TC3 Jacqueline Carvalho da SILVA ARRUMADO

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Abertura do mandato policial e influências externas: a ordem acima dos direitos individuais

Jacqueline Carvalho da SILVA Graduada em Ciências Sociais Universidade Federal de Pernambuco Mestranda em Sociologia Universidade do Minho – Portugal cs.jacqueline@gmail.com

Resumo Serão apresentadas as aberturas do mandato policial, que envolvem questões sobre discricionariedade e accountability, na tentativa de desconstruir a imagem da polícia como apenas uma das burocracias do sistema de justiça criminal, detentora de um mandato que inclui a aplicação da lei de modo eficiente, apolítico e profissional. Para isso, apresentaremos as variáveis que influenciam a atuação da polícia, moldando os contornos do seu mandato e contribuindo para a construção de uma cultura policial muitas vezes concorrente da legalidade. Tendo em vista a importância da percepção da comunidade a respeito do trabalho policial, faremos uma comparação entre as propostas de David Garland, sobre a sociedade Estadunidense, e Alba Zaluar, a respeito da sociedade brasileira, desenhando como se desenvolveu a percepção social sobre o crime durante as últimas décadas nessas duas sociedades e os impactos dessa percepção na atuação de suas polícias. Palavras-chave: mandato policial, discricionariedade, cultura policial e controle social.

Abstract Will be presented the imprecision of the police mandate, involving issues about accountability and discretionary power, in an attempt to deconstruct the image of the police as just one of the bureaucracies of the criminal justice system, which holds a mandate that includes law enforcement in an efficient, apolitical and professional way. To this end, we present the variables that influence the performance of the police, shaping the contours of its mandate and contributing to build a police culture that is often competing with the law. Assuming the importance of community perceptions about police work, we will compare the analysis of David Garland on the U.S. society to Alba Zaluar on Brazilian society about the social perception of crime in the past decades and their impact on the performance of their police. Keywords: police mandate, discretionary power, police culture and social control.


Introdução

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s instituições policiais são normalmente identificadas como responsáveis pela manutenção da ordem pública, mais especificamente por lidar com situações de conflito e desobediência a lei. Junto a essa noção, existe a determinação legal de que em sociedades democráticas a polícia precisa zelar pelos direitos individuais dos cidadãos.1 Essa dupla função apresenta ao trabalho da polícia desafios diversos, notadamente porque a polícia possui uma especificidade da execução de suas atividades: a possibilidade de utilização da força; o que fornece aos policiais um poder peculiar e especialmente delicado. O presente trabalho pretende discutir questões a respeito do mandato policial, discricionariedade e cultura policial, com o objetivo de abarcar aspectos do funcionamento interno das instituições policiais que se relacionam com o fenômeno do desrespeito aos direitos individuais. Serão debatidas questões a respeito do mandato profissional no âmbito das instituições policiais, bem como sua relação com a noção de accountability policial. A questão da discricionariedade surge como um elemento constituinte da atividade policial e a cultura que emerge dentro das organizações também é apontada como um desafio a ordem sob a lei. Finalmente será discutido o aumento da criminalidade nas últimas décadas, os impactos que esse fenômeno tem para o desenvolvimento de uma cultura do medo e do controle e suas reverberações no campo da atividade policial através de influências externas.

Mandato, discricionariedade e cultural policial A (in) definição do mandato O direito de exercer uma ocupação inclui a definição de uma conduta apropriada no trabalho, ou seja, o mandato da ocupação2. Ele reflete a preocupação da sociedade com o serviço, a sua organização e efetividade. As instituições policiais possuem um mandato peculiar, já que quem o delega é a sociedade e seu papel é agir justamente sobre a parte que o concedeu. O seu mandato possui ainda como fundamento a garantia de que esse poder não se volte contra os cidadãos que o concederam. É “o exercício do poder coercitivo autorizado pelo respaldo da força de forma legítima e legal” (Muniz e Proença Junior, p. 38).

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Na constituição brasileira consta a dupla função das polícias: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. 2

Um mandato é composto por três elementos: âmbito, alcance e contornos. O âmbito do mandato determina o objeto sobre o qual as ações devem ser destinadas para o fim do mandato. O alcance, por sua vez, estabelece os limites de ação de determinado mandato sobre um objeto; um mesmo objeto pode ser foco de dois ou mais mandatos diferentes, o alcance determina que aspectos desse objeto devem ser observados na ação, diferenciando os mandatos. Finalmente, os contornos definem como é autorizada a utilização dos poderes delegados, indicando limites para a atuação. A definição clara desses elementos é importante para a possibilidade de materializar a produção de fiscalização e responsabilização (Muniz e Proença Junior, 2007).


A relação existente entre o estabelecimento do mandato policial e a comunidade que o delega fica então clara: “Uma polity pode exigir, modificar, moderar ou proibir alternativas de uso de força, dando conta das representações, expectativas e contextos sociais específicos em relação ao mandato policial. Vê-se, assim, como o uso de força que uma polity admite, ou pode admitir, no exercício do mandato policial depende do que ela espera de, e consente a, seus procuradores” (Muniz e Proença Junior, 2007, 39). Essa fluidez freqüentemente não é reconhecida, de modo que a polícia é normalmente vista como apenas mais uma das burocracias de law enforcement (sistema de justiça criminal) e a sua eficiência estaria relacionada ao domínio dos códigos penais (Bittner, 2005). Dessa forma, o seu mandato teria como base a aplicação dos códigos penais diante das situações encontradas. A noção de ordem que os policiais possuem, porém, é importante na compreensão dessa dinâmica. É problemático pensar que a ordem social pode ser definida por códigos penais, ou seja, o policial precisa apenas conhecer os códigos, identificar infrações e prender os infratores para assim manter a ordem. Os códigos definem atos, porém na realidade identificar esses atos pode ser um processo subjetivo (Manning, 2005). Sendo assim, a ação policial não é guiada apenas por códigos de conduta. Um caso para ser considerado como “caso de polícia” por um policial depende de certos interesses estruturados socialmente e historicamente estabelecidos. Além disso, a ação policial é primariamente guiada pelo caso atual – o policial decide como agir no momento em que se depara com a situação – e só secundariamente por normas. O mandato policial, portanto, não pode ser compreendido como baseado em substantivas autorizações presentes nos códigos penais ou em quaisquer outros códigos. Essa constatação evidencia o aprendizado na prática das ações policiais. Além disso, os códigos penais que a polícia supostamente deve prezar em suas ações são muitos, e muitas vezes pouco compreendidos ou não conhecidos. A polícia na verdade se concentra em uma pequena fração de todos os atos previstos pelo código penal. No seu dia a dia o policial não trabalha com os códigos penais em sua cabeça, guiando suas ações. Quando se depara com uma situação de conflito, onde a força pode ser necessária, o policial prende sujeitos que ele acredita ter cometido um crime e os códigos penais servem como justificativa posterior, mas não são as causas imediatas da ação (Bittner, 2005). Dessa forma, à polícia tem sido atribuída a tarefa de prevenção e detecção do crime e a apreensão dos criminosos. Baseado no seu monopólio do uso da força, os policiais apresentam um mandato que inclui a aplicação da lei de modo eficiente, apolítico e profissional. Na prática, porém, o mandato policial é definido em grande escala por seu público e não em seus próprios termos. O público tem uma demanda dramatizada do trabalho da polícia e a demanda por prisões acabou por se tornar um indicador do quão bem a polícia cumpre seu mandato. Isso se reflete dentro das organizações, definindo critérios de promoção, sucesso e segurança. As preocupações com prevenção do crime, preservação dos indivíduos e direitos civis são menos valorizadas (Manning, 2005). Assim, Manning postula que o mandato policial é cheio de dificuldades, em grande parte criadas pela própria polícia. A polícia age como um ator e precisam produzir boa impressão para sua audiência. Para isso, ela faz também suposições a respeito das expectativas da sua audiência. Os policiais acessam essas expectativas na própria comunidade, já que são


compartilhadas socialmente. Elas são a base das estratégias que servem para manejar as aparências e controlar o comportamento das audiências, assumindo que indivíduos e organizações tentam maximizar impressões positivas para ganhar controle sobre sua audiência.

Discricionariedade e controle da atividade policial Diante desse cenário, a questão do controle da atividade policial é posta. Jacqueline Muniz e Proença Júnior (2007) chamam atenção para a diversidade de significados possíveis para a noção de accountability policial e notam que esse é um fenômeno natural, já que essa definição expressa especificidades históricas, culturais, políticas e etc. Dessa forma, accountability policial não precisa ser conceituada teoricamente no sentido de uma procura de sua essência, apenas compreendido em sua diversidade e formas múltiplas de aparição. A relação entre mandato e accountability é intrínseca. “Qualquer indivíduo, grupo ou instituição que recebe um mandato é accounteble àqueles indivíduos, grupos ou instituições que lhe delegaram tal mandato” (Muniz e Proença Junior, 2007, p. 25). Dessa forma, o mandato é compreendido como uma delegação de poder e autoridade de uma parte para a outra, uma autorização de determinadas ações tendo em vista um fim. Sendo assim, aqueles que recebem um mandato tem a responsabilidade de agir em busca do fim estabelecido e de responder pelos atos cometidos na busca por esse fim. “Todo mandato traz consigo a concessão de poderes da parte de quem o concede e assunção de responsabilidades da parte de quem o recebe” (Muniz e Proença Junior, 2007, p. 25). Ser responsável pelo cumprimento do mandato em observância de suas exigências é ser accounteble, e o account pode ser entendido como um processo que materializa essa responsabilidade. É um processo de investigação das ações e decisões tomadas por aqueles que receberam um mandato. Portanto, “accountability é o produto do account, um resultado específico que atribui responsabilidades a quem se tornou accountble pela aceitação dos poderes delegados de um mandato. É a resposta concreta a um dado questionado que orientou a feitura de um determinado account [...] é o produto que permite converter e materializar responsabilidades em responsabilização” (Muniz e Proença Junior, 2007, p. 27,28). O account se destina a avaliar e investigar ações e escolhas daqueles que recebem um mandato, e possui uma característica importante: ele só pode ser produzido após a feitura das escolhas e execução das ações. Dessa forma, aquele que recebe um mandato é responsável de modo pleno por suas ações ou omissões. Porém ainda assim, não é possível que seja produzido account de tudo, de modo pleno, cobrindo todos os acontecimentos que o mandato abarca e analisando as escolhas dos responsáveis, tornando-os responsabilizáveis de modo completo por todas as suas ações relativas ao fim estabelecido pelo mandato. É possível focar em situações específicas e concretas, a partir de algum questionamento de conduta por parte da população, por exemplo. Diante disso, “mesmo uma accountability que se anuncia como plena está fadada a ser seletiva. Se a quimera de uma full accountability é potencial, latente em qualquer mandato, como espelho do atributo de ser-


se accountable, é a selective accountability que vige como realidade do exercício de qualquer mandato” (Muniz e Proença Junior, 2007, p.34). Ainda em casos em que se deseja uma fiscalização plena, os resultados estão fadados a serem limitados, já que não é possível reproduzir e reexaminar todas as situações e ainda analisá-las e explicá-las de modo a encontrar razões concretas para a responsabilização daqueles que estão envolvidos. O que é possível é uma responsabilidade plena através da accountability seletiva, o esforço de conseguir a partir do possível e relevante, a responsabilização daqueles que executam um mandato. “Por meio de accounts, converte-se a priori o responsabilizável em cursos de responsabilidades identificadas” (Muniz e Proença Junior, 2007, p.35). Sendo assim, não é possível que todas as decisões tomadas durante o trabalho policial sejam fiscalizadas e responsabilizadas, mas através da clara definição de um mandato e de um processo de fiscalização, ainda que seletivo por natureza é possível regular e responsabilizar atitudes que desrespeitem o fim do mandato estabelecido. A discricionariedade é um elemento inerente à atividade policial e os limites da ação discricionária da polícia não são estabelecidos somente através das expectativas da lei criminal ou regras organizacionais, mas também por outros setores como a cultura ocupacional da polícia e grupos específicos da comunidade. O trabalho policial ganha, portanto, características muito práticas. As normas são incorporadas na prática já existente da polícia, elas muitas vezes justificam as prisões, mas não são as causas delas. As regras podem se tornar um recurso poderoso para o policial realizar aquilo que ele julga apropriado frente a uma situação (Ericson, 2005). Há teorias que apontam que a decisão da polícia de agir perante uma situação está relacionada com o tipo de cidadão envolvido, estabelecendo uma divisão entre polícia proativa e reativa. A polícia proativa é destinada aos setores mais baixos da sociedade que representam problemas na ordem pública ou estão fora do lugar socialmente percebido como adequado. (Ericson, 2005) Assim, prisões em flagrante são muito mais freqüentes nesses espaços devido a um maior patrulhamento policial e não necessariamente a um maior número de delitos cometidos em comparação com outras áreas. Em espaços valorizados socialmente a polícia normalmente faz um trabalho reativo, ou seja, atende as denúncias dos cidadãos. Portanto, a noção de ordem do policial é relacionada com a noção de ordem das suas audiências, ou seja, organização policial, juízes e comunidade. Para entender como a polícia decide agir diante de uma situação é preciso ver como a organização funciona internamente e como ela se relaciona com as demandas externas. A polícia tem uma característica diferente da maioria das organizações: as decisões essenciais são tomadas pelos membros com menos status: os policiais de patrulha que lidam com as situações de modo imediato. Para compensar esse lack de controle, a administração aumenta padrões burocráticos e profissionais. O papel do estilo militar e de organização e fardamento é de criar também uma aparência de controle mesmo que isso não tenha a ver com a essência do trabalho policial (Ericson, 2005).


A cultura policial Um elemento fundamental para a compreensão do comportamento policial e sua relação com a manutenção da ordem é a noção de cultura policial. Podemos defini-la como “os valores, as normas, as perspectivas e as regras do ofício que direcionam sua conduta” (Reiner, 2004, p. 134). Apesar da cultura policial se constituir dentro do grupo ocupacional a partir de suas relações, ela não está desconectada com valores que circulam na comunidade. Dessa forma: “police culture does not develop in isolation from wider social and political conditions. […] police racism is more likely to thrive in a xenophobic social climate in the wider society. Thus, police culture itself is shaped by these external factors” (Chan, 2009, p. 73). É possível então entender a polícia como: “um grupo ocupacional dotado de padrões de orientação para a ação social próprios, influenciados tanto pela percepção organizacional interna a respeito do trabalho que seus membros realizam, quanto por uma percepção externa da organização, ou seja, das expectativas da sociedade na qual a organização se localiza” (Ratton, 2003. p. 02). Janet Foster (2003) aponta que há diferenças entre as subculturas policiais de acordo com o grupo ocupacional – devido às distintas tarefas que os policiais desempenham, bem como em diferentes contextos – e as diferentes instituições policiais – em decorrência da sua história, tradição e interesses de lideranças. Skolnick (1966) postula que o papel desempenhado pelo policial proporcionaria uma “personalidade de trabalho” similar em todas as organizações policiais, pois elas estariam primordialmente ligadas às questões de perigo e autoridade, compartilhada por eles. Essas inclinações cognitivas deveriam, portanto se manifestar em comportamentos também similares no que diz respeito à atividade do policial. Há, porém outros fatores que influenciam nessa dinâmica. Esses seriam a relação da organização policial com a comunidade e a lei criminal. Os elementos de perigo, autoridade e demanda por eficiência nas organizações policiais fazem parte do desenvolvimento desse aprendizado na prática e a violência policial ocuparia um lugar nesse processo. Sapori (1999) desenvolve a noção de que a violência policial no Brasil torna-se parte de seu trabalho e possui dois significados: um instrumental e outro moral. O primeiro abrangeria a noção da violência como instrumento de trabalho que ajudaria na prevenção de crimes ou na resolução mais rápida de conflitos, e o segundo estaria baseado na idéia de que a polícia é responsável por limpar a sociedade de indivíduos desviantes, sendo o combate ao crime e a ação violenta contra criminosos moralmente justificável. Esse significado moral da violência policial dialoga com a percepção que a comunidade tem a esse respeito. Reiner (2004) aponta como características dessa cultura policial a idéia de cumprir uma missão que tem um peso moral, acompanhada pela valorização de elementos como luta, adrenalina, afirmação de masculinidade. O autor identifica uma “moralização do mandato policial” o que encobriria suas falhas e colocaria os policiais como representantes dos “homens bons” que precisam proteger os vulneráveis dos predadores. Esses elementos


constroem a imagem que o policial tem de si mesmo, e são compartilhados no grupo. Esse senso de missão seria um elemento constituinte da cultural policial, estando presente mesmo que entre em jogo com percepções pessimistas, ou mesmo cínicas que os policiais têm sobre seu trabalho. A cultura policial se conforma dentro das organizações, mas por vias informais. É possível identificar a existência de padrões e comportamentos informais que guiam a ação dos policiais na prática. A reprodução destes elementos culturais informais se daria na rotina policial em que os neófitos aprendem “praticamente” com os veteranos, configurando uma formação policial informal rival da formação dos cursos oficiais das instituições policiais (Ratton, 2003, p. 05). Os elementos formais de uma organização e a atividade prática representam uma discrepância presente não só em organizações policias, mas especialmente nelas, já que situações práticas de utilização da força pela polícia podem enfraquecer a confiança pública, a credibilidade da organização e chamar atenção da mídia. Por isso o discurso formal predomina (Foster, 2003, p. 198). A presença de uma cultura ocupacional nesses contextos proporciona um processo de confiança e estreitamento dos laços dentro do grupo policial. Isso, por outro lado, desencadeia noções de diferenciação entre aqueles que estão dentro e aqueles que estão fora, ou mesmo aqueles que são membros do grupo, mas não compartilham da cultura dominante. Para se tornar um policial, existe uma série de práticas formais e informais que precisam ser aprendidas sobre a polícia e como ela é conduzida. O contato com a prática policial apresenta aos novatos situações de perigo que têm um impacto sobre a postura dos policiais. "Recruits soon learn that to survive their work practically and emotionally requires them to be one of a team" (Foster, 2003, p. 203). Esse processo de confiança esta baseado no sentimento de proteção e na idéia de que apenas aqueles que fazem parte do grupo têm noção do que ser policial realmente significa. Portanto, ser aceito pelo grupo é extremamente importante. A experiência organizacional, logo nos cursos de preparação dos policiais, estabelece o forte caráter grupal dessa atividade e questões a respeito da lei e do Estado de Direito, uma vez que o trabalho nas ruas é iniciado, são colocados de lado. A noção de que o trabalho na rua é a realidade e que as dificuldades encontradas não podem ser resolvidas sem o comportamento informal, coloca o Estado de Direito como categoria da sala de aula e o retira da prática policial (Foster, 2003). Os indivíduos que ingressam em instituições policiais não são mais preconceituosos em termos de raça, sexualidade ou a respeito das mulheres que o resto da população, mas as circunstâncias de trabalho e a emergência na cultura policial afloram esses sentimentos. A profissão de policial é percebida historicamente como masculina e heterossexual e, além disso, a questão de um policial negro possuir autoridade sobre cidadãos brancos surge como um problema em certas situações onde o racismo se mostra (Foster, 2003).


Apresentamos ao longo dessa sessão que um mandato e em particular o mandato policial pressupõe responsabilidades, mas que não é possível fiscalizar todas as atividades e produzir responsabilização sobre todas as decisões tomadas. É possível, porém, investir em fiscalização e responsabilização de atos que desrespeitem os fins do mandato se ele é bem definido. Mas na prática o mandato policial é bastante aberto por receber influência de várias instâncias da sociedade, de modo que a fiscalização de suas atividades torna-se ainda mais complexa. A polícia possui um grau de discricionariedade inerente ao seu trabalho e age muitas vezes de acordo com estoques de conhecimentos construídos a partir das expectativas da organização e da comunidade. Dependendo de como ela compreende a ordem e das pressões que recebe por eficiência, ela pode quebrar a lei, desrespeitando direitos individuais em nome da ordem. Elementos da cultura policial também podem contribuir para entender como as noções de ordem se constituem dentro da organização e possuem elementos de valoração moral pelos policiais, bem como produzem um sentimento de grupo que resiste a mudanças.

A cultura do controle do “outro” O problema da criminalidade como forma de ver “o outro” e a ordem acima dos direitos individuais. Como vimos, as expectativas da comunidade se configuram como um elemento chave do trabalho policial. Nesta sessão discutiremos como tem se configurado nas últimas décadas as percepções sobre o campo do crime e do controle a partir de David Garland e Alba Zaluar. Garland identifica que ocorreu a formação de uma nova classe de interesses e sensibilidades em resposta à crise do Welfare State nos EUA e Reino Unido, e às dinâmicas transformativas da modernidade tardia. Dessa forma, os novos arranjos sociais e culturais fizeram a sociedade da modernidade tardia mais propensa ao crime e ainda desenvolveram uma menor disponibilidade para o projeto de correção e ressocialização refletido na queda de oportunidades de trabalhos para ex-detentos a partir dos anos 70. O autor propõe que essas mudanças transformaram a maneira de pensar e agir em relação ao crime. Com a crise do Welfare State, surge uma onda conservadora a partir dos anos oitenta que reduz o papel do Estado e há uma menor preocupação com benefícios sociais. Além disso, Há uma volta a valores familiares, responsabilidades individuais, nova moralidade sexual e um retorno a uma sociedade mais disciplinada. Mas essa disciplina não é aplicada na prática de forma generalizada, mas sim de maneira focalizada para controlar o comportamento de desviantes, imigrantes, usuários de drogas e etc. Se antes o controle econômico era valorizado em consonância com a liberdade social, agora essa tendência é invertida, estabelecendo a liberdade na economia e o controle social para certos segmentos da sociedade. As condições políticas de taxas e benefícios se voltaram para as classes médias e como resultado de toda essa conjuntura ocorreu o endurecimento das desigualdades sociais. As considerações sociais a respeito dos crimes nesta época perderam o espaço. Crime passou a ser entendido como resultado de indisciplina e falta de autocontrole. Para resolver o problema era necessário mais controle e até mesmo a segregação de certos grupos considerados perigosos. O crime se transforma em uma lente para enxergar o pobre e uma


barreira para a emergência de sentimentos como igualdade e compaixão por esse grupo (Garland, 2002). O problema passou de uma sociedade durkheimniana para um problema da ordem de uma sociedade hobbesiana. Mais importante do que mecanismos sociais de integração, era preciso um estado forte e disciplinador. As instituições que lidam com o crime não mudaram bruscamente durante essa época de reconfiguração da modernidade, o que mudou foi o seu desenvolvimento, suas estratégias de funcionamento e seu significado social. O autor faz uma comparação com o momento de estado de bem estar penal (penal-welfarism) onde noções de direitos dos presos, reabilitação e ressocialização estavam no centro da questão criminal. Ocorre então uma maior tendência ao aprisionamento e uma mudança no significado político e cultural do aprisionamento. Esse momento é definido como uma era pós-reabilitativa (Garland, 2002). O controle do crime não é mais assunto de especialistas da justiça criminal, mas sim de uma série de atores sociais e econômicos. A justiça criminal é menos autônoma e mais vulnerável ao humor público e reação política, desenvolvendo uma maneira populista de lidar com o campo do crime. As demandas públicas são mais fáceis de influenciar sentenças. Na mídia há um foco dos crimes que refletem os medos da classe média o que incrementa a demanda maior efetividade do controle penal e o campo do controle do crime se expande em novas direções. O foco é minimizar a oportunidade de crimes e aumentar o controle. O crescimento da segurança privada, as ações organizadas da comunidade e organizações comerciais demonstram que o tema do crime não diz mais respeito apenas ao sistema de justiça criminal (Garland, 2002). A razão para esse endurecimento do sistema de justiça criminal é definida pelo autor: Perhaps because we have become convinced that certain offenders, once they offended, are no longer ‘members of the public’ and cease to be deserving of the kinds of consideration we typically afford to each other. Perhaps because we already assume a social and cultural divide between ‘us’, the innocent, long-suffering middle-class victims, and ‘them’, the dangerous undeserving poor. By engaging in violence, or drug abuse, or recidivism, they reveal themselves for what they are: ‘the dangerous other’, the underclass. ‘Our’ security depends upon ‘their’ control (Garland, 2002, p.182).

Essa é uma percepção que nega a um grupo da sociedade o status de cidadão, possuidor de direitos. Esse crescimento da separação entre o “nós” e os “outros” em conjunto com o medo e a insegurança das últimas décadas tem sido mais favorável à emergência de um Estado mais repressivo. Bittner (2005) identifica um enorme poder nas mãos das instituições policiais. Ao questionar qual a razão desse poder ser permitido, o autor insere outra esfera problemática do trabalho policial, afirmando que a polícia foi criada para lidar com as classes perigosas e seu trabalho é aprendido na prática sob a idéia de efetividade e perfeição. A violência policial é perpetrada normalmente contra segmentos minoritários da sociedade – pobres, negros... – eles são considerados o lócus onde a força deve ser usada. A polícia pode também utilizar a força contra outros segmentos, mas eles são mais influentes e têm mais possibilidades de crítica ao seu trabalho. As respostas às mudanças trazidas para o campo do crime com a modernidade tardia não podem ser entendias fora do contexto político. A política dos anos oitenta e noventa foi mais


exclusionária que solidária, mais controladora que protetora social e mais atenta às liberdades privadas do mercado do que às liberdades universais dos cidadãos. Para as instituições de controle do crime a tendência foi a mesma, atrelada a insegurança e obsessiva necessidade de controle e isolamento de grupos perigosos (Garland, 2002, p. 194). As liberdades trazidas pela modernidade tardia em termos morais e de mercado são direcionadas a uma parte da população, aos segmentos mais pobres dos centros urbanos cabe o controle e a exclusão. As noções de responsabilização do indivíduo, escolhas racionais e estruturas de controle também são utilizadas para direcionar políticas para lidar com a pobreza. Há portando uma mudança da uma visão solidária para uma visão condenatória da pobreza. Crime e justiça criminal têm menos a ver com justiça social e reconstrução da sociedade, o objetivo em relação à criminalidade é muito menos ambicioso: o controle. A prisão torna-se mais importante na modernidade tardia porque satisfaz uma dupla necessidade dessa nova cultura: castigo e controle do risco. Esse novo modelo de controle do crime foi uma reação a modernidade tardia, mas Garland prevê que ele pode continuar a operar mesmo depois do boom propagado por ela. Um indicador disso é a manutenção dessa postura mesmo diante de uma queda nas taxas de criminalidade. Uma questão importante é que essa postura muitas vezes proporciona controle, porém não segurança. O Estado tem o poder limitado de manter a ordem através da polícia, é preciso dividir as tarefas de controle com organizações locais e a comunidade (Garland, 2002). A análise de Garland não pode ser aplicada de modo completo à realidade brasileira; ela serve, porém, para lançar luz sobre alguns aspectos que dialogam com as especificidades do nosso contexto. A linha seguida por Garland é um processo comparativo entre duas fases de compreensão do campo do crime: a primeira seria a fase do penal welfarism e a segunda a emergência de uma cultura do controle das classes perigosas, pós reabilitativa e mais repressiva. Não é possível, no Brasil, identificar um período de penal welfarism em algum momento da nossa história. É mais coerente compreender um processo de continuidade histórica de uma cidadania de segunda classe para parcelas da população. Essa tendência se radicaliza com o aumento do índice de criminalidade violenta e a centralidade do medo na vida das pessoas nas grandes cidades. Como argumenta Paixão (1988), hiatos sociais pronunciados representam um desafio para as instituições policiais em ordens democráticas. Assim, no caso brasileiro, “o papel político mais significativo da polícia talvez seja o de socialização política da ‘periferia’” (Paixão, 1988, p. 178). É possível identificar, portanto, juntamente com o processo de redemocratização do Brasil pós Regime Militar e apesar da instituição de um regime democrático, o desenvolvimento dessa cultura do controle do “outro”, caracterizada pelo endurecimento das práticas repressivas, uma maior intolerância aos direitos dos criminosos e uma segregação até mesmo espacial das classes consideradas perigosas. Essa seria também uma resposta aos impactos da modernidade na nossa sociedade, como Zaluar postula, o crime violento nos últimos anos, especialmente a partir dos anos oitenta e noventa no Brasil teve realmente um crescimento notável. Esse crescimento está localizado principalmente nas periferias mais pobres e atinge em sua maioria homens jovens. O medo,


porém, tornou-se um fenômeno generalizado nas grandes metrópoles, tomando o centro das preocupações dos cidadãos e influenciando em suas vidas cotidianas. Esse medo é acompanhado de explicações pouco elaboradas do fenômeno, permitindo uma confusão com outros fenômenos sociais como a pobreza, a presença de trabalhadores de outras cidades nas metrópoles, e etc. Em Fobópoles,3 a questão da segurança pública torna-se paradigma de governo, de modo a criminalizar certos grupos sociais e utilizar o medo generalizado como pretexto para controle social. A militarização da segurança é então compreendida como conseqüência da segurança pública como paradigma de governo que adota um discurso conservador agradando as elites e classe média amedrontadas (Souza, 2008). “Legalidade para as ‘pessoas civilizadas’ e ordem para ‘os marginais’: essa parece ser a lógica institucional do controle social no Brasil” (Paixão, 1988, p. 179). A percepção de camadas mais pobres como camadas perigosas está relacionada com um conjunto de crenças a respeito da relação entre pobreza e cometimento de crimes, apesar da falta de consistência teórica e empírica dessa relação causal. Paixão (1988) elenca várias falhas dessa tese, dentre elas a falta de capacidade de explicar a banalidade de comportamentos criminosos em outras classes sociais, bem como as razões da escolha da maior parte da população pobre pelo comportamento convencional e repulsa ao comportamento criminoso. Ainda chama atenção para a natureza problemática das estatísticas criminais, que são produzidas pela polícia, promotores e juízes que também compartilham da ideologia da comunidade e ao aplicar a eventos concretos a teoria jurídica dominante, aplicam também uma interpretação sobre os eventos. “Na medida em que a atividade prática da polícia se orienta por ideologias, estereótipos e teorias de senso comum que definem, para o policial competente, a marginalidade urbana como objeto preferencial de vigilância e inspeção, a correlação entre pobreza e criminalidade assume os contornos de uma profecia autocumprida” (Paixão, 1988, p. 172). Portanto, a chegada da modernidade trouxe impactos para o campo do crime não apenas no Brasil. Ao contrário do que se deu em outros países, a falta de consolidação de uma cidadania plena contribuiu para que em nosso país, as questões de segregação e emergência de uma cultura do outro se conforme como uma continuidade histórica e não uma mudança na percepção do campo do crime. Nesse contexto, há uma radicalização das categorias de cidadãos de primeira e segunda classe. Essa “nova cultura do controle” causa impactos na percepção que a população tem sobre o trabalho da polícia e por sua vez influencia a imagem que os próprios policiais constróem sobre suas atividades. Sendo assim, a polícia

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Marcelo Lopes de Souza (2008) desenvolveu uma expressão para definir as grandes cidades não apenas no Brasil que foram atingidas por um aumento da criminalidade nas últimas décadas. Fobópole surge da união de duas palavras gregas phóbos (medo) e polis (cidade) gerando o significado de “cidade do medo”. O autor propõe que é cada vez maior o número de cidades no Brasil e no mundo que podem ser denominadas Fobópoles, o que as caracteriza é a centralidade do medo e da sensação de risco presentes nas relações entre as pessoas e na própria organização espacial da cidade. Esse é um fenômeno que se relaciona complexamente com outros de natureza defensiva, preventiva ou repressiva por parte do Estado e da sociedade.


compreende as camadas mais pobres como classes perigosas que precisam ser mais vigiadas, controladas e punidas.

Considerações finais O aumento do crime nas últimas décadas bem como o desenvolvimento de uma cultura de controle do “outro” apresenta desafios ao trabalho policial. A instituição percebida como responsável por lidar com o sentimento de insegurança e desejo de proteção das classes “de bem” através da vigilância, controle e segregação das “classes perigosas” é a polícia. A polícia militar em especial, no caso brasileiro, que é responsável pelo patrulhamento é alvo mais notável de expectativas. Ao longo deste trabalho foram discutidas questões relativas à abertura do mandato policial e as fontes de influência da comunidade no trabalho da polícia; a dificuldade de controle da sua atividade, até a resistência a mudanças de padrões de comportamentos informais internos devidos a cultura organizacional. Todos esses elementos podem servir como fonte esclarecedora para as razões pelas quais as instituições policiais de maneira geral podem agir de encontro à lei e desrespeitar os direitos individuais. O papel da comunidade e sua percepção a respeito do campo do crime e do controle permeiam todas as facetas até aqui apresentadas. Sendo assim, diante do fenômeno de uma cultura do medo e do controle do “outro”, atrelada a discrepâncias socioeconômicas como encontradas na sociedade brasileira, os desafios da polícia em manter a ordem e respeitar os direitos individuais são ainda mais complexos. Esse cenário dialoga com a debilidade da cidadania brasileira, onde os direitos individuais não são devidamente reconhecidos como importantes frente às privações econômicas. Assim, o envolvimento de policiais com o crime, e o tratamento diferenciado de acordo com a cor e classe social que a polícia oferece demonstra que no Brasil não existe apenas a categoria “cidadão”, mas sim, uma hierarquia que estabelece cidadãos de primeira, segunda e terceira classe. Um agravante é a grande falta de conhecimento da população a respeito de seus direitos, o que dificulta sua proliferação a reivindicação por sua efetivação. Ao contrário, diante da ameaça que a falta de segurança traz e da carência econômica sofrida por grande parte da população, medidas de desrespeito aos direitos individuais em prol da ordem não são percebidas como graves, sendo os direitos econômicos compreendidos como mais importantes para essa parcela da população (Cardia, 1995). Ainda que os elementos intensificadores do problema do desrespeito aos direitos individuais pela polícia possam estar em uma esfera mais difusa – envolvendo o próprio processo de desenvolvimento da democracia e cidadania no Brasil – é possível indicar mecanismos mais pontuais presentes na literatura que poderiam minimizar a ação violenta por parte dos policiais. Peter Manning, sobre os problemas derivados da abertura do mandato policial apresentados, estabelece que a postura das instituições policiais como uma burocracia encobre as falhas das suas atividades. A polícia como outras burocracias cria a aparência de eficiência ao invés de realmente resolver os seus problemas. Ela constrói uma imagem de eficiência através de da utilização de estatísticas, tecnologia, estilos de patrulha procurando


satisfazer a comunidade, além de produzir uma imagem impessoal e profissional. Mas no seu dia a dia o policial se vê capaz de julgar quem é culpado e quem é inocente, ele não se vê como um burocrata. Até que a polícia seja capaz de fiscalizar seus membros e com ajuda de advogados e cidadãos criar diretrizes positivas para o seu trabalho, o modelo de “estratégiaprofissionalismo-burocracia” permanece. Goldstein (2003) propõe o reconhecimento do poder discricionário como inerente ao trabalho policial, apesar da resistência das próprias instituições, e com isso poder criar mecanismos de controle mais eficazes e ainda pensar como essa noção pode ser incluída no processo de formação dos policiais para a melhoria da qualidade da instituição. Outro ponto é incutir valores democráticos nas instituições policiais. Se esses valores não circulam de maneira eficiente os valores da cultura policial tendem a prevalecer. Um ponto complicado nesse processo é a visão de muitos policiais e cidadãos, notadamente no caso brasileiro, de que a inserção de valores democráticos e preocupação com a integridade física e direitos dos indivíduos na atividade policial são considerados um afrouxamento do controle que a polícia deve exercer. A proposta seria valorizar os policiais por respeitar as regras e serem veículos da produção de uma ordem pública que tem como objetivo a democracia e o respeito aos direitos individuais. Esses valores precisariam estar presentes tanto nas instituições policiais quanto na comunidade. As noções de eficiência dentro das organizações precisariam ser revistas e a comunidade precisaria de um processo educativo que diminuísse as pressões com efeitos negativos sobre o trabalho da polícia. O reconhecimento de que a capacidade da polícia em manter a ordem é limitada também ajudaria a retirar o peso das expectativas sobre seu trabalho. A posição de instituição responsável por manter a ordem acaba por encobrir a complexidade de elementos que conformam uma ordem social, para além do policiamento. A postura da polícia em aceitar esse papel acaba por proporcionar comportamentos inadequados na busca da ordem em detrimento da lei. Uma vez que as limitações se fizessem claras, se poderiam alterar as expectativas públicas, podendo evidenciar para a comunidade outras facetas que precisam funcionar e que podem ser cobradas por ela ao Estado (Goldstein, 2003, p. 30) As outras agências do sistema de justiça criminal também precisam funcionar de modo adequado para que o trabalho da polícia seja visto como funcional de forma completa. Uma vez que o sistema como um todo não funciona bem, o trabalho da polícia que está na ponta do processo não tem bons resultados (Goldstein, 2003, p. 34) A questão dos efeitos negativos da cultura policial para uma ordem baseada na preservação dos direitos individuais pode ser compreendido como o mais delicado dos desafios das instituições policiais. Isso porque ela dialoga com problemas de ordem interna a organização, o que exigiria uma reforma no funcionamento da instituição, e ainda, com elementos externos que incluem a percepção da comunidade e a própria natureza e contexto do trabalho policial que envolve força, perigo e autoridade. Um claro direcionamento para uma postura de respeito aos direitos individuais e a mudança nos critérios de avaliação do trabalho policial pelos dirigentes das organizações poderia, porém, iniciar um processo de implementação de outros valores e percepção a respeito do trabalho policial.


O trabalho da polícia encontra vários desafios para se tornar eficiente e democrático. Por um lado, elementos delicados que compõem a própria natureza do trabalho policial. Por outro, elementos que se configuram dentro da organização e ainda, elementos de influência externa que se mostram mais fortes diante do aumento do crime das últimas décadas. Esse último se conforma como um desafio não só para o trabalho policial, mas para a própria consolidação da cidadania no Brasil. A percepção da população a respeito do que é justo ou de como deve ser feito o trabalho da polícia entra em diálogo com a estrutura das instituições policiais. Está em jogo a cultura policial que estabelece a violência como procedimento de trabalho e desenvolve um aspecto moral, identificando-se como defensores daqueles que obedecem ás leis e definindo quem tem direito aos direitos. Após o fim das ditaduras militares na América Latina houve, sem dúvida, uma melhor qualidade de vida e exercício de liberdades para os cidadãos. O problema agora mudou de foco: “os alvos da violência estatal agora são diferentes: policiais e militares não mais dirigem suas ações contra um adversário político, qualquer que seja sua definição, como acontecia durante os regimes ditatoriais. As vítimas de tortura, execução extrajudicial e desaparecimento ocasional forçado são agora anônimas” (Méndez, 2000, p. 33). Para além de um argumento político de que uma sociedade não pode, modernamente, ser considerada democrática se diferencia os cidadãos estabelecendo que apenas um aparte deles tenha direito aos direitos, Chevigny (2000) nos oferece uma explicação mais instrumental para os perigos da legitimação da violência policial por parte da população: “A sociedade não pode obter ‘segurança’ pela ilegalidade da polícia precisamente porque é ilegal” (Chevigny, 2000, p. 76). A tortura, por exemplo, pode ser utilizada não apenas para obtenção de confissões – prática ilegal, porém aprovada pela população – mas também para propósitos corruptos de interesse da polícia. Dessa forma, a polícia resolve menos crimes, como no caso ilustrado pelo autor quando a tortura é utilizada em casos de crime contra a propriedade para obter a mercadoria do crime e devolve-la ao dono, encerrando o caso sem mesmo registrar o ocorrido e submeter o infrator às punições legais. Outro argumento baseia-se na falta de controle que se tem, ao legitimar ações violentas contra grupos de cidadãos por parte da polícia. As violações aos direitos são mascaradas pelos policiais através de afirmação de “tiroteios falsos”, por exemplo, e não se pode garantir que pessoas que pretendam denunciar esses crimes não sejam vítimas dele. Esses crimes são, portanto, “parte de um sistema de impunidade que se estende a todos os crimes da polícia, envolvendo ou não a brutalidade policial.” (Chevigny, 2000, p. 78). Essas situações citadas acima não são favoráveis aos cidadãos nem do ponto de vista da democracia liberal, pois desrespeita os direitos individuais e nem do ponto de vista do Estado de Direito Democrático por não haver uma universalização dos direitos. Porém, se essas afirmações podem soar vazias para a maioria da população preocupada em manter a ordem diante de altos índices de violência, Chevigny (2000) demonstra que a violência policial não é capaz de estabelecer essa ordem pretendida. Mesmo que se desconsidere a necessidade de respeitar os direitos individuais e aplicar a lei igualmente a todos os cidadãos. Esse poder conferido à polícia pela população pode implicar em conseqüências negativas para os ditos “cidadãos de bem”, servindo à interesses corruptos da polícia.


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humanos

e

exclusão

moral.

Sociedade

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