RTC9Jos Batista Dal Farra

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O Testamento da Rapsoda Prof. Dr. José Batista Dal Farra Martins (ZEBBA DAL FARRA) Departamento de Artes Cênicas Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo dalfarra@usp.br Resumo No dia 21 de novembro de 2004, no estação7, na época o espaço teatral do Grupo dos 7, localizado em Santana, na cidade de São Paulo, a atriz, professora e diretora teatral brasileira Myrian Muniz proferiu sua última fala pública. Presença luminosa nesta noite, registrada no DVD “Caixotes no Caixote” (2006), Myrian falou aos alunos do estação7, como mestra do Grupo dos 7, em uma argumentação aparentemente caótica, mas extremamente consistente e coerente com as suas experiências de vida teatral. A partir de trechos desta fala, o artigo se propõe a descobrir o seu testamento, ditado na dicção da atriz rapsoda, para a qual confluem os fluxos da música e do teatro, como pulsos rítmicos corporais e vocais. O ator rapsodo repercute no poeta-cantor-narrador grego: o rapsodo é aquele que cose os cantos. Na Grécia Arcaica, preservação e transmissão da memória coletiva se processavam pela vocalidade. A memória se conservava pela ação da palavra poética sobre o Outro, tornada presente nas vozes dos rapsodos. O texto é fruto de pesquisa docente (“A voz do ator segundo Myrian Muniz”: Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) e pós-doutoral (“Linguagem, experiência e memória: poéticas da voz do narrador e do cantor como sujeitos do ator”: Universitat de Barcelona, Fapesp). Palavras-chave: atuação, corpo, voz, música; linguagem.

Abstract On 21 November 2004, at the estação7, which were the Grupo dos 7's theatrical space, localized in Santana, in São Paulo, the Brazilian actress, teacher and theater director Myrian Muniz made her last public speech. Shinning presence in that night, registered on the DVD “Caixotes no Caixote” (2006), Myrian, the Grupo dos 7's master, talked to the pupils of the estação7, in an argumentation apparently chaotic, but extremely consistent and coherent with her theatrical life experiences. This article proposes to discover her testament, dictated on the rhapsode actress diction, by the streams of music and theater, with vocals and corporals rhythmic pulses. The source of the rhapsode actor is the Greg poet-singer-narrator: the rhapsode is who joins the chants. In Archaic Greece, preservation and transmission of collective memory were processed by vocality. The memory was conserved by the poetic word action toward the Other, being present by the rhapsode voices. This text is fruit of teaching (“The voice of the actor according to Myrian Muniz”: Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) and post-doctoral researches (“Language, experience and memory: poetics of the voice for the narrator and the singer as subjects of the actor” - Universitat de Barcelona, Fapesp). Keywords: acting, body,voice, music, language.


Todo lo que se aprende de memoria se aprende, en efecto, por contagio (se aprende a cocinar con un bon cocinero, o a pintar con un bon pintor, etc.), mirándose en el Otro (el cocinero, el pintor) como en un espejo.1

Q

uando se chega a ser ator? Há um momento exato de um processo de formação teatral em que posso dizer: sou ator? Como o cozinheiro, o pintor e o caçador, o ator não aprende mirando-se no Outro, mirando-se no Mestre, como em um espelho? O caçador adivinha a posição precisa da caça no instante justo, como o poeta caça as palavras para seu poema: o poeta é o caçador no bosque das palavras. O ator adivinha a paixão e a ação de sua atuação, flechas que se dirigem a si mesmo e ao Outro. Não se trata de escolha, antes de adivinhação. No ato da flechada, da composição poética ou cênica, o caçador, o poeta e o ator se recordam do que é ser caçador, poeta, ator. O filósofo espanhol José Luis Pardo diz, de forma muito concisa e bela, em seu livro “La regla del juego”: No, el poeta no ve nada (Homero estaba ciego), el poeta adivina (también estaba ciego Tiresias, el adivino) y recuerda (Homero tenía que poseer una memoria prodigiosa para recitar “Ilíada”). (…) A la pregunta acerca de cómo puede el poeta ciego adivinar con sus palabras el ser de las cosas se responde igual que a la pregunta de cómo puede, en general, el cazador acertar a la presa a que quiere cazar: porque lo recuerda (recuerda lo que significa ser cazador).2

Do que é feito o conhecimento do ator, qual sua matéria formativa? O caçador deve ser capaz de selecionar o campo de caça, aprimorar sua escuta e afinar seu faro, cultivar um estado de atenção, além de manejar com precisão íntima o arco e a flecha. O ator deve ser capaz de selecionar o campo de cena, aprimorar sua escuta e afinar seu faro, cultivar um estado de atenção, além de manejar com precisão íntima o corpo e a voz. O arco e a flecha, instrumentos do caçador, são objetos, artefatos que se encontram fora dele, como o sax para o saxofonista, o martelo e o cinzel, para o escultor. O instrumento do ator – e do poeta – é seu corpo, se entendemos a voz como produção e extensão do corpo. Poeta e ator se assemelham, se confrontam, se completam: um se esconde na escrita, o outro se mostra na cena. O saber do ator, como do caçador, do cozinheiro e do pintor, é um saber de memória, que se imprime pela experiência. Jean-François Lyotard conceitua assim a forma essencial da experiência: “já não” sou o que sou, e “ainda não” sou o que sou.3 O que “já não” é conhecido, “já” foi conhecido, mas para que a experiência aconteça, é preciso abandoná-lo, é preciso fomentar um espaço de ignorância. A experiência instaura uma tensão entre o “já não ser ator” e o “ainda não ser ator”, ou seja, a cada instante, eu já não sou e eu ainda não sou, pois o aprender em teatro é repisar caminhos, gastar e desbastar os pés, ao mesmo tempo em que se deixam pegadas no chão. A experiência formativa do ator se situa, portanto, na brecha entre o “já não” e o “ainda não” e se constrói na memória da mirada. Nesta brecha da experiência se instala a poética pedagógica da atriz, professora e diretora

1 Pardo, 2004: 29. 2 Pardo, 2004: 25-27. 3 Citado por Jay, 2003: 171.


brasileira Myrian Muniz4, mestra de um teatro que compreende os requisitos do caçador, do poeta e do ator, e sabe que “la vida, como la experiencia, es relación: con el mundo, con el lenguaje, con el pensamiento, con los otros, con nosotros mismos, con lo que se dice y lo que se piensa, con lo que decimos y lo que pensamos, con lo que somos y lo que hacemos, con lo que ya estamos dejando de ser. La vida es la experiencia de la vida, nuestra forma singular de vivirla.”5 Sua última fala pública, realizada em 21 de novembro de 2004, na cidade de São Paulo, no estação76, tem o tom de testamento: herança legada e dirigida a seus aprendizes. Nela, reafirma e repassa relatos, princípios, ensinamentos, “já não” conhecidos e “ainda não” conhecidos, pois quando o aprendiz escuta a ressonância do mestre, acessa um saber que reafirmará e repassará: recordará na experiência artística, teatral. Assim como o aprendiz escolhe o mestre, o mestre escolhe o aprendiz, mesmo que estas opções não sejam conscientes. Ao aprendiz atento, de orelhas em pé, basta-lhe um instante para captar a essência da fala do mestre. Porém, será preciso tempo para que este lampejo, esta faísca de puro impulso formativo, se incorpore em memória, como experiência. A fala de Myrian testamenta uma herança que é o tesouro que ela nos deixa. “El testamento, cuando dice al heredero lo que le pertenecerá por derecho, entrega las posesiones del pasado a un futuro.”7 O testamento convida os herdeiros a usufruírem do tesouro de uma tradição teatral, plenamente enriquecida e autenticada pela experiência da mestra. Myrian fala, como sempre, de improviso, de memória, de ouvido, porque são experiências que ela pisou e repisou, amassou como uva com que se faz o vinho. Não que não se preparasse: provavelmente, na solidão da sua casa, repassara e rememorara os passos, escrevendo a mão em um caderno comum os itens principais, com letras enormes, uma frase por página. Naquela noite de domingo, antes da conversa, fez parte desta afinação sua participação na roda do Teatrosamba do Caixote, na qual várias vezes conduziu músicos, atores e espectadores, no jogo com os panos da cenografia, entregando-se ao andamento do batuque do samba. Também compôs o rito preparatório a queima de eucalipto seco em uma gamela, que, desde quando esta prática surgiu8, Myrian confiava a Claudia Pacheco: o fogo e a fumaça eram elementos de purificação do espaço e de disponibilização dos atores. No instante que antecede sua atuação, o campo de sua memória preparada se confronta com a iminência da experiência do porvir: o mestre treme. Jorge Larrosa descreve assim este momento: 4 Myrian Muniz (1931-2004) era antes de tudo atriz – como constatam, por exemplo, suas inesquecíveis criações, dirigidas por Augusto Boal para o Teatro de Arena, nos anos 60, e os filmes em que atuou, especialmente quando dirigida pela cineasta Ana Carolina. Amava os atores e as atrizes, e estabelecia com eles um pacto, regido por uma compreensão profunda de suas necessidades e desejos. Os requisitos da pedagoga e da diretora emanavam naturalmente dos requisitos da atriz, o que transformava o aprendiz de teatro em um aprendiz de ator. Durante vinte anos, do outono de 1984 à primavera de 2004, estação de sua morte, fui seu aprendiz. 5 Larrosa, Jorge. Herido de realidad y en busca de realidad. Notas sobre los lenguajes de la experiencia. In: Domingo y Ferré, 2010: 88. 6 No período de 2003 a 2005, o estação7 foi o espaço teatral e musical do Grupo dos 7, cujo núcleo era composto, na época, por Claudia Pacheco, Adelaide Pontes, Divino Silva e por mim, todos aprendizes de Myrian Muniz. 7 Arendt, 1996: 11. 8 Foi na inauguração da “Casa da Gávea”, espaço teatral dirigido por Paulo Betti e Cristina Pereira, entre outros ex-alunos de Myrian, no Rio de Janeiro, em 1992.


Antes de empezar a hablar, el maestro tiembla. Y ese temblor se deriva de su presencia. De su presencia silenciosa, en ese momento, y de la inminencia de su presencia en lo que va a decir. Eso es seguramente la voz, la presencia en lo que se dice, la presencia de un sujeto que tiembla en lo que dice. Y por eso las aulas son, o han sido a veces, o podrían haber sido, lugares de la voz, porque en ellas los alumnos y los profesores tenían de estar presentes. Tanto en sus palabras como en sus silencios. Quizá, sobre todo, en sus silencios.9

Foi depois que a roda se fechou, que ela, a maior parte do tempo sentada, falou, proferiu, ditou seu testamento, baseado na memória de um ser e de um fazer, de uma ação e de uma paixão, mesclando canto e narrativa, como uma rapsoda. O rapsodo é aquele que tece os cantos, junta, une, justapõe fragmentos de experiência, que entoa de memória, de ouvido, de cor. O rapsodo evolui no espaço existente entre o cantor e o narrador, entre o intransitivo e o transitivo, entre a paixão e a ação. Como professora, Myrian tendia para o lírico, trabalhava sobre os requisitos do ser teatral e, portanto, professava uma fala melódica e apaixonada. Como atriz, grande comediante que era, se apoiava num sentido épico, numa dicção épica, ação dirigida ao Outro, na pulsação do mundo. Sua fala-testamento é rapsódica, pois, na dicção de uma tradição, integra estes dois mundos – o lírico e o épico, criando-se um campo de tensões estampado em um discurso que se abre para o Outro, provoca e pergunta. Quais são alguns dos temas que podemos identificar em sua fala? Aí eu queria ser uma heroína na minha vida. Eu queria ser a Florence Nightngale. A Florence Nightngale era uma enfermeira inglesa Florence inglesa de alto padrão, altíssimo de altíssimo padrão ela era.10

Myrian inicia sua fala, com um relato de seu percurso anterior à opção pela atriz e a Escola de Arte Dramática, que ela cursou de 1958 a 1961: com o desejo de ser bailarina e sua atuação como enfermeira. Sua história de vida se encontra com um postulado posterior da mestra: tudo começa pelo corpo. O corpo sempre se colocou no início de sua poética teatral: escuta corporal, movimento, prazer do movimento, toque e contato com o Outro, brincadeira, dor, jogo. A voz vibrante conecta as energias corporais mais elementares com o invisível: para ela, a atuação do ator nascia do acasalamento fecundo do corpo e da voz. Então eu queria ser a Florence Nightngale porque eu fui dançar no Municipal e derrubei a primeira bailarina.

Então eu derrubei a primeira bailarina eu vinha de piruetas assim não me controlei bati na primeira bailarina 9 Larrosa, Jorge. Herido de realidad y en busca de realidad. Notas sobre los lenguajes de la experiencia. In: Domingo y Ferré, 2010: 92. 10 O registro da fala de Myrian Muniz no estação7 está disponível no seguinte endereço: http://www.youtube.com/user/grupodossete. Na sequência do texto, as citações sem referência correspondem a este registro. A transcrição procura captar o ritmo da sua fala, suas pausas e respirações.


eu continuei rodopiando fui parar lá dentro da coxia e caí em cima da professora. A professora me pegou e falou assim: A senhora não dá pra isso. Procure outra coisa.

Frustrada em sua vontade original, abandonada a bailarina, Myrian se torna enfermeira, passando a cultivar um olhar para o Outro, dirigido às suas necessidades mais básicas e às suas dores mais cotidianas. Esta opção, feita aos 22 anos, a aproxima da morte, como concretude da existência humana. As secreções, os líquidos e os sólidos, que o ser humano produz, fazem parte da vida e exprimem de forma incontestável sua finitude, condição necessária da fecundidade. Jorge Larrosa diz assim: “Y la fecundidad, ¿no tiene a ver con el hecho de nuestra finitud, con el hecho de que nacemos y morimos, con el hecho de nuestra común mortalidad? Sólo un ser mortal es fecundo, sólo un tiempo mortal, o una vida mortal, o una palabra mortal, o un pensamiento mortal, pueden ser fecundos, es decir, son capaces de que algo otro nazca de la entrega de su propio tiempo, de su propia vida, de su propia palabra, o de su propio pensamiento.”11 Finitude e fecundidade. A presença da morte, marca da experiência humana e teatral – é preciso se preparar para o bafejar da morte, preludia a formação especificamente artística de Myrian, de maneira absolutamente singular: como enfermeira. Ela se pergunta, como se já prevendo a resposta: será que pra fazer teatro eu tive que fazer essa caminhada? Será um traço forte de seu enfoque teatral a busca da percepção e do acolhimento do Outro por inteiro, sem o temor do contato estreito com suas secreções e, como ela dizia, com seu anjos e demônios. Neste sentido, seu teatro será rude, sempre em construção, feito de algodão cru, em colisão com as superfícies polidas, que têm a pretensão arrogante de esconder as marcas da história nos objetos. Chegaram com o sapo num saco o homem jogou numa piscina lá e eu fiquei olhando eu tinha um medo daquele sapo.

A história do sapo, vivida ainda em seus tempos de enfermeira, acessava o tema do medo, presente de forma intensa em todo o percurso pedagógico da mestra. O enfrentamento com o medo, a percepção corporal do medo, as estratégias de luta e os pactos com o medo eram princípios a se captar e compreender. O medo era o primeiro inimigo a ser superado pelo homem de conhecimento. A referência provinha do texto Las enseñanzas de Don Juan, em que Carlos Castaneda, seu autor, relata uma experiência de aprendizagem com um mestre índio yaqui de Sonora, estado da região noroeste do México. Cuando un hombre empieza a aprender, nunca sabe lo que va a encontrar. Su propósito es deficiente; su intención es vaga. Espera recompensas que nunca llegarán, pues no sabe nada de los trabajos que cuesta aprender. Pero uno aprende así, poquito a poquito al comienzo, luego más y más. Y sus pensamientos se dan de topetazos y se hunden en la nada. Lo que se aprende no es nunca lo que uno creía. 11 Larrosa, 2008: 11.


Y así se comienza a tener miedo. El conocimiento no es nunca lo que uno se espera. Cada paso del aprendizaje es un atolladero, y el miedo que el hombre experimenta empieza a crecer sin misericordia, sin ceder. Su propósito se convierte en un campo de batalla. Y así ha tropezado con el primero de sus enemigos naturales: ¡el miedo! Un enemigo terrible: traicionero y enredado como los cardos. Se queda oculto en cada recodo del camino, acechando, esperando. Y si el hombre, aterrado en su presencia, echa a correr, su enemigo habrá puesto fin a su búsqueda.12

Eis a enunciação do confronto com o medo, que se deseja provisório, já que se supõe sua superação e ela implicará no aparecimento de novos inimigos. Myrian reconhecia o medo como um inimigo do conhecimento a ser vencido não só pelo aprendiz mas, antes de tudo, pelo mestre: sua pedagogia se sustenta por um encadeamento vivo de experiências, que só será possível pela valorização da relação. Portanto, o medo era também inquietação sua e sua era a percepção dos requisitos do aprendiz de ator que tornavam genuíno o manifesto coletivo quando rezava os versos de Drummond: Provisoriamente não cantaremos o amor, que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, não cantaremos o ódio porque este não existe, existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro.

O enfrentamento com o medo se realiza em três campos de luta: do ser, da pessoa e do cidadão. No campo do ser, encaramos os temores solitários, forjados nas frestas da memória: o medo pai e companheiro, “o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos, (…) o medo das mães.” No campo da pessoa, espaço do ético, confrontamos o Outro e seu cardápio de medos, deparamos com a dificuldade dos toques das mãos, dos olhares, da voz: os abraços estéreis. O campo do cidadão se configura no domínio da política, das relações com a cidade e a sociedade: o medo dos soldados, (...) o medo das igrejas, cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas.13

Diz Hannah Arendt: “A necessidade do terror nasce do medo que, com o nascimento de cada ser humano, um novo começo se eleve e faça ouvir sua voz, no mundo.” 14 Para cada uma destas três qualidades de medo, Myrian trazia exemplos de experiências pessoais, especialmente aquelas relacionadas aos anos da ditadura militar, nos quais, pela ameaça cotidiana, exigiam-se peremptoriamente atitudes de confronto. Nos anos 60, o Arena foi o espaço da atriz. O Teatro Escola Macunaíma, nos anos 70, o espaço da mestra. O medo e o desequilíbrio da atriz engendraram a professora, pois urgia um olhar de fora e uma busca por serenidade. Como semear a disponibilidade corporal necessária à atuação num terreno esterilizado pelo medo? Como instaurar o receptivo dos abraços num espaço em que seu impulso se refugiou mais abaixo da escuridão das galerias? Estas indagações geraram princípios, formulados em correspondência com os campos do ser, da pessoa e do cidadão, 12 Castaneda, 2002: p. 27-28. 13 Andrade, 1974: 49. 14 Citado por Larrosa, 2010: 190.


sujeitos que se fundem no ator. Tudo começava no ser, para estabelecer um estado de escuta de si, portanto receptivo, buscando-se uma disponibilidade corporal para o rito teatral, que supõe a presença do Outro. Reafirma-se, assim, o requisito central da poética pedagógica muniziana: a presença do Outro e a consequente importância da relação. Postular estes dois princípios mostra a concretude dos enfoques, em que o calor dos sentidos eleva a temperatura dos toques. Em sua fala-testamento, Myrian faz um corte radical no final do poema e transfere a cena do medo para nossa privacidade comum, que, não por acaso, faz recordar um conhecido dito popular. Expõe assim, com aguda ironia, a fragilidade de nossa condição humana. De tudo a gente tem medo medo grande dos sertões dos mares dos desertos medo das igrejas das mães da polícia medo dos democratas dos ditadores da morte de depois da morte e depois nós morremos de medo e o nosso cu baixa e nós cagamos uma merda fedida e é isso que a gente é assim.

A ação de cantar o medo coloca em movimento a imobilidade que o medo provoca, pela vibração coletiva das vozes nos corpos: é o guerreiro em luta “contra inimigos praticamente imbatíveis. (...) Uma vez tendo derrotado o medo, ele adquire clareza de espírito, que se torna então seu segundo inimigo.”15 - ¿Pero no volverá el hombre a tener miedo si algo nuevo le pasa? - No. Una vez que un hombre ha conquistado el miedo, está libre de él por el resto de su vida, porque a cambio del miedo ha adquirido la claridad: una claridad de mente que borra el miedo. Y así ha encontrado a su segundo enemigo: ¡la claridad! Esa claridad de mente, tan difícil de obtener, dispersa el miedo, pero también ciega.” 16

A superação do medo se dá pela clareza, concordava Myrian. Porém, a clareza gerava o poder, o terceiro inimigo, e, neste processo, os perigos da soberba – para ela, o nome da cegueira. Neste ponto de inflexão, Myrian divergia do mestre yaqui, pois esta cegueira conduzia inexoravelmente para o medo, reiniciando-se um ciclo espiralado, que aponta para a velhice, o quarto inimigo, suprema idade de conhecimento. O significado da velhice para Myrian Muniz deriva, portanto, do vínculo com o medo, a clareza e o poder. É deste lugar que procede sua fala, é a experiência e a memória deste longo percurso que lhe conferem autoridade. Não se trata de velhice como idade cronológica, mas de velhice como caminho percorrido, que deixa pegadas dos pés na cidade, imprime marcas na voz e rugas no corpo. A autoridade do mestre emana do exemplo vivo, como ela dizia, e é condição para a confiança de seus aprendizes, fundamental para que a 15 Copeliovitch, 2008: 199. 16 Castaneda, 2002: 27-28.


relação de transmissão aconteça. O mestre se torna mestre reconhecendo seus mestres. Myrian reconhece na bananeira plantada dentro do estação7 uma evocação de seu mestre, cujo nome não revela nesta noite, mas sabemos que se trata do cenógrafo, artista plástico, arquiteto e professor Flávio Império. Essas bananeiras que estão na minha frente representam o meu mestre porque tudo é simbólico não? (...) O meu mestre desenhava era pintor cenógrafo ele desenhava muito a flor da banana Chama mangará Dá uma flor abre é fruta flor nascem as florzinhas vão virando banana com os cachos é uma fruta que o povo pode comer de graça quase (...) é uma fruta abençoada aliás todas as plantas e toda a natureza é abençoada.

Feliz do aprendiz que recorda e saúda seu mestre na beleza concreta de um mangará. Bom então de Florence Nightngale eu virei Florence Putingale

O teatro é sagrado mas é também profano, deus e diabo, como o ser tem anjos e demônios. A gente é bonzinho mas a gente tem um diabo com um rabo o rabão faz assim o tempo inteiro né Mexe procê vê Mexe mexe procê vê (...) Tem uma mão para o anjo da guarda porque eu acredito num plano superior eu tenho mesmo um anjo da guarda e eu tenho os deuses da arte que me protegem porque eu trabalhei a minha vida inteira pra isso Então tem aqui um anjo e aqui tem o diabo o capeta ele é simpático eu sou amiga dele porque inimiga dele eu não quero ser.

O sagrado se funda em um lugar, concretizado pelo encontro e pelas relações humanas. Como Artaud, Myrian almejava um teatro sagrado, servido por um cortejo de dedicados


atores e diretores devotos.17 Mircea Eliade diz assim do espaço sagrado e da sacralização do mundo: “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço apresenta roturas, quebras; há porções do espaço qualitativamente diferente de outras.”18 Para Myrian, o teatro era religião, praticada em um lugar preparado, especialmente preparado, gerado por um rito poético coletivo. Tentemos compreender um pouco este sagrado. Não se trata da sacralização do ator como um ser inatingível e inalcançável, como alimenta a cultura das damas, divas e estrelas, em que se sela um pacto declarado com o mundo da mercadoria. Sagrado não se refere tampouco à nobreza no estilo, muitas vezes presente também como fator de valorização da mercadoria. Para Myrian, o sagrado no teatro investe-o de potências reveladoras, transformando-se o palco no lugar onde o invisível pode aparecer, do Invisível-TornadoVisível, no dizer de Peter Brook19. O sagrado é um ato coletivo, cujo espaço se constrói invariavelmente a cada rito, a cada encontro, a cada ensaio, a cada apresentação. O ato sagrado no teatro responde a uma fome. Pergunta Peter Brook: uma fome do invisível? A fome de uma realidade mais profunda do que a forma mais completa da vida cotidiana? Ou uma fome das coisas que faltavam na vida, uma fome, na verdade, de amortecedores contra a realidade?20 Para Myrian, é a fome da descoberta, portanto da visibilidade e da revelação, cuja potência se manifesta pelo cultivo da consciência e da atenção para si, do olhar para o Outro e da relação interpessoal como base viva do jogo coletivo. Nas frestas destas ações, insinua-se o silêncio, como espaço de escuta e reverberação. Eu ia muito à Ópera São Carlos, em Lisboa. E ia sempre no galinheiro, na parte de cima. E onde havia uma coroa. O camarote real começava embaixo e ia até lá em cima e fechava com uma coroa dourada enorme. Coroa esta que, vista do lado da plateia e do lado dos camarotes, era uma coroa magnífica. Do lado em que nós estávamos, não era, porque a coroa só estava feita entre as quartas partes. E dentro era oca e tinha teias de aranha e tinha pó. E isso foi uma lição que eu nunca esqueci. Nunca esqueci. E essa lição é que para conhecer as coisas, há que dar-lhes a volta, dar-lhes a volta toda.21

Dar voltas em torno do tema, reposicionar os ângulos do pensamento, multiplicar as possibilidades das cenas, experimentar improvisos, melodias e movimentos. Eis as qualidades do artista, que percorre um caminho teatral de descobertas e revelações, às vezes tortuoso, outras retilíneo, às vezes gozoso, outras doloroso. O artista é alguém importante que na sociedade puxa ela pra frente. O artista puxa a sociedade para a frente pra abrir a visão porque a sociedade é assim só tem um ponto de vista (...) um ponto de vista só (...) o teatro tira essa viseira dói 17 18 19 20 21

Brook, 1970: 52. Eliade, s/d: 35. Brook, 1970: 39. Brook, 1970: 41/42. José Saramago: depoimento no filme Janela da Alma, de Walter Carvalho e João Jardim. Europa Filmes, 2002.


tem parafuso até cair que nem burro sabe na estrada? Cai a viseira começo a enxergar melhor pode olhar pode mexer pode ver pode perceber o todo.

Para Myrian, a visada interdisciplinar e o trabalho em equipe são fundamentos desta multiplicação de pontos de vista. Myrian não se colocava como especialista e prezava abrir verdadeiramente o espaço para a atuação dos aprendizes. Seu enfoque interdisciplinar não era uma combinação de especialidades desenvolvidas por especialistas, com o fim de resolver problemas e alcançar resultados, como atualmente sói acontecer no mundo da pesquisa acadêmica. Ao contrário, era convite à experiência e à descoberta: se impunha como acordo essencial de trabalho, obedecendo à própria natureza do fazer teatral. A gente é fraco demais e forte demais

No epílogo de sua fala rapsódica, Myrian canta. Cantar, como ela ensinava, conecta com os deuses, eleva o ser para uma dimensão sagrada. Não por acaso, seu encontro com a cantora Elis Regina, que dirigiu, em 1975, no espetáculo “Falso Brilhante”, foi tão fundamental para as duas artistas. Porque Myrian acreditava que cantar tinha o poder de sintetizar o ser, no sentido de conectar o visível e o invisível, o abstrato e o concreto, alma e corpo, pela ressonância, pela vibração sonora. Eu tenho uma voz eu sempre quis ser cantora agora vou confessar uma coisa que eu nunca disse. Então eu tenho uma voz de marreca me dá um desgosto mas eu sou teimosa então eu vou cantar. Todos dizem que bebo demais Todos dizem que fumo demais É porque Meu amor por vocês é imenso demais É porque meu amor por vocês É imenso demais.

Na recriação da canção de Maysa, Myrian professa sua última lição: vícios e amores superlativos, vida superlativa, teatro superlativo. Entre esta noite e a noite de sua morte, passaram-se duas semanas. Era primavera, véspera de um domingo de dezembro. Na roda do Teatrosamba do Caixote, cantamos Clara Nunes: os


tambores nunca bateram tão fortes. Ainda ouço sua voz profunda: você se leva muito a sério.

Referências ANDRADE, Carlos Drummond de (1974) Congresso Internacional do Medo, Reunião, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ARENDT, Hannah (1996) Entre el pasado y el futuro. Ocho ejercicios sobre la reflexión política, Ediciones Península, . Barcelona, Espanha. BROOK, Peter (1970) O Teatro e seu Espaço. Vozes, Petrópolis, Rio de janeiro, RJ, Brasil. . CASTANEDA, Carlos. Las enseñanzas de Don Juan. Argentina. http://www.formarse.com.ar/libros_gratis/libros_gratis.htm [8 de abril de 2011]. COPELIOVITCH, Andrea (2008) O ator-guerreiro frente ao abismo. EDUFRN, Natal, RN, Brasil. DOMINGO, José Contreras y FERRÉ, Núria Pérez de Lara (org.) (2010) Investigar la experiencia educativa. Morata, Madrid, Espanha. ELIADE, Mircea (s/d) O Sagrado e o Profano. Edição “Livros do Brasil”, Lisboa, Portugal. LARROSA, Jorge (2010) Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Autentica, Belo Horizonte, Brasil. LARROSA, Jorge (primavera de 2008) Carta a los lectores que van a nacer. Nexus. Patrimonio, creación y educación. El presente como futuro. Número 38, Fundació Caixa de Catalunya, Barcelona, Espanha. PARDO, José Luis (2004) La Regla del Juego. Sobre la dificultad de aprender filosofía. Círculo de Lectores, Barcelona, Espanha. JAY, Martin (2003) La crisis de la experiencia subjetiva. Diego Portales, Santiago de Chile, Chile.


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