés teórico, tomamos como referência as reflexões de Joan Scott que em seu texto “Gênero: uma categoria útil para análise histórica” destaca a importância que este conceito possui para análises em torno das relações de gêneros (entre homens e mulheres). Para ela, o conceito de gênero tem duas partes e várias subpartes, ligadas umas às outras. Na primeira parte gênero “é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças que distinguem os sexos”; na segunda parte o gênero “é uma forma primária de relações significantes de poder”. As subpartes estão dispersas, presentes nos símbolos e nas representações culturais; nas normas e doutrinas; nas instituições e organizações sociais; nas identidades subjetivas. Sob essa perspectiva teórica, gênero é, portanto, mais do que uma palavra: é uma ferramenta de análise que, aplicada a um dado objeto, resulta em uma forma específica de abordá-lo. Há muitas outras formas de compreender o gênero, contudo, é necessário termos como referenciais análises que rompam com as construções hegemônicas, permitindo identificar a parcialidade do sujeito, sem categorias estáveis e fechadas, que não pressupõem possibilidades de mudança na organização social. O gênero assim é um conceito-chave nas ciências sociais que se refere à construção social do sexo, distinguindo a dimensão biológica da social. Neste raciocínio, há a distinção entre os sexos na espécie humana, mas há também a qualidade de ser homem e ser mulher, que é construída pela cultura, relacionalmente. Constitui-se, assim, em uma categoria de análise que afirma o caráter social e relacional para as diversas construções do masculino e feminino ao longo da História, nos diversos contextos existentes. Importante considerar a construção dos gêneros como fundamentalmente ligada a um determinado processo social e histórico, ao envolver, de fato, os corpos dos sujeitos quando se inscrevem determinados gestos, posturas, disposições ou marcas. Gênero como constitutivo das relações sociais tem trazido valiosas contribuições, principalmente porque nos permite pensar não apenas a relação entre os gêneros: entre homens e mulheres, entre homens e entre mulheres, mas refletir sobre a própria construção cultural e social da noção de “homem” e de “mulher”, carregada de historicidade nas suas relações, ao abordarmos gênero como uma construção social, um conceito plural, que invariavelmente levaria a diversas concepções de masculino e feminino, relacionais e não antagônicos entre si e, fundamentalmente, historicamente determinados. Os estudos de gênero possibilitaram, em primeira mão, que se problematizasse a determinação biológica da “condição feminina”. O conceito de gênero nos possibilita perceber os diversos homens e as diversas mulheres, problematizando-os ao escapar de noções que os englobem por não reconhecerem as distinções de classe, condição social, idade, raça/cor ou etnia, nacionalidade e de orientação sexual como referências identitárias. Assim, é impossível separar gênero das interseções políticas e sociais em que, invariavelmente, ele é produzido e mantido. O gênero implica atribuição de identidades que não são essencializadoras e, sim, identidades plurais, perpassando por marcadores sociais constitutivos de cor/raça ou etnia, classe, idade, geração, sexualidades com o mesmo peso e importância. Esta forma de instrumentalizar o conceito de gênero como ferramenta teórica vai para além de seu sentido como atributo de “papéis” masculinos e femininos de uma determinada realidade social. O gênero é constituído e instituído pelas múltiplas instâncias e relações sociais, pelas instituições, pelas
formas de organização social e discursos que também o instituem em um processo dinâmico e relacional. Ao pensarmos a inter-relação entre gênero e Direito ao longo da História, percebemos que o Direito tem contribuído, significativamente, para uma definição do “masculino” e do “feminino” que alimentam as desigualdades de gênero. Na realidade, não há como pensar o Direito desconectado da sociedade a que serve. Sociedade esta marcada por relações assimétricas de poder entre os gêneros. Por mais que nos dias de hoje as mulheres tenham alcançado maioria nos cursos de Direito, o exercício de sua função e operacionalização é marcadamente masculino, principalmente quando falamos das esferas mais altas de poder. Exemplo disto é que apenas em 1999 uma mulher ingressou em um tribunal superior no Brasil, a ministra Eliana Calmon. Em 2006, pela primeira vez, uma mulher assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Ellen Gracie. Inúmeras dificuldades foram historicamente apresentadas às mulheres, em destaque aqui, nos cursos de Direito e nas carreiras jurídicas. Muitas abandonavam suas carreiras diante das desigualdades de gênero, de classe e raciais. O preconceito racial, por exemplo, segrega homens e mulheres em sua esmagadora maioria, e ganha caráter de excepcionalidade para quem consegue romper com essas barreiras intransponíveis, como é o caso da Desembargadora Federal Neuza Maria Alves da Silva que se tornou a primeira Desembargadora Federal negra do país, em 2004. Cabe reiterar que é tão incomum mulheres ocuparem determinados cargos de poder, que este fato se torna objeto de destaque. Na mídia, em congressos e demais eventos é sempre enfatizado que no estado do Pará, por exemplo, há um contexto diferente de outros Estados, pois o governo do Estado, a Ordem dos Advogados-Seção Pará, a Defensoria Pública, o Tribunal Estadual4 e o Tribunal Regional do Trabalho, foram dirigidos por mulheres (sem o Poder Legislativo ainda muito refratário a participação feminina), o que torna extremamente marcante para a realidade local. O fato de mulheres ocuparem estes espaços, por outro lado, não significa, ou sequer sinaliza que o Judiciário esteja mais sensível às questões da mulher ou às questões de gênero, inclusive, não é porque são mulheres que elas se voltam para essas questões e as referendam sob uma perspectiva de gênero. Tal visão imediata e simplista de associação direta levaria a uma interpretação fácil, demasiada equivocada de que a determinação biológica por sexo garantiria, de maneira automática, uma visão equitativa de gênero norteando práticas e condutas nas instituições judiciárias pela predominância do feminino. Na sociedade brasileira, temos múltiplas e variadas construções do masculino e do feminino que se fazem presentes. Neste contexto, há um grande conservadorismo em torno da ação dos (as) agentes judiciários (as), em especial das (os) magistradas (os), a par de uma rígida estrutura corporativa sob um determinado padrão simbólico masculino e masculinizador que busca manter um estilo patrimonial de administração pública.
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Este é considerado o Tribunal Estadual com maior participação feminina do país.
Foucault (2006) destacou que o poder não pode ser pensado enquanto algo fixo, como uma propriedade que se possui ou não. Os poderes não estão localizados em um ponto específico da estrutura social, mas funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa. Esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra seu exercício sejam lutas de resistência dentro da própria rede de poder, teia que se alastra pela sociedade e que ninguém pode escapar. No âmbito dos conflitos de gênero, não há como a (o) magistrada (o) estar distante de julgamentos que reflitam a forma como estes são exprimidos socialmente. Sendo homens e mulheres, estão incluídos no próprio objeto sobre o qual se debruçam, refletindo, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina. Este quadro torna-se ainda mais difícil sem capacitação continuada nesse sentido que estimule a refletir a forma como estes são expressos socialmente, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação engendrados em relações assimétricas de poder entre os gêneros, que invariavelmente remontam às estruturas históricas de uma ordem masculina dominante constitutiva do social. Dessa maneira, a estrutura judiciária no Brasil, tradicionalmente, não permite um olhar atento aos sujeitos envolvidos no processo judicial, e como estes ali se inserem. O principal efeito disto é a consolidação de um sistema de justiça que acaba restringindo direitos ao invés de garantilos. A ordem masculina determinante se evidencia no próprio fato de que dispensa justificação, naturaliza-se e impõe-se como dada e não tem “necessidade” de se enunciar em discursos que visem legitimá-la – basta reafirmá-la - uma vez que as estruturas institucionais judiciárias remontam, justificam práticas e decisões judiciais que as consagram, o que vem sendo denunciado pelos movimentos feministas e de mulheres no país, desde o final dos anos 705. Na realidade, o gênero masculino é o gênero não marcado, neutro, diferente do gênero feminino que é explicitamente caracterizado, das mais diversas maneiras: nas cores, nos corpos, nos hábitos e costumes, nos comportamentos e nas visões de mundo (Bourdieu, 2005). Quando nos voltamos a condição da mulher e às relações de gênero, para além de questões pontuais há, como a própria Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres (1993) colocou, a necessidade de se corrigir manifestações de relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres que impediram (e ainda impedem) o pleno avanço das mulheres. Nesse sentido, há a necessidade de novas formas de agir e pensar sobre a mulher na sociedade brasileira, o que pode servir de norteador de novas práticas e contribuir para 5
De acordo com Danielle Ardaillon (1989: 85), “no final dos anos 70, o tema da violência específica tomou conta dos meios de comunicação de massa com um tom veemente... A reboque das manifestações feministas na ocasião do julgamento de Doca Street no Rio de Janeiro em 1979... (Folha de São Paulo, 01.11.79), notícias cada vez mais frequentes de denúncias de violência cometida contra mulher passaram a ser divulgadas. Denúncias de estupro feitas corajosamente pelas mulheres em situação de violência e, particularmente, revelações públicas a respeito da má vontade e do descaso com os quais as autoridades policiais (masculinas) costumavam tratar tais denúncias (...) apud Conrado ( 2001: 22).
verificar que determinados fenômenos, como a violência doméstica e familiar, são por demais complexos, pois compõem um cenário no qual a mulher historicamente foi aprisionada, através de “papéis”, como mãe e esposa, e de atribuições que lhe foram designadas “naturalmente”, pois faziam parte da sua constituição enquanto sujeito e funcionavam como amarras sociais que tornam inviável uma ruptura capaz de determinar outras maneiras de pensar e agir no mundo, que não submetidas à lógica de oposição (masculino-feminino) (Conrado, 2001, p. 23). Tudo isto tendo em vista a necessidade de se refletir, também, os próprios problemas sobre os quais nos debruçamos ao pensar o Poder Judiciário como agente de mudanças. Questões como: os princípios constitutivos da justiça que fundam a experiência moderna de resolução de conflitos mediada pelo aparelho judiciário; a crise profunda de funcionamento e organização do judiciário, envolvendo dilemas como o próprio perfil do (a) magistrado (a), mentalidade e concepções jurídico-políticas e suas convicções doutrinárias; as relações de poder entre o sistema judiciário e o sistema político, problematizando-se as práticas judiciárias como instância de concentração de poder, baseadas em interesses políticos e corporativos; o acesso à justiça em uma sociedade democrática; as novas formas de sociabilidade, de contratualidade e conflitualidade que rebatem arranjos judiciários tradicionais fundados na burocratização e na obediência à legalidade formal (Adorno, 1994). No entanto, o leque de questões assinaladas, que vão além do objetivo deste artigo, serve aqui somente como parâmetro para pontuarmos o universo variado e complexo de fatos que temos que enfrentar ao incorporarmos a visão do social sob a perspectiva de gênero a serem redimensionadas no âmbito das instituições judiciárias para a efetividade dos direitos das mulheres.
2. Direito penal e Gênero O Sistema de Justiça Criminal deixa muito patente a relação entre o Direito e as desigualdades de gênero. Segundo Andrade (2006), porque o sistema de justiça criminal é parte de toda a mecânica de controle social6, que está enraizada nas estruturas sociais. Mais do que se preocupar com os sujeitos envolvidos, ele é constitutivo e reprodutor de assimetrias engendrando e alimentando estereótipos, preconceitos, discriminações e hierarquias, até porque suas normas e sua forma de execução foram estruturada a partir de uma perspectiva masculina. Como mecanismo público de controle dirige-se primordialmente aos operadores de papéis na esfera pública da produção material, no caso aos homens. Às mulheres, historicamente foi destinada a esfera privada, espaço da privação de todos os direitos que lhes facultariam se tornarem visíveis, alcançar um espaço na comunidade. Esta delimitação público x privado é, para Almeida (1998, p. 111), “uma construção ideológica, que encobre e perpetua áreas refratárias ao olhar público e à elaboração de determinadas políticas públicas, que não interessam ao modelo hegemônico de sociedade”. 6
Por controle social designa-se, em sentido lato, as formas com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problemáticos, ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de outra e, nesta reação, demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) a próprio desvio e a criminalidade como uma forma específica dele (Andrade, 2006).
O Sistema de Justiça Criminal ao se estabelecer enquanto um mecanismo público de controle social da esfera publica, constitui-se enquanto um mecanismo masculino de controle de condutas masculinas, em regra daqueles que assumem na sociedade a figura de “sujeitos perigosos”. Os presídios terminam assim lotados por homens jovens, negros, pobres, desempregados. Segundo Buglione (2007), a criminalidade feminina no Código Penal Brasileiro sempre se limitou ao que se pode chamar de "delitos de gênero", como infanticídio (art.123 CP), aborto (art.124 CP), homicídios passionais (art. 121 CP), exposição ou abandono de recém nascido para ocultar desonra própria (art.134 CP), furto (art. 155 CP), além da idéia de que a conduta criminosa estivesse estritamente relacionada com os delitos dos companheiros e maridos. Há assim poucos estudos, referências e políticas criminais direcionadas às mulheres. Estas se inserem, em regra, no sistema de justiça criminal na figura de vítimas, principalmente ao se tratar do controle sobre sua sexualidade7, ou seja, na “preservação da virgindade e zelo pela reputação da mulher”. Aqui, todavia, também o sistema faz suas seleções binárias, existindo as vítimas honestas ou não, como as prostitutas. Na criminalização sexual o sistema criminal segue, com grande contundência a lógica da seletividade, acendendo seus holofotes sobre as pessoas (autor e vítima) envolvidas, antes que sobre o fato-crime cometido, de acordo com estereótipos de violentadores e vítimas. Nos Tribunais talvez seja onde mais radicalmente se percebe os conflitos de gênero. As decisões judiciais expressam toda essa conflituosidade, possuem uma dinâmica própria, de movimentos contraditórios, e por isso compõem um universo heterogêneo, permeado de avanços e retrocessos. Essas decisões devem ser entendidas não apenas dentro da lógica interna da justiça, mas dentro da lógica da sociedade e das formas que apresenta para a solução desses conflitos. O sistema de justiça criminal quando se volta aos conflitos de gênero expressa o imaginário de casamento, de família e de papéis sociais presentes na sociedade8. O agressor que é um bom pai de família raramente é punido. Por outro lado, a mulher que exerce sua sexualidade é trata de forma desdenhosa e seu testemunho acaba sendo desconsiderado. Não se pode esquecer também do surgimento da excludente de criminalidade que nunca figurou na lei: a legítima defesa da honra, que deu ensejo à absolvição de um sem-número de maridos e ainda hoje é utilizada. Em realidade, existe uma lógica anterior aos fatos, que é a forma como a Justiça (na voz de seus representantes) constrói um modelo ideal de homem e de mulher. Muitas vezes está em jogo num julgamento a forma como os acusados e as vítimas se travestem de modelos repletos de ambigüidades e contradições que refletem os preconceitos de que estão revestidos os próprios juízes.
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O controle da sexualidade feminina, através de seu aprisionamento na função reprodutora, historicamente constitui, ao lado da centralidade do trabalho doméstico, um dos dois grandes eixos pelos quais se concretizam as relações específicas de dominação, controle que encontra na lei penal vigente largo campo de atuação. 8 Correa (1983) e Izumino (2004) explicitam este ponto com grande magnitude, trazendo exemplos de decisões judiciais e a forma como estas incorporam as dinâmicas de gênero.
Os delitos sexuais no Brasil sofreram recente modificação 9 que os considera não mais “crimes contra os costumes”, mas sim crimes contra a dignidade sexual. A objetividade jurídica protegida é a integridade sexual da mulher e não mais a moral social, como se a parte ofendida fosse o ente social, e não a mulher. Nos séculos XIX e XX, muitos bens jurídicos acabaram cindidos, restando à esfera sexual muito mais um verniz subjetivo do que qualquer outra coisa. Segundo Silveira (2007) o pudor, a moral, a honestidade e os costumes, sedimentados pelo peso da religião, culminaram no que se poderia ter por liberdade sexual. Desta feita, ainda hoje percebemos no julgamento destes crimes, um quadro onde muito mais do que elucidar determinantes contextuais e sociais da quebra das normas, representa a defesa de um sistema de valores. O crime, como uma quebra de determinada regra jurídica, servirá ao mesmo tempo como pretexto para o escrutínio da adequação ou não do acusado e da vitima a outras normas de convívio social e ao seu reforço ou enfraquecimento. As reformas nesses crimes começaram em 2005, através da Lei 11.106, extinguindo de nosso ordenamento colocações relativas a honestidade da mulher (extremamente ligada a moral sexual) ou mesmo quanto a incriminação do adultério. Tal reforma segue a reformulação de conceitos penais sexuais que a Europa implementou desde a década de 60. Tais reformas ainda resistem, contudo, diante do conservadorismo da sociedade. Prova disso é o que ocorreu com o estupro, que nos termos do Código Penal era considerado um crime de ação penal privada, somente sendo processado com a vontade da mulher. O que ocorria na prática era deixar sob única responsabilidade da mulher o desenvolvimento do processo. Esta arcava com o ônus de acompanhar o processo desde a fase policial, tendo que contratar um/a advogado/advogada, sofrendo pressões por parte do agressor, revivendo constantemente a agressão sofrida e muitas vezes abandonando o prosseguimento do feito. A Lei 8.072, de 25 de setembro de 1990 coloca o estupro no rol dos chamados “crimes hediondo” aumentado a rigidez e severidade da resposta punitiva. O STF - Supremo Tribunal Federal, contudo, redimensionou a interpretação que havia dado ao crime de estupro, deixando-o de considerá-lo como crime hediondo nos casos que não envolviam lesão corporal de natureza grave ou morte. Tal interpretação possibilitava a flexibilização da aplicação do regime de pena para as pessoas condenadas pelas suas práticas, quando houvesse "apenas" a violência sexual. Graças à dissidências nesse entendimento e a críticas dos movimentos de mulheres, o Supremo Tribunal Federal mudou, em 17 de dezembro de 2001, seu entendimento para considerar a forma simples como hedionda 10. O STF também editou a Súmula 608 que considera o estupro crime de ação penal pública incondicionada, colocando a punição enquanto uma obrigação do Estado. Ocorre que a Lei 12. 015 altera o Código Penal tornando o estupro crime de ação penal pública condicionada a representação, onde o prosseguimento da ação somente ocorre com
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Através da Lei n 12.015 de 2009. A nova jurisprudência ficou consolidada pelo julgamento do Habeas Corpus (HC 81288), tendo sido indeferido o pedido de redução de pena por um pai condenado por manter relações com filhas menores de idade durante um período prolongado. 10
a iniciativa da vítima, ignorando todo o avanço trazido pela Súmula 608 e trazendo grande prejuízo para os processos que tramitavam11. Importante destacar que todo esse sistema em torno do Direito Penal no âmbito dos crimes sexuais sustenta-se, conforme disciplina Baratta (1978), sob uma ideologia extremamente sedutora e com um fortíssimo apelo legitimador (da proteção, da evitação, da solução) como se à edição de cada lei penal, sentença, ou cumprimento de pena, fosse mecanicamente sendo cumprido um pacto mudo que opera o traslado da barbárie ao paraíso. Contudo, é necessário ter um olhar mais acurado da própria sociedade brasileira e da sua absoluta carência de direitos e de cidadania. Mais do que saber se os números reforçam a idéia de impunidade, é importante saber se os desfechos processuais não correspondem aos anseios da sociedade, que muitas vezes recorreu à Justiça não necessariamente para a punição, mas para o chancelamento de uma solução já determinada pelo grupo.
3.O sistema de justiça criminal e a lei maria da penha Pudemos perceber as resistências existentes no âmbito do sistema de justiça à incorporação dos estudos de gênero. Alguns agentes do Direito chegam a proclamar a Lei Maria da Penha como inconstitucional prever tratamento diferenciado a violência cometida contra a mulher da violência cometida contra o homem, quando de fato ela concretiza os preceitos da Constituição Federal de 1988 que consagra para além da igualdade formal a exigência ética da "igualdade material", como um processo em construção, como uma busca constitucionalmente demandada. A ótica material objetiva construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade e, assim sendo, o reconhecimento de identidades e o direito à diferença é que conduzirão a uma plataforma emancipatória e igualitária. Importantes iniciativas têm ocorrido para que o Direito se constitua como um efetivo instrumento para enfrentamento das desigualdades de gênero, como a edição da Lei Maria da Penha. Contudo, a simples mudança no ordenamento jurídico não representa um real comprometimento com a concretude da cidadania feminina manifesta pelos (as) juristas e magistrados (as). Ainda hoje temos inúmeras dificuldades para a efetiva aplicação da Lei. Em Belém, capital do Estado do Pará, faltam varas, promotorias e delegacias especializadas; profissionais do Direito para atuar nas estruturas criadas; capacitação para os/as servidores/as; além de mais sintonia na interpretação da lei, pois cada juiz/a que ocupa uma das varas, pensa diferente sobre questões fundamentais e altera os procedimentos existentes, principalmente no que concerne a pontos polêmicos da lei, como a questão da competência12 e da aplicação da Lei nº 9.099/95. 11
Esta modificação foi aplicada mesmo aos crimes ocorridos antes da vigência da Lei por beneficiar o agressor levando a situações extremas onde processos poderiam ser extintos quando a vítima estivesse morta e não tivesse ninguém que a representasse. 12 A Lei Maria da Penha determina que as varas de violência doméstica e familiar terão competência para julgar questões cíveis e criminais. Alguns juízes, de claro viés criminalistas, todavia, não se sentem competentes para julgar questões civeis transferindo esses processos para as varas de família.
Esta Lei, que criou os Juizados Especiais Criminais aos quais são encaminhados os processos com pena máxima até dois anos, banalizou muitos casos de violência cometida contra as mulheres, pois trazia uma série de benefícios ao agressor e possibilitava o acordo entre as partes, no que quase sempre redundava no pagamento de cestas básicas. Este dispositivo causou inúmeras resistências, pois muitos agressores queriam se beneficiar da lei. Somente no dia 24 de março deste ano o Supremo Tribunal Federal considerou a constitucionalidade do artigo 41 da Lei 11.340/2006 que afastou a aplicação da Lei nº 9.099/95, tornando impossível a aplicação dos institutos despenalizadores nela previstos, como a suspensão condicional do processo. De fato, muitos criminalistas são avessos a Lei, por acreditarem que a mesma é muito rigorosa para com os agressores e deveras protetiva para as mulheres, ignorando toda a luta do movimento de mulheres para que uma lei enfrentasse essa cultura de violência existente no país onde a cada 2 minutos 5 mulheres são agredidas13. Os dados apontam claramente que em 5 anos de existência sua aplicação produziu mais de 330 mil processos nas varas e juizados especializados da Justiça brasileira. Desse total de ações, 111 mil sentenças foram proferidas e mais de 70 mil medidas de proteção à mulher foram tomadas pela Justiça. Além disso, foram realizadas 9,7 mil prisões em flagrante e decretadas 1.577 prisões preventivas de agressores. Toda essa resistência na aplicação de uma lei que tem enfrentado uma realidade tão gritante configura verdadeira violência institucional. As mulheres em situação de violência já se encontram diante de diversas barreiras sociais difíceis de serem transpostas, como a pressão de familiares, dos amigos, (em alguns casos) da Igreja ao invocarem a “preservação da família”. E, sobretudo, as ameaças de novas agressões e de morte a que elas são submetidas. Em grande parte dos casos há o medo por parte das mulheres com a possibilidade de prisão do ex-companheiro e o rompimento de laços familiares ou a perda do padrão de vida. Quando finalmente decidem denunciar, defrontam-se com um processo moroso, técnico e frio aos seus anseios14, com agentes sem capacitação adequada para entender seu problema e lhe dar as devidas orientações. As mulheres em situação de violência sentem dificuldade de compreender os meandros da Lei porque não são colocadas como protagonistas dos debates acerca das ações que protagonizam e se vêem reféns das imposições do marido e familiares e em muitos casos dos agentes do direito que atuam em seus processos. Um dos principais desafios é justamente como transformar o direito em um valor. Reconhecer a violência para nomeá-la, tipificá-la ao atribuir-lhe significados que dialoguem com o social e com o contexto individual em que foi impetrado para sua real efetividade é um dos principais desafios a serem enfrentados.
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Portal Contas Abertas/Especial DIÁRIO Gazeta. Disponível em: http://www.gazetatorres.com.br/noticiarionacional/54-geral/882-a-cada-2-minutos-5-mulheres-agredidas-no-brasil.html. [25 de março de 2011] 14 A decisão foi tomada no julgamento do Habeas Corpus (HC) 106212, em que Cedenir Balbe Bertolini, condenado pela Justiça de Mato Grosso do Sul à pena restritiva de liberdade de 15 dias, convertida em pena alternativa de prestação de serviços à comunidade, contestava essa condenação.
É possível traçar limites, nesse sentido, na atuação de outras instituições inclusive nas Delegacias, como é o caso da DEAM- Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher em Belém, no Pará. É perceptível, por exemplo, a dificuldade de um grande número de mulheres em registrar ocorrência policial, principalmente nos casos de violência que não envolvem agressões físicas ou sexuais, quando são somente encaminhadas para o setor psicossocial. Sem uma reflexão atenta às condutas de gênero, por exemplo, as mulheres atendidas são marcadas por estereótipos: “ela é louca”, “ela fala muito”, “ela não entende nada”, “elas sempre desistem”, como podemos evidenciar nos depoimentos com as profissionais da DEAM.
Considerações finais Em verdade, a efetividade dos direitos sociais subsumida ao campo do direito conduz a uma cidadania passiva de clientes a um Estado providencial. Não há como as pessoas usufruírem, por exemplo, da garantia de fazer valer seus direitos perante os tribunais se não se vêem representadas às suas demandas sob a ótica da justiça. Longe de procurar a cura salvífica dos indivíduos, é fundamental expandir espaços de debate e capacitação sobre o assunto que contribuam para uma nova cultura jurídica. Garantir o acesso e a resolução de casos na justiça, de fato, começa desde a formação jurídica nas escolas de Direito que precisam, mais do que nunca, enfatizar os aspectos éticos e humanos da profissionalização. Cabe ao Estado, principalmente, fomentar o desenvolvimento de práticas e mudanças de mentalidades que estabeleçam o exercício democrático no âmbito das relações sociais, que possibilitem aos sujeitos serem capazes de identificar seus direitos, na letra da Lei, e de buscarem a melhor solução para os problemas que as (os) afligem, enfrentando as desigualdades de gênero, de classe e raciais. Entretanto, na estruturação dos órgãos de atendimentos judiciário e policial a mulher em situação de violência, como a DEAM e as Varas de Juizado não foram verdadeiramente pensadas as reais estruturas que perpetuam a violência, as condutas de gênero e o papel assumido pelo Judiciário, bem como de seus agentes, o que (também) alimenta uma constante sensação de impotência em seu corpo funcional. O judiciário continua, assim, sem considerar o conjunto de condições sócio-históricas favoráveis à reprodução deste fenômeno. As mulheres em situação de violência sequer foram colocadas no foco do debate na implementação e enfrentamento da violência doméstica e familiar, conforme as questões postas aqui, uma vez que assim as (re) definem na condição de clientes de um Estado inalcançável, não feito para elas.
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