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DIÁLOGOS ARTÍSTICOS M
Em sua sétima edição, o projeto Caixa de Pandora, de Camila Yunes Guarita, consolida a ponte que ela vislumbra entre passado e presente, por meio de intervenções de artistas contemporâneos no acervo e no casarão histórico de seus avós, os colecionadores Ivani e Jorge Yunes
POR EDUARDO SIMÕES
Mundo afora, casas-museus são destinos incontornáveis de viajantes que buscam conhecer como viviam e trabalhavam artistas plásticos e escritores, por exemplo. No Brasil, salvo honrosas exceções, são raros os espaços do gênero, seja por falta de interesse dos herdeiros, seja por ausência de incentivos do poder público. Uma lacuna semelhante ocorre no grand monde da arte no País: diferentemente de seus pares na Europa ou nos EUA, colecionadores brasileiros não têm o costume de abrir seus acervos ao público.
Em 2018, a arquiteta Camila Yunes Guarita, também uma art advisor com formação e experiência profissional dentro e fora do Brasil, quis mudar esse cenário. Fundou a Kura, escritório de consultoria de arte, e começou a abrir as portas do casarão de seus avós, Ivani e Jorge Yunes, casal de colecionadores cujo acervo abriga, estima-se, dezenas de milhares de itens. Mais do que o desejo de fazer da morada no Jardim Europa uma casa-museu, ela queria um espaço vivo e pulsante, que fizesse uma ponte entre o passado – obras de arte e objetos, do século 2 a.C. até o fim dos anos 1970, de todos os continentes – e o presente, com a arte contemporânea brasileira. Nascia o projeto Caixa de Pandora, que revelaria ao público o melhor daqueles dois mundos mencionados no início deste texto: o aspecto histórico da casa, erguida nos anos 1930, e uma valiosa coleção.
Hoje já em sua sétima edição, a iniciativa tomou emprestado seu nome do mito grego homônimo da Antiguidade, um artefacto que, se aberto, libertaria todos os males do mundo. Longe disso, a Caixa de Pandora de Camila acolhe e traz à luz beleza e conhecimento, e também instiga. Todo o projeto é financiado exclusivamente pela Kura – como a casa ainda mantém a função de residência privada, Camila não pôde recorrer a leis de incentivo. A estreia foi com o carioca Barrão, numa parceria com a galeria Fortes D’Aloia & Gabriel.
O ponto de partida, igual para todos os convidados, é o desafio de que explorem o acervo e realizem intervenções na casa, concebendo um diálogo artístico com trabalhos inéditos.
“Sabíamos que era necessário criar uma maneira para que o acervo de meus avós respirasse, fosse oxigenado, numa iniciativa que vai muito além da arte. A Caixa de Pandora nasceu, então, com essa vontade de trazer para o público uma conversa entre passado, presente e futuro [a coleção sempre adquire um trabalho novo dos artistas convidados]. Pegamos uma peça do Renascimento, por exemplo, e chamamos um artista contemporâneo para fazer uma leitura dessa obra. Ou ainda uma interferência em cima de um dos núcleos da coleção”, conta Camila.
Obras de Tadáskía, artista trans negra, ocupam a entrada da casa: “Vestida Negro I”, 2022 acrílica e carvão sobre tecido; e “Fora do Aquário II”, 2022 acrílica e carvão sobre tecido
A casa-museu no Jardim Europa é um espaço que faz a ponte entre o mundo das artes do passado com o contemporâneo
A mudança seguinte foi a seleção dos convidados. Como lembra Margherita De Natale, head de Comunicação e Projetos na Kura, a Caixa de Pandora teve início com artistas consagrados no panorama brasileiro. “Mas a gente concluiu que gostaria de trabalhar com artistas mais jovens, nomes emergentes, trazer novos olhares para o projeto”, afirma. “Para chegar até eles, há uma busca ativa, mas boa parte desses artistas novos é indicação que a equipe recebe, de colecionadores, de nossa própria rede de contatos, ou até por meio de pesquisa em redes sociais.”
Dessa nova orientação, veio o convite para Marcela Cantuária, na sexta edição (2021), por exemplo. A artista do Rio ficou conhecida por ter assinado uma série de nove pinturas e um oratório, que definiram o conceito visual do álbum Portas, lançado no ano passado pela cantora Marisa Monte. Na edição atual da Caixa de Pandora, que ficou em cartaz até 16/12, participam Rebecca Sharp e Tadáskía, em parceria com a Sé Galeria e com patrocínio do Iguatemi. Camila destaca que a intervenção de Tadáskía lançou nova luz sobre o acervo, dentro do espírito proposto desde o começo pela iniciativa.
Todos os artistas convidados para o Caixa de Pandora são remunerados pela Kura e têm o direito de indicar um curador com quem vão trabalhar em sua quase residência artística na casa. Barrão, por exemplo, apontou Agnaldo Farias, também crítico de arte e professor da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). A lista de curadores que já atuaram no projeto elenca também Germano Dushá e Jacopo Crivelli Visconti, entre outros.
Ainda em 2018, aconteceu a participação da paulistana Ana Dias Batista, com apoio da Galeria Marilia Razuk. No ano seguinte, vieram Vik Muniz e Paulo Nimer Pjota, respectivamente com a assistência da Galeria Nara Roesler e da Mendes Wood DM. Já a partir do ano seguinte, o projeto começou a passar por ajustes. Em vez de duas edições anuais, algo que pesava nas contas da Kura, passaram a realizar apenas uma, e 2020 foi a vez da gaúcha Regina Silveira, numa parceria com a Galeria Luciana Brito e, pela primeira vez, um patrocínio, da marca francesa Bvlgari.
“Ela é uma artista negra, trans, do Rio. Logo que você entra na casa, tem uma sala que originalmente se chama Império, ligada obviamente a esse período da História do Brasil. O que ela fez? Tirou retratos de membros da família real portuguesa e colocou, em seu lugar, duas pinturas que estavam na reserva técnica, ambas de autoria desconhecida. Uma delas retrata uma virgem negra, com um menino Jesus no colo. A outra traz uma senhora também negra, de idade mais avançada. São trabalhos altamente políticos aos olhos de hoje. Então conseguimos, assim, contar um pouco da história do País, a partir de novas perspectivas”, avalia Camila.
Planos para o futuro? Por ora, a equipe da Kura, que reúne 17 pessoas de formação multidisciplinar, prepara a oitava edição, prevista para acontecer durante a 35ª Bienal de São Paulo, em 2023. Serão 18 meses de organização e o nome ou os nomes dos convidados e curador são mantidos em segredo. No mais, garante Camila, “expandir não é um plano”, salvo o desejo de futura parceria com alguma instituição no exterior.
O desafio para todos artistas convidados é explorar o acervo da casa e criar um diálogo artístico com trabalhos inéditos
“A Caixa de Pandora já é o projeto de nosso coração, ela mexe com a vida da casa, com a vida dos artistas participantes. Espero que a gente possa continuar fazendo as edições, ampliar as interferências no espaço, estimular os colecionadores a abrirem também seus acervos, mostrar cada vez mais jovens talentos.” Resta torcer, de fato, para que o projeto inspire iniciativas similares Brasil afora.