Normalidade e patologia na psiquiatria e na psicanálise: o papel dos periódicos científicos brasileiros Ana Cristina Costa LIMA Mestre em Saúde Pública Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Brasil) Doutoranda, Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas Université Michel de Montaigne Bordeaux III, France En stage de doctorat, École Doctorale en Sciences Humaines affiliation Capes Foundation, Ministry of Education of Brazil1 lima.anac@gmail.com
Resumo Este artigo é uma comunicação do processo de elaboração de tese sobre o discurso da clínica psi no Brasil, no que tange aos conceitos de normalidade e patologia, por meio de duas revistas científicas: Revista Brasileira de Psicanálise e Revista de Psiquiatria Clínica. A tese pretende analisar as concepções sobre normalidade e patologia, a partir de Canguilhem e Foucault. A atualidade do tema revela-se, principalmente, pelos dispositivos de subjetivação e assujeitamento ligados à clínica no campo psi e às mudanças sucessivas ocorridas em um curto período. No Brasil, desde os anos 1990, a psicanálise e a psicoterapia vêm sendo substituídas pela clínica psiquiátrica, processo alavancado pelos planos privados de saúde e pela criação do Sistema Único de Saúde (SUS), que ampliam o acesso ao médico. Mas o fenômeno mundial que sustenta esse processo é o impacto que os manuais de diagnóstico tiveram no campo psi, por meio do DSM-IV “Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais”, junto ao crescente mercado dos psicofármacos e das terapias de adequação de comportamento. Estes promovem especificidades na medicalização, em busca da felicidade, por uma vida sem sofrimento, em sentido inverso a um enfrentamento da neurose e da possibilidade de uma ampliação da consciência de si-mesmo. Palavras-chave: psicanálise, psiquiatria, normal, patológico.
Abstract This article is a communication of the elaboration of a thesis process about the psy clinic discourse in Brazil, in relation to the concepts of normality and pathology, through two scientific journals: Revista Brasileira de Psicanálise (Brazilian Journal of Psychoanalysis) and Revista de Psiquiatria Clínica (Journal of Clinical Psychiatry). The object of this thesis is to analyse the conceptions of normality and pathology, from the authors Canguilhem and Foucault. The importance of the theme is exposed, mainly, by subjectivation dispositives to the clinic psy field and to the successive changes that occurred in a short time. In Brazil, since 1
Affiliation Capes Foundation, Ministry of Education of Brazil, Caixa Postal 250, Brasília – DF 70040-020, Brazil
the 1990s, psychoanalysis and psychotherapy are being replaced by the psychiatric clinic, a process stimulated by the private insurances of health and by the creation of the Unified Health System, that expands access to the medical system. But the worldwide phenomenon that supports this process is the impact of the diagnostic manuals, through DSM-IV (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), with the expansive market of psychotropic drugs and cognitive-behavioral therapy. These promote specificities in medicalization, such as the search for happiness, for a life without pain, in an inverse sense to a confront with neurosis and the possibility of an increase in self consciousness. Keywords: psychoanalysis, psychiatry, normal, pathological.
Introdução e Justificativa
O
campo psi é composto de saberes inter-relacionados ao campo científico e à clínica e exerce uma influência sobre a visão que as pessoas comuns têm de si-mesmas. Os sentimentos e as emoções expressos por meio dos comportamentos são próprios de um tempo, um momento, e de um espaço de saberes. Nesses interstícios há uma disputa, um cabo de forças entre as verdades do conhecimento sobre o objeto da clínica, a saber, a pessoa, o indivíduo, e seu sofrimento, seu estar-no-mundo. O campo científico é um espaço de disputas incessantes, em defesa de alguma forma específica de interesse, que vai da autoridade científica à captação de financiamento. Este é afirmado e internalizado, principalmente, pela formação profissional e pelas revistas científicas (Bourdieu, 2003). É visível a disparidade existente entre o financiamento de pesquisas para a psiquiatria e psicologia cognitivo-comportamental e os limitados recursos disponíveis para a psicanálise e psicoterapias. Além disso, os métodos de pesquisa são definidos pela ciência hegemônica, a saber, a que advém da biologia para a prática da medicina, e pouco servem na avaliação da práxis da clínica psicanalítica, assunto que não poderemos desenvolver aqui e sobre o qual trata o artigo dos psiquiatras Osório e Fleck (2005), aonde afirmam que “não existe apenas uma maneira de compreender e tratar pessoas com problemas psiquiátricos, mas diferentes ‘perspectivas’, ‘escolas’, ‘correntes de pensamento’. As comunidades científicas, sejam quais forem, defendem a manutenção de um status quo. Se, por um lado, a medicina majoritária afirma o corpo biomédico como o único seguro para intervenção com pessoas em sofrimento psíquico, por outro, a psicanálise, para manter seus fundamentos, mantém a formação do psicanalista fora da universidade. A instituição psicanalítica, de alguma maneira, mostra que seguiu os passos de Freud, que acreditava que uma absorção da psicanálise pela medicina seria o fim desta, como discute nos seguintes artigos: “A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial” (1996a), “Pósescrito” (1996b) e “A análise é leiga: da formação do Psicanalista” (2003). A clínica psicológica, como a conhecemos, é um modo de intervenção do século XX e o desenvolvimento do método da psicanálise, por Freud, seguido da formação de psicanalistas não médicos, separa a clínica psiquiátrica da psicanálise, para além do corpo teórico e do
método clínico. Mas, a partir de “O poder psiquiátrico” (Foucault, 2006), – Curso no Collège de France, 1973-1974 –, pode-se pensar o “tratamento moral”, na nascente psiquiatria no início do século XIX, com Esquirol, como precursor da psicoterapia (Galzigna, 2008, p.56). Se pudermos dizer que o século XIX foi o espaço do alienista, o XX seria o espaço do psicoterapeuta, do asilo ao consultório. A clínica psi tornou-se um lugar borbulhante, um espaço de diversidades de pensares. Se o século XX foi de expansão de métodos clínicos, o século XXI, em sua primeira década, mostra uma forte tendência ao afunilamento do pensamento, tendendo a uma hegemonia psiquiátrica sobre a verdade do normal e do patológico. Disputa de poder-saber que está intimamente relacionada ao establishment2, em uma sociedade da comunicação midiática atrelada ao poder econômico do complexo médico industrial. Porém, é também preciso lembrar que o método clínico criado por Freud tomou uma dimensão que ultrapassou a própria clínica e adentrou as artes, a literatura e a lingüística, entre outras áreas. Aqui interessa destacar que este conhecimento e esta clínica organizaram-se e cresceram fora dos domínios da medicina. Influenciou historicamente a psiquiatria nos Estados Unidos e seus desdobramentos vieram a repercutir em todo o campo psi, como previra Freud, em 1927 (2003). Inicialmente, a psiquiatria estadunidense assimilou em parte a psicanálise, mas um movimento contrário encontrou ampla repercussão com a publicação do “Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais” (DSM-IV), que passaria a ser o referencial em muitos países, auxiliado pela força da indústria dos psicofármacos. Compreender os processos de organização do discurso dos que fazem a clínica no Brasil é uma possibilidade de discussão sobre a atualidade, em que, ao que parece, a clínica passa por um momento delicado, no qual a força da mídia amplifica o poder-saber da comunidade científica hegemônica e a ampliação do acesso a serviços de saúde pública e privada, nos últimos vinte anos no país, vieram ao encontro do espaço necessário para a expansão da medicalização do sofrimento psíquico e dos comportamentos. Este assunto, sobre o acesso aos serviços de saúde, pelos planos privados de saúde e Sistema Único de Saúde (SUS) e suas implicações na normatividade do sofrimento psíquico, não poderá ser desenvolvido neste artigo, mas o será na tese. De maneira breve, pode-se dizer que a ampliação do acesso a serviços de saúde no país contribui para a expansão da medicina psiquiátrica, pois a direção dos serviços é sob orientação prioritariamente médica. Em termos formais, o tema de pesquisa pertence ao campo psi, um universo multidisciplinar inserido em duas grandes áreas do conhecimento: ciências humanas e ciências da saúde segundo a Tabela de Áreas de Conhecimento do CNPq3,4. O campo psi ficaria classificado da seguinte maneira: grande área das ciências humanas, área da psicologia, sub-área da psicologia clínica; grande área das ciências médicas e da saúde, área da medicina, sub-área 2
Establishment: a ordem ideológica, econômica, política e legal que constitui uma sociedade ou um Estado (Houaiss, 2006). 3 Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Tabela de Áreas de Conhecimento. Disponível em: <http://www.cnpq.br/areasconhecimento>. [4 de março de 2011]. 4 Áreas do Conhecimento e Nova tabela das Áreas do Conhecimento (versão preliminar, em discussão desde 2005). Disponível em: <http://www.cnpq.br/areasconhecimento/index.htm>. [4 de março de 2011].
da psiquiatria. A psicanálise seria uma especialidade5, podendo ser enquadrada em diferentes áreas. Essa proposta do CNPq possibilita visualizar a complexidade para a organização do campo psi e situa, em termos acadêmicos, o lugar de cada saber. Situado o espaço de análise, parece-me importante situar a pesquisadora. A minha compreensão vem da clínica psicológica, da experiência, da prática. Assim, mesmo que no papel de pesquisadora, olho antes para o sujeito da clínica ou mesmo o indivíduo inserido em uma sociedade em que a clínica é integrante nos processos de subjetivação. E se a pessoa, o sujeito da clínica, o indivíduo, é o motivo que me move para ampliar a compreensão das normatividades, utilizo-me da análise dos discursos publicados em seus veículos de divulgação da práxis e, portanto, representativos do estado da arte da matéria em questão. Vejo, desse modo, uma possibilidade, na tese, de fazer falarem os dispositivos da psiquiatria e da psicanálise na formação de subjetividades, pela expressão do clínico, portanto pelo seu conhecimento e vivência na clínica, sobre os saberes e seus desdobramentos no período de 40 anos de desenvolvimento do campo psi no Brasil. A partir de minha prática como psicoterapeuta (de 1985 a 2005) e na pesquisa sobre o trabalho do psicólogo na atenção básica no Sistema Único de Saúde, empreendida no mestrado em Saúde Pública (Lima, 2006), são visíveis as mudanças no enfoque e tratamento do sofrimento psíquico, nos últimos anos. Uma revisão da literatura das bases de dados Medline, PsychoINFO e Lilacs, no período de 1966 a setembro de 2002, mostra “uma marcada mudança de atitude dos psicanalistas e psicoterapeutas [médicos] em relação ao uso concomitante de medicação durante a psicoterapia (Frey et al., 2004, p.1)”, o que confirma um declínio da procura por psicanálise e psicoterapias e um incremento da demanda pelo consultório do psiquiatra (Frey et al., 2004, p.118-123 e Osório e Fleck, 2005, p.406-423). Entre os diversos e complexos fatores que possam ter contribuído nesse processo de mudança, estão a crescente indústria de psicofármacos junto à eliminação do conceito de neurose, amplamente desenvolvido na psicanálise, com a mudança do sistema de classificação diagnóstica na 3ª versão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM III), em 1980, que sob o termo desordem, colocou comportamentos e sintomas indesejáveis, ampliando o espectro de diagnóstico da psiquiatria. Da psiquiatria estadunidense, a versão seguinte, o DSM IV, hoje na versão DSM-IV-TR, espalhou-se pelo Ocidente, possivelmente pela terminologia apropriada à indústria farmacêutica, e em poucos anos tornou-se a linguagem do diagnóstico de profissionais e instituições que tratam de comportamento humano. Essa forma de diagnose por meio de manual de orientação e tratamento predominantemente medicamentoso, que se alastrou na clínica psi, segue caminhos muito diversos dos da psicanálise, que tem como pressuposto fundamental “a diferenciação, na esfera do psíquico, entre o que é consciente [Bewusstes] e inconsciente [Unbewusstes]. Somente a partir dessa distinção, torna-se possível compreender e integrar à ciência os frequentes e relevantes processos patológicos da vida psíquica” (Freud, 2007, p.28). O 5
Por especialidade entende-se a caracterização temática da atividade de pesquisa e ensino. Uma mesma especialidade pode ser enquadrada em diferentes grandes áreas, áreas e sub-áreas.
processo terapêutico na psicanálise é fundamentalmente mediado pela palavra e orientado pelo material inconsciente trazido pelo paciente e analisado no contexto da relação terapeuta-paciente.
As revistas em seu contexto nos primeiros anos Ao primeiro contato com a Revista de Psiquiatria Clínica, publicação do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-USP), ficou claro que esta era a que mais se adequava ao tema, sendo sua finalidade “fornecer aos profissionais de saúde mental um programa de atualização e educação continuada nas áreas de interesse clínico”6. Em relação à psicanálise, houve, inicialmente, uma preocupação de a Revista Brasileira de Psicanálise não contemplar as publicações lacanianas, haja vista que com a expulsão de Lacan da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), da qual a Federação Brasileira de Psicanálise, editora da revista, é associada, inicia-se uma nova fase. Lacan funda a Escola Freudiana de Paris em 1964 (Roudinesco, 1995, p.225) e a psicanálise não terá mais uma única orientação federativa. No Brasil há muitas associações lacanianas e diversas revistas, que começaram a ser publicadas nos anos 1980. Porém, não há alguma revista que se tenha destacado como representativa dos vários grupos. A Revista Brasileira de Psicanálise e a Revista de Psiquiatria Clínica foram escolhidas, entre outras, mediante os seguintes critérios: a) por serem as mais antigas no país em cada área; b) por terem a periodicidade mantida até os dias atuais; c) por representarem efetivamente cada uma sua área de atuação, a formação de profissionais e sua institucionalização e d) por serem indexadas como revistas científicas nas bases de dados Lilacs7; no Brasil, a Revista de Psiquiatria Clínica é indexada na base Scielo8, enquanto a Revista Brasileira de Psicanálise é vinculada ao Index Psi Periódicos (BVS-Psi)9. A Revista Brasileira de Psicanálise inicia sua publicação ao final do ano de 1967, enquanto a Revista de Psiquiatria Clínica tem seu primeiro número publicado em 1972. Tempos de “revolução sexual”, dos beatniks, hippies, provos, movimentos gays e feministas… a sexualidade nunca mais seria a mesma, quebraram-se em grande parte os tabus do século XIX, no Ocidente. As duas revistas surgem em um momento especial, chamado por Foucault – “Em defesa da sociedade” (1999) Curso no Collège de France, 1975-1976 –, na aula de 7 de janeiro de 1976, de insurreição dos saberes sujeitados, ao se referir a uma força essencial dos discursos de saberes desqualificados pelo status quo científico ou erudito. Nos anos 1960-70, o discurso 6
Revista de Psiquiatria Clínica. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=01016083&nrm=iso&lng=pt>. [7 de abril de 2011]. 7 LILACS é o mais importante e abrangente índice da literatura científica e técnica da América Latina e Caribe. 8 A Scientific Electronic Library Online - SciELO é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros. 9 O portal de Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC) é uma fonte da Biblioteca Virtual em Saúde, em parceria com o Centro Latino Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde – BIREME.
insurreto dos psiquiatrizados junto a médicos psiquiatras, antipsiquiatras, psicanalistas reichnianos (Foucault, 1999, p.8-9) mostram-se na contracultura, no caso, contraciência. Os autores sobre biopoder e bioética, em geral, consideram a II Guerra Mundial uma linha de corte para estudos históricos no campo da saúde, e no campo psi, em particular. Sob o impacto do nazismo e da bomba atômica, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU) e elaborada a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os países europeus e os Estados Unidos da América passaram a ter uma ‘preocupação especial’ com os direitos humanos e com o desperdício de força de trabalho invalidada pela guerra, bem como com os altos custos dos hospitais psiquiátricos. Houve grandes mudanças na área de saúde mental, tanto pelas pesquisas e industrialização de medicamentos psicotrópicos como pelos movimentos e propostas terapêuticas de rompimento com o modelo de tratamento utilizado até então. As mudanças vão da adequação econômica e do saber biomédico − como as comunidades terapêuticas, nos EUA (Szasz, 1994) −, passando por mudanças sócio-políticas, por uma psiquiatria democrática na Itália (Basaglia, 1982), bem como mudanças epistemológicas e na práxis terapêutica, com a antipsiquiatria, na Inglaterra (Cooper, 1989). Nesse “contexto alargado de mudança social e de desafio à medicalização global da sociedade moderna devem também entender-se movimentos como a anti-psiquiatria e a crítica global da institucionalização…” (Cascais, 2002, p.31). O estudioso português de bioética coloca que ao final da década de 1960 e início da seguinte, a principal crítica externa à medicina era ao crescimento dos poderes médicos, que “apontava como emblema a iatrogenia resultante da própria eficácia médica (2002, p.36)”. E que “foi no âmbito da psicologia e da psicoterapia contemporâneas que se recompôs de modo mais espectacular um paradigma científico em que outrora imperaram a psiquiatria e a antropologia biológica” (Cascais, 2002, p.32). Sobre esses indícios de iatrogenia psicossocial10 em saúde, por meio da manipulação de comportamentos, podemos citar muitos autores, entre os principais estão Illich, Foucault, Laing, Cooper, Goffman, Szasz e Basaglia. Desenvolveram-se nos Estados Unidos da América, desde os primeiros anos da segunda metade do século XX, os programas de prevenção, por meio de triagem, como propõe Kaplan (Silva Filho, 2001), fazendo uma busca ativa na população para identificar casos antes da doença se manifestar ou da pessoa buscar a consulta. O limiar entre compreensão de sofrimento psíquico e o poder de coerção é tênue, quando se medicaliza o sofrimento, com a classificação de desordens mentais, as “antigas” neuroses e as psicoses, e quando se pretende colocar em ordem uma sociedade, por meio de controle químico de sintomas e prescrição de condutas. O território de subjetividades das relações humanas e do sofrimento pessoal, não material, é definido pela moral, bons costumes, cultura dominante e o poder dos profissionais de saúde, de posse do saber científico (Laing, 1975). A passagem de terapêutica hospitalar para extra-hospitalar pode modificar o discurso e a intervenção, mas mantém o poder de coerção sobre saúde e doença mental, com uma 10
Illich (1975) fala como o desenvolvimento econômico do setor terapêutico é instrumento de poder e de iatrogenia. As pessoas passam a necessitar de tratamento para se adequar a uma norma desejável, colocando saúde e doença como um campo de disputa de poder e controle sobre as pessoas.
perspectiva de cura e de prevenção. “A novidade desse conhecimento é a proposição da realização de prevenção primária das doenças mentais… A adaptação social é assim expressamente assumida e proposta para a assistência psiquiátrica” (Silva Filho, 2001, p.9899). Se os modos de expressão dos sofrimentos humanos se relacionam ao processo de assimilação de comportamentos adequados, por meio das regulações sociais, esse conjunto está diretamente ligado ao que se define como normalidade. "Sans la clinique, la normalité et la pathologie risquent de rester des conceptes vides. …Plus particulièrement, la distinction du normal et du pathologique ressort de la clinique et de la clinique seule (Le Blanc, 2007, p.31)"11. Assim, se o homem normal está relacionado ao patológico, o sofrimento social está relacionado às construções das figuras patológicas.
A sexualidade no discurso Em meio a esses movimentos, foi realizado o I Congresso Brasileiro de Psicanálise, em Caxias do Sul, RS, em maio de 1969, com o tema Identidade de sexo e seus distúrbios – aspectos teóricos e clínicos. A psiquiatria, por sua vez, no V Congresso Mundial de Psiquiatria, Cidade do México, 1971, apresentou o Simpósio Psicofarmacologia e Sexo. Em 1972, foi realizado o I Congresso Brasileiro de Higiene Mental do Adolescente, no Rio de Janeiro. Outros eventos e cursos sobre variações do tema estavam sendo realizados na época. De modo a introduzir a discussão, foi escolhido um tema que relaciona o momento histórico e é emergente nos números iniciais tanto na Revista de Psiquiatria Clínica como na Revista Brasileira de Psicanálise: a sexualidade. A Conferência Desvios da sexualidade12, proferida por Elza Barra13 e publicada na Revista Brasileira de Psicanálise (1968), é marcada por uma relativização dos conceitos de desvio, perversão e aberração sexuais, em relação aos conceitos de anormal e patológico, na psiquiatria e na psicanálise. Parte por definir o conceito de desvio como função estatística (Bieber, 1962)14, ao considerar que desvio envolve o movimento fora da média, assim, seria uma norma estatística que definiria o normal e o desviante. Lembra, porém, que é considerado pela maioria como patológico, no clássico da psiquiatria Comprehensive Textbook of Psychiatry15.
11
Sem a clínica, a normalidade e a patologia correm o risco de se tornarem conceitos vazios. …Especificamente, a distinção entre normal e patológico resulta da clínica e somente da clínica (tradução da autora). 12
Conferência pronunciada em junho de 1968 no Curso de Psicologia do Desenvolvimento Sexual e Moral, organizado por formandos da 2ª turma da faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. 13 Elza Barra, doutora em Filosofia e Psicologia, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. 14 BIEBER, Irving et al. (1962) Homosexuality: A Psychoanalytical Study, New York, Vintage Books. 15 FREEDMAN, A; KAPLAN, H. I.; SADOCK, B. J. (eds.) (1967) Comprehensive textbook of psychiatry. 1ª ed., Baltimore, Williams & Wilkins.
Na Revista de Psiquiatria Clínica (1972), Henrique Marques de Carvalho16 apresenta também posições variadas sobre o assunto na atualidade. Inicia com as pesquisas sobre hereditariedade, dizendo que uns a defendem e outros mostram que isso não pode ser provado, como também causas endócrinas são descartadas por alguns pesquisadores. Cita muitos autores, em uma revisão bibliográfica, entre psiquiatras, psicólogos, psicanalistas e antropólogos e suas análises psicológicas e sociais para a constituição de um homossexual. Vale destacar que repete o discurso sobre desvio e anormalidade serem doenças, ao reproduzir as 12 modalidades, os tipos de homossexualidade para Clifford Allen (1962, Londres): o homossexual pode ser imaturo, neurótico, compulsivo, por falta de mulheres, bisexual, normal, deficiência endócrina, personalidade afetada, imitando mulheres, psicopata, alcoolista, psicótico, em consequência de transtornos orgânicos cerebrais, demência, por acidente vascular. A não ser os itens claramente ligados ao comportamento homossexual, os outros são comuns a qualquer pessoa, afirma Carvalho, ao propor a seguinte questão: Por que, então, ligar a homossexualidade aos comportamentos considerados normais ou patológicos pela medicina? Enfim, coloca sua única observação própria: “Tanto são, pois, os aspectos e os problemas surgidos em torno da etiopatogenia da homossexualidade, que justificam a afirmativa de que, cada homossexual tem sua própria história, e cada caso deve ser examinado de forma individual e particular”. Entre os desvios da sexualidade, classificados como patologias pela psiquiatria, em outro artigo da Revista de Psiquiatria Clínica, Walter Nelson Cardo17 (1972) na busca da objetividade no diagnóstico, ao falar em queixas predominantes de transtornos sexuais, considera que há, em geral, uma depressão associada. Aqui poderíamos estar relacionando o diagnóstico de depressão, como expressão do que a psicanalista Elza Barra analisa como medo, que atribui como uma constante nas desordens neuróticas e patológicas. No entanto, ela relativiza os conceitos de anormal e patológico e situa o indivíduo em um contexto social, que se forma na relação do bebê com o mundo, em uma visão psicanalítica de inconsciente e significação de relações de objeto para a formação do eu. Estas podem ser traumáticas ou não e se expressam na vida sexual adulta, não necessariamente os desvios se tornando patologias. O diagnóstico de depressão, no caso da psiquiatria, por sua vez, é determinante e produz uma subjetivação no paciente, diante de uma patologia definida pela autoridade médica, que pode se expressar de diversas formas, mas o indivíduo carrega, a partir do diagnóstico, uma doença, um rótulo. Se na psicanálise a depressão é uma expressão da condição do paciente e integra o processo analítico, na psiquiatria vem a ser uma patologia, uma entidade doença. Elza Barra, ainda, apresenta outro ponto de vista, por meio de estudos antropológicos, como segue.
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Henrique Marques de Carvalho, livre docente de Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Diretor da Divisão Hospital de Psiquiatria da USP. 17 Walter Nelson Cardo, médico Assistente do Hospital de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.
Cada sociedade determina qual conduta seria julgada normal e qual anormal, conforme esta se ajuste ou não ao contexto social. Por isso, deduziu-se que a homossexualidade é considerada anormal nas sociedades ocidentais, porque assim a ética cultural a designou. A razão relativista cultural estabelece que, se atitudes sociais fossem tão aceitas diante da homossexualidade quanto diante da heterossexualidade, o conceito de inversão não seria patológico. Este ponto de vista contrasta com o argumento da psiquiatria, da psicologia individual e da psicodinâmica. (Barra, 1968, p.376)
Enfim, Barra recorre a Freud para desbancar a perversão como, necessariamente, uma patologia, mas como um desvio da norma, de onde pode ou não se desenvolver uma patologia. Discorre, para se fazer compreender, sobre as diferenças entre desvio e patologia, pelas posições de Freud, Melanie Klein, Roselfeld e Bieber sobre homossexualidade, principalmente, ‘transvestismo’, fetichismo, masoquismo, sadismo, exibicionismo, ‘voyerismo’, pedofilia. Para Cardo, no entanto, ao citar os tipos de impotência, neuróticas e psicógenas, atribui este último tipo “a indivíduos imaturos e inseguros: estas *impotências+ se acompanham de preservação da libido e se evidenciam por impossibilidade de ereção nas relações heterossexuais habituais, ainda que possam, por vezes, permitir completa ereção no relacionamento sexual com determinada parceiras ou em atos perversos e solitários (1972, p. 16). Admite uma entidade doença, como os tipos de impotência, para afirmar que é impotência aquilo que não seja uma ereção em uma relação heterossexual habitual, quer dizer, a potência seria a capacidade de ereção de um indivíduo do sexo masculino diante de uma mulher cujo relacionamento se dê em circunstâncias morais definidas pela ordem social majoritária. Acredito que nos interstícios dos discursos da psicanalista e do psiquiatra, Canguilhem nos estimule a relativizar nosso próprio olhar de leitor. Não é absurdo considerar o estado patológico como normal, na medida em que exprime uma relação com a normatividade da vida. Seria absurdo, porém, considerar esse normal idêntico ao normal fisiológico, pois se trata de normas diferentes. Não é a ausência de normalidade que constitui o anormal. Não existe absolutamente vida sem normas de vida e o estado mórbido é sempre uma certa maneira de viver (Canguilhem, 2006, p.175).
Se por um lado, caminhamos para compreender que a normatividade é inerente à vida, por outro, não resolvemos a questão da sexualidade normal ou patológica. Enquanto de um lado é possível apresentar-se diante do paciente como alguém que sabe o quanto é relativa a condição de anormal em que ele pode se encontrar, de outro lado, o psiquiatra apresenta-se na clínica convencido da verdade moral de seu tempo, que lhe proporciona patologizar a condição de existência do paciente. Ao falar de normal, podemos nos remeter à análise de Le Blanc (2007, p.8), que em busca de uma genealogia da norma se pergunta de onde vem esse desejo da norma, que permite a construção da idéia de homem normal. De acordo com suas pesquisas (sobre Canguilhem e Foucault), há diversas normalidades e o conflito está situado entre uma norma majoritária e uma minoritária; assim, não há normas universais, mas normas que atendem a um determinado grupo. Temos em mãos o poder-saber que define um normal em relação ao
qual se constroem e se formam subjetividades em um momento histórico. A norma majoritária, neste caso, é a psiquiatria. Nesse sentido, pode contribuir para explicar essa visão de normalidade da psiquiatria, o artigo de Pacheco e Silva18 (1972), de apresentação no V Congresso Mundial de Psiquiatria, 1971, publicado na Revista de Psiquiatria Clínica, em que diz que há uma preocupação do homem com a sexualidade, pois existe um instinto sexual para perpetuação da espécie e uma influência no comportamento e na integração social. Justifica sua posição para o bemestar da humanidade, pelos “textos sagrados – na Bíblia, no Alcorão, no Talmud… – o que exige obediência a umas tantas normas, para a boa formação da família, célula da sociedade (Pacheco e Silva, 1972, p.1)”. Seguem dois parágrafos em que resume a história da humanidade e finaliza: “Em síntese, toda ética, uma boa parte da estética e da religião têm a sua origem na prática das relações sexuais (idem, p.2)”. Organiza o pensamento por uma visão histórica linear e de progresso - “alcançaram o mais alto grau de civilização e de estabilidade social” - com moral sexual – “preservar o sexo de todas as aberrações, pelo combate à promiscuidade e aos maus costumes, pelo respeito à castidade, à virgindade, ao pudor, à decência, à fidelidade conjugal, às relações normais …Na civilização atual, um sem número de fatores têm contribuído para afrouxar a moralidade, para o desregramento dos costumes, para a quebra de uma tradição secular ((Pacheco e Silva, 1972, p.2)”. Diante dessa ameaça à moral, diz que até a Igreja tem se “revelado impotente”. Classifica a ameaça à moral pelos desregramentos sociais, tais quais: o desaparecimento progressivo da himenolatria19…a emancipação gradativa da mulher que trabalha; o emprego de métodos anticoncepcionais …a redução, a um nível mínimo, das doenças venéreas, a pornografia generalizada …a civilização industrial, de consumação, …têm concorrido, sem dúvida, para a revolução sexual observada nos tempos modernos (Pacheco e Silva, 1972, p.2-3)”. Segue classificando a homossexualidade como uma perversão sexual e “uma aberração da natureza”. O psiquiatra chega, enfim, a Freud, para dizer que suas idéias “confundem o espírito dos leigos, particularmente dos jovens”, não têm fundamentos científicos biomédicos. Defende, ainda, as aberrações sexuais por lesões diencéfalas e por distúrbios endócrinos, que afirma são determinantes e que não se pode atribuir tais aberrações somente a motivações psicológicas e sócio-culturais. A esta altura já se tornou bastante confuso o que seriam os fundamentos científicos e a ordem moral a ser mantida e se os atentados à moralidade são um problema social ou alterações endócrinas. No entanto, em qualquer caso, o médico é aquele que pode induzir o caminho correto, pela orientação sexual de seus pacientes. Pacheco e Silva segue nesse teor condenatório moralista até chegar aos hippies, que considera “a decadência da sociedade, em muitos países, por “conduta desregrada, amoral, anti-social, pervertida e toxicófila …contaminando a juventude do mundo e gerando uma psicose coletiva (1972, p.4)”. É interessante como medicaliza a conduta e considera o movimento hippie como uma doença, uma psicose, que pode se tornar uma epidemia. 18 19
Pacheco e Silva, professor da clínica psiquiátrica na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. himenolatria, palavra criada pelo autor, com o sentido de exigência de virgindade da mulher.
A elevada civilização tecnológica em que vivemos poderá, assim, perecer, mergulhada no obscurantismo de uma vida puramente animal. O homem que, com sua inteligência e o seu engenho, dominou os quatro elementos da natureza – o ar, a água, a terra e o fogo – descuidou-se de si próprio e está se deixando conduzir não pela parte sadia da sociedade, mas por aqueles que revelam, pelo seu comportamento anormal, tendência à contestação, à subversão e a práticas anti-sociais, características de grave comprometimento das faculdades afetivas e morais (Pacheco e Silva, 1972, p.4).
Apresenta uma solução por meio de “aplicação de medidas de higiene mental, para impedir a degradação da família e da sociedade (Pacheco e Silva, 1972, p.4)”. Acima citamos que em 1972 foi realizado o I Congresso Brasileiro de Higiene Mental do Adolescente, estando em análise artigos relativos ao tema. De modo a não deixar equívocos sobre a respeitabilidade desses psiquiatras em seu meio, segue um trecho do necrológio ao Prof. Dr. José Roberto de Albuquerque Fortes (19242002), redigido pelo decano Prof. Dr. Jorge W. F. Amaro, no sentido de mostrar a importância dos autores dos artigos aqui citados: “Tenho feito um luto após outro. Perdemos o Prof. Antonio Carlos Pacheco e Silva, o Prof. Fernando de Oliveira Bastos, o Prof. João Carvalhal Ribas, o Prof. Walter Nelson Cardo e vários outros colegas do início dessa grande jornada do Instituto de Psiquiatria. A Psiquiatria brasileira, especialmente a paulista, perdeu mais um de seus colaboradores (Amaro, 2002, p.264-265)”. Retornando à psicanálise, no relatório final do I Congresso Brasileiro de Psicanálise, 1969, redigido por Cyro Martins20, podemos encontrar, sobre as discussões nos quatro grupos, que “houve divergências claras, dividindo-se os participantes em três correntes: biológica, psicológica e sociológica… embora nenhum pretendesse ser exclusivista (Martins, 1969, p.109)”. Conclui que a psicanálise reconhece que nenhuma ciência pode funcionar em “circuito fechado (p.110)”. Vale ressaltar: “Chega-se finalmente à conclusão de que a caracterização de homossexualidade deve ser reservada somente para as situações bem definidas onde existe uma atividade perversa (Martins, 1969, p.108)”. Aqui não se explica em que categoria entrariam as perversões, mas se levarmos em conta a argumentação de Elza Barra, perversão não seria necessariamente uma patologia. Se não há uma resposta única, pode ao menos permitir-se a reflexão. No relatório do Simpósio Psicofarmacologia e Sexo, no V Congresso Mundial de Psiquiatria, em 1971, Bastos21 (1972) afirma que é extensa a literatura em psicofarmacologia, mas que poucos são os trabalhos sobre possíveis alterações sexuais em tratamentos com psicotrópicos, como “são raras as comunicações sobre a utilização de tais drogas na terapêutica das desordens sexuais”22. Segundo o autor, as hipóteses levantadas por pesquisadores franceses (Pommé Girard e Debost, 1965; Schnetzler, Lamnad, Cassassuce e 20
Cyro Martins, analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Bastos, professor titular de Clínica Psiquiátrica e Chefe do Departamento de Neuropsiquiatria na Faculdade de Medicina da USP. 22 Está na pauta do Congresso Nacional o Projeto de Lei SF nº552/07 sobre a castração química de condenados por pedofilia. 21
Carrel, 1964), a escassez de informações sobre o assunto se daria, em grande parte, por causa do tabu em se falar sobre a sexualidade; outra hipótese diz respeito à “necessidade de uma boa relação médico-paciente para que sejam devidamente apurados os sintomas de natureza sexual porventura em jogo (Bastos, 1972, p.5)”; a terceira diz respeito à necessidade de observação por tempo prolongado para se poder tirar conclusões sobre efeitos de medicamentos sobre a sexualidade. O que parece-me interessante a destacar, são as diferenças dos recursos clínicos entre o psicanalista e o psiquiatra. A enumeração acima nos mostra que a consulta é um espaço de apuração de sintomas e a “boa relação médico-paciente” seria uma habilidade intuitiva para criar um ambiente em que o paciente confiaria seus sintomas, enquanto a “observação por tempo prolongado seria o acúmulo de informações sobre sintomas ao longo de tempo. Na psicanálise, a relação terapeuta-paciente é o recurso clínico e o objetivo não é definir um diagnóstico, mas estabelecer uma relação terapêutica, em que a pessoa, ao longo das sessões, possa conhecer parcialmente o desconhecido inconsciente e elaborar uma via de compreensão de seu processo de vida. A psicanálise é também uma racionalidade clínica, que compreende que o sujeito é uma resultante de um confronto entre o inconsciente e as expectativas de seu meio, inserido em uma cultura, que seria o espaço de conflito propício ao desenvolvimento de neuroses. A psicanálise e a psiquiatria, consideradas por Foucault como agentes de organização de um dispositivo disciplinar, são proposições bastante diversas na práxis. Qualquer intervenção clínica exerce um poder-saber sobre o indivíduo, ao que me parece, faz parte da essência da intervenção alterar um processo, qual seja de doença e cura ou de aprofundamento sobre o conhecimento de si-mesmo. Portanto, toda clínica psicológica, como coloca Foucault, é uma função-psi (2006). Se há uma intervenção clínica, há uma intenção de modificar o curso do rio, no caso, o indivíduo que se submete ao lócus da clínica e seu potencial de alteração do modus vivendi. A função-psi é o processo de definição de um sujeito psicológico, por meio de dispositivos disciplinares para uma ordem social funcional que sirva ao establishment e a suas instituições, como hospitais gerais e psiquiátricos, prisões, escolas, fábricas, dentre outras, em uma economia liberal e industrial, neoliberal e pós-moderna. As pesquisas de Foucault sobre relações de poder, amplamente discutidas por diversos autores, com variados entendimentos, não está esgotada enquanto tivermos de falar de relações de poder, no complexo organizacional, seja capitalista ou socialista. Para Foucault a modernidade se caracteriza pela passagem de um poder soberano para um poder disciplinar (Foucault, 1980, 1991), sem que isso implique a desaparição do primeiro ou uma completa novidade do segundo. A soberania, para Foucault, seria o poder absoluto que foi perdendo força na organização social ao final do século XVIII na Europa e, em especial, na França pós-revolução. Poderíamos dizer que o poder diluiu-se sem perder sua força, deixando de ser pura imposição para tornar-se o grande disciplinador. Nasce, então, um sujeito que reproduz um discurso de verdade para o qual foi treinado pelas instituições, incluindo a família, que sem perder o pátrio-poder soberano, incorpora o saber da ciência em seu cotidiano. A regulação do
estado se aprimorou nestes duzentos anos por meio das instituições, por meio de uma ordem econômica e jurídica, em que o staff político é somente a ponta do iceberg. Para que se efetive a obediência e mais, a assimilação para si da ordem, uma função-psi se desenvolve, por um método disciplinar de controle do espaço e do tempo das pessoas. É aí, nessa organização dos substitutos disciplinares da família, com referência familiar, que vocês veem surgir o que chamarei de função-psi, isto é, a função psiquiátrica, psicopatológica, psicocriminológica, psicanalítica etc. E quando digo ‘função’, entendo não apenas o discurso, mas a instituição, o próprio indivíduo psicológico. E creio que é essa a função desses psicólogos, psicoterapeutas, criminologistas, psicanalistas etc.; qual é ela, senão ser os agentes da organização de um dispositivo disciplinar que vai ligar, se precipitar onde se produz um hiato na soberania familiar? (FOUCAULT, 2006, p. 105-6)
Portanto, o poder-saber é da essência da intervenção clínica, no sentido em que a relação que se estabelece na clínica psiquiátrica, psicanalítica e psicológica é vinculada a um saber e aquele que busca a clínica, a priori aceita submeter-se ao saber do outro sobre a sua própria pessoa, o seu corpo, a sua alma, o seu ser psicológico. O outro, o terapeuta, é detentor de um saber normatizado, em uma complexa função-psi.
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